Ano XII 0201
2º semestre de 2017
dossiê
Tempo de leitura estimado: 30 minutos

A TEORIA DA ANTROPOLOGIA DIGITAL PARA AS HUMANIDADES DIGITAIS

Resumo: Este artigo visa discutir o conceito de antropologia digital na tradição inglesa com ênfase no diálogo com a noção de humanidades digitais. As proposições conceituais da antropologia para a cultura digital investem no vínculo entre as relações socioculturais e os usos de plataformas, dispositivos midiáticos e aplicativos digitais contemporâneos (Miller, 2011; Miller & Horst, 2012; Miller & Sinanan, 2014; Costa, 2016; Machado, 2017; Venkatraman, 2017). A base dos estudos é a de compreender as sociabilidades digitais como fenômenos tão autênticos como os demais campos de mediação anteriores, a exemplo da comunicação face a face. Cabe ainda enfatizar os princípios da dialética nos usos sociais da tecnologia, revelando as tensões entre o local e o global, os universalismos e particularismos, as contradições entre os efeitos positivos e negativos nos usos sociais da tecnologia na vida social dos grupos culturais. Cabe ainda refletir sobre a noção de theory of attainment, compreendendo como certas experiências culturais precedentes tendem a influenciar no modo como as culturas atuam na apropriação e produção de sentido de dispositivos tecnológicos contemporâneos ainda que usos criativos se instituam.

Palavras-chave: Antropologia digital, Humanidades digitais, mediações e cultura digital.

Abstract: This article aims to discuss the concept of digital anthropology in the English literature given that this theory emphasis the digital humanities concept. The anthropology’s theory of digital culture can be seen as a link between sociocultural ties and the uses of platforms, media devices or contemporary digital platforms (Miller, 2011; Miller& Horst, 2012; Miller & Sinanan, 2014; Costa, 2016; Machado, 2017; Venkatraman, 2017). The main subjects of this studies are to understand digital sociabilities as phenomena of an authentic to other previous mediation fields, such as face-to-face communication. It is also important to emphasize the principles of dialectics in social uses of technology, revealing the tensions between the local and the global, the universalism and particularism, the contradictions between the positive and negative effects on social uses of technology in the cultural groups in the everyday life. We must highlight the concept ‘theory of attainment’, understanding how certain previous cultural experiences can be seen in acts of cultures in the contemporary technological devices even if new creative uses are coined.

Keywords: Digital anthropology, digital humanities, digital culture and mediation system.

 

Introdução

O conceito de humanidades digitais delineia um campo teórico ainda em construção, mas com uma breve história que já nos permite identificar as matrizes que orientam a sua fundação. As diretrizes transdisciplinares tendem a integrar propostas que salientam os estudos sobre as culturas digitais e as experiências humanitárias no século XXI. A Alliance of Digital Humanities Organizations (ADHO)[1] afirma que se propõe a promover e dar suporte para pesquisas na área do digital, reunindo publicações, conferências, congressos e seminários do campo. Nesse sentido, a instituição abre espaço para dar voz a diversas comunidades científicas europeias, americanas, japonesas e em outras partes do mundo. Segundo o grupo de pesquisa de Humanidades Digitais da USP[2], existem atualmente cento e quatorze grupos no mundo agrupados sob a denominação Humanidades Digitais em 24 países. No site do grupo os pesquisadores afirmam que o Manifesto das Humanidades Digitais desenvolvido no ThatCamp 2010 compreende a expressão Humanidades Digitais como um eixo transdisciplinar que “incorpora os métodos, os dispositivos e as perspectivas heurísticas das ciências humanas e sociais, ao mesmo tempo em que mobiliza as ferramentas e perspectivas singulares abertas pela tecnologia digital”[3].

A experiência da UCL – Centre of Digital Humanites[4] em Londres, fundado em 2010, tem importante destaque no debate, pois é um centro que atravessa vários campos do conhecimento científico no impacto cultural das expressões digitais contemporâneas. O centro está fundado na premissa de que o DH (Digital Humanities) é uma área de estudos interdisciplinares que compreende os meios digitais como mediadores de outras linguagens como textos, dados e objetos culturais precedentes. Nessa tradição, a cultura digital colabora estendendo radicalmente os usos de dispositivos anteriores como o texto, a música, o audiovisual, o livro. Em todos esses centros, observamos que a orientação conceitual está voltada para análise da cultura digital como campo de mediação com formas precedentes de conhecimentos, sistemas de pensamentos e suportes mnemônicos fora da mente. Assim, passamos agora ao diálogo sobre como o conceito de antropologia digital pode contribuir para esse debate.

O conceito de antropologia digital

A proposta do campo teórico da subdisciplina da antropologia digital é a de estabelecer pontes de reflexão entre o digital, a cultura e as redes de sociabilidades. Nesse contexto, Miller e Horst (2012) definem seis princípios que seriam os norteadores dessa perspectiva. A primeira noção vai salientar a dimensão dialética da cultura digital.  Os contrastes dessa visão dialética se expressam na noção de que o digital, embora possa ser reduzido ao código binário, será também um espaço de produção de muitas diferenças e pluralidades. Os estudos de diversas experiências etnográficas comparadas em países como Turquia, Índia e Brasil (Costa, 2016; Spyer, 2017; Machado, 2017) revelam como os usos das mídias digitais em diferentes culturas locais podem ter significados eminentemente particulares. Em Mardin, na Turquia, por exemplo, nota-se que em função da hipótese da vigilância cibernética pelo estado, as redes sociais são usadas para tornar público apenas temas pouco comprometedores do ponto de vista político. Assim, os ativistas quando usam o Facebook para mobilização de suas causas, por exemplo, tendem a usar perfis fakes para garantir o anonimato nas publicações (Costa, 2016). Já na Índia, as redes de sociabilidade dos grupos familiares tendem a se espelhar nas redes sociais. Em um vilarejo indiano nomeado Panchagrami, segundo o antropólogo Venkatraman (2017), seus moradores tendem a vivenciar uma experiência cultural ainda marcada pela ideologia de castas e subcastas. Nessa cultura, o WhatsApp tem a expressiva função de garantir as sociabilidades nas redes familiares e é a principal plataforma para acomodar as trocas de comunicação local entre pares. No Brasil, nas favelas do Cantagalo, Pavão e Pavãozinho, os jovens moradores que possuem smartphones tem, em média, de 15 a 20 grupos de amigos na plataforma do WhatsApp, em uma escala de sociabilidade de gradações entre grupos como os amigos mais íntimos até os apenas conhecidos, traduzindo a experiência da cultura participativa e coletiva do território para o mundo das redes sociais (Machado, 2017). Assim, observa-se, nas etnografias particulares de cada cultura, o diálogo entre construções discursivas mais universais e particularidades da experiência local. O que nos leva à segunda parte dessa acepção.

A dialética da cultura digital propõe que além de produzir localismos e universalismos, também seus efeitos serão contraditórios, positivos e negativos. Como argumenta Miller (2011) em Tales from Facebook, no seu trabalho de campo em Trinidad, o Facebook é nomeado como “fasbook” fazendo referência às experiências socioculturais locais: “fas” significa fofoca na comunidade local e revela o sentido de trocas comunitárias inspirando-se na cultura paroquial. O argumento dominante aqui é de que o Facebook é personalizado em Trinidad para expressar-se como extensão da rede de sociabilidade entre pares. No estudo Kids online, conduzido na London School of Economy por Livingstone (2009), o argumento dominante é de que crianças e jovens estão experimentando novos aprendizados com o uso de plataformas e dispositivos digitais e que as estruturas de cognição recriam os processos de media literacy – apropriação de habilidades de aprendizados para usos dos dispositivos digitais. No projeto de mapear habilidades e apropriações de sentidos dos usos das TICs (Tecnologias de Informação e Comunicação), Livingstone afirma que as oportunidades são mais expressivas do que os riscos para a navegação digital entre crianças e adolescentes. Ela salienta, por exemplo, que os dispositivos digitais colaboram para ampliar o sentido de aprendizado colaborativo e também os modos de participação cívica, explorando a capacidade de criação com o estímulo a produção de novos conteúdos e permitindo o exercício de novas possibilidades de expressão de identidades. Em contrapartida, os riscos também se intensificam com contatos com pessoas desconhecidas, acesso a conteúdos ilegais ou impróprios para a idade, como vídeos violentos ou que incitam a sexualidade precoce (como estímulos de sites pornográficos), ou, ainda, exposição a conteúdos comerciais não regulamentados, publicidade não desejada ou acesso a conteúdos piratas. Livingstone (2009) aposta na importância da supervisão dos adultos e na criação de conselhos consultivos da sociedade civil para mediação das relações entre crianças e culturas digitais.

O segundo princípio da antropologia digital está fortemente relacionado ao conceito de mediação e também argumenta sobre a hipótese da autenticidade nas relações pré e pós era digital. Na perspectiva de Miller e Horst (2012), os seres humanos não passaram a ser mais ou menos mediados em função das tecnologias digitais. Os autores compreendem que diversas posições teóricas tendem a tratar como lamento a noção de perdas e declínios no contexto das novas formas de sociabilidade digital. A noção de habitus em Bourdieu (1977) dialoga bem com o tema das mediações, pois propõe a relação entre estrutura e agência. Para o autor, o habitus é uma categoria conceitual que faz relação entre as referências sociais estruturantes e os processos de agenciamento que conformam as subjetividades dos indivíduos. Nesse sentido, é também uma categoria socioconstrutivista, que se firma no processo de socialização e no contexto histórico. Imaginando, portanto, o habitus como uma matriz cultural na era digital é possível sugerir que as relações socioculturais são mediadas pelas novas tecnologias. Nessa direção, Miller et al (2016) apresentam o trabalho de nove diferentes etnografias com as culturas digitais ao redor do planeta no livro How the world changed social media. A perspectiva aqui é imaginar que as relações sociais de cada grupo cultural produzem mudanças nas mídias sociais e não o contrário.

De forma similar, Miller, em Stuff (2010), publicado no Brasil como Trecos, troços e coisas (2014), argumenta que o sári é a vestimenta que funciona como mediadora dos papéis sociais maternos na cultura hindu. A ponta do sári, denominada “pallu”, serve como apoio para os cuidados maternais, assim como parte do pano da vestimenta acolherá a criança. Assim, Miller (2010) se reporta à tese de Winnicott sobre os “objetos transicionais”, que fazem mediações afetivas entre espaços ou lugares para as crianças, como, por exemplo, entre a escola e a casa. O autor associa a noção de objetos transicionais ao conceito do sári para os bebês indianos. De acordo com esse pensamento, os meios digitais, assim como outros objetos, são compreendidos como mediadores das relações socioculturais em curso.

Na terceira acepção, a dialética da antropologia digital na vida cultural articula-se entre o holismo e o particularismo. As experiências de normatividades ou usos criativos da tecnologia vão se dar na associação com os modos de apropriação das culturas locais. Geismar (2012), por exemplo, ao refletir sobre as apropriações epistemológicas da cultura digital para os sistemas de catalogação, acervos e mapeamento do que deve ou não ser considerado patrimônio nos Museus, afirma que as escolhas de como categorizar o patrimônio dependem do modo como cada cultura entende seus dispositivos museológicos e os modos de documentação do legado cultural. Nesse sentido, a experiência do Museu de Favela como um espaço cultural que afirma a política da museologia social na definição do que é ou não memória e patrimônio na cultura social local transporta para a cultura digital o mesmo modo de sociabilidade (Machado, 2017). A proposta de criação do hotsite que fizemos no Laboratório Universitário de Publicidade Aplicada (LUPA ECO-UFRJ[5]) do circuito turístico-cultural Casas-Tela do Museu de Favela do Cantagalo, Pavão e Pavãozinho inspirou-se nessa premissa e, em diálogo permanente com os gestores, procuramos construir um espaço de experimentação digital que revelasse o espírito do projeto de catalogação de memórias sociais e coletivas da comunidade. A foto a seguir revela a estética visual do hotsite e dialoga sobre como a experiência do turismo cultural na comunidade tem um sentido eminentemente local e fina sintonia com os dispositivos culturais do conceito de museologia social.

Identidade visual do hotsite do circuito turístico cultural do Museu de Favela Fonte: Produção: Lupa ECO-UFRJ. Disponível em: www.museudefavela.org Acesso em: 21 de set 2017
Identidade visual do hotsite do circuito turístico cultural do Museu de Favela
Fonte: Produção: Lupa ECO-UFRJ. Disponível em: www.museudefavela.org Acesso em: 21 de set 2017

O quarto princípio trata do conceito de relativismo cultural. O entendimento aqui é de que as mídias sociais não são produtoras de homogeneização, as expressões digitais são plurais e diacrônicas. É preciso investir sempre em um olhar para o ambiente digital como uma invenção local dos seus usuários. O trabalho de Postill (2008) de comparar o engajamento político das classes médias na cultura digital na Austrália e na Malásia elucida bem as diferenças entre a visão paroquial da cultura e as generalizações possíveis. Nos estudos produzidos por antropólogos de diversos países que publicaram Why the world changed social media (Miller et al, 2016) é possível verificar as diferenças culturais que se expressam nas redes sociais. Por exemplo, ao verificar em que culturas é mais forte o hábito de compartilhar senhas privadas dos aplicativos de redes sociais, observa-se que na China rural e na Índia, 83% e 73%, respectivamente, dos entrevistados afirmam dividir suas senhas com familiares ou amigos. Em contrapartida, no Brasil apenas 37% dizem ter esse hábito, assim como apenas 28% na Inglaterra. Outro tema interessante é observar o número de entrevistados que usam mais de um perfil nas redes sociais com um nome diferente do seu. No Brasil, 92% dizem que possuem apenas um perfil e não têm o hábito de criar perfis com outros nomes, já na China rural somente 26% possuem apenas um perfil, enquanto na China industrial são apenas 8%. Nestes dois universos pesquisados, a emergência de perfis fakes é alta. Outro fenômeno interessante, que revela diferenças culturais, é a discussão sobre a possibilidade de uso das mídias sociais na escola ou no trabalho. No Brasil, 88% dos entrevistados dizem que não é permitido o uso de redes sociais em seus trabalhos ou escolas. O número é ainda maior na Índia, subindo para 92%. Em contrapartida, no Chile, 72% dos respondentes usam as redes sociais em suas atividades laborais ou em estudos escolares. O percentual é também alto na China, 60%. Já na Inglaterra, o número é bem equilibrado: 51% usam redes sociais para atividades de trabalho ou de estudo, enquanto 49% não costumam utilizar as redes sociais no horário de trabalho ou estudo. Tais dados nos levam a uma interessante reflexão sobre os potenciais das redes sociais como forma de literacia ou de construção de aprendizados, mas também como possível campo de dispersão e superficialidade.

O quinto princípio trabalha com a ideia de que há ambiguidades entre a abertura e o fechamento de visão de mundo. Ao mesmo tempo em que a internet promete novas formas de abertura de visão de mundo, muitas vezes cai em novos constrangimentos e controles. Miller e Slater (2000) discutem o quanto o ambiente digital promove a dinâmica da liberdade normativa, prometendo novas formas de aberturas, enquanto de modo ambivalente, pode ser um espaço para controle e supervisão de governos e regimes mais fechados. Por exemplo, no estudo de Costa (2016) na Turquia foi possível identificar que mulheres em Mardin, usam o WhatsApp, uma mídia de uso mais privado, para o compartilhamento de imaginários sobre as liberdades do gênero feminino em países europeus de tradições democráticas; em contrapartida, em seus usos do Facebook, a tendência dominante é de uso de imagens que reafirmem os estereótipos das mulheres vocacionadas para a vida familiar, a introspecção e os cultos religiosos na regulação da lógica de uma sociedade patriarcal.

A última noção vai refletir sobre a relação entre cultura material e cultura digital. Como argumenta Miller (2010) em Stuff, a melhor forma de darmos atenção à nossa humanidade é nos aprofundarmos nas relações com a materialidade. A partir disso, Miller delineia a proposta de uma teoria social dos objetos. Em sua percepção, os artefatos fazem mais do que expressar as humanidades. E não são só as sociedades modernas e industriais que se relacionam com a cultura material. O autor relembra que os anéis do kula descritos por Malinoviski (1976) – sistemas de trocas entre grupos de tribos vizinhas nas ilhas Trobriand na Nova Guiné – produziram lógicas simbólicas interessantes nas transações entre objetos, como braceletes, conchas, colares e canoas.  A complexa rede de relações está ancorada na noção de fama, pois a ideia de reputação, tanto de viajantes como objetos que vivem aventuras, simbolicamente marcam a distinção. Assim, uma concha individual ganha reputação pelas viagens que faz: objetos são dotados de sentidos sociais. No livro Tales from Facebook, Miller (2011) retoma as discussões das redes do Kula, em especial o debate de Nunn (1986) sobre a Fama de Gawa, para fazer uma analogia com a fama e as redes de sociabilidades no Facebook.

Retomando os princípios da cultura material, Miller em Materiality (2005) argumenta que, em uma primeira visão, as experiências religiosas tendem a discursar a favor de uma crítica à materialidade. A ideia de transcendência está presente em praticamente todos os discursos religiosos. No caso do Hinduísmo, a noção de maya trata exatamente da crítica à ilusão da materialidade e o objetivo da conexão espiritual é a transcendência do mundo físico. Contudo, Miller supõe que há contraditoriamente a valorização do imaterial na cultura material das religiões. Ele se reporta ao caso dos cristãos apostólicos do Zimbabue que reivindicando um outro lugar fora da adoração iconoclasta dos católicos e dos rituais protestantes, imaginavam-se em um sistema de culto especial onde tudo que fosse material deveria ser banido. Assim, o livro como objeto seria substituído pela mentalização das escrituras sagradas, o templo pelo campo aberto. O que se observa nesse caso é que no movimento de retirada de tudo que era material, os poucos objetos que restaram para as cerimônias eram supercultuados, como o mel sagrado, símbolo do poder espiritual. O argumento defendido pela antropologia é de que as religiões sempre vão construir suas mediações com a cultura material, mesmo nos casos de redução de objetos mediadores.

Na cultura digital, os artefatos fazem parte da infraestrutura e da tecnologia. Depois há a materialidade dos conteúdos digitais e, ainda, a materialidade dos contextos sociais onde a cultura digital se insere. Como afirmam Miller e Slater (2012), as tecnologias da comunicação são, sobretudo, gêneros culturais em forte relação com a materialidade das suas condições de produção.

Humanidades digitais e theory of attainment

Em Webcam, Miller e Sinanan (2014) refletem sobre as relações entre humanidades, cultura e tecnologia. Os autores se reportam à discussão platônica em Phaedrus sobre a mediação da escrita como tecnologia que surge para armazenar a memória em um suporte fora da mente. Em Phaedrus, Platão afirma a perda da autenticidade com a migração do registro para outro lugar que não os recursos internos da mente humana, provocando a perda qualitativa da criatividade e da memória. Os debates desde então giram em torno da perda da essencialidade humana com as novas tecnologias ou a superficialidade dos registros. Em contrapartida, os autores adotam a expressão theory of attainment, argumentando que as tecnologias emergentes sempre mantêm forte conexão com as experiências socioculturais em curso. Se no contexto da webcam e nas comunicações interpessoais por vídeos temos novos sentidos para tratar do tema da autoconsciência, da copresença ou da intimidade, todos esses conceitos foram construídos historicamente em cada época, a partir dos suportes ou dispositivos disponíveis no contexto temporal.  Com as trocas pela webcam, os sujeitos podem passar horas em conversação, trocando experiências em vídeo onde há a possibilidade de observação de sua autoimagem no canto da tela. Assim, a interação não é só com o outro, mas consigo mesmo.

Os autores argumentam que as experiências de mediatização no contexto digital nos colocam diante do dilema: analisar o quanto as experiências tecnológicas alteram o nosso senso de humanidade e, em contrapartida, admitir que não nos tornamos pós-humanos na cultura digital. Assim, a proposta é investigar o que muda nos nossos sistemas de consciência, nas linguagens, nos usos sociais e nas mediações, sem compreender esse movimento como perda da condição de humanidade.  Nesse sentido, dois pressupostos fundamentam a tese: a investigação dos modos de mediação e a análise da influência do digital nas experiências de cognição e no desenvolvimento de habilidades humanas.

Para Miller e Sinanan (2014), o novo da experiência da webcam é a possibilidade de auto-observação além dos outros, alterando e ampliando as percepções sobre si. Contudo, essa experiência está fortemente relacionada com as tradições psicanalíticas da autoconsciência, orientadas pela perspectiva freudiana do mito do Narciso ou pelo debate da fase do espelho na tradição lacaniana. Quanto ao conceito de intimidade, a perspectiva do always on ou “os sempre conectados” abre espaço para discussão de novos modos de sociabilidades para imaginar como as pessoas podem viver juntas na cultura digital embora vivam separadas presencialmente. Os estudos etnográficos de Miller e Mandianou (2012) nas Filipinas, com mães que migraram para Londres e deixaram seus filhos no país de origem, apontam bem para essa dinâmica. Assim como a noção de copresença se amplia e vai produzir consequências positivas e negativas na cultura digital. Por exemplo, na relação entre pais e filhos e sistemas de supervisão parental, os telefones celulares representam, paradoxalmente, a possibilidade de controle e redução da autonomia dos jovens e a ampliação da segurança e, ao mesmo tempo, a possibilidade de mais autonomia dada a facilidade de geolocalização.

Os processos de mediação são fortemente relacionais no debate sobre as humanidades. Goffman (1956), ao refletir sobre as representações do eu na vida cotidiana, refutava a ilusão da comunicação não mediada e naturalizada. A sua tese é de que todas as relações, até mesmo as interpessoais, são mediadas por interjeições, gestualidades, sistemas sígnicos. Assim, o conceito de “frame” ou “enquadramento” é útil para o entendimento da tese. Segundo o autor, em cada interação social, os sujeitos atuam a partir de papéis sociais que se organizam no fluxo social. Nesse sentido, retomamos aqui a noção de que as relações mediadas pelas tecnologias digitais são tão autênticas quanto as relações face-a-face.

Esse é o pressuposto central para o desenvolvimento do conceito de polymedia (Mandianou; Miller, 2012) na antropologia digital. Na genealogia do conceito encontramos a palavra “poly”, que na tradição da Grécia antiga refere-se à ideia de múltiplos, diversos. Assim, polymedia se reporta ao processo de escolha do público em um conjunto de mídias possíveis. O que interessa nesse processo é a compreensão do que motiva, por exemplo, um jovem a escolher o Facebook como plataforma e não o Instagram ou o Snapchat. A hipótese que fundamenta o debate é de que essas escolhas estão referidas a um conjunto de variáveis: acesso à infraestrutura, custo, experiências de literacia, empatia, vínculos emocionais, regras de sociabilidade. O conceito de polymedia tem também forte relação com a noção de media ecology (Slater; Tachi, 2004), o qual tende a dar significado mais aos nichos ocupados por cada meio: não apenas um meio em relação ao outro, mas também a todo o sistema de comunicação, como transporte e questões de uso relacionadas à política e à saúde. A tese de Mandianou e Miller (2012), portanto, é a de que, na medida em que o custo passa a ser uma questão de background – em que cada vez mais se democratizam os acessos à tecnologia, por exemplo, com a flexibilização de pacotes para compra de serviços de smartphones – o foco passa a residir na análise dos affordances, ou seja, das motivações para uso de plataformas e aplicativos. E, nesse caso, interessa investigar as relações de poder entre usuários, mediações e plataformas, as capacidades de literacia do público, os vínculos emocionais, a familiaridade ou não com dispositivos, aplicativos e plataformas. Com o intuito de estudar as condições de polymedia, o gráfico a seguir mostra as motivações de uso do Facebook entre jovens na comunidade do Cantagalo, Pavão e Pavãozinho.

Conteúdos mais compartilhados no Facebook Amostra: 400 entrevistas entre jovens de 18 a 35 anos, distribuídas proporcionalmente, segundo os dados da PNAD- IBGE e UPP- Social.
Conteúdos mais compartilhados no Facebook
Amostra: 400 entrevistas entre jovens de 18 a 35 anos, distribuídas proporcionalmente, segundo os dados da PNAD- IBGE e UPP- Social.

Nos estudos de literacia nas etnografias comparativas do projeto Why we post, Miller et al (2016) desenvolveram o infográfico a seguir que mostra como as experiências de uso das plataformas digitais em uma escola em um vilarejo inglês desenham diferentes tipos de sociabilidades, produzindo uma escala: enquanto o Twitter é utilizado para ampliar o sentido de fofoca, o WhatsApp auxilia no fortalecimento dos laços sociais com amigos mais próximos, e o Facebook ocupa melhor o papel de broadcasting media, no qual o uso é compartilhado por muitos atores sociais como jovens, pais, avós, professores e redes mais ampliadas de amigos.

Usos das redes sociais com jovens de 11-18 anos na Inglaterra Fonte: MILLER, Daniel et al. How the world changed social media. UK: UCL Press, 2016, p. 5
Usos das redes sociais com jovens de 11-18 anos na Inglaterra
Fonte: MILLER, Daniel et al. How the world changed social media. UK: UCL Press, 2016, p. 5

Um outro conceito importante que atravessa o debate sobre humanidades e culturas digitais é a noção de memórias mediadas, que aparece no trabalho de Van Dijck (2007), Mediated memories in the digital age. De acordo com a autora, o conceito reflete sobre atividades e objetos produzidos e apropriados por meio da cultura tecnológica para criar e recriar o sentido de passado, presente e futuro dos sujeitos sociais em suas relações com os outros. Para estudar as memórias mediadas, a pesquisadora propõe uma matriz com dois eixos: um horizontal, que trata do debate sobre identidades pessoais e coletivas na relação com as manifestações das memórias culturais digitais; e o segundo vertical, que aborda a relação com o tempo, integrando passado e futuro no presente, misturando lembranças e projeções, discutindo a fusão entre preservação e criação. A dimensão criativa das memórias mediadas, segundo Van Dijck, contribui para a sua função formativa e comunicativa das identidades individuais e coletivas.

Todas essas noções importam para desenhar as contribuições da antropologia digital no estudo das humanidades. Como vimos, na perspectiva antropológica o que nos interessa é explorar as percepções sobre as motivações de usos de dispositivos e plataformas digitais. Mais ainda, é refletir sobre as condições das mediações entre indivíduos, grupos sociais e a cultura tecnológica.

Considerações finais

O conceito de humanidades digitais ainda está longe de se consolidar, mas já delineia seus princípios fundadores como campos transdisciplinares de análise. O objetivo da reflexão neste artigo foi proporcionar possíveis aproximações teóricas entre o conceito de humanidades digitais e a antropologia digital na tradição inglesa. Como vimos, nos estudos do Centre for Digital Humanities da UCL[6] em Londres, há projetos dedicados a criação de plataformas digitais para suporte de patrimônios museológicos, assim como para estudos arqueológicos. Há um estudo muito interessante sobre a importância da cultura digital na construção da perspectiva multicultural das imigrações europeias. Outro estudo coloca ênfase na participação da cultura digital nos aprendizados de pessoas com necessidades especiais. O programa, que se chama Learning Disabilities, estuda as experiências cotidianas de uso de plataformas digitais no seu papel de aprimoramento ou facilitação da identidade pessoal e autodefesa de pessoas com necessidades especiais ou quaisquer barreiras à sua exploração plena e produtiva. Outro projeto relevante é o USEUM: um fórum virtual que se propõe a ser uma plataforma colaborativa que reúne artistas, museus e amantes das artes e tem uma dimensão de financiamento por crowdfunding também. Vale observar que alguns projetos são orientados para a criação de bancos de dados, portanto, com diretriz metodológica mais quantitativa, enquanto outros colocam ênfase na dimensão qualitativa da mediação entre culturas digitais e humanidades.

E é nessa última perspectiva que salientamos as contribuições da antropologia digital por sua natureza voltada para a compreensão das relações socioculturais entre humanos e tecnologias.  Como observamos, a perspectiva antropológica coloca em evidência a noção de mediação como central: na era pré-digital os seres humanos viviam em contextos tão mediados quando na contemporaneidade. A interação face a face é vista nessa tradição como relação tão mediada quanto as experiências digitais: gestualidades, comportamentos não verbais ou a própria linguagem oral. Assim, dois conceitos se agregam à noção: o mundo digital é visto como tão autêntico quando outras formas precedentes de comunicação, não tornando os seres humanos mais ou menos mediados em função de seus dispositivos. O outro conceito é a ideia de frame ou enquadramento em Goffman (1956) que nos permite a compreensão de que cada estratégia de mediação acionará modos distintos de realização, explorando diferentes habilidades, expressões de linguagens, sentidos de representação. Assim, o que interessa à perspectiva antropológica é conhecer as especificidades de cada modo de mediação entre humanos e tecnologias em contextos culturais locais. Chegamos, então, a mais uma noção que é o diálogo entre o local e o global. Em um primeiro momento, as experiências da internet podem ser percebidas como orientadas para dispositivos de universalização de sentidos. O que os estudos etnográficos citados nesse trabalho (Miller & Horst, 2012; Miller & Sinanan, 2014; Costa, 2016, Machado, 2017; Venkatraman, 2017) evidenciam é que se na Turquia as questões das imaginações sobre identidades femininas povoam as trocas sociais de mulheres por WhatsApp, na Índia – que é uma sociedade com base na família e nas relações hierárquicas que o imaginário das castas projetou – o WhatsApp é muito utilizado para reafirmar os laços familiares. Já em uma escola de um vilarejo inglês, jovens utilizam o Twitter para ampliar o conhecimento da vida dos famosos, enquanto nas favelas do Cantagalo, Pavão e Pavãozinho é possível ver o uso das redes sociais como forma de atuação política, no sentido de ampliar as referências da imagem da vida local para além de representações recorrentes na mídia que enquadram a favela como local de violência e marginalidade ou como lugar cool, da moda, sem que os valores locais sejam mencionados. Assim, diversos jovens das comunidades fazem usos criativos para reafirmar a identidade do território associando discursos no Facebook que valorizam a cultura local: a musicalidade, as tradições religiosas, as experiências de sociabilidade, as reivindicações por direitos ao estudo, a voz, o entretenimento, a moradia digna. Assim, as redes sociais colaboram na construção de repertórios mais plurais das representações sociais das favelas. Todos esses exemplos reafirmam a tese de que em cada contexto cultural, as redes sociais têm sentidos fortemente locais. Assim, a antropologia nos ensina que os vínculos entre humanidades e culturas digitais salientam a alteridade, as diferenças e os modos de usos distintos que fazem da experiência digital um universo rico para análise e investigação.


* Mônica Machado é doutora em Comunicação e Cultura – PPGCOM ECO-UFRJ, cursou pós-doutorado em Antropologia Digital pelo departamento de Antropologia UCL-London – UK, professora da Escola de Comunicação da UFRJ e do PPG- EICOS – IP – UFRJ. E-mail: monica.machado@eco.ufrj.br

 

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Notas

[1] Disponível em: https://adho.org/ Acesso em: 20 set. 2017.

[2] Disponível em: https://humanidadesdigitais.org/breve-panorama/ Acesso em: 10 set. 2017.

[3] Disponível em: humanidadesdigitais.org/breve-panorama/ Acesso em: 10 set. 2017

[4] Disponível em: http://www.ucl.ac.uk/dh Acesso em: 1 out 2017.

[5] O Lupa é um projeto de extensão da Escola de Comunicação cadastrado no SIGPROJ da UFRJ, que tem a coordenação docente de três professoras: Beatriz Lagoa, Marta Pinheiro e Monica Machado.

[6] Disponível em: http://www.ucl.ac.uk/dh/projects Acesso em: 9 out 2017.