Ano XVI 0201
entrevista
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AGORA É A MINHA VEZ: ENTREVISTA COM JEFERSON TENÓRIO


No final de O avesso da pele (2020), de Jeferson Tenório, o narrador afirma que aquela é a “história de uma ferida”. Quem narra é Pedro, um filho que busca recriar a vida dos pais, Martha e Henrique. E é para o pai, professor de uma escola na periferia de Porto Alegre e vítima de uma abordagem policial, que Pedro se dirige. Como se a escrita surgisse dessa ferida aberta, escorrem no romance afetos e abandonos, momentos de esperança na educação e de violência do Estado, elementos da luta corporal que costura a subjetividade e a identidade social dos personagens, como explica o escritor nesta entrevista, concedida em 2 de março de 2021. Carioca nascido em 1977, mas morador de Porto Alegre desde a infância, Jeferson Tenório é professor, doutorando em teoria literária pela PUC-RS e autor de outros dois romances: O beijo na parede (2013), e Estela sem Deus (2018).

Jeferson Tenório (Foto de Carlos Macedo/Divulgação)
Jeferson Tenório (Foto de Carlos Macedo/Divulgação)

Lucas Bandeira: Boa tarde, Jeferson. Obrigado por estar aqui. A primeira coisa que eu queria perguntar é sobre sua trajetória.

Jeferson Tenório: Eu nasci em Madureira, subúrbio do Rio de Janeiro, depois morei em Bangu, morei também em Magalhães Bastos e em algumas regiões da Zona Norte do Rio de Janeiro, e depois eu fui parar na Lapa, e por fim em Copacabana. Ali foi onde vivi os melhores momentos da minha pré-adolescência. A minha escola, que hoje, se não me engano, é um lar de idosos, ficava na beira da praia, de frente para o mar. Me lembro de matar aula e jogar bola, entrar no mar, isso com dez anos de idade. Mas acontece que a minha mãe acabou separando do pai da minha irmã, que não é meu pai biológico, então nossa vida sofreu um revés. Aí nós fomos morar um tempo no Méier, e do Méier é que nós viemos para Porto Alegre, que é onde mora a maior parte da minha família. A minha avó, que já é falecida, os meus tios, os meus primos, todos moram aqui em Porto Alegre. E essa mudança do Rio de Janeiro para cá talvez tenha me influenciado de maneira muito profunda, direta, por vários aspectos. Acho que o primeiro deles foi a temperatura… Nós nos mudamos para cá em junho de 1988, então saímos de uma temperatura de 28 graus e entramos em uma de 10 graus. A gente não tinha muita roupa de inverno, não tinha nem tênis, andava de chinelo, e fomos parar em um bairro periférico de Porto Alegre, Bom Jesus. Isso me afetou profundamente, acho que na minha escrita e no modo como eu passei a ver a vida.

Eu achava que tinha um problema de visão. Desde que eu vim para cá, do dia para noite, as cores deixaram de ter uma vivacidade, como se eu visse as coisas com opacidade. Eu cheguei a ir ao neurologista, fiz exames, mas ninguém conseguiu ver nada de concreto, nenhum tipo de doença. E tem esse frio de Porto Alegre. Uma cidade que é bastante fria nos relacionamentos. Eu demorei muito tempo para fazer amizade. É uma cidade também extremamente racista, e isso eu comecei a perceber muito cedo. Não que o Rio de Janeiro não seja, mas aqui em Porto Alegre a coisa me parece ser mais escancarada. Ou seja, as pessoas não têm vergonha de dizer que são racistas, e não é de agora, isso já vem de muito tempo.

Aqui em Porto Alegre, também peregrinamos por vários bairros, até a gente conseguir chegar a uma casa, num bairro periférico também, e ficamos ali por cerca de quinze anos. Foi então que eu comecei a estudar, entrei na faculdade de letras, particular. Fiz três anos, mas por falta de dinheiro eu tive que parar de estudar por um ano. Comecei a estudar novamente por conta, depois entrei num cursinho para pessoas negras. Fiz vestibular e passei na universidade federal. A partir dali eu me tornei professor. Atuo na sala de aula já faz vinte anos, e nesse meio-tempo escrevi três romances. O beijo na parede é de 2013. Demorou seis anos para que ele ficasse pronto. Estela sem Deus demorou cinco. E o mais rápido deles, que foi O avesso da pele, levou dois anos de escrita. É curioso porque eu estava mexendo nos meus caderninhos de anotações – eu tenho cerca de vinte e cinco cadernos, uma espécie de diários de anotação – e eu peguei um diário de 2008. E já havia ali ideias para fazer O avesso da pele. Então vejam como isso é curioso, o romance começa a ser gestado muito antes de quando a gente acha que senta para escrever.

Capa de O avesso da pele. (Alceu Chiesorin Nunes sobre pintura de Antonio Obá/Divulgação)
Capa de O avesso da pele. (Alceu Chiesorin Nunes sobre pintura de Antonio Obá/Divulgação)

Jorge Amaral: Jeferson, é um prazer conhecer você, uma alegria enorme ler seu livro. É importantíssimo, necessário para a gente. Quando a gente pesquisa sobre O avesso da pele, esbarra com a noção de que o livro é sobre as relações raciais, sobre a relação do indivíduo negro com o espaço em que ele habita. Eu acho que é também isso, porque essa relação é uma relação quase bélica. Isso está presente no livro, sobretudo por conta da representação de Ogum, que é o orixá da batalha. Mas o livro é construído pela narrativa do filho em relação ao pai, então me parece também que é sobre uma relação de afeto. Então eu queria saber de você se é um livro que fala das relações de afeto, se fala das relações de batalha, se é uma convivência entre essas duas relações.

JT: É bem importante esse ponto porque, logo no início, quando o livro saiu, em agosto, eu comecei a dar uma série de entrevistas para os jornais, as revistas, acho que nas primeiras duas os jornalistas bateram muito nessa tecla, de ser um livro sobre racismo. E, na época, muitas coisas aconteceram ao mesmo tempo, o livro tinha sido vendido para o cinema, tradutores entrando em contato comigo, diretores de cinema, era um monte de gente me procurando, e eu estava meio perdido porque até então eu não tinha falado publicamente sobre o livro. Eu tinha conversado com os editores, com pessoas mais próximas, mas aquelas duas primeiras entrevistas me deixaram bastante incomodado justamente pelo enfoque sobre ser um livro sobre racismo. Tanto que, na contracapa do livro, se fala de complexas relações raciais. E eu fiz questão que fossem essas palavras, “complexas relações”, e que não fosse um livro sobre racismo, porque ele não é um livro sobre racismo. Como você muito bem colocou, ele aborda as questões raciais, mas não me parece que elas sejam o centro dessa narrativa. O centro da narrativa é o avesso disso, o centro da narrativa são essas relações interpessoais que ocorrem entre um filho e um pai, entre um homem e uma mulher. São essas relações o foco.

Então, O avesso da pele é um livro sobre os afetos, sobre a reconstrução desses afetos. Ele é um livro que procura dar uma dignidade a uma existência que foi solapada pelo Estado, pela violência policial. Pedro, quando recupera essa ausência do pai, está presentificando esse pai, e ao presentificar esse pai ele de certo modo reconhece esse pai novamente. O Pedro acredita, e acho que eu acredito, que nós podemos conhecer uma pessoa pela primeira vez muitas vezes, e é isso que ele está fazendo, ele está conhecendo o pai novamente, mas agora através da ausência. Me aprece que isso é muito mais forte, muito mais pungente, não é à toa que eu quis abrir o livro com a citação do Hamlet, porque esse era o tom que eu queria dar ao livro. E claro que as questões raciais vão aparecer, e elas aparecem ali várias vezes, mas elas são a epiderme, a camada que cobre justamente esse avesso. É por isso que “O avesso” é um capítulo mais extenso, é onde eu esmiúço mais essas relações afetivas.

LB: Você falou já em algumas entrevistas que o impulso para escrever o livro foi a sua relação com seu filho. Sua pesquisa de doutorado também é sobre a figura paterna nas literaturas luso-africanas. Eu queria ouvir sobre essa questão da paternidade, sobre como ela entra no livro, e a relação entre a pesquisa acadêmica e a escrita.

JT: Eu faço terapia já há bastante tempo, desde que eu tinha dez anos de idade, depois parei um pouco, voltei. E quando eu voltei, na vida adulta, eu sempre dizia que o pai para mim estava resolvido. Eu conheci meu pai já na vida adulta, depois de quarenta anos, e quando eu o reencontrei disse para a minha terapeuta: “O pai agora está resolvido.” Doce ilusão, porque não estava nada resolvido, tanto é que eu acabei fazendo meu projeto de doutorado relacionado ao pai, escrevi um romance que tem a temática do pai, então me parece que eu ainda estou nesse processo de resolver. Talvez eu não consiga, mas estou nesse processo. E o doutorado se encaminha não para colocar um pai africano e um pai ocidental como contrastes, mas para procurar as relações dessas representações nessas literaturas. Eu tenho chegado a algumas conclusões, ainda parciais, de que, quanto mais ocidental é o pai, mais trágico ele é, mais causador de traumas. E quanto mais africano, de países africanos, menos trágico ele é. Claro que eu não estou falando aqui em generalizações, porque a gente pode encontrar no livro Hibisco roxo, da Chimamanda [Adichie], um pai extremamente opressor, causador de traumas, mas, de modo geral, como fenômeno, eu tenho percebido que o pai africano é um pai mais coletivo, menos vertical, mais horizontal, ou seja, ele não tem todo esse poder que o pai ocidental tem. Então, me interessa sair um pouco do campo da psicanálise e entrar mais no campo da cultura, que foi onde o Freud começou. É um pouco voltar ao campo da cultura para tentar entender que pai é esse.

Enquanto estava escrevendo O avesso da pele, um pouco do que estava pesquisando acabou entrando nesse personagem. Porque o Henrique não é um pai trágico, ele não é um pai que causa traumas, mas ao mesmo tempo ele não é aquele pai muito próximo do filho, muito afetivo. Ele tem uma preocupação mais intelectual, uma preocupação de formação, o que é um pouco diferente de mim como pai, porque eu sou muito afetuoso com meu filho. Mas às vezes acabo também atropelando a idade dele. Querer que meu filho queira já conhecer o mundo, conhecer as coisas que eu acho que são válidas, isso tem um pouco no Henrique também. Só que o Henrique para aí. Ele não tem uma relação mais próxima com esse filho. Então foi um ponto de largada essa minha relação com o João, com meu filho, para que eu pudesse fazer um livro sobre as relações entre pais e filhos.

Beatriz Resende: Nós todos somos professores de literatura e ficamos muito comovidos com seu livro. Seu livro mexeu especialmente com quem já passou pelo ensino médio, quem já passou por escolas com estudantes difíceis, ou mesmo na universidade. O que é muito dolorido é essa incomunicabilidade, essa barreira que tem a ver com relação familiar, com idade, com conflitos geracionais, mas também com essa figura tão sofrida do professor. Eu queria que você falasse um pouquinho disso.

JT: Na verdade eu tinha um projeto de escrever um livro sobre professores. Cheguei a escrever algumas partes do que seria um conselho de classe, uma reunião com professores e os pais. Eu queria que o livro relatasse essa vivência dentro da escola, desse ambiente escolar. Também queria um outro livro que falasse sobre pais e filhos, e queria um outro que falasse sobre violência policial. Conforme fui escrevendo, me pareceu que os três assuntos poderiam entrar de maneira harmoniosa, que não ficasse parecendo que eram três livros. Foi o que aconteceu, esses três assuntos acabaram entrando e surgiu esse professor, o Henrique, que é um professor que já está bastante decepcionado com a carreira, está esgotado, tem um esgotamento mental e físico, já não aguenta mais ser professor, e tudo que ele quer é a aposentadoria. Até que ele encontra uma turma de EJA [educação de jovens e adultos], e tinha que ser uma turma de EJA… Eu dei aula para o EJA durante sete anos e naquele espaço aprendi muita coisa, com alunos que não davam certo no turno da manhã e iam para a noite. Pessoas que tinham parado de estudar há muitos anos e voltavam, e eu ficava me perguntando: o que faz uma senhora de setenta anos voltar para a escola? Ela passou por toda uma vida e volta para a escola. Aquilo me tocava muito. Eu quis fazer uma espécie de homenagem a esses alunos que voltam. Esses alunos que ninguém quer por perto, os refugos. Aí a gente tem um professor que também é tratado como um refugo. Ele encontra um momento de redenção ao levar literatura do jeito que ele conseguiu. Ele leva Dostoiévski, e a partir dali reencontra a vontade de dar aula. Nós como professores somos bem assim. A gente pode estar esgotado, triste com as aulas, não está funcionando muito bem, mas aí tem uma aula – uma aula – e aquilo nos alegra para uma semana, um mês. Então é uma homenagem aos professores, é uma declaração de amor aos livros, como eu tenho dito, mas é também uma crítica ao Estado, que abandona os professores com um giz na mão e diz para eles: “Mudem o país”, e ainda põe a culpa no Paulo Freire. Nem vacina querem dar.

JA: Jeferson, quando eu terminei de ler O avesso da pele, o primeiro pensamento que me veio foi: eu teria muita dificuldade em fazer uma análise crítica, acadêmica e científica sobre o livro, porque o personagem do Henrique acaba sendo muito caro para mim. A construção dele é muito parecida comigo porque eu, como o Henrique, nasci nos anos 1970, fui adolescente nos anos 80, uma década extremamente hostil para um adolescente negro sem representatividade, e a minha faculdade foi nos anos 90, e sou professor de literatura. Você falou que nasceu em Madureira, eu também nasci em Madureira. Então tenho essa proximidade muito afetiva com o livro. Para você transformar tudo isso em material estético, em literatura, tem que ter distanciamento. Eu não sei a que custo emocional isso acontece. Para mim, isso acaba sendo muito caro. O livro me acolheu, ele me deu esse espaço de pertencimento, porque a gente vive em ambientes hostis. Eu já fui revistado até na porta da universidade, por exemplo, como se dissessem: “Olha só, você não pertence a este lugar”. É curioso que nessa época se falava muito em pós-modernismo, em fragmentação, em desterritorialização, e eu lia essas coisas e pensava: “Mas eu nem fui territorializado ainda, as pessoas estão sempre falando que a gente não pertence àquele lugar, como eu vou me desterritorializar de um lugar se eu nem fui territorializado, meus pais não eram territorializados, meus avós não eram?” Seu livro tem esse caráter acolhedor, de nos colocar nesse universo de pertencimento. Assim como outros, como Carolina Maria de Jesus, como Lima Barreto, como o próprio Machado de Assis. Eu queria saber como seus livros, você como escritor, e sobretudo O avesso da pele, se relacionam com esses escritores. Não só esses, mas outros escritores que nos dão essa ideia de pertencimento.

JT: Muito bom te ouvir, e essa questão do território. Você tem toda a razão. A gente não conseguiu ser territorializado e já querem tirar o território, não é? O livro dialoga com várias referências implícitas e explícitas. Eu tenho o Machado de Assis como uma referência, tenho alguns quadros aqui de fotos do Machado, porque eu gosto de olhar para ele, e ele me olhando. Posso ter uma relação quase de endeusamento com o Machado. Eu sei que ele não gostaria disso, pelas biografias dele eu acho que ele não gostaria. Mas talvez não seja uma influência estética. É uma influência como pessoa e como homem negro. É como se ele tivesse me ensinando como é que eu me porto em uma sociedade racista, que não permite que a gente acesse determinados espaços. É como se o Machado tivesse me ensinando a ser capoeirista, ele me ensinasse o momento de recuo e o momento do ataque. E o Machado fez isso muito bem, por isso ele chegou aonde ele conseguiu chegar. Então, o que eu tenho do Machado é mais essa índole. Sempre em momentos difíceis eu penso: “Como é que o Machado reagiria?” Como eu não tive um pai presente, acho que o Machado de Assis teve esse papel de ser o meu pai.

Já o Lima Barreto me deu uma habilidade de observação. O Lima Barreto é um extremo observador da sociedade, e muito irônico, muito perspicaz. Os diários dele são preciosidades. A coragem também… As pessoas defendem muito o Monteiro Lobato, dizendo que ele era um homem de seu tempo e por isso ele era racista, e aí eu pergunto por que o Lima Barreto não era racista. Porque ele era negro? Então me parece que o Lima Barreto era um homem extremamente corajoso na escrita.

E a Carolina Maria de Jesus foi um acontecimento na minha vida. Poder encontrar uma literatura tão forte, tão pungente, levando em consideração todo o contexto dela. Ela escrevia em meio à devastação e aqui eu estou usando uma frase do Dostoiévski, que diz que o escritor levanta a sua obra no meio da devastação. A Carolina fez isso. Ela é uma escritora com E maiúsculo, é uma escritora que tinha uma força e uma vontade de escrever e de viver. Embora ela falasse sobre suicídio, ela tinha muita vontade de viver, de continuar escrevendo. Era leitora de toda uma tradição literária brasileira, lia os parnasianos, leu os românticos, e é curioso que ela ficou de fora dessa história da literatura. Mas ela é filha também desses autores. Ela tem aí uma filiação.

Mas o que influenciou direto O avesso da pele foi um norte-americano chamado James Baldwin. Acho que ele me fez entender o meu lugar como um homem negro no sul do país. Em Terra estranha, ele coloca um personagem, o Rufus, como um ser que não consegue se encontrar numa cidade cosmopolita como Nova York. Ou seja, essa América dos sonhos, o sonho americano que não pertence aos negros, aquilo foi fundamental para que eu pudesse compreender o meu projeto literário, o que eu queria com o Henrique. Foi relendo o James Baldwin que eu consegui resolver alguns problemas que o romance foi me apresentando. Como eu trato um personagem como o Henrique dentro de uma cidade que é hostil a ele, sem que isso pareça panfletário? E o James Baldwin faz isso de maneira magistral. Então eu li e reli o James Baldwin, dei até cursos sobre ele, e isso acabou me ajudando bastante.

São essas as referências mais diretas de O avesso da pele. E dentro da estrutura narrativa entram outros autores. Por exemplo, o autor de O náufrago, Thomas Bernhard, escreve sem parar, os diálogos estão junto com os parágrafos [narrativos], não tem uma distinção do que é diálogo e o que é narração. Eu reli bastante o Thomas Bernhard, reli o José Saramago, que também tem uma proposta mais sofisticada de linguagem. Foi uma junção de vários escritores, mas o que me afetou diretamente para escrever O avesso da pele foi o James Baldwin.

BR: Você falou do Lima [Barreto], que é publicado até morte, depois é publicado até 1924, e baixa-se o silêncio eugenista sobre a obra dele. Independentemente da própria vida do Lima, com todas as dificuldades de inserção, de ser um intelectual, e ele era intelectual da maior importância, ele não estava bem em casa, não estava bem na cidade, não estava bem no subúrbio. Depois ele é vítima até 1955 de todo esse movimento do racismo, do eugenismo, da dominação disso sobre a intelectualidade brasileira. Mas a recepção do James Baldwin já é de outro tempo, já é diferente. Ele nunca é acusado, como o Lima, de ser um magoado. Agora nós vivemos um momento de outra recepção e outro interesse sobre as obras que põem o dedo na ferida, que revelam o racismo brasileiro. Eu queria que você falasse um pouquinho dessa recepção. Quer dizer, a sua obra talvez tenha mais facilidade de aceitação do que aquele professor que é sacrificado pela sua cor.

JT: Eu acho que a gente teve um avanço no sentido da recepção. Isso que aconteceu com o Lima Barreto aconteceu também com a Carolina Maria de Jesus. Ela teve aquele boom da década de 1960, e aí chega a ditadura e simplesmente a põe na geladeira, onde ela vai ficar por muitos anos, até meados da década de 90, quando começa a ser recuperada aqui no Brasil. Porque no exterior ela sempre foi pesquisada, mas aqui ela foi colocada na geladeira. Isso acontece com os autores negros. Há quantos anos a Conceição Evaristo escreve, viaja pelo mundo, ganhou vários prêmios, e ela começa a ganhar o reconhecimento dos anos 2000 para cá. Ela já é uma mulher de mais de setenta anos! Então a gente precisa compreender que houve um avanço nesse reconhecimento, na recepção desses autores, mas tenho a impressão de que ainda é muito pouco. E também tenho medo de que seja uma armadilha mercadológica: “Olha, os negros estão vendendo, então vamos entrar nessa porque é interessante”. Mas a gente tem o Itamar Viera Junior, o Paulo Scott, a Ana Maria Gonçalves, são escritores com uma envergadura muito forte, que vieram para ficar, não vieram para ser esquecidos. Então me parece que, se a gente apostar que há uma onda, me parece que vem outra onda, talvez maior, depois maior, depois vêm outra e outra. Mas é sempre preciso estar atento.

Não sei se vocês já ouviram falar sobre o afro-pessimismo. Eu não me vinculo ao afro-pessimismo, mas tem algumas coisas a que é interessante ficar atento. Não achar que as migalhas que nos dão são o suficiente. É sempre importante a gente ter um olhar crítico, lúcido, sobre as oportunidades que nos oferecem, para que a gente não caia em determinadas armadilhas e fique satisfeito com o que está aí. Me parece que é um novo momento, sim, da literatura brasileira. O meu livro termina com uma frase, “agora é a minha vez”, e uma amiga minha me disse que esse “agora é a minha vez” era eu ali me colocando. Eu deveria ter terminado o livro dizendo que agora é a nossa vez. Ou seja, sempre pensando no coletivo, porque, se eu cheguei até aqui, é porque muitos outros lutaram antes de mim. Teve a Carolina antes, teve a Conceição Evaristo antes, o Oliveira Silveira, poeta aqui de Porto Alegre que veio antes de mim. Eu não cheguei aqui sozinho, eu só cheguei porque antes de mim muita gente teve que lutar.

LB: Seu narrador fala em certo momento: “Não sabemos avaliar nossos fracassos”, e é interessante como você traz essa questão para o livro. Eu queria perguntar sobre o título, que, de certa forma, já anuncia a imagem que vai dominar o romance. Você tem o avesso da pele, que é a subjetividade, o eu, a pessoa, o indivíduo, diferente em cada um. E a pele é a identidade social, que é a marca do racismo institucional. E me parece que no romance tem um elemento que faz a mediação entre as duas coisas, que é a ferida. Tem um momento em que você fala que é necessário preservar o avesso, preservar aquilo que ninguém vê, porque não demora muito e a cor da pele atravessa o nosso corpo: “às vezes, quando você chora, quando lembra que pode chorar, você tem a sensação de que aquela ferida de meio centímetro sempre esteve dentro de você, desde o momento em que nasceu até a sua vida adulta”. Eu achei que essa imagem amarra o livro de uma maneira muito potente, o tempo inteiro lembrando essa contradição, da luta entre o indivíduo e a identidade social. Queria saber se é isso mesmo.

JT: É uma luta corporal mesmo. Se eu não me engano acho que tem um livro de poemas do Ferreira Gullar que se chama A luta corporal. Essa luta com a palavra, ou seja, esses atravessamentos que esse personagem vai sofrendo, que vai costurando. Acho que talvez a palavra seja essa: costurando essa subjetividade com essa identidade social. E o quanto essa identidade social violenta esse personagem. Nesse trecho que você falou, ele diz que os negros não têm direito, ou eles não conseguem reconhecer quando seu fracasso, ou seu sucesso, é fruto deles como pessoa ou se é fruto de um racismo estrutural ou institucional. E isso é extremamente violento e estressante. Daqui a alguns dias eu vou falar num grupo de psiquiatras sobre o racismo e esse sofrimento psíquico que ataca as pessoas negras cotidianamente. A todo momento as pessoas negras precisam avaliar: “Será que fulano foi racista comigo, será que foi só um mal-entendido?” Ou às vezes, quando o racismo acontece, você ainda fica pensando assim: “Ah, mas não pode ser”. Você custa a revidar porque você não tem certeza se é ou não é. Isso é toda hora, é todo dia. Agora vocês imaginem a vida inteira mulheres negras passando por isso, homens negros passando por isso. Como diz o Frantz Fanon, os homens negros não têm o direito de reconhecer ou conhecer os seus próprios infernos, eles não têm direito de descer aos seus infernos. Porque, antes de descer aos seus infernos, eles têm que lidar com o inferno exterior. A maneira que têm de lidar com os próprios infernos é, depois, com doenças psíquicas. É só ver as estatísticas de quem são as pessoas que mais sofrem com síndrome do pânico, com problemas mentais, que são a população negra, justamente pelo excesso de violência cotidiana, simbólica, que acontece todos os dias.

Nesses grupos de psicanalistas, psicólogos, psiquiatras a que eu tenho ido, acho que pelo menos cinco grupos nesses meses, eles ficam muito preocupados: “Então quer dizer que agora não posso mais tratar pessoas negras, eu sendo branco?”, ou “Pessoas negras só devem procurar psicanalistas ou psicólogos negros?”. E eu sempre digo que isso é uma leitura superficial, porque senão daqui a pouco eu não vou me tratar mais com uma psicanalista. Uma mulher não vai mais se tratar com um psicanalista homem. Eu acredito muito na questão da troca, mas esse psicanalista branco tem que entender que existe um homem negro ali na frente dele. Ele precisa entender, ele precisa ter lido Frantz Fanon, precisa ter lido Toni Morrison, Djamila Ribeiro. Precisa ter lido James Baldwin. Se ele quer ajudar mesmo aquela pessoa, então ele precisa estar instrumentalizado para além de Freud. Claro que a leitura não é tudo, posso ter várias teorias antirracistas, mas talvez eu não consiga chegar de fato no cerne da questão, porque a coisa tem que passar antes pelo coração. Eu preciso conviver com pessoas negras. E não é “eu até tenho um amigo negro”, não é nesse sentido, mas se preocupar com essas pessoas. Ou seja, olhar ao seu redor, ver que só tem pessoas brancas e se perguntar: “Por que eu só tenho amigos brancos?”

JA: Um dos momentos mais significativos para mim, sobretudo narrativamente, é quando a gente vê o Henrique e a Martha discutindo na rua, falando alto, tendo uma DR. E a gente, o leitor, está inserido ali, vendo a pele ao avesso. São dois indivíduos discutindo o relacionamento. E de repente o narrador tira a gente daquele avesso e joga no espaço hostil da cidade. Então a gente passa a ver a partir da perspectiva da cidade hostil; ou seja, um casal de negros discutindo na rua. Você até fala: “escandalosos, barraqueiros e mal-educados”. A gente é arrancado do espaço do avesso, que é um espaço afetivo, em que a discussão vem da necessidade de resolver aquilo de alguma forma, é uma discussão afetiva, e passa a ver a partir da perspectiva da cidade. Dois negros barraqueiros, escandalosos e mal-educados. Você tem um espaço hostil, que é a cidade, trabalhando quase como um personagem, bastante representado pela figura do policial. Ele é a própria representação do espaço hostil. Tanto que, no momento fatídico, a gente está dentro do Henrique, feliz com a aula que teve, andando na rua, e ele é abordado e não obedece à ordem do policial. E, quando a gente vê do espaço hostil da cidade, é um cara negro que não está obedecendo à ordem policial, um cara negro fugindo da polícia. Na primeira vez que o policial aparece, ele é introduzido a partir de uma narrativa onírica, começa com um sonho. E a gente pensa que o narrador vai entrar no personagem também, mas não. A gente percebe que o narrador manteve distanciamento pela terceira pessoa, como se estivesse mostrando para a gente que há um distanciamento que o narrador não teve com a Martha e com o Henrique. Eu queria que você dissesse para a gente como que foi essa construção.

JT: Jorge, você explicou o livro para mim agora. Ficou muito mais nítido para mim a estrutura do livro, essa oscilação entre esse interno e esse externo. Mesmo naquele momento mais afetivo, em que os dois estão convivendo no inferno, nesse inferno afetivo dos dois, até nesse momento a questão racial salta. E ela salta aos olhos e revela o estereótipo que as pessoas veem nas pessoas negras. Os barraqueiros são aqueles que gritam. Há essa cidade hostil e aqueles carros passando perto deles e se cria toda uma tensão. Eles sentam no meio-fio e não estão se importando mais se os carros vão chegar perto ou não. Me parece que essa oscilação entre o externo e o interno não dá trégua nem nesses momentos mais íntimos e mais afetivos.

A narração do policial é em terceira pessoa e a gente não sabe quem está narrando, e eu também não sei quem narra. Não tem nenhum personagem ali que narre, justamente porque eu queria dar uma impessoalidade. É como se quem tivesse apertado aquele gatilho fosse o Estado, e não aquele soldado, aquele homem, aquele policial. Como se ele estivesse obedecendo a uma ordem, porque não importa a cor de quem está apertando o gatilho. As pessoas falam: “Ah, os próprios negros são racistas”. Mas a questão não é essa. Vestiu a farda, vestiu o Estado, e você vai fazer o que o Estado está mandando.

Essa oscilação faz com que os personagens nunca estejam a salvo desses julgamentos raciais. Como você bem falou, eu estou contando ali uma história que vem de dentro para fora – ou seja, aqueles dois ali brigando – e de repente é como se uma câmera saísse daquela briga e mostrasse uma outra pessoa vendo aquelas duas pessoas negras discutindo e pensando: “Olha lá, só podia ser negro mesmo fazendo esses barracos”. Tem uma outra parte do livro, bem no início, quando ele tem uma relação interracial com a Juliana, em que também vai aparecer o quanto o racismo acaba corroendo as relações, de modo que eles não conseguem ficar juntos. Mas é claro que eles não ficam juntos por uma série de questões. Há a questão racial ali, o racismo, mas eles também não tinham maturidade para lidar com aquela questão.

BR: As duas mulheres, as duas mães, não são figuras muito acariciadas pela obra. A avó vai para a rua, bêbada, e é o contrário da avó, ela é uma anti-avó. E, se não há ternura entre o pai e o filho, me parece que menos ainda entre a mãe e o filho. A mãe talvez seja de toda a obra a personagem que mais sofreu, de todas as formas, mas resultou disso tudo uma pessoa desagradável, que não tem a sedução que o pai tem, que vai ficando cada vez mais sedutor. No entanto, você dedica a ela o que me parece ser um dos momentos mais lindos do seu livro, quando você diz, na página 118, “Minha mãe não tinha lugar. E era como se a cidade só pudesse ensiná-la a ser sozinha. Não que ela já não soubesse a gramática da solidão. Sabia, mas as coisas a sua volta faziam-na lembrar de sua mãe e de seu pai com tanta nitidez que poderia jurar que o asfalto de cada rua, que as esquinas, as calçadas e as pessoas a magoavam profundamente.” É a hora em que você resgata um pouco essa personagem tão excluída, tão solitária, e diz que dois anos depois ela entrou numa pequena faculdade de Porto Alegre. Eu achei essa passagem de uma beleza, mas há um atrito em relação a essa figura. Você pode falar um pouquinho dessas mulheres?

JT: No meu livro anterior, que é Estela sem Deus, há uma narradora em primeira pessoa, uma menina negra, que conta sua história dos treze aos dezesseis anos. Foi o livro mais difícil que eu fiz. Aliás, todos os livros foram difíceis, mas esse me pareceu quase impossível. Eu desisti desse livro muitas vezes justamente pelo grau de alteridade. Ou seja, assumir essa posição de uma mulher negra, que também tem problemas com sua sexualidade, problemas com a mãe, com o pai, com o irmão, e entra também a questão da religiosidade. Foi um livro bastante difícil e uma personagem bastante impossível para mim, e eu talvez não tenha conseguido ter o acesso que eu achava que conseguiria ter a essa personagem. Mas me deu certa experiência para que eu fizesse mais personagens femininas, sempre tomando cuidado para não cair no risco, nas armadilhas do machismo estrutural, dos estereótipos, e assim por diante.

A Martha aparece como um contraponto ao Henrique, até na questão do próprio racismo. Eles discordam também sobre o racismo. Ela chega a dizer: “Ah, você vê racismo em tudo, a gente sai e não pode ver um filme porque você já acha: ‘por que não tem negros aqui?’”. O Henrique nunca relaxa, e ela já vem com outra proposta, que, de certo modo, até por sanidade mental, é necessária também: não ficar todo o tempo percebendo essa coisa. Mas eu também não podia colocar uma personagem que simplesmente fosse uma antagonista porque isso daria a ela um status de vilã, e eu não queria isso. Eu queria também a subjetividade dela. Tanto é que na primeira versão, quando ela vai para Santa Catarina e fica com a mãe e a irmã, eu achava que estava escrevendo outro livro, porque eu escrevi muitas cenas sobre a Martha, sobre a mãe, sobre as conversas que elas tinham. E aí eu pensei: “Se eu continuar indo por aqui vou ter que parar e fazer outro livro só com a Martha”, porque ela já estava tomando um espaço na narrativa e eu tive que cortar. Quando eu mandei para a editora, eles também sugeririam que ou eu mudasse a história do livro, ou seja, a história tinha que ser dos dois, ou eu cortasse, para que continuasse com foco no Henrique. Se eu continuasse com a Martha certamente seria outro livro, porque tinha muito mais coisas para falar dela. Mas foi uma personagem extremamente difícil, Beatriz. Muitas vezes eu pensei: “Será que eu não estou caindo no estereótipo, tratar essa mulher como louca, como ciumenta, como agressiva, uma mulher negra de quem a gente já sabe tudo o que vem?” Mas aí eu comecei a perceber que talvez o que ela passou na vida podia resultar numa personalidade como a dela, que é uma personalidade de defesa, de insegurança. Talvez o leitor tenha compreendido isso, ou seja, possa analisar a trajetória dela e ver o que ela acabou se tornando.

LB: Achei interessante também a figura do professor de literatura que está numa comunidade periférica, vem de uma região periférica, e a partir do momento em que se torna um intelectual de certa forma sai um pouco dali. Ele não é aceito totalmente pela sociedade por causa da cor da pele, por causa de onde ele veio, mas ele também não se sente mais completamente integrado ao lugar onde ele cresceu. Aí ele encontra no papel de mediador a maneira dele se colocar, como no episódio em que ele dá Crime e castigo para a turma de EJA. Eu queria que você comentasse alguma coisa desse elemento da personalidade dele.

JT: O Henrique é o próprio entrelugar, não é? Ele é o mediador de conflitos. Do conflito entre esse mundo interior e exterior, esse conflito entre os brancos e os negros e o conflito desse mundo que ele quer levar para a sala de aula, mas encontra uma barreira imensa, uma barreira social causada pela própria estrutura escolar que faz com que adolescentes e adultos não se interessem [pela escola]. Ele tenta levar a poesia, leva Drummond, põe lá no quadro um poema e ninguém dá bola, riem dele, mas ao mesmo tempo ele precisa manter a sanidade para entender que eles não estão rindo do professor. Isso é um exercício que eu fiz quando trabalhei numa escola pública super difícil aqui em Porto Alegre e eu chegava em casa arrasado porque não conseguia dar aula. Eu pensava: “Mas eles não estão rindo de mim, eles não estão me atacando, eles estão atacando a estrutura da escola, eles estão atacando a Escola, com E maiúsculo.” Isso é muito difícil de fazer e de lidar, e o Henrique é justamente a pessoa que vai fazer esse meio de campo, levar aquilo que ele acha melhor para os alunos. Por isso ele vai levar o Dostoiévski, dali ele já começa a pensar que pode levar Toni Morrison, pode levar Clarice Lispector, Virginia Woolf, acha que ele pode levar tudo. Talvez o Henrique acredite mais do que eu que os livros podem alguma coisa. Eu prefiro que ele acredite mais nisso para que eu não caia em algumas ilusões.

O próximo romance em que eu estou trabalhando é um romance que se passa no início dos anos 2000 e vai acompanhar a trajetória de três estudantes na universidade, em cursos diferentes. Letras, história e medicina. Negros. E mostrar a mudança que esses personagens vão sentindo ao longo dos anos 2000 com a entrada de pessoas negras na universidade. Essa mudança epistemológica, essa mudança de comportamento dos professores, a questão das cotas, tudo isso vai agregando à trajetória desses personagens. Eu estou ainda na pesquisa, entrevistando algumas pessoas, mas a ideia é trabalhar nessa fronteira. O título do romance provisoriamente é De onde eles vêm, que é a pergunta que se faz. De onde é que ele vem? De que família ele é?

JA: Pesquisando sobre o seu livro, vi em alguma entrevista alguém perguntando se o livro foi baseado em fatos reais. Quando eu ouvi isso eu pensei: “É óbvio que foi baseado em fatos reais”. Mesmo se não tivesse sido, seria baseado em fatos reais, pelo fato de isso acontecer o tempo inteiro. É um retrato da sociedade. Quando você falou agora há pouco que talvez tivesse sido legal ter escrito “agora é a nossa vez”, eu acho que, quando você fala “agora é a minha vez”, acaba sendo “agora é a nossa vez”, porque quando eu li isso eu pensei que agora também é a minha. E todo leitor negro vai pensar isso. Baseado nessa ideia, eu queria que você falasse como foi a recepção da comunidade negra em Porto Alegre ao livro, e se você percebeu diferenças de leituras entre leitores negros e não negros?

JT: Muita gente me escreve, todos os dias eu recebo pelo menos duas ou três mensagens desde que o livro saiu, é bastante coisa. Sempre procuro responder as pessoas. Às vezes eu não consigo. E são um público muito variado. Tem um público branco, um público negro, um público jovem, os mais velhos, é bem heterogêneo. Mas, de modo geral, a recepção das pessoas negras vai no sentido de se sentirem acolhidas, como você falou. Ou seja, era um livro que eles esperavam, eles achavam que não existia, ou que não existia uma possibilidade de haver um livro tão próximo. Não tenho nem problema em dizer, Jorge, que é um livro autobiográfico no sentido de que há elementos ali biográficos, desde que isso não sirva como argumento para diminuir a estética do livro. Há uma elaboração estética da linguagem, que é uma preocupação que eu tenho, para que seja visto como literatura, mas há, claro, elementos biográficos que foram importantes na minha vida.

Quando à recepção de pessoas brancas, eu escutei de uma senhora, que tinha setenta e três anos, uma senhora branca não sei se de Porto Alegre ou do interior: “Jeferson, eu tive que ler seu livro agora, depois dos setenta anos, para entender o que os negros passam”. Claro que nos parece uma coisa um pouco absurda, porque a pessoa demorou setenta anos para conseguir se dar conta disso, mas por outro lado mostra que ainda é possível que as pessoas sejam educadas nesse sentido. O racismo existe ou por pura maldade ou por ignorância mesmo, por desconhecimento, porque a pessoa não teve oportunidade de ter contato com esse assunto. Mas me parece que a recepção pelas pessoas brancas é de surpresa. “Nossa, eu não sabia que os negros passavam por isso! Eu não sabia que os negros eram abordados pela polícia tantas vezes.” E, com as pessoas que são mais conscientes da temática racial, geralmente a gente acaba evoluindo nas conversas para outros temas que o livro aborda. Que foi o que aconteceu aqui. Ou seja, a gente não ficou girando em torno da questão do racismo, racismo estrutural e tal, como acontece quando pessoas brancas querem muito falar sobre isso porque é uma descoberta. Às vezes me cansa um pouco ter que falar tudo de novo. Porque eu quero falar da estrutura do livro, eu quero falar das referências, do Truffaut, do Chico César, do Itamar [Assumpção], eu quero falar dessas questões estéticas que fazem parte do livro também. Eu entendo que, como o livro toca na questão racial, é normal que as pessoas queiram falar sobre isso. Mas não só falar sobre isso.

LB: Eu queria perguntar sobre a escolha do “você”, que é maravilhosa. E sobre essa transição, que o Jorge comentou, do “você” para o “ele”, que eu acho que é muito bem construída e mantém estruturalmente a força do romance.

JT: O “você” surgiu de um exercício que eu fiz em sala de aula comigo mesmo. Eu estava cuidando de uma prova de alunos do ensino médio, isso ali em 2015, acho, e eu estava muito indignado porque eu tinha um monte de coisa para fazer, tinha que entregar relatório do mestrado. Estava ali indignado: “Mas eu estou aqui cuidando de uma prova, estou sem fazer nada”. Era uma hora e meia para ficar ali parado, e eu pensei: “Eu vou fazer um exercício de narrativa”. E comecei. “Você está na sala, de repente o aluno levanta a mão e você não quer que ele vá, e ele vomita em cima de você”, e eu comecei a fazer uma narrativa dentro da minha cabeça. Quando cheguei em casa, eu sentei no computador e comecei a digitar tudo que eu lembrava que tinha narrado mentalmente. Eu mostrei na época para a minha esposa e ela disse: “Isso aí que você escreveu é muito diferente do que você vinha fazendo antes”. De fato, ele é um livro completamente diferente dos outros dois. Eu gostei dessa narrativa em segunda pessoa, mas ela tem um problema de repetição de sintaxe, que pode cansar o leitor. Foi então que eu tive a ideia de enganar o leitor. Eu tenho um narrador em primeira pessoa que chama esse “você”, mas o “você” não é o leitor, o “você” é o pai. Mas ao mesmo tempo é o leitor também, então fica esse narrador ambíguo. Eu li acho que dois livros que têm esse narrador em segunda pessoa. Um é o Diário de inverno, do Paul Auster, que tem esse “você” que ele utiliza do início ao fim e eu acho um pouco cansativo. E o outro é um conto da Chimamanda que está no livro No seu pescoço. Foram as únicas vezes que eu vi essa narrativa em segunda pessoa. Aí eu acabei mesclando essa narrativa em primeira e em segunda. Quando ele fala da mãe – a Beatriz viu muito bem isso –, ele se afasta de modo que parece uma narração em terceira pessoa, e assim vai.

BR: Jeferson, para terminar, seu livro é um livro muito sofisticado, como você mostrou aqui, e revela um trabalho e uma formação literária que me parece que não é só uma formação literária como leitor. Você acrescenta outra camada que é a de professor de literatura. Em Porto Alegre há um ambiente de leitura e escrita que me parece muito especial. Eu queria que você falasse um pouquinho do que é essa vivência para a criação literária.

JT: Eu tive uma caminhada bastante acidentada academicamente e também em relação à própria escrita literária. Eu nunca fiz uma oficina literária, já tinha tentado fazer, mas ou eu não tinha dinheiro ou não dava certo. Eu acredito que, se tivesse feito, teria errado menos. Foram muitos anos para escrever um romance, demorei seis anos para fazer o primeiro, e é um livro de 130 páginas, porque foram muitos erros e acertos. Agora com O avesso da pele eu demorei dois anos. Tem essa consciência da técnica que eu acho que ajuda bastante, e eu sou super a favor dos cursos de escrita criativa. Acho que aqui no Brasil, agora não, mas se tinha ainda muito preconceito em relação a isso, enquanto nos Estados Unidos a gente tem vários autores [que fizeram esses cursos] – o Salinger, por exemplo, é um autor de escrita criativa e escreveu um livro monumental. Me parece que é um campo bastante promissor. E aqui no Rio Grande do Sul eu não sei muito bem o que acontece. A gente tem muitos escritores bons. Eu acho que é o frio que faz com que a gente não saia muito, não fale muito com as pessoas, então vai escrever.

Mas a minha formação não se deu nesses grupos de escrita criativa. Eu digo que a minha formação se deu num apartamento de 45m², de oito mil livros. Esse apartamento era de um professor de literatura, um grande amigo hoje, que é o Jorge Fróes. Ele é um poeta, escreve pouco, mas produz muito. Quero dizer que o pouco que ele escreve é muito. Ele é pouco conhecido aqui no Rio Grande do Sul porque ele quer. Ele não gosta muito de aparecer, mas foi uma figura importantíssima na minha formação. Eu o conheci quando tinha vinte e um anos e foi o primeiro professor negro de literatura que eu vi na vida. Aquilo foi um acontecimento para mim, porque ele falava de Ogum e falava de Shakespeare com a mesma intensidade. E um dia ele disse: “Você quer estudar no meu apartamento?” Na época ele morava com a namorada e tinha esse apartamento só para manter os livros, e ele me deu a chave e quando eu entrei vi aqueles livros espalhados por tudo que é lado, tinha livro no banheiro, na área de serviço, não tinha nem lugar para sentar. Tinha um pedacinho do sofá que era o único lugar possível para sentar. Tinha de tudo naquele apartamento, tudo que vocês possam imaginar de literatura, de sociologia, e eu não sabia nem por onde começar. Ele me serviu como uma espécie de mentor intelectual. Isso tudo antes de entrar na faculdade. Então, quando eu entro na universidade, já entro com uma carga de leitura bastante robusta, justamente porque eu tive esse professor de literatura que não entrou na academia, ele não fez mestrado ou doutorado, mas certamente ele mereceria um título de doutor honoris causa.


* Beatriz Resende é editora da Revista Z Cultural; Jorge Amaral é doutor em Literatura Brasileira pela UFRJ e professor do Conservatório Brasileiro de Música – Centro Universitário; Lucas Bandeira é editor executivo da revista e faz pós-doutorado no PACC/UFRJ, com bolsa da Faperj.