Apresentação | André Telles do Rosário

Diversos saraus habitam as grandes cidades brasileiras, onde a poesia é servida quente, trocada no calor das relações humanas presenciais. A poesia falada e corporalmente compartilhada nunca foi tão popular, no Brasil. Nunca o foi tanto quanto ao número de pessoas envolvidas em eventos espalhados por todo o país; quanto à origem delas, oriundas das classes populares, em sua maior parte. E popular também porque algo que se destaca nestas cenas é a centralidade cultural das periferias, onde a maioria destes recitais se encontra.

É possível perceber que a poesia compartilhada e, especialmente, a produzida nos ambientes destes eventos, tem uma relação muito especial com o suporte em que é trocada – o corpo – e com o local onde se dá essa troca – o território. São eventos cuja própria existência, muitas vezes, é um manifesto cultural, de intervenção e apropriação urbana. E eventos onde o ato de falar é performativo em sua própria condição de recriador do mundo.

Esta edição da Revista Z Cultural vem observar a confluência de dois temas muito comuns na produção e no pensamento cultural contemporâneos, Corpo e Território, em suas relações com a poesia corporalmente compartilhada hoje.

De um lado, os estudos de performance, e das dinâmicas de oralidade e letramento, aplicados à poesia usufruída coletivamente. A busca de entendimentos mais profundos sobre as estruturas, e estratégias, destes recitais. Como a corporalidade da poesia se manifesta diferentemente em cada lugar, e quais as constantes que se podem retirar de observações distintas entre si.

Por outro lado, os estudos de geografia cultural, as identidades envolvidas no uso dos territórios. A realização dos saraus como um gesto ousado de autonomia e independência cultural de alguns específicos lugares dentro de específicas cidades. Pontos de aglutinação de pessoas e troca de conhecimentos. Centros coletivos de produção de discursos políticos identitários, tanto dentro das comunidades quanto para fora delas – reflexão e projeção.

Para buscar renovadas leituras críticas sobre tais corpoeticidades – onde a poesia vira habitação; e a cidade, linguagem – a Revista Z Cultural propõe a presente reflexão sobre Corporalidade e Territorialidade na Poesia Falada contemporânea.

André Telles do Rosário (Organizador)

A poesia marginal no cinema pernambucano: poética do deslocamento | Camilo Soares*

[…] eu vi os expoentes da minha geração consumindo / muito álcool, na Rua do Hospício em busca da loucura, / chapando insistentemente no Beco da Fome para / recitar na Sete de Setembro contra o auto-otarismo e o autoritarismo em voga, / andando pelas ruas da Boa Vista feito zumbis / bêbados, ansiando fumar um nos miseráveis / apartamentos / sem água e sem luz, flutuando sobre os tetos da / cidade […] (Jordão, 2013, p.13).

A poesia marginal do Recife há cerca de três décadas requalificou a cidade e seus becos como fundamento poético de uma geração. A vivência da cidade dentro do fazer poético fez a presença do corpo no ambiente urbano e o deslocamento incessante no fluxo contínuo da cidade elementos indissociáveis ao ato de criar e à construção de uma linguagem peculiar. Não por acaso, outras manifestações artísticas locais, sobretudo o cinema – arte de corpos e movimentos –, incorporaram tal poesia em algumas de suas produções recentes, voltando a câmera para as vísceras da urbe e para os poetas urbanos em seus descaminhos de criação, frustração, drogas, bebedeiras. Não se propõe aqui mapear tais interstícios, mas tentar buscar formalmente e conceitualmente marcas do legado dessa geração de poetas sobre o cinema pernambucano atual, sobretudo em sua relação com a cidade.

Poetas marginais, alternativos, urbanos ou escritores independentes são nomes para um mesmo grupo de poetas da Região Metropolitana de Recife, uma geração que desde os anos 80 apresenta suas poesias em recitais pela cidade, em fanzines ou em livretos autoproduzidos. Mais do que isso, é uma geração de poetas que desceu do Parnaso da literatura culta e pisou na rua, qual Baudelaire em sua Paris do século XIX, tirando da cidade não apenas sua inspiração, mas fazendo da travessia de becos, bares e ruas a essência de sua poética. Erickson Luna, Jorge Lopes, Miró da Muribeca, Valmir Jordão, Lara, Zizo, Ivan Maia, Samuca, Fred Caminha, Chico Espinhara, Ivan Marinho, França, entre tantos outros, fizeram do contexto urbano o ambiente propício a suas palavras e imagens gestuais. O estar-no-mundo virou, simplesmente, estar-na-cidade; o corpo, em sua vivência e memória, tornou-se a base dessa poética, fundindo-se não apenas com os vocábulos do urbano, mas tornando corpo e cidade quase indissociáveis em seus versos.

Figura 1: O poeta Erickson Luna (foto: Camilo Soares, do livro Poesia, mesa de bar e goles decadentes, 2012)
Figura 1: O poeta Erickson Luna (foto: Camilo Soares, do livro Poesia, mesa de bar e goles decadentes, 2012)

Canto de Amor e Lama I

Choveu
e há lama em Santo Amaro
nas ruas
nas casas
vós contornais
eu não
a mim a lama não suja
em mim há lama não suja
eu sou a lama das chuvas
que caem em Santo Amaro
Vosso scotch
pode me sujar por dentro
cachaça não
vosso perfume
pode me sujar por fora
suor nunca
porque sou suor
a cachaça e a lama
das chuvas que caem
em Santo Amaro das Salinas
(Luna, 2004, p. 43)

Poética do concreto, mas não escrava da matéria, tais versos foram, aos poucos, subvertendo a objetividade da cidade por uma subjetividade do olhar, reconstruindo a urbe através de pilares instáveis de sua arquitetura afetiva, onde as coisas finalmente se transfiguram em imagens. Na poética urbana, o indivíduo trabalha seu estar-na-cidade de maneira a restituir para si a capacidade de interpretar e usar o ambiente urbano de forma diferente das prescrições implícitas no projeto de quem o determinou ou, como diz Argan, de reagir ativamente a esse ambiente. A cidade vira, para ele, um sistema de informação, com possibilidade de flexão e elasticidade de um sistema linguístico. A estética da cidade assume um lugar cabal nessa possibilidade de comunicação, e os poetas, em suas perambulações de bar em bar, fizeram-se pioneiros na arte de sentir e captar essa transição:

Incontestavelmente, a cidade é feita de coisas, mas essas coisas nós as vemos, oferecem-se como imagens à nossa percepção, e uma coisa é viver na dimensão estreita, imutável, opressiva, cheia de arestas, das coisas. É uma passagem que a cidade moderna deve realizar, a passagem da concretização, da dureza das coisas, à mobilidade e mutabilidade das imagens (Argan, 2005, p. 219-220).

Não por acaso, Kevin Lynch já falava dessa construção de cidade a partir de mecanismos perceptivos e cognitivos. Para ele, a paisagem urbana está inerentemente ligada ao bem-estar do homem, por sua qualidade visual de legibilidade, imaginabilidade (capacidade de provocar forte impressão sobre o observador) e, finalmente, identidade (Lynch, 1997, p. 37). A poesia marginal recifense mantinha naturalmente todas essas relações com a cidade: textos rápidos, coloquiais, diretos e quase violentos, somados à presença do poeta em recitais, seu corpo interagindo com as luzes da cidade, tornando-se parte dos becos e bares da metrópole. Tal imanência fez do poeta um cronista urbano ou uma espécie de fotógrafo que revela em palavras o pitoresco e o banal cotidiano, no foco de sua objetiva.

Avenida Caxangá

Lá vem o sol de novo
A chatear meus dias
Me jogando a pensar
Conjecturas
Pra onde vou
O que fazer
Falar o que
O que falar?
agora chove,
Sombrinha e guarda-chuvas
Enfeitam calçadas
E o riso na cara
Do cara da funerária
Anunciando mortes e lucros.
(Miró apud Soares, 2012, p. 26)

Figura 2: O poeta Miró da Muribeca (foto: Camilo Soares, do livro <em>Poesia, mesa de bar e goles decadentes</em>, 2012)
Figura 2: O poeta Miró da Muribeca (foto: Camilo Soares, do livro Poesia, mesa de bar e goles decadentes, 2012)

Assim, o grande elo entre tantos poetas não pode ser associado apenas à linguagem escrita, mas a sua presença física na cidade. Primeiro, uma presença na captação da crônica urbana, do observador em constante deslocamento; segundo, na expressão dessa poética com gestos e vozes dentro de um espaço urbano. Para abordar tal característica da poesia de Miró, mas também aplicável a outros poetas do grupo, André Telles do Rosário cunhou o termo Corpoeticidade ao juntar corpo, poética e cidade num só conceito, formando três dialéticas: poesia e corpo, corpo e cidade, cidade e poesia.

No primeiro, A poesia no corpo, traços de performaticidade […], a forma com que o corpo modula as manifestações do poema. No segundo, O corpo na cidade, um olhar sobre a subjetividade deste indivíduo urbano, quais as fronteiras para a movência e para o usufruto da urbe: a cor, a classe e a intimidade deste habitante que é o ponto-de-vista das imagens de suas invenções. E no terceiro, A cidade na poesia, como as representações geográficas tradicionais (principalmente da cidade, mas também da região e da nação) são desconstruídas e reinventadas em poemas seus (Rosário, 2007, p. 84).

A cidade não é, portanto, apenas fonte inspiradora, ela entra num jogo de transformar e ser transformada constantemente por toda sua gama de códigos e linguagens, tanto de forma simbólica quanto física. Devemos, como aponta Rosário, observar além do significado meramente linguístico ao apreciar esses poemas, ou seja, perceber a ação do corpo na construção da mensagem, desde a voz e o gestual, até a indumentária, o local e a ocasião. Tudo isso ajuda a compor, junto a prédios, postes e muros, a imagem da cidade para esses poetas e para os que os leem ou os veem declamar. Tais gestos, roupas e sons influenciam até mesmo na formatação da versão impressa dos poemas em livretos, geralmente leves, finos, estreitos, fáceis de carregar.

No cinema desse gênero[1], pode-se observar facilmente tal corpoeticidade. Os filmes de Wilson Freire com Miró (Miró, Preto, Pobre, Poeta e Periférico, 2008, e Breve Ensaio sobre a Bestialidade Humana, 2010) parecem ser tratados cinematográficos sobre a corpoeticidade, pois corpo, poética e cidade estão intrinsecamente arraigados em cada cena, conduzindo a estética e narrativa do filme, destruindo-se e reconstruindo-se mutualmente. Já no filme de Antônio Carrilho, Poeta Urbano (2012), mais clássico em sua concepção, o poeta perambula para vender seus fanzines de poesia pelos bares da cidade. Urbano é seu nome, pois é completamente parte da cidade que tanto o maltrata (a ele e à sua arte). Carrilho filmou em 35mm para dar uma certa nobreza a uma arte desprestigiada, o que talvez tenha limitado sua experimentação, perdendo um pouco da agilidade inerente a tal poesia.

Documentário Miró, Preto, Pobre, Poeta e Periférico (Wilson Freire, 2008)

Linguagem e contexto urbano

Como à poesia que faz referência, em tais filmes pernambucanos, a imagem da cidade tampouco é construída apenas numa relação de plano de fundo; poética, cinema e cidade intervêm uma nas outras como grafias que formam uma linguagem em comum. Para Argan­­ –­ que tece a analogia entre o linguista e o urbanista tendo em vista a similitude do processo de formação, agregação e estruturação do espaço urbano com a formação, agregação e formação da linguagem – a proximidade da apreensão da cidade como leitura subjetiva com a compreensão de associações linguísticas (como na poesia e, por que não, no cinema?) é incontestável:

A configuração humana, enfim, não seria mais do que o equivalente visual da língua, e não tenho nenhuma dificuldade em admitir que os fatos arquitetônicos estão para o sistema urbano assim como a palavra está para a linguagem (Argan, 2005, p. 237).

Tais interações linguísticas desenham relações bastante complexas, pois além do discurso, associam-se na memória, na afetividade do interlocutor. Ele usa a classificação saussuriana de relações linguísticas, dividindo essas em sintagmáticas (lógicas e presenciais) e associativas (subjetivas e virtuais). Para Saussure, o espaço também é percebido dessa maneira, dando o exemplo de uma coluna de um edifício: de um lado temos sua função com a arquitrava que sustenta (sintagmática), de outro lado a coluna é de ordem dórica, evocando a comparação com outras ordens (jônica, coríntia, etc.), que são elementos não presentes no espaço (associativo) (Saussure apud Argan, 2005, p. 239).

Para Argan, as duas esferas são importantes no campo puramente linguístico e no campo urbanístico, e cita Saussure.

Uma língua que funcionasse apenas por relações associativas não permitiria fazer um discurso coerente; uma língua que funcionasse apenas só por relações sintagmáticas seria lógica, mas de uma extrema pobreza. Assim no contexto urbano que fosse apenas o conjunto das imagens urbanas de cada indivíduo seria um caos; um contexto urbano que fosse apenas o mecanismo de uma função não teria profundidade histórica, seria indiferenciado, não comunicaria nada que não possa ser comunicado por fórmulas (Saussure apud Argan, 2005, p. 239).

Através da corpoeticidade, a poesia urbana talvez seja o maior exemplo dessa interação entre contexto urbano e linguístico (sobretudo o associativo, de onde a poesia tira sua força, subvertendo mas não apagando por completo a relação sintagmática). Aqui juntaremos uma terceira expressão ligada ao corpo, o estar-no-mundo (ou na cidade, especificamente) de forma imanente, com seus gestos e deslocamentos, pois tal poética urbana só se complementa, segundo Rosário, quando o corpo interage com a cidade e com a poesia.

Nas releituras da urbe, interpreta, simbolicamente, tanto a estrutura social, quanto as representações culturais do lugar. Novas e velhas conformações se misturam, na cartografia de Recife e do Mundo – mapas de uso deste espaço geográfico ligados a classe, etnia, gênero, identidades. Pontos onde o indivíduo socialmente envolvido (o “anônimo”) encontra voz, remonta discursos e cria imagens da sua cidade, tomando para si seu espaço no Mundo, através da expressão de uma relação afetiva (ou menos) com o lugar que habita (Rosário, 2007).

Nessa criação da cartografia da cidade a partir de representações culturais do lugar, entramos aqui em uma dinâmica orgânica entre artista, espaço e percepção (não só do artista como também de quem contempla a obra). Em sua Poética do Espaço, Gaston Bachelard contrapõe o estar-no-mundo poeticamente, o que chama de fenomenologia da imaginação, com a visão objetiva (sintagmática) do espaço, o que tanto na literatura quanto no cinema é diferença fundamental na articulação e formação de novos discursos sobre a cidade, sobre o mundo, a partir de imagens.

O espaço captado pela imaginação não pode permanecer espaço indiferente à revelia da medida e da reflexão do geômetra. Ele é vivido. E ele é vivido não apenas na sua positividade, mas com toda a particularidade da imaginação (Bachelard, 2007, p. 17).

Não há dúvidas que a cidade é vivida visceralmente pela poesia marginal do Recife, longe de uma visão mítica e saudosa (Bandeira) ou ontológica e sociológica (Cabral).[2] Mas a agregação do espaço como imagem vivida é um diferencial do cinema pernambucano recente, no cenário nacional e mesmo internacional; não é por acaso que tal poesia se faz presente nessas telas, por homenagem ou por confluência.

Cláudio Assis (com seu roteirista Hilton Lacerda), por exemplo, escolhe fechar sua trilogia mergulhando na poética marginal do Recife com o filme Febre do Rato (2011). Fazendo uma homenagem a essa geração através do poeta Zizo, o incansável divulgador de poesia com seu fanzine Caos de quem emprestou o nome de seu protagonista. Assis e Lacerda transcorrem não apenas as ruas da cidade, como também seus rios e pontes, anunciando verdades inaceitáveis à hipocrisia reinante pelos atos de terrorismo poético do personagem. A dureza da cidade é vivida e reconstruída pela poética de Zizo. Recife vira fluxo de sons, descaminhos e palavras.

Figura 3: O poeta Zizo (foto: Camilo Soares, do livro <em>Poesia, mesa de bar e goles decadentes</em>, 2012)
Figura 3: O poeta Zizo (foto: Camilo Soares, do livro Poesia, mesa de bar e goles decadentes, 2012)

O mesmo poeta Zizo foi co-diretor e co-roteirista do curta metragem Sue – Turbulenta aberração, de Camilo Soares. Baseado na personagem Sue de seus fanzines, jovem mulher, poeta, libertária e libertina, que perambula pela urbe na busca de suas várias identidades. Não apenas Sue é o anagrama de Eus, como esses se misturam aos sons e imagens da cidade, palco perfeito para tal poética, suas dores, suas dúvidas…

Figura 4: Frame do filme <em>Sue</em> <em>-</em> <em>Turbulenta aberração</em> (Camilo Soares e Zizo, 2013)
Figura 4: Frame do filme Sue Turbulenta aberração (Camilo Soares e Zizo, 2013)

Trailer de Sue – Turbulenta aberração:

Assim sendo, é uma poesia de fluxo, mais do que de flanerie, pois é uma literatura que só sobrevive no deslocamento, no gesto e na voz misturada a sons, cheiros e demais estímulos da cidade, seja pela venda cotidiana dos fanzines, de mesa em mesa de bares, seja pelos recitais organizados ou espontâneos em diversos espaços, sobretudo no centro da cidade. Não há muito dessa contemplação e desaceleração do flaneur. Cidade, poetas e poesia passam como movimentos, construindo-se na fluência caótica de seus vários elementos. Tal leitura do espaço, como diz Bachelard, é construída da própria brevidade da imagem: “A fenomenologia da imaginação deve assumir a tarefa de captar o ser efêmero” (Argan, 2005, p.197).

O cinema, arte fenomenológica por excelência, não poderia ficar apático dessa incessante construção do Recife em tempo e espaço. Nos filmes que retratam tal universo também se faz sentir esse deslocamento, esse fluxo, essa corpoeticidade. Nos dois filmes já citados de Wilson Freire sobre Miró, o primeiro um documentário, o segundo um experimental, o poeta está sempre em deslocamento pelo Recife e periferia. A poesia é presente não apenas em palavras, mas também no movimento do corpo do poeta e na vibração da urbe diante do espectador privilegiado que é a câmera, que percebe ao mesmo tempo em que provoca tal interação, sem ser artificial, pois esse interstício já está intrínseco na sua poética.

Igualmente no filme Poeta Urbano, de Antonio Carrilho, seu personagem transcorre a cidade no árduo trabalho de vender seus livretos, em cenas exageradamente ficcionais, até culminar num êxtase de declamações em Olinda, que escapa do controle do cineasta e encontra finalmente a força libertária dessa poesia, quando o filme entra no interstício, comum ao estilo do diretor, entre ficção e documentário. A íntegra desse encontro virou outro filme: Recital de poesia nos Quatro Cantos de Olinda no dia de São Jorge (2012).

A marginalidade de estar fora de sistemas editoriais, hoje faz pouco ou nenhum sentido devido à internet. No entanto, a cultura do fanzine ainda é forte, pois são poetas cuja divulgação é sobretudo feita por si mesmos, em recitais e na venda de seus livretos em bares. Caso interessante é o filme Poemainflamado (2013), de Mariano Pikman, sobre o poeta França. Desbravador de becos de Recife e Olinda, o poeta, com sua veia política, entoava um frevo (na verdade, um clarim, tão comum ao Carnaval local) depois dos versos em off sobre um passeio da câmera por favelas da cidade:

Olinda está muito mal
Em decúbito ventral
Desde o primeiro Carnaval
Tendo sido incendiada
Por legiões de urbanos
Tal qual era colonial
E a dos greco-romanos
(França, 2011, p. 137).

Ora, que outro registro além do cinema seria tão capaz de expressar a ironia desse poema de canto, ritmo, corpo, sangue e história. Esse cinema se difere, portanto, de odes a urbes que marcaram a história do cinema, como O Homem com a Câmera (1929) de Dziga Vertov e a Berlim: Sinfonia de uma metrópole (1927) de Walter Ruttmann. No cinema pernambucano atual não calha mais a visão de cidade sinônimo do progresso. Há mais um canto desesperançado das consequências sociais e urbanísticas de sinais de dito progresso, até então tão pouco coletivo; temos aqui um claro olhar crítico e ácido, como no poema de França, do colonialismo que ainda parece reinar sobre a construção e planejamento da cidade. E os sons e movimentos do cinema caem como luvas para interpretar tal espessura sem cair em simplificações.

A cidade não é uma máquina perfeita futurista, nem está condenada à fuga dos românticos; a cidade é um lugar a ser ocupado, físico e afetivamente. Nisso a poesia marginal foi pioneira, na reocupação da cidade como fundamento de sua estética (escrita, gestual). A poesia urbana é política, além de suas palavras, é política em seu corpo, em seu corpus, abrindo a perspectiva de que a cidade atual carece de presença, de vivência, para não se tornar apenas vias de escoamento de bens de consumo e mão de obra, entre áreas de especulação imobiliária. A presença (vivência) na cidade é a primeira etapa da cidadania urbana, em busca da qualidade dos espaços, de zonas de convivência. O artista toma de assalto a cidade, para preencher o vazio e o frio da existência puramente funcional destinada à urbe. Uma poesia de presença, mas não presença parada, de presença no fluxo, movimento entre ruas, becos e esquinas da cidade (não seria essa a bandeira de movimentos de ocupação ao redor do mundo?). Seria também a gasolina do cinema pernambucano, voltando suas lentes para a cidade, na construção de um olhar crítico ao desenvolvimentismo de shopping centers e arranha-céus pouco preocupado com história, identidade, convívio.

Figura 5: #OcupeEstelita (28/04/2013, Recife), movimento contra projeto imobiliário que prevê a construção de treze torres na região central da cidade
Figura 5: #OcupeEstelita (28/04/2013, Recife), movimento contra projeto imobiliário que prevê a construção de treze torres na região central da cidade

Nesse universo, o cinema aparece como ferramenta ideal para expressar tal poética feita de palavra, voz, corpo e movimento na cidade. Sem dúvida, o maior legado da poesia marginal para novas expressões não é o fanzine, pois a internet supriu essa necessidade de livro, editoras e livrarias, mas a presença do contexto urbano na alma desse fazer poético. Tal contexto apresenta hoje um indiscutível teor político, de ocupação da cidade física e imaginária, não apenas realizado pelo cinema, mas pelas mais diversas artes que hoje sentem a necessidade de sair de espaços institucionais para ganharem as ruas, seja em intervenções urbanas, recitais, espetáculos de danças e teatro de rua. O cinema, com seu olho mecânico, registrador e parabólico, observador e instigador, talvez seja o parceiro ideal para captar tal movimento.


* Camilo Soares é mestre em Estética: cinema e audiovisual pela Paris 1 Panthéon-Sorbonne e professor de Cinematografia da UFPE.

Referências

ARGAN, Giulio Carlo. Histoaria da Arte como História da cidade. 5° ed., São Paulo: Martins Fontes, 2005.

BACHELARD, Gaston. La poétique de l’espace. Paris: Quadrige, 2007.

FRANÇA. Poeminflamado. Recife: Fundarpe, 2011.

JORDÃO, Valmir. Aos pariceiros dos anos 80 (um uivo recifense). Poemas diversos. Recife: Escalafobética, 2013.

LUNA, Erickson. Do moço e do bêbado. Recife: edição do autor, 2004.

LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

ROSÁRIO, André Telles do. O poeta Miró e sua literatura performática. Dissertação (Mestrado em Letras). Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2007.

______. Corpoeticidade: algumas relações entre corpo, poesia e cidade na literatura performática do poeta Miró. Disponível em: http://interpoetica.com/site/index.php?option=com_content&view=article&id=889&catid=0

SOARES, Camilo. Poesia mesa de bar e goles decadentes: descaminhos de três poetas marginais do Recife. Recife: Nectar, 2012.

Notas

[1] Ouso afirmar que o cinema sobre poesia marginal é um gênero pernambucano, pois o tema, como veremos, é bastante corrente, ao contrário de outras poéticas mais acadêmicas.

[2] Talvez apenas Carlos Pena Filho tenha lançado sementes para esse tipo de vivência com o Recife.

Nomadismo Corpoético | Ivan Maia*

O fluxo de criações corpoéticas que experimentei nos últimos 24 anos se instaurou a partir do contato com práticas artísticas, políticas e terapêuticas vivenciadas desde o início de 1989, quando fui cursar uma disciplina básica do doutorado em Matemática no IMPA (Instituto de Matemática Pura e Aplicada) no Rio de Janeiro. Eu fazia mestrado em Matemática na UFPE em Recife, depois de ter deixado o curso de Engenharia Aeronáutica no ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica) e estudava geometria diferencial. Durante o curso, entrei num devir cinéfilo que me levou a assistir três filmes por dia no antigo Cineclube Estação Botafogo, no Rio de Janeiro. Uma aventura existencial iniciou seu processo uterino no cinema, o que me conduziu a uma viagem de carro de Recife a Porto Alegre, junto com a namorada, a partir da qual comecei a sentir um impulso existencial voltado para a experimentação de práticas artísticas, terapêuticas e políticas, que me levou a deixar o estudo de matemática e lançar-me em leituras e estudos filosóficos, literários, artísticos e de ciências humanas, assim como práticas experimentais corporais ligadas a esses saberes.

O primeiro contato com poetas recitadores foi com o movimento organizado por Juareiz Correya, poeta de pernambucano de Palmares, das caminhadas poéticas pelo centro de Recife, com recital itinerante nas paradas em alguns pontos cruciais do Recife. Em Olinda ocorria uma serenata itinerante nas sextas-feiras com música de violões, violinos, bandolins que costumava ter um poeta recitando no ponto final. Miró foi o primeiro poeta performático que vi apresentar-se interpretando poemas seus e de outros poetas, numa performance que me marcou a sensibilidade artística quando eu só escrevia e publicava oportunamente, sem recitar ou interpretá-lo de modo performático. Ele surgiu por trás das pessoas aglomeradas no pátio do Centro de Artes e Comunicação da UFPE interpretando a letra da canção Família, do grupo de rock Titãs, com ar de deboche vestindo um blazer cinza e com grandes dread locks no cabelo rastafári. Foi aplaudido entusiasmadamente pelo público que ali reverenciava um ícone da irreverência contracultural pernambucana.

Em 1991, experimentei minha primeira performance poética. Depois de ter assistido aos poetas Bernardo Costa e Ivan Marinho, além de Miró, juntei-me a alguns amigos de uma comunidade de Somaterapia com quem convivi, e lemos poemas meus, em meio a movimentos sensuais, cobertos por um lençol e à luz de velas.

Em 1992, entrei no Curso Básico à Formação do Ator da Fundação Joaquim Nabuco, em Recife, com duração de um ano, ao final do qual participei da encenação de uma peça do dramaturgo Felipe Botelho chamada Janos Adler, premiada em concurso nacional de dramaturgia. A formação de ator me deu condição para elaborar ainda mais as performances poéticas e assim formei, em 1992, o grupo corpoema e passamos a realizar tais performances nos eventos do bar Antropófago, no Espaço de Cultura Libertária (E.C.L.).

No Espaço de Cultura Libertária, atuávamos também como garçons e na administração autogestionária do espaço, que tinha também a Livraria e Locadora de Livros Outras Palavras, a qual nos abastecia com uma abundância de livros de poesia. Ao mesmo tempo, alternando com a participação no Sopa Caraíba, evento semanal do bar Antropófago, começamos o movimento itinerante Poesia na Praça, de recitais poéticos nas praças de Recife, Olinda e Jaboatão, nas tardes de domingo.

Figuras 1 e 2: Os poetas Miró (à esquerda) e França
Figuras 1 e 2: Os poetas Miró (à esquerda) e França

O corpoema, com formação variável, contava quase sempre com a participação minha, da atriz Cláudia Harmes, do poeta e músico Carlos Cardoso e dos poetas Miró, Valmir Jordão, Lara, entre outros poetas, atores e músicos que eventualmente se juntavam ao grupo. Foram dois anos intensos, de preparação semanal de performances, apresentadas no Antropófago, e alegres festas da poesia nas praças. Aos domingos, costumávamos fazer grandes almoços coletivos, cada um trazendo um prato de casa que juntávamos no E.C.L. Após o almoço, pintávamos os rostos, preparávamos as roupas mais estranhas, obtidas colocando as peças fora do lugar convencional, e íamos para a praça escolhida e anunciada no domingo anterior, onde nos espalhávamos para convidar o público para aproximar-se do local. Nele, nos reuníamos novamente de mãos dadas gritando três vezes: “Poesia na praça!”. Aconteceu de tudo com todo tipo de gente que se juntava ao animado grupo mambembe que ocupava poeticamente as praças nesses anos 92-93. O processo de singularização subjetiva desencadeado com essas experiências influenciou significativamente a geração de poetas que, posteriormente, ganhou maior visibilidade na cena literária pernambucana com a publicação da coletânea Marginal Recife em cinco volumes, que reuniu poetas que há mais tempo faziam movimentos poéticos em Recife e Olinda, como Jorge Lopes e Erickson Luna, aos quais foram agregados alguns novos como Eunápio Mário e Du Nascimento.

Alguns chegaram a fazer performances em outros estados, como em São Paulo, onde nos apresentamos em 1992 durante a realização do encontro Outros 500, que fez um contraponto libertário às comemorações dos 500 anos da invasão de nosso continente pelos europeus. Em 1993, participamos do I Encontro Anarco-Cultural de João Pessoa, no qual fizemos performances poéticas que foram recebidas com grande entusiasmo pelo público de anarco-punks, anarco-sindicalistas, anarco-pacifistas, anarco-ecologistas das cidades de Natal, Campina Grande e Recife que se juntou aos paraibanos da capital no espaço cultural Coletivo Arte e Luta, no centro da cidade. Além das performances em outros locais, como a orla de Tambaú e dentro de ônibus urbano.

Outro momento marcante, ainda nesse ano, foi a apresentação feita com crianças e adolescentes ligados ao grupo Ruas e Praças, que realizava trabalho social com crianças em situação de risco. Os jovens, que já não estavam mais vivendo nas ruas do Recife, participaram de uma oficina de teatro que oferecemos durante um mês no E.C.L. E ao final nos apresentamos no centro do Recife, encerrando a Passeata contra a Fome e a Miséria, liderada por Betinho, e na Assembleia Legislativa de Pernambuco, para os deputados estaduais e os movimentos sociais, que ocuparam as arquibancadas durante as comemorações do 1º de Maio. Foi impressionante como os meninos se expressaram com altivez no plenário da Assembleia diante dos parlamentares, interpretando uma colagem de poemas de grandes autores, como Drummond, e textos elaborados na oficina pelos próprios participantes, alguns dos quais membros do Daruê Malungo, grupo de percussão que, junto com Chico Science e Nação Zumbi (CSNZ), agitou a cena cultural pernambucana. O Daruê Malungo apresentou-se no E.C.L. poucos dias antes de participarmos, interpretando nossos poemas, de um grande show com várias bandas, entre as quais Mundo Livre S.A. e Chico Science e Nação Zumbi.

Figura 3: <em>Performance</em> do poeta Lara
Figura 3: Performance do poeta Lara
Figura 4: Ivan Maia declama poemas de seu livro <em>Azulírico</em> na Bienal do Livro de Salvador
Figura 4: Ivan Maia declama poemas de seu livro Azulírico na Bienal do Livro de Salvador

Em 1994, o Antropófago deixou de funcionar após dispersão do grupo que o mantinha de forma autogestiva, mas antes fizemos ainda várias apresentações em escolas públicas, universidades, manifestações sindicais e de movimentos sociais, bares e espaços culturais de vários tipos em Recife e Olinda, as quais passavam pelos efervescentes tempos de surgimento do movimento Mangue Beat, que, com sua musicalidade marcada pelos ritmos da terra e danças populares, bem como sua poética da marginalidade, deu novo acento à corpoeticidade da poesia marginal, independente, alternativa, pernambucana.

De 1995 a 1997 experimentei junto com minha companheira na época uma aventura existencial de criar novo modo de vida na mata atlântica da Paraíba, próximo à praia de Tambaba. Preparamos condições para o parto domiciliar de meu filho e nos dedicamos à agricultura ecológica produzindo um sistema agroflorestal. A poesia passou para as artes plásticas e produzimos camisas pintadas com versos de poemas ou poemas curtos, que procuravam dar à roupa uma corpoeticidade que agora era experimentada enquanto estética da existência. Em 1997, um plantador chegou à região onde vivíamos e começou um desmatamento que se consumou com grande incêndio, o qual devastou boa parte da mata próxima ao sítio onde morávamos. Isso transformou a tal ponto a região que desistimos do projeto existencial que iniciávamos. Assim, voltamos pra Recife e retomamos a participação nos movimentos poéticos, como os saraus organizados por Eduardo Monga (Du Nascimento), que ocorriam na UFRPE, a universidade rural, dos quais participei até o ano de 2000, quando me mudei pro Rio de Janeiro decidindo fazer mestrado em filosofia.

Esse período foi marcado ainda por uma viagem de seis meses, em 1998, por vários locais dos estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Goiás, Bahia e Distrito Federal, na qual experimentei me manter economicamente com a venda de publicações de poesia em folhetos, livretos e camisetas pintadas, que eram oferecidas em espaços culturais a partir de performances poéticas que buscavam sensibilizar o público para o valor dessa linguagem. Essa aventura existencial em busca de viver de poesia em belos lugares, como Visconde de Mauá, Sana, Lumiar, Seropédica, Paraty, Trindade, São Tomé das Letras, Ibitipoca, Caraívas, Arraial da Ajuda, Chapada Diamantina, Chapada dos Veadeiros, Chapada dos Guimarães, Pirenópolis, Alto Paraíso, foi uma das experiências mais desafiadoras e singularizantes de minha vida. Ela me levou a reformular a proposta da Oficina Corpoema, que ofereci em Recife em 1999 e que passei a ministrar a partir de 2000 no Rio de Janeiro, no IFCS/UFRJ, enquanto cursava a graduação em filosofia e em 2001, na UERJ/Maracanã, durante a especialização em filosofia contemporânea.

As práticas de poetização do corpo e incorporação da poesia experimentadas na Oficina Corpoema foram também enriquecidas com a prática da improvisação em dança que eu realizava desde 1989 e que, no Rio, passou a outro estágio quando comecei a praticar o Contato-improvisação no Studio Corposeguro, em Botafogo. A expressividade corporal dialógica dessa prática potencializou a expressão corpoética das performances coletivas que realizamos no CEP 20.000 no Teatro Sérgio Porto a partir de então. Tais espaços (Sergio Porto, Corposeguro, UFRJ e UERJ) foram extrapolados, e participamos de eventos na UNIRIO da Urca, no Castelinho do Flamengo, no Parque das Ruínas, no Santa Poesia na Rua Hermenegildo, nas festas do bloco Céu na Terra no Largo das Neves em Santa Tereza, na Fundição Progresso e no canteiro de obras de revitalização do Circo Voador na Lapa, no Teatro SESC em Copacabana, no Posto 9 de Ipanema, entre outros espaços culturais nos quais ocorriam recitais, jams sessions, festas, shows musicais e vários tipos de eventos.

Depois de concluir as componentes curriculares do mestrado em filosofia, passei três meses em Recife, quando comecei a escrita da dissertação de mestrado. Por pouco tempo, interrompi a escrita da dissertação ao assumir o cargo de professor de filosofia na Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, em Salvador, onde ensinei por cinco anos. A poesia, então, foi retomada como experiência em salas de aula. Oficinas de contato-improvisação e recitais poéticos para estudantes ou professores ocorreram em meio a estudos, pesquisas e experimentações pedagógicas, como a componente optativa do currículo do curso de Psicologia, em que fizemos um estudo em torno dos Édipos e anti-Édipos de Sófocles, de Freud e de Deleuze e Guattari, e preparamos uma dramatização da tragédia grega.

Figura 5: <em>Performance</em> de Ivan e Lilian
Figura 5: Performance de Ivan e Lilian
Figura 6: Ivan Maia em recital na Praia dos Livros, Salvador
Figura 6: Ivan Maia em recital na Praia dos Livros, Salvador

Instituída curricularmente no ambiente acadêmico, a experiência corpoética encontrava dificuldades para ser vivida com considerável liberdade. No ensino médio, ainda mais, pelo caráter disciplinador da educação privada da classe média. Ensinei em dois colégios em Salvador e cheguei a criar uma Sociedade dos Filósofos Vivos, onde líamos poemas filosóficos como provocação dos estudos. A retomada de uma experiência corpoética mais rica se deu só com o estágio na UFBA como professor substituto do Bacharelado Interdisciplinar em Artes da UFBA. Na componente curricular Ação Artística, experimentamos com treze estudantes a radicalização da proposta corpoética. E foi então realizado um ritual antropofágico de devoração dos corpoemas, em que foi erguido, junto à Biblioteca Central, uma instalação em forma de um grande “T”, como totem do tesão, o prazer da estética da existência corpoética que foi celebrado no ritual antropofágico de “transformação do tabu em totem”. A dança dos corpoemas, que interpretavam poemas corporais com os corpos pintados ao redor do fogo, foi a performance heterotópica resultante da componente curricular.

Figura 7: Aula de Ação Artística, curso de Artes da UFBA
Figura 7: Aula de Ação Artística, curso de Artes da UFBA
Figura 8: Ritual antropofágico, curso de Artes da UFBA
Figura 8: Ritual antropofágico, curso de Artes da UFBA

Essa experimentação corpoética foi vivida ao mesmo tempo nos encontros de contato-improvisação no Teatro XVIII no Pelourinho, e nos encontros poéticos na Praia dos Livros, no Porto da Barra, em Salvador, onde reunimos muitos poetas baianos e de outros lugares em eventos e festas multimidiáticas.

Figura 9: Ivan Maia na Fliporto 2011
Figura 9: Ivan Maia na Fliporto 2011

Ao concluir o doutorado com a tese intitulada Autopoiesis do corpoema: a vida como obra de arte, fiz concurso e comecei a ensinar numa universidade federal no Ceará, onde estou há um ano e meio como professor adjunto do Bacharelado em Humanidades e Coordenador de Arte e Cultura da UNILAB. A experimentação corpoética agora segue com o projeto de extensão chamado Curso de Teatro CORPOEMA. O devir poema do corpo acontece agora como teatralidade performática que os estudantes da universidade e de outras faculdades, junto com professores e estudantes de escolas da região do Maciço do Baturité, experimentam em aulas e apresentações.

Figura 10: Aula do curso de teatro Corpoema
Figura 10: Aula do curso de teatro Corpoema

A tese faz do corpoema um conceito básico para conceber uma estética da existência corpoética, na qual o corpo é pensado a partir da perspectiva de Friedrich Nietzsche e outros pensadores influenciados pelo filósofo alemão, principalmente Oswald de Andrade, Martin Heidegger, Michel Foucault, Gilles Deleuze, Felix Guatari e Dante Galeffi. Assim, as noções, respectivamente, de antropofagia (no sentido de Oswald), acontecimento apropriativo e poesia (segundo Heidegger), estética da existência (Foucault), singularização subjetiva (Deleuze e Guatari) e vita poemática (Galeffi), foram utilizadas para elaborar o conceito de corpoema em seis campos da experiência humana, visando projetar um modo de vida corpoético centrado na expressão poético-performática de natureza artística e estendendo sua estética para o âmbito da existência de modo mais abrangente.

Figura 11: <em>Performance</em> antropofágica na UECE
Figura 11: Performance antropofágica na UECE
Figura 12: <em>Performance</em> antropofágica na UECE
Figura 12: Performance antropofágica na UECE

O primeiro campo abordado na tese refere-se ao campo de experimentação do espaço e discute as possibilidades de constituição de espaços existenciais configurados esteticamente para ambientar a expressão artística. Algumas experiências artísticas como as que foram realizadas na ecovila Terrauna, município de Liberdade, ou no Vale do Gamarra, município de Baependi, ambos em Minas Gerais, onde uma comunidade de artistas cria coletivamente um evento e um modo de vida. No primeiro caso, de forma tão sustentável que permanece há dez anos, com residências artísticas mensais. No segundo caso, de forma mais improvisada, durante uma semana de julho de 1998, num espaço singularmente configurado para a expressão artística e convivência sustentável. As performances ganharam nesses lugares uma inaudita força telúrica de intensificação expressiva.

O segundo campo de experimentação abordado é o da experiência corporal dos impulsos criadores que visam fazer do corpo uma obra de arte, âmbito essencial da estética corpoética. Aqui se propõe a poesia mais completa de um corpoeta que entoa seus versos em meio à dança de um corpo pintado com as cores do desejo de fazer da vida uma obra de arte. Compartilhei com o poeta França, de Olinda, um tal momento performático corpoético ao som de tambores ao redor da fogueira na noite de lua cheia de julho de 1997, num evento com mais de 200 pessoas de vários lugares do Brasil que ficou como referência estética para outras experimentações e criações como a que ocorreu em 2003, entre outras no CEP 20.000 no Teatro Sérgio Porto no Rio de Janeiro, com o grupo de percussão OPA! de Santa Tereza.

O terceiro campo refere-se à experiência política das relações de poder nas quais a estética da existência corpoética se volta para as possibilidades de criar práticas de liberdade para uma experiência artística coletiva mais autônoma, particularmente quanto à expressão poética em sua performance corporal coletiva. Uma prática de liberdade coletiva mantida de forma autogestionária durante dois anos foi o evento Sopa Caraíba que se constituiu em espaço de experimentação performática para uma grande parte dos poetas pernambucanos que se situavam à margem dos meios literários mais prestigiados, compondo uma outra cena, alternativa, com produção independente, no Bar Antropófago, em Recife, que clandestinamente criou um conceito de “bar de boca em boca” para sua condição de existência. Ele se manteve por menos tempo e em condições mais modestas que as do consagrado CEP 20.000.

O quarto campo da experiência humana em que se configura a formulação da estética da existência corpoética é o da experimentação dos afetos, no qual é elaborada uma compreensão da experiência afetiva voltada para a valorização ética dos afetos, paixões, desejos, impulsos que aumentam a potência vital, individual e coletiva, do corpoema. As muitas parcerias constituídas para realização de performances poéticas surgem como experiências singulares de agenciamento de uma afetividade vitalizante. Particularmente os afetos compartilhados com parceiros de criação com os quais a amizade se desenvolve, especialmente aquelas pessoas com quem se desenvolve uma ligação mais íntima por afinidade ou amor, quando a intensidade do vínculo potencializa a vitalidade das criações. Isso se manifesta hoje nas performances poéticas que faço com minha amada atriz e dançarina, a médica Lílian Carvalho, com quem me apresentei em diversos espaços culturais desde a rua aos mais esteticamente constituídos como a Praia dos Livros, no Porto da Barra, em Salvador.

O quinto campo de experimentação existencial aborda a expressão, sobretudo por meio de linguagens poéticas, nas quais o corpo é poetizado e esteticamente mobilizado para servir à expressão corpoética. A linguagem corpoética é expressão de uma poesia visceral, sutil e dramática, comovente e intuitiva, libertária e vitalizante como a que se mostrou nascendo dos corpos nas experimentações do grupo Corpoema no Espaço de Cultura Libertária, da Oficina Corpoema na UFRJ e na UERJ, na apresentação final do curso na componente Ação Artística do Bacharelado Interdisciplinar em Artes da UFBA e no Curso de Teatro Corpoema, projeto de extensão universitária da UNILAB, em Redenção, Ceará. Nelas, o corpo sangra palavras vivas de intensa expressão poética.

O sexto campo de experimentação corpoética é o da compreensão da existência, no sentido de interpretar os acontecimentos e elaborar uma possibilidade harmônica de lidar com o vir-a-ser da vida, com uma espécie de sabedoria intuitiva que permita a cada corpoema tornar-se capaz de dar sentido a sua existência.

Uma tal cartografia da corpoeticidade, além de descrever os espaços diferenciados que se abriram para as performances mais singulares, pode ainda trazer à tona a heterogeneidade estética das mesmas na perspectiva de uma elaboração da cartografia de performances corpoéticas em meio a espaços-tempos constituídos como heterotopias.


 

* Ivan Maia de Mello é poeta, letrista, ator, dançarino, diretor de teatro e professor de Filosofia da UNILAB (Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira). Doutor em Filosofia da Educação pela UFBA com a tese Autopoiesis do corpoema: a vida como obra de arte e mestre em Filosofia pela UERJ. Publicou ensaios filosóficos e poemas, sendo Azulírico sua mais recente publicação (2009). Nascido em Recife, mora atualmente em Fortaleza.

 

Referências

DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Tradução de Peter Pal Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 1997.

FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

______. Microfísica do poder. 8ª ed. Tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1989.

GUATTARI, Felix. Caosmose. Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Claudia Leão. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.

MELLO, Ivan Maia de. A autocriação de Zaratustra, como caminho crítico de criação do pensamento de Nietzsche. 2005.Dissertação de Mestrado em Filosofia – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2005.

______. Autopoiesis do corpoema: a vida como obra de arte. Tese de Doutorado em Educação. Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2012.

NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. 12ª ed.Tradução de Mário da Silva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

Rimas das ruas | Rôssi Alves Gonçalves*

Rua é o lugar de onde eu vim / e é de lá que eu conheço vários igual a mim….
(MC Allan Selva)

As ruas do Rio de Janeiro abrigam diariamente encontros que têm na rima a protagonista de um espetáculo que denomino de “feliz encontro de parnasianos e modernistas”. Esse encontro, a princípio conhecido como Rodas de Rima, atualmente denomina-se Rodas Culturais e faz parte do Circuito Carioca de Ritmo e Poesia. Rodas Culturais são reuniões de jovens artistas (cantores, MCs, grafiteiros, pichadores, fotógrafos, praticantes de malabares e outras artes) com o objetivo de ocupar o espaço público com arte e ativismo.

O Circuito Carioca de Ritmo e Poesia, conhecido como CCRP, é um projeto que consiste numa grande reunião de jovens, unidos pela ideia de ocupar lugares públicos e levar diretamente arte e cultura às pessoas de forma horizontal e interativa. Rodas Culturais acontecem semanalmente em diversos bairros do Rio de Janeiro, com a participação de poetas, músicos, grafiteiros, artistas plásticos, formando uma grande rede cultural, que interliga bairros distintos da cidade, como Bangu, São Cristóvão, Lapa, Vila Isabel, Botafogo, Méier, Jacarepaguá, Barra. O CCRP une pessoas de classes sociais e culturais diferentes, aproveitando-se de praças e ruas, proporcionando união e consumo sem a necessidade de gastos elevados (a entrada e participação são gratuitas e os produtos vendidos são comercializados quase ao valor de custo).

O mais interessante nesse movimento artístico público é o fazer poético que se realiza como um enorme sarau, em que o artista pode improvisar, declamar um texto originalmente composto para ser cantado, cantar, sozinho ou em dupla, com acompanhamento de instrumentos ou de beatbox. Mas há um investimento no movimento como uma teia cultural que receba, cada vez mais, contribuições de todas as expressões culturais, transformando essa poesia da rua em um movimento plural e que tem seus desdobramentos no rep e em outras sonoridades e formas artísticas. Ou seja, a rima foi o movimento iniciador. E através dela, formou-se um espaço cultural plural e fundamental para a cidade.

Figura 1: Roda Cultural de Botafogo
Figura 1: Roda Cultural de Botafogo

Este estudo considera a produção poética das Rodas Culturais e Batalhas de Rima como uma nova expressão poética – urbana e carioca. Para tal, ampara-se em dois críticos literários: Paul Zumthor e Antonio Candido.

Rodas Culturais e Batalhas de Rima – a realização de uma literatura urbana carioca

Rima é assim / um trabalho instável / além de ser convincente / também tem que ser impecável (Nissin).

Zumthor, em seus estudos de poesia oral, performance e recepção, reconhece como realização poética o produto dos transmissores orais que, mesmo sem o recurso da escrita – pressuposto, para alguns críticos, para que possa haver literatura–, devem ser inseridos na categoria de poetas. Verificando as distinções entre as duas formas literárias, a escrita e a oral – especificidades apontadas com esmero em seus estudos –, o teórico é assertivo na legitimação da poesia oral:

A noção de literariedade se aplica à poesia oral? O termo é indiferente: eu defendo a ideia de que existe um discurso marcado, socialmente reconhecível como tal, de modo imediato. A despeito de uma certa tendência atual, descarto o critério de qualidade, devido à sua grande imprecisão. É poesia, é Literatura, o que é público – leitores ou ouvintes – recebe como tal, percebendo uma intenção não exclusivamente pragmática: o poema, com efeito (ou de forma geral, o texto literário), é sentido como a maior manifestação particular, em um dado tempo e em dado lugar, de um amplo discurso constituindo globalmente um tropo dos discursos usuais proferidos no meio do grupo social (Zumthor, 2010, p. 39).

Ilustrando com maestria esse tipo de poesia está a produção das rimas das ruas do Rio de Janeiro, cuja forma mais comum de composição é o Freestyle em suas variações o improviso “desinteressado” e o apresentado nos duelos das Batalhas de Rima. Esse contexto de elaboração poética produz significativa diferença no resultado da rima (não se intenta aqui fazer um julgamento de valor!), sobretudo por ter finalidades distintas.

O freestyle “desinteressado” é a rima de improviso criada em situação de descontração, cujo objetivo é construir uma poesia da qual emane emoção e mensagem. Há normalmente uma narrativa, pois parte-se, comumente, de um tema “proposto” pelo primeiro a rimar (a exceção dá-se quando o rimador faz seu freestyle sozinho, podendo “passear” por vários temas) e, numa socialização e respeito à roda de rimadores, mantém-se o tema, desenvolvendo-o.

Essa rima é bastante devedora dos estímulos externos. Na ausência de um tema específico (ou mesmo sob a tutela desse), o rimador,  liberto para criar, pode construir sua poesia em torno de fatos do cotidiano, temas abstratos, situações em curso…

A rima criada por um MC em momento de batalha, embora se deseje emocionante e portadora de mensagem, nem sempre resulta nisso, dada a grande pressão que envolve o candidato, no momento da realização – curtíssimo tempo para elaboração da rima, tensão por participar de um duelo, expectativa da plateia, entre outros fatores. Esse tipo de rima, invariavelmente faz grande investimento no humor, mas sofre uma quebra; ou seja, é raro haver uma mensagem desenvolvida; os versos surgem soltos, muitas vezes descontextualizados. Entretanto, é essa rima que mais se eterniza, pelos vídeos, pelas repetições por parte do público, pelos posts nas redes sociais.

A poesia apresentada pelo movimento das Rodas Culturais e Batalhas de Rima tem a sua construção no momento de apresentação. Embora muitos MCs declarem haver sempre algumas estruturas – versos, palavras, combinações – pré-concebidas, ela é, no mais das vezes, criada, em sua totalidade, em tempo real, atravessada por estímulos externos, mas, sobretudo, produzida a partir do “sentimento”. Questionados sobre os recursos de composição, inúmeros MCs revelam que é fundamental ter “sentimento”. Apesar de conhecimento ser citado como um dos elementos essenciais, há uma tendência a atribuir à sensibilidade, ao dom, uma primazia sobre as demais técnicas propiciadoras da rima.

Os poetas de rua falam de sentimento como o poder da criação: a inspiração superior, uma espécie de contato com o divino, o que parece sugerir que criar rimas independe, de certa forma, da elaboração intelectual do MC. É comum o MC não recordar/compreender o que disse no improviso e buscar, depois, o entendimento daquela rima, o porquê do verso ter saído àquela forma – perfeita ou irregular. Buddy Poke, MC bastante conhecido e respeitado nas batalhas de rima nacionais, explica sua produção:

Produzir as rimas é algo muito diferente, algo muito mágico, muito fácil pra quem sabe e muito complicado pra quem está de fora. Dizem que pra saber rimar é preciso ler muitos livros, ler o dicionário, ter estudos em excesso etc. Eu digo que não é verdade: nunca gostei de ler livros e nunca fui muito chegado a dicionário. Rimas são mágicas, é necessário criatividade, principalmente em batalhas. A agilidade de pensar, a forma de expressar as rimas e o jeito de praticar não têm explicação; simplesmente fluem.
(Poke, 2013).

Tomando-se o que muitos autores da literatura escrita revelam sobre o processo de composição, causa certo estranhamento que um poeta saliente não haver esforço no “preparo” para a concepção, mas, sim, inspiração. Por essa inspiração constituir-se de elementos tão distintos da poesia escrita, por ela se inscrever dentro de outra lógica de produção, é comum que soe estranha aos teóricos e consumidores da poesia escrita e aos não iniciados na poesia oral. Essa é uma poética que requer, forçosamente, certa intimidade com o movimento das ruas e suficiente distância dos critérios de avaliação da Literatura escrita para melhor ser percebida.

Entretanto, dentro dessa “mágica”, desse algo “inexplicável”, existe a referência: as ruas constituem fundamental escola para essa produção. Acompanhar o movimento das rodas culturais e batalhas, ouvir rep e outros ritmos, atentar para o vocabulário dos MCs, retomar fragmentos memoráveis são alguns recursos que possibilitam rimas mais elaboradas, mais emocionantes. Ou seja, o “sentimento”, tão enaltecido por MCs, é formado por tradição, afetos, releituras. A produção da rima traz consigo outras rimas, outras temporalidades e espaços, construções fixadas na memória do MC. Não se pode falar de uma rima “pura”; a poesia das ruas é reinvenção.

E a recepção, pelo público, desse trabalho como poesia, pode ser mais bem compreendida considerando-se a performance como o meio agenciador da literariedade, já que o ato envolve locutor e ouvinte, numa combinação de dependência para a “realização” poética. Ou seja, há um poeta que só ganha existência, bem como sua arte, na medida em que o público o completa, porque assim o deseja. Atua o ouvinte como um coautor.

A componente fundamental da “recepção” é assim a ação do ouvinte, recriando, de acordo com seu próprio uso e suas próprias configurações interiores, o universo significante que lhe é transmitido (…) Poderíamos, sem paradoxo, distinguir assim, na pessoa do ouvinte, dois papéis: o de receptor e o de autor (Zumthor, 2010, p. 258).

Nas Rodas Culturais e Batalhas de Rima, a participação do público não se limita à assistência passiva. Através de gritos, como wow, braços levantados em homenagem ao artista, acompanhamento do canto – formando quase uma segunda voz –, sinais com os braços indicando que acabou a disputa, “fazendo barulho”, batendo palmas no ritmo da batida, entre outras intervenções que cedem material para as rimas (é comum o MC utilizar-se de elementos da vestimenta, de trejeitos da plateia), o público assina a sua participação na obra.

De outra forma, ainda que raro, algumas apresentações ocorrem praticamente sem sensibilizar o ouvinte que, mesmo incitado pelo locutor e/ou apresentador, pode silenciar. Ou seja, é preciso haver uma “pré-disposição” por parte da plateia para a realização da poesia. E essa “pré-disposição” deriva de uma certa simpatia pelo locutor, de um apreço por determinada rima, do percurso artístico do rimador, do território de origem do MC, da idade do poeta…

Assim, a vitória, no caso dos duelos de MCs, nem sempre cabe à melhor rima; ou seja, o conceito de melhor rima extrapola a perfeita coincidência de sons, a seleção vocabular, a organização sintática, a métrica etc. A melhor rima pode ser aquela que é proferida pelo mais querido, o recordista de vitórias, o “apadrinhado” por um MC “com moral” na cena, por outros recursos estilísticos que não constam no manual da poesia tradicional. Carregando essa “bagagem poética”, o MC pode se converter, repentinamente, em um dos mais representativos nomes do rep carioca.

Rua – o lugar da rima

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O teórico Paul Zumthor fala em uma “falsa reiterabilidade”, a respeito da poesia oral: “A obra transmitida na performance, desenrolada no espaço, escapa, de certa maneira, ao tempo. Enquanto oral, não é jamais reiterável: a função de nossa mídia é de suprir essa incapacidade” (Zumthor, 2010, p. 275). Mas nem mesmo a mais moderna forma de tecnologia é capaz de reproduzir, minimamente que seja, a grandeza da apresentação da poesia oral, seja ela nas Rodas Culturais ou nas Batalhas de Rima.

O verso emitido em parceria com a euforia do público, a expectativa do ouvinte, o momento de tensão (caso das batalhas) ou a descontração de um 4×4 (cada rimador apresenta quatro versos e, assim, a rima vai rodando) ganha uma dimensão e um valor que, deslocados daquele contexto da rua não são mensuráveis. Um verso transcrito ou mesmo “revivido” pelo vídeo não carrega a poeticidade/ironia/graça que possui no instante da sua recitação:

Cleo:
Essa é a realidade / Eu posso ser solteira / mas ter um relacionamento de verdade / sem falsidade, sem pilantragem, sem trairagem.
Henrique:
Sem trairagem, não pode traição / porque o encontro de duas almas não é à toa não / é amor pela flor / o amor de todo compositor.

Por mais “completa” que seja a “reconstrução” do momento, caso dos inúmeros vídeos das rimas, essa arte poética oral não se deixa capturar pelas lentes e papéis. A imagem, a letra reproduzida, em sua quase totalidade, não contêm o poder de encantamento do instante de verbalização da poesia, ali, na rua. Altera-se o suporte e a rima se “perde”.

Experimentei esta situação quando iniciei a transcrição dos versos para ilustrar minha pesquisa. Não compreendia o motivo de aquela rima selecionada – e essa seleção envolvia a qualidade, beleza, repercussão –, no papel, parecer-me tão comum, vulgar. Vivi um estranhamento às avessas. Não aquele de que nos fala o protetor do cânone, Bloom – “um tipo de originalidade que ou não pode ser assimilada ou nos assimila de tal modo que deixamos de vê-la como estranha” (Bloom, 1995, p. 12). Mas uma surpresa desagradável e não “misteriosa”.

Fria, desritmada, fácil, previsível – assim a rima se nos apresenta fora das ruas, das festas em que é criada. Não supõe o ouvinte (leitor) distante as aflições, agressões, o ar debochado, descolado, os risos, as delícias, os beats surpreendentes, enfim, os tantos sentimentos que rimador e plateia experimentam ao vivo e que irrompem na poesia. Solta no papel ou (menos) no vídeo, a rima parece pouco comover ou absorver o ouvinte. Talvez ela só exista na rua. Este, sim, o único palco onde a produção poética, por mais vulgar que seja, seduz o ouvinte: “Sabe por que tu não rima nada? / O cara trocou a batida e tu não trocou a porra da levada” (Allan Benevenutto). Wow!! É festa na plateia!!

Ainda que a transcrição esforce-se por trazer à luz toda a performance – e aí se incluem luz, espaço, música, olhares, trejeitos, sons externos, risos, pausas, malemolência –, tal tarefa é complexa e dificilmente cumprirá, minimamente que seja, os efeitos da sua realização no palco. E destituída da performance, a poesia fica, então, incompleta, desalinhada.

As inúmeras tentativas que as redes sociais criam, reproduzindo as rimas, a fim de eternizar os encontros ou mesmo formar públicos para estes eventos são, frequentemente, um meio de aquela plateia que lá esteve presente verbalizar os sentimentos vividos na ocasião da produção da rima.  Não são, comumente, a forma eficaz de formar públicos. Só a presença aos eventos e a coparticipação dividem, com o rimador, a grandeza do teor poético da rima.

Quando parnasianos e modernistas se encontram

As Rodas Culturais cariocas recebem, em média, um público de 300 pessoas, por noite; número que se eleva, consideravelmente, quando há nomes famosos da cena rep alternativa participando. Como não há palco – as apresentações de todas as atividades acontecem em meio ao público, sem nivelamento (no máximo, o uso do microfone concede ao portador uma aura diferenciada, artística) –, os lugares do poeta e do público se confundem, amalgamam-se, desconstruindo uma certa hierarquia entre o criador e o seu ouvinte.

Isso radicaliza a questão discutida por Zumthor sobre a coautoria do público, porque o mesmo, por ora, pode utilizar-se do mic, atravessar o “palco”, protagonizar a cena, tão ou mais intensamente que o próprio artista ali se apresentando. Ou pode, ainda, numa cena bastante comum na arte de rua, ocupar o palco, a convite do artista ou espontaneamente.

Figura 2: Público da Batalha do Real, Lapa
Figura 2: Público da Batalha do Real, Lapa

Como as Rodas Culturais ocorrem diariamente e possuem um público diversificado e fiel, e ainda incentivam uma enorme poética, através de freestyle, rodas de rima e batalhas de rima, este trabalho aponta esse movimento como uma criativa manifestação literária carioca urbana. Ou seja, uma tendência dentro das inúmeras possibilidades do fazer literário atuais que se destaca pela  irreverência e atenção aos movimentos da sociedade: “Indignação ao ver esta sociedade / que é zero de compaixão / que é zero de humildade / onde se vê pouco respeito / e tá cheio de covarde / que tem muito preconceito / pra tão pouca igualdade” ( MC CT).

Antonio Candido, em “A literatura na evolução de uma comunidade”, diz que: “Se não existe literatura paulista, gaúcha ou pernambucana, há sem dúvida uma literatura brasileira manifestando-se de modo diferente nos Estados.” (Candido, 2006, p.147). E as Rodas Culturais cariocas são, há alguns anos, o lugar especial de produção de uma literatura carioca e urbana.

Segundo Candido (2006), para haver literatura, é necessário uma congregação; grupo formal com afinidades; um estilo; um sistema de valores que delineie a produção; ressonância e herança. As Rodas Culturais cariocas, à exceção desse último aspecto – obviamente não se pode falar em herança no sentido proposto por Candido, dado o recente surgimento do circuito que, nesse formato de Roda Cultural, existe há cerca de três anos – apresentam os demais elementos formadores de uma expressão literária.

Essas rodas e batalhas realizam-se semanalmente e têm, em cada edição, a realização da poesia, em tempo real ou a promoção de uma rima elaborada anteriormente. E a rima comparece ligada à preocupação social – com a ocupação do espaço público de forma democrática, o acesso à arte por todos, a participação indistinta dos artistas, a exposição de livros, a solidariedade, a campanha de arrecadação de alimentos e roupas, entre tantos outros projetos defendidos pela arte de rua. E esse é um aspecto singular que não se pode desconsiderar na proposta deste movimento como expressão literária urbana carioca. Ocorre, portanto, um antes impensável encontro de parnasianos e modernistas, nas ruas do Rio de Janeiro.

Figura 3: Feira de livros da Roda Cultural do Engenho do Mato
Figura 3: Feira de livros da Roda Cultural do Engenho do Mato

A primeira década do século XXI foi especialmente prolífica para a Literatura de periferia, em São Paulo – hoje, com reconhecimento e lugar na história da Literatura Brasileira. Da cena literária de periferia no Rio, na mesma época, não se tem notícia, tendo despertado, ano passado, com a FLUPP – a Festa Literária das Periferias. No entanto, pode-se afirmar que esse silêncio não existia na literatura urbana carioca que, no início da década passada, já gritava seus versos pelas ruas. O registro, podemos encontrar no youtube, nas redes sociais, na memória afetiva dos jovens que ocupam as praças com atitude, sons, cores e rimas: “MC que é MC rima em qualquer tema / qualquer esquema, qualquer esquina vira cena de cinema / se destaca pelo que pensa, reconhece a recompensa / alcança as grandes mídias sem assessoria de imprensa” (Nissin).


* Rôssi Alves Gonçalves é professora do Programa de Pós-Graduação em Cultura e Territorialidades e do Curso de Produção Cultural – UFF. Pós-Doutoranda no PACC/UFRJ, onde desenvolve a pesquisa: “Poesia e ocupação do espaço público – um estudo do Circuito Carioca de Ritmo e Poesia”, com bolsa da FAPERJ.

Referências

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Saraus de poesía: una geografía afectiva de la periferia de la ciudad de San Pablo | Lucía Tennina*

La Ciudad de San Pablo es la mayor ciudad de Brasil. Está dividida en 31 subprefecturas, una división territorial administrativa oficial que establece un “centro” que funciona como punto de referencia para los índices de riqueza, alfabetización, educación, violencia y nivel de vida, que suelen tener porcentajes más ideales que las regiones que están a una mayor distancia de ahí. La enormidad de la ciudad y las dificultades en relación con la movilidad marcan aún más la diferencia entre esa región y los barrios aledaños. De todos modos, la “periferia” de la Ciudad de San Pablo no se amedrenta ante las distancias inmensas geográficas y porcentuales ni ante la deficiencia de un transporte público que suma la limitación horaria de circulación a un diagrama monocéntrico, de pocos recorridas transversales entre barrios periféricos. La “periferia” de San Pablo viene conformando desde el año 2001 un nuevo mapa que toma como puntos de referencia espacios literarios llamados saraus de poesia, desde donde se articula un autodenominado Movimiento de Literatura Marginal que se manifiesta también con cursos, publicaciones, conferencias y mesas debate. Se trata, para definirlos en pocas palabras, de reuniones en bares de diferentes barrios de las regiones suburbanas de San Pablo donde se declaman o leen textos propios o ajenos frente a un micrófono durante dos horas. Hay más de veinte saraus y el número sigue creciendo año a año. Estos espacios poéticos conforman un circuito y una red de frecuentadores que, sin detenerse en las dificultades de movilidad ni las controversias climáticas de la “terra da garoa” (como se conoce dicha ciudad debido a las constantes lluvias), andan de barrio en barrio siguiendo el cronograma de saraus da periferia que completan la agenda de la semana casi todos los días[1]. Esta nueva cartografía no solamente está trazada por los frecuentadores, sino también por los libros que los saraus van lanzando en forma de compilaciones o de autores individuales. Tanto unos como otros circulan por la “periferia” de San Pablo teniendo como referencias los saraus. Con en esa nueva manipulación del espacio van resignificándose, además del mapa, los estigmas que hacen a los relatos del terror que alimentan la retórica de la seguridad de los medios de comunicación.

Una constante en el paisaje de los barrios alejados del centro son los bares, espacios intermedios entre el trabajo y la casa, donde suelen ocurrir los actos que se vuelven estadísticas asociadas a la “periferia”: el alcoholismo y los asesinatos. Lugares, también, en los que se ejerce la dominación desde las prácticas mínimas, o, en otras palabras, donde se articula la microfísica del poder al mantener la estructura machista (generalmente son hombres los que van a beber a los bares) y de resignación ante la rutina y las dificultades diarias, canalizadas con el alcohol. En los bares de la “periferia”, que pueden entenderse como un dispositivo de dominación, es donde se empezaron a organizar los saraus. “El único espacio público que el Estado nos dio fue el bar. De pronto los bares se llenaron también de mujeres, niños y poetas. Se imaginaron que íbamos a terminar bebiendo cachaça y transformamos los bares en centros culturales, así que se jodieron, ya no tienen forma de controlarnos, porque lo que no falta son bares en la periferia”, dice Sérgio Váz, el organizador del Sarau da Cooperifa, el más reconocido entre los saraus da periferia por ser el primero de dichos encuentros poéticos en bares que en el 2001 impuso el nombre de tradición letrada sarau[2] y muchas de las fórmulas que hoy en día todos repiten – como el silencio durante las declamaciones y los fuertes aplausos al final de cada una de ellas, independientemente del “gusto” personal[3].

En este mundo de la literatura periférica, la periferia no funciona como una porción de tierra, no es una extensión. Tampoco se entiende desde los criterios dominantes de una estructura de posiciones dada entre “centro” y “periferia”, que localiza a esta última como clase desplazada. La periferia desde ese universo está vinculada a un valor afectivo sostenido a partir de la idea de una experiencia compartida ligada por la solidaridad, el sacrificio y la fuerza. Y es en el sarau donde se ponen en práctica y se exhiben los elementos que hacen a tales valores. Así, ser de la periferia se vuelve también un capital de naturaleza simbólica que reúne saberes vinculados a dichas vivencias compartidas en ese espacio, es decir deja de ser definido desde la negatividad (la periferia no es, no tiene, no hay, etc.) y adquiere una definición positiva (la periferia es, tiene, hay, etc).

Texto y cuerpo

La mayor parte de los textos que se escuchan en los saraus tienen como temática la realidad de las periferias, que se incluye en una operación de estetización y gana otro significado, diferente al de los relatos oficiales y mediáticos.

Dice, por ejemplo, el poema “Periferia é um exército” de Zinho Trindade:

Então avante / Somos todos um / Sem general ou comandante / Já nascemos em trincheiras / E sempre prontos para a guerra / Somos quase todo o planeta terra // Uma grande família / Uma grande nação / Derrubando o opressor / Sem fé e religião / Na contramão do sistema / Que quer copiar / A lei agora é favela / E você e não vem imitar// Coloca na rádio / Filme, novela, televisão / A armadilha já tá pronta / Ninguém segura o povão // Já recebi instrução, coquetel tá na mão / Até colhi o grão, cumprindo a missão // Se não fosse por nóis / Ninguém comia / Se não fosse por nóis / Ceis não sorria // Aproveita enquanto é tempo / Que a periferia tá a milhão / Agora a burguesia quer ser gueto / E tá no padrão // Quer ser favela então vou te ensinar / Primeira coisa é ser por no seu lugar / Segundo passo é saber respeitar / Mas o terceiro eu não vou te contar / Pois de nada vai adiantar.
(Trindade, 2010, p. 70)

En este poema de Zinho Trindade se puede percibir la consideración del ser de la favela como un bien preciado, como un capital que no puede ser aprendido ni imitado por quien no forma parte de un nosotros marcado por una experiencia común. Es esa voz plural, articulada aquí desde un yo lírico que representa al conjunto, la única que se presenta como legítima para hablar sobre ese espacio. Frente a la espectacularización de la pobreza en los medios de comunicación, la voz autorizada del yo plural del poeta periférico.

Ahora bien, la resignificación de la noción de periferia que se escucha en los textos declamados en los saraus no solo se centra en el espacio “favela” en términos generales, sino que también considera los elementos y detalles que la componen. Uno de los focos centrales de resignificación son los borrachos y el espacio mismo del bar, alrededor de los cuales se construyen relatos que los estetizan, desligándolos del estigma de las estadísticas de muerte y alcoholismo. En este sentido, vale citar el poema “Sarau”, de Hûguera.

Entre sons de copos e goles de cervejas, O Poeta fecha a conta do poema arrastado, que trouxera preparado de casa:
…regozijai-vos amantes da lua,
regozijai-vos nessa hora que se completa
pois, amanhá, a morte é certa!
Parecendo muito ofendido com o que acabara de ouvir, O Bêbado, que já estava com um dos pés para fora do bar, torna a entrar e grita, para que todos ali o ouvissem:
– Pois, eu acho a morte erradísima!
E vai embora, deixando as palmas ecoando pelo bar.
(Hûguera)

Figura 1: Poema de Huguêra
Figura 1: Poema de Huguêra

El “Bêbado” no aparece aquí como un intruso que interrumpe el fluir del ritual poético, sino que está efectivamente incorporado en el espacio sarau y el elemento que lo hace formar parte es el aplauso de los que estaban escuchando. Las mayúsculas que el escritor eligió para nombrar tanto al poeta como al borracho evidencian la posición de “personajes” de este sarau que ambos sujetos alcanzan por igual, es decir, colocan en un mismo nivel de importancia a los dos sujetos. Ahora bien, las itálicas elegidas para las palabras del “Poeta” y la ausencia de ellas en las del “Bêbado” parecen colocarlos en un diferente horizonte de realidad: mientras que el primero de ellos presenta su palabra estilizada y cargada de un aura ficcional, el segundo parece imponerse de forma cruda y real, viene a funcionar como la figura del doble que impacta en el equilibrio del poeta. El “Bêbado” adquiere un valor en tanto contraste real de lo que dice el poeta, y en esa valoración, se vuelve un bien periférico relevante. El cuerpo enfermo del alcohólico en el espacio del sarau se vuelve un cuerpo culturalizado y por esto mismo pasa a formar parte del mismo. Como señala Michel Yakini, poeta y organizador del sarau “Elo da corrente”:

Como é que a gente pode fazer para integrar um cara que ele tá alcoolizado, mas ele tem necessidade de falar e ele quer ir lá no microfone porque ele percebeu que aquilo é um espaço que é ‘a fala’. E, é um cara que ele está truncado, o corpo dele está, ele passou dificuldade no trabalho. Ele tá mal com a família e ele tá indo no bar pra poder simplesmente descarregar aquilo. Quando ele vê um microfone, ele toma coragem. Então, é um exercício (…) porque a gente a gente faz arte, mas faz uma arte que tem intenções, intenções de re-encantar as pessoas. De re-encantar a nós mesmos. Intenção com que as pessoas se reconheçam como uma cultura valorosa. Reconheçam que tem cultura dentro do seu espaço porque as pessoas ainda trabalham, no senso comum, que não existe cultura aonde se tem um meio popular. Que a cultura é o lance acadêmico, intelectual? Não! Cultura é onde se tem vida, onde tem vida tem cultura, então a gente tem um meio cultural também e reconhece as diversidades dentro dela também. É periferia (…) Essa periferia toda aí. Tá ali trocando. E há uma coisa que a gente acredita que é: quanto mais isso aflorar, quanto mais a diversidade aflorar, vai ser mais tenso. Não vai ser mais ameno. Não vai ser mais harmônico. (…) O dinamismo, ele vai trazer conflitos. Isso é importante (Yakini, 2010).

La culturalización de los borrachos, de acuerdo con lo que se puede leer en las palabras de Yakini, no significa que se los vuelva un objeto cultual ni que se los se consideran como un personaje decorativo, sino que forman parte de la dinámica de los saraus a partir de la tensión que acarrea su presencia, es desde el conflicto que pasan a formar parte del mismo. De hecho, es así como se plantea su presencia en el poema de Hûguera anteriormente citado.

La voz y la letra

Como podemos notar a partir del poema “Sarau”, de Hûguera, la poesía marginal periférica que se escucha en los sarau adquiere una forma específica en el papel. En este sentido, cabe considerar que los saraus no son solamente espacios de declamación, sino que impactan también en la escritura. Existe de hecho una conciencia sobre la diferencia de estos dos discursos. En otras palabras, la declamación no funciona en los sarau da periferia como una forma de expresión instintiva y única, sino que es una opción que se piensa como un capital simbólico con valor propio, diferente del valor de la escritura, que también se practica.

No es solamente la voz el único modo de expresión en los espacios del sarau, sino que se establecen negociaciones y vínculos – medidos y controlados – con la tradición letrada[4]. De todos modos, el eje desde el cual se estructura la poesía periférica en los saraus son las declamaciones. “O sarau é o coração creativo do movimento”, dice Allan da Rosa, dando a entender que ahí se gestan y se mantienen vivos los textos. La declamación pasa a ser, así, una elección para la expresión estética y política que implica un trabajo específico y especializado, diferente al de la escritura.

Figura 2: Cartaz na porta do Bar do Binho e Biblioteca do Sarau
Figura 2: Cartaz na porta do Bar do Binho e Biblioteca do Sarau

La declamación se encuentra cargada de una altísima valoración y resulta ser una de las mejores armas para conseguir comenzar a vencer las dificultades y una de las principales armas es el acceso a la escritura a partir de las declamaciones y la participación en los saraus. El estereotipo del letrado que considera al estudio como la palanca privilegiada para conquistar el ascenso social ya no se encuentra en los libros sino en el establecimiento de otro tipo de valor con la palabra. Muchos de los frecuentadores de esos espacios da periferia pasaron, efectivamente,  de la declamación a la publicación de libros. A su vez, algunos de los saraus en los últimos tiempos comenzaron a funcionar también como grupos que organizan cursos y seminarios en las bibliotecas del barrio o en espacios improvisados para la ocasión. Y es común escuchar a muchos poetas de los saraus señalar a dichos espacios como su “academia”, el espacio que les permitió tener acceso a la lectura – a la cultura escrita – y muchas veces hasta los impulsó a continuar sus estudios. “A Cooperifa é minha Academia Brasileira de Letras”, dice Rodrigo Ciríaco, organizador hoy en día del Sarau dos Mesquiteiros y autor del libro lanzado en el 2007 bajo las Edições Toró[5], titulado Te pego lá fora. Este tipo de afirmaciones evidencian que los saraus no se proponen como espacios que quieren situarse fuera del proyecto moderno y proponer alternativas radicales, sino que pretenden proponen representaciones y prácticas menos jerárquicas y materialmente más justas y en este sentido es que se piensan en su conjunto como un Movimiento.

Movimiento social y literario

Figura 3: Poeta declamando no Sarau da Brasa (Bar do Carlita)
Figura 3: Poeta declamando no Sarau da Brasa (Bar do Carlita)

Varios son los saraus de la periferia y cada uno de ellos tiene sus propios nombres y se piensan y entienden como singularidades. Sin embargo, hay una acción en común, hay un proyecto. Los saraus funcionan como una de las prácticas más importantes del Movimiento de Literatura Marginal, en tanto, a partir de la frecuencia y de la estructura variadamente repetida, afianzan los lazos y el sentido de pertenencia. El Movimiento de Literatura Marginal se articula, así, como un “movimiento social” que al tiempo que afianza su identidad y define a su enemigo, apunta a cambios en relación con el modo de vida de una identidad desvalorizada socialmente.

Es importante señalar, por otro lado, que el campo de acción de estos espacios no se centra únicamente en preocupaciones sociales. El mundo en el que este grupo de escritores se autoagencia es el de la “literatura”, por lo que hay una intención de posicionamiento en dicho campo. El espacio literario también se propone como arena de disputa en relación con este Movimiento. Señala al respecto Vagner, uno de los organizadores del Sarau Poesia na Brasa:

“Não todos os escritores. Acho que depende do lugar de onde você está falando. Agora, assim, eu acho que ao mesmo tempo, assim, a gente vê a coisa toda como um movimento. Quando a gente fala de Sarau da Brasa, Elo da Corrente, Cooperifa, Binho, Sarau da Ademar e outros aí, a gente enxerga essa coisa como um movimento…que no fundo, no fundo, quase todos tem o mesmo discurso, assim,  de…no sentido de usar a palavra como instrumento de transformação. Então, eu enxergo essa coisa como um movimento social e um movimento literário no sentido que o estilo de escrever é muito parecido, também, né? Aí, o pessoal fala assim: “Porra! Mas literatura é tudo literatura!” mas eu falo: “Porra! Mas também teve várias correntes dentro da literatura brasileira!”. Então eu acho que a gente também é uma corrente dentro da literatura brasileira, que se permite falar gírias, variação linguística várias, né? Então eu acho que é um movimento sim… e aí, por exemplo assim, por exemplo, no contexto de Carolina Maria de Jesus… estava ela escrevendo, né? Não tinha um ‘grupão’ junto com ela, na mesma linha. E eu acho que, hoje em dia, a gente consegue ter um grupo que escreve, não igual, mas tem semelhanças na escrita, e, nesse sentido, acho que é um movimento tanto social e um movimento literário, também. Por que não?” (Vagner, 2010).

Figura 4: Poeta declamando no Sarau da Brasa
Figura 4: Poeta declamando no Sarau da Brasa

La afirmación de Vagner permite ampliar la noción de “movimiento”: no se trata solamente de un Movimiento Social, sino que se autodefine, asimismo, como un Movimiento Literario. Hay una intención de reconocer su lugar en la literatura brasileña a partir del trabajo con una lengua propia y una genealogía particular, que refuerza y legitima esa literatura en el tiempo. Ese “¿por que no?” que cierra la afirmación de Vagner, en el que resuena la canción “Alegria alegria” de Caetano Veloso, evidencia, la arbitrariedad de los límites del campo literario: ¿cuál es la frontera que establece qué es literatura y qué no?

De lo que se trata en el Movimiento Literario y el Movimiento Social, en definitiva, es de modificar el mapa, ese mapa de la periferia en tanto lugar apartado y el mapa del campo literario brasileño como cerrado a la trayectoria letrada. En palabras de Marcelino Freire (escritor ya consagrado con el premio Jabuti[6] y “aliado” al Movimiento): “El artista, el gran artista, el artista inquieto, ese que quiere modificar alguna cosa, interfiere en la geografía de las cosas” (Alves, 2010).


* Lucía Tennina é doutoranda em Letras, mestre em Antropologia Social e professora de Literatura Brasileira e Portuguesa na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires, Buenos Aires, Argentina. Pesquisadora Associada ao Programa Avançado em Cultura Contemporânea da UFRJ. E-mail: luciatennina@gmail.com

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VAGNER. En entrevista con Lucía Tennina, octubre, 2010.

YAKINI, Michel. En entrevista con Lucía Tennina, noviembre, 2010.

Notas

[1] Los lunes, por ejemplo, está intermitentemente el “Sarau do Binho” (en Campo Limpo, Zona Sur), los martes el “Sarau Suburbano Convicto” (en Bixiga, Centro), los miércoles el “Sarau da Cooperifa” (en Pirapoirinha, Zona Sur), los jueves el “Sarau Elo da Corrente” (en Pirituba, Zona Este), los sábados el  “Sarau Poesia na Brasa” (en Brasilândia, Zona Norte), los domingos el “Sarau do Ademar” (Ademar, Zona Sudeste) –esta enumeración peca de la falta de muchos nombres de saraus, pretende tan solo ejemplificar la existencia de saraus todos los días de la semana.

[2] Existían antes del 2001 encuentros vinculados a la literatura. “Noites da vela”, por ejemplo, era un encuentro para declamar poesías en el bar de Binho, donde hoy se realiza todos los lunes el Sarau do Binho, comandado por Binho Padial. Si bien la declamación era el centro, este tipo de encuentro aún no sostenía el orden ritualizado que a partir de Cooperifa se impuso, con un día y un horario fijos. Dichos encuentros previos tampoco se relacionaban al nombre “sarau”.

[3] Cfr. Tennina, 2013.

[4] Un ejemplo de la vinculación con la tradición letrada es la presencia de las bibliotecas en los saraus: todos los bares donde se realizan “saraus” hay una biblioteca de seis  a diez estantes llenos de libros.

[5] Edições Toró es una colectivo ideado por Allan da Rosa y Mateus Subverso, nacido en 2005 “en el patio trasero de una casilla del Municipio de Taboão da Serra”, según cuentan los mismos editores. La propuesta de la editorial es afirmar y publicar una literatura que se articula más allá de la palabra escrita, por lo que publican libros de poetas que suelen declamar en saraus da periferia de San Pablo o de escritores vinculados al RAP. Cada una de las publicaciones, a través de una caligrafía específica para cada libro, de dibujos y diseños, de tapas conceptuales, de uso de colores en algunos casos, pretende evocar el cuerpo, la voz, la boca, la mirada que hace a esa literatura. Hasta el momento Edições Toró lanzó veinte libros. La Editorial desde hace cuatro años abrió, asimismo, un espacio de arte-educación, que se ocupa de organizar cursos y seminarios vinculados a la cuestión afro-brasileña.

[6] Junto con el premio Machado de Assis, el premio Jabuti es uno de los prêmios literarios más importantes de Brasil.

Rumo a 2022: apontamentos sobre alguma poesia, brasileira, contemporânea | Alexandre Faria*

Falação

Contra o artista serviçal escravo da vaidade (…) A arte que liberta não pode vir da mão que escraviza (Vaz, 2011, p. 51).

É à fala que nos referimos, por ela nos pautamos ao criar métodos de aproximação da poesia que vem falando, nos últimos 10 anos, das periferias urbanas brasileira (a preposição, aqui, é ambígua e demarca simultaneamente assunto e origem). Conceber poesia a partir da longa tradição ocidental e escrita e apor ao termo o gentílico brasileira são estratégias de pensamento que desconsideram que a sociedade desse país se organiza a partir de complexas raízes da escravidão, do racismo e do analfabetismo. Caetano Veloso, numa famosa canção alardeava: “deixem os portugais morrerem à míngua / minha pátria é minha língua / Fala Mangueira”. Mais à frente, na mesma canção (“Língua”, do disco Velô, de 1986), concluirá: “A língua é minha pátria e eu não tenho pátria, tenho mátria e quero frátria”.

Caetano Veloso fala de uma mesma frátria órfã (Khel, 2003), que vai se afirmando no canto-falado de manos e minas. Um desses manos, Dugueto Shabazz (ou Ridson Dugueto), diferentemente do “latim em pó” do baiano, falará de um “latim afrofavelizado” (Ferréz, 2005, p. 83). As afirmações de identidades culturais contemporâneas, especialmente as de minorias étnica, social e economicamente discriminadas, tensionam as afirmações de uma identidade nacional monolítica, ainda que pautada pela diversidade. Menos que a unidade macunaímica, o que a fala de Dugueto Shabazz demarca é a diferença. A vontade de ser diferente. É como se, glosando a canção de Veloso, o poeta da favela perguntasse como pode Mangueira falar, se o lema é tão pessoal, luso pessoano e nacionalista – minha pátria é minha língua? E concluísse: “mas minha língua não é essa, a do colonizador. Cansei de ser mulato sabido!”

Lembrar o mulato sabido, de Oswald de Andrade, é mais do que oportuno numa época em que as ações afirmativas e/ou reparadoras parecem propiciar a democratização do ensino superior. Evoé jovens cotistas! Mas cuidado com o mulato sabido. E é o próprio poeta modernista quem indica que essa sapiência mulata talvez fosse (falo como se ela já tivesse acabado) herança do próprio colonizador: “Mulatos são os próprios portugueses, desde logo atingidos no seu surto descobridor pelas vitaminas da mestiçagem (…) E só quando, levado pelo absolutismo, deu de ser paradoxalmente um povo racista, eliminando de seu corpo civil o judeu, perdia a substância hegemônica que o fazia liderar três continentes” (Andrade, 1991, p. 186). Esse fragmento está num discurso, feito em Piracicaba, em 1945, intitulado “A lição da Inconfidência”. Vale a pena conferir mais um pouco:

A lição do terror que ela [a Inconfidência] encerra, a lição do atraso de um século que estagnou a ascensão de nosso povo. Qualquer estouvamento idealista, qualquer sofreguidão sectária, qualquer provocação, por bem intencionada que seja, pode bulir com o sarcófago recente da ditadura e acordar seus gênios protetores. Não nos esqueçamos da vocação absolutista que persegue nosso destino. Ela pode, de novo, nos jogar nas catacumbas políticas, onde tantos mártires do nosso progresso social deixaram seus dias heróicos ou perderam suas vidas necessárias (Andrade, 1991, p. 190).

Desnecessário é dizer que era outra a ditadura a que Oswald se referia. Em se tratando de atestar traços do conservadorismo da sociedade, através do estudo da recente poesia brasileira, evitando os exemplos típicos da violência do Estado contra as classes subalternas, ou a referência ao sucesso de filmes como Tropa de elite ou Cidade de Deus, nada melhor que relembrar o episódio da demissão do poeta e professor (nova profissão que os subalternos vão assumindo face aos processos de democratização do ensino superior citados acima) de português Oswaldo Martins em função do conteúdo de seus poemas. Recorro a artigo de Luiz Costa Lima, publicado na Folha de São Paulo, quando do ocorrido:

Um professor de português que tem a má sorte de ser também um poeta e ensina(va) em um colégio secundário particular da zona sul, por ter publicado, no seu blog, um conjunto de poemas eróticos, é sumária e discretamente demitido.

A medida foi tomada pela instituição ante a reclamação de pais de alunos, que acharam que escrever poemas eróticos não é tarefa para um professor de seus filhos. Não chamo nem sequer a atenção para o fato de que tal colégio foi fundado com uma plataforma liberal, que, ao ir crescendo, etc. etc.

Pergunto-me, sim: que defesa tem um poeta que, para sobreviver, precisa dar aulas de português, caso sinta a necessidade de escrever poemas eróticos? Não adianta atentar para a cegueira desses pais ou para a covardia hipócrita de tal direção. A questão concreta é como pode alguém, no caso o poeta-professor, defender-se ante uma decisão arbitrária que interfere em sua sobrevivência material?

Não acentuo nem sequer a discrepância entre os princípios de uma sociedade que se diz liberal, recém-saída de uma ditadura, e uma medida assim absurda. Acentuo, sim, que o marginal ao noticiário midiático revela o aspecto autoritário que, como sombra perversa, permanece entranhado na sociedade brasileira (Lima, 2008).

Parece evidente que Oswald de Andrade e Luiz Costa Lima referem-se à mesma vocação da sociedade brasileira para o autoritarismo. Vocação de um Estado que se institui de cima para baixo, da elite para o povo, da escrita para a fala. A literatura das favelas, por mais que se faça circular em livros, difunde-se em saraus cada vez mais frequentes e frequentados nas periferias brasileiras, mantém também íntima relação com a oralidade do Rap. Nesse sentido, é uma forma de resistência e, ao mesmo tempo, de transformação. Resiste, afirmando seu lugar de diferença e transforma, reivindicando a urgente revisão dos valores e dos lugares pelos quais a literatura circula na cidade contemporânea. Num título de uma coletânea de contos, Ferréz (escritor também recentemente vitimado pela intolerância dos que estão ao lado da lei e do capital) lembra que Ninguém é inocente em São Paulo. Esse título, e o conteúdo dos contos do volume parecem afirmar que aquele famoso bestializado, objeto de estudo de José Murilo de Carvalho, tende à extinção.

Figura 1: O poeta e professor de português Oswaldo Martins (foto: Vanderlea Santiago)
Figura 1: O poeta e professor de português Oswaldo Martins (foto: Vanderlea Santiago)

As reflexões que desenvolveremos neste ensaio tentam articular as questões aqui alinhavadas e propor uma compreensão de certa poesia contemporânea produzida nas e sobre as favelas, construída a partir da e sobre a experiência de ter-se nascido e criado nas periferias urbanas do país, e que reflete fortemente a consciência que o termo neosenzala representa bem. Tentamos não cair na primeira armadilha que é discutir infrutiferamente a aplicabilidade do termo marginal a essa produção, embora reconheçamos que os próprios autores o defendam e desejem atuar a partir de uma noção de movimento, cuja validade ou pertinência ainda tem que ser investigada. A análise também não pretenderá aprofundar a compreensão de algum autor ou obra específicos, mas tentará instrumentalizar a abordagem visando à compreensão do objeto não apenas na dinâmica sociocultural, mas nos deslocamentos éticos e estéticos que os textos promovem no próprio sentido de Literatura. Para isso elegemos alguns poemas de Sérgio Vaz, publicados em seu livro Colecionador de pedras (2007). Em outras palavras, recusamos que a abordagem de qualquer corpus recortado desse local de enunciação seja compreendida com eufemismos como discurso, expressão, práticas etc. Ou seja, ou a academia acolhe essa produção como Literatura e Poesia ou continuará a catequese dos mulatos sabidos.

Para cumprir esse objetivo, desmembramos a reflexão em três movimentos, o primeiro, que pensa esse lugar de enunciação face à tradição modernista brasileira; o segundo que se propõe a pensar a poesia das periferias em função de distintas instâncias de recepção contemporâneas; finalmente, num terceiro momento, num poema intitulado “Antiode aos inocentes do Leblon”, pretendemos deslocar a reflexão para a ordem do sensível e provocar os limites do local de enunciação do próprio discurso acadêmico. Em função da primeira articulação, elegemos Oswald de Andrade, como marca dessa tradição. É nesse sentido que Sérgio Vaz, por exemplo, propõe uma antropofagia periférica, ou uma tropicália periférica, em oposição a um cânone mais estável como o dos poetas Bandeira, Drummond, Cabral ou Gullar. E em função da segunda articulação, selecionamos o episódio da demissão do poeta Oswaldo Martins. O mesmo poderia ser feito com o processo sofrido por Ferréz[1], ou com a análise de recente proibição por governos de estado e secretarias de educação de romances de Tezza, ou do próprio Ferréz. Mas preferimos ficar no campo da poesia. E este é motivo que nos levou ao terceiro e último movimento.

A Literatura da periferia e a tradição modernista brasileira – um deslocamento de vozes

Iniciemos de maneira doméstica, através da constatação de alguns impasses vividos na experiência do ensino em faculdades de Letras, relacionados à disparidade entre o repertório literário que o aluno traz nos primeiros períodos da faculdade e as referências teóricas a que é submetido, especialmente nas aulas de Teoria da Literatura. Nesse sentido, é inegável a interface entre esse objeto de pesquisa e o ensino de literatura e a formação de leitores. O que foi dito reflete o processo de democratização do ensino superior no Brasil que paulatinamente vem sendo realizado quer por fatalidade (para lembrar “O poeta come amendoim”, de Mário de Andrade), quer por ações efetivas dos movimentos de inclusão social e racial no Brasil, as quais se reverteram em respostas do poder público e das universidades, como a criação das cotas, ou os suspeitos PROUNI e REUNI. Recuperando um levantamento não estatístico dos anos 90 (Santos, 2001), verifica-se que o aluno que ingressa no curso de Letras é majoritariamente:

Mulher, entre 18 e 21 anos, moradora do subúrbio (ou Baixada Fluminense), pai pequeno comerciante ou profissional liberal e mãe “do lar”. Num universo de 76 pessoas (…) só uma coisa foi invariável: moradores da Zona Norte. Que hábitos de cultura tem esse aluno? Lê Paulo Coelho, vê vídeo filmes da moda, acompanha novela das oito, passeia em shoppings, assiste a shows de massa, pouco vai ao cinema, não vai ao teatro, não vai a exposições, não vai a concertos, não lê jornal, não freqüenta livrarias, não tem biblioteca em casa, não viaja ao exterior (Disneylândia não vale). Enfim, não tem “hábitos de cultura” (Santos, 2001, p. 53-54).

Essa percepção indica a necessidade de se compreender o imaginário social das periferias urbanas brasileiras, no âmbito da pesquisa acadêmica e através dos discursos literários e culturais, o que permitiria a revascularização de currículos que, a cada ano, acentuam a dissimetria entre o conhecimento produzido na pesquisa e o cotidiano do aluno. Tal aspecto não é novo nas faculdades de Letras (lembro-me bem da inacessibilidade do estruturalismo dos anos 80), mas para rearticular dois famosos títulos da crítica, pode-se dizer que do estruturalismo dos pobres ao cosmopolitismo do pobre muita coisa mudou.

O primeiro dos dois termos evidentemente refere-se ao raivoso artigo de José Guilherme Merquior, publicado originalmente no Jornal do Brasil de 27 de janeiro de 1974, que reagia à crítica de vocação estruturalista e semiológica, pois percebia naquilo séria ameaça a posições consolidadas e a concepções beletristas de literatura e do literário. A posição radical e até agressiva de Merquior já foi posta no seu devido lugar por Eneida Maria de Souza, num artigo em que relembra a primeira geração de jovens mestres informados pela desconstrução derridiana e demais teorias pós-estruturalistas:

Dentre os defensores da cátedra, merece destaque a participação de José Guilherme Merquior, pela sua inquietação frente às novas terminologias e às esquizofrenias teóricas dos jovens mestres. Repetia, nessa ocasião, o mesmo gesto que o fez atacar, em 1974, a moda estruturalista em artigo (…) cujo teor elitista já se anunciava desde o título (Souza, 2002, p. 12).

O fato é que, mais de 20 anos depois do IV Encontro Nacional de Professores de Literatura, evento mencionado no fragmento acima, o perfil do aluno de Letras, conforme traçado por Joel Rufino dos Santos, mudou bastante. Acresce que o verdadeiro programa de massificação do ensino superior (não aquele que Merquior temia) ainda estava por vir e veio nas mãos da iniciativa privada e ainda hoje tenta se impor através de projetos públicos como o PROUNI ou o REUNI (daí a suspeita mencionada acima). Era de se esperar, portanto, que esse contexto das faculdades de Letras constitua campo propício para o advento e a disseminação dos Estudos Culturais. Se compararmos a realidade nacional de um alunado, fundamentalmente formado pela comunicação de massa, com o que Maria Elisa Cevasco localiza no surgimento dos Estudos Culturais na Inglaterra dos anos 50, no ambiente da alfabetização de adultos, pode-se compreender melhor a situação:

Reação à cultura da minoria que, além de conservadora, trata-se de uma posição pouco realista, em um momento em que se luta para abrir acesso à educação, em escolas do Estado, e às artes, por meio do provimento de educação secundária para todos e da criação de instituições como o arts council, destinado a propagar as artes de forma mais democrática (Cevasco, 2003, p. 49).

Guardadas as proporções relativas a lugar e época, especialmente quanto ao fato de que os Estudos Culturais, nessa origem, mantinham íntima relação com a renovação do pensamento marxista pela Nova Esquerda, e hoje se vinculam mais aos movimentos multiculturais, não se pode perder de vista a semelhança entre as realidades sociais que obrigaram os estudiosos de literatura a expandirem seu olhar ao universo cultural mais amplo.

É nesse contexto que se chega ao segundo termo. “O cosmopolitismo do pobre” é um texto de Silviano Santiago (publicado originalmente no segundo número da revista Mergens/margenes, em 2002 e posteriormente no livro homônimo), especialmente atento à crítica cultural e às mudanças de paradigmas do próprio multiculturalismo em face da economia de mercado globalizada:

Ao perder a condição utópica de nação – imaginada apenas pela sua elite intelectual, política e empresarial, repitamos – o estado nacional passa a exigir uma reconfiguração cosmopolita, que contemple tanto os seus novos moradores quanto os seus velhos habitantes marginalizados pelo processo histórico (Santiago, 2004, p. 60).

A criação literária compreende-se no âmbito nacional (por enquanto, mas não devem estar longe as traduções), como uma experiência cosmopolita dos jovens atores sociais de nossas periferias urbanas. Em certo sentido, pode indicar a superação do impasse do intelectual brasileiro identificado criticamente por João Luiz Lafetá, a partir da leitura da poesia de Ferreira Gullar:

No “Poema sujo”, Gullar operou nos limites da consciência do artista (intelectual) brasileiro contemporâneo, preocupado com os problemas sociais do seu país. Esses limites foram delineados nos anos 1930 e 1940, até o fim da ditadura estado-novista, e muito trabalhados pelo Cabral dos anos 1950, pelos cepecistas dos anos 1960, pelo próprio Gullar desse e de outros poemas, por tantos escritores. Não foram rompidos, porém. Talvez porque, atravessada embora pela miséria social, a nossa “consciência possível” esbarre no círculo de ferro de nossa classe, e o “outro” – representado obliquamente, através de suas refrações no sujeito poético – não ganhe nas obras a autonomia e a força capazes de colocá-lo no centro do processo. Seu deslocamento marca a limitação da literatura política possível no nosso tempo (Lafetá, 2004, p. 239-240).[2]

A literatura das periferias representa uma tomada de posição ou uma assunção da voz por parte desse “outro” que se fazia representar pelo intelectual. Não se trata de uma passagem repentina. Noutro artigo importante sobre a questão, Silviano Santiago já anotava que Grande sertão: veredas

permite assinalar que o lugar ocupado no discurso anterior pelo narrador-intelectual, agora se encontra preenchido por alguém que obedece e desobedece ao mando do senhor, o jagunço Riobaldo. (…) Com isso, passa o intelectual citadino e dono da cultura ocidental, a ser apenas ouvinte e escrevente, habitando o espaço textual – não com o seu enorme e inflado eu – mas com o seu silêncio. O intelectual é o escrivão das “ideias instruídas”, que só pode pontuar o texto de Riobaldo, como diz a psicanálise e o próprio narrador: “Conforme foi. Eu conto; o senhor me ponha ponto” (Santiago, 1982, p. 34-35).

Talvez Riobaldo represente a inauguração do que se consolidará mais para o final dos anos 1960 e ao longo da década de 1970 do que se pode chamar performativo, em atuações como a de Plínio Marcos, ou Oiticica, ou mesmo na ficção de Rubem Fonseca. Porém, a literatura advinda das favelas brasileiras desloca-se ainda mais em relação a essa questão, pois, em geral, substitui o performativo pelo biográfico. O realismo não se apresenta como uma opção estética apenas, mas como procedimento documental que garante a legitimidade do discurso. Isso acaba por relativizar a própria condição marginal do discurso, pois sua condição garante nichos importantes do mercado editorial, bem como da pesquisa antropológica ou cultural.

A hipótese que pretendemos experimentar é a de que a poesia das favelas produz o deslocamento na subjetividade que compunha o discurso social na literatura brasileira. Longe de desenvolvê-la e afirmá-la como tese, pretendemos elencar pequena amostragem de fragmentos que poderiam corroborar a hipótese.

No poema “Descobrimento”, de Mário de Andrade, o poeta descobre-se “comovido” diante de um livro “palerma”, ao lembrar que lá no Norte:

Um homem pálido magro de cabelo escorrendo nos olhos,
Depois de fazer uma pele com a borracha do dia,
Faz pouco se deitou, está dormindo.
Esse homem é brasileiro que nem eu
(Andrade, 1993, p. 203).

A despeito da identidade que se produz, é nítido que o adjetivo “palerma” revela o desconforto do intelectual, do brasileiro que, pela cultura livresca, distancia-se do seu povo. O que está fora de cogitação para o poeta de “Descobrimento” é que esse brasileiro, que faz uma pele com a borracha do dia, pode ser também poeta e não apenas objeto ou tema da poesia:

A minha poesia,
apesar de pouca e rala,
cabe na tua boca
dentro da tua fala.

Apesar de leve e rouca,
chora em silêncio
mas nunca se cala.

E apesar da língua sem roupa,
não engole papel,
cospe bala!
(Vaz, 2007, p. 51).

A “língua sem roupa” contrapõe-se à pele endurecida do trabalhador, circula na fala e “não engole papel” de livros palermas. Revida, ataca, faz-se arma ao reconhecer a culpa e o desconforto dos que respondem pela tradição letrada – a roupa da língua. Ideologicamente, pode-se dizer que esse era um dos traços do projeto modernista, “a língua certa do povo”, no dizer de Bandeira. Mas e quando essa ideologia estética sofre também o deslocamento social e recoloca a origem do discurso? – eis uma das questões que a poesia das favelas põe e que deve ser enfrentada.

O mea culpa absoluto do poeta modernista estará presente, no entanto, em certas posições assumidas pelo eu-lírico drummondiano, reconhecidamente desconfortável frente à vida dos desfavorecidos. “Favelário nacional” é um dos títulos em que o tema melhor se evidencia. O poeta interpela a favela para reconhecer:

Tenho medo. Medo de ti, sem te conhecer,
medo só de te sentir, encravada
favela, erisipela, mal-do-monte
na coxa flava do Rio de Janeiro.

Medo: não de tua lâmina nem de teu revólver
Nem de tua manha nem de teu olhar.
Medo de que sintas como sou culpado
e culpados somos de pouca ou nenhuma irmandade.

Custa ser irmão,
custa abandonar nossos privilégios
e traçar a planta
da justa igualdade.

Somos desiguais
e queremos ser
sempre desiguais.
E queremos ser
bonzinhos benévolos
comedidamente
sociologicamente
mui bem comportados
(Andrade, 1984, p. 106).

Enquanto isso, na favela:

Quatro jovens
morreram na chacina
do fim da rua.
Conforme a notícia,
dois deles tinham passagem.
Os outros dois
foram assim mesmo…
clandestinamente
(Vaz, 2007, p. 62).

O horror, o horror de Drummond, que se revela como medo do estranho, não pode pressupor o mínimo de familiaridade. Se o faz, flagra-se no pecado da impostura e da hipocrisia, daí a culpa cristã da fraternidade perdida. O estranho e o medo, para quem está fora da favela, ganha uma notação cotidiana e familiar em Sérgio Vaz. A referência espacial – “no fim da rua” –tão familiar do poeta, distancia o leitor, que, imbuído de uma noção relativa de justiça, estranha a transformação semântica no sentido de “clandestinamente”. Clandestinos seriam os trabalhadores, os justos, os que não têm passagem pela polícia. Menos do que esconder traficantes, a favela serve para abrigar trabalhadores explorados.

Figura 2: O poeta Sérgio Vaz (foto: Marcelo Min)
Figura 2: O poeta Sérgio Vaz (foto: Marcelo Min)

Numa linha que poderia passar por um João Cabral de Melo Neto, reconhecendo que assume a fala em nome do outro, em um poema como “Graciliano Ramos” –“Falo somente por quem falo”[3] –, ou pelo conflito de um Gullar (já mencionado acima por Lafetá), em poemas como “O açúcar”, em que o sujeito expressa as contradições entre o branco açúcar que adoça sua manhã de Ipanema e o sofrimento, “em lugares distantes onde não há escola nem hospital, de homens que não sabem ler e morrem de fome aos 27 anos” e:

Plantaram e colheram a cana
Que viraria açúcar.
Em usinas escuras, homens de vida amarga
E dura
Produziram este açúcar
Branco e puro
Com que adoço meu café esta manhã
Em Ipanema
(Gullar, 2008, p. 152).

Evidencia-se que, o desconforto do intelectual brasileiro não é necessariamente com a favela e o crime, mas com sua impotência frente à exploração do trabalho, à alienação do homem. Por outro lado, ao assumir para si o discurso poético, uma das mais fortes máquinas de desalienação, o poeta da periferia o faz sem crise, herdeiro legal tanto dos modernistas de 1920 quanto dos marginais de 1970:

Não faço poesia,
jogo futebol de várzea
no papel
(Vaz, 2007, p. 116).

Mas o que demarca a apropriação daquela tradição poética é um lugar específico, daí a importância de interfaces conceituais entre espaço e cultura, um lugar que é metaforicamente demarcado como o campo de várzea, em oposição ao campo gramado. A mesma analogia há entre a poesia da fala e a que agora é colocada no papel. Se a ação modernista de incorporação da fala ao poema era de destituição da tradição beletrista, a ação da periferia é de instituição, de afirmação de um lugar até então restrito às elites ou aos mulatos sabidos.

Tal apropriação resulta, finalmente, num deslocamento que encontra uma boa síntese no prefácio-manifesto da coletânea Literatura marginal, em que Ferréz afirma “não somos o retrato, pelo contrário, mudamos o foco e tiramos nós mesmos a nossa foto” (Ferréz, 2005, p. 9). Essa tomada de posição recoloca a questão diante de outra discussão – um dos pontos-chave da compreensão da cultura contemporânea – a do intelectual. Em que medida jovens oriundos das periferias urbanas brasileiras, rappers, escritores marginais, estariam interferindo na atividade intelectual, que tradicionalmente representou-se pelo deslocamento do sujeito do discurso da elite para as bases e que agora ganha sentido inverso. No entanto, tal leitura deve atentar para o fato de que o intelectual não se caracteriza necessariamente e apenas pela tomada da palavra, conforme alerta Pierre Rosanvallon:

Que os intelectuais fossem os vigilantes, que alertassem, que interviessem no fórum era fundamental nas sociedades dos séculos XVIII e XIX, quando o fórum era muito pequeno, quando a liberdade de imprensa era reduzida. Voltaire tomar a palavra era decisivo. Quando o sufrágio universal não se realizava, que um escritor de renome falasse em nome dos esquecidos, dos sem voz era decisivo; (hoje) existem muitos grupos que tomam a palavra. Não há déficit de tomada de palavra em nossa sociedade. Existe, sim, déficit de compreensão. Ora, a vida intelectual concebe-se sempre como se ela fosse definida pela função de resistência, de tomada de palavra, de alerta. Mas ela se esquece de que seu verdadeiro trabalho é o trabalho da análise, de compreensão da realidade (Rosanvallon apud Novaes, 2006, p. 11).

Menos do que defender pontos de vista e ideologias, a literatura periférica assume uma postura bélica, quer ocupar espaços. Não quer só tomar a palavra, mas interferir no que Rosanvallon chama déficit de compreensão, que no caso da literatura brasileira, encontra-se nos restritos círculos em que a poesia é lida, feita e pensada, quando fecham-se os espaços para o que esse mesmo círculo define como poético.

Instâncias legitimadoras – demiurgos e amigos do rei

Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei.
(Manuel Bandeira)

Certa poesia que circula contemporaneamente no Brasil lembra uma menina chorona de que falava Mário Faustino: não encontra leitores e circula somente entre pares, outros poetas, muitos dos quais talvez pouco leiam poesia, o que causa a estranha impressão de que a poesia contemporânea brasileira encontra mais poetas que leitores. Se continuássemos a leitura com base na reflexão de Mário Faustino, diríamos que é uma poesia pouco perigosa:

O poeta contemporâneo tem que ser perigoso como Dante foi perigoso: uma força respeitável frente às demais forças sociais. Do contrário, no entontecedor movimento rumo-Norte a que assistimos em nossos dias, a poesia seria qualquer coisa de marginal, menina chorona ou risonha, abandonada à beira de uma autoestrada de tráfego intenso. O poema precisa funcionar como qualquer outra coisa. E para que possa fazê-lo, para que a poesia possa voltar a ser – como sem dúvida já o foi e potencialmente ainda o é – o mais eficaz, o mais perene e o mais exato dos meios de comunicação, é necessário, em suma, que o poema viva em função do tempo, do espaço e do homem – contra ou a favor, nunca indiferente (Faustino, 1977, p. 37-38).

Menos que professores, educadores, contadores de história, acredito que a Literatura e a Poesia sejam os principais formadores de leitores. Mas se a poesia é indiferente, como comover, deleitar, ensinar? Não há professor que dê jeito, com a poesia dos amigos do rei. A demanda de formação de leitores, por outro lado, não é apenas das escolas dos subúrbios, favelas, quebradas e bolsões de miséria do Brasil, mas ocorre também dentro das faculdades de Letras. A herança formal-estruturalista ainda faz vítimas. Há estudantes que visitam toda a crítica e as teorias literárias e passam longe dos textos. A esse respeito vale conferir a reflexão de Todorov sobre a literatura em perigo (Todorov, 2009).

Se uma esfera da recepção literária, genérica, não especializada, é capaz de levar, em pleno século XXI, a ficção e a poesia aos tribunais e às salas dos diretores de escola, de produzir equívocos vergonhosos como o caso de Oswaldo Martins e de Ferréz, isso é sinal de que a formação de leitores não vai bem há muitos anos. É sintoma de que as faculdades de Letras do país têm fracassado em uma de suas principais tarefas. Estamos e estaremos longe de erradicar o analfabetismo no Brasil, enquanto poemas como o que se segue forem lidos como propostas de nudismo em sala de aula.

lições oswaldianas
as professoras dariam nuas as de história
por sua vez alunas e alunos também nus
assimilariam o que a história nos roubou

a celebração do corpo e do espírito assim
recolocados permitiriam a nossos jovens
a experiência dos ferozes tupinambá
(Martins, 2008, p. 34).

Isso é mais que analfabetismo, pois conheço muito analfabeto que não é burro. O poema citado compõe uma série intitulada “Arte da deseducação”. Eis aí uma boa alternativa para uma educação que evidencia fracassos. Estaria nessa deseducação o saber quem somos, reconhecer nossas tradições, nossas indecisões, nossas ambiguidades. Aprender, de uma vez por todas, a transitar entre. A floresta e a escola. A favela e o asfalto. A 7Letras e a Toró.

Para nos lermos e nos entendermos nessa tradição, pode-se desejar também que a deseducação seja uma deseducação pela pedra. Não aquela do meio do caminho, nem a outra ulcerando a boca do sertanejo, no meio do feijão. Agora a de um colecionador, que ensina que:

As pedras não falam,
Mas quebram vidraças
(Vaz, 2007, p. 13-15).

Quem tem telhado de vidro que se proteja. Muito em breve, em 2022, se as forças ocultas permitirem, sem falar das efemérides, estará com quase 40 anos nossa experiência democrática.

Antiode para os inocentes do Leblon

Figura 3: A Penha da Gávea: fotomontagem de Alexandre Faria, sobre a poesia de Rogério Batalha
Figura 3: A Penha da Gávea: fotomontagem de Alexandre Faria, sobre a poesia de Rogério Batalha
Figura 4: A Penha da Gávea: fotomontagem de Alexandre Faria, sobre a poesia de Rogério Batalha
Figura 4: A Penha da Gávea: fotomontagem de Alexandre Faria, sobre a poesia de Rogério Batalha

“a vida que eu queria livraria o Leblon”
(Rogério Batalha)

eles nem imaginam na praia lotada:
o lugar ao sol que a sorte lhes reservou
acaba de ser limpo por um rabecão

ah! os definitivamente inocentes
– estão em casulos e em seu córtex
matrix injeta uma vida como ela é
roteirizada por maneco com trilha de tom e chico, marina e antonio
pois que vivam essa vidinha da província
frequentem suas livrarias
(que todas as travessas já se mudaram para avenidas)
discutam nos cafés a entrevista do caetano
leiam seus policiais impunes
chamem o fonseca de zé rubem
refestelem-se da feijoada light, do café descafeinado, da coca descocainada e da caipirinha de lima da pérsia com adoçante
(estévia, é claro)
como quem extirpa um câncer
chamem a polícia para calar o bêbado chato (alcoolista incômodo)
demitam por justa-causa a empregadinha atrevida (doméstica impertinente)
fujam do crime como quem planta pistas
distraiam seus medos como quem conta os corpos chacinados na “comunidade” do pedreiro
e busquem no google (escondido das crianças) os poemas “pornográficos” do professor demitido da escola parque

venerem seus malucos célebres

           gentileza
           gera
           gente
                      lesa

não percam o programa do lobão
recitem os gracejos do chacal
mas não confundam bon vivant com marginal
(e atenção – é pra outro lado que a Heloísa Buarque está olhando agora, não cheguem atrasados, hein!)

e continuem a cantar
com bethânia, martinho e com o gullar,
inocentes definitivos,
no navio negreiro que entra ao largo
tem mó galera socando o pilão do poema

(poema originalmente publicado na oficina de antiode do TextoTerritório – www.textoterritorio.pro.br/antiode)

Figura 5: <em>A Penha da Gávea</em>: fotomontagem de Alexandre Faria, sobre a poesia de Rogério Batalha
Figura 5: A Penha da Gávea: fotomontagem de Alexandre Faria, sobre a poesia de Rogério Batalha

* Alexandre Faria é professor de Literatura Brasileira na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e pesquisador do CNPq.

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Notas

[1] Processo por suposta apologia da violência, em função de um conto publicado na Folha de S. Paulo, de 08/10/2007, por ocasião de uma polêmica em torno de um assalto sofrido pelo apresentador Luciano Huck.

[2] Apesar de parecer limitada à obra de Gullar, esta leitura pode ser reafirmada em várias peças da poesia brasileira. Valeria a pena destacar duas: “Graciliano Ramos”, de Cabral, espécie de fórmula programática que encontra ecos tanto na obra do romancista homenageado pelo poema quanto na do próprio poeta; e “Favelário nacional”, de Drummond, poema em que se explicitam exemplarmente os limites da consciência do artista, de que fala Lafetá.

[3] Sobre a leitura desse poema no presente contexto, conferirem dissertação de mestrado de Carolina Barreto, que orientamos no PPG-Estudos Literários da UFJF.

Luttes symboliques et praxis poétique dans le sarau APAfunk | Melenn Kerhoas*

Cet article, loin de dresser une analyse définitive du sarau APAfunk qui est une manifestation culturelle relativement “jeune”, propose quelques éléments de réflexion autour des luttes et ré-appropriations symboliques qui y ont lieu autour de concepts comme le corps, la ville, l’histoire et l’identité à travers une pratique poétique propre au sarau APAfunk: une praxis poétique au sens où la parole est indissociable de son inscription à un contexte sur lequel est projeté un désir collectif de transformation qui se poursuit à travers la pratique.

Vida longa não somente ao sarau APAfunk
mas a todo sarau periférico, todo sarau divergente,
todo sarau que é de se posicionar,
que de certa forma nos inspiram
(Mano Teko, sarau APAfunk, 1er anniversaire, 12/12/2013)

Figure 1: Le graffeur KD01, “Favela, Sarau Apafunk, Résistance culturelle”
Figure 1: Le graffeur KD01, “Favela, Sarau Apafunk, Résistance culturelle”

A cultura é como o sol,
ela entra sem pedir licença
(MC Leonardo, entretien, 04/12/2013)

Trajectoire du Sarau APAfunk
Funk et diaspora[1]

Style de musique né dans les années 1980 dans les périphéries de Rio de Janeiro (Apafunk, 2010, p. 4), le Funk dérive du miami bass[2] et est ré-approprié par les cultures noires de Rio de Janeiro (Lopes & Facina, 2010, p. 2) avant d’avoir le succès qu’il a connu (Vianna, 1990, p. 244) et gagné la classe moyenne de Rio de Janeiro[3]. La géographie des périphéries de Rio et du Brésil a été modifiée de manière substantielle avec une migration interne de près de 43 millions de personnes entre 1960 et 1980 d’origine rurale, en particulier du nord-est (Brito, 2006, p. 223). Une véritable diaspora (Ab’Sáber, 1999, p. 44) qui a une importance fondamentale dans la construction des métropoles, des périphéries et, dès lors, dans la naissance de la culture funk qui, à son tour, a un rôle déterminant dans la formation de la culture populaire carioca (Vianna, 1990, p. 244)[4]. Le funk serait fruit d’une double-diaspora: une diaspora forcée, base du processus d’esclavage et de colonisation du Brésil, et économique des personnes du nord-est dans la deuxième moitié du XXème siècle:

A favela se fez com cultura nordestina e com cultura africana.
Por isso é que o moleque do Funk canta em cima de tambor
dançando como na cultura nordestina com melodia
de samba e diz que é Funk.
Porque o Funk é a mistura de tudo isso.
(MC Leonardo, entretien, 04/12/2013)

Criminalisation et naissance de l’association APAfunk

Figure 2: Mano Teko, funk-poète et coordinateur du Sarau APAfunk
Figure 2: Mano Teko, funk-poète et coordinateur du Sarau APAfunk

Alexandre Ferreira Barcellos, “MC Mano Teko”, actuel président de l’association, dit que “le funk souffre”[5]. C’est dans un contexte de contrôle militaire, social et culturel accru de la périphérie avec l’implantation des Unités de Polices Pacificatrices (UPPs) en décembre 2008, actuellement installées dans 36 favelas[6] et présentées comme une évolution sociale à travers la  récupération  du territoire mais portant un coup de grâce à la réalisation des baile funk à travers la résolution 013[7], qu’est créée l’Association des Professionnels et Amis du Funk (Apafunk), en décembre 2008. Elle s’inscrit dans la perspective de défendre les droits des artistes, de lutter contre les préjugés ainsi que pour la culture funk[8] contre un processus de criminalisation qui a lieu depuis les années 1990 (Lopes, 2010, p. 36-37) et qui, à travers une résolution inconstitutionnelle, continue de rendre presque impossible l’organisation des baile funk (Batista, 2013, p. 91). Elle a obtenu, entre autres, la reconnaissance du mouvement funk comme culture de Rio de Janeiro à travers la loi 5543/2009[9]. APAfunk rassemble des MCs s’identifiant au Funk de raiz, groupe particulier dans le milieu du funk performant des raps engagés (p. 86-87), divergeant de la tendance esthétique imposée par le marché du funk à travers deux grands producteurs, Furacão 2000 et Big Mix. Elle a fêté en décembre 2013 ses 5 ans d’existence ainsi que la première année du sarau APAfunk.

Figure 3: (de droite à gauche) Andrew César: organisation, production et poète du Sarau APAfunk; MCs Junior: funk-poète, Association Apafunk, Kauan Dolin (DJ) & MC Leonardo: funk-poète, Association Apafunk
Figure 3: (de droite à gauche) Andrew César: organisation, production et poète du Sarau APAfunk; MCs Junior: funk-poète, Association Apafunk, Kauan Dolin (DJ) & MC Leonardo: funk-poète, Association Apafunk

Sarau APAfunk

Figure 4: Diego Conceição, poète et DJ du Sarau APAfunk
Figure 4: Diego Conceição, poète et DJ du Sarau APAfunk

Coordonné par Mano Teko, ancien membre de la dupla MCs Teco e Buzunga qui a commencé sa trajectoire artistique en 1994[10], ainsi que trois autres personnes, entre lesquelles Diego Conceição, du Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM) et disc-jockey de la manifestation, le sarau est organisé dans la rue Alcindo Guanabara, devant l’Occupation Manoel Congo, numéro 20, tous les deuxièmes jeudi du mois. C’est une oeuvre collective puisqu’elle dépasse le cadre d’une mise en oeuvre qui serait restreinte aux organisateurs officiels. “Espace de positionnement à travers la poésie”, il est pensé, par son coordinateur, comme un format, un “espace supplémentaire de lutte”[11] dans l’action d’APAfunk. Espace de la praxis poétique, il se caractérise par l’occupation de l’espace urbain, ce qui a une importance fondamentale dans l’esthétique de cette manifestation. Il se présente comme inspiré du Sarau Bem Black, sarau “divergent”, du poète Nelson Maca organisé depuis 2009 à Salvador de Bahia, dans lequel la thématique centrale est la question raciale[12]. Le projet du sarau est né suite à une rencontre, au festival Poesia Favela en octobre 2010 à l’UERJ: Nelson Maca[13] par son traitement de la négritude et sa dimension performatique a retenu l’attention des MCs Pingo do Rap et Mano Teko de l’Association APAfunk.

Figure 5: (de droite à gauche) Nelson Maca, poète et coordinateur du Sarau Bem Black; Mano Teko, funk-poète et coordinateur du Sarau APAfunk
Figure 5: (de droite à gauche) Nelson Maca, poète et coordinateur du Sarau Bem Black; Mano Teko, funk-poète et coordinateur du Sarau APAfunk

Ce poète s’identifie à la littérature noire de Cuti, Semog, Conceição Evaristo et à la ligne ethnique du Sarau Elo da Corrente de São Paulo[14] qui est la “production, le développement et la diffusion de la culture de la périphérie, du nord-est, et noire”[15]. Il est intéressant d’observer aussi la construction rhizomatique des saraus, au sens où la Cooperifa a inspiré le Sarau Bem Black, inspirant la création du sarau APAfunk qui à son tour a stimulé, entre autres, la création du Sarau V à Nova Iguaçu[16].

La collaboration avec le MNLM est fondamentale dans l’organisation du Sarau APAfunk puisque l’Occupation Manoel Congo est l’entité qui héberge la structure nécessaire (microphone, enceintes, ordinateur) à la réalisation physique de l’événement et facilite son organisation dans la rue car se réalisant en face. La croisée des chemins entre APAfunk et le MNLM, né dans les années 1990, à travers l’Occupation Manoel Congo existante depuis 2007 (Silva, 2010, p. 149), ainsi que la proximité politique de certains participants avec le PSOL[17], rend transversales et multiples les luttes politiques et thèmes des performances. Ainsi sont abordés des thèmes comme la race, la réforme urbaine, le genre, les expulsions (remoções), la criminalisation du funk et des mouvements sociaux ou encore le contrôle policier de la périphérie. De plus, l’esthétique de la manifestation est hybride au sens où les MCs performent des funk à cappella sur le modèle de la roda de Funk, innovation esthétique et pratique collective du funk dénuée d’auteur individuel, qui est le format de l’action de l’APAfunk permettant la création d’un espace de dialogue et débat dans les lieux où ils sont intervenus[18]; ceci s’alliant à la performance de hip-hop, chant, samba et à des performances poétiques plus “traditionnelles”.

Corporalité
Une performance poétique collective

Performance collective, ce sarau est une rencontre des voix et des subjectivités s’exprimant à travers le corps comme immanence du monde, manière de l’habiter[19] (Levinas, 2000, p. 146), rapport premier au monde (Ricoeur, 1996, p. 178), transformant dès lors le lieu en l’espace au sens où l’espace est un lieu pratiqué (Certeau, 1990, p. 173), c’est à dire sémiotisé à travers la pratique poétique (Féral apud Zumthor, 2000, p. 41). C’est le carrefour (encruzilhada) dans laquelle se rencontrent différentes manières de vivre l’espace, de représenter symboliquement à travers la poésie, de respirer le monde. C’est le troisième lieu de la culture noire au sens de Rosa en tant qu’un “entre-lieu” dans lequel il y a à la fois jeu et lutte: “en luttant contre un lieu et en créant un lieu propre, en jouant depuis ce lieu avec lequel on lutte et où l’on lutte”[20] (Rosa, 2013, p. 33-35). Jeux de la voix poétique et des corps, il se métamorphose en espace par la transformation du texte en oeuvre en tant que matérialisation poético-performatique du texte (Zumthor, 2005, p. 142), et où se réalise l’oeuvre poétique au sens où elle est “fruit de la conjonction d’une donnée textuelle et d’une action socio-corporelle, l’une et l’autre formalisées par rapport à une esthétique”[21] (p. 144-145). Le corps permet alors la cohésion de l’oeuvre, la composition du sens modifiant, par la même occasion, le statut sémiotique du texte (p. 148).

Figure 6: Mano Teko, funk-poète et coordinateur du Sarau APAfunk
Figure 6: Mano Teko, funk-poète et coordinateur du Sarau APAfunk

Téléscopage des matérialisations des subjectivités à travers leur propre corporéité, c’est l’espace d’écriture d’une histoire collective des corps-poèmes à travers l’interaction et l’échange. Le lieu prend vie, l’espace s’organise à travers un cercle (roda) qui se forme, s’ouvre, se resserre au fil des différentes performances. Cette configuration spatiale s’inscrit dans les modalités d’organisation de l’art afro-brésilien en tant que matérialisation, dans l’organisation sociale, d’une “manière d’interpréter le monde” (cosmovisão) africaine[22] qui se retrouve dans la samba, le jongo, le funk et le maracatu. Le sarau APAfunk est l’espace de la poésie organique (Zumthor, 2000, p. 43) parce que dite, partagée et interagi de plusieurs manières par le public en tant que co-auteur  (Alves, 2013, p. 92) (Zumthor, 2000, p. 30, p. 47): applaudissements, reprises, exclamations, rires, frissons, larmes. La poésie est ainsi partagée par un ensemble de corps et se vit à travers le corps comme une instance sensible de médiation entre le soi et l’inscription physique à un contexte.

Luttes-image013

Un des recours esthétiques propres au sarau APAfunk, différent de la majorité des saraus de littérature-marginale, et lui attribuant en partie sa configuration et caractéristiques propres, est la rue[23]. Il est important d’avoir à l’esprit que l’espace métaphorique opéré par le sarau a lieu dans une localisation précise: le centre-ville[24]. Espace transitif par excellence où s’entrecroisent les trajectoires mais où il y a généralement peu d’occasions de rencontres permettant de le re-signifier à travers une création collective et corporelle de sens poétique, le sarau permet alors de transfigurer cet espace transitif en espace de création collective et de lutte pour le sens poétique, revendiquant un droit à la représentation et à la signification (Enne & Gomes, 2013, p. 45). C’est aussi l’espace de la transgression symbolique des frontières sociales au sens où, au moins pour le temps de la parole, l’horizontalité existante dans le sarau permet à la périphérie aussi bien qu’à la classe moyenne, d’avoir le droit de faire don corporellement de sa poétique (Zumthor, 2005, p. 148). Il est important de garder à l’esprit, cependant, que cette horizontalité et cette mixité sociale ne se traduisent pas nécessairement par une absence de débat ou une fusion homogène des groupes sociaux à l’intérieur de l’espace.

Funk et corporalités

Étant donné la mixité sociale de l’espace performatique, qu’un corps est aussi un texte social et que chaque subjectivité est singulière, il y a plusieurs manières de faire poésie, plusieurs possibilités d’agencement du style et de l’usage (Certeau, 1990, p. 151), le style étant “une structure linguistique qui manifeste sur le plan symbolique (…) la manière d’être au monde fondamentale d’un homme” (Greimas apud Certeau, p. 151) et l’usage, le “phénomène social  par lequel se manifeste un système de communication en fait” (p. 151).

Le funk est une des manières de faire centrale dans le sarau. Langage particulier, véhicule de communication[25], il a un savoir-faire, une poéticité et un pouvoir-rassembler, comme l’ont peu de cultures populaires aujourd’hui. Selon Mano Teko[26], il permet l’amorce du processus d’identification du travailleur commun qui ne se sent pas représenté et au nom duquel les discours syndicaux prétendent parler. Ce processus se réaliserait par une identification sociale et aussi par une reconnaissance du rythme qui fait rentrer le corps en mouvement[27]. Le sarau est alors une invitation inédite à se poétiser corporellement.

Figure 8: Alexandre Lucena, Mano Teko (centre), funk-poète coordinateur du Sarau Apafunk, et MC Pingo do Rap, funk-poète, Association Apafunk
Figure 8: Alexandre Lucena, Mano Teko (centre), funk-poète coordinateur du Sarau Apafunk, et MC Pingo do Rap, funk-poète, Association Apafunk

Les MCs d’Apafunk ont une manière de faire (Certeau, 1990, p. 151) propre par rapport à la tendance artistique du marché du funk ainsi qu’une corporalité particulière à l’intérieur du sarau. Ils ont une utilisation généralement différente de l’espace par rapport aux poètes “traditionnels” puisque ils s’y inscrivent de manière particulière en marchant à l’intérieur du cercle (roda). Selon Certeau (1990), il y a une manière différente de sémiotiser l’espace, un “façonnage d’espace”, c’est à dire une mise en abîme de l’espace, puisque marcher revient à un acte de langage, créant une triple situation d’énonciation à travers : 1- l’appropriation du système topographique, 2- la réalisation spatiale du lieu, et 3- impliquant des relations entre différentes positions, ce qui correspond, selon lui, à une figure de style (Certeau, 1990, p. 147-151). C’est aussi un apport d’information quant à l’action socio-corporelle de Zumthor permettant de transformer le texte en oeuvre (2005, p. 142).

Corporalités noires et lutte identitaire

Par rapport à l’idée d’espace de lutte, la poésie en tant que manifestation artistique présuppose l’existence d’un système organisé de l’expression d’une communauté dépendant d’un ordre social qu’elle a le pouvoir de critiquer (Zumthor, 2000, p. 46-47). Bien que cette critique sociale soit commune aux autres saraus périphériques, elle s’articule dans le sarau APAfunk notamment autour de la question de l’identité. Le rap Apologia de Mano Teko, qui constitue une unité sémiotique à l’intérieur de la manifestation, car ayant pour fonction généralement de clore le sarau, fait référence aux représentations hégémoniques qui exercent un réductionnisme identitaire autour de concepts comme la périphérie ou la race:

Vieram falar que na visão deles funk não é cultura
(…)
Agravante maior é a camisa errada que pintaram dela[28]
(…)
O caô não está só aí, é aí que eu fico bolado
Pra eles está na origem: negro, pobre e favelado
(Mano Teko, Nelson Maca, Apologia[29])

A lieu, ainsi, une lutte pour l’identité à enjeux réels, puisque le poète devient sujet du processus de représentation et s’inscrit dans un rapport de force inégal contre des représentations à effets réels, tels que la violence policière dans les périphéries (Wacquant, 2008, p. 3) et la létalité de l’adolescent afro-brésilien (Ramos, 2009, p. 5). Nous entendons la lutte identitaire ici comme plurielle et en mouvement au sens où elle n’est jamais fixe ni unifiée (Woodward, 2006, p. 15), ni achevée, toujours en réécriture (Gilroy, 2001, p. 16), ceci également car elle s’inscrit dans la représentation qui fonctionne comme un système de signification arbitraire et indéterminé (Tadeu da Silva, 2006, p. 91).

Un positionnement discursif

Il y a, dans ce sarau, récurrence dans les actes de langage des organisateurs de l’idée d’un “positionnement à travers la pratique”. Nous aborderons à présent deux types de positionnement: le positionnement discursif des poètes et le positionnement symbolique de la manifestation par son inscription à un espace.

Le corps noir en tant que rapport premier au monde (Ricoeur, 1996, p. 178) est alors le premier niveau de manifestation de la violence du racisme structurel présent dans la société brésilienne (Paixão, s/d, p. 26), d’où la nécessaire corrélation entre lutte identitaire et lutte contre le racisme. En tant que signifiant, depuis le colonialisme jusqu’au néolibéralisme, il est prisonnier des discours “qui (ont) enfermé les sujets dans des régimes dominants de représentation” (Hall, 2003, p. 220), et “imposé au noir une déviation existentielle” (Fanon, 1971, p. 11) le rendant victime du signifiant hégémonique jusque dans sa propre corporalité. Nous prenons le risque de dire que ces régimes dominants de représentation persistent jusqu’à aujourd’hui dans une société sur laquelle plane le spectre du racisme colonial (p. 69), où le sujet subalterne existe parce qu’il y a une construction discursive par le sujet dominant (p. 69) (Césaire,1955, p. 2020). Stuart Hall entend le racisme comme un construit culturel la race étant un signifiant fluctuant inscrit dans le cadre de systèmes de discriminations orientant les pratiques sociales et réussissant à faire illusion en présentant la différence raciale comme objective (Hall, s/d). Le corps noir serait ainsi approprié par ce système de signification. En tant que signifiant, le racisme est doué d’une plasticité qui fait qu’il peut être déconstruit puisque le sens d’un signifiant n’est jamais fixe, ceci à travers une manipulation des schèmes et images mentales (Bourdieu, 1982, p. 36) présentes dans l’imaginaire social de certains groupes sociaux à propos du corps noir. Les effets des pratiques racialisantes sont mises en évidence à travers la construction d’un parallélisme entre la violence du présent et la violence esclavagiste, qui à travers l’acte de langage pose un rapport de pouvoir symbolique dans lequel s’actualise un rapport de force (Bourdieu, 1982, p. 94) maîtres/esclaves et société discriminatoire, criminalisante/favelado, tel que dans les vers d’Helber Ladislau (2013), poète participant au sarau Cooperifa, qui est venu présenter son recueil Poesias negreiras:

O sangue do morro escorrendo na calçada
O mesmo sangue que escorria na senzala
E são os mesmos vampiros sugando e dando risada
O mesmo sistema que caçou Zumbi caçou Lampião
(Helber Ladislau, 12/12/2013, sarau APAfunk)

Figure 9: Helber Ladislau, poète, sarau Cooperifa
Figure 9: Helber Ladislau, poète, sarau Cooperifa

Dans la poétique d’Elaine Freitas, qui renvoie lors de sa performance à la figure du “senhor” dans le fait divers Porque o senhor atirou em mim?[30], il y a une référence à l’esclavage ainsi qu’une non-acceptation de ce signifiant hégémonique du corps noir le rendant victime de la force policière_et d’une censure de l’expression culturelle, construisant narrativement un contre-récit qui, de la même manière, implique un rapport de force à travers son édification symbolique:

O senhor quer calar os nossos tambores
(…)
E ameaça incendiar toda negrada aquilombada
Mas veja que a cor não aceita
ser mero objeto das malvadezas do senhor
(…)
As mãos erguem revoltas e refazem a África na diáspora
(…)
a maioria é da nossa dor, é da nossa cor
e faz crescer o mundo a enegrecer

Que cela-soit à travers l’approche culturaliste à travers l’idée de diaspora comme construction de liens culturels transnationaux au sens d’un atlantique noir (Gilroy, 2001), comme moyen de lutter contre le racisme ou à partir de la lutte contre le racisme dans une perspective de lutte des classes[31], les deux positions, à travers leur pluralité, resémantisent les signifiants du corps noir à l’oeuvre dans les discours hégémoniques. C’est dans les interstices de ce type d’actes de langage (Austin, 1962) que se trame une lutte pour la signifiance du corps noir et pour un droit à la subjectivité à travers l’expression et les pratiques culturelles: “Contre la criminalisation des espaces noirs de culture” était inscrit sur l’image annonçant le sarau de septembre et est une idée récurrente dans la manifestation. C’est à travers ce type d’actes de langage que nous pouvons comprendre le corps-poétique dans le sarau APAfunk comme un corps-événement (Hissa, 2013, p. 62).

Symbolique de l’espace

Prenant par à l’organisation du sarau hébergeant 42 familles principalement d’origine périphérique et modeste, l’Occupation Manoel Congo et le MNLM sont victorieux dans la mesure où cette occupation a été régularisée par le pouvoir public (Silva, 2010, p. 149-150). Le Roi Manoel Congo est devenu un symbole de la résistance noire contre la captivité de l’État de Rio de Janeiro en organisant une rébellion de 300 esclaves en 1839 et fondant le Quilombo de Santa Catarina (Paty dos Alferes – Baixada Fluminense) contre l’oligarchie du café et de la canne a sucre. La révolte a été réprimée par l’un des héros de l’historiographie brésilienne “oficielle”, Duque de Caxias[32]. L’histoire comme processus est un récit qu’une société à un moment donné se raconte sur elle même (Hall, 1997, p. 49). Ce choix d’élever ce personnage au rang de héros national, et constituant un choix narratif, est réalisé à une période précise par un groupe social disposant des moyens d’écrire ce récit. L’histoire est ainsi un moyen pour un individu, entendons par là un groupe social, de se situer (Aron, 1981, p. 355). La condition inhérente à la production de la réalité historique, elle est humaine, la rend relative au point de vue qui est adopté lors de sa production (p. 365). Pour les organisateurs le sarau représente un espace permettant ce type de critique à l’  histoire “officielle”[33].

Ce choix de l’occupation de l’espace urbain en face de ce bâtiment ré-approprié par  un mouvement social né dans les années 1990 revendiquant un droit à la ville (Silva, 2010, p. 152) à travers les articles 182 et 183 de la constitution de 1988 stipulant la fonction sociale du logement, à travers la pression politique pour l’inclusion de la réforme urbaine à l’agenda politique, représente, en outre, un positionnement symbolique face à l’historiographie hégémonique dans un Brésil qui a reçu la plus grande diaspora forcée d’Africains (Anjos, 2011, p. 3) et où l’application de la loi 10.639 sur l’intégration de l’histoire et culture afro-brésiliennes et africaines, 10 ans après son implémentation, n’est pas encore satisfaisante[34]. Ce choix toponymique opère un changement paradigmatique et représente une ré-approriation physique ainsi qu’une re-signification symbolique de la ville car crée une zone de visibilité autour de ce contre-récit (Hall, 2003, p. 342). Cela pose, en outre, la question du modèle de construction nationale à travers les conditions d’écriture de l’histoire et la formation d’héros nationaux permettant la création d’une identité, et ainsi d’une cohésion, nationale (Thiesse, 2000, p. 17-18). Il y aurait, ainsi, une réécriture localisée et métaphorique de l’histoire, celle du centre et de la périphérie, à l’image d’un des vers du Funk Consciente de MC Calazans : “Nos becos e vielas eu fiz história”[35].

Corps dans la ville

Eles “escapam do totalitarismo da racionalidade” (Santos, 2008, p. 325), como, também, “escapam aos rigores das normas rígidas” (p. 232), criando novos territórios urbanos. Ao se desvencilharem das normas de controle, eles grafam, no terreno, caminhos de resistência à reprodução da cidade luminosa, criando usos não previstos, gerando movimento e novos sentidos; eles recolocam o encontro, a seiva do urbano, em cena. (…) Na contramão da mediação do capital, são produzidos territórios existenciais e subjetivos alternativos, na potência da vida, mesmo no mínimo do corpo.
(Hissa, 2013, p. 59)

Figure 10: Mano Teko
Figure 10: Mano Teko

Le corps et la ville se trouvent dans une relation de nécessaire corrélation dans la mesure où la manière dont est produite la ville détermine les modalités des relations sociales entre les hommes qui la produisent (Lefebvre, 2006, p. 46-47).  L’Occupation Manoel Congo s’inscrit dans une lutte contre une dynamique historiographique dans laquelle l’expansion et la construction territoriale priment historiquement sur les populations, se constituant comme un élément constitutif de l’identité brésilienne à travers l’histoire (Morães, 2005, p. 94-96) c’est-à-dire contre la manifestation d’une idéologie géographique, discours qui véhicule une vision de l’espace et du territoire directement normative en ce qui concerne l’espace (p. 44-45).

Cette idéologie géographique, à la manière d’une constante historique, s’exprime à travers divers plans urbanistiques telles que Pereira Passos (Lima, 2013, p. 30), Agache et Doxiadis qui, à travers la construction urbaine, permettent de rendre invisibles les quartiers populaires (p. 36) à la manière du plan stratégique de 1994 dans la perspective du projet de construction du Porto Maravilha (p. 38). Que cela soit pour donner à Rio de Janeiro des airs de capitale européenne au début du XXème siècle (p. 30) ou pour lui donner une valeur compétitive sur le marché mondiale des villes à être vendues (Bienenstein, 2011 apud Magalhães, 2013, p. 103), la ville de Rio de Janeiro est emprunte de cette “idéologie géographique” qui s’exprime notamment à travers la spéculation dans le centre-ville de manière corrélative à l’entrée en vigueur du plan Porto Maravilha (Lima, 2013, p. 102), ce qui constitue un facteur d’adversité s’opposant directement à l’idiosyncrasie du MNLM.

La planification urbanistique de la ville ayant des effets sur les pratiques et relations sociales (Souza, 2011 apud Lima, 2013, p. 17), l’action du MNLM est antagoniste et rendue visible à travers le sarau APAfunk. Elle propose un autre type de relations sociales en hébergeant en son sein des familles périphériques et fragilisées par le système économique en vigueur et dont le modèle d’organisation économique est la coopérative. Le plan Porto Maravilha et ses corrollaires détruisant directement ou indirectement l’habitat populaire dans le centre, le système de valeurs mobilisé dans le sarau est totalement inverse, opposant, dès lors, d’autres conceptions de la ville. Cette opposition, à la manière de la lutte identitaire, s’inscrit dans un rapport de force inégal en ce sens que ce sont des luttes poético-politiques contre le pouvoir spéculatif et les expulsions (remoções). Cela permet de comprendre conséquemment l’esthétique visuelle de cette manifestation, traduisant son degré d’engagement politique, tel qu’il est possible de lire dans les affiches participant à la création visuelle de l’espace du sarau:  “Arrêtez les expulsions. La fonction sociale n’est pas de servir le Capital”, “Reforme urbaine tout de suite” ou encore “Qui change la ville ? Nous”. À travers la vision urbaine du MNLM dans le sarau APAfunk, c’est un nouveau sujet qui est proposé et produit, proposant un autre type de relations sociales à travers l’intervention du processus urbain visant à rendre habitable la ville selon une certaine idiosyncrasie.

Figure 11: Ludi Um, musicien et poète participant au Sarau APAfunk
Figure 11: Ludi Um, musicien et poète participant au Sarau APAfunk

De plus, il est possible de comprendre le droit à la ville dans le projet politique du MNLM dans un sens plus large, comme droit à la vie urbaine, aux lieux de rencontres et d’échange ainsi qu’à la réalisation de la société urbaine au sens du “règne de l’usage (de l’échange et de la rencontre séparé de la valeur d’échange” (Lefebvre, 2006, p. 143). À l’intérieur de ces droits se trouverait le droit à l’imagination en tant qu’appropriation du temps et de l’espace (p. 113) à travers l’art comme moyen d’appropriation de la ville:

A arte restitui o sentido da obra; ela oferece múltiplas figuras de tempo e de espaços apropriados: não impostos, não aceitos por uma resignação passiva, mas metamorfoseados em obra. A música mostra a apropriação do tempo, a pintura e a escultura, a apropriação do espaço (Lefebvre, 2006, p. 115).

La “performance poétique collective corporellement partagée” (Rosário, 2013) dans le cadre du sarau APAfunk peut remplacer les différents arts dans cette citation au sens où la performance s’approprie simultanément du temps, du lieu, de la finalité de transmission, de l’action du locuteur et de la réponse du public (Zumthor, 2000, p. 30-31). Nous entendons alors la praxis poétique du sarau APAfunk comme la revendication d’un droit à la corpoeticidade (Rosário, 2007, p. 84) c’est à dire le droit à occuper corporellement un espace urbain tout en le transfigurant symboliquement, le droit à habiter et à rendre habitable la ville, comme un processus d’appropriation spatiale et re-signification poétique grâce à la projection d’une poéticité permettant, en dernier lieu, la réécriture du texte urbain (Hissa, 2013, p. 58) si l’on considère que la ville est un livre car fonctionnant comme système sémiologique (Lefebvre, 2006, p. 48) ou plutôt la réécriture du texte urbain à travers la performance poétique collectivement et corporellement partagée. En effet, la performance collective qu’est le sarau APAfunk forme un complexe inter-sémiotique (Rosário, 2007, p. 23) dans laquelle corps, poésie et ville prennent sens par leur corrélation. Nous entendons aussi que cette réécriture s’opère à travers une lutte (micro)politique (Rosário, 2007, p. 102), ayant lieu dans un contexte localisé.

Figure 12: MC Papa, le funk-poète le plus jeune du Sarau Apafunk
Figure 12: MC Papa, le funk-poète le plus jeune du Sarau Apafunk

Nous entendons cette poétique collective du sarau comme la création d’un territoire existentiel (Hissa, 2013, p. 59) et symbolique dans lequel est refusé l’assujettissement des subjectivités à un réductionnisme du discours hégémonique en ce qui concerne la race et la périphérie ou encore à l’acceptation d’un modèle de développement urbain opérateur de dichotomies à partir d’une idéologie géographique excluant certains groupes sociaux. C’est ainsi qu’il est possible de comprendre le concept de – nouveaux lieux, pensé par les poètes de la littérature marginale – périphérique. Ce sont également ces lieux qui sont construits à travers la  praxis poétique du sarau APAfunk bien que dans un autre type d’espace social.

A afirmação territorial e identitária da periferia permite que os moradores desse tipo de espaço social, na posição de artistas e ativistas, agenciem novos lugares para si, para além das relações habituais com a vitimização, pobreza e violência (Nascimento, 2006, p. 214).

Il est possible de considérer le sarau APAfunk comme un espace de l’hybride au sens où il affirme un modèle différent pour la résistance en le plaçant dans des pratiques contre-discursives subversives implicites dans l’ambivalence coloniale et minant la base sur laquelle les discours impérialistes et colonialistes fondent leur prétention de supériorité (Ashcroft, 1998, p. 121). Bien que ne pouvant qu’esquisser, dans les limites de cet article, quelques commentaires destinés à nourrir une future réflexion, nous émettons l’hypothèse suivante: dans le sarau APAfunk, les pratiques contre-discursives s’articuleraient autour de la question de la race, de la périphérie rendue invisible et criminalisée dans les discours hégémoniques, ainsi que du modèle de relations sociales à l’oeuvre dans la ville. Enfin, le sarau Apafunk est comme le soleil. Il est entré sans demander la permission et brille, de puis un an maintenant, en transfigurant les lieux “déjà signifiés en territoires de l’identité et de l’appartenance” (Enne & Gomes, 2013, p. 50) permettant, par rapport aux discours hégémoniques et grâce à la manifestation de la subjectivité, une fuite symbolique du sujet.


* Melenn Kerhoas est diplômé en Langues Etrangères Appliquées – Master Relations Interculturelles et Coopération Internationale (Université Charles de Gaulle – Lille III) et étudiant en Master Erasmus Mundus MITRA – Médiation Interculturelle (Université Charles de Gaulle – Lille III; Université Babes-Bolyai, Cluj-Napoca, Roumanie; Universidade Federal do Rio de Janeiro).

Melenn Kerhoas é mestre em Línguas Estrangeiras Aplicadas no curso de Relações Interculturais e Cooperação Internacional pela Universidade Charles de Gaulle – Lille III (França) e mestrando em Mediação Intercultural no Erasmus Mundus MITRA (Universidade Charles de Gaulle – Lille III; Universidade Babes-Bolyai, Cluj-Napoca, Romênia; Universidade Federal do Rio de Janeiro).

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Notas

[1]   Pour plus d’informations en ce qui concerne le Funk, nous invitons à consulter Vianna (1987) (1990), Lopes (2010), Herschmann (2005), Apafunk (2010).

[2]    Le miami bass est une variante du hip-hop, dont le rythme diffère et où est utilisée une boîte à rythme  (Lopes, 2011, p. 33).

[3]    “Tantos os jovens de classe média como os favelados consomem o funk, mesmo estando em classes sociais diferentes e representando papéis completamente diferentes dentro dessa lógica de produção-consumo” (Enne & Gomes, 2013, p. 53).

[4]    L’article de Vianna (1990) a été écrit pendant l’ “âge d’or” du Funk et n’est pas représentatif du nombre de baile funk qui ont lieu actuellement à Rio de Janeiro. Il donne cependant une idée de l’importance de cette manifestation culturelle dans la compréhension du funk comme culture populaire.

[5]    Sarau APAfunk, 12/12/2013.

[6]   Unidade de Polícia Pacificadora. Disponible sur http://www.upprj.com/. Consulté le 18/01/2014.

[7]    O Globo, 17/10/2013, s/a: Bailes funk retornam a comunidades com UPP mesmo sem novas regras Secretaria de Segurança vai fazer nova regulamentação até fim do ano. Presidente da APAFunk defende que bailes aconteçam em clubes: “Em 23 de janeiro de 2007 foi publicada a resolução 013 pela Secretaria Estadual de Segurança (Seseg), dando aos comandantes das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) o direito de aprovar ou não um evento cultural dentro das comunidades — o que, na prática, impediu os bailes”. Disponible sur http://m.g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2013/10/bailes-funk-retornam-comunidades-com-upp-mesmo-sem-novas-regras.html. Consulté le 18/10/2013.

[8] APAFunk – Associação dos Profissionais e Amigos do Funk. Disponible sur http://www.apafunk.org.br/a_apafunk.html. Consulté le 18/01/2014.

[9]   Le funk est, de plus, reconnu comme manifestation culturelle brésilienne dans le projet de loi 4124/2008 qui  reconnaît le funk comme manifestation culturelle brésilienne (Enne & Gomes, 2013, p. 55) qui est actuellement encore débattu au sein des commissions.

[10]  Funk de Raiz, s/a: Histórias dos Mcs Teco e Buzunga. Disponible sur http://funkderaiz.com/teco-e-buzunga/ Consulté le 26/01/2014.

[11] NPC, Núcleo Piratininga, 19/01/2013: Mano Teko (Associação dos Amigos e Profissionais do Funk). Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=gnhYCzk8E-A. Consulté le 26/01/2014.

[12] Maca, Nelson, 13/09/2013: Resistência em movimento, círculo de conversa, Ocupação Manoel Congo, Rio de Janeiro. Disponible surhttp://www.youtube.com/watch?v=CrasBvNpNvQ. Consulté le 03/02/2014.

[13]  Entretiens de Nelson Maca et Mano Teko accordés à l’auteur les 23/11/2013 et 05/12/2013.

[14]  Entretien accordé à l’auteur le 23/11/2013.

[15]  Blog do Sarau Elo da Corrente. Disponible sur http://elo-da-corrente.blogspot.com.br/p/quem-somos.html. Consulté le 23/01/2014.

[16]  Pour plus d’informations, consulter https://www.facebook.com/VSarau?fref=ts

[17]  Marcelo Freixo (Deputado Estadual, PSOL) a eu un rôle très important dans la promulgation de la loi  5543/2009, pour plus d’informations consulter Lopes (2010, p. 60).

[18]  Apafunk Associação (Facebook), posté le 21/01/2014: Roda de Funk, Fundamento 2008. Disponible sur https://www.facebook.com/ApafunkRJ. Consulté le 26/01/2014.

[19] “Le corps, la position, le fait de se tenir dessins de la relation première avec moi-même, de ma coïncidence avec moi ne ressemblent nullement à la représentation idéaliste. Je suis moi-même, je suis ici, chez moi, habitation, immanence au monde. Ma sensibilité est ici” (Levinas, 2000, p. 146).

[20]  Traduction propre

[21]  Traduction propre

[22]  “Um terreiro, uma casa-matriz de uma comunidade jongueira ou de maracatu, um cazuá de capoeira angola, transmitem bens simbólicos de um patrimônio familiar que regenera a linhagem e que trança e dá sol a relações de descendência que ultrapassam a ascendência biológica” (Rosa, 2013, p. 36); “Oliveira (2003) detalha elementos característicos de uma cosmovisão africana, que ultrapassam diferenças geográficas e que podem ser generalizados como constantes na filosofia vivida pelas tantas etnias e povos do continente-mãe (…) Oliveira destaca alguns princípios como (…) a Família, que pode ser extensa e transcender laços sanguíneos, como base de organização social” (p. 39-40).

[23]  L’espace de la rue comme recours et stratégie politique, impliquant une esthétique de son utilisation, est récurrente dans l’action d’APAfunk en dehors de l’espace du sarau. Est née aussi parallèlement au sarau un bloco apafunk qui va donner une visibilité pendant le carnaval pendant lequel “l’occupation de l’espace des rues est fondamental” (Enne & Gomes, 2013, p. 57).

[24]  A la différence de la majorité des saraus de la littérature périphérique-marginale qui ont lieu dans les périphéries et on un impact direct sur les communautés respectives des organisateurs.

[25]  AtomoMultimidia, 20/09/2012: MC Calazans e o funk em tempos de “paz” – Periferia em movimento. Disponible sur http://www.youtube.com/watch?v=3MdVVtM9U-4. Consulté le 26/01/2013.

[26]  Entretien accordé à l’auteur, 05/12/2013.

[27]  Lancement du livre Criminalização do tamborzão: olhares sobre o funk, intervention d’Adriana Facina, le 26/11/2013 au Circo Voador, Lapa, Rio de Janeiro.

[28]  Sous-entendu “de la favela”.

[29]  Mano Teko & Banda Feitura: Apologia (ao vivo) by Mano Teko on Soundcloud. Disponible sur https://soundcloud.com/manoteko/mano-teko-apologia-ao-vivo. Consulté le 26/01/2014.

[30]  Disponible sur http://negrobelchior.cartacapital.com.br/2013/10/28/por-que-o-senhor-atirou-em-mim/

Consulté le 24/01/2013.

[31] Diego Conceição, sarau APAfunk, 14/11/2013: “Estamos mais do que no momento de discutir realmente o racismo nesse país, certo? Entender o racismo sem compreender na individualidade e entender como um processo de construção do sistema capitalista branco”.

[32]  Instituto de Pesquisa e Análises Históricas da Baixada Fluminense, s/d, s/a, 24/10/2009: A saga de Manoel Congo. Disponible sur http://www.geledes.org.br/areas-de-atuacao/questao-racial/quilombos-e-quilombolas/2719-a-saga-de-manoel-congo. Consulté le 26/01/2013.

[33]  Entretiens de Mano Teko et Diego Conceição: 05/12/2013, 06/12/2013.

[34]  1. Carta Capital, SPeriferia, Semayat Oliveria, 17/10/2013: Lei que obriga ensino da história afro-brasileira faz 10 anos. Disponible sur http://www.cartacapital.com.br/blogs/speriferia/dez-anos-da-lei-que-obriga-o-ensino-da-historia-e-cultura-afro-e-afro-brasileira-nas-escolas-e-tema-do-evento-afrobrasilidade-cultura-e-educacao-na-urbanidade-7681.html. Consulté le 18/01/2014.

2. Rede Globo, cidadania, 13/05/2013, s/n: Coordenador do Laboratório de Análises Econômicas, Históricas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais fala sobre a vida do negro hoje em dia. Disponible sur http://redeglobo.globo.com/globocidadania/noticia/2013/05/leia-na-integra-entrevista-com-o-economista-marcelo-paixao.html. Consulté le 26/01/2014.

[35]  Festfunkconsciente, 06/04/2013: Funk Consciente – MC Calazans.Disponible sur http://www.youtube.com/watch?v=iWtKuOhG8vo. Consulté le 26/01/2014.

Corpoeticidades dos saraus de poesia: o movimento Eu, Poeta Errante, de França de Olinda | André Telles do Rosário*

A voz e a interação humana voltaram ao coração da comunicação poética. Durante o último século, além de todas as vanguardas, escolas e teorias que ampliaram enormemente as maneiras de se produzir, divulgar e fruir os poemas (tanto no impresso, quanto nas mídias sonoras ou audiovisuais e na internet), aconteceu também a popularização da cultura de encontros para se compartilhar poesia falada, principalmente a partir dos anos 1970 e 80.

Para muitos, o primeiro marco perceptível desta tendência surgiu com a subversão da cultura da leitura de poemas, feita por Allen Ginsberg e os poetas da San Francisco Renaissance, na Six Gallery, em 1955, ao dar àquela noite de leitura um aspecto de happening (ainda antes de Kaprow criar o conceito), principalmente devido à dionisíaca primeira declamação de “Howl”. Nas décadas seguintes, ao encontro da cultura de leitura de livros com o happening e as vivências das artes visuais, foram somadas as performances dos shows de rock e a cultura jovem, e a busca por meios culturais de resistência política e existencial. Estas, entre outras referências, repercutiram no surgimento dos recitais de poesia no Brasil, e da Slam Poetry nos Estados Unidos, entre tantos outros formatos, em várias partes do mundo.

Poesia oral urbana. Ligada a movimentos internacionais e a tradições locais, com diversas formas de materialização. Praticadas nesses eventos, foram se adaptando mais e mais à forma de comunicação através da voz, do corpo e da interação pessoal. Já são décadas de renascimento – com estilos pessoais e de época, de formas e estruturas características, ao longo do tempo. Nesse período, o que se percebe é a consolidação de uma fruição estética que é menos “literária”: mais próxima do jogo e do ritual, da terapia coletiva e da manifestação política, que da leitura solitária.

Sua abundância descentrou o paradigma literário dos estudos de poesia para outro, mais preocupado com o papel do corpo na comunicação artística verbal. Nossa hipótese, neste ensaio, é que a atual poesia corporalmente compartilhada pode ser compreendida de maneira mais apropriada ao ultrapassar a “bidimensionalidade” da maior parte dos estudos literários. Para tanto, acreditamos ser necessário um olhar através das relações entre três elementos centrais nestas manifestações culturais orais urbanas: o Corpo, a Cidade e a Poética.

Este artigo é uma tentativa de observar um sarau de poesia dentro deste ponto de vista “tridimensional”. Assim, vamos passar os olhos sobre o movimento Eu, Poeta Errante, em Pernambuco, liderado pelo Poeta França (Valdemilton Alfredo de França). Mas, antes de partir para a poesia propriamente dita, é necessário explicar o que vem a ser Corpoeticidade.

Figura 1: O poeta França de Olinda (Foto: Fundarpe - divulgação)
Figura 1: O poeta França de Olinda (Foto: Fundarpe – divulgação)

Três elementos e três dialéticas

O neologismo Corpoeticidade é a junção de três elementos importantes na expressão poética performativa contemporânea: Corpo, Poética e Cidade. Três substantivos que se desdobram em três dialéticas: a Poesia no Corpo; o Corpo na Cidade; e a Cidade na Poesia. Estas três dialéticas foram utilizadas para orientar a observação da obra do poeta Miró da Muribeca (João Flávio Cordeiro, recitador e criador famoso da poesia “marginal” de Recife), na dissertação Corpoeticidade – Poeta Miró e sua literatura performática (UFPE, PGLetras, 2007).

Na primeira das perspectivas, a Poesia no Corpo, foram procurados traços de performatividade na sua poesia, ou seja, a forma com que o corpo modula as manifestações do poema. Como sua arte é um híbrido de expressões orais e gráficas, para retratar melhor sua materialização, a dialética poesia e corpo foi dividida em três subconjuntos de comentários.

O primeiro apanhou aspectos visíveis e audíveis de suas performances, de como o corpo se apresenta, desde a voz e o gestual, até a indumentária, o local e a ocasião. O segundo buscou elementos de oralidade dentro da língua utilizada em seus poemas, atrás de alguns padrões e recursos lexicais mais frequentes nos seus textos. E o terceiro leu o planejamento gráfico de suas publicações, em busca da influência da performatividade no meio impresso. Partindo, assim, do foco exclusivo no corpo e no contexto, passando pelas marcas da performatividade no seu discurso, até chegar à intersemiose de seus livretos.

Com a segunda das dialéticas, o Corpo na Cidade, buscou-se retratar a subjetividade que habita seus poemas. Quais as fronteiras para a movência e para o usufruto da urbe por esse protagonista descrito em sua poesia: a cor, a classe e a intimidade do habitante que é o ponto de vista das imagens de suas invenções.

Com limitações mais visíveis e sensíveis para quem está na base da pirâmide social, o cotidiano das grandes cidades brasileiras é repleto de fronteiras e poucos espaços comuns. Para provar os incômodos disparates que sente na pele, o poeta recorta fragmentos da cidade e os cola no poema, deixando ver sua posição dentro dessa sociedade – e transgredindo essas fronteiras através da expressão artística.

E na terceira, a Cidade na Poesia, foi observado o sentimento geográfico que viaja com os versos. Como as representações culturais geográficas locais tradicionais (principalmente da cidade, mas também da região e da nação) são construídas e reinventadas em poemas seus. Como e quais modelos de pernambucanidade e brasilidade são revelados, celebrados e combatidos através da poesia.

Todo indivíduo traz na sua fala signos de pertença a seu lugar (e a sua posição dentro da sociedade desse lugar). O poeta, tecelão de tumultos, cruza estas fronteiras dentro de sua obra, e os moldes com que tece suas bombas de efeito moral revela, também, seu posicionamento político perante questões do ambiente social em que está mergulhado, reinterpretando as representações culturais do lugar.

Corpoeticidades

O caminho para a compreensão de eventos de poesia falada através deste arcabouço teórico passa por adaptá-lo da leitura da obra de apenas um poeta, para a análise de um evento de poesia. Primeiro, é importante entender que a soma das corpoeticidades dos poetas presentes no evento é parte da corpoeticidade do evento. Mas não só, porque o evento em si tem sua corpoeticidade: sua relação e história com práticas corporais e de interação pessoal; com maneiras de entender e trocar criativamente a poesia; e com o lugar onde acontece, dentro da cidade e de culturas mais amplas, nacionais e internacionais. Para analisar a corpoeticidade do evento, o primeiro ponto é compreender que falamos de algo no plural. Poetas e audiência reunidos – Corpos, Poéticas e Cidades.

As poesias nos corpos

Qualquer evento de poesia falada é uma grande compilação de poemas composta por vozes e corpos diferentes num mesmo lugar, durante algumas horas. As performances se juntam umas às outras: a poesia acontece através das pessoas. É assim um jogo, um ritual, uma terapia coletiva, um manifesto. Em vez de livro e leitor sozinhos a dois – vozes e olhares de três ou mais participantes: falas intercaladas, trocadas, conversadas, mais o contexto, o local e o acaso.

A estrutura que ordena o encontro é o esteio por onde os poemas em performances vão se suceder, mantendo o elo de unidade do evento. Observar como se dá a interação pessoal é o primeiro ponto desta dialética. Organizações diferentes geram recitais diferentes entre si. Como o fato do evento ser uma lista ou uma roda de poesia, ou de ter um Mestre de Cerimônias mais ou menos centralizador ou permissivo. A temática e a cultura do recital geram normas implícitas que têm efeito sobre o conteúdo e a forma da poesia trocada nestes ambientes.

Além de atentar à sua estrutura, é importante observar os diferentes estilos de performances pessoais dos principais atores de cada evento. Ainda, entre a análise da corpoeticidade do recital e aquela de cada um dos poetas que se apresentam, observar o diálogo que acontece no nível da performance entre os criadores que recitam.

O segundo ponto é observar a linguagem usada nos poemas dos eventos de poesia falada. Quem são os principais poetas a se apresentarem nele, quais os recursos que suas poesias utilizam. É perceptível um uso da linguagem que é mais oral, mais concreto e coloquial. O evento de poesia falada tende a prestigiar um estilo mais oral de literatura. Neste ponto, é interessante observar o papel do livro em cada um deles, em geral, quanto maior a base na leitura pública de livros, mais distante da oralidade.

Por fim, o terceiro e último ponto desta primeira dialética a ser adaptado do estudo sobre Miró da Muribeca é aquele que observa a performaticidade impressa. Mais uma vez, a soma dos trabalhos dos poetas que frequentam os recitais é parte da corpoeticidade, junto com a divulgação da poesia e do evento em outras mídias. Mas não só, os criadores de um recital muitas vezes formam coletivos de ação artística, e é recorrente para alguns a publicação de coletâneas com os autores, além da produção de zines com parcerias dentro de cada evento. E há ainda a publicação em textos e vídeos na internet.

Os corpos nas cidades

Os criadores que se apresentam em um sarau têm histórias pessoais, percursos pela cidade. Os corpoetas são por necessidade andarilhos, de evento em evento, sem o artista sua poesia não atinge seu público (já que mesmo para vender seus livros, é necessário que o autor os leve, muitas vezes). E o lugar onde mora marca este criador (aberta ou veladamente), desde sua linguagem do lugar, passando pelo ponto de vista, pelo repertório de experiências cotidianas comuns, até a própria descrição da cidade nos poemas. O sarau acaba sendo uma encruzilhada, um ponto de encontro de várias trajetórias, um lugar que se torna um espaço de força.

Histórias que circulam e se fundem e se confundem e fundam. Encruzilhadas de histórias pessoais e identidades de variados tipos. Partes da cidade que se encontram, se aliam, se estranham, se ressignificam. Corpoetas são embaixadores de sua cidade e de suas “quebradas”, de suas histórias, e de outras coisas também: ideias, ideais e muito mais. O caldo todo se anuncia em seus versos, a cidade se apresenta ao “eu-lírico” no poema. Eles carregam, quando falam, seu lugar na guerra, que disputam com a palavra, na sociedade em que moram. Deste ponto de vista, o recital de poesia é também uma manifestação política através da cultura, feita através desta união de vozes, ouvidos e olhares.

Mas além da soma dos percursos dos poetas, o recital tem um “discurso” que diz quem o faz, para quem é feito, quem são essas pessoas, o que é importante para elas – qual cidade é privilegiada em sua atenção e afeto. Assim, o sarau de poesia acaba por interferir de volta na cidade, na linguagem da cidade, na história da cidade – através das pessoas concretas que nela vivem e convivem.

As cidades nas poesias

Para o universo da poesia falada contemporânea, o lugar não é apenas pano de fundo, mas parte fundamental da obra. É em acordo com os detalhes de cada espaço que se organizam os eventos. Além das contingências locais que influenciam a troca de poesia e seus estilos, os movimentos de poesia falada reivindicam o espaço urbano para outros usos – ligados ao prazer do jogo, ao senso comunitário do ritual, ao debate e à luta social.

O lugar de onde se diz algo faz toda a diferença. O ponto onde os pés do corpoeta tocam o chão é um signo a partir do qual os discursos podem ser compreendidos. Revela a classe, a história, a etnia, a cultura local – e para quem, com quem e contra quem se diz. Colocar-se deste lugar é performar o manifesto que dá origem ao sarau de poesia.

Mais do que a compreensão das identidades geográficas e culturais de cada poeta que se apresenta a partir daquele lugar, e da soma das percepções de todos os poetas que compõem o evento, o sarau de poesia como um todo também se manifesta identitariamente, como uma obra. Tanto em cada evento, como na soma dos eventos ao longo do tempo.

Assim, o recital de poesia expressa suas ideologias geográficas e culturais tanto na temática e no discurso-manifesto que o funda, quanto no pensamento de cada participante – poetas, ouvintes-poetas e ouvintes. Mas, para além do texto, a performance de se tomar um lugar para falar poesia e interagir é por si só uma expressão, uma intervenção urbana, para usar a linguagem das artes (e dos movimentos sociais).

A partir do próximo parágrafo, passaremos a vista em um evento de poesia corporalmente compartilhada, utilizando os pontos de partida até agora expostos para sua descrição e leitura. As observações que seguem surgiram através de visitas ao Eu, Poeta Errante, principalmente no último ano de existência do sarau. Este exercício não pretende ser exaustivo ou minucioso, mas uma abordagem que consiga descrever o encontro de poesia de uma maneira mais pertinente e agradável.

Eu, Poeta Errante

Figura 2: França recita no <em>Eu, Poeta Errante</em>, no Festival de Inverno de Garanhuns (2007) (foto: Fundarpe - divulgação)
Figura 2: França recita no Eu, Poeta Errante, no Festival de Inverno de Garanhuns (2007) (foto: Fundarpe – divulgação)

Valdemilton Alfredo de França foi um dos expoentes da poesia corporalmente apresentada da Grande Recife. Dentre as muitas atividades, lançou dois livros: A cor da exclusão, de 1998, e Cafuné, de 2003 (além de Poeminflamado, compilação de toda sua obra, lançada postumamente em 2012).E liderou, por sete anos, o movimento Eu, Poeta Errante, recital aberto e itinerante que acontecia todas as quintas-feiras, de agosto de 2000 até setembro de 2007, pouco antes de seu falecimento.

Em 2000, França começou o primeiro da série, em Olinda. Foram mais de trezentos recitais em dezenas de locais diferentes em Pernambuco e em outros pontos pelo Brasil. O poeta, que já militava pela poesia corporalmente transmitida e socialmente brincada, passou a ter seu compromisso de fé, todas as quintas-feiras, à meia-noite, de encontrar-se com pessoas para recitar e ouvir poemas. Abrangendo desde encontros onde havia apenas ele e poucos participantes, até récitas-festas com dezenas de pessoas.

Poesias nos corpos

Toda semana, alguém diferente hospedava o evento, abrindo sua casa ou bar ou instituição para receber os boêmios. Geralmente em Olinda, mas houve edições na Grande Recife e ainda em Garanhuns, Porto de Galinhas e outras cidades. Com a mudança de lugar toda semana, a conformação do evento sempre tinha uma novidade de encontro para encontro. O que permanecia em todos, era o modelo de roda de poesia, falada sem microfone, trocada no mesmo nível do solo, em formato que tendia para um círculo, com a atenção da maioria voltada para dentro, onde o poeta se apresentava.

Tradicionalmente, uma mesa com muitas frutas e uma garrafa de cachaça à disposição dos convidados. À meia-noite, o dono do lugar abria o sarau com um poema. E então outras pessoas da roda de poesia apresentavam suas performances poéticas. Não havia lista, e o senso do momento que fazia o poeta entrar na roda. França costumava insistir para a pertinência do poema, sua resposta ao que acabou de ser recitado, de forma a construir um diálogo e estimular a brincadeira e o envolvimento de todos. Como uma capoeira, era preciso estar atento, olhando no olho, respondendo criativamente ao seu camará. Além do respeito a todos que declamam seu poema, independentemente do tempo de prática.

Os recitais eram abertos, gratuitos e não competitivos. França era um excelente anfitrião, sempre conseguia deixar todos à vontade. A ponto de pessoas que nunca haviam recitado arriscarem sua voz para fora do peito. Muitos poetas se “formaram” com França. Pelo modo de participação aberta do movimento, a experiência da performance poética neste contexto se aproxima da experimance, que é a obra de arte focada na experiência no receptor, através da intervenção do artista (Gomes, 2007, p. 5). Numa roda de poesia, o espectador pode experimentar a performance de dentro, e França incentivava os presentes a saírem de sua postura defensiva e passiva para outra mais lúdica e ativa.

Subvertendo algumas relações sociais previstas pelo “mercado literário” para a situação de comunicação poética, França reposicionou o foco da cultura na interação da experiência pessoal e coletiva, ao invés da leitura solitária ou solene das livrarias. Fazendo da poesia um estilo de vida: libertário, boêmio, existencialista, contracultural. O Eu, Poeta Errante foi sua obra mais marcante, neste sentido, uma intervenção urbana semanal, happening de poesia trocada.

Figura 3: França interage com público no <em>Eu, Poeta Errante,</em> em Garanhuns (2007). No canto direito da foto, o poeta Miró. (foto: Fundarpe - divulgação)
Figura 3: França interage com público no Eu, Poeta Errante, em Garanhuns (2007). No canto direito da foto, o poeta Miró. (foto: Fundarpe – divulgação)

Cada sarau de poesia tem seu principal organizador, ou grupo de responsáveis. Mas geralmente é uma pessoa (poeta e/ou professor) que coordena o evento. A poesia do evento acaba tendendo a se aproximar daquela do “dono” do recital. Além dessa figura, existe a do apresentador do evento. Muitas vezes é o próprio dono que faz o papel de mestre de cerimônias, mas nem sempre. França era os dois, no caso do movimento que estamos observando. O fato de o sarau ser em formato de roda (com os poetas em círculo e as recitações vindo sem ordem previamente estabelecida) faz o mestre de cerimônias virar mais um mediador entre os poetas, do que um apresentador.

A conformação entre plateia e poetas no formato de roda estimula a participação, a experimance. Neste sentido, há um elemento de jogo na roda, de fluidez, que não se apresenta no outro formato mais usual para recitais, o de lista (que podem ser fechadas antes do evento, ou que resulta das decisões do apresentador do sarau). O formato de lista acontece muitas vezes com a utilização de microfone, outro elemento que altera a performance poética. Como foi feito para multidões, para ser ouvido longe, é um instrumento de poder, que influencia a postura do poeta, afastando-o de quem está próximo, e o aproximando de quem está longe.

É curioso perceber que o microfone acaba tendo uma função de poder próxima da do livro. Ler um livro é um ato de poder, que afasta quem lê de quem está ouvindo. A fala olho no olho da corpoesia memorizada e apresentada busca a aproximação. O livro traz o argumento indiscutível, a conversa de um caminho só, o diálogo abortado ou adiado até que outro texto seja escrito e lido.

No caso do Eu, Poeta Errante, França estimulava a performance sem a leitura (e sem microfone também). Por conta da própria história do uso da cultura impressa contra as matrizes africanas e indígenas, o corpo é colocado como meio privilegiado de contato. O livro é importante, mas não pode ser central, num evento que bole com a poesia e com o corpo dessa forma, essa a mensagem por trás da estratégia.

Até agora falamos da primeira subdivisão desta dialética, a performatividade entre os corpos. Partindo para a performatividade na língua, a poesia apresentada no movimento era muito voltada para a pesquisa com a oralidade, bem-humorada e combatente, principalmente aquela de matriz afro-brasileira. Além de França, muitos poetas de Pernambuco passaram pelo Eu, Poeta Errante, criadores de uma poesia mais das ruas, e vinda das periferias – a poesia marginal de Pernambuco (que, diferentemente da carioca, tem poetas vindos dos subúrbios também – acaba sendo a confluência das duas definições para “marginal”, hoje correntes, a “do Chacal”, e a “do Sérgio Vaz”).

Quanto à terceira subdivisão, a performatividade nos meios de divulgação impressos, às vezes havia venda e troca de livretos alternativos nos eventos. França mesmo vendia livretos seus e as agendas da vida, que fazia com sua editora, a Mão-de-Veludo edições artesanais (junto com a artista visual Sil Beraldo) – mas nada ostensivo. Ao contrário de Miró, que via nos seus livretos e CDs, e DVDs a principal fonte de renda, França vivia em um ambiente mais próximo da economia solidária, morando em Olinda, no Amaro Branco. Portanto, a troca de livros entre os autores era igualmente comum, neste meio de impressos de baixo custo de edição (livretos, zines, cartões, camisetas). Quanto à divulgação dos locais dos eventos a cada semana, França confiava no “Correio Nagô”, como ele definia: a informação passada boca a boca em Olinda ou pelos ambientes boêmios e artísticos de Recife.

Corpos nas cidades

Compreender um sarau a partir das imagens que nele aparecem da cidade que o abriga é jogar uma luz sobre a construção, manutenção e reinvenção das identidades deste lugar, na poesia. Através de narrativas e crônicas, a poesia que faz a descrição da cidade e de seu usufruto (ou sofrimento) é recorrente entre os autores que o frequentavam. Podemos dizer que havia principalmente muitos autores da chamada poesia marginal recifense (mencionada acima) – junto com uma infinidade de outras pessoas, tão importantes quanto, que faziam poesia sem veleidades maiores. Geralmente, a poesia do coordenador do evento é uma tradução, parcial mas significativa, da “média” da poesia praticada naquele evento. A poesia de França é um modelo, nesse sentido.

A oralidade dessa poesia faz dela mais concreta – com citações expressas a partes da cidade, e eventos recentes de sua história. França, por exemplo, tem poemas comentando mudanças urbanas de Recife e Olinda, como quando cercaram de grades o campus da UFPE (“Desengradem as cidades”), ou dizendo da situação de Olinda, todo o ano, após a quarta de cinzas (“Olinda vai mal”). Miró da Muribeca, frequentador do recital também, tem um poema que reflete bem esta materialidade referencial da cidade:

Sem chance

Tem horas que você olha em volta da
janela de um ônibus,
Os outdoors te olhando,
As mulheres sem juízo nas calçadas de
restos de feira.
Mastigando pimentão podre
Um vermelho rasgando o céu da cidade de
Recife, um pouco antes das seis da tarde.
Lotadas loterias e padarias.
Deus foi perfeito em não deixar nenhuma
chance pro homem.
Seja no Restauração ou no Santa Joana.
(Miró, 2006, p. 21)

O verso final só faz sentido para quem conhece Recife. São dois hospitais, um de cada lado da mesma rua. O Hospital da Restauração é o maior dos públicos, e precário. O Santa Joana está entre os mais caros de Recife e tem até heliponto. A referência concreta à cidade e ao seu cotidiano é uma marca desta corporalidade. Dessa forma, os poetas usam a cidade como um repertório comum – tanto geográfico, quanto cultural e social.

Além da sociocrítica desse protagonista descrito nos poemas dos autores que o frequentavam, o movimento mesmo se deslocava pela cidade. O Eu, Poeta Errante, desde seu nome,era itinerante, trazendo outra noção de territorialidade. A movimentação do sarau diz muito – realizado em casas e bares de Olinda, mas não restritivamente – pelo contrário, com abertura a visitas em outros lugares. Era uma encruzilhada ambulante, esticando a compreensão que comentamos anteriormente. Ressacralizando o chão de cada lugar, com poesia e cultura. Assim, tinha funções pedagógicas, terapêuticas, recreativas e políticas.

Nesse sentido, por fim, é ainda interessante observar que um sarau geralmente não existe sozinho. Existem outros lugares onde os criadores se encontram. Dessa forma, em função dos percursos dos poetas e do encontro em lugares diferentes dos mesmos criadores, se constrói um repertório específico dos grupos. Onde, por outro lado, o recital se destaca por alguma especificidade relacionada à cidade e à cultura do lugar, assim como o próprio criador. O olhar deste que recita, mais sua experiência e seu estilo, também são relacionados a como a cidade é descrita, usufruída e enfrentada.

Cidades nas poesias

A movimentação semanal do Eu, Poeta Errante era um manifesto ambulante de uso da cidade: direito de existir transitando, circulando. Em vez da rigidez da defesa de um mesmo território, a valorização do movimento e da troca – para que todos os lugares sejam de todos. Como muitos dos outros saraus, o trauma da exclusão social, étnica, econômica é um dos motores da apropriação da cidade. E é necessário fazer a informação circular, com qualidade, entre as pessoas, e mantê-las em contato. Assim, o evento funciona também como terapia coletiva e manifesto político, com desdobramentos no local e na cultura do local. Além de servir de “revitalização” para os participantes – servindo de lugar de socialização e articulação.

Quando observamos os moldes em que o movimento criado por França se configurou, é possível enxergar traços da ascendência africana. Leda Maria Martins descreve a maneira como algumas culturas afro-descendentes compreendem a arte:

Pela performance, o negro apropria-se espacialmente de territórios geográficos simbólicos, semantizando a cartografia brasileira com os significantes estéticos, religiosos, expressivos, filosóficos e cognitivos africanos. […] Na enunciação performática, em sua moldura cênica, o narrado transmuta-se no dramatizado e o tema do deslocamento mascara-se em várias faces: a travessia da África às Américas, a substituição da morte (escravidão, silêncio, imobilidade) pela vida (liberdade, resistência, voz e movimento) (Martins, 2000, p. 77-78).

“Liberdade, resistência, voz e movimento”. Gerando e difundindo experiências e discursos que se contrapõem à exploração do espaço urbano em favor dos interesses das classes dominantes (que são, estatisticamente, etnias dominantes). Intervenções urbanas de baixo impacto e alta capacidade de troca existencial, todas as semanas.

Sua posição contra o meramente comercial, sua cosmovisão dos processos poéticos e literários, refletiram na expressão completa do evento. Poesia tridimensional, inflamada de revolta e força. Com sede de desmontar o maquinário perverso que sustenta cada privilégio. Concordando com Muniz Sodré, partindo da materialidade da história real, porque:

O euroculturalismo e a educação escolar voltam as costas a tal realidade [a da maioria] instalada na paisagem circundante, não por falta de tematização do problema, mas pelas próprias concepções que lhes servem de fundamento e pelos lugares discriminatórios que ocupam no modo de organização social. […] É forçoso, pois, levar em conta que se exasperam progressivamente as diferenças de modo de existência entre as zonas de habitat no interior da metrópole. A homogeneização operada pelos meios de comunicação e por outros equipamentos urbanos desconhece os focos catastróficos da pobreza ou de sua obscena contigüidade com as zonas abastadas. A fricção social entre incluídos e excluídos (a novíssima face da luta de classes) assume foros violentos, variando de intensidade segundo a diversidade dos territórios (Cabral, 1996, p. 88-89).

Colocar o dedo nas feridas para apontar essas contradições foi um dos papéis que França procurou exercer, através de sua poesia. Ajudando no trabalho de desconstrução da ideologia que mascara, confunde e mantém cada específica exploração. Fazendo o que podia para acelerar o processo de que seu poema, que encerra esse percurso, fala:

Aumenta aos poucos
O grupo que está à porta
As mãos antes vigorosas
No trabalho ou na prece
Agora se fecham em punhos
Feito flor que recrudesce
ao botão
Murmurejam pragas
 Entre as orações
  E assim retiram
   um a um
Os tijolos do edifício
(França, 1998, s/n).

Conclusão

É necessário ampliar a interpretação “literária” do fenômeno da poesia performativa. Estes poetas falam a partir de um lugar específico que importa na compreensão do discurso. E transformam a sua cidade em linguagem, adicionando relevância maior ao contexto local da comunicação poética, a ponto de se pedir traduções aqui e ali para quem não é do lugar (como com o poema de Miró, “Sem chance”). Por fim, fazem da fala uma morada e um veículo, por onde convivem e sustentam os movimentos sociais e culturais de que fazem parte. A poesia falada nesses eventos têm sutilezas que a observação crítica grafocêntrica tem muita dificuldade em compreender.

Essa juntada de observações é uma renovada tentativa de aproximação ao tema, buscando partir de uma perspectiva mais sensível ao que essa poesia possui de mais especial e específico. Surgiu da impressão de que mesmo os estudos literários que aceitam a performatividade da poesia e sua corporalidade ainda partem de pressupostos característicos da cultura tipográfica.

Mesmo Zumthor, quando fala de performance, pensa a partir da relação um a um, ou seja, um emissor e um receptor. Esse modelo um a um é o modelo do livro. Quando observamos a descrição que deu à performance, em Introdução à poesia oral, fica clara tal conformação:

A performance é a ação complexa pela qual uma mensagem poética é simultaneamente, aqui e agora, transmitida e percebida. Locutor, destinatário, circunstâncias (quer o texto, por outra via, com a ajuda de meios linguísticos, as represente ou não) se encontram concretamente confrontados, indiscutíveis (Zumthor, 2010 p. 31).

Um recital de poesia nunca acontece em dupla, mas em três ou bem mais participantes. E escutar e assistir ao poema apresentado junto com outras pessoas, faz a mensagem ter outras conotações. A troca de poesia falada entre pessoas pode ter muitos formatos, mas em todos eles o lugar em que acontece o evento e a maneira como os participantes se organizam e interagem são de fundamental importância. Tão importantes que fundam poéticas próprias desses encontros. Poéticas que demandam novas abordagens da crítica, para que sejam mais bem compreendidas.


* André Telles do Rosário é pesquisador de Programa Avançado de Cultura Contemporânea, onde realiza estudos sobre o impacto dos novos meios eletrônicos na performance poética contemporânea, sob a supervisão de Heloísa Buarque de Hollanda, com financiamento do CNPq.

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“Nada indicaria que eu fosse ter alguma ligação com cultura”: entrevista com Alessandro Buzo

Entrevistadores: Alexandre Graça Faria*, Érica Peçanha do Nascimento**, Fernanda Pires Alvarenga Fernandes***, Ricardo Ibrhaim Matos Domingos**** e Waldilene Silva Miranda*****.
Introdução: Fernanda Pires Alvarenga Fernandes***

Figura 1: Alessandro Buzo (foto: Marilda Borges)
Figura 1: Alessandro Buzo (foto: Marilda Borges)

Escritor, ativista social, colunista, repórter e cineasta, o polivalente Alessandro Buzo recebeu um grupo de pesquisadores de literatura[1] em sua livraria Suburbano Convicto, no bairro do Bixiga, em São Paulo. Era outubro de 2011 e a Cooperifa celebrava uma década de existência, o que motivou o grupo a sair da Universidade Federal de Juiz de Fora e ir conhecer presencialmente alguns dos autores que haviam despontado na cena da Literatura Periférica, como Buzo. Daquele encontro, surgiu esta entrevista, da qual participou a anfitriã dos mineiros na capital paulista, Érica Peçanha.

Buzo lançou seu primeiro livro em 2000 com o nome O trem: baseado em fatos reais. Cinco anos depois, acrescentou mais dados à história e publicou O trem: contestando a versão oficial. Na entrevista, ele conta como a literatura entrou em sua vida e avalia a formação do cenário em torno da Literatura Marginal. Nosso entrevistado também é autor de Suburbano convicto: o cotidiano do Itaim Paulista e Guerreira, entre outros livros, dirigiu o filme Profissão MC, de 2006, organiza a coletânea literária Pelas periferias do Brasil e escreve para jornais e revistas. Na TV, Buzo fez parte do programa Manos e minas da TV Cultura, onde apresentava o quadro “Buzão” e, desde outubro de 2011, apresenta o quadro “SP Cultura”, às sextas-feiras, no telejornal SPTV 1ª edição, da Rede Globo.

Como se deu o seu envolvimento com a literatura?

Alessandro Buzo – Foi, podemos dizer, por acaso. Por acaso eu escrever. Eu ler foi por conta da minha mãe, porque mesmo tendo pouco recurso financeiro – era dona de casa até meu pai ir embora e, com dois filhos pequenos, eu com 12 anos, meu irmão com 8 ou 9 – ela teve que se virar. Depois eu comecei a trabalhar muito cedo aqui no Centro de São Paulo, porque meu pai deixou a gente na mão financeiramente. Então minha mãe passou a ser empregada doméstica e depois funcionária pública, trabalhando em hospital, em creche. E a gente morava no Itaim Paulista, morei a vida inteira lá. São 38 km aqui do Centro, no último bairro da Zona Leste de São Paulo, que já é gigante. E nada indicaria que eu fosse ter alguma ligação com cultura, diretamente como é hoje. Nada levava a isso, mas a literatura chegou. Minha mãe comprava revista da Turma da Mônica e me dava; pro meu irmão, uns livros. Tinha O menino maluquinho, entre outros. Então eu conhecia os livros. Aí veio outra fase, a da adolescência. Mesmo nunca tendo feito nada de errado, no sentido de cometer um delito, um crime, eu nunca roubei, nunca vendi droga, mas usei muita droga. E não comecei, como diz a lenda, com a maconha, para depois usar outras drogas mais pesadas. Eu já comecei direto na cocaína, e fui usuário por alguns anos. Por alguns anos eu fui um usuário controlado e, depois, comecei a usar droga todo dia. Mesmo trabalhando. E parei por conta própria, por vontade própria. Parei porque a responsabilidade de um casamento e a vontade que eu tinha de viver uma vida tranquila dentro desse casamento falou mais alto. Casei em 1998 e lancei meu primeiro livro em 2000, e, em seguida, o que fortaleceu isso foi o hip hop e a literatura que surgiu. Eu já estava há dois, três anos sem usar drogas, então…, fez com que percebesse que eu realmente não ia usar drogas nunca mais, foi o meu envolvimento com a cultura.

Figura 2: Alessandro Buzo concede entrevista a um grupo de pesquisadores de literatura na livraria
Figura 2: Alessandro Buzo concede entrevista a um grupo de pesquisadores de literatura na livraria Suburbano Convicto (foto: Marilda Borges)

E nesse período das drogas você parou de ler?

Alessandro Buzo – Eu voltei a ler [ainda] usuário de drogas. Trabalhava num escritório na Praça da Sé e no meio de um monte de senhorinha de idade já. Eu era o doidão lá no meio. Logo no horário do almoço, chegava um cara que ia numa sala, que era de um amigo meu, e a gente ia lá e já no meio-dia a gente começava a vida louca, e eu voltava para o escritório e ficava lá no meio de duas senhoras, parecendo um doido. E um dia, nesse escritório, entrou uma mulher do Círculo do Livro. Quem é mais velho conhece. Eram uns livros de capa dura, que você encomendava, pagava, naquela época com boleto bancário, e o livro chegava pelo correio. E aí ela chegou no escritório, explicou, mas ninguém comprou nenhum livro. Falou que ia deixar o catálogo, caso alguém mudasse de ideia e ia saindo quando eu vi um livro que me identifiquei, assim, pelo título, que eu desconhecia. Na época nunca tinha ouvido falar. É o Eu, Christiane F, 13 anos, drogada, prostituída... Achei o título interessante e encomendei o livro. Falei: “Volta aqui, eu quero encomendar um livro”. Achei o livro muito louco. Depois descobri que tinha um filme, acabei assistindo ao filme também. Tenho o livro guardado até hoje, tanto que esse que é um dos livros que eu tenho de cabeceira. E aí eu falei: “Caramba, o livro pode ser muito louco, pode falar de uma história doideira”. Mesmo a história sendo na Alemanha, em Berlim, e a droga sendo heroína, era parecida com a minha história doida. Só mudava o país e a droga, mas era uma história muito louca. E eu vi que um livro poderia servir para falar de qualquer coisa. E continuei comprando livro no Círculo do Livro. Comecei a ver que a gente poderia falar de tudo. Mas a escrita veio um pouco depois. Casei e comecei a frequentar um sebo que tem até hoje no Itaim Paulista. Já era de um amigo meu e um outro, mais chegado, virou sócio. O meu amigo pegava e dizia: “Poxa, esse livro aqui é muito louco”. Eu falava: “Poxa, legal”. Olhava na primeira página, onde ele escrevia o preço a lápis, e falava: “Poxa, cara, mas eu não tenho dinheiro agora”. E ele falava: “Não. Pega emprestado, depois você me devolve”. E comecei a ler um monte de livro nesse “pega emprestado, depois você me devolve”.

E como você começou a escrever?

Alessandro Buzo – Um dia esse cara chegou e falou assim: “Vou fazer um fanzine. Sabe o que é um fanzine?”. Aí eu falei: “Não.” E ele: “Pô, é uma revistinha de Xerox. A gente coloca uns textos, umas paradas, tira Xerox e distribui pra galera aqui na livraria. Quer escrever um texto?”. Falei: “Pô, mas eu não escrevo, cara.” E ele: “Como não escreve? Você lê pra caramba, escreve um texto, fala aqui do bairro, fala alguma coisa”. Aí fiz um texto qualquer, uma cronicazinha e tal. Não sei se foi junto ou um pouquinho depois, eu comecei a mandar umas cartas para um jornal de esportes, porque eu era muito fanático por futebol. Hoje eu ainda gosto, mas o fanatismo era maior naquela época. Era a Gazeta Esportiva, depois veio o Lance! E o jornal parou, hoje é um site só. Comecei a mandar carta para “Voz da Arquibancada”, que era uma coluna de leitores. E puxava a brasa pra minha sardinha. Falava do meu time, era assunto supérfluo. Aí puxava sardinha, tirava um barato de outra torcida e tal. E as cartas começaram a ser publicadas, lembro que saiu uma grandona. E aí eu estava no trem, (eu pegava trem para ir trabalhar, que é o jeito mais rápido de transcorrer 38km) e chegou um cara pra mim: “Pô, eu acho da hora aqueles negócios que você escreve na Gazeta Esportiva”. Cara, eu pensei que só eu lia a Gazeta Esportiva no Itaim Paulista. Não sabia que outras pessoas liam. Nunca via as pessoas com jornal no trem. Eu sempre estava com jornal. Tenho hábito de ler jornal até hoje. Se eu ficar 24 horas na internet, leio jornal. Esse meu amigo lia também o jornal e sabia que Alessandro Buzo era eu. Acho que eu assinava Alessandro Buzo de Souza, que é meu nome completo. Ele falou que tinha ficado muito interessado e eu respondi: “Poxa, legal, as pessoas lerem”. E comecei a escrever no fanzine, e essas cartas eram publicadas, e um jornal do bairro falou: “Meu, o Jonilson me mostrou os baratos que você escreve lá na Gazeta Esportiva, por que você não faz uma coluna de futebol de várzea no jornal?”. Era um jornal de bairro, que circulava de graça. E aí comecei a fazer matérias com os times antigos do Itaim Paulista, que tinham mais de 20 anos; hoje eles têm mais de 30. Comecei a fazer matéria com esses times e saía meia página. E fui indo. As pessoas começaram a comentar das coisas que eu escrevia. Um dia, eu estava muito incomodado com o trem, que estava muito ruim e a gente estava sofrendo feito um diabo. E aí resolvi escrever um texto denunciando a situação, porque sempre saía na mídia quando alguém depredava o trem, quando quebravam, queimavam. Uma vez incendiaram vários trens e saiu na mídia que “Vândalos destroem os trens”. Nunca saiu em nenhuma dessas matérias o que aconteceu antes, o tanto de porrada que o povo tomou antes de se rebelar e fazer isso. Não que eu ache certo queimar o trem, mas no dia em que queimaram os trens, a gente estava tentando desde 17h30 pegar o trem para ir embora e eram 22h e a gente estava no escuro, entre uma estação e outra. Foi nessa hora que queimaram os trens. Virou um caos. Eu lembrava de protestos que não tinham resolvido e resolvi escrever um texto. Pensei: “Pô, quem sabe a imprensa não vê o meu texto e publica e, sei lá, alguém, alguma autoridade vê o meu texto”. Fiz um texto chamado “Ferrovia nua e crua” e digitei no meu trabalho. Não tinha computador naquela época. Digitei e distribuí no próprio trem. Para cerca de 50 pessoas. E ninguém comentou nada no dia em que eu distribuí. Foi todo mundo embora, as pessoas guardaram o texto, outras até jogaram fora. No dia seguinte, quem não se lembrava do texto era eu, porque já tinha passado mais um dia de trabalho e tal. Uma pessoa chegou pra mim e falou: “Cara, eu me senti representado pelo que você escreveu naquele texto”. Achei legal o cara falar, mas quando eu cheguei mais próximo, vi que se reunia a maior galerona que ficava esperando juntar mais gente para poder ir todo mundo junto, e todos estavam elogiando o texto. Fiquei muito satisfeito com a repercussão. Achei que as pessoas compreenderam. Camelôs – tinha muito camelô naquele tempo – vieram me abraçar: “Poxa, nunca ninguém falou nada a nosso favor”. Os dias continuaram normais, de trabalho, eu indo e voltando de trem, e as pessoas começaram a dizer: “Por que você não escreve um livro do trem?”. E foi assim que eu virei escritor. Escrevi o livro do trem, não tinha a mínima ideia de como publicar. Nessa época não existia sarau, não existia nenhuma referência. O Ferréz era uma referência distante. Porque eu estava no Itaim e ele no Capão. Do Itaim para o Capão são mais de 50km. Mas aí eu acabei conhecendo o Ferréz, depois que o meu livro já tinha saído. Lancei independente. Se eu for contar a dificuldade que foi para lançar o livro, teria que ter muito mais tempo. Mas, assim, foi a maior luta. Descobri que só dava pra lançar independente, que ninguém lançava livro nenhum de ninguém. Fiquei frustrado, pois não ia ter dinheiro nunca para lançar 500 livros, que era o mínimo para os outros lançarem. Não ia ter essa grana nunca porque eu ganhava mal, estava endividado e enrolado. E aí eu acabei tendo o apoio de uma empresa em que eu trabalhava: dei 1/3 de entrada e fiz o livro. Como eu não tinha experiência de lançar livro, fiz na véspera do Natal, mas foi uma galera. E depois que vendi para os parentes, os amigos e os vizinhos, sobrou uns 400 e tantos lá em casa. E, fazer o que com esses livros, né, mano? Aprender sozinho a ir nos lugares. E aí eu comecei a ir nos shows de Rap, para divulgar, em todo lugar que pintava para ir. Os saraus ainda não existiam. A Cooperifa tem dez anos, estava surgindo. Os outros também não existiam. Não tinha nenhuma cena literária que tem hoje. Hoje o cara lança um livro, chega aqui e diz: “Buzo, tem como fazer meu lançamento?” Pô, tem! O cara já arruma livraria no Centro pra fazer um lançamento. Naquele tempo era surreal imaginar uma livraria com esse monte de livro da periferia. Então, nos últimos dez anos, surgiu um exército de pessoas escrevendo.

Figura 3: Alessandro Buzo em sua livraria Suburbano Convicto (foto: Marilda Borges)
Figura 3: Alessandro Buzo em sua livraria Suburbano Convicto (foto: Marilda Borges)

Os novos escritores estão conseguindo tirar os escritos da gaveta?

Alessandro Buzo – Todo dia surge um cara novo. Até ontem eu nunca tinha ouvido falar do Fábio Mandingo. Agora ele veio lançar o livro dele aqui. O livro é um barato, um tesão de ler, Salvador Negro Rancor. É muita luta, sabe? Não é a Bahia da Ivete Sangalo. É a Bahia de verdade. Então, quer dizer, está surgindo gente de todos os lados. Por muito tempo foi apenas São Paulo. Todo mundo que lançava era de São Paulo. E eu ia nos outros estados – já fui em dez estados fazer debates, palestras ou fazer matéria para a revista Rap Brasil, que eu era repórter – e em todo lugar que eu ia, alguém falava: “Olha, eu também escrevo, eu tenho uns textos, eu tenho uns contos, umas poesias”. Poxa, por que ninguém publica, né, cara? Um dia eu fui numa reunião na Ação Educativa que era para anunciar que eles iam apoiar alguns livros. Sugeri fazer uma coletânea com autores de vários estados. E surgiu Pelas periferias do Brasil, com autores de sete estados na sua 1ª edição. A Ação Educativa continuou apoiando o custo da gráfica na 2ª edição e, depois, arrumou outro patrocinador, que acabou ficando com a gente, que é o Centro Cultural da Espanha. E o livro é anual, não repete autores de um ano para o outro. Tem algumas coletâneas literárias que eu gosto muito, mas que repetem muito os autores. Prefiro não citar nomes, mas não acho muito legal. Desde o começo a gente decidiu que não podia repetir os autores. Em cinco volumes saíram 80 autores, né? É muita gente. Todos são escritores? Não. Tem gente que publicou o único texto que escreveu, ou um que estava na gaveta. Mas o cara teve o prazer de publicar alguma coisa. A gente não espera que todos saiam da coletânea e virem escritores, mas, cada vez mais pessoas que estão na coletânea acabam lançando seu primeiro livro. E assim, a cena é legal? A cena tem prestígio? Ter ficado desse tamanho, ter trazido vocês a São Paulo para ir na mostra é muito louco. Porque, vamos supor que só tivesse eu, o Ferréz, o Sérgio Vaz e o Sacolinha, quatro pessoas, nós iríamos ser considerados ETs. “Olha, surgiram uns ETs”. Mas não. Tem um monte de gente escrevendo, porque esse negócio que o povo não gosta de livro, que o povo não gosta de ler… Distribui livro de graça para ver se o povo não quer? O povo quer, cara, só que assim, a gente vê aqui aquela prateleira ali, média de R$ 15, R$ 20, R$ 25 a maioria dos livros. Tem até de R$ 30. Cara! Você vai na livraria Cultura e o livro mais barato custa R$ 40, tá ligado? Você cata qualquer livro lá e é 45, 50 paus. As editoras falam para o povo: “Não leia! Deixa para ler quem tem dinheiro para ler!”. Então o povão não lê, mano, porque os caras não têm 40 conto pra comprar um livro. Meu! A gente está publicando alguns livros pelo selo da Suburbano [Convicto], por enquanto são livros meus, o Buzo 10, o infantil, Pelas periferias… A gente quer vender o livro o mais barato que a gente conseguir, mano, que se dane se um dia a gente incomodar qualquer pessoa com isso, entendeu? O negócio é as pessoas lerem, cara! Sabe!? Quando vai fazer um evento, a gente já leva o Pelas periferias e meto a R$ 10, então, quer dizer, você tirou o fator caro, ficou possível ler, e o cara vai ler se quiser. Aí já é um problema dele, também ninguém vai pegar ninguém pela mão para sair lendo.

Tirar da gaveta tem sido um passo relativamente mais acessível, mas conquistar o público leitor parece ser mais complicado. Além de baratear o livro, como você se aproxima do seu público? Que estratégias estão envolvidas na criação de um espaço como a Suburbano Convicto?

Alessandro Buzo – A livraria surgiu há quatro anos, ela era bem pequenininha, uma garaginha de uma casa lá no Itaim Paulista. Um dia eu estava passando e tinha uma placa de aluga-se, era caminho da minha casa, e eu bati palma e perguntei para a mulher quanto era o aluguel. Ela falou que era R$ 150. Achei muito barato. Daí ela falou: “Olha, tem a água que é ligada como comércio que é mais R$ 50. Mesmo se você usar a água muito pouco vem R$ 50”. Eu tinha uns livros meus amontoados lá em casa, doido para expor eles ali. E tinha outras coisas, por exemplo: aqui a gente vende roupa, eu era patrocinado por uma marca, ainda sou, e tinha muita roupa dela nova, que nunca tinha usado. Daí falei: “Pô, podia montar uma lojinha, coloco algumas roupas”. Porque eram umas roupas da moda, da conduta que o pessoal do hip hop gostava de usar. E pensei: “Ponho umas roupas que eu tenho novas, ponho à venda, ponho os livros que tenho meus. Vou montar uma livrariazinha ali e tal e aí vai ser nosso escritório”. O motivo de querer ter o meu escritório é porque eu morava numa casa de dois cômodos, que era muito apertada. Meu filho cresceu e eu não podia mais morar nessa casa, não estava dando mais. Estava dando muita entrevista e com muita reportagem na televisão. Eles queriam ir no Itaim Paulista, porque eu era um escritor da periferia. Ficava incomodado quando eles iam na minha casa e ela virava o centro da matéria, e não o meu trabalho. Começavam a falar do córrego que estava passando atrás. O cara começava a falar do grafite que tinha na parede da cozinha, que era a sala, a cozinha, o escritório, era tudo. E, assim, eu estava achando chato levar as pessoas na minha casa. Aí montei a loja para ser meu escritório. Quando alguém quisesse me entrevistar, ia na livraria. E a livraria ficou dando prejuízo por três anos. Eu já estava começando a trabalhar na TV Cultura e tirava um pouco do que ganhava para bancar o prejuízo de R$ 300 a R$ 400 por mês. Achava que ela um dia ia decolar, só que essa decolagem nunca veio, porque ia muita gente lá, só que as pessoas não compravam, meu! As pessoas não tinham dinheiro no bolso sobrando. Era mais as pessoas do hip hop. Tinha gente que frequentava a livraria, mas nunca comprou nada e eu vou falar o que pro cara? “Ah, não vem aqui?”. Sabe, não dá. O cara era mó gente boa, batíamos altos papos. Ele ia no bar comprar cerveja para nós, mas não comprava um livro. Fazer o quê? É lógico que vendia alguma coisa, mas não o suficiente para pagar o aluguel e as outras despesas. Antes de falir eu montei a loja dois, aí minha mulher falou: “Meu! Uma loja não está dando, vai montar duas e uma perto da outra?”. Eu disse: “Não, mas é outro público”, porque tinha um cabeleireiro e eu pensei que o pessoal que frequentava o lugar geralmente tinha uma graninha a mais. Fiz a inauguração, que acabou virando um churrasco. O cara tinha mais uma sala mais para o fundo e, nas primeiras duas semanas de trampo, de repente ele fechou tudo. Mas um dia a gente começou a tomar uma cervejinha, eu fui lá no fundo e descobri que o cara tinha montado um bagulho de maquininha de caça-níquel. Falei: “Puta cara! Como é que você botou o caça-níquel aqui sem me falar? Tá maluco, meu? Vem aqui uma porra de uma polícia, estoura isso aqui, vem com o Datena. Os cara vão me fritar, mano, perco meu emprego lá na TV Cultura envolvido com essa merda aqui que eu nem sabia que você montou”. Aí cheguei na minha mulher e falei: “Ó mano! Vou fechar a loja lá”. Olha que tinha duas semanas. Eu tinha gastado pra fazer a festa de inauguração, pra fazer um grafite gigante na parede e o primeiro aluguel, uns R$ 700. Aí eu cheguei na minha mulher e falei: “Mano, vamos fechar, porque se o bagulho cai, nós cai junto e não temos grana pra repor”. Ela falou: “Sabe de uma coisa? Vamos fechar as duas”. Eu trabalhava aqui em cima [no prédio da livraria no Bixiga], no terceiro andar, que é a produtora que fazia o meu quadro na TV Cultura, a DGT Filmes. Quando saí do meu último emprego, comecei a fazer um frila aqui, de 14h a 19h. Eles me davam uma merreca por semana, pagavam minha condução e eu vinha mais cedo para o trampo. Só precisava estar aqui às duas horas, mas vinha mais cedo para o Centro, fazia outras coisas e depois vinha para cá. E quando eu ia fechar as duas lojas do Itaim, surgiu uma sala aqui no primeiro andar. A sala era menor que essa, e falei: “Pô, mano, daria uma livraria”. E tinha uns carinha aqui nesta sala que não estavam conseguindo pagar o aluguel. Eles ficaram de dar a resposta se desciam. Se ficassem aqui, eu iria alugar a sala de baixo, e era a resposta que estava esperando, porque aqui em cima era caro demais. Os caras resolveram descer, e a única sala que ficou vazia foi esta. Aí o Toni falou: “Buzo, já que você quer montar a parada, monta na grande mesmo! A gente faz um valor menor do que o normal, e aí depois se você estiver estabilizado a gente aumenta um pouco”. Combinei um valor com ele que era alto para mim, mas: vamos tentar? Vamos tentar! Foi no carnaval de 2010. E como que eu vou trazer as pessoas aqui para a livraria se ela não é na porta da rua? Sabe? É difícil, poxa. Enxergar eles não vão. O que eu comecei a fazer? Comecei a fazer evento aqui. O evento é por quê? A livraria sempre teve isso, né? Lá no Itaim Paulista a gente fazia o Encontro com o autor: a Érica [Peçanha], o Ferréz, o Sacolinha, todo mundo já foi lá como convidado. E aí eu comecei a fazer o Encontro com o autor aqui, que depois virou Sarau Suburbano, porque no final a gente sempre declamava as poesias. E aí o pessoal falou: “Mas por que você não faz um sarau?” Eu não queria fazer, porque eu ia em outro sarau e já estava contemplado. Ir nos outros saraus já estava de bom tamanho pra mim. Ter um sarau, eu imaginava como um trabalho a mais, mas acabei fazendo o Sarau Suburbano. Esses eventos, lançamentos de livros, CDs, outros saraus e debates que a gente faz é que trazem as pessoas pela primeira vez. Elas muitas vezes conhecem a livraria por causa do Sarau Suburbano e depois voltam pelo conteúdo da loja. Nesse ritmo, a gente graças a Deus tem conseguido se manter. Aqui continua sendo meu escritório, então durante a semana o movimento é menor, aparece uma pessoa ou outra. Tem o pessoal do prédio que frequenta por causa da bombonière para tomar um refrigerante, comer um chocolate, e fica um movimento mais tranquilo do que nos dias de evento. Em dias de evento lota! O cara chega aqui e fala: “Puta! O Buzo estourou, está vendendo horrores!”. Mas pô, é nos dias que tem evento. No dia a dia as pessoas vêm esporadicamente. Tem gente que vem aqui e compra um livro, tem gente que vem aqui e compra uma camiseta e tem gente que vem aqui e faz compra grande. A Ação Educativa compra livros em quantidade para os educadores, para usar na Fundação Casa. Hoje a livraria está empatando. Começou a empatar. Se eu dependesse da livraria para sobreviver, já teria falido lá no Itaim Paulista, né? Mas aqui no Centro eu já teria falido também. É muito triste saber que dificilmente outra livraria com esse perfil vai sobreviver. É antes de tudo uma guerrilha para manter isso aqui. E aí virou uma questão de honra, a gente não fecha isso aqui nem se… pode esquecer. A gente vai ficar aqui.

Figura 4: Livraria Suburbano Convicto (foto: Marilda Borges)
Figura 4: Livraria Suburbano Convicto (foto: Marilda Borges)

Você não falou em movimento da Literatura Marginal. Do jeito que você conta a história, que vai surgindo um aqui e outro ali, não é exatamente um movimento, mas vem um de cada lado e compõe uma cena literária da periferia, que é a grande novidade.

Alessandro Buzo – Não era o que os outros esperavam.

Isso diferencia uma geração que passa a se identificar com a literatura, a querer se tornar escritor? Para seus pais ou avós era muito mais inacessível?

Alessandro Buzo – Primeiro fator é: há dez anos começaram a surgir os livros pioneiros, que foram realmente de pessoas que, como eu, bateram em porta, derrubaram porta para fazer seus primeiros livros. E, depois, começaram a surgir outros. Eu acho que sempre… não diria sempre, mas há muito tempo tem pessoas que escrevem. Essas pessoas só tinham os seus textos engavetados. As pessoas escreviam e não mostravam para ninguém. Então, por que nos últimos dez anos mudou? Porque começou a surgir a internet. A internet começou a ficar viável, então o cara começou a escrever no blog, o cara começou a publicar no site, os textos começaram a circular. Já existia uma cena que circulava, antes da internet. Tinham os fanzines. Eu fazia fanzine, Sacolinha fazia fanzine, a Elizandra [Souza] do livro Punga fazia fanzine, o Dimenor (que é autor do Pelas periferias do Brasil vol. 5) fazia fanzine, um monte de gente fazia fanzine. O Oliveira, de Guaratinguetá, que está no Volume 5, fazia fanzine. Ele veio aqui comprar 30 livros fora a cota que recebeu para o lançamento hoje lá em Guará. Existe uma cena, porque as pessoas viram que, primeiro, começaram a surgir os saraus e as pessoas poderiam falar, então pô: “As pessoas já vão saber o que eu escrevo”. Quando eles viram que as pessoas começaram a publicar, eles falaram: “Porra, é possível publicar?! E antes de ser possível publicar eu já posso publicar na internet, eu já posso fazer meus contos circularem”. Então um foi virando referência para o outro: “Pô, mano, o cara fez daquele jeito”. “O cara lançou com o dinheiro do próprio bolso”. “O outro fez um projeto para o Vaz e lançou vários livros”. “O outro é o Allan da Rosa, lançou vários livros”. Começaram a surgir os “Allan da Rosa” da vida, começaram a surgir os “Ferréz” da vida, que começaram a reproduzir, até eu, começando da periferia. Então, eu acho que antes da nossa geração já tinha um monte de gente que escrevia, acho que desde os anos 60/70 já tinha muita gente que escrevia. Era uma minoria? Era uma minoria! Hoje tem mais gente? Hoje tem mais gente porque existe toda essa cena, pô! O cara tem onde mostrar, o cara existe! Por exemplo, Manda busca, um livro do Luan [Luando], do Sarau do Binho; a história dele de vida e a trajetória dele… ele era mais um cara comum de periferia: um cara negro, pobre, com defeito na mão. Pô, cara! Tudo isso, sabe? Mas a sociedade recrimina tudo, preconceito racial e mais o preconceito dele ser deficiente. Era para ele ser um cara comum da periferia, só que a literatura trouxe outras coisas para ele. Ver o Luan declamando é a coisa mais linda do mundo, ele declama com a alma. E o Luan é uma peça de uma engrenagem. Essa engrenagem tem vários saraus, e tem o Sarau do Binho. O Luan é frequentador do Binho, mas vai a vários outros. Ou seja, os caras circulam, vira uma rede, sabe? Hoje você vê o cara! Você pode ver o Luan na Brasilândia, você pode ver o Luan aqui no Bixiga, você pode ver ele na casa dele, que é o Sarau do Binho. Daí, depois de tanto mostrar a cara e mostrar talento – tem várias pessoas que admiram ele, pois ele lançou o seu livro –, é meio que passar para um patamar seguinte, entendeu? Porque pô, poeta bom declamando em sarau tem um monte. O cara vai ser poeta de sarau, sabe? É maravilhoso! Ter sarau e ir lá declamar. Só que ao lançar um livro, ele passa a ser dos autores publicados. E por que o Luan virou escritor? Do mesmo jeito que eu. Pegando o trem lotado, ganhando pouco, usando droga. Não era para ter virado escritor. A gente é meio que defeito de fabricação, entendeu? Mas por que a gente começou a escrever? A maioria dos escritores periféricos? A gente usou um texto para fazer protesto, cara, porque tomava porrada de todo o lado.

Essa literatura me faz lembrar do caso do Ferréz, que foi processado por aquele conto que escreveu na Folha de São Paulo, sobre o assalto sofrido pelo Luciano Huck. Essa literatura pode ser fora da lei também. Ela pode interferir?

Alessandro Buzo – Ah sim! Pode ser fora da lei, pode ser marginal. Os nomes são muito contraditórios dentro dessa cena. É porque tem gente que não gosta do nome literatura marginal, o Sacolinha não gosta, o Sérgio Vaz não gosta e não usa. Outros chamam de literatura periférica, né? Outros chamam de divergente e tal, eu não me incomodo com nenhum dos nomes. Para mim, é marginal porque é marginal mesmo, porque a gente está à margem da sociedade; é periférico porque é periférico mesmo e divergente, qualquer outro nome que surgiu, nenhum deles me incomoda. Todos cabem na nossa literatura.

Literatura brasileira te incomoda?

Alessandro Buzo – Não, literatura brasileira é maravilhoso! Eu acho que o que a gente faz é só literatura. Pode chamar do que quiser, eu gosto de literatura marginal e uso, não tenho nenhum problema com isso.

Há influência do hip hop na sua produção literária?

Alessandro Buzo – Ah, tem total! Antes de começar a escrever, eu comecei a ouvir rap. E aí comecei a ouvir letra de rap e tal. Pô, os caras falavam as coisas que eu queria falar, sabe? As músicas! Tem um texto que chama “Facção Central, Papa, Bush…”. O Papa não era o Bento XVI… era o Bento XVI, né? Sei lá se era o Bento XVI ou era outra pessoa. O Papa veio noBrasil. O Bush, que era presidente dos Estados Unidos, veio no Brasil, muito próximo. E eu estava ouvindo um rap lá na livraria Suburbano de Itaim. Tava um frio! Imagina um dia frio. E eu ouvindo Facção Central e lendo, no jornal, a visita do Bush, o protesto que teve e tal. E comecei a lembrar, a música falava assim: “Hoje Deus anda de blindado, cercado e protegido por dez anjos armados”, queria dizer que Deus tinha que hoje andar com segurança. Aí eu pensei, poxa, se Deus precisa andar de segurança… e comecei a lembrar do Papa que andou no meio do povo num carro blindado e apareceu no mosteiro de São Bento, com uma tela blindada na frente dele. Se o Papa é o que mais se aproxima de Deus – pelo menos para quem acredita nisso –, então o Papa tem que andar blindado, né? Então era uma verdade o que eu estava ouvindo na música. Pensei, mano, mas o Bush, que era o diabo; Papa é Deus, Bush é o diabo. O Bush também tem que andar armado com segurança. Então falei assim: “Poxa, pelo menos no tratamento, aqui em São Paulo, Deus e o diabo têm o mesmo peso. Os dois têm que andar armados”. Daí saiu o texto que chamava “Facção Central, Papa, Bush…”. E comecei a usar várias vezes música de rap para influenciar um texto. E o livro dotremtambém teve uma influência da música do RZO, O trem. Coloquei a música no meu primeiro livro, sem pedir autorização para o grupo. Aí eu saí numa matéria na revista Rap Brasil, que depois virei repórter. Hoje conheço todo mundo, todos os grupos, e acho que me fiz conhecer por eles também. O livro Hip hop dentro do movimento só pode existir porque eu conheço essa gente. Entrevistei 70 pessoas do Brasil inteiro, entre artistas e militantes. Tem gente do Acre, da Bahia, do Rio de Janeiro, de São Paulo. É um livro de entrevistas e eu costuro por assuntos.

Como a relação com outros escritores altera a sua escrita?

Alessandro Buzo – Ah! Eu leio muito, né, cara? Li quarenta livros este ano. Então é lógico que, quanto mais você lê, mais te influencia. Alguns te influenciam mais diretamente e outros indiretamente.

Estou falando mais do movimento mesmo. Do Sérgio Vaz, do Ferréz. Se vocês realmente conversam sobre o tipo de escrita?

Alessandro Buzo – A gente tem um respeito mútuo, sabe? Uma admiração cada um pelo outro. Eu sou muito amigo de todos eles assim. Me dou bem com todo mundo. Sou um cara muito fácil de se relacionar e tal. Cada um tem sua particularidade. Sérgio Vaz fica mais lá no quilombo dele, sabe? Ele nunca frequentou aqui, por exemplo. A gente tem um distanciamento que às vezes é porque estou fazendo um milhão de coisas e ele está fazendo um milhão de coisas também. A gente está bem afastado por causa disso. Agora, com outros a gente acaba ficando mais próximo porque tem feito, ultimamente, juntos. O Ferréz veio aqui na livraria, fez leitura do livro dele que ainda nem foi publicado. O Sacolinha, uma vez ou outra. A gente se fala se precisar, se tiver alguma coisa para somar para o outro e tal, a gente se fala. A falta de proximidade… pô, eu passo um tempão sem ver o Sacolinha e sou super amigo dele. Mas, pô! O Sacolinha está lá em Suzano, sabe? Então, ele está fazendo o corre dele lá, o Sérgio Vaz está fazendo o dele, eu estou fazendo o meu, o Ferréz está fazendo o dele, o Allan da Rosa, que era muito presente no sarau, sumiu, foi resolver outras coisas. Mas a gente sabe o que o outro está fazendo pela internet. Existe o respeito mútuo e uma admiração mútua entre todos nós. Briga não tem, briga declarada com ninguém. Assim, o movimento é de conciliação e não de separação. Uma coisa que faz que o outro não acha legal, sabe? Isso é coisa da vida mesmo. Então, se falta um pouco de proximidade é porque também a gente está fazendo coisa demais. Eu mal dou conta da minha agenda. Ah, meu! A Mostra da Cooperifa vai ter um monte de coisa, mas eu não sei em que dia eu vou poder ir. Porque se eu olhar minha agenda, amanhã estou de folga, porque caiu uma gravação no dia e pode ser que tenha outra, mas, se eu folgar amanhã… faz mais de três semanas que eu não tiro um dia de folga, porque eu gravei para a TV nos últimos fins de semana. Eu mal consigo cumprir minha agenda que é coisa pra caramba, cara. Então pô, se amanhã eu conseguir ficar de folga, se não confirmar a gravação, eu poderia ir em algum lugar, mas não vou, porque eu preciso descansar, sabe? Então, assim, hoje está bacana? É legal? Está, mas é cansativo. Então, se existe algum distanciamento é porque todo mundo está trabalhando muito. É o momento de trabalhar mesmo.

Figura 5: Grupo de pesquisadores em literatura com o entrevistado Alessandro Buzo (foto: Marilda Borges)
Figura 5: Grupo de pesquisadores em literatura com o entrevistado Alessandro Buzo (foto: Marilda Borges)

* Alexandre Graça Faria é professor de Literatura Brasileira na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e pesquisador do CNPq.

** Érica Peçanha é doutora em Antropologia Social e pós-doutoranda em Educação pela USP. Autora de Vozes marginais na literatura e diversos artigos sobre produção cultural da periferia paulistana.

*** Fernanda Pires Alvarenga Fernandes é doutoranda em Estudos Literários na UFJF e autora do livro Ponto de partida, um país em cena: identidade e cultura contemporânea no teatro musical.

**** Ricardo Ibrhaim Matos Domingos é doutorando em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e Mestre em Estudos Literários pela UFJF.

***** Waldilene Silva Miranda é doutoranda em Estudos Literários pela UFJF. É autora do artigo Intelectuais “da periferia”: uma análise das performances de Ferréz e desenvolve estudos relacionados à cultura brasileira contemporânea.

Nota

[1] Colaboraram na transcrição: Bruna Garcia, Márjori Mendes e Monique Ivelise.