Edimilson de Almeida Pereira estreou em 1985 com Dormundo, e, desde então, publicou livros de poesia, romances, infanto-juvenis e ensaios, como o recente Entre Orfe(x)u e Exunouveau: análise de um estética de base afrodiaspórica na literatura brasileira, de 2017, republicado em 2022. É professor titular da Faculdade de Letras da Universidade Federal Juiz de Fora (UFJF) e vencedor dos prêmios Oceanos, com O ausente, e São Paulo de Literatura, com Front, em 2020. Seus últimos livros são o infanto-juvenil A vida não funciona como um relógio e os livros de poesia Melro, O som vertebrado (ambos de 2022) e A morte também aprecia o jazz (2023). Nesta entrevista, concedida em 17 de maio, Edimilson relata alguns momentos de sua carreira e a relação de sua literatura com outras artes e com o trabalho antropológico, uma das marcas de sua escrita.

Beatriz Resende: Queria começar chamando a atenção para essa conversa do poeta com outras artes. No Diquixi: estudos para cabeças de Artur Timóteo da Costa, por exemplo, há uma conversa com as artes visuais, em A morte também aprecia o jazz, explicitamente, com o jazz.
Edimilson de Almeida Pereira: Acho que essa diversidade de abordagem temática e de inter-relações com diferentes áreas de conhecimento e campos artísticos tem muito a ver, no caso de vários escritores e no meu em particular, com o momento em que você se sente um sujeito criador, quando você começa a trabalhar com a criação. Isso às vezes tem a ver com uma questão geracional. Eu me formei na geração que, aqui em Juiz de Fora, começou a escrever na década de 1980. É uma geração, sobretudo, herdeira da poesia marginal. Tínhamos uma conexão muito próxima com o Rio, mas também éramos herdeiros de João Cabral [de Melo Neto], de Manuel Bandeira, de [Carlos] Drummond [de Andrade]. E havia aquela necessidade, até em função da situação política, dos quadros mais jovens que estavam na universidade se interessarem pelos temas gerais do país e tudo que o afetava. Era inevitável nosso interesse por política, economia, ciências sociais, artes plásticas e pelo cinema, que tinha um papel muito importante. A literatura acaba sendo um fio que atravessava todas essas áreas, não com um discurso de confrontação, para dizer “a literatura é diferente de tudo isso”, mas, ao contrário, para dizer que a literatura está presente de algum modo em tudo. Essas áreas nos ofereciam uma visão ampliada do país e do mundo naqueles anos efervescentes da primeira metade da década de 1980, o que nos deu uma espécie de metodologia natural para nos interessarmos por tudo.
Com o passar dos anos, os autores do grupo foram se dispersando, e eu fui tentando abordar essas diferentes áreas de uma maneira mais objetiva, reflexiva e analítica, de modo que, nos livros que você cita — Entre Orfe(x)u e Exunouveau, A morte também aprecia o jazz e o Diquixi —, tem um trabalho consciente. No primeiro, há uma análise de base antropológica que dialoga com questões de teoria literária. No segundo, um diálogo muito mais de natureza espiritual com o jazz, de modo que isso pode ser traduzido na linguagem poética. E no Diquixi é uma discussão de uma questão antropológica, uma visão do que são as nossas relações com as matrizes culturais africanas, e a tradução disso é um discurso político contemporâneo. Então, acho que veio sendo um processo a princípio natural, depois intencional, de me interessar por várias áreas de conhecimento, de produção do saber, de sempre trabalhar a noção de teias e relações. Relações já é em princípio plural, mas colocadas em teia se amplificam, para que se tente abordar diferentes campos de conhecimento, e a literatura é o fio mais ou menos condutor desse processo.
BR: Você é percebido no mundo da literatura como um poeta. Por isso, achei um desafio tão grande você fazer um livro como O ausente. É um romance, mas, quando lemos, conseguimos ver o quanto é atravessado por poesia. E mais, como aquela narrativa é atravessada também por questões políticas, referentes ao campo, à violência e à negritude, sem que você desenvolva de uma forma pedagógica. A sua expressão é sobretudo poética.
EAP: Os romances refletem de novo aquela teoria das teias de relações. São três romances com temáticas e linguagens diferentes [O ausente, Um corpo à deriva e Front]. Eles podem funcionar separadamente também como obras únicas, ou na trilogia que propus. Mas, no caso de O ausente, é um romance no qual fiz uma opção clara pela linguagem poética a partir da proposição de trabalhar temas da antropologia rural. A história básica do romance é muito simples. São dois camponeses num ambiente rural extremamente tradicionalista, uma cultura arcaica, muito fechada. Temos inúmeros estudos antropológicos que levantam essas estruturas familiares do interior do Brasil. O Antonio Candido, em Os parceiros do Rio Bonito, nos deu um belo exemplo desse tipo de estrutura social. Então, a base inicial do romance vem dessa área das ciências humanas. Faz parte do trabalho com pesquisa de campo que desenvolvo há mais de vinte anos. Agora estou um pouco parado, não tenho viajado mais, mas a estrutura do tema é fruto de pesquisa de campo, de convivência com meio rural. A questão que se coloca é a seguinte: já temos no Brasil uma fortíssima tradição regionalista que todos nós conhecemos bem. Ela já está mapeada nos temas, nas formas, nos narradores, os ícones dessa linhagem muito vigorosa. A minha preocupação não era refazer esse caminho, embora eu tivesse o mesmo tema e a mesma estrutura dessa literatura regionalista. A questão, para me diferenciar dessa tradição regionalista, não era o tema, mas a linguagem. E aí entra a questão da linguagem poética, o viés que mais me interessa, uma linguagem que prima não pelo seu caráter denotativo, que explicita o real, mas, sobretudo, pelo caráter obscuro, velado, hermético no modo como os temas são combinados. Sem falar diretamente do que é o real, vai criando emulações de sentido que nos levam a confrontar o real.
Estão lá os temas da violência, temas ligados às heranças das matrizes africanas e à relação do homem com o meio natural. São perceptíveis à medida que se faz a leitura, mas não estão enunciados de modo direto. A linguagem poética me permite criar essas emulações na fala dos personagens, de modo que é o leitor quem vai construindo os vínculos com o mundo real. O tema da violência rural, por exemplo, é incontornável no livro, mas em momento algum aparece de forma explícita. Ele vai sendo construído nos interstícios dos diálogos e das observações dos personagens, e é o leitor que tem que chamá-lo para si no processo de interpretação. Acaba sendo um livro intencionalmente difícil. Minha proposição não foi dar para o leitor um novelo aberto sobre os temas, mas deixar ele mesmo desfazer o novelo para chegar às suas construções. Foge um pouco da literatura didática e pedagógica, que encontra mais recepção. A intenção era fazer um livro que fosse experimentado a conta-gotas, talvez também por isso não seja muito extenso, senão se tornaria inviável. Para mim, o elemento principal de O ausente é a linguagem e o modo como ela é construída, e ele acaba sendo um livro metalinguístico. Eu deixei muito claras as referências dele, o [Guimarães] Rosa está lá. Não só na inversão das estruturas sintáticas, mas porque é um universo muito próximo do que o Rosa frequentou. Nesse caso, o grande sertão é uma metáfora para a linguagem se construir. O livro é uma visita e uma homenagem evidentes ao trabalho do Rosa.
Nós somos as leituras que fizemos. Nós, da área da teoria, sabemos que muitas vezes nosso pensamento teórico é fruto das leituras e interpretações que elaboramos. Faço questão de marcar esses diálogos na minha obra, as referências são evidentes para o leitor, mas, a partir das referências, é preciso começar a procurar também as particularidades. De certo modo, o que O ausente tem de “anti-Rosa” é a ruptura com o aspecto messiânico dos personagens, que ele explora muito, até porque se aproxima muito do real, da vida rural, como em “A hora e a vez de Augusto Matraga”. Em algum momento o messianismo rural aparece na reconstrução do Matraga. O ausente é totalmente antimessiânico e talvez seja uma das armadilhas do livro. Quem lê procurando esse sertão só do Rosa ou a realidade rural tem certa decepção, porque são personagens que constroem o próprio universo. A figura do narrador principal no fundo tenta se colocar como um pensador às avessas desse universo, tanto que a linguagem dele é toda de recusa.
Julio Tavares: Sua incursão em várias áreas e territórios chama a atenção, provindo principalmente de um profissional da área da letra, da palavra. Sendo você também uma figura ancorada na identidade negra, torna-se ainda insólito. Temos algumas figuras com esse marcador, mas não propriamente nesse trabalho artesanal com a palavra, como o Muniz Sodré, que tem também um longo trabalho de viagem por vários territórios. Através da literatura, você começou a trabalhar com antropologia, ciências sociais, em alguns momentos muito marcantes até existencialmente para você, que toca profundamente na sua biografia. São duas questões muito relevantes, o Congado de um lado, e sua grande parceira, a Núbia Pereira, de outro. Gostaria muito de conhecer mais essa vivência em campo e o motivo que impulsionou você a escrever a quatro mãos um projeto tão bonito, que se desdobrou em vários trabalhos, entre eles o que você me deu o privilégio de prefaciar, Ardis da imagem.
EAP: Raramente coloco minha biografia à frente do trabalho. Vivemos em um modelo social em que, tantas vezes, o biográfico se antepõe à própria reflexão, essa ideia do mundo dos famosos, da publicidade, e torna as suas dores e as suas conquistas um elemento de frente, o que às vezes dificulta o acesso com certo distanciamento à obra. Mas claro, não tenho nada contra isso, são modelos de época e valores sociais que prevalecem. Optei sempre pelo contrário, tenho dados biográficos importantes que aparecem na obra, mas raramente falei sobre eles. Sua pergunta é interessante, porque, como a vida dá muitas voltas, hoje começo a entender que esses dados biográficos são importantes, já dá para pensar sobre eles com distanciamento. Os dois casos que você cita são cruciais para a reestruturação do modo de pensar ou dos modos de pensar, e também para definir as áreas por onde venho caminhando ao longo das décadas. O primeiro acho que foi o contato com a Núbia, que me leva depois para o Congado. O contato com ela se deu na Faculdade de Letras e a universidade é um importante espaço de intercâmbio entre pesquisadores, professores e alunos. Fomos tão massacrados nos últimos anos, mas esse território, como convivência pessoal e de investigação, é decisivo para formar biografias e trabalhos fundamentais.
Entrei na universidade em 1983 e esse ingresso foi um divisor de águas. Vinha de um bairro de periferia e na época ninguém da minha família fazia universidade. Então, era uma primeira relação entre esse mundo periférico e o mundo acadêmico, que a princípio sempre se estranharam. Vemos que só agora essa barreira começa a ser um pouco reduzida, mas em 1983 era nítida. A universidade era um campo mais fechado, a classe média a ocupava e as periferias não chegavam lá. Para mim, de início, foram dois mundos muito diferentes colocados frente a frente, mas acho que tive, talvez por puro instinto, a preocupação de não manter a confrontação desses dois mundos, mas tentar entender como podiam se interpenetrar. Mantive toda a minha vida na periferia e as minhas relações com o mundo acadêmico.
Nesse momento foi importante o encontro com a Núbia, porque ela trabalhava no Departamento de Letras, na área de linguística, e, exatamente em 1983, estava iniciando um amplo projeto que se dividia em psicolinguística e sociolinguística. Ela abriu uma área de estudos sociolinguísticos, porque havia feito uma dissertação sobre a linguagem do pescador do interior de Minas Gerais, e vinha trabalhando etnografia, investigação linguística. Era um trabalho interdisciplinar, com uma abordagem incomum, pelo menos aqui na nossa universidade, talvez em outras isso já estivesse ocorrendo. E eu vinha do movimento de poesia de rua, que me levava a ter interesse por várias áreas. Acho que casou meu interesse múltiplo com a procura dela de um auxiliar de pesquisa que trabalhasse as culturas populares em uma perspectiva interdisciplinar. Em 83, tínhamos muito professor compartimentado na sua pesquisa. Tanto é que, quando ela escrevia os projetos, colocava a palavra “interdisciplinar” em itálico, porque não era algo habitual.
Esse contato foi decisivo para mim, encontrar na universidade alguém com uma visão de mundo muito ampla e interessada em agregar pessoas de áreas de conhecimento diferentes. Ela tinha vários bolsistas, alguns da área da música, o que nos permitiu fazer a transcrição inicial das pautas musicais do Congado, ainda hoje inovadora. Uma das primeiras barreiras que os musicólogos enfrentaram na época foi como fazer uma notação musical da rítmica do Congado, que era algo que precisava ser investigado. A notação tradicional, ocidental, não dava conta. A Núbia tinha um especialista na notação musical etnográfica. Quem avançou depois com esses estudos foi a professora Glaura Lucas, que também se tornou nossa grande interlocutora.
Respondendo a sua pergunta, a minha abertura para o campo da multidisciplinaridade se deve ao encontro com a Núbia. Aquele momento em que você diz que a vida muda de rumo e, no meu caso, mudou. Eu havia terminado a graduação em 1986 e meu projeto de mestrado era estudar o Carnaval no Rio, e já estava fazendo o projeto e iniciado alguns contatos. Acabei desistindo e fui para a UFRJ fazer literatura portuguesa, porque me dava mais tempo para ingressar no projeto da Núbia, o “Minas e Mineiros”, que se propunha a ser multidisciplinar e abordar as culturas populares nas perspectivas antropológica, sociológica, linguística, histórica e literária. A partir de 1986, comecei a acompanhá-la nas viagens para o interior de Minas. Foram dezenas de viagens, não exatamente para municípios importantes, mas para micropolos, microrregiões no interior do estado, junto com os bolsistas e auxiliares de pesquisa. Era aquele trabalho etnográfico clássico, de visita à localidade, permanência demorada, convivência longínqua com os habitantes, muita documentação em áudio, vídeo, fita, transcrição, o trabalho braçal da etnografia. Até hoje, três décadas depois, ainda tenho fita cassete desse acervo para transcrever. Espero algum dia passar esse material para domínio público, porque não vou dar conta de trabalhar tudo, tem muita coisa que foi coletada e é um material intocado. Um link da pesquisa era sobre as questões da feminilidade no meio rural. A Núbia tinha um núcleo específico do projeto que se chamava “O Penhor dessa Igualdade”. Ela era muito criativa nos títulos. A discussão era como o patriarcado no meio rural havia segregado as mulheres, de tal modo que não só a corporalidade, o campo discursivo, mas tudo ficava muito restrito. Tenho as pastas amarelas do projeto com questões sobre religiosidade feminina, parto, puerpério, maternidade, narrativas sobre o feminino, a demonização do feminino. Era uma pasta de pesquisa que ela ia desenvolver. Então, para resumir, depois desse encontro com ela em 1983, como aluno, e em 1986, como participante do projeto, deixei de estudar Carnaval para estudar culturas populares no interior de Minas.
Eram mais de trinta temas que investigamos e um deles era o Congado. Foi talvez a área que mais apostamos na investigação, porque, na época, no início da década de 1980, toda terminologia, todo levantamento de campo sobre a prática ritual do Congado estava nos livros de folclore e de folguedos. Enveredamos primeiro na pesquisa de campo, sentíamos que isso era necessário. Visitamos muitas comunidades afrodescendentes do interior do estado, com ênfase no meio rural. O trabalho com os Arturos ficou mais conhecido, mas nossa ênfase era o meio rural, porque nos anos 1980 não se fazia antropologia rural do Brasil.
JT: Naquele momento os Arturos já eram urbanos?
EP: Sim, porque Contagem é uma cidade colada em Belo Horizonte. Mesmo em 1983, eles estavam a oito quilômetros do centro urbano de Contagem. Era uma comunidade fechada, com uma agricultura de subsistência pequena, mas da porteira para fora já era área urbana, então havia um contato muito grande. Com isso, o Congado entrou de fato na nossa área de interesse e fizemos um levantamento muito grande. Temos ainda muito material gravado e hoje, quando me lembro da Núbia, lembro com carinho especial, porque ela tinha uma enorme preocupação com o registro visual. Era difícil naquela década um fotógrafo fazer as imagens, era quase um milagre, ter uma câmera Super 8 era dificílimo. E as pessoas das comunidades não gostavam de se expor para a fotografia, muito diferente de hoje. Atualmente, abro as redes sociais e os Arturos têm um link próprio da comunidade e fazem questão de aparecer com as suas práticas culturais. Era uma outra experiência de campo, que nos levava inclusive a propor teorias que hoje talvez precisem ser revistas. Trabalhamos muito, por exemplo, com a ideia de isolar os negros desolados remanescentes. Eram comunidades muito isoladas, muito pobres, e essa pobreza material afetava a preservação das práticas culturais, e, além do isolamento, havia a desolação pela falta de reconhecimento. Não se falava naquele momento, por exemplo, em comunidades quilombolas, um termo que hoje elas reivindicam para si, como direito político, como direito ao território, e isso implica um aumento não só do valor cultural, mas do valor político delas. Hoje, há lideranças que procuram, com mais frequência, as conexões com lideranças políticas e do meio urbano. Nosso trabalho estava em um período muito inicial, de pouca teoria sobre o Congado, pouca conexão com essas comunidades isoladas, e, nesse fio do tempo, percebemos como foram ganhando autonomia, acompanhando o processo político do país, de construção das identidades das periferias, de maior evidência política dos movimentos sociais negros, de políticas públicas de governos que dão suporte a elas. Esse é o ensaio que espero fazer, uma espécie de autoanálise, como fez o Mário de Andrade para a geração de 1922, escrever minha “Elegia de abril”, rever essas três décadas para ter uma visão mais crítica desse percurso.
JT: Foi essa última imagem que me brotou quando imaginei seu trabalho, que combina inserção na comunidade e uma profunda reflexão sobre a letra, sobre a literatura.
EAP: O que a gente percebe é que uma sociedade como a brasileira é desafiadora em vários aspectos, é um modelo social o tempo todo em processo de ebulição. Quando achamos que chegamos a um ponto de síntese, na verdade, estamos abrindo outras conexões de relações sociais. No que diz respeito às culturas populares, minha grande implicância, no bom sentido da palavra, é quando as análises sociológicas tendem a mapear essas relações sociais, mas imaginam que depois, em algum momento, esses processos se esgotam. Então, muito da pesquisa que se faz, por exemplo, sobre a religiosidade popular tem um processo de recusa, de não reconhecimento. Tem uma entrada em certa modernidade que vai integrar uma utopia nacional, modernista, e para por aí, enquanto que as religiosidades populares são, ao contrário, proteicas, vão continuar guardando valores extremamente retrógrados e são capazes de se acoplar a posturas altamente avançadas, contemporâneas. Esses processos não se fecham, e o Congado é um exemplo disso. Como estrutura inicial, é muito fechado, mas tem uma plasticidade muito grande que se adapta nas relações com os modelos religiosos. A umbanda, que já era mais tradicional, o candomblé. Hoje há um jogo interessante inclusive nos grupos neopentecostais, fora da lógica neopentecostal catequética.
Temos que ter uma postura muito serena quando tratamos de fenômenos sociais no Brasil. Deixamos muitas vezes a discussão ideológica se antepor à análise reflexiva. E claro, na militância, no ato de sobrevivência, é isso o que vale. Tenho uma força agressiva, tenho que sobreviver, a confrontação se dá no campo de batalha, na rua, nos campos da comunicação. Mas, nesse distanciamento reflexivo para tentar entender as estruturas, antes de criar uma imagem de demonização do movimento neopentecostal – que é muito variado, há movimentos dentro de um grande movimento –, precisamos ter vários enfoques. Tirando esses movimentos mais midiáticos que realmente são de charlatanismo, espoliação da boa-fé, há vertentes dentro do movimento neopentecostal que têm, sim, a preocupação de suprir as carências do humano na sua materialidade em relação a um processo de busca da transcendência. A vivência da religiosidade como algo muito sério, muito fundamental para a existência. Essa vertente neopentecostal menos conhecida se apoia muito em estruturas de credibilidade do sagrado que já estão nas culturas populares. Você pega a chamada cultura popular tradicional (só para termos uma diferenciação, criar uma terminologia) e ela está ligada a práticas rituais cotidianas. Tem um artigo famoso do Frei Beozzo, dos anos 1970, “Irmandades, santuários, capelinhas de beira de estrada”, que fala que o catolicismo brasileiro é de muita prática, muito rito, muita reza e pouca doutrina. As pessoas gostam de rezar o terço, fazer a bandeirinha para a igreja, levar a comida para depois da reza do padre. Então é uma vivência do sagrado muito teatralizada, muito pragmática. Isso envolve o devoto em todo os sentidos, ele é parte de um conjunto social no qual a vida dele tem sentido. Isso está na religiosidade brasileira desde a colonização e vai para o Congado, para as práticas das benzeções, das folias de reis, do Nordeste para as grandes práticas das festas populares de igreja dos adros. Ora, certa vertente neopentecostal vai justamente trabalhar com esses microrritos, o teatro do sagrado. Por isso, vemos muitas vezes os ritos de despossessão, o ato de consagração de objetos, o ato de consagração da corporalidade. O que vai ocorrer depois, ao longo dos processos, é que podemos ver o distanciamento desse momento inicial, e aí começa outro discurso, mais de catequese, a ideia de depuração da religião, que vai recusar inclusive o próprio mundo popular. Uma vez que me conectei com ele e dissolvi os elementos de interesse, posso rejeitá-los, recusá-los. Esse processo é muito rico e começamos a observar hoje, em várias práticas populares do interior, como essas relações acontecem. São pessoas que já têm uma experiência de mundo plural, em termos de cultura. Esse dado da pluralidade das culturas populares do Brasil é muito importante.
Só abrindo um parêntese: você pega um indivíduo e ele tem várias funções. No caso das mulheres, são parteiras, rezadeiras, benzedeiras, curandeiras, trabalham no Congado, na cozinha, todas atividades sociais com o sagrado. Então, para adotar mais uma vertente do sagrado, é só agregar ao universo multipolar um elemento a mais, dar mobilidade a essas vivências do sagrado. Só que isso é um processo contínuo, por isso, a observação de campo, a base do nosso projeto Minas e Mineiros em 1986, ainda hoje é um dado fundamental. Daí a conexão cotidiana que fazíamos com as comunidades, e era um propósito inclusivo. Volto ao que era a ideia inicial da Núbia, sempre procurar uma conexão entre o campo teórico que investigávamos na universidade — nas áreas da linguística, antropologia, sociologia — e o ambiente de vivência das culturas populares, que são culturas teóricas. Elas têm teorização. Boa parte do nosso projeto era o projeto de escuta. Tínhamos uma paciência enorme de escutar horas e horas as pessoas falando, para deduzir como tinham uma visão teórica da própria cultura. Sempre cito, como um ícone de nosso modelo de trabalho, um senhor que se chamava Nelson Carvalho da Silva, em uma comunidade em Jequitibá, no interior de Minas, vizinha a Piracuama do conto “O duelo”, de Guimarães Rosa. Nelson Carvalho seria um personagem do Rosa e nós o entendíamos como um pensador do meio cultural em que vivia. Ele tem uma frase que uso como epígrafe de trabalhos até hoje: “O mundo é feito de muitas sabedorias”. Uma visão mais aberta para a conexão com o outro, a ideia de alteridade, está sintetizada nessa frase. Assim como vamos à Sorbonne para estudar, íamos a Jequitibá estudar.

BR: Edimilson, e Orfe(x)u e Exunouveau?
EP: Esse aí é um livrinho que me deu trabalho. Nasce como tese para a titularidade e vai, de certo modo, na contramão de algumas propostas e análises das culturas de matriz africanas do Brasil. Temos trabalhos fantásticos, extraordinários, na perspectiva de tentar entender como os valores africanos trasladados ao país, pelas razões óbvias da escravização, de certa forma permitem uma volta às matrizes africanas. É como se houvesse todo um patrimônio cultural que veio a despeito das relações difíceis e da violência. Esses modelos culturais se mantiveram e nos ajudam, como brasileiros negros e negras, a voltarmos a ter uma conexão com a África, uma ideia de resgate da memória e da ancestralidade. Nos anos 1980, isso era muito evidente, por exemplo, no campo da literatura, em que muitos autores e autoras se autorrenomeavam, abandonavam o nome ocidental, muitas vezes cristão, e assumiam nomes africanos. Hoje está aí de novo, acho que por outras razões, mas, nessa época, era um pouco isso: para me reconhecer africano ou descendente, tenho que, simbolicamente, mudar de nome. Então se vê uma leva de escritores e escritoras com nomeação em geral tirada do iorubá, o que era interessante. Não havia muitos nomes da herança banto no meio literário e no Brasil de modo geral. Tivemos um movimento literário negro muito forte, derivado do trabalho do Quilombhoje em São Paulo, que se espalhou para várias áreas do país. Muitos grupos de escritores negros estavam começando junto à militância e à escrita literária. E a forma de se identificar com África era renomear o próprio autor. O Éle Semog, por exemplo, o Negrícia, no Rio. Era a ferramenta política da época, para contrastar com a rejeição que sofriam as culturas de matrizes africanas. Um processo legítimo e interessante, que surtiu depois efeitos muito positivos.
Mas a minha preocupação sempre foi a de não trabalhar nem o ponto de partida dessas matrizes africanas nem o de chegada, mas pensar o trânsito, que, depois do livro do Paul Gilroy, ficou mais evidenciado como o espaço do Atlântico Negro, embora ele excluísse o Cone Sul. Gosto de trabalhar essa metáfora da diáspora em percurso, em trânsito, porque ali se encontram os valores culturais, os modelos políticos, a prática de vida. E se encontra, no processo de dispersão, uma pretensa origem africana, sem ter um ponto de chegada definido. Se trabalha com a ideia da crise das matrizes culturais africanas e não com os processos de identificação imediata, que é uma vertente. Eu me sinto herdeiro das culturas africanas, adoto um nome, invisto nas religiosidades de matrizes africanas, tanto que, já nos anos 1980, havia um movimento muito grande de intelectuais que voltavam para as religiões de matrizes africanas, como o candomblé, e, mesmo hoje, nas redes sociais, há um interesse intelectual e político de jovens autores de se identificarem como filhos dos terreiros. Eles identificam que pertencem e fazem a descrição: “Sou filho de Ogum, filho de Iemanjá”. Descrevem o processo de iniciação, mas curiosamente esse movimento não se deu de modo vigoroso em relação às matrizes banto, o Congado, por exemplo. Agora, algo se prenuncia e é um fenômeno para acompanharmos.
Percebi que não queria usar esse processo de saída das culturas africanas do continente, chegada nas Américas e depois um caminho de volta à África, queria pegar a crise de ruptura desses modelos culturais. Então, a minha procura em termos de análise nunca foi por identidades, mas por problemáticas de como essas fragmentações geraram modelos, inclusive, de pensamento laico. É muito delicado tocar no tema do intelectual negro hoje que não seja adepto de uma região de matriz africana ou que não tenha o sagrado como referência da sua criação, mas também da sua conduta pessoal. Se observar bem, as pessoas fazem questão de dizer: “Pertenço a uma comunidade intelectual, mas também do sagrado, das religiões de matrizes africanas”. Eu sempre me perguntei: mas e se um sujeito quiser perder todos esses modelos culturais e se definir como um sujeito laico? Que visão teria deste processo? Que literatura produziria? É uma janela pequena, mas que tem norteado meus pontos de vista. O sagrado quando aparece na minha obra – tanto na analítica quanto de criação – é um componente de percepção do mundo, de atribuição de sentido ao mundo, ao lado de outros. Procuro fugir um pouco dessa perspectiva que, na falta de um termo melhor, chamo de teocrática. Entendo que há uma necessidade de pensar todo esse processo das religiões de matrizes afrodescendentes e do modelo cultural derivado de uma perspectiva que não tenha só o sagrado como referencial, porque, na medida em que o sagrado é o referencial, até pela natureza dele, ele nos obriga às práticas rituais, que mantêm no processo de repetição. Se o rito não se fizer como repetição, ele não mantém a estrutura originária de sentido. Então me pergunto: como pode haver uma matriz afrodiaspórica que seja, acima de tudo, laica em sua percepção do mundo, embora trate o fenômeno sagrado, que não fique restrita aos territórios nacionais? Não penso em uma cultura só afro-brasileira, afro-cubana, afro-colombiana, penso em um mapa mundial. E esse mapa mundial é muito extenso, numeroso, multilíngue e multiestético.
Tenho uma noção muito clara e autocrítica de que muito do que escrevo não se encaixa em certos padrões dos discursos afrodescendentes do Brasil, da literatura negra e do pensamento da militância negra propriamente falando, e gosto dessa situação, de certo desconforto. Tenho falado que gosto de pensar não de um lado ou do outro da aresta, mas no fio da aresta. Por isso Exu é meu referencial importante. Acho que ele tem um campo de interpretação maior e mais dinâmico do que aquele que nós temos feito, que já não é pouco. Os modos como vemos Exu hoje são fascinantes, ele desconstrói toda a lógica social colonial do Brasil e aponta para uma utopia muito importante. Esse trabalho, feito por artistas, cineastas, é maravilhoso. Sou um entusiasta dessa linha de interpretação. Mas, em minha inquietude, me pergunto se não posso tirar dessa lógica de Exu o componente sagrado para jogar no campo difícil do mundo laico – a tese que está em Entre Orfe(x)u. Ao usar esse princípio de Exu fora do mundo religioso, tento construir uma lógica em que ele me dá, não o modelo literário para interpretar e analisar literatura afro-brasileira, mas literatura brasileira, literatura ocidental. Assim como pego um princípio do [Jacques] Derrida para pensar a literatura ou a sociedade, por que não posso pegar uma lógica exusíaca para pensar a cultura ocidental como um todo, mesmo quando não for afrodescendente? Então, é uma projeção bastante utópica que o ensaio tenta fazer e por isso é provocativo. Tenho que transformar isso em um conceito, não só em uma prática religiosa, mas em um conceito que me permita analisar, por exemplo, a ascensão do trumpismo nos Estados Unidos. Não tem nada a ver com o mundo afrodescendente, mas estou tirando um conceito, a lógica de Exu construir e desconstruir no caos, para ver como ela pode virar um conceito político e pensar relações políticas em um país tão importante como os Estados Unidos ou a ascensão da barbárie no Brasil recente. Então, é uma provocação que vai do literário ao filosófico, é um livro que intencionalmente não se fecha, se propõe a ser aberto para análise de temas que vão sendo incorporados. É extremamente autocrítico, incorpora as falhas da teoria como um componente dela mesma.
JT: Está claro que Exu continua com seu elemento principal, a encruzilhada.
EAP: A ideia é aproveitar essa base que fundamenta e, vou dizer algo que vai parecer uma heresia na lógica das religiões de matrizes afrodescendentes, tirar um pouco o Exu de dentro do mundo negro, fazê-lo passear fora dele. O que ele pode fazer? Assim como puxamos a filosofia ocidental para pensar questões negras, vou tirar o Exu do mundo negro para pensar o mundo ocidental.
Lucas Bandeira: Achei interessante você começar falando do livro do Antonio Candido, que de certa forma é um malogro. Ele vai estudar uma prática cultural, desiste e faz um trabalho antropológico. Pensando nos conceitos dele, acho que aparecem na sua pesquisa práticas culturais que não podemos analisar com os instrumentais teóricos da literatura, da teoria da literatura. Seriam sistemas que não são os que o Antonio Candido estuda. E talvez o Congado seja um deles, com um outro tipo de tradição, tradição oral, não escrita, outro cânone, e ainda tem a maneira como isso é influenciado pelas novas tecnologias.
EP: Essa é uma das estradinhas esburacadas que venho tentando perseguir. Discuto um pouquinho a possibilidade de se ter um outro cânone, um outro sistema. Em relação ao Congado, já publiquei isso em A saliva da fala: nota sobre a poética banto católica do Brasil, que saiu no mesmo ano da primeira edição do Exunouveau. Ele também tenta entender o Congado dentro da estrutura social brasileira, como um modelo religioso, uma prática do sagrado, que está relacionado a essas heranças de matrizes africanas, sobretudo de origem banto, e suas relações com o cristianismo católico. Em A saliva da fala, parto das análises dos próprios agentes do Congado, que são pessoas, na área urbana, de bairros periféricos, e, na área rural, de comunidades pobres. O Congado hoje mantém essa estrutura social. Há elementos que se agregam de fora, que é uma tradição também. O Congado sempre teve alguém de mais poder aquisitivo que ajuda na realização da festa. Geralmente são os reis festeiros, que ficam durante o ano e auxiliam a comunidade. Então tem uma aproximação com a classe média, às vezes com a classe alta da localidade. Ele já é por natureza esse ambiente socialmente meio híbrido, mas está nas mãos das comunidades mais pobres a prática toda do ritual, o discurso sobre ele. E foram esses discursos que, a partir da pesquisa com a Núbia, me deram algumas preocupações teóricas. Analisamos primeiramente uma lógica sociológica-antropológica em livros como os dos Arturos, mas sempre me interessei pelo aspecto literário. Há uma grande produção discursiva que vai de narrativas a cantos e esse material sempre fora trabalhado, inclusive por mim e pela Núbia, como elementos que usávamos para justificar teses antropológicas. Nunca analisamos de maneira autônoma esse manancial discursivo. No livro A saliva da fala, trabalho com as chamadas narrativas de preceito e com os canto-poemas, que foi o termo teórico que cunhei para me dedicar à parte poética dessa estrutura.
Esse corpus é muito grande, faço questão de frisar, porque em cada comunidade há um repertório textual muito expressivo e dinâmico. As comunidades têm a prática de expor alguns desses textos que são antigos e têm uma dinâmica de criação de novos, que vão incorporando inclusive elementos da contemporaneidade. Hoje, por exemplo, você pode acompanhar essas narrativas, esses cantos nas mídias sociais. Os devotos foram para lá. Esses agentes têm clara noção de que há no Congado um eixo fixo, que vão chamar de tradição, e um eixo móvel, que são as transformações sociais. Eles adotam uma perspectiva do que é tradição, e é importante pensar antropologicamente, que é uma espécie de contínuo com adaptações de matrizes africanas. O Chinua Achebe, um grande historiador nigeriano, tem uma definição de tradição muito importante para pensar o Congado e talvez as outras matrizes africanas no Brasil. Ele diz que ela é, de certo modo, dialética. Ao mesmo tempo que tem um eixo de preservação, tem um eixo de mudança. Isso de modo simultâneo. Não é preservar primeiro para mudar depois ou só preservar para nunca mudar. Ela é simultaneamente uma produção de discurso e uma prática cultural, em que o indivíduo e a comunidade preservam e mudam algo. Essa lógica dialética na estrutura do Congado é fascinante. A partir disso, quando trabalhei com a textualidade das narrativas dos canto-poemas, minha preocupação era: essa não é uma literatura que se encaixa na estrutura da literatura ocidental, muito menos na brasileira. Então, começam a surgir questões muito peculiares, não é só porque são textos inicialmente orais, e esse é o grande referencial deles, mas alguns começaram a formar um repertório escrito. Você pode ter uma antologia de textos escritos de todo esse material.
Primeiro, os pesquisadores se esforçaram em gravar e transcrever, então, havia uma espécie de coautoria entre o agente do Congado e o agente pesquisador, uma parceria mais ou menos como o Bruce Albert e o Davi Kopenawa em A queda do céu. Há uma textualidade dupla sendo criada. Depois passa a haver muitos casos de pessoas das próprias comunidades escrevendo as narrativas, passando a ter uma escrita interna. Dá para comparar inclusive com aquela que fazem os pesquisadores, porque há diferenças. Mais recentemente, começa a haver jovens dessas comunidades que se escolarizaram e chegaram ao meio universitário, e aí fazem dissertações, teses, produzem um outro discurso acadêmico, mas com uma linguagem voltada para a própria comunidade. Há um campo literário muito complexo, que vai ter que ser bem analisado, pois se aprofundou nos últimos anos. Se esse campo se constitui, a grande tensão é tentar se inserir na lógica discursiva literária brasileira, pois são textos estéticos, mas, ao mesmo tempo, não têm ainda uma recepção estética para eles, que querem se inserir como texto estético, porque ainda os olhamos como material antropológico. Os devotos, no entanto, têm clara noção de que o que produzem é material estético, é poema, é história, tem caráter ficcional, tem a estrutura do poético, por exemplo. Alguns elementos até lembram a estrutura da lírica moderna do Hugo Friedrich. São textos fechados, intencionalmente herméticos, alguns cantos são indecifráveis, o que dá margem para um processo interpretativo. Existe uma lógica literária.
No caso do A saliva da fala, minha preocupação foi um pouco essa: mais do que definir um outro cânone, acho cedo para falar disso, definir que há dentro da literatura brasileira um corpus literário que é estrangeiro, não só porque tem palavras de línguas, como quimbundo ou umbundo, não totalmente inseridas na língua brasileira, que ainda precisam de vocabulário para interpretá-las, de tradução. É literatura estrangeira dentro do português. É uma literatura estrangeira por esse aspecto e porque seus agentes não são reconhecidos como sujeitos autorais, todos sempre dizem que “é criação coletiva”. Muitos desses campos podem até ser criação coletiva, mas têm um dado fundamental: a apresentação desses cantos ou dessas narrativas é uma performance individual. Então consigo distinguir muito bem, só para citar aqui dois nomes, quando era um canto-poema tirado pelo seu Geraldo Arthur Camilo e quando era um canto tirado pelo irmão dele, o Antônio Maria da Silva. Havia um traço autoral, é assim até hoje, e os devotos sabem disso, reconhecem essas individualidades. Não sei como isso vai se encaminhar, porque agora nas redes sociais, quando aparece alguma imagem, filmagem, canto, narrativa, as pessoas identificam: “É fulano de tal fazendo a performance”. O caráter autoral está se tornando mais evidente, e acredito que, em algum momento, vá ficar mais específico até para quem fizer a pesquisa.
A ideia que propusemos é: nosso cânone literário está estabelecido, mas tem elementos nas fronteiras dele que frequentemente colocam em xeque essa limitação, que, sabemos bem, hoje não é tão rígida. No senso comum, falamos “cânone literário” e as pessoas pensam que é um campo definido de autores e obras, mas a prática mostra há um bom tempo que ele está mais flexível, no dia a dia da sala de aula, na crítica literária. Acho que hoje o momento é muito favorável para essas modalidades literárias, como tem sido com as literaturas indígenas, as textualidades de imigrantes que o Brasil começa a receber com mais frequência. É um fenômeno interessante ter o imigrante que escreve um livro do Brasil. Como categorizamos essa produção literária? As fronteiras estão muito mais próximas e os indivíduos circulando mais.
BR: O Edimilson apresentou a formação intelectual dele a partir do trabalho de campo, e isso é extremamente interessante, porque falamos de um poeta com essa formação e as coisas começam a se encaixar.
JT: Ele foi tragado pelo anthropological blues. Na verdade, essa ideia de captura, a agência de ir ao campo é o que o Dostoiévski fez, inspirado por Púchkin. O delicado é trabalhar na experiência os aspectos mais minúsculos da alma, o que a etnografia, em sua forma mais criativa, nos traz de sua forma clínica. Porque a etnografia é, sobretudo, a libertação da alma de quem a faz. Você faz com ela uma travessia inenarrável e nunca vai conseguir colocar em texto todo o conjunto da experiência que ela promove: fazer saltar para um platô absolutamente distinto daquele que o conduziu até o momento inicial da experiência.
Outro trabalho seu que gosto muito é o Signo Cimarrón. É um livro de poesia fantástico. Para nós, o cimarrón seria a tradução de quilombola. A experiência poética, que você transfigura ali, imediatamente me levou a imaginar seu trabalho de campo, o que ficou de seu contato com as experiências comunitárias. Fiquei muito tocado por sua preocupação com o signo, porque tem um momento semiótico muito forte na construção da sua travessia literária, que aparece no conjunto de vários autores que você compila e edita em Um tigre na floresta de signos: estudos sobre poesia e demandas sociais no Brasil. Peço, então, que fale dessa experiência, que eu diria autopoética, correlacionando o momento da descoberta do signo e esse desvelamento da experiência no trabalho literário.
EAP: É um novelo complicado, mas, se puxarmos os pontos, se solta e depois se emenda. Tenho uma metáfora para minha trajetória: a ideia de um arborescer intelectual. Você tem núcleos de pensamento, formas de escrita, que vão se expandindo e, em algum momento, se conectam e depois se separam de novo. Então, para falar do comentário do Júlio, retomo um pouco essa experiência em um poema longo de O som vertebrado, que saiu ano passado pela José Olympio. É um poema central, uma operação clínica. Retomo os temas que me interessavam de uma viagem etnográfica clássica em um povoado no interior de Minas, não na perspectiva da análise antropológica ou histórica, mas em linguagem poética. É um poema extenso que relata a viagem de alguém a um povoado, com a intenção de coletar dados para um trabalho acadêmico, mas esse sujeito acaba tragado pela alma do lugar. É o anthropological blues em situação explícita. Se vai como coletor de dados para criar interpretação sobre o outro, retorna como quem se torna um enigma para si mesmo, porque a comunidade o ensina isso. Quando se inverte um pouco o trabalho da pesquisa, sobretudo no autorreconhecimento, uma parte dele implica você se entender como um conjunto de máscaras. No meu autorreconhecimento, vou entendendo que, na verdade, sou um conjunto de máscaras que se multiplicam, tanto quanto são os outros que, em tese, analisei. É por isso que também tenho pouca preocupação com a projeção pessoal, cada vez me preocupo menos com isso. A noção de linguagem poética para mim é mais importante do que a figura do poeta, o que é fruto desse processo etnográfico, o anthropological blues. Vou ao campo em busca de algo, ele me dá algo inesperado e isso me transforma. No fundo, a transformação de quem investiga talvez seja o ponto de contato com essas comunidades, que, em tese, eram o outro. O outro no fundo é também quem investiga. Isso está nos textos teóricos e era uma preocupação que eu e a Núbia tínhamos, trabalhávamos muito com a lógica do Clifford Geertz, da fala desde dentro e desde fora, e os trabalhos procuram refletir a fala desde dentro, admitindo as limitações da fala desde fora. Por isso, nossos trabalhos têm muito depoimento, muitas transcrições das falas das pessoas, que às vezes analisam a própria cultura e analisam nosso comportamento como investigadores. Você trabalha com a perspectiva horizontal e produção de sentido, uma colaboração entre o mundo das comunidades e o acadêmico. Nós somos só intermediadores desse processo.
Na linguagem poética isso também aparece muito. Está lá em Árvore dos Arturos, de 1988, que é um livro em percurso longo, e em A saliva da fala, de 1987. Isso se dá não só com as matrizes afrodiaspóricas, mas também com as culturas populares de um modo geral, que é o caso de O ausente, que tem muita referência cultural não afrodiaspórica. Esse grande repertório rural brasileiro é o mosaico de referências, o mundo ibérico, o mundo indígena, de imigrantes e de outras origens. Essa experiência de criação para mim vai funcionando à medida em que o eu, esse ego pessoal Edimilson de Almeida Pereira, vai ficando meio de lado para dar voz a esses outros “eus” que esse sujeito pode experimentar. Esse aprendizado é no trabalho de campo mesmo.
A história e a prática musical do jazz de algum modo me fascinam por isso também. Em tese, é uma experiência cultural e musical, em que a teorização de quem executa não é muito visível. Tanto é que o mote fundamental do jazz é o improviso. As culturas populares têm muito a lógica do improviso. O Congado tem a ideia do mote, da nota inicial, e depois o trabalho de criação no momento, na hora. Só que, nessa aparente desorganização teórica, o que se tem é outra proposição de percepção do mundo, ramificada. Em vez de pensar em uma composição com uma nota de origem, vou pensar em uma composição com um conjunto de origens que possa ir desdobrando ad infinitum. A jam session é um pouco isso, cada um vai pegando um fio dessa raiz plural e desenvolvendo até ter uma noção de um conjunto que vai ao infinito, quase um ser spiritual que está enraizado em uma lógica social. O jazz tem um fundo histórico, sabemos quem são os agentes, as condições de surgimento, mas, nesse afastamento do mundo real, são propostas lógicas de sentido transcendentes, mas que não me afastam totalmente da imanência. Quem tem um bom conhecimento do jazz sabe que, quanto mais me afasto do real, depois há um loop e volto ao real e de novo para essa partida contínua. Nas análises das culturas populares, percebemos muito isso, é um ponto que sempre comento. Se tenho um projeto futuro de investigação e de produção analítica, é escrever, com uma estrutura filosófica, a partir das matrizes culturais populares. O que [Martin] Heidegger fez em O ser e o tempo, gostaria de fazer com essas matrizes rurais, buscar as estruturações da linguagem que permitem esses sujeitos estruturarem sua relação consigo mesmos e com o outro, com a lógica da sociedade, com as hierarquias, e isso perpassa os falares das pessoas. Não está decodificado em um processo escrito, e talvez esse distanciamento seja necessário para produzir o pensamento escrito. Seria um trabalho estritamente filosófico, a partir das experiências de campo com as culturas populares, não mais antropológico ou histórico.
LB: Acho que a questão trazida pelas palavras que você usa (“travessia”, “variedade”, “ramificação”) fica bem clara em seus poemas, por exemplo, “Odisseia”, que está no último livro. Parece que tem um mundo inteiro ali, referências à Odisseia, referências locais, além de uma pluralidade de ritmos. Isso lembra de novo o jazz, ele tem um improviso, mas a partir da forma. Se não tiver uma forma ali, o improviso não acontece, mesmo o jazz mais livre precisa de uma forma. A leitura da sua poesia me passa isso: uma variedade de ritmos longos e curtos, às vezes se invertendo, que dão a impressão de improviso, mas ao mesmo tempo, quando se lê com calma, vê que tem uma forma permitindo o improviso. A outra coisa interessante é o primado da linguagem que está em versos como “o antídoto contra a língua dos homens”, em busca de uma certa linguagem só pedra, algo meio João Cabral, que tem a ver com a ideia de certa exigência de autonomia da linguagem poética.
EAP: Tenho falado um pouco mais do meu processo de escrita. Isso é muito recente, então estou aprendendo a olhar e a traduzir o que trabalhamos. Estou para reeditar um livro de entrevistas que publiquei em 2013, o Blue Note: entrevista imaginada, que agora revisei e ampliei. Ele traz dois ensaios no final, que, na verdade, são duas conversas como essa que tivemos e que transcrevi depois, como entrevista. Nele, tem algumas dessas chaves de leitura que você comenta. Tento transitar nesse mapa e inclusive, uma coisa que sempre gosto de frisar, as matrizes afrodescendentes são um foco, um conjunto mais amplo de outros que tento abarcar, sem hierarquizar. Talvez seja o que me dá muito trabalho, tenho que escrever muito para poder abarcar esses focos todos. Isso é algo que gosto de deixar sempre bem evidente, até porque esses focos depois vão se interligar. Toda essa discussão sobre as matrizes africanas só faz sentido quando discuto, por exemplo, em um livro como Melro, que saiu agora, o processo de fracionamento da imigração mais contemporânea que abarca muitos indivíduos, afrodescendentes inclusive. Ou seja, infelizmente não estou sozinho nesse barco da dispersão, há outros indivíduos aí também. Mas, para mim, todo esse processo de reflexão de temas que abordamos aqui e outros mais só são capturáveis a partir de uma estrutura de linguagem que não pode ser – para mim pessoalmente – a nossa linguagem diária. É uma linguagem literária. Essa busca por uma sofisticação é proposital. Minha obra não é intuitiva, muito pelo contrário, mesmo quando ela toca temas que são da alma, da transcendência, do espírito, da experiência, essa tradução literária é ficcional, porque a linguagem é pensada para chegar a esses resultados. Vou um pouco na contramão da linguagem do confessionalismo. É uma escolha estética. Hoje as questões do signo e da semiótica também são importantes.
Não há nada, em nenhum texto meu, que não passe por uma prévia reflexão sobre a materialidade da linguagem, seus desdobramentos, suas limitações, a necessidade de reinventar outras formas de linguagem, como fazer um romance que claramente não é um romance. Eles ganharam prêmios como romances, mas tenho plena consciência de que não são romances, porque não queria fazer o romance na lógica habitual que conhecemos. E olha que O ausente é menos radical, Um corpo à deriva é mais radical. Tanto é que são livros de circulação pequena. É uma opção estética, porque entendo que essa minha linguagem, principalmente a literária, é uma linguagem de ficção. Mesmo que, às vezes, nos permita chegar a experiências reais, a identificações com sentimentos reais, o ponto de partida inicial é justamente a recusa a essa relação osmótica do leitor com o texto, a essa relação direta entre um escrito e aquilo que o leitor quer. Minha poesia é como se fosse uma bicicleta com roda quadrada, porque minha intenção é fazer com que tanto a autoria quanto o receptor ou a receptora do texto trabalhem a produção de sentido. A linguagem é realmente contrária a essa linguagem natural do humano, contrária a essa linguagem da descrição realista e imediata. Não tenho nada contra essa perspectiva de criação, porque ela continua necessária. Diante de tantas barbaridades sociais que produzimos, há um campo literário que ainda tem que denunciar, decifrar, decodificar esse processo. Claro que em algum momento faço isso, mas em boa parte é uma linguagem literária que tende a jogar para a recepção, minha inclusive, um esforço intelectual de interpretação, que é onde me aproximo da antropologia interpretativa de Geertz. O fato antropológico só está dado quando é interpretado tanto pelo agente que o pratica quanto pelo agente que o analisa. E, por ser interpretativo, é contínuo, renovável, o que tira das culturas ditas tradicionais a marca pejorativa de que estão paradas no tempo, nunca estiveram, estão sempre se movimentando.
JT: Fiquei perplexo diante do canivete suíço que você trouxe. O cabo desse canivete é um tema que percebo há décadas, a questão do ritmo. O ritmo na verdade vai aparecer na sua obra, no seu relato, o tempo todo. Na sua evocação da experiência, aparece como o grande elemento nutridor da sua imaginação, da sua experimentação literária, o ritmo das suas múltiplas variedades. E o ritmo é isso, não tem início nem fim, é uma execução litúrgica. Participei de muitas jam sessions em Chicago, exatamente no South Side, e uma das coisas que mais me chamavam a atenção era a sensação do transe que percebia não só nos executantes, mas na audiência. A própria movimentação do corpo, todos no mesmo sentido, ficava fascinado e quase levitava. Que coisa rítmica está promovendo aqui uma tessitura desses corpos que nem sabem disso, mas estão no elã de um processo incrível? Sua obra é uma espécie de evocação do ritmo, como uma grande descoberta epistêmica e ontológica para uma reflexão contemporânea necessária. Ainda não encontrei uma grande reflexão sobre o jazz atravessando inúmeras áreas do conhecimento, e ao mesmo tempo concreta, movimentando a nossa capacidade de reflexão diante daquilo que nos apavora ou nos entusiasma. Não só percorrendo as ruas de favelas aqui no Rio, como Mangueira, na Baixada Fluminense, mas no Harlem, via essa semelhança entre territórios diferentes e o ritmo, construindo os modos de caminhar, os modos da culinária, os modos de percepção.
EAP: Podíamos deixar como gancho essa questão do ritmo, porque meu segundo livro se chama Ô Lapassi & outros ritmos de ouvido. A rítmica realmente me acompanha. Um detalhe interessante: a minha escola de ritmo é a do Luiz Gonzaga, porque ele tocava de ouvido e confessou isso em várias entrevistas. Então o modo de captar o ritmo está fora da formalidade musical, é sinal de que há campos diferentes de experimentação rítmica, o que boa parte dos grupos e das coletividades experimenta. Talvez por isso essa universalidade, no Harlem, na periferia do Rio, no interior do Brasil. Isso vai marcar o grande fluxo humano que se move pela rítmica. Ela não passa só pela questão de uma etnia, isso é que me interessa no ritmo, está muito identificada com certo grupo ou outro, mas procuro uma universalidade mesmo. Eu sei que a palavra é meio gasta.
Minha obra tem essa lógica, tanto nos livros de ensaios quanto nos poemas existem muitas retomadas de pontos ou de notas que ficaram soltas, espero algum dia colocar isso mais ou menos junto para soar e ver que ritmo vai dar. Nos dias de hoje, essa questão do ritmo é fundamental, porque, do mesmo modo que a experiência rítmica nos leva para experiências assombrosas, como você lembrou muito bem com o transe que te tira de si e te joga em um abismo imprevisível, que o jazz vai nos levando às vezes até para um lado bacana que pode ser muito boa a viagem, o deslocamento, é um abismo da consciência. Diante de um mundo tão pragmático como esse que nós temos hoje, um mundo tão alusivo à produtividade e ao trabalho, essa lógica de um certo transe prazeroso me interessa muito. Essa lógica de, de repente, a queda do abismo ser também prazerosa, ainda que narcótica por um curto período. As sociedades precisam disso de tempos em tempos. Não é por acaso que nós estamos estendendo o tempo do Carnaval, das festividades todas, cada um de nós está fazendo uma festa particular. Acho que tem um eixo de pensamento para pensar até uma outra estruturação social pós-pandêmica muito necessária, porque os nossos corpos ficaram segregados, todos de modo geral. E reduzindo a jornada de trabalho cada vez mais. Isso me faz lembrar certo caráter subversivo do ritmo. Penso em uma frase do seu Geraldo, dos Arturos, quando o conheci em 1987: “A gente dança por dentro”. Até hoje me marca muito essa expressão dele. Por fora você é um sujeito compelido à produtividade, à obediência, mas o seu ritmo interno continua marcando seu modo de ser no mundo, porque ele é rebelde, é contra a estrutura imposta. Esses ritmos internos são muito interessantes, mais até do que esses visíveis que percebemos, que são fundamentais, mas outros estão se produzindo internamente. Eles têm linguagem, a questão é saber que linguagem é essa. O discurso artístico é muito importante nessa hora. Vejo cada vez mais a liberdade do discurso artístico, literário, como uma questão fundamental. Tenho falado em devolver a literatura à literatura, para poder experimentar, errar, testar. Fazer inclusive mais do que afirmações, mais do que propor assertivas, sugerir enganos, trabalhar na margem de erro. Está até na epígrafe de O som vertebrado, um poema de Orides Fontela, em que ela diz o seguinte: “margem de erro: margem de liberdade”. Temos que pensar no texto literário, nos enganos dele, com uma margem de liberdade que nosso tempo hiperprodutivo não permite mais. Esses ritmos são subversivos, os dos corpos estão aí em evidência, mas reprimidos muito rapidamente, haja vista o deputado do Sul que propôs criminalizar o hip hop. Esses ritmos assustam, mas há também os internos, que estão querendo sair da caverna para podermos reconhecê-los melhor.
* Beatriz Resende é editora da Revista Z Cultural; Julio Cesar de Tavares é professor do Departamento de Antropologia da UFF e coordenador do Laboratório de Etnografia e Estudos e Comunicação, Cultura e Cognição (LEECCC/PPGA/UFF) e do Laboratório de Estudos Negros (LEN/PACC/Letras/UFRJ); Lucas Bandeira é editor executivo da revista e faz pós-doutorado no PACC/Letras/UFRJ, com bolsa da Faperj.