Meditação sobre o ofício de criar | de Silviano Santiago

Nos dois últimos livros de ficção que publiquei O falso mentiroso (2004) e Histórias mal contadas (2005), tentei dar corpo textual a quatro questões constitutivas do que tem sido para mim o exercício da literatura do eu – as questões da experiência, da memória, da sinceridade e da verdade poética. Se eu aceitei o convite para lhes falar hoje, não foi com a intenção de trazer ao palco o autor dos livros e, com ele, o objetivo de oferecer-lhes uma leitura explicativa daqueles dois e de outros textos autoficcionais meus. Pelo contrário. Só ao leitor compete a tarefa da leitura. Aliás, não sou escritor que busca minimizar o trabalho do leitor; em geral, complico-o. Subscrevo dois versos de Nietzsche/Zaratustra, que dizem: “odeio todos os preguiçosos que lêem. / Alguém que conhece o leitor, nada fará pelo leitor”. Perguntado sobre se encenava peças para seu público, Antonin Artaud respondeu: “O público, é preciso em primeiro lugar que o teatro seja”. Em nossas palavras: O leitor, é preciso em primeiro lugar que a literatura seja.

O objetivo primordial desta fala é o de lhes apresentar e, na medida do possível, discutir algumas questões abstratas que preocuparam e preocupam o escritor enquanto personalidade que reflete sobre o estatuto disso a que hoje se chama – e ele próprio passou a chamar – de autoficção. Se pedisse ajuda a João Cabral de Melo Neto, estas palavras trariam como título e intenção “Meditação sobre o ofício de criar”. A ele peço de novo ajuda para acrescentar que a meditação “nada têm de pregação e sequer da sugestão de receitas possíveis”.

No meu caso, cheguei à autoficção através de um longo processo de diferenciação,preferênciacontaminação. Falo primeiro da diferenciação e da preferência. Parti da distinção entre discurso autobiográfico e discurso confessional. Os dados autobiográficos percorrem todos meus escritos e, sem dúvida, alavanca-os, deitando por terra a expressão meramente confessional. Os dados autobiográficos servem de alicerce na hora de idealizar e compor meus escritos e, eventualmente, podem servir ao leitor para explicá-los. Traduz o contato reflexivo da subjetividade criadora com os fatos da realidade que me condicionam e os da existência que me conformam. Do ponto de vista da forma e do conteúdo, o discurso autobiográfico per se – na sua pureza – é tão proteiforme quanto camaleão e tão escorregadio quanto mercúrio, embora carregue um tremendo legado na literatura brasileira e na ocidental.

Já o discurso propriamente confessional está ausente de meus escritos. Nestes não está em jogo a expressão despudorada e profunda de sentimentos e emoções secretos, pessoais e íntimos, julgados como os únicos verdadeiros por tantos escritores de índole romântica ou neo-romântica. Não nos iludamos, a distinção entre os dois discursos tem, portanto, o efeito de marcar minha familiaridade criativa com o autobiográfico e o conseqüente rebaixamento do confessional ao grau zero da escrita. Em que pese seu legado insuspeito para as culturas nacionais, o discurso autobiográfico jamais transpareceu per se em meus escritos, ou seja, não me apropriei dele em sua pureza subjetiva e intolerância sentimental. Não escrevi minha autobiografia. Uma pergunta se impõe: Então, como tenho valido do discurso autobiográfico nos escritos? Para respondê-la, passemos ao terceiro movimento, o da contaminação.

Ao reconhecer e adotar o discurso autobiográfico como força motora da criação, coube-me levá-lo a se deixar contaminar pelo conhecimento direto “atento, concentrado e imaginativo” do discurso ficcional da tradição ocidental, de Miguel de Cervantes a James Joyce, para ficar com extremos. Não foi por casualidade que, na juventude, o crítico de cinema se matriculou na Faculdade de Letras e se tornou, na maturidade, professor de literatura. Se minha vida é a que me toca viver, minha formação foi e é estofada pela leitura dos ficcionistas canônicos e dos contemporâneos – independente de nacionalidade. Com a exclusão da matéria que constitui o meramente confessional, o texto híbrido, constituído pela contaminação da autobiografia pela ficção – e da ficção pela autobiografia –, marca a inserção do tosco e requintado material subjetivo meu na tradição literária ocidental e indicia a relativização por esta de seu anárquico potencial criativo.

Inserir alguma coisa (o discurso autobiográfico) noutra diferente (o discurso ficcional) significa relativizar o poder e os limites de ambas, e significa também admitir outras perspectivas de trabalho para o escritor e oferecer-lhe outras facetas de percepção do objeto literário, que se tornou diferenciado e híbrido. Não contam mais as respectivas purezas centralizadoras da autobiografia e da ficção; são os processos de hibridização do autobiográfico pelo ficcional, e vice-versa, que contam. Ou melhor, são as margens em constante contaminação que se adiantam como lugar de trabalho do escritor e de resolução dos problemas da escrita criativa.

A força criadora do eu – o que Michel Foucault chama de ressemantização do sujeito pelo sujeito – tropeça na pedra no meio do caminho que é a tradição literária ocidental. Tropeça na pedra, leva tombo, levanta, sacode a poeira, dá a volta por cima e se afirma como também produtora no embate com o poder esmagador da tradição ficcional. Dessa forma é que a ressemantização do sujeito pelo sujeito ganha tutano para questionar, pela produção textual, o estatuto contemporâneo tanto da técnica/artesanato da ficção (the craft of fiction, em inglês) quanto do cânone ficcional. Com o correr dos anos, o movimento de vai-vem do questionamento duplo abriu-me uma brecha de intervenção dramática e textual, onde tenho trabalhado as principais características – experiência, memória, sinceridade e verdade poética ? da moderna literatura do eu.

A fim de evitar mal entendidos, afirmo que em nenhum momento do passado remoto usei a categoria autoficção para classificar os textos híbridos por mim escritos e publicados. Quando pude, evitei a palavra romance. No caso de Em liberdade (1981), um diário íntimo falso “de” Graciliano Ramos, classifiquei o livro de “uma ficção de”, para o desagrado dos editores que preferem o ramerrão do gênero. Já a professora Ana Maria Bulhões de Carvalho o classificou dealterbiografia, um neologismo que já aponta para o caráter híbrido da proposta. Não tive pejo em usar “memórias” para O falso mentirosoMemórias tem boa tradiçãoficcional entre nós.1 Finalmente, acrescento que fiquei alegremente surpreso quando deparei com a informação de que Serge Doubrovsky, crítico francês radicado nos Estados Unidos, tinha cunhado, em 1977, o neologismo autoficção e que, em 2004, Vincent Colonna, um jovem crítico e historiador da literatura, tenha valido do neologismo para escrever o desde já indispensável Autofiction & autres mythomanies littéraires (Paris, Tristram). Em suma, passei a usar como minha a categoria posterior e alheia de autoficção.

Meu percurso certamente difere do percurso de Serge Doubrovsky e de Vincent Colonna, e é por isso que aceitei o convite que me foi feito por Luciana Hidalgo para participar deste encontro. Aliás, Colonna é bastante generoso na sua configuração do gênero híbrido ? a autoficção, que motivou seu estudo, optando por classificar o conjunto das narrativas afins como “uma nebulosa de práticas aparentadas”. Escreve ele que é imensa a lista dos escritores que vêm emoldurando sua identidade numa montagem textual, acrescentando: “Desiguais em sua riqueza, as obras deles são também diferentes pela forma e pela amplidão dos processos de hibridização, mas todas elas marcam uma época, um momento da história literária, em que a ficção do eu [la fiction de soi] ocupa os mais diferentes escritores, para constituir não tanto um gênero, mas talvez uma nebulosa de práticas aparentadas”.

Como a autoficção não é forma simples nem gênero adequadamente codificado pela crítica mais recente, eis-me à vontade para relatar-lhes meu caminho pessoal. Retorno à distinção inicial entre discurso autobiográfico e confessional.

Não esbocei intencionalmente a distinção e muito menos a arquitetei por artes da inteligência ou da razão. Tampouco a constitui de maneira fria e pragmática como lugar original de minha prática literária. A distinção entre autobiográfico e confessional ganhou corpo textual no momento em que comecei a conjugar minha própria experiência infantil de vida com o auxílio dos verbos de minha memória. Ou seja, desde a mais tenra infância, a distinção entre autobiografia e confissão foi feita e existiu em mim e, desde sempre, existe como força a alavancar a imaginação criadora.

A preferência pelo discurso autobiográfico e a conseqüente contaminação dele pelo discurso ficcional se tornou prática textual, ou seja, elas configuraram um produto híbrido, no momento em que o menino/sujeito teve a imperiosa necessidade de jogar para escanteio ? ou para o inconsciente ? o confessional e aliar a fala de sua experiência de vida à invenção ficcional. A contaminação se tornou prática propriamente literária no momento em que o adolescente/sujeito – um memorioso estudioso de Letras ? revisitava as práticas textuais híbridas da infância para torná-las do domínio público. Ao revisitá-las pelo exercício da memória, tenta apreendê-las com o fim de equacionar o desejo de criar narrativas literárias que signifiquem no universo cultural brasileiro. Muita pretensão? Talvez sim, talvez não. Mas nenhum escritor se realiza sem uma “ambição justa”, para retomar a expressão de Autran Dourado.

Portanto, a preferência pelos dados autobiográficos e a contaminação do discurso autobiográfico pelo ficcional existiram desde sempre lá na infância e estarão para sempre em meus escritos. Não tirei distinção, preferência e contaminação do nada, não as inventei recentemente e é por isso que vale a pena pagar uma visita ao menino antigo.

Desde criança, por razões de caráter extremamente pessoal e íntimo – refiro-me à morte prematura de minha mãe – não conseguia articular com vistas ao outro o discurso da subjetividade plena, ou seja, o discurso confessional. Nisso talvez possa me oferecer como paradigmas a infância de Gustave Flaubert e, principalmente, a maturidade de Fernando Pessoa. Não estou querendo dizer que minha personalidade infantil, isto é, meus impulsos vitais e secretos eram-me desconhecidos. Pelo contrário, conhecia-os muito bem. Tão bem os conhecia que sabia de seu alto poder de autodestruição e destruição.

Acreditei ter de esconder dos ouvidos alheios a personalidade de menino-suicida e menino-predador, escondê-la debaixo de discursos inventados (ficcionais, se me permitem), onde eram criadas subjetividades similares à minha, passíveis de serem jogadas com certa inocência e, principalmente, sem culpa no comércio dos homens. Criava falas autobiográficas que não eram confessionais, embora partissem do cristal multifacetado que é o trágico acidente da perda materna. Já eram falas ficcionais e, como tal, co-existiam aos montões. Nenhuma das falas era plena e sinceramente confessional, embora retirassem o poder de fabulação da autobiografia. O dado confessional que poderia chegar à condição plena ficava encoberto, camuflado, para usar a linguagem da Segunda Grande Guerra, então dominante. Não tinha interesse em escarafunchá-lo. Os fatos autobiográficos fabulam, embora nunca queiram aceitar a cobertura da fala confessional, visto que se deixavam apropriar pelo discurso que vim a conhecer no futuro como ficcional.

O sujeito ressemantizava o sujeito pelo discurso híbrido.

Não estou querendo dizer que não vivia a angústia de não poder articular em público o dado da subjetividade plena, dita confessional. Vivia-o, só que não o exercitava como fala nem o escrevia. Agarrar-me e subtrair-me a essa angústia era o modo vital da sobrevivência do corpo e dos impulsos vitais, era o modo como o discurso autobiográfico se distanciava do discurso confessional e já flertava, inconscientemente, com o discurso ficcional.. Onde mais forte se fazia o sentido da angústia e mais necessária sua subtração era à mesa de jantar ou no confessionário. Fiquemos com este exemplo.

Meu pai não era católico praticante, mas nos obrigava a ser. Segui o catecismo e fiz primeira comunhão. Ia à missa todos os domingos. Aos sábados, diante do padre-confessor de sotaque germânico (para as conotações, veja-se o período histórico), no escurinho protegido pelas grades do pseudo-anonimato (morava numa cidade do interior), tinha de fazer exame de autoconsciência e ser sincero ao enumerar econfessar os pecados da semana. Costumava trazê-los escritos numa folha de papel. Uma pitada de paranóia, e acrescento que os pecados eram muitos e, perdão pelo trocadilho, inconfessáveis. Apesar da lista avantajada, não proferia no confessionário uma fala sincera, confessional. Mentia. Ficcionalizava o sujeito – a mim mesmo – ao narrar os pecados constantes da lista. Inventava para mim e para o padre-confessor outra(s) infância(s) menos pecaminosa(s) e mais ajuizada(s), ou pelo menos onde as atitudes e intenções reprováveis permaneciam camufladas pela fala.

Essas mentiras, ou invenções autobiográficas, ou autoficções, tinham estatuto devivido, tinham consistência de experiência, isso graças ao fato maior que lhes antecedia – a morte prematura da mãe ? e garantia a veracidade ou autenticidade. Aos sábados, diante do confessor, assumia uma fala híbrida – autobiográfica e ficcional ? verossímil. Era “confessional” e “sincero” sem, na verdade, o ser plenamente. O menino ao confessionário já era um falso mentiroso. Faço minhas as palavras contundentes de Michel Foucault em A arqueologia do saber: “Não me pergunte quem sou eu e não me diga para permanecer o mesmo: é uma moral de estado civil; ela rege nossos papéis. Que ela nos deixe livres quando se trata de escrever”.

Na infância, já era multiplicadoramente confessional e sincero, eraautoficcionalmente confessional e sincero. O discurso confessional – que nunca existiu no domínio público – se articulava e se articulou desde sempre pela multiplicação explosiva dos discursos autobiográficos que faziam pacto com o ficcional. O discurso confessional – que na verdade não o era, era apenas um lugar vazio, desesperador, preenchido por discursos híbridos – só poderia estar plena e virtualmente num feixe discursivo, numa soma em aberto de discursos autoficcionais, cujo peso e valor final seriam de responsabilidade do padre-confessor – e, hoje, de meu leitor. Ao padre-confessor e ao leitor passava algumas histórias mal contadas.

A boa literatura é uma verdade bem contada… pelo leitor… que delega a si – pelo ato de leitura ? a incumbência de decifrar uma história mal contada pelo narrador. Competiu aos ouvidos do padre-confessor ? e compete hoje aos olhos do leitor ? preencher os brancos e os vazios de que é também feito um texto literário, aliás, não tenhamos dúvida, qualquer texto, que o diga o psicanalista. Compete ao leitorempinar (como a uma pipa) e endireitar (como a algo sinuoso) um objeto em palavras que lhe é dado de maneira corriqueira e aparentemente em desordem. Um exemplo? Pois não. Dom Casmurro é uma história mal contada pelo narrador Bentinho sobre o adultério de sua esposa, Capitu, com Ezequiel, o melhor amigo do casal. Caso narrada da perspectiva do leitor, a estória em primeira pessoa sobre o adultério de Capitu se transforma numa bem contada história sobre o ciúme doentio do personagem Bentinho.

As histórias – todas elas, eu diria num acesso de generalização – são mal contadas porque o narrador, independentemente do seu desejo consciente de se expressar dentro dos parâmetros da verdade, acaba por se surpreender a si pelo modo traiçoeiro como conta sua história (ao trair a si, trai a letra da história que deveria estar contando). A verdade não está explícita numa narrativa ficcional, está sempre implícita, recoberta pela capa da mentira, da ficção. No entanto, é a mentira, ou a ficção, que narra poeticamente a verdade ao leitor.

Um dos grandes temas que dramatizo em meus escritos, com o gosto e o prazer da obsessão, é o da verdade poética. Ou seja, o tema da verdade na ficção, da experiência vital humana metamorfoseada pela mentira que é a ficção. Trata-se de óbvio paradoxo, cuja raiz está entre os gregos antigos. Recentemente, encontrei a forma moderna do paradoxo num desenho de Jean Cocteau, da série grega. Está datado de novembro de 1936. No desenho vemos um perfil nitidamente grego, o do poeta e músico Orfeu. De sua boca, como numa história em quadrinho, sai uma bolha onde está escrito: “Je suis un mensonge qui dit toujours la vérité” (Sou uma mentira, que diz sempre a verdade). Esse jogo entre o narrador da ficção que é mentiroso e se diz portador da palavra da verdade poética, esse jogo entre a autobiografia e a invenção ficcional, é que possibilitou que eu pudesse levar até as últimas conseqüências a verdade no discurso híbrido. De um lado, a preocupação nitidamente autobiográfica (relatar minha própria vida, sentimentos, emoções, modo de encarar as coisas e as pessoas, etc.), do outro, adequá-la à tradição canônica da ficção ocidental.

Toda narrativa ficcional em que a verdade poética está transparente – aquilo que se chama de romance de tese – é um saco. A verdade ficcional é algo de palpitante, pulsante, que requer sismógrafos, estetoscópios, e todos os muitos aparelhos científicos ou cirúrgicos que levam o leitor a detectar tudo o que vibra, pulsa e trepida no quadro da aparente tranqüilidade da narrativa literária, ou seja, no mal contado pela linguagem. Nesse sentido, e exclusivamente nesse sentido, o bem contado é a forma superficial de toda grande narrativa ficcional que é, por definição e no seu abismo, mal contada.

Para terminar, leio parte dum fragmento de “Sem aviso”, texto assinado por Clarice Lispector: “Comecei a mentir por precaução, e ninguém me avisou do perigo de ser precavida, e depois nunca mais a mentira descolou de mim. E tanto menti que comecei a mentir até a minha própria mentira. E isso – já atordoada eu sentia – era dizer a verdade. Até que decaí tanto que a mentira eu a dizia crua, simples, curta: eu dizia a verdade bruta”. Permitam-me a glosa. O sujeito em primeira pessoa começou a mentir por prudência e cautela e, como a realidade ambiente o incitava a ser prudente e cauteloso, continuou a mentir descaradamente. E tanto mentia, que já mentia sobre as mentiras que tinha inventado. E a tal ponto mente, que a mentira se torna o meu modo mais radical de ser escritor, de dizer a verdade que lhe é própria, de dizer a verdade poética.

(2007)

 

* A palestra foi escrita a pedido de Luciana Hidalgo e apresentada na sede do SESC, em Copacabana.

 

NOTAS

1 Memórias de um sargento de milícias, Memórias póstumas de Brás Cubas e Memórias sentimentais de João Miramar.

 

Ana Cristina. Em vôo rasante | de Clara de Andrade Alvim

Em uma primeira impressão, anotei mentalmente, sem ordem de nenhuma espécie, pontos a que queria voltar. Mas a gente tem de observar que são pontos no meio do movimento do poema e que, retirados, ganham importância e ênfase que os colocariam em sobrevôo à corrente em que foram imersos. Provavelmente, para serem afogados ou quase. Seria assim que ela quer? É muito parecido com uma brincadeira que meu neto de dois anos faz comigo, na varanda, desde que aprendeu a palavra, sacou o sentido e as possibilidades psicológicas e metafísicas de sua manipulação. Ele segura o guidom do velocípede ao inverso – e se pode perceber que assim também serve. Espera, já rindo, minha reação. Ao contrário? Pergunta, e revira a direção ao contrário, repetindo infinitamente o jogo. Vejam Ana Cristina: (Em Luvas de Pelica).
“ ………………………..You know what lies are for. Doce
coração cleptomaníaco.
Pondo na mala de esguelha sobras do jantar,
gatos e bebês adoentados.
Bafo de gato. Gato velho parado há horas em
frente da porta da frente.
Qual o quê. Coração põe na mala. Coração põe
na mala. Põe na mala.”

Poucos versos antes dissera:

“Porque eu faço viagens movidas a ódio. Mais
resumidamente em busca de bliss.
É assim que eu pego os trens quinze minutos
antes da partida ………………………………..”

Partida antes da partida. Ódio ou bliss não. Ódio e bliss se revirando até dar no mesmo, lançando o estranhamento. Auto-complacente, a autora ou o personagem esconde o roubo irresistível (pedaços da vida dos outros, invejados embora adoentados? Um verso? O amor de outrem?) – butim da espreita, guardado na mala da partida. A repetição de “Coração põe na mala” produz aquele efeito de virar ao contrário e perguntar se é assim, que compraz a meu neto, em seu incipiente sadismo com a avó. Mas aqui a crueldade castiga quem segura a direção contra seu peito.
Voracidade, ciúme, desatino – por vezes estão por detrás das gatunagens:
(Em Correspondência Completa)

“………………………………………………………Mary tem sempre razão.
Gil diz que ela não se abre comigo porque sabe
que minha inveja é maior que meu amor. ………………………………”
………………………………………………………………………………………….

Gil diz que sou uma leoa marinha e eu exijo
segredo absoluto (está ficando convencido):
historinhas ruminadas na calçada são afago para
o coração. Quem é que pode saber? Eu sim sei
fazer calçada o dia todo, e bem. Do contrário…
Não fui totalmente sincera.”

Mas, como se vê, a des-razão revira rápido em razão muito cerebrina, desabusada e desafiante de quem – digamos- capta o alheio em conjunção a outros poetas ladrões de historinhas, de quem ela também pilha um pouquinho – mas sabendo o que faz, fazendo a seu modo. “Quem é que pode saber”? Em “Samba Canção”, de A teus pés, que ecoa títulos de Cacaso, ela diz:

“Tantos poemas que perdi,
tantos que ouvi, de graça,
pelo telefone ………………”

Essa questão da literatura-roubo, apropriação, Ana Cristina compartilha com outro escritor, cuja estréia, com Armadilha para Lamartine, ela apoiou, quando fazia parte, com Cecília Londres, do conselho informal que escolhia as publicações de autores brasileiros da espanhola editora Labor, recém-instalada em nossas plagas, ainda nos anos 70: Carlos Sussekind. Ana Cristina não chega a saber que, em 1992, Carlos vai publicar um livro chamado O Autor mente muito. Diz Ana Cristina na página final da Correspondência Completa:

“……………………………………………………..só posso
dizer que corei um pouco de ser tudo verdade. F.
penso não percebe, mas como sempre mente
muito. Mente muito! Só eu sei. Vende a alma ao
diabo negociando a inteligência alerta pela
juventude eterna.”

Autora e personagem trocam de papel com freqüência nesses versos-correspondència-diário. Um truque a mais para despistar o leitor ou para disfarçar a dor. A propósito daquele “corei um pouco de ser tudo verdade” há que lembrar – entre muitas outras coisas – os dois P.S. do final da Correspondência Completa:

“P.S. 1 – Não quero que T. leia nossa correspondência, por favor, Tenho paixão mas também tenho pudor!
P.S. 2 _ Quando reli a carta descobri alguns erros datilográficos, inclusive a falta do h no verbo chorar. Não corrigi para não perder um certo ar perfeito – repara a paginação gelomatic, agora que sou artista plástica.”

A inteligência alerta para manter, com mão firme, a literatura à distância da biografia, não se confundindo com esta, embora fazendo dela sua matéria prima.
A armadilha, a pose, a prestidigitação – a poeta como um mágico que mostra vertiginosamente as lembranças, os testemunhos, as imagens de um enredo, cuja verdade, manipulada, vira ficção.
A re-escrita da vida como paródia, feita de ironia, de humor e de um falso pudor que, às vezes, chega ao franco descaro, me parece ser uma das marcas dessa poesia. Nesse sentido, esta poesia confina com a prosa – a menos poética, a mais corriqueira – em que insere citações, apropriações literárias, referências a falas e acontecimentos recuperáveis. Primam o ataque à aura, o propósito de dessacralização. Em “18 de fevereiro”, de Cenas de Abril , lê-se:

“……………………………………………………………………………………….
Somente a dicção nobre poderia a tais alturas
consolar-me. Mas não o ritmo seco dos diários
que me exigem!”

A começar pelo rebaixamento do lugar da própria literatura e do livro. NaCorrespondência Completa, cuja edição minúscula foi objeto de grande prazer “plástico”:

“…………………………………………Escrever é a
parte que chateia, fico com dor nas costas e
remorso de vampiro. Vou fazer um curso secreto
de artes gráficas. Inventar o livro antes do texto.
Inventar o texto para caber no livro. ……………….”

Também a desmistificação do lugar do artista e certa triste e desiludida falta de ternura em relação a seu próprio processo de escrever: (Em Luvas de Pelica).

“…………………………………………………………………………………
Aqui tenho máquinas de me distrair, TV de
cabeceira, fitas magnéticas, cartões postais,
cadernos de tamanhos variados, alicate de unhas,
dois pirex e outras mais. Nada lá fora e minha
cabeça fala sozinha, assim, com movimento
pendular de aparecer e desaparecer. Guarde bem
este quarto parado com máquinas, cabeça e
pêndulo batendo. Guarde bem para mais tarde.
Fica contando ponto.”

Como nas Memórias Póstumas, que ela confessa haver lido até se sentir “ low”, o leitor da Correspondência (e o de sua literatura em geral) é provocado, ao mesmo tempo em que a autora se expõe:

“ Fica difícil fazer literatura tendo Gil como leitor.
Ele lê para desvendar mistérios e faz perguntas
capciosas, pensando que cada verso oculta
sintomas, segredos biográficos. Não perdoa o
hermetismo. Não se confessa os próprios
sentimentos. Já Mary me lê toda como literatura
pura, e não entende as referências diretas.
……………………………………………………………………”

Assim, as citações e referências literárias (“lições levantam vôo”), embora correspondam a autores de sua admiração e afinidade, em Ana surgem mescladas a sua própria dicção e ficção, eminentemente iconoclastas. Baudelaire – cuja presença é profunda na poesia de Ana Cristina – e Manuel Bandeira freqüentam o poema “21 de fevereiro” em Cenas de Abril:

“…………………………………………………..abomino
Baudelaire querido, mas procuro na vitrina um
modelo brutal. Fica boazinha, dor; sábia como
deve ser, não tão generosa, não. …………………….
………………………………………………………………….
……………………………………………………………………
…………………………………………………………………..
………………………………………………………………….
…………… Minha dor. Me dá a mão. Vem por aqui,
longe deles. ……………………………………………………
…………………………………………………………………….
………. .Belo belo. Tenho tudo que fere. As
alemãs marchando que nem homem. As cenas
mais belas do romance o autor não soube
comentar. Não me deixa agora, fera.”

São referências que penetram e exprimem o sentimento do poema, embora o devido pudor encontre sempre maneiras de driblar seu reconhecimento pelo leitor. Ainda na Correspondência Completa, cujo aspecto físico e dicção – como já se observou – se opõem em tudo à solenidade que não pode deixar de envolver a expressão da dor, Ana Cristina evoca de raspão a poesia de Maria Ângela Alvim, particularmente a do poema-em-prosa “Carta a um cortador de linho” contido no último livro – Poemas de Agosto dessa autora:

“……………………… . Há três dias que pareço morar
onde estou (ecos de Ângela). Aquele ar de
desatenção neurológica me deixa louca. Saímos
para o corredor.Você vai ter um filhinho,
ouviu?”

Diz Ângela:
“…………………………………………………………………………………..

Quanto a mim, meu amigo, vou passando. Sem
ela não fico em casa. Há três dias que pareço morar
onde estou: na rua, no café, na praia.

…………………………………………………………………………..
…………………………………………………………………………..

Mas minha pele tornou-se muito sensível. Demais.
A dor cresce dentro da gente e tem que respirar.
Ela tem uma energia e queima como o sol – lá fora.
Nem sei se é dor ou se é aquela que está sofrendo
que me visita assim. Não têm onde encontrar-me e
entram dentro de mim, querem abraçar-me e avançam
minhas fronteiras.”

Em comum a intensidade da dor e sua consideração como algo exterior, a distância de si, o sentimento do”sem lugar”. Parece-me que a leitura da cisão da personalidade em Ângela, por Ana Cristina, provoca a referência à perigosa ambigüidade que penetra os fracionamentos do “eu” e projeções, freqüentes em sua poesia:

“ ………………………………Você vai ter um filhinho,
ouviu?”

No entanto a dor, que na poesia de Ana Cristina é figurada por representações de ferocidade de quem escreve do patamar rente à vida, contrasta com o sofrimento apaziguado pela certeza do fim, “que é ali mesmo”, expressado na “Carta a um Cortador de Linho” – esse raro poema em prosa da modernidade brasileira.

Assim, pois, a intensidade da presença de autores canônicos e de outros nem tanto nos poemas de Ana Cristina não resulta na anulação de sua personalidade literária, antes a reforça. A singularidade dessa poesia provém – me parece – principalmente do domínio que a autora exerce sobre sua matéria, ao domar tanto o literário como o biográfico – que formam a substância da obra – e fazer prevalecer sua própria escrita, a qual mantém em equilíbrio o drama e a farsa.
É preciso, por fim, notar que a presença de Baudelaire e de Walt Whitman nessa poesia vai além das citações e, mesmo, além do que entendemos mais comumente como influências. Parece-me que através do eco dessas vozes contrastantes, mas inaugurais da poesia contemporânea, é que Ana Cristina enfrenta os embates para realizar seu propósito de expressar em literatura de clave moderna seus sentimentos diante da realidade de sua vida e de seu momento político e literário. Nesse sentido, diz muito o título de seu último livro: A Teus Pés.

* Clara de Andrade Alvim é graduada em letras pela antiga Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil. Livre Docente em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, com tese sobre Guimarães Rosa. Lecionou na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, na PUC RJ e na Universidade de Brasília. Coordenadora de projetos da Fundação Pró-memória do Ministério da Cultura. Publicou, entre outros, os seguintes trabalhos: “Esses poetas de hoje”, posfácio à primeira edição de “Beijo na boca”, de Antonio Carlos de Brito; “Representações da pobreza e da riqueza em Guimaraes Rosa”, in “Os pobres na literatura brasileira”, organizado por Roberto Schwarz ; “As questões: mulher, biografia e literatura nos escritos em prosa de Ana Cristina César”, in revista “Remate de Males nª 20, do Dep. de Teoria Literária da UNICAMP e a orelha de “A terceira perna”, de Vilma Arêas.

 

Legalidad, resistencia y ética | de George Yúdice

3 de abril de 2008
*De próxima aparición en Culturas, suplemento cultural de La Vanguardia (Barcelona)

Apesar de los vaticinios de la muerte de la industria de la música, en los cuales yo mismo he incurrido en varias publicaciones, sería más exacto caracterizar el estado actual del fenómeno musical como una encrucijada, un período de incertidumbre en el que los contornos del futuro sistema de circulación musical todavía no se vislumbran. Los ingresos de la industria de la música vienen cayendo, a la vez que aquellos que la escuchan (melómanos, usuarios, consumidores o como se quiera llamarles) adquieren fonogramas por intercambio de archivos en Internet o en los puestos de top manta. La industria responde con represalias legales, pero aun así no logra frenar toda la actividad que tiene lugar fuera de su control. Por otra parte, los músicos mismos vienen escapándose de las estructuras ya evidentemente caducas de la industria fonográfica. McCartney, Prince, Radiohead, Nine Inch Nails, Madonna, Bowie, y un sinnúmero de músicos menos conocidos internacionalmente han buscado nuevos modelos de mercado y de circulación musical. Así mismo, han surgido miles de sitios donde se puede conseguir fonogramas o intervenir en la creación de música en remixes y mashups, aproximando el usuario al músico, efecto que muchos celebran por su empoderamiento democratizante y otros descalifican como empobrecimiento artístico.

Si bien podría pensarse que las eventualidades empoderadora o empobrecedora son igualmente probables en este momento de flujo – o de liquidez al decir de Bauman – la verdad es que no se dan en igualdad de condiciones. Si bien las diversas nuevas tecnologías de intercambio de archivos desafían a la industria en varios aspectos, ésta no obstante tiene el respaldo de la ley y de las fuerzas policiales que le dan seguimiento. El caso más notorio es el de Jammie Thomas, quien intercambio 1.702 fonogramos, si bien fue procesada por la Recording Industry Association of America (RIAA) en base a 24 canciones, por cada una de las cuales tendrá que pagar $9.250 o un total de $220.000 de compensación. Thomas pudo haber resuelto el caso extrajudicialmente como miles de otros demandados, pero prefirió disputar los cargos en un juicio por jurado. Las circunstancias de este caso facilitaron un veredicto de culpabilidad, pero Thomas no es la única persona que busca combatir el dominio que tiene la industria fonográfica sobre la circulación de música.
Podría decirse que se están perfilando nuevas políticas en torno a la ética del intercambio de archivos. Hace décadas nadie habría sido procesado por intercambiar LPs con sus amigos e inclusive con desconocidos en clubes y lugares de encuentro, como se hace en la economía del trueque. Hoy, más allá de la criminalización de canjeadores que lleva a cabo la industria fonográfica, una miríada de organizaciones y de individuos está buscando el término medio entre el derecho de los creadores a recibir una compensación por su trabajo y el derecho de la sociedad a bienes comunes o al patrimonio de la humanidad. Las primeras concesiones de derecho de autor y de copyright limitaron el monopolio de reproducción a 28 años, después de los cuales la obra entraba al dominio público. Además, se protegió a los consumidores prohibiendo que los editores controlaran el uso de obras después de su publicación. En los EEUU se limitó el copyright a 14 años, renovable por otros 14, período que se duplicó en 1909. Pero desde 1962 viene aumentando hasta alcanzar 95 años en 1998. Como explica Lessig en su libro Cultural libre (2005), no hay justificación constitucional para esa extensión, la cual refleja la tentativa de las empresas de establecer un monopolio sobre las obras que deberían entrar en el dominio público, aumentando así sus las ganancias.

La gran novedad en la actualidad es la creciente politización de ciudadanos de todos los países que se oponen a este empequeñecimiento del dominio público y más aun al resultado de las estrategias de blockbuster y marketing empleadas por los grandes sellos para reducir el riesgo de fracaso en el mercado. Ese resultado es la casi eliminación de la radio y la televisión de las obras producidas por pequeñas y medianas empresas, y por tanto la mayor dificultad de sostener la diversidad musical en el mercado. Es justo por esta razón (apoyar el acceso a la diversidad e obras, sobre todo de regiones que no pueden competir en el mercado internacional) y por el deseo de los artistas, aún los más reconocidos, de ganar mayor control de la circulación de música y de las ganancias, que la industria fonográfica tendrá que cambiar, si quiere sobrevivir.
Podría decirse que las políticas de negocio de los grandes sellos han generado un gran movimiento social en torno de la propiedad intelectual, tema que hace un par de décadas no provocaba el interés de nadie. Así, han nacido movimientos como “Todos contra el canon” en España, con más de millón y medio de ciudadanos que quieren eliminar el impuesto a los reproductores y medios de almacenamiento digitales que la industria de la música y el entretenimiento ha logrado que se legisle. Movimientos parecidos existen en otros países, y hasta hay un partido contra los derechos de autor en Suecia.

Pero más allá de los partidos y los movimientos sociales más o menos organizados, hay una marea de resistencia a obedecer las leyes que las mayorías creen injustas. En EEUU, donde se supone hay el mayor seguimiento a las leyes, la mayoría de los estudiantes en todos los niveles consigue su música mediante el intercambio de archivos en Internet. Y ni hablar de los jóvenes en países en desarrollo. Hay países como Perú donde la industria fonográfica ha dejado de existir casi por completo en su encarnación convencional. En esos países sólo una pequeña minoría podría pagar los $15 a $20 que cuesta un CD.

Pero más aun que el precio, lo que se busca es ampliar la oferta, por una parte, y asegurar que el intercambio de música siga siendo uno de los fundamentos de la socialización o social networking. Para verificar la enorme diversidad de música, vinculada a la identidad de los internautas, sólo falta entrar en los sitios de socialización como MySpace o ver los videos que se suben a YouTube. Algunos críticos descartan este vínculo entre identidad individual o grupal y repertorios de música reduciéndolo a un mero consumo acrítico. Pero en los sitios de socialización hay debates en torno a la música desde una miríada de criterios, desde los tecnológicos a los estéticos. Lo que constatamos, pues, es una nueva alfabetización musical que enriquecerá la actividad creativa de los usuarios.

Esta no es una revolución política ni una liberación social, pero sí es un reclamo al derecho a la creatividad.

* George Yúdice es profesor de la Universidad de Miami. Colabora con el MACBA; este junio enseñará para el Programa de Estudios Independientes un curso sobre economía y cultura y dirigirá un seminario sobre el “museo molecular”. Publica:Nuevas tecnologías, música y experiencia (2007); Política cultural (2004) y El recurso de la cultura (2002), todos por Gedisa Editorial.

 

Viril delicadeza | de Eduardo de Araújo Teixeira

[Ensaio sobre Aqueles dois, de Cia. Luna Lunera]

“Queríamos tanto salvar o outro. Amizade é matéria de salvação. (…) Mas todos os problemas já tinham sido tocados, todas as possibilidades estudadas. Tinhas apenas essa coisa que havíamos procurado sedentos até então e enfim entrado: Uma amizade sincera.” Clarice Lispector

Assistir aos atos concentrados dos Prêt-à-porter dos atores-criadores de Antunes Filho, depois ver esta peça que vem de Minas Gerais pela Cia. Luna Lunera, ajuda a reconhecer certos traços que vem a definir um teatro contemporâneo mais inventivo que se desenha no Brasil contemporâneo. Um teatro que aspira à comunicação com o público, mas sem cair na armadilha da encenação fácil, porque mais centrado no ator, reduzindo os demais elementos a um mínimo que tenciona para, da contenção, extrair o máximo de expressividade. Tudo o que não é pouco.

Aqueles dois, apresentado pela companhia mineira, realiza tal proeza, avançando onde o Prêt-à-porter por vezes derrapa, por certa carência de ousadia que parece residir na crença demasiada, de que o menos é sempre mais. Assim ocorre quando a contenção excessiva represa o gesto criador em esquemas e limitações impostos à encenação. Não me contradigo. Aqui e ali, a criação nas mãos dos atores, a pesquisa, o adensamento no gesto e na palavra, com o diferencial, no caso da Cia. Luna Lunera, do risco de encenar um texto literário sem vertê-lo exatamente em texto dramático.

O conto “Aqueles dois”, que dá nome à peça, é um dos textos mais conhecidos de Caio Fernando Abreu, penúltima narrativa de seu livro Morangos Mofados. A trama é de fácil apreensão: dois rapazes, Raul e Saul, recém-contratados em uma repartição, desenvolvem um forte vínculo de amizade que evolui, de maneira ambígua, para um envolvimento amoroso. Embora não se concretize sexualmente, tal relacionamento fará com que sejam banidos do emprego. Solidão, amor, repressão sexual, perda e intolerância são questões urdidas nesta narrativa para além da problemática homossexual.

O espetáculo começa por surpreender ao colocar em cena quatro atores de tipos físicos bastante distintos que não dividem os papéis de Raul, Saul, ou quaisquer outros personagens presentes no conto. Cláudio Dias, Marcelo Souza e Silva, Odilon Esteves, Rômulo Braga são simultaneamente Raul e Saul; todos são os homens e mulheres emparedados no escritório, isolados em apartamentos; todos chefes e subalternos; narradores e objetos de narração. O ator não divide personagens, é multíplice, converte-se em todos. E num lance de quebra brechtiana (cerne do espetáculo), representam a si próprios: atores que encenam e que, voltados para o público (desnudos), homenageiam o autor da peça, Caio Fernando Abreu.

O que se faz de mais notável na “encenação” de Aqueles dois, é o fato de os encenadores levarem quase às últimas conseqüências a aplicação dos conceitos de fragmentação, multiplicidade e simultaneidade. Chamo de “conceito” (porleitmotiven), pois não se executa na peça somente uma ruptura com a linearidade da narrativa, que no conto é esboçada em flashbacks e reiterações de cenas e frases (sem esquecer as similaridades – até sonoras – entre Raul e Saul). A construção do espetáculo se faz igualmente por fragmentos1, com recorrente construção e desconstrução de ambiente executada pelos atores, à vista do público, num processo que integra a encenação.

No palco, organizado em forma de quadrado2 (por isso mais adequado ao formato de arena), o espaço construído é por vezes o do escritório, mas também às beiras, converte-se nos quartos dos protagonistas, nos meandros da área de café. Também, num mesmo espaço, apresentam-se múltiplos tempos, evocados pelas frases burocraticamente reiteradas pelos atores, aqui e ali simultaneamente construídos pelo figurino, por um tirar e pôr de camisa, a movimentação de um objeto cênico. Fragmentando tempo e espaço (e concentrando num só cenário essa multiplicidade), o trânsito temporal reitera a rotina estafante. Presente e passado tornam-se uma coisa só, inolvidável. Marca-se, assim também, a despersonalização a que estão sujeitos todos os funcionários da repartição: unidos e isolados, cada um preso ao seu próprio tempo e espaço. Literalmente: um deserto de almas desertas. Por isso mesmo, a saída faz-se pelas cartas, contato com o mundo de fora, cartas que são canções, que não pertencem à cena (leitura de carta de Caio Fernando Abreu), que denunciam.

Com o foco em terceira pessoa, Aqueles dois apresenta grande economia no discurso direto. Restringem-se os diálogos a fragmentos soltos, inseridos no corpo da narrativa, mais sugeridos (em expressões, letras de canções) que explicitados. O conto faz-se, portanto, pelo comentário, evocado pela palavra poética repleta de sugestões imagéticas. Tais características estruturais reafirmam a dificuldade de transposição do narrativo para gênero dramático.

A transposição integral de um texto literário para o palco, sem que a conversão para o gênero dramático seja realizada, produz um choque de linguagens que limita enormemente a expressão teatral, posto que cerceia o potencial expressivo desta arte. Comumente, encenadores fazem-se reféns do texto, limitando-se a ilustrar o narrado, produzindo um eco que esvazia a mensagem. Entretanto, a aproximação entre estes dois gêneros afins, mas distintos, tem servido de base para experimentações que superam as barreiras com maior ou menor sucesso. Um bom exemplo – ao qual podemos filiar Aqueles dois – é à técnica romance-em-cenadesenvolvida pelo diretor Aderbal Freire Filho em três espetáculos de grande sucesso de crítica e público3.

Aderbal definiu a técnica desenvolvida por ele (romance-em-cena) como: “o jogo da ilusão do teatro levada ao paroxismo: o discurso em terceira pessoa e a ação em primeira. O passado e o presente se confundem. Aristóteles e Brecht sentados à mesma mesa. A adaptação é ‘apenas’ cênica, não se transforma o texto narrativo em texto dramático.”4

No romance-em-cena há narração, mas não existe a figura do narrador, pois as narrações são ditas como falas pelos atores. Nas peças que Aderbal dirigiu, observa-se a proximidade com o teatro épico, pois as ações proliferam num fluxo vertiginoso. Atores desempenham múltiplos papéis, e o texto literário é integralmente apresentado. É interessante observar que se tratam de três romances/peças que tendem à sátira, sustentando-se não só na encenação (vertiginosa), mas na própria “linguagem dos escritores”, uma prosa marcada pelo humor, pela ironia, e repleta de trocadilhos e jogos de palavras.

Neste sentido, a Cia. Luna Lunera avança na técnica “conto-encenado” porque lhe é infiel, já que elege uma narrativa curta que dilata com delicadeza, dosando a “fidelidade à prosa poética do escritor gaúcho” a um inventivo uso de canções, sons, objetos e achados físicos (coreografias e expressão corporal) e uso de recursos de mídia. Aqueles dois avança também, no sentido de adensar o que o texto meramente sugere, sem pudor de alterar a ordem de frases e acontecimentos do conto. Se os atores narram passagens integrais do texto, não se furtam à execução de cortes/fraturas cujo objetivo parece ser enfatizar dados muito sutis.

Pulverizado (descentrado) o protagonismo da peça, a atuação torna-se um equilíbrio de forças, ou melhor, um tour de force coletivo que impossibilita indicar uma ou outra atuação, já que todos parecem compor uma só engrenagem a serviço do texto, da encenação. Oscilando entre momentos de grande energia e dinamismo (a montagem da rotina incessante e vazia do escritório, por meio da aceleração e vertigem da movimentação dos atores) e momentos líricos, mais simbólicos e poéticos (a dança/confronto entre os corpos que se sustentam uns aos outros), o que obtém é um complexo momento de intimismo e empatia com o público, embora todo o tempo exponham ao público a construção da própria cena. Se retomam passagens já encenadas (narrando diretamente longos trechos), visam reorientar de modo mais direto o entendimento da platéia, como forma de contornar o fragmentário, ou reafirmar a quebra, mesmo, da ilusão do palco. Neste sentido, buscam a comunicação e a delicadeza; palavra, apuro técnico e emoção, um equilíbrio possível entre Antunes e Aderbal.

A tentativa, contudo, de dar mais atualidade à história (com citações a cineastas mais modernos, como Pedro Almodóvar, e outros artistas) é falha, pois não conseguem espantar a impressão de que Aqueles dois circunscreve-se, inevitavelmente, a um período específico do passado, ainda mais, levando em consideração conquistas (pelo menos legais), no campo dos direitos dos gays. “Tu me acostumbraste” (citada/cantada várias vezes, bem como outros boleros, e canções de dor de cotovelo), remete ao passado, e permite a explicitação da alma melancólica e sentimental de Raul e Saul, “moços velhos” de coração interiorano, reprimidos sexual e afetivamente (em relação à mãe, à noiva, e ao desejo que um tem pelo outro). Se canções e castrações soam datadas e piegas, esses desconcertos são superados pelo fato de que são justamente os versos (e desenhos) que se prestam à explicitar a paisagem interior dos personagens; os sentimentos que um e outro não se permitem confessar.

O que a Cia. Luna Lunera traz de mais significativo na fusão que realiza entre Teatro e Literatura, é o mérito de equacionar distintos elementos: fidelidade à literatura de Caio Fernando Abreu, depuração e rigor cênico, inventividade criadora a serviço da emoção. Não é pouco. Sem violar o texto (por si, autossuficiente), investiu-se criativamente na expressividade do ator, o que de certo modo significa o investimento na figura humana. Mais que submeter a prosa narrativa à quadratura da cena, a concepção do espetáculo buscou potencializar aquilo que no texto era esboço, integrando à encenação a noção de contato e encontro entre iguais (quatro homens), tendo possivelmente como ponto de partida jogos de atores, técnicas de contato-improvisação.

Aqueles dois termina por não ser uma peça rigorosamente gay, já que nela não se investe no potencial de choque/escândalo – que a encenação de peças de temática homossexual normalmente valorizam, – mas na solidão do homem. Fiéis à sutileza (talvez demasiada) do texto, a interpretação dos quatro atores deslinda a evolução emocional e afetiva de Raul e Saul, e com viril delicadeza valoriza a eloquência dos corpos em contato ante sentimentos emudecidos. Esvaziam assim qualquer possibilidade de converter Aqueles dois em discurso acusatório, manifesto prosaico à discriminação homossexual. Sem escamotear a tensão erótica dos protagonistas, o foco recai na construção de um terceiro objeto, nem literatura nem teatro: poesia encenada com o corpo – lugar onde paira o conto e a criação de Caio Fernando Abreu.

São Paulo, 27 de novembro de 2008.

 

Fotos: Celso Cardoso
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* Eduardo de Araújo Teixeira é Doutor em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa pela USP (2006), é formado também em direção e roteiro cinematográfico pela ELCV. Recebeu o prêmio Rumos de Literatura 2008 e produziu ensaio sobre Marcelino Freire para o livro Protocolos Críticos do Itaú Cultural/Editora Iluminuras, do mesmo ano. Atualmente participa do pós-doutorado no PACC/UFRJ.

 

NOTAS

1 O cenário é constituído de elementos mínimos: máquinas, gavetas, luminárias, cabides, garrafas, todos compondo a cena ao serem postos no chão do palco. Há igualmente mesinhas, aparelho de tevê, rádios/vitrola, discos, amplificador de som e outros objetos deslocados para as beiras e trazidos para cena conforme a necessidade de demarcar mudanças espaciais. Apenas uma parede é utilizada na fixação de cartazes/desenhos presos com fita adesiva.

2 A movimentação dos atores, na encenação que constrói ao público o espaço do escritório (também próximo do desfecho, quando se retrata/relata a solidão de Saul a vagar desolado entre as mesas), é constituída de uma movimentação geometrizada, com gavetas e objetos barrando os caminhos, e atores se entrecruzando, chocando-se, reafirmando a idéia de labiríntico, de emparedamento, opressão, ausência de rumo, impressões construídas pela repetição dos movimentos dos atores.

3 A técnica romance-em-cena já foi utilizada por Aderbal em: A mulher carioca aos 22 Anos, de João de Minas (1994); O que diz Molero, de Dinis Machado (2004); e O púlcaro búlgaro, de Campos de Carvalho (2006).

4 “O romance-em-cena de Aderbal Freire-Filho”, Fábio Gomes. Site Jornalismo Eletrônico, 2006, Brasileirinho Produções Ltda. Disponível em:http://www.jornalismocultural.com.br/teatro/aderbal.htm

 

MÁS ACÁ DE LA LITERATURA – Espiritualidad y moral cristiana en el diario de Rodolfo Walsh | Alberto Giordano

Cuando las repercusiones del caso Padilla comenzaban a inquietar los acuerdos que los intelectuales argentinos identificados con la revolución cubana habían mantenido hasta entonces, Rodolfo Walsh publicó una nota en el diario La Opiniónpara poner las cosas en su lugar. Como lo había hecho antes en las discusiones con los amigos, le bastaron dos o tres certeros golpes de argumentación para desarmar las falacias contrarrevolucionarias. Alguien lo felicitó por la inteligencia y el coraje de su intervención y le habló de otros varios que compartían ese sentimiento de admiración. Un poco abrumado, y un poco complacido, por la profusión de elogios que su integridad juzgaba exagerados (al fin de cuentas no había hecho más que ordenar lo que muchos querían decir), el 29 de mayo de 1971 abrió la libreta en la que llevaba su diario íntimo para registrar, y acaso también para contener, la ambigüedad afectiva de su respuesta a un malentendido que suponía peligroso: “Una de las cosas que sin duda me divierten, me halagan, y me intimidan es hasta qué punto uno puede convertirse en un monumento a sí mismo, en la conciencia moral de los demás” (Walsh 207).

Acostumbrado a sorprender la impostura de los diaristas en los momentos en que se autoprescriben humildad, a veces pienso que Walsh se confesaba intimidado por la monumentalización de su figura pública para permitirse disfrutar de los placeres narcisistas que le proporcionaba el reconocimiento, placeres que acaso identificaba con la supervivencia de una concepción individualista y burguesa de las relaciones sociales. Otras veces, la articulación de este momento confesional en el interior de las búsquedas espirituales que recorren buena parte del diario me persuade de su autenticidad. Como en toda cuestión de creencia, hay algo indeterminado que se sustrae al juego de las interpretaciones contrapuestas y que lo hace posible. De lo que sí no tengo dudas es de la fuerza con que la canonización literaria y moral a la que se sometió la figura de Walsh desde el retorno a la democracia, un proceso que comenzó bajo el signo de la reparación necesaria, inhibió la posibilidad de que se leyera su obra, la articulación entre obra y vida que proponen sus escritos personales, por fuera de la exigencia de rendir homenaje.

“Si el Che es un pin –escribió Guillermo Saccomano, Walsh para muchos puede ser una estampita” (Saccomano 9). Y las estampitas, se sabe, no reclaman lectura sino veneración. Hasta hace poco no era fácil suspender la actitud cultual y recorrer las páginas del diario que sobrevivieron al robo y la destrucción sin responder al compromiso cívico de encontrar en esas anotaciones fragmentarias un testimonio más de que el autor de Operación masacre fue un “gran escritor” tanto como un “gran militante”. (Dejo a quien corresponda el análisis de la segunda fórmula. A propósito de la primera se podría decir, parafraseando a Maurice Blanchot, que existe un inmenso desprecio por la literatura como experiencia radical en esa voluntad de “engrandecer” su práctica sometiéndola a criterios de valoración propios de los “amos de la cultura” –de la “trampa cultural”, para ponerlo en los términos que Walsh suele usar en su diario. En una entrevista reciente, David Viñas, alguien con la autoridad y el prestigio suficientes como para suponer que no sería tomado como una mera ocurrencia, declaró: “Si me apuran, digo que Walsh es mejor escritor que Borges.” ¿Tiene importancia? ¿Quién lo apura?).

Los especialistas en las narrativas de la memoria posdictatorial podrían aportarnos las precisiones necesarias, pero incluso sin disponer de un conjunto de referencias incontestables, entiendo que está en curso una nueva etapa del complejo y conflictivo proceso de revisión y apropiación del sentido ideológico de las luchas políticas que violentaron los años setenta en la que el cuestionamiento de las creencias y las prácticas de los militantes revolucionarios cobró una intensidad polémica inédita. El esperado recomienzo de los juicios a los responsables de la represión estatal, la certidumbre de que los asesinos, al menos algunos, recibirán finalmente castigo, ha contribuido, seguramente, a la ampliación de las posibilidades de examen crítico: hoy se puede discutir de una manera abierta y enérgica la actuación de las organizaciones armadas setentistas sin temor a reanimar el fantasma de la teoría de “los dos demonios” ni a ser sancionado de inmediato como un traidor a las demandas de verdad y justicia.

En el campo específico de las narrativas literarias, el texto que con más claridad representa la trama polémica de esta nueva coyuntura es la reciente A quien corresponda de Martín Caparrós, novela de una potencia literaria inversamente proporcional a su valor como documento. Además del discurso de los represores, que habla por la voz repulsiva de los que torturaron y asesinaron con una dedicación que todavía juzgan irreprochable y la del cura que los asistía espiritualmente, A quien corresponda amplifica la enunciación tortuosa de otro discurso menos obvio, el de la crítica despiadada a las ilusiones y las pretensiones de la militancia guerrillera, que habla por la voz del protagonista, un ex cuadro de Montoneros al que lo enfurecen las idealizaciones irresponsables y los usos oportunistas de ese pasado que su memoria cristaliza como un tiempo de errores políticos “tremendos”, “espantosos”.

La novela de Caparrós busca la confrontación, la reclama ruidosamente, y, como testimonian algunas reseñas, ya está cosechando sus frutos. Si puedo, de algún modo, tomarla como referencia de un estado de cosas en el que reconozco las condiciones de legitimidad de mi lectura del diario de Walsh, no es porque me identifique con las pasiones tristes que agitan al protagonista o al autor (humillación, dolor, fastidio, desprecio), sino porque comparto con ellos un interés crítico, la discusión del “modelo mesiano-guevarista” conforme al que se diseñaba en los sesenta y setenta la figura del verdadero revolucionario, esa idealización del “hombre nuevo que se sacrifica por el futuro de su pueblo, que entrega todo, que entra en la muerte satisfecho por haber podido realizar lo más excelso…” (Caparrós 85). Me interesa mostrar cómo este poderoso artefacto moral pone en funcionamiento una serie de estereotipos que actúan sobre las autofiguraciones públicas del diarista, pero también sobre la escritura de su intimidad, para reducir y homogeneizar cualquier manifestación de particularidades subjetivas anómalas, para bloquear –siempre me parece oportuno insistir con esta fórmula- el paso de la vida a través del lenguaje.

Antes que la lectura de A quien corresponda, dicho en un sentido estrictamente cronológico, hubo otras lecturas que me animaron a ordenar las notas sobre el diario de Walsh, a exponer la perplejidad que me provocan los gestos del diarista cuando siente que su integridad vacila, en la forma de este ensayo. Entre los textos reunidos en el dossier “30 años sin Walsh” que publicó el 25 de marzo de 2007 el suplemento Radar de Página/12, hay cuatro o cinco que se resisten a tratar como un monumento lo que entienden es todavía una obra, la coexistencia de movimientos heterogéneos en estado de tensión continua. Para Martín Kohan, “Rodolfo Walsh probó, como nadie, cuáles son los alcances y cuáles las limitaciones de las palabras escritas: su potencia y su impotencia” (Kohan 6), porque su obra es al mismo tiempo una búsqueda constante y una experiencia de la imposibilidad de la eficacia política, en el sentido funcional de la expresión, a través de la escritura.

Después de reconocer que nunca será “sencillo meterse con Walsh” (¿de qué otra cosa hablan estas reflexiones preliminares?), Rodrigo Fresán se permite una ocurrencia que invita a repensar el sentido de la conversión política y militar del autor de Operación masacre: “era nuestro Lawrence de Arabia” (Fresán 10). El que acepta la invitación es Saccomano, en la única intervención declaradamente polémica (comienza reclamando una lectura “contra las exaltaciones de la retórica folklórica de un secentismo melancólico”), para poder discutir el “compromiso quijotesco” de Walsh, su tragedia, que es –dice- la de haber querido hacer literatura en la vida, la de haber realizado hasta en la muerte los deseos de “tener una vida literaria” (Saccomano 11). Las alusiones a la fascinación por la épica que subyace a este compromiso novelesco tendrán, más adelante, resonancias en el comentario de algunas entradas del diario. Más evidentes resultarán, seguro, las resonancias del texto de María Moreno, “El deseo de escribir”, porque él mismo es una aproximación, me temo que insuperable, al diario de Walsh como registro, testimonio y experiencia de las tensiones afectivas que ligan al escritor con los aspectos menos instrumentales, a veces secretos, de su oficio.

Siempre, no importa cuánto uno se haya aficionado al género, la existencia de un diario íntimo que tuvo que esperar la muerte del autor para volverse público sorprende e interroga. ¿Por qué, para qué, para quién? En casos como el de Walsh, que se trate de un diario de escritor parece dar respuesta, al menos una respuesta parcial, a las incertidumbres. Esas libretas que fue llenando con el correr de los años, que se ocupó de guardar y resguardar en las mudanzas, que acaso imaginó publicar en un futuro no tan lejano, le servían como archivo de temas, argumentos y registros estilísticos; como cuaderno de ejercicios narrativos; como bitácora de los proyectos en curso y como memorial de algunos episodios significativos de la vida literaria y de la rivalidad con los pares (por tratarse de un diario inusualmente discreto, la mención en tres oportunidades a las diferencias y los desencuentros con David Viñas cobra una relevancia agonística que acaso no se corresponda con los sentimientos reales de Walsh hacia un colega tan próximo). Además, y se trata de la más literaria de las funciones que puede cumplir un diario de escritor, la que expone su ligazón esencial con los misterios del acto de escribir, las libretas servían para registrar e intentar conjurar el demonio de la imposibilidad.

“Las ideas hermosas que se me ocurren justamente cuando no puedo escribir, no vienen nunca cuando me siento como ahora a la máquina” (Walsh 106). Se escribe que no se puede escribir, se escribe para decir que no se tiene qué decir o que no se sabe cómo decirlo. A Rosa Chacel, este simulacro de escritura, este “fantasma de actividad intelectual”, como lo llamó Amiel, le provocaba vértigo y repugnancia porque se le aparecía como una trampa, en la que siempre volvía a caer, del sinsentido. Lo cierto es que, como todo lo que insiste, la continua reflexión de los escritores (justamente ellos, que dominan el oficio) sobre la dificultad, la inhibición o el fracaso al querer escribir, termina imponiendo la sospecha de que la imposibilidad de hacer lo que se sabe hacer, lo que se está dotado para hacer, envuelve algún sentido. En la intimidad del diario, Walsh se retuerce bajo la presión de un deseo tan fuerte como el temor o la certidumbre de no poder realizarlo: escribir una novela.

La dificultad de integrar toda la experiencia en la novela. El sentimiento de impotencia que esto produce. La posibilidad, casi desesperada, de empezar con todo, tirarse con todo y crear un monstruo (Walsh 107).

A veces el deseo se aliena en la obligación de responder a la demanda de los otros (la crítica, los editores, los pares) y entonces no es raro que se bloquee su cumplimiento. Pero incluso cuando las ganas vienen de más acá del teatro que montan las expectativas y la promesa de satisfacerlas, un problema técnico, la dificultad de articular una serie de episodios autónomos en el discurrir de una trama novelesca, puede convertirse en un drama (habla de impotencia, de desesperación) porque el fantasma de la imposibilidad acecha.

Para apreciar en su compleja intensidad los movimientos, muchas veces contradictorios, que la obsesión por la escritura de la novela desata en lo profundo de la conciencia de Walsh, se puede leer su diario, en el que esta obsesión ocupa bastante espacio, como el producto de un ejercicio espiritual concebido no sólo para el conocimiento, sino también para el cuidado y perfeccionamiento de sí mismo, que en ocasiones resulta exitoso y en otras se malogra. La perspectiva desde la que comienzo a situarme es la de lo que Michel Foucault, en textos muy frecuentados, llama “espiritualidad”: el conjunto de las búsquedas y prácticas “por las cuales el sujeto realiza en sí mismo las transformaciones necesarias para tener acceso a la verdad” (Foucault, La hermeneútica 33). Lo interesante de esta perspectiva es que presupone que sólo podemos acceder a la verdad de nuestros afectos, el misterio de lo que nos mueve al aceptar o rechazar, al hacer o permanecer inactivos, si antes realizamos un trabajo de depuración y mejoramiento de nosotros mismos. Que la escritura del diario pueda ser una de las formas que tome este trabajo de ascesis supone que, bajo la presión del deseo de acceder a la verdad, una entrada se convierta en otra cosa que un espejo ofrecido a la autocomplacencia: un campo para la experimentación performativa en el que el diarista pone a prueba la consistencia ética de lo que le pasa mientras ensaya transformaciones. El diagnóstico de lo que empobrece y debilita las posibilidades de vida y la prescripción del camino de perfeccionamiento suelen ser las maniobras de reconocimiento que preceden a la ejercitación o señalan su recomienzo.

Estoy cansado y derrotado, debo recuperar una cierta alegría, llegar a sentir que mi libro también sirve, romper la disociación que en todos nosotros están produciendo las ideas revolucionarias, el desgarramiento, la perplejidad entre la acción y el pensamiento, etc. (Walsh 117).

Recuperar la alegría significa recuperarse a sí mismo a través de la escritura de la novela, porque ese es para él el acto de creación más intenso. Hay que seguir escribiendo y desprenderse de la tristeza y el agotamiento que provocan la alternativa literatura burguesa (la novela)/literatura revolucionaria (el testimonio y el periodismo), un discurso que lo atraviesa y lo define pero que, en el espacio reflexivo de esta anotación, abruma por su obviedad (el “etc.” final lo presenta como cháchara). Walsh estaba muy atento a las amenazas de des-personalización que sufren los que, por hablar siempre en nombre de los demás, dejan de hablar de sí mismos, por sí mismos. Justamente por eso llevaba un diario, al que confiaba “la renovada crónica de cómo las cosas pasaron por uno” (Walsh 207). La escritura del diario como resistencia al poder, seductor e imperceptible, de los estereotipos que diseña, con trazos gruesos, la figura del revolucionario ejemplar. Toda la extraordinaria entrada del 28 de enero del 69, en la que delibera sobre la conveniencia o no de ingresar a Panorama para resolver su pobrísima situación económica, se puede leer conforme a este principio de disidencia.

Lo que está en discusión es toda mi personalidad. ¿Hasta qué punto tiendo a convertirme en un santón, a asumir los valores más respetables de la izquierda? Es posible que esto no se quiebre siquiera con mi ingreso a Panorama, aunque no faltarán algunas críticas. Lo inquietante es el nivel superficial en que manejo estas cuestiones (Walsh 126).

La escritura del diario le sirve a Walsh para interrogar la superficialidad de unos valores que sabe irresistibles pero también indiferentes al espesor de la existencia auténtica, los que hacen posible la canonización revolucionaria, y para tomar una decisión a la altura de sus intereses terrenales: va a entrar “fijo” en Panorama, aún a riesgo de confundirse entre los que están “complicados con el régimen, gozando de sus beneficios y padeciendo su pacífica vergüenza”, porque así podrá mitigar por un tiempo las estrecheces económicas. Para no renunciar a su tranquilidad renuncia a la santidad, por lo menos a una santidad homogénea e indiscutible. Pero enseguida el examen de sí mismo cambia de dirección, se orienta otra vez hacia las alturas del compromiso y la entrega totales, y el ejercicio de disidencia se interrumpe.

He resuelto –pero casi lo resolvieron los demás por mí, los demás que ven en mí una especie de héroe, que no puede mancharse- no entrar fijo en Panorama, pase lo que pase. No me voy a morir de hambre, supongo, y sin embargo, estuve tan cerca de entregarme, tan asustado (Walsh 178).

Lo más significativo de este reencauzamiento no es la identificación, apenas velada por la referencia irónica a la voluntad de los compañeros, con el estereotipo del “héroe”, más atractivo que el del “monumento” o el “santón” y que los contiene, sino el acto de constricción final, la confesión de debilidades. La orientación que domina el trabajo de vigilancia que Walsh realiza en el diario sobre lo que piensa y ocurre en su pensamiento es la de la moralidad cristiana, con sus mandatos de sacrificio y renuncia a uno mismo, sus anhelos de salvación y su respeto a la ley externa como fundamento de la espiritualidad. La escritura de la intimidad como escenario en el que se representan las luchas del alma consigo misma, contra las tentaciones mundanas (“burguesas”) que la apartan del camino recto. (En estos dramas morales, una verdad política y existencial que viene dada desde fuera define la rectitud del camino señalado: no hay que ganarse el derecho al acceso, hay que adherir.)

Walsh creyó que su conversión a la militancia revolucionaria, para ser verdadera, tenía que ser total. Como a tantos, lo guiaba el ejemplo del Che: los mejores son los más fieles y los que más se sacrifican. Según estas coordenadas hay que situar los repetidos intentos –nunca definitivamente exitosos, por suerte- de renuncia a la literatura de ficción y a la condición de escritor, para dedicarse por completo a las tareas retóricas que le demandaba la política. Muchas veces imaginó en el diario rutinas de trabajo que pudiesen garantizar la coexistencia de esas dos prácticas que los excesos de moralidad pretendían, más que contradictorias, antinómicas, pero al cabo se le volvieron insostenibles. No es que le faltase disciplina, le sobraba creencia en el valor superior del acto sacrificial. La renuncia a ser escritor tenía un alcance moderadamente costoso, era renuncia al estatus y la vanidad, a la fatuidad del mundillo literario, a las facilidades que aporta la pertenencia a un campo prestigioso, y otro de una gravedad extrema porque comprometía el deseo de experimentar con márgenes de indeterminación e incertidumbre que el trabajo periodístico o testimonial desconoce, la literatura como “zona de libertad” (Walsh 194) que se recorre con alegría pero también con temor.
Hay épocas en que la sostenida inactividad literaria persuade, a quienes idealizan su heroísmo, de que ya dejó de ser un escritor. Aunque acepta el elogio, Walsh duda, no queda claro si de la firmeza de su voluntad o de la conveniencia del abandono. Más que como alguien que dejó de escribir, las páginas del diario lo muestran como un escritor que no escribe, que no está escribiendo la novela que los otros reclaman y, lo que es peor, con la que él fantasea (si lo primero le resulta tolerable, lo segundo es una fuente inagotable de ansiedad y desasosiego). Para convencerse de que la renuncia es necesaria, y acaso con la ilusión de liberar al espíritu de la inquietud que provoca el deseo insatisfecho, dedica varias entradas al esbozo de una teoría de la novela como forma del arte burgués que carece de eficacia directa (no sirve para herir, acusar o desenmascarar), porque, a diferencia del testimonio, éste sí una forma de escritura revolucionaria, representa los hechos en lugar de presentarlos. El esquematismo podría ser un indicio de la falta de convencimiento, además de un recurso apropiado para que se realice la voluntad de depreciación.
En momentos de generosa lucidez, ya no se trata de la generosidad en la entrega sino en la aceptación y la afirmación de lo que se sustrae al juicio moral, el diarista conjetura que la inactividad prolongada no siempre tendría que ver con el imperativo de abandonar lo que distrae de las luchas revolucionarias. La pérdida de los hábitos de escritura es algo que comenzó a imponerse, que lo fue ganando, desde que decidió en 1967 encarar la novela, antes de que encontrara las razones políticas para justificar el abandono del proyecto. ¿La construcción del héroe literario que elige renunciar a la novela para “vivir la novela junto al pueblo” (Walsh 242), vendría a desplazar y encubrir las alternativas de otro drama, menos épico pero igual de comprometedor, el de la conciencia esforzándose inútilmente por rechazar lo que se desea, lo que, porque se lo desea, más acá de cualquier necesidad, la inquieta e inhibe? Es la hipótesis de María Moreno, la militancia como una resistencia a la escritura, el proyecto político como la verdadera evasión de un deseo que insiste.

Es como yo decía. Liberado internamente del compromiso de seguir trabajando en la novela (aunque sea un par de meses) vuelvo a adquirir un ritmo de actividad razonable, incluso excelente. ¿Eso quiere decir que la novela es lo difícil de decir, lo que se resiste a ser dicho? ¿Lo que me compromete a fondo? Otra variante, en la que he pensado en estos días: la novela es la última forma del arte burgués, y por eso ya no me satisface (Walsh Ese hombre, 178).

El segundo párrafo querría suprimir la apertura a lo desconocido que abrieron las preguntas por el sentido de las fuerzas que obstruyen la escritura de la novela, y garantizarle a la interrogación la estabilidad necesaria para que regrese al camino recto. Al menos para el lector -no parece ser el caso del diarista- llega tarde; el impulso reactivo que anima la reproducción del estereotipo “arte burgués” se hizo demasiado evidente. La enunciación de esas dos preguntas que reclaman la invención de respuestas singulares, respuestas que en principio sólo convendrían a la singularidad afectiva y profesional de quien las enuncia, es lo más lejos que llegó, y pudo haber llegado, Walsh en el intento de conocerse a través de la escritura del diario. Más allá de ese límite que no termina de franquear, se abre un campo de transformaciones indeterminadas. ¿Qué hubiese ocurrido sin en vez de dejar el problema en manos del sentido común ideológico (el que le dictaba que “algo tenía valor si servía para la revolución; si no era superfluo cuando no era nocivo” (Caparrós 202)), hubiese probado reformularlo convirtiéndose en otro, una clase de escritor que en principio no tendría identidad ni valor definidos? El intelectual comprometido, que estaba obligado a despreciarla por sus convicciones políticas o por el temor a perderse, no hubiese podido escribir la novela con la que fantaseaba Walsh, pero tampoco el autor de los relatos inteligentes y elegantes, el de la saga de los irlandeses, “Fotos” y “Esa mujer”. La invención de una forma novelesca supone la experimentación con modos todavía no convencionales de articular vida y escritura.

En un breve texto autobiográfico de 1966, Walsh fijó su concepción de la literatura en una fórmula que podría servir como epígrafe a esta tentativa de leer su diario en clave de ejercicio espiritual: “La literatura es, entre otras cosas, un avance laborioso a través de la propia estupidez” (Walsh 15). Una posibilidad interesante de pensar el proceso por el que el escritor atraviesa y descompone su estupidez para finalmente desprenderse de ella, es imaginarlo como una serie de maniobras que impugnan el trabajo de reducción al que los estereotipos someten lo que se manifiesta como contradictorio o ambiguo. ¿Por qué le faltaron fuerzas al Walsh de los escritos íntimos para perseverar en el examen de sus contradicciones, por qué se apuraba a “resolverlas” precipitándose por el atajo de la sanción moral? La matriz cristiana que reproducen las estupideces políticas modeladas por el estereotipo revolucionario/burgués explica, en parte, por qué alguien con una inteligencia y unos reflejos críticos tan agudos no quiso abandonar, ni a propósito de los asuntos más personales, la creencia en que todo puede ser ordenado y valorado remitiéndolo a una sola y muy elemental oposición paradigmática. El espíritu de sacrificio y obediencia necesita certidumbres sobre qué está bien (hacer, sentir, escribir) y qué no para poder sostenerse.

Hay un momento perturbador del diario en el que se aprecia detalladamente, casi en cámara lenta, cuáles son las operaciones que Walsh tiene que realizar sobre sí mismo para que la reproducción de los estereotipos no se bloquee al atravesar un núcleo contradictorio de su existencia, cómo se va haciendo a la idea de que la alternativa virtuosa es la de la renuncia. Se trata de las dos entradas sucesivas en las que procesa el malestar que sintió al saber que Raimundo Ongaro había dicho, después de leer un escrito suyo y no entender nada, “¿Escribe para los burgueses?”. Aunque igual entristece (porque el autor de Operación masacre era un compañero muy valioso en la CGT de los Argentinos que dirigió Ongaro y no costaba tanto preguntarle, sin ánimo de descalificación, por qué escribía “difícil”), la intolerancia del jefe sindical resulta previsible en una época en la que el antiintelectualismo era de rigor en el discurso de muchos intelectuales de izquierda. Lo raro es que en lugar de discutir los presupuestos falaces de la acusación -le sobraban recursos para hacerlo- o de usar el diario, como se acostumbra, para devolverle al agresor golpes imaginarios, el inculpado asiente, se mortifica. Está molesto, dice, porque sabe que Raimundo tiene razón, o puede tenerla. Mea culpa. Un poco más tarde, ese mismo día, el espíritu de análisis se sobrepone momentáneamente a la voluntad de mortificación (que es, en última instancia, voluntad de identificarse con el jefe a costa de sí mismo) y el ejercicio parece encausarse por los andariveles de la discusión crítica:

¿Pero qué es lo más específicamente burgués de lo que yo escribo, lo que más molesta a Raimundo? Creo que puede ser la condensación y el símbolo, la reserva, la anfibología, el guiño permanente al lector culto y entendido. Otra pregunta: si no es precisamente R quien usa categorías burguesas, que habla –vgr.- desde una literatura fácil, comprensible y burguesa como puede ser la de Bullrich o Sábato, que al fin y al cabo son best-sellers? (Walsh 159).

En el exabrupto del jefe escuchó un mandato: tiene que dejar de escribir como aprendió a hacerlo, tiene que olvidarse de la literatura como arte de lo indirecto en el que más que lo dicho cuenta lo elidido. La táctica que Walsh elige para resistirse consiste en devolverle al epíteto “burgués” parte del alcance conceptual que perdió desde que funciona como una herramienta de depreciación generalizada. En sintonía con el saber crítico de la época, insinúa que la valoración política de los textos literarios debería atender a la relación que éstos establecen con los códigos de legibilidad instituidos. La inteligencia del argumento agranda la sorpresa que se siente al comprobar lo efímero de su validez. No pasa más de un día y las fuerzas que empujan a la obediencia y al sacrificio se reagrupan detrás de un espectacular acto de denegación.

Creo que estoy comprendiendo por qué me resulta tan fácil ‘abandonar la literatura’. En el fondo no es ningún sacrificio. Lo que lamento es no poder continuar la farsa. Raimundo tiene razón: escribir para burgueses (Walsh 161).

En el fondo, el sacrificio era excesivo, además de estúpido, y Walsh, como se sabe, jamás abandonó la literatura; si en verdad lo quiso hacer, le resultó, más que difícil, imposible. Igual siguió creyendo que Ongaro tenía razón, por lo menos durante el tiempo que registra el diario. Esta contradicción sorprende y perturba. Contra lo que la experiencia y el saber le habían enseñado, no renunció jamás al ideal de una literatura revolucionaria escrita “para todos” y no sólo para burgueses. El proyecto lo exaltaba, seguramente, pero también le servía para continuar mortificándose, como cuando atribuía a las “canchereadas” de su estilo demasiado literario la culpa de no poder realizarlo.
Hace un par de semanas, en un documental biográfico sobre Paco Urondo, escuché a Horacio Verbitsky comentar que muchas veces le habían preguntado, y él mismo se había preguntado, cómo fue posible que militantes de una inteligencia y una calidad humana tan extraordinarias como Urondo y Walsh obedecieran hasta el final a una conducción errada y miserable como la de Montoneros, más allá de que hubiesen manifestado sus desacuerdos. Aunque algunas resonancias no le serán ajenas, Verbitsky se limitó a repetir la pregunta y, curiosamente, no ensayó respuestas. Apostó al efecto dramático más que al análisis político. La pregunta mucho menos importante que me hago en este ensayo es porqué, en esa forma de vida secreta y solitaria que es la escritura del diario, al amparo de la opinión pública, Walsh no puede desprenderse de los mandatos y las reprimendas de un jefe político, ni casi cuestionarlos, aunque humillan su existencia de escritor. Lo que “más molestaría a Raimundo”, según sus conjeturas, no es otra cosa que lo que le permitió escribir, por ejemplo, “Un oscuro día de justicia”, esa alegoría eficaz sobre la necesidad que tienen los pueblos en lucha de valerse por sí mismos y prescindir de héroes salvadores: la elipsis, la condensación, el símbolo.

Según Gonzalo Aguilar, en otro de los ensayos que facilitaron la escritura de éste, la lealtad es “la auténtica clave política” de los años sesenta y setenta, y la obediencia, la forma que adoptaba para subsistir cuando se planteaban discrepancias (Aguilar 13). ¿Habría que atribuir entonces a la coherencia política de Walsh la fuerza que conservan los principios de lealtad y obediencia en el tratamiento íntimo de sus asuntos personales? La continuidad entre la esfera de los compromisos públicos y la de los conflictos privados se explica además por la intervención de otro lugar común ideológico en el que convergen las inclinaciones personales y el espíritu de la época: la idealización de la figura del jefe, militar o político, como héroe moral. Un año antes de que las palabras de Ongaro hicieran estallar en su conciencia las sospechas sobre la condición burguesa del escritor, Walsh había anotado en el diario:

Es indudable que la figura de Ongaro me atrajo intensamente. Vi en él un revolucionario –como lo había visto en Masetti-, un jefe, alguien capaz de llegar al sacrificio por sus ideas. (Walsh 115).

En Ongaro, como antes en Jorge Masetti y el Che Guevara, y antes aún en el capitán Eduardo Estivariz, un aviador naval que murió en combate durante el derrocamiento de Perón en setiembre de 1955, Walsh reconoce la estampa fascinante del hombre poseído por una causa que está dispuesto a sacrificar, o ya sacrificó, todo por ella. Que todo sea en ocasiones, además de la propia vida y la de los subordinados, la razón política, no parece tan grave si la fidelidad y la coherencia consigo mismo del héroe resplandecen hasta el final, sobre todo en el final. Como si las luchas fueran por la redención y no por el poder, a los jefes se los conmemora por la grandeza de su sacrificio, aunque, como en el caso de Masetti y el último Guevara, hayan concebido y encabezado acciones que sólo podían fracasar.

Se entiende entonces por qué Walsh no quiso, más que no pudo, desoír el mandato de escribir “para todos”, aunque sabía que los términos en que estaba planteado eran equívocos y que para obedecerlo tenía que renunciar incluso a lo irrenunciable, su estilo. Eran palabras del jefe. Más que la descalificación (“¿Escribe para los burgueses?”), se le hacía difícil aceptar el desencuentro, público e íntimo, con la palabra de Ongaro. Tomaba una voz de orden por la voz de la verdad. Como si el jefe político, por llevar una existencia heroica, fuese también un pastor de almas. Semejante confusión hay que atribuírsela a la época, a sus mitologías políticas, y a lo que en esas mitologías servía para confirmar una visión cristiana de los conflictos humanos enraizada, seguramente, en la infancia de Walsh.

* Alberto Giordano
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Caparrós, Martín. A quien corresponda. Buenos Aires: Editorial Anagrama, 2008.

Chacel, Rosa. Diarios. Obra completa Volumen IX. Palencia: Fundación Jorge Guillén, 2004.

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Foucault, Michel. Tecnologías del yo y otros textos afines. Barcelona: Editorial Paidós-Universidad Autónoma de Barcelona, 2ª. Ed., 1991.

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Walsh, Rodolfo. Ese hombre y otros papeles personales. 2ª edición corregida y aumentada a cargo de Daniel Link. Buenos Aires: Ediciones De La Flor, 2007.

 

BLOOKS na cauda longa da literatura | de Diana Damasceno

O debate sobre a substituição do livro pela internet está defasado. A discussão atual está voltada para a influência da web na produção, circulação e recepção da literatura. Essas questões adaptam-se perfeitamente ao fenômeno conhecido como “cauda longa”, explorado pela primeira vez por Chris Anderson, editor-chefe da revista “Wired”, em artigo sobre um novo universo de livros, filmes e músicas, gerado pela web, onde produtos culturais de nicho conquistam a cada dia um público maior e mais diversificado. Assim, estão na rede formas de criação, nas quais conteúdo e ferramenta de produção são indissociáveis.

A literatura, em processo de produção nesse ambiente, se apresenta através deblooks. Para quem ainda desconhece o termo, blook é um anglicismo de blog – abreviatura de weblog, termo criado em 1997, pelo norte-americano Jorn Barger, editor do “Robot Wisdom”, o primeiro blog da rede – + book – livro, em português – e possui três significados: 1 – gênero surgido na internet que se utiliza da formatação dos blogs para publicar obra literária ou artística; 2 – textos de um blog, impressos em formato de livro; 3 – gíria dos cassinos norte-americanos para a carta curinga do baralho. Assim, um possível conceito de blook seria o de um gênero intermediário entre a forma de livro e a forma de blog, que funciona como alternativa para publicação de textos. De fato, a internet se infiltrou por todo o tecido social do mundo contemporâneo, interferindo, inclusive, nas formas de pensamento e comunicação e o espaço virtual, ao que tudo indica, passou a ser um território de visibilidade.

O professor de psicologia da PUC do Rio de Janeiro, Rafael Sacchi Zaremba, acredita que a simples utilização de um teclado e da tela do computador já é suficiente para criar um novo estatuto na escrita, diferente da escrita à mão. “A ‘escrita digital’ parece trazer para a escrita o caráter coloquial e a falta de compromisso característicos da fala. Seja na internet ou fora dela, o computador vem aproximando a lógica da escrita à da fala e, com isso, fazendo com que escrever se torne mais fácil e prazeroso do que costumava ser quando éramos obrigados a raciocinar com caneta e papel”, afirma Zaremba. Talvez por isso, a sensação de que o número de escritores aumentou nos últimos anos, com a multiplicação dos blooks.

A editora e crítica literária Heloísa Buarque de Hollanda pesquisou a literatura existente nos blogs e concluiu que há textos muito bons, ainda não impressos, na web. Por isso, organizou, em 2007, no Rio e em São Paulo, a exposição “Blooks – Tribos & Letras na Rede”, com curadoria de conteúdo de dois jovens poetas: Bruna Bebber e Omar Salomão. A mostra através de poesia, prosa, letras de música, quadrinhos e games traz a intromissão do computador e da internet na leitura e na escrita e, consequentemente, a profusão de criações literárias deste novo século. Para Bruna, o primeiro passo foi fazer um grande entulho de informação e depois ler um por um e agrupar. “Começa na ‘primeira geração’ de blogueiros, passa pelos que estão chegando agora, blogs novos, mesmo. Têm também escritores que migraram pra internet depois de já terem livros publicados, como Antonio Cícero; há os polêmicos, os anônimos, e ilustres blogs desconhecidos. A intenção era dar autonomia aos leitores/visitantes pra decidirem o que preferem. Eles decidem o que é bom, a gente só organizou uma programação variada. Censura não combina com internet”, conclui.

O escritor Flávio Izhak, selecionado para a mostra, sinaliza a eficiência da rede para a visibilidade de seus textos: “Eu publico contos na internet há seis anos. Há quatro criei meu blog, ‘Bohemias’, onde passei a publicar meu material com maior frequência. No início, eu postava qualquer conto que tinha guardado – e alguns que ia escrevendo – para mostrar meu trabalho. Eram textos em copião, rascunhos de histórias, fragmentos de alguma coisa: mais inspiração que transpiração. De algum jeito, o blog começou a ser lido e se tornou um passaporte para que eu conhecesse outros leitores e escritores. Quando comecei o blog não conhecia nenhum escritor pessoalmente. Foi por meio da internet que criei uma rede de leitores e amigos escritores”.

Em 2004, Flávio organizou com o jornalista Marcelo Moutinho, a coletânea “Prosas cariocas” (Casa da Palavra), misturando autores que naquele momento ainda tinham um ou dois livros com outros bem jovens, que conheciam apenas por seus blogs. Naquele mesmo ano, Flávio Izhak também teve um conto publicado no livro “Paralelos” (Agir), produto das muitas possibilidades de integração entre digital e impresso. Todos os autores participantes, sem exceção, conquistaram seus primeiros leitores na web, no portal literário que deu nome à coletânea que, além de apresentar escritores inéditos, criou uma rede de discussão sobre a literatura, reunindo autores de todo o Brasil e se transformou em ponto de encontro de gente que debate e, principalmente, escreve literatura hoje.

A escritora e jornalista Ronize Aline, componente desse grupo, venceu um dos concursos digitais de literatura: “Ter meu conto ‘A senhora da primeira fila’ entre os três vencedores do concurso promovido pelos sites ‘Paralelos’ e ‘Portal Literal’ representou a concretização da possibilidade de encontros. A partir da sua publicação nos dois sites, que são referência em termos de literatura, passei a encontrar e a ser encontrada, real e virtualmente, por outros escritores (alguns novos, outros nem tanto) que vinham comentar meu texto. Isso abriu as portas para que eu passasse a colaborar com o ‘Paralelos’, tendo outros contos publicados e, inclusive, sido chamada para editar um especial do site”. Só no Google, podemos encontrar hoje algo em torno de 1090 sites de poesia e 3200 sites de romance, dos autores consagrados aos iniciantes, mas o livro impresso parece ser ainda o objetivo dos escritores.

“Literatura na internet é apenas um novo suporte para a publicação de texto. Até porque o que mais se costuma encontrar são textos de escritores, construídos com o intuito de serem publicados em papel, mas que ainda não conseguiram editora e utilizam a internet para torná-los conhecidos ou submetê-los à crítica pública antes de submetê-lo ao crivo dos editores”, diz Ronize Aline.

Apesar disso, com as ferramentas da rede, é inegável que já existem debates, com alguma discordância, sobre as transformações na produção escrita, a possibilidade de surgimento de novas linguagens, a revisão da noção clássica de autoria e os novos relacionamentos interativos, como é o caso da relação escritor-texto-leitor. Iniciativas como a da editora inglesa Penguin Books, que criou o blog “A million penguins”, onde cada usuário cadastrado podia escrever um capítulo ou trecho dele, e reescrever partes criadas por outros usuários, gerando histórias completamente criadas pelos internautas, são exemplos claros dessas novas tendências.

Na web, todos podem escrever. A coordenadora da Central de Educação a Distância da Puc-Rio, Maria Apparecida Campos Mamede-Neves, acredita que esse tipo de experiência está ligado à idéia da rede enquanto um universo simbólico atraente: “A representação da internet fica atrelada a uma vivência de satisfação pela qual se lhe outorga a condição de agradabilidade. Assim, escrever em blogspode partir de um princípio bastante distinto daquele de produzir literatura de fato”.

Para muitos autores, a internet, pelo menos por enquanto, ainda não construiu uma linguagem literária diferenciada e tem uma função bastante objetiva. É o que pensa Cecília Gianetti, autora de “Lugares que não conheço, pessoas que nunca vi” (Ediouro/Agir) e editora do Portal Literal. “Não existe uma linguagem de literatura de Internet. Ficções curtas em posts podem ser publicadas em papel, sem qualquer prejuízo em relação ao original. E continuará não existindo a tal da literatura de blog. Não faço literatura digital. Não existe a literatura on-line como gênero. Não existirá até que surjam histórias na web impossíveis de serem contadas no suporte livro – sob o risco de, impressas, virarem outra coisa que não é absolutamente o que se propunham ser na Internet. Aí, caso se reconheça e popularize essa ocorrência extraordinária de literatura intransponível para o papel, valerá debater o surgimento de um novo nicho”.

Se são grandes as dúvidas sobre o estatuto dos textos digitais, elas ficam ainda maiores quando se trata da visibilidade dos autores digitais para os editores tradicionais. Antonio Carlos de Mello teve seu romance “Madame Flaubert” ainda em versão on-line, (http://mmeflaubert,notlong.com), resenhado, com ótima crítica, há alguns meses, em jornal de grande circulação, até hoje, não conseguiu publicação. “Acredito apenas que meu romance não despertou interesse dos editores que dele tomaram conhecimento através da resenha. Embora seja uma homenagem e uma atualização crítica do ‘Madame Bovary’. Embora estejamos no ano em que o romance de Flaubert completa seu 150º aniversário. Embora a resenha tenha elogiado o romance. Embora um autor e crítico como Gustavo Bernardo (um dos poucos autores – se não o único – a ser um dos finalistas do Prêmio Jabuti em quatro categorias diferentes) tenha classificado ‘Madame Flaubert’ como uma obra-prima. Embora eu tenha um blog com quase 200 mil visitantes, aproximadamente mil visitas/dia”, diz Mello.

Beatriz Resende, coordenadora do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ e crítica literária, discorda. Ela acredita que “a internet dá sim visibilidade e os editores a estão usando para caçar talentos. Os blogueiros já estão prestando atenção a isso”. Em meio ao debate, real e virtual, que acontece em torno da literatura na rede, uma possibilidade concreta: a “cauda longa” da literatura hoje pode estar nas listas dos mais vendidos de amanhã, uma vez que já há algum tempo fala-se sobre o setor quaternário da economia, aquele que engloba os produtos de maior criatividade e densidade intelectual. Não seria esse o sonho de todo escritor?

 

* Diana Damasceno é jornalista, crítica literária, professora nas Universidades Cândido Mendes e Veiga de Almeida, e pesquisadora do Programa Avançado de Cultura Contemporânea/UFRJ.

 

Impactos da tecnologia na telenovela: inovações e impasses | de Cláudio Felicio Pífano Silva

Ao criarem em meados dos anos 40 o conceito de Indústria Cultural, Adorno e Horkheimer lançaram um olhar crítico sobre a conjunção entre arte e tecnologia. Ambos apontaram como a produção de bens culturais está impregnada de uma racionalidade técnica, que obedece aos mesmos esquemas rígidos da produção industrial, sustentada pela tríade serialização-padronização-divisão do trabalho, cujo produto final oferecido como novidade seria, na verdade, apenas a mudança de indumentária de um sempre semelhante (ADORNO, 1986).

Essa falta de espaço para a invenção que emerge do pensamento de Adorno e Horkheimer sobre a Indústria Cultural é posta em xeque por Edgard Morin. Segundo o teórico francês, em meio a estruturas rígidas de produção deve haver certa liberdade criativa que garanta a continuidade da própria indústria, uma vez que todo padrão tem de ser aperfeiçoado pela originalidade para manter ou alcançar novos públicos consumidores (MORIN, 1987).

Assim, linhas rígidas – que tendem à reprodução, a uma identidade, à estabilização e reforçam o que já vem pronto – coexistem com linhas de invenção que trazem o novo, o estranho, algo que escapa (DELEUZE, 1998). Ou, como defende Umberto Eco em A inovação do seriado, até mesmo de produtos seriais pode surgir algo novo. Esquemas e autores que os utilizam é algo que acontecia já na Antiguidade Clássica. As tragédias gregas seguiam um esquema fixo, variando-o (ECO, 1989).
Frente a essas visões sobre a contradição invenção-padronização intrínseca à cultura de massa, torna-se claro que pensar como se dá a inovação na Indústria Cultural coloca-nos diante de uma rica gama de processos a serem analisados. Mas qualquer abordagem que pretenda trazer um olhar substancial sobre o tema exige um recorte em meio à abrangência de conexões possíveis. Desta forma, o presente ensaio concentra-se em discutir a inovação sob o viés da tecnologia na telenovela brasileira. A motivação para esta escolha está no fato de que a telenovela possui uma estrutura aberta, isto é, ela é escrita à medida que vai ao ar, levando-se em consideração a resposta da audiência. Tal modo de produção torna o gênero permeável a marcas da contemporaneidade que vão desde expressões artísticas e comportamentais até inovações tecnológicas.

Interessa-nos aqui verificar como a telenovela absorve as novas condições técnicas e como o impacto dessa absorção traduz-se em inovações para o gênero. Para que este objetivo seja concretizado, o ensaio está divido em três impactos distintos. O primeiro diz respeito às repercussões dos avanços tecnológicos da TV na evolução do principal produto da ficção televisiva brasileira. O segundo está relacionado à incorporação da tecnologia pelas tramas. O terceiro trata das inovações da novela advindas do surgimento da internet.

Inovações no Meio – Inovações no Produto

De acordo com a visão dos teóricos da Ecologia da Mídia, a inserção de uma nova tecnologia em um ambiente provoca sempre alterações estruturais importantes nos interesses, nos símbolos, na natureza da comunidade. Partindo desse princípio, é possível pensar que os próprios meios tecnológicos não estão imunes a mudanças em suas estruturas com o surgimento de um novo aparato técnico. Desta forma, se a América após a TV é outra América (POSTMAN, 1992), a televisão também é outra com o advento do videoteipe, por exemplo.

Indo um pouco mais além nesse raciocínio, se considerarmos que o meio é a mensagem (McLUHAN, 2005), torna-se possível também inferir que os produtos culturais produzidos por qualquer meio são diretamente afetados pela transformação tecnológica do próprio meio. Tal hipótese é passível de verificação ao examinarmos a história da telenovela brasileira. Graças ao advento do videoteipe, a novela teve a sua primeira grande inovação. As histórias, antes levadas ao ar ao vivo duas ou três vezes por semana, passaram a ser diárias a partir de 1963.

Dez anos depois, o início das transmissões em cores provocou outra revolução na telenovela. Se antes as histórias contadas em preto e branco já causavam sensação, a chegada das cores com a novela O bem amado de Dias Gomes em janeiro de 1973 marcou o início de uma era de ouro na teledramaturgia (ALENCAR, 2002). Nos bastidores, o uso da cor obrigou a adoção de novos parâmetros para a maquiagem, cenografia, figurinos, iluminação e fotografia, a fim de que a qualidade da imagem não fosse comprometida.

O desenvolvimento de equipamentos de última geração ao longo desses 45 anos foi outro fator que contribuiu decisivamente para evolução da novela diária. Afinal, tal aparato técnico tornou possível a realização de cenas cada vez mais complexas imaginadas pelos roteiristas. Além disso, na pós-produção, o computador tornou-se um precioso aliado nas reconstituições de época e na criação de efeitos especiais. Assim, a segunda versão de Mulheres de areia, por exemplo, teve muito mais realismo nas cenas entre as gêmeas vividas pela atriz Glória Pires do que a primeira versão que havia ido ao ar 20 anos antes. O remake contou com o recurso do cromakey, técnica de efeito visual que consiste em colocar uma imagem sobre uma outra através do anulamento de uma cor padrão.

mulheres de areia!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
Já na versão de 1973, quando as gêmeas tinham que contracenar, o diretor gravava com o primeiro lado da câmera tampado e, depois, gravava com o outro lado. Ou seja, um processo muito mais trabalhoso, que resultava numa imagem rudimentar bem distante da qualidade das imagens das telenovelas atuais, que, desde outubro de 2007, são exibidas em alta definição (High Definition Television). A HDTV é transmitida digitalmente e por isso sua implementação geralmente coincide com a introdução da televisão digital.

Ainda é cedo para avaliar o impacto que essas duas novas tecnologias vão causar na telenovela, uma vez que pouquíssimas pessoas têm acesso à HDTV e à TV Digital. Mas já há discussões sobre novos parâmetros para as imagens e também sobre outras formas de ver a novela, pois a TV Digital permite que as tramas sejam captadas e acompanhadas em outros dispositivos, além do aparelho de televisão tradicional.

Inovações tecnológicas – Inovações na trama

Em Dos meios às mediações – Comunicação, cultura e hegemonia, Jesus Martín-Barbero (2001) valendo-se do conceito de hegemonia expresso por Gramsci, mostra o processo de constituição do massivo a partir da cultura popular. Ao investigar a presença do povo na massa, o autor apresenta o melodrama como uma matriz cultural responsável pela mediação entre o folclore das feiras e o espetáculo popular urbano, quer dizer, massivo. Mediação que, no plano das narrativas, tomará primeiramente o formato industrial de folhetim e, depois, passará ao cinema, ao radioteatro e à telenovela. Logo, do cinema ao radioteatro, uma história dos modos de narrar e da encenação da cultura de massas é, em grande parte, uma história do melodrama (MARTÍN-BARBERO, 2001).

Ao identificar na cultura de massa a presença do melodrama, o trabalho do pesquisador espanhol radicado na Colômbia traz para esta discussão um aparato conceitual muito importante, uma vez que mostra quanto a telenovela guarda dos elementos das narrativas populares, tais como: a oralidade, o contar a, a surpresa e a repetição (MARTÍN-BARBERO, 2001).

Assim, os personagens arquetípicos do melodrama (o traidor, o justiceiro, a vítima e o bobo) reaparecem atualizados, revivendo velhas histórias.

E sempre, no produto novo, os antigos temas: gêmeos, trocas, usurpações de fortuna ou identidade, enfim, tudo que fomos encontrando nesta longa trajetória dos modos de narrar se haverá de reencontrar nas mais atuais, modernas e nacionalizadas telenovelas. Até sua distribuição em horários diversos, correspondendo a modalidades folhetinescas diferentes: aventura, comicidade, seriedade, realismo. Sempre de modo a satisfazer o patrocinador. (MEYER, 1996, p. 387).

Além desses temas, a telenovela herdou do folhetim a organização em capítulos e a estrutura aberta. Esta dota a narrativa de uma permeabilidade ao atual, possibilitando que a tecnicidade – termo que Martín-Barbero utiliza para designar todo um conjunto sistêmico de saberes técnicos já incrustados na estrutura do conhecimento e da vida cotidiana – ganhe visibilidade nas tramas com toda sua gama de atualizações. Assim, assuntos do momento e inovações tecnológicas de todas as ordens são inseridos na trama como elemento ativo de uma determinada intriga ou até mesmo passam a ser o tema sobre o qual gira a história.

Desta forma, o drama da paternidade perdida que era o cerne da trama de O direito de nascer de Félix Caignet (1965), atualmente é resolvido com um teste de DNA, cujos resultados podem ser folhetinescamente alterados, gerando novos conflitos. A chantagem feita com o material sonoro gravado em fitas K7 na novela Vale tudo (1988) de Gilberto Braga reaparece em Celebridade (2003) do mesmo autor. Mas, desta vez, a vítima do chantagista tem que ceder às pressões, porque seu algoz possui imagens comprometedoras captadas por câmeras de vigilância.
Quatro anos depois, em Paraíso tropical, também de Braga, o vilão vale-se de processos digitais para alterar uma conversa telefônica do herói e, desta forma, consegue separá-lo da mocinha. Já em A favorita (2008) de João Emanuel Carneiro, antes de sabermos quem era a boa e quem era má, Donatela (Cláudia Raia) monitora os passos de Flora (Patrícia Pillar) com o auxílio de um chip e de uma microcâmera. (Inserir vídeo de Paraíso tropical. Legenda:Gravações originais selam acordo entre vilões.)
Além de aparecer como instrumento complicador ou de resolução em diversos momentos da narrativa, a tecnologia pode aparecer como temática principal de uma telenovela, por meio de discussões acerca de como a vida das pessoas pode ser alterada pelo surgimento de novas possibilidades técnicas. A autora Glória Perez fez de barrigas de aluguel, transplantes, clonagem e encontros amorosos via internet temas centrais de algumas de suas novelas e, em boa parte delas, colocou como contraponto o impacto de tais inovações em culturas muito tradicionais como a cigana e a muçulmana.

Se na obra do escritor americano Mark Twain encontramos uma idéia da interação entre tecnocracia e os valores do Velho Mundo no século XIX (POSTMAN, 1994), na obra de Glória, podemos verificar a tensão inquieta existente entre a visão de mundo tecnológica e a tradicional. As tramas nascem justamente desse choque e refletem questionamentos contemporâneos sobre como ficam as velhas emoções em um admirável mundo novo. (Inserir vídeo O Clone Teaser 1. Legenda: Teaser de “O clone” traz idéia de tradição x avanços da ciência).

Advento da internet – Inovações nas telenovelas

Durante a década de 70, as novelas da Rede Globo de Televisão eram campeãs absolutas de audiência. Algumas tramas como Selva de pedra (1972) e O astro (1977), ambas de Janete Clair, conseguiram atingir a marca de 100% de aparelhos ligados. Trinta anos depois, uma novela de sucesso, de acordo com o Ibope, é aquela que consegue uma média entre 45 e 50 pontos ao longo de oito meses de exibição, com picos de 60 em seus momentos de clímax.

Os estudiosos e autores de telenovela apontam várias razões para esta queda, entre elas o desenvolvimento técnico e qualitativo de outros tipos de programa; a entrada no mercado das TVs a cabo com outras formas de atração e o surgimento da internet que possibilita uma nova maneira de fruição da novela como observou o autor Sílvio de Abreu na palestra de abertura do seminário “Eu vejo novela”: “Por que vou ficar em casa pra ver o último capítulo se posso vê-lo amanhã no site da Globo ou no You Tube?” (ABREU, 2008).

De fato, as pessoas hoje assistem, escutam, incorporam, vivenciam, enfim, reelaboram a telenovela de uma outra forma, mesmo nas classes populares, na qual o acesso à internet ainda é deficitário. A dimensão do fetiche ligado à técnica materializa-se não mais na tela da TV, como mostrava a leitura social feita por Ondina Leal sobre a novela das oito Sol de verão (1982). Transferiu-se para a tela do computador. Nela, sucessos do presente convivem com hits do passado, cujas tramas continuam consagradas. As narrações são assim libertadas de sua submissão ao progresso e possibilitam novas formas de relação com o passado, ou melhor, com os diversos passados de que estamos feitos (MARTÍN-BARBERO, 2000).

Não é difícil constatar o tamanho do culto. No You Tube, personagens como Odete Roitman, Maria de Fátima e Heleninha da novela Vale tudo e as antagonistas Júlia Matos e Yolanda Pratini da novela Dancin’ days (1978) sobrevivem em inúmeros vídeos. Os trechos das cenas voltam à tona graças à dedicação dos fãs das novelas, que digitalizam velhas fitas caseiras e organizam os vídeos em canais virtuais como o Mofo TV. Isso sem falar nas inúmeras comunidades do Orkut dedicadas a novelas antigas e atuais, bem como a personagens marcantes em tramas de ontem e de hoje (LEITÃO, 2008, p.15). (Inserir Dancin Days. Legenda: Cena final de Dancin’ days é objeto de culto na internet).

Mas não é apenas como culto que a telenovela vem procurando sobreviver à massificação da internet. Outra forma é por meio de hibridismos artísticos e midiáticos, incorporando, por exemplo, em suas tramas elementos de reality shows como o Big brother – formato originado pelas webcams e primeiro produto midiático global a mesclar TV, internet e telefonia. Essa incorporação de características dos reality shows vem tornando a fronteira entre realidade e ficção, entre linguagem jornalística/documental e linguagem dramática mais tênue na telenovela. Elementos da realidade têm sido cada vez mais misturados às tramas, com a inserção inclusive de cenas reais. Em 2003, por exemplo, a novela Mulheres apaixonadas exibiu como parte da história cenas de uma passeata pela paz que realmente ocorreu no Rio de Janeiro.

Em 2002, na novela O clone, depoimentos de dependentes químicos eram inseridos após as cenas da personagem Mel (Débora Falabella) que enfrentava o mesmo problema na ficção. Em Celebridade, artistas consagrados faziam apresentações nas casas de shows da trama e eram agenciados pelas produtoras rivais Maria Clara Diniz (Malu Mader) e Laura Prudente da Costa (Claudia Abreu). Finalmente, em Páginas da vida de 2006, os capítulos eram encerrados com depoimentos de pessoas comuns que tinham alguma vivência relacionada aos principais assuntos da trama: AIDS, alcoolismo e síndrome de Down. (Inserir Depoimento de Páginas da Vida. Legenda: Depoimento de idosa sobre primeiro orgasmo causa polêmica em “Páginas da vida”).

Considerações finais

Ao fim desse breve exame de como a telenovela absorve as novas condições técnicas e também de como o impacto dessa absorção traduz-se em inovações para o gênero, é inevitável não fazer uma referência à história de Thamus – rei de uma cidade do alto Egito – e de seu encontro com o deus Theuth – suposto inventor da escrita. Ao apresentar a sua invenção ao faraó Thamus, Theuth deixou o monarca temeroso ante a possibilidade de que o novo dispositivo tecnológico pudesse fazer com que as pessoas não fossem mais obrigadas a treinar a memória. Segundo o rei, elas passariam a se lembrar das coisas não por causa de um esforço interno, mas por mera virtude de um dispositivo externo.

O que se depreende dessa lenda, relembrada por Neil Postman no livro Tecnopólio A rendição da cultura à tecnologia, é que toda tecnologia pode se configurar sob dois aspectos: pode ser lida e interpretada tanto como um fardo ou como uma benção; não como uma coisa ou outra, mas sim isto e aquilo (POSTMAN, 1994). Essa moeda tecnológica de dupla face tem o mesmo valor quando se pensa sobre as alterações sofridas pela telenovela em função da incorporação de novos dispositivos técnicos, seja em seus meios de transmissão, seja em suas tramas. Afinal, tais recursos tecnológicos geram para esse produto cultural aspectos positivos e negativos, contribuem para a evolução do gênero, mas também trazem impasses.

Ao pensarmos sobre as relações entre os avanços tecnológicos da TV e os avanços do gênero, é patente que recursos como o videoteipe, a cor, câmeras e ilhas de edição de última geração tornaram a novela um produto cultural muito mais atrativo. Em contrapartida, as recentes HDTV e a TV digital mergulham as tramas televisivas diárias numa nova fase de incertezas quanto ao futuro, exigindo de todos os envolvidos na produção uma readaptação frente a novas formas de fruição da obra.

Passando desse aspecto para o exame do papel da tecnologia nas tramas, é possível constatar que a própria técnica fornece o antídoto para a rigidez dos roteiros esquemáticos impostos pelo modo de produção da Indústria Cultural. Assim, os roteiristas extraem das tecnologias mais recentes novas possibilidades criativas para tratar de temas-padrão que vêm desde o folhetim, tais como: gêmeos trocados, chantagens, usurpações de fortuna e identidade etc. Além disso, a técnica também pode aparecer como mola propulsora do conflito amoroso, já que muitas vezes é o pomo da discórdia de um casal no qual um ama o passado e o outro vê que o novo sempre vem. Ao colocar a tecnologia no epicentro da discussão, a telenovela às vezes corrobora, mas também pode seguir um caminho contrário do que prega o tecnopólio. Nas tramas, nem sempre a inovação tecnológica caminha junto com o progresso humano (POSTMAN, 1994).

Por fim, ao avaliarmos as inovações da novela advindas do surgimento da internet, são visíveis as tentativas do gênero para sobreviver à massificação do novo meio. “Se não há como vencer o inimigo, junte-se a ele” é um ditado que traduz os movimentos da teledramaturgia para continuar existindo. Um desses movimentos é o valor de culto adquirido por antigas produções disponibilizadas na rede mundial de computadores. Tal aspecto remete novamente a McLuhan, quando o teórico afirmava que uma nova tecnologia de comunicação transforma a anterior numa forma de arte (2005). Se a televisão consagrou o cinema como manifestação artística, a internet vem, em alguns casos, fazendo o mesmo com o principal bem cultural televisivo.

Outros esforços de sobrevivência do gênero são: a adoção de procedimentos dos reality shows e ainda a criação de sites para novelas específicas com as cenas disponibilizadas, o que gera outras formas de envolvimento com a trama. Em função dessas novas formas de fruição, a tal queda na audiência é mensurável, mas questionável. Uma solução para isso talvez seja a adoção de modos alternativos para a medição da audiência, que não levem em conta apenas a presença em frente ao aparelho de TV.

O resultado desses movimentos só o tempo dirá. O que hoje parece negativo poderá se transformar em algo positivo, ou seja, numa contribuição para o avanço do gênero. A única coisa certa é que haverá o desenvolvimento de habilidades que poderão responder à nova configuração do ambiente sempre imposta pelo surgimento de toda e qualquer tecnologia. Afinal, há na técnica novos modos de perceber, ver, ouvir, ler, aprender novas linguagens, novas formas de expressão, de textualidade e escritura. Isto porque, como bem avançou Heidegger a partir do pensamento de Husserls, a técnica tem a ver com a essência do ser humano, com sua capacidade de inventar, de fazer existir o que não existia.

Cláudio Felicio Pifano Silva é mestrando em Comunicação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Jornalista com graduação pela Universidade Federal de Juiz de Fora, cursou a Oficina de Roteiristas da Rede Globo de Televisão, ministrada por Flávio de Campos. Em 2005, recebeu Menção Honrosa no concurso de novos autores de novela promovido pela Rede Record de Televisão. Atualmente, é roteirista do Estúdio F, programa da Rádio Nacional do Rio de Janeiro dedicado a compositores e intérpretes brasileiros.
Referências Bibliográficas

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____________ & REY, German. Os exercícios do ver. Hegemonia audiovisual e ficção televisiva. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2004.
MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo: Cultrix, 2005.
MATTELART, Armand & MATTELART, M. História das teorias da comunicação. São Paulo: Loyola, 1999. MORIN, Edgar. Cultura de massa no século XX. Vol. 1. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987.
MEYER, Marlyse. Folhetim: Uma história. São Paulo, Companhia das Letras, 1996.
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XAVIER, Nilson. Teledramaturgia. Disponível: . Acesso em: 3 dez. 2008.

Memória e a construção audiovisual da realidade: Uma análise do documentário Nós e os outros – uma sociedade plural | de Gabriela Borges

* Dados da autora

Memória e a construção audiovisual da realidade: Uma análise do documentário Nós e os outros – uma sociedade plural

Este trabalho discute o episódio Nós e os outros: uma sociedade plural da série documental Portugal, um retrato social. A análise é proposta sob duas perspectivas. Por um lado, discute o papel desempenhado pelo serviço público de televisão ao produzir esta série que aborda a sociedade portuguesa contemporânea. E, por outro lado, analisa o quarto episódio intitulado “Nós e os outros – uma sociedade plural”, que trata das mudanças que ocorreram no país com a entrada de imigrantes estrangeiros nos últimos anos. Este trabalho insere-se no pós-doutoramento sobre a qualidade na televisão, realizado no CIAC da Universidade do Algarve (Portugal) com financiamento da FCT/MCTES, e analisa tanto a produção de conteúdos de qualidade que têm como referência a realidade, quanto a contribuição da televisão pública para a discussão sobre as relações entre a história e a memória recente do país. Problematiza ainda a contribuição de obras audiovisuais como Portugal, um retrato social no atual processo de inscrição pelo qual a sociedade portuguesa atravessa a partir da obra Portugal, hoje. O medo de existir.

Serviço público de televisão português

Desde os anos 1990 o serviço público de televisão português tem passado por vários revezes, como os seus congêneres europeus. A abertura do mercado e a concessão de licenças de funcionamento aos canais privados, no início da década de 1990, reconfigurou o mercado audiovisual e pressionou a discussão a respeito do papel e das funções a serem desempenhadas pelo serviço público de radiodifusão e de televisão. Neste período, o governo e a sociedade civil estiveram envolvidos em diálogos a fim de regular o serviço de radiodifusão e de televisão, em especial, o serviço público. A Rádio e Televisão Portuguesa (RTP) encontrava-se em crise, com enormes dívidas agravadas principalmente pela abolição da taxa de licença paga pelos cidadãos em 1991 e pela redução da emissão de publicidade devido às pressões exercidas pelos dois canais privados, SIC e TVI, cujas licenças foram concedidas respectivamente em 1992 e 1993. O déficit financeiro da RTP cresceu de cerca de 50 milhões em 1995 para 200 milhões em 2001, enquanto os canais privados aumentaram consideravelmente os seus lucros.

Em 1995 o governo socialista criou uma Comissão de Reflexão sobre o Futuro da Televisão, cujas sugestões dos especialistas foram aceites, mas não foram implementadas, levando com isso ao agravamento do cenário. Porém, tanto o governo quanto a sociedade civil têm conhecimento da importância da regulação do papel a ser desempenhado pelo serviço público de televisão.

Nas questões levantadas durante a Conferência Internacional sobre Televisão, realizada no ISCTE em 1997, o então Secretário de Estado Arons de Carvalho (apud SOARES, 1997:14) enfatizou que o grande desafio do serviço público era conseguir conjugar o máximo de audiências e de qualidade com o mínimo de custos, garantindo a diversidade e a qualidade da programação, além da independência em relação ao poder público e aos interesses privados.

Em dezembro de 2002, o governo social democrata apresentou as suas propostas no documento intitulado “Novas Opções para o Audiovisual”1. Este documento salientou a crise de identidade do setor em relação à estratégia, à organização e à integridade, principalmente devido ao não cumprimento das obrigações de serviço público, à perda das audiências, aos altos custos de produção e de recursos humanos e à má gestão dos fundos públicos. As novas estratégias delineadas para a reestruturação do serviço público de rádio e televisão enfatizavam a defesa e a garantia da identidade nacional e a complementaridade dos princípios básicos do serviço público (educar, informar e divertir) em todos os gêneros da programação, promovendo assim a diversidade e a inovação.

Em 2003 foi aprovada a Lei da Televisão, em que o segundo canal do serviço público passou a ter uma concessão especial cujo objetivo era a sua entrega a algumas entidades da sociedade civil no período de oito anos. Com a mudança do governo e a volta do Partido Socialista ao poder, a lei foi revista e, em 2007, foi aprovada uma nova Lei da Televisão que se encontra atualmente em vigor. Este panorama dos percursos e dos percalços, pelos quais o serviço público de televisão tem atravessado nos últimos anos, é importante de ser mencionado porque, de certa maneira, explica a dificuldade em implementar a produção e a transmissão sistemática de conteúdos de qualidade. A cada novo governo mudam-se as leis, mudam-se as regras e a produção audiovisual, como seria de se esperar, sofre com isso.

Entretanto, nem que seja em termos retóricos, as leis e os contratos de concessão de serviço público têm enfatizado a importância do incentivo à produção de conteúdos audiovisuais de caráter nacional, e também de língua portuguesa, especialmente de documentários, de obras de animação e de ficção. O artigo 48.º da Lei da Televisão de 2007 2 incumbe o Estado de assegurar a existência de medidas de incentivo à produção audiovisual de ficção, documentário e animação de criação original em língua portuguesa. No artigo 53.º consta que o serviço de programas generalista nacional, isto é, o canal RTP1, deve ser dirigido ao grande público e

atender às realidades territoriais e aos diferentes grupos constitutivos da sociedade portuguesa, concedendo especial relevo: a) À informação, designadamente através da difusão de debates, entrevistas, reportagens e documentários; b) Ao entretenimento de qualidade e de expressão originária portuguesa; c) À transmissão de programas de carácter cultural; d) À sensibilização dos telespectadores para os seus direitos e deveres enquanto cidadãos.

A cláusula 9.ª do Contrato de Concessão de Serviço Público de 25 de março de 2008, relativa ao primeiro serviço de programas generalista de âmbito nacional, refere que o serviço público generalista deve, pelo menos, incluir espaços regulares de difusão de documentários originais, focando a realidade social, histórica, cultural, ambiental, científica ou artística portuguesa.

A fim de incentivar e patrocinar a produção de documentários, a RTP e o ICA (Instituto de Cinema e Audiovisual, antigo ICAM – Instituto de Cinema, Audiovisual e Multimedia) firmaram um protocolo que abrange o apoio financeiro à produção, difusão, promoção e divulgação de obras cinematográficas assim como a disponibilização de imagens do arguivo pela RTP. Sendo assim, a RTP apoia a produção cinematográfica nacional, nos seus vários formatos e gêneros, designadamente longas-metragens, curtas-metragens, ficção, documentários e animação.

Porém, a relação entre a RTP2 e os documentaristas tem sido bastante conturbada. Num comentário ao número 5 da revista Docs.pt dedicada ao tema da relação entre o documentário e televisão, Leonor Areal enfatiza que a RTP não tem exibido os documentários que ela própria patrocina ao abrigo do protocolo com o ICA.

(…) são filmes financiados oficialmente, mas a RTP recusa-se a emiti-los e a devolvê-los à sociedade de onde provêm, que reflectem e a quem se dirigem, impossibilitando o seu escrutínio público, a existência de crítica, de discussão e de vozes diversas no espaço público de televisão (nem que fosse tarde e a más horas!).

A documentarista ressalta que pode-se confirmar, na entrevista com o diretor da RTP2 para a referida revista, o que os documentaristas vêm chamando a atenção há alguns anos. A RTP não tem interesse em exibir os documentários produzidos ao abrigo deste protocolo simplesmente porque, na opinião do diretor, eles não condizem com a programação oferecida pelo canal. Reproduzo parte do texto de Leonor Areal em que enfatiza a opinião de Wemans: “Sendo mais claro, eu acho que há documentários de autor que não foram feitos a pensar em televisão e que portanto eu, como programador, acho que não têm lugar na grelha.” E ainda diz:

Eu não tenho nenhum espaço televisivo permanente que corresponda à ideia mais estreita de documentário de autor e nem estou interessado em criá-lo porque acho que ele deve dialogar com outros documentários. (…) É verdade que se o documentário de autor me surge como uma proposta em que eu não decidi nada, (…) que foi realizado por quem quis, com o olhar que quis, recorrendo aos financiamentos que pôde, esse documentário tem um espaço mais limitado na RTP2.

Na opinião de Areal só a diversidade pode garantir a liberdade de expressão, sendo que

cabe a um programador impor o seu programa estético e ideológico centralizado, mas dar abertura e espaço a que a diversidade de perspectivas se manifeste e chegue aos seus interlocutores: a sociedade, o público. O programador deve servir o espectador, não enquanto público-alvo, como em publicidade e televisão comercial, mas enquanto sociedade – isso é que é serviço público.

A documentarista Catarina Mourão, em um trecho não publicado da sua entrevista para a revista Docs.pt3, número 5, afirma o seguinte:

Se pensarmos no panorama do documentário criativo em Portugal em 1996 e agora 2006 é evidente que muita coisa mudou. (…) No entanto a Televisão pública continua a negar-lhe um espaço, impedindo o acesso do Documentário criativo ao grande público. Os apoios do ICAM existem e procuram ser regulares, mas diminuem de ano para ano (2000, 21 projectos; 2001, 23; 2002, 16; 2003, 15; 2004, 13 e 2005, 13 projectos). Por outro lado, os projectos que os concursos do ICAM apoiam são na sua maioria abordagens bastante convencionais e os critérios de escolha continuam a insistir nas temáticas e não nos olhares. Finalmente, dos projectos apoiados anualmente só um terço são divulgados e circulam nos festivais e mostras. E mesmo esses, produzidos ao abrigo do protocolo ICAM/RTP, nunca são transmitidos pela TV. Quanto aos restantes dois terços, será que existem? Por vezes surgem documentários apoiados marginalmente que surpreendem e nos deixam optimistas mas a grande maioria dos documentários produzidos no fio da navalha são muito frágeis.

A polêmica está, de certa forma, instalada entre os documentaristas, principalmente aqueles que procuram fazer documentários de autor, e a direção de programas da RTP2. Entretanto, por outro lado, o serviço público de televisão tem financiado iniciativas pontuais e tem produzido, não apenas ao abrigo do protocolo com o ICA, alguns documentários dignos de nota e que, conforme a própria afirmação de Wemans na referida entrevista, se apresentam como uma “iniciativa fundamentalmente centrada nos documentários sobre a cultura e património português.”

Em 2005 a Direção de Programas da RTP definiu três áreas temáticas como linhas de orientação para a produção de documentários: a História recente de Portugal, (séculos XIX e XX), Retratos da sociedade contemporânea e Biografias. Em 2006 o objetivo da RTP era emitir entre 40 a 45 horas de documentários de produção nacional. Foram exibidas quatro séries documentais “Portugal-Retratos de sucesso”, e outras três sobre o terramoto de 1755, sobre a sida em Moçambique e sobre o antigo primeiro-ministro Francisco Sá Carneiro.

Em 2007 foram exibidos dois documentários que obtiveram mais de 20% de quota de mercado4, “Portugal, um retrato social” (20,8%) e “A guerra” (26,9%sh), da autoria de Joaquim Furtado. Neste mesmo ano, na comemoração dos 50 anos de televisão em Portugal, também foram produzidos dois documentários da autoria de António Barreto e Joana Pontes: “Nós e a televisão” e “A televisão e o poder”.

Em nota de imprensa lançada pela emissora5, a RTP2 afirma que tem dedicado mais de 25 horas semanais da sua programação à divulgação de diferentes tipos de documentários, além de exibir as criações resultantes do acordo RTP-ICA e tem apoiado financeiramente dezenas de projetos que lhe são diretamente apresentados por realizadores. No final de 2007, RTP2 lançou um concurso público para que as produtoras apresentassem projetos no âmbito de duas séries documentais compostas de seis documentários de uma hora. O objetivo era de contribuir para consolidar as estruturas de produção audiovisual nacional e reforçar a qualidade da sua criação. Com isso, até ao final do primeiro trimestre de 2009, a RTP2 receberá 12 obras encomendadas que têm como autores e realizadores nomes como Fernando Lopes, Jorge Silva Melo, Catarina Alves, Joana da Cunha Ferreira, entre outros. Neste momento, conforme informação obtida no site TV Universo6 a RTP2 tem mais de 80 documentários encomendados. As séries documentais nacionais podem ser consideradas a grande aposta do canal para arentrée de 2008/09, com seis produções em andamento nos próximos dois meses: “Trabalhamos com mais de três dezenas de produtores independentes, cumprimos uma das nossas obrigações”, referiu Jorge Wemans na apresentação dos novos programas aos jornalistas.

Alguns dos documentários a destacar são: A vida normalmente, uma série de 10 programas sobre pessoas de bairros problemáticos; Recantos, um guia de descoberta por Portugal; Histórias da vida da terra, uma produção sobre a vida selvagem na Europa e também em Portugal; Percursos da vida portuguesa, que aborda a música erudita nacional desde o século XII até à atualidade; Gente da cidade, que mostra várias cidades europeias através do percurso de três pessoas, uma co-produção de diversas estações de televisão europeias produzida há aproximadamente 10 anos e Voluntário, uma série documental sobre histórias de voluntariado em Portugal. É de destacar ainda uma série documental de 12 episódios, feita em parceria pela RTP e televisão de Moçambique, que será da autoria do renomado escritor moçambicano Mia Couto e terá como tema os Parques Naturais de Moçambique. A série começa a ser gravada este ano e irá para o ar em 2009.

Portugal um retrato social

A série de documentários Portugal, um retrato social é de autoria do sociólogo António Barreto com direção de Joana Pontes e música de Rodrigo Leão, tendo sido produzido e transmitido pela Rádio e Televisão de Portugal (RTP) em 2007. Esta série aborda as grandes transformações sociais verificadas na sociedade portuguesa ao longo das últimas quatro décadas, as quais foram bastante profundas e muito mais rápidas do que na maioria dos países europeus. A emigração, a guerra colonial, a revolução política e social iniciada com a queda da ditadura, a fundação do Estado democrático, a descolonização e a contra-revolução, a adesão à União Europeia e a imigração foram alguns dos acontecimentos ou fenómenos históricos que marcaram este período e que resultaram ou aceleraram estas transformações. Barreto7 ressalta que

as sociedades pequenas e fechadas ao exterior, politicamente autoritárias, culturalmente viradas para si próprias, dotadas de insuficientes elites e com uma reduzida expressão das classes médias, como era o caso de Portugal, não têm, em certas circunstâncias, forças, dinâmicas e dimensão suficientes para gerar uma mudança social acelerada.

Com certeza que não foi efetivamente fácil para o país

(…) libertar-se de tudo aquilo que o tinha condicionado durante décadas: a ignorância e a reverência; a delação e o medo; o autoritarismo e a repressão. Ao mesmo tempo em que se separava de África, se voltava para a Europa; em que sacudia o paternalismo e criava uma República de cidadãos.

A série de documentários Portugal, um retrato social conta com oito documentários de uma hora. O primeiro documentário da série, intitulado Gente diferente: Quem somos, quantos somos e onde vivemos aborda o modo de vida dos portugueses em comparação com trinta atrás. O segundo documentário Ganhar o pão: O que fazemos lida com a questão do trabalho, mostrando que a maioria dos portugueses trabalha na área dos serviços, sendo que poucos ainda trabalham na agricultura e nas pescas e muitos emigraram para outros países europeus e da América do Norte. O terceiro documentário, intitulado Mudar de vida: O fim da sociedade rural, mostra a transformação da sociedade rural em urbana, com as emigrações campo-cidade e a organização de uma nova vida cotidiana nas áreas metropolitanas. O quarto documentário, Nós e os outros: Uma sociedade plural, mostra as mudanças no que diz respeito à abertura da sociedade portuguesa com a emigração, o turismo, a democracia e a chegada dos imigrantes estrangeiros. Hoje fala-se muitas línguas e pratica-se muitas religiões, o que levou os portugueses a aprenderem a viver com os outros. O quinto documentário, Cidadãos, discute a integração europeia e o crescimento económico, que fizeram dos portugueses cidadãos de pleno direito pela primeira vez na sua história. Porém a justiça, que deveria acompanhar este progresso, ainda está a adaptar-se a esta nova sociedade e tem dificuldades em garantir os direitos dos cidadãos. Em Igualdade e conflito: As relações sociais aborda-se o crescimento das classes médias e da sociedade de consumo de massas em relação às diferenças de classes, de poder económico, de geração, de sexo e de região que ainda subsistem na sociedade. As famílias portuguesas vivem melhor, sendo que em vinte ou trinta anos o bem-estar melhorou mais que nos cem anos anteriores. Em Um país como os outros: A formação de uma sociedade europeia constata-se que Portugal já não se distingue, a nível europeu, como o país da ditadura, da pobreza e do analfabetismo. Embora o país ainda esteja atrasado e com algumas deficiências a colmatar, os portugueses são cidadãos livres e têm acesso ao Estado de Bem-Estar Social como os outros europeus.

Nós e os outros: Uma sociedade plural: a construção audiovisual da realidade

A narrativa documental de Nós e os outros: Uma sociedade plural é construída por meio de imagens de arquivo, que contextualizam a vida do país desde os anos 60 até os dias de hoje, e de imagens e entrevistas gravadas recentemente. São utilizadas imagens de filmes e programas antigos que foram selecionadas dos Arquivos da RTP. As imagens recentes apresentadas são das vindimas, dos cultos religiosos, das fábricas, das cidades, dos bairros sociais onde vivem os imigrantes, das pessoas trabalhando, se divertindo e consumindo. As entrevistas foram feitas com portugueses, gente comum ou de renome, e com imigrantes de diversas nacionalidades. Foram apresentadas entrevistas com Fernando Lemos, Rui Saraiva e Silva, Rosa Peixe Rola (agente da PSP em 1972), emigrantes portugueses, Etelvino Batista (ex-soldado, Angola 1961-63) soldados portugueses retornados da Guerra colonial, Vitorino Sanches (um dos poucos africanos que chegaram a Portugal antes da descolonização), Carrie Jorgensen (agricultora americana de avós portugueses), Susana Esteban (enóloga), Catherine Henke (artista plástica e agricultora), Ansor Ahrorov (ucraniano), irmã Mafalda Muniz (de um centro social de bairro), António Pinto (empresário), imigrantes brasileiros, Andriy Kristopchuk (médico ucraniano), irmã Deolinda Rodrigues, Arminda Soares (presidente conselho executivo de escola), Anabela Rodrigues (jurista), Francisca Van Dunem (procuradora-geral adjunta).

A narração do documentário é realizada por uma voz fora-de-campo masculina, onisciente, que constrói a narrativa mostrando um ponto de vista sociológico sobre a história e modo de vida do país desde os anos 60, analisando as transformações sociais pelas quais a sociedade portuguesa tem atravessado, com ênfase, neste caso, na relação entre os portugueses e os outros povos que escolheram o país como local de residência nos últimos anos. O documentário mostra como os estrangeiros estão inseridos em vários âmbitos da vida social e econômica portuguesa. Nas entrevistas, algumas vezes se escuta a voz do entrevistador a interagir com o entrevistado.

Em termos de roteiro, a narrativa é cronológica e descritiva a fim de facilitar a compreensão do telespectador e tenta, de alguma forma, mostrar um ponto de vista crítico que também informa o telespectador das mudanças e das dificuldades, principalmente de integração dos estrangeiros. A última parte do documentário lida com as questões mais complicadas em relação a esta integração, mostrando casos concretos.

O percurso narrativo pode ser resumido na seguinte sinopse: o documentário começa com um ponto de vista dos portugueses durante a ditadura salazarista. Nesta época estes deviam ser vistos como pobres, honestos e trabalhadores. O Estado e a Igreja Católica ensinavam um só ponto de vista, contidos num manual único de ensino escolar. O país quase não tinha conhecimento sobre o que se passava em outros países. A sociedade era fechada, não havia muitos estrangeiros, praticava-se apenas a religião católica, os partidos estavam proibidos e falava-se apenas a língua portuguesa. A polícia secreta, denominada PIDE8 , controlava desde as cartas enviadas pelos correios, até a imprensa, a televisão, o cinema e o teatro, censurando os diálogos que eram considerados inapropriados nestes diversos modos de expressão. Com isso a vigilância fazia parte do cotidiano das pessoas. Poucas mulheres trabalhavam, as professoras estavam proibidas de usar maquiagem e, tal como as enfermeiras, necessitavam de autorização do governo para se casarem. As aeromoças, por sua vez, não podiam se casar. Os namorados que se beijassem na rua recebiam multas. Não havia muita manifestação pública de afeto. Os sentimentos eram socialmente reprováveis, sendo que o divórcio era uma das principais interdições neste terreno. Os empregos públicos dependiam de certificados de bom comportamento passados pelos governadores civis em que se afirmava: “declaro por minha honra que estou integrado na ordem social estabelecida pela constituição política de 1933 com activo repúdio do comunismo e de todas as ideias subversivas”.

Até os anos 60 vivia-se com muito medo. Foi quando as coisas começaram a mudar, devido ao grande crescimento econômico, os empregos gerados nas cidades e o consumo de massa. Os estrangeiros começaram a visitar o país trazendo novos comportamentos, as mulheres começaram a trabalhar, as classes médias quiseram dar mais educação aos seus filhos. Começou a haver mais consumo e mais opções de lazer, assim como os portugueses emigraram para o exterior, tendo emigrado mais de 1 milhão e meio de portugueses. Por outro lado, a ida à guerra transformou a cabeça dos jovens, que voltaram com outros pontos de vista. Em entrevista, Etelvino Batista afirma que a vida na Angola era muito diferente: “Nós eramos os provincianos e eles eram os citadinos”. Em Luanda as mulheres eram mais livres e a própria sociedade era mais aberta.

Atualmente, a sociedade portuguesa tornou-se plural e o país fechado passou à história. Na televisão, o modelo americano é o predominante, sendo que as novelas são copiadas do Brasil. Mudaram-se as ideias, os hábitos e as populações. Em 1975 cerca de 600 mil portugueses voltaram da África, fugindo da guerra e acabaram se integrando, apesar das dificuldades. Nos anos 80 os brasileiros e os africanos vieram trabalhar em Portugal. São os chamados imigrantes económicos. Surgem problemas em relação à identidade, como por exemplo as crianças africanas que praticamente nem falavam português e viviam em guetos. Nos anos 90 chegam os russos, os ucranianos e os romenos, que são mais qualificados do que a média dos portugueses, mas se disponibilizam para trabalhar em qualquer tipo de emprego. A chegada dos imigrantes teve um impacto positivo na economia, aumentando a produção. Meio milhão de estrangeiros estão legalizados, sendo que estima-se que 100 mil ainda continuam ilegais. Com isso surgiram também algumas questões problemáticas relacionadas com a dificuldade de adaptação, o trabalho, a língua e outras necessidades básicas, como a saúde, a educação, a moradia e o saneamento básico. Além do preconceito e da exploração pela qual os imigrantes passam. A questão da integração também se coloca, como por exemplo com a segunda geração de africanos em Portugal, porque muitos deles se sentem, ao mesmo tempo, africanos e europeus, caboverdianos e portugueses. E outros, mesmo sendo descendentes de africanos, são portugueses e sentem-se como portugueses, mas são vistos como descendentes de africanos e portanto africanos. Muitos deles nem sequer conhece o país de origem dos seus pais e avós.

Portanto, a abertura da sociedade foi o corte mais radical com o passado. Portugal é hoje um país moderno, integrado na União Europeia e, apesar de ter um atraso em relação a alguns níveis de vida europeus, não se pode dizer, como há alguns anos, que é um país subdesenvolvido. Porém, o que este documentário chama a atenção e de certo modo cumpre com a sua função social, é sobre questões mais complicadas que estão relacionadas com as mentalidades e com a identidade de um povo, questões estas que se tecem e se imbricam na vida das pessoas de forma ténue e, por isso mesmo, são mais delicadas e difíceis de lidar. Mas trabalhos audiovisuais como este, que são exibidos em horário nobre na televisão pública e têm uma grande audiência, podem de certa maneira colocar na pauta da agenda mediática nacional, e não só, as preocupações e as dificuldades de integração dos imigrantes, alertando para o facto de que os portugueses um dia também emigraram e que os imigrantes podem acrescentar valores não apenas econômicos, mas também culturais, à vida dos portugueses. Esta forma de debate, que não é maniqueísta mas que mostra diferentes pontos de vista, daqueles que vivem cá e também daqueles que vêm de fora, enriquece a vida social e cultural dos que vivem neste país.

A discussão da Qualidade

Pelo que foi exposto percebe-se que as obrigações legislativas impostas à televisão pública portuguesa vêm, de certa forma, sendo cumpridas ou, pelo menos, percebe-se que há uma forte intenção da RTP em cumpri-las. A RTP procura, apesar deste ser um esforço ainda mínimo, produzir documentários de qualidade, que lidam com temas de interesse nacional, que promovem a conscientização política e social dos habitantes do país e que, neste caso, trabalham com temas muito delicados como o preconceito, a integração e a formação de uma identidade nacional.

Nos estudos que estão sendo desenvolvidos no meu pós-doutoramento9 , estão a ser definidos parâmetros de qualidade a fim de discutir os programas emitidos pelos canais de serviço público português. Este documentário está inserido nos programas que veiculam conteúdos de âmbito social, e portanto na sua análise discute-se o papel institucional da televisão pública no sentido de informar e também estimular o desenvolvimento político e cultural dos sujeitos sociais.

Na análise do plano do conteúdo tanto da série documental Portugal, um retrato social como do documentário Nós e os outros: Uma sociedade plural percebe-se que os parâmetros de qualidade abaixo enunciados estão presentes.

1. Papel social desempenhado pela televisão pública – Promoção de sentimentos de pertencimento e a criação de laços sociais entre as comunidades, que têm reflexos sobre a democratização da sociedade e o desenvolvimento da cidadania. – Discussão de temas de carácter social e político, que enriquecem a vida social, cultural e política do público quando estimulam o seu interesse. – Acesso aos debates que, em outras esferas da sociedade, são mais difíceis de serem empreendidos. – Promoção da pluralidade da informação, o fomento de debates e a formação do público em geral. – Acesso ao conhecimento e à cultura das minorias que geralmente não têm representatividade nos media. – Produção de narrativas úteis a fim de gerar uma multiplicidade de sentidos que podem contribuir para a formação dos indivíduos.

2. Papel pedagógico da televisão na abordagem de assuntos de suma importância na era da globalização, como por exemplo, reciclagem, defesa do meio ambiente, imigração, preconceito etc…

3. Cumprimento das funções informativa, social, política, cultural, identitária, de mobilização de valores e de divulgação.

Em corroboração com os parâmetros de qualidade é possível afirmar que o documentário cumpre com vinte e um indicadores de qualidade, os quais foram também elaborados no meu estudo10 . São eles: Relevância; Estímulo ao pensamento, Estímulo ao debate de ideias e Apresentação de desafios; Ampliação do horizonte do público; Promoção da consciencialização política e/ou social dos cidadãos; Diversidade de temas e pontos de vista; Bom nível informativo; Entretenimento; Recurso às fontes; Seriedade; Objetividade; Subjetividade; Precisão; Oportunidade; Interesse público; Produção de sentido; Credibilidade; Promoção da identificação do espectador; Adequação em relação ao público e Exatidão dos factos narrados.

Em relação à Mensagem Audiovisual não se pode dizer que haja muita inovação no formato, uma vez que este documentário apresenta-se como um documentário televisivo padrão, apesar da originalidade na abordagem do tema e da música, encomendada ao renomado músico Rodrigo Leão, que é um dos integrantes do grupo musical Madredeus. Dos 11 indicadores de qualidade definidos no estudo, pode-se afirmar que o documentário cumpre com a Qualidade artística; Apelo à curiosidade; Apresentação de uma estrutura organizada; Clareza da proposta; Eficácia da transmissão da mensagem e Tratamento válido do assunto.

A inscrição da memória

Neste sentido, eu gostaria de ressaltar um último aspecto que está relacionado com o papel do serviço público de televisão no sentido de contribuir para o resgate do passado histórico, a inscrição da memória e a afirmação da identidade de uma nação. Na obra Portugal, hoje. O medo de existir o filósofo e professor da Universidade Nova de Lisboa José Gil tece uma severa crítica à sociedade portuguesa contemporânea sobre o que denomina como uma falta de inscrição dos cidadãos no sentido de agirem e atuarem efetivamente sobre os destinos do seu país.

Com a frase “Em Portugal, nada acontece.” José Gil (2005:15) afirma que se nada acontece quer dizer que nada se inscreve, seja na história ou na existência individual, na vida social ou no plano artístico. Um dos pontos nevrálgicos da não-inscrição, na opinião do filósofo, encontra-se na denominada Revolução de 25 de Abril, que recusou-se a inscrever no real os 48 anos de autoritarismo salazarista. Ou seja, a dita revolução ocorreu mas não houve uma mudança no modo de vida e no modo de pensar e perceber as relações sociais. O mesmo já havia acontecido com a queda do antigo regime. Não houve julgamentos nem dos responsáveis da PIDE, nem dos responsáveis do antigo regime. Pelo contrário, “um imenso perdão recobriu com um véu a realidade repressiva, castradora e humilhante de onde provínhamos. Como se a exaltação ‘afirmativa’ da Revolução pudesse varrer, de uma penada, esse passado negro.” Desta forma, o autor chama a atenção para o facto de que todos os crimes, assim como a guerra colonial e a cultura do medo e da pequenez medíocre engendradas pelo salazarismo se apagaram das consciências e da vida das pessoas. Quer dizer, no fundo não se apagaram, porque continuam de certa forma reprimindo a inscrição e a atuação dos cidadãos na sociedade.

Outro aspecto que o autor ressalta está relacionado com a criação e a existência de um espaço público de troca e discussão de ideias. Na época do salazarismo o espaço público foi reduzido ao mínimo, tendo desaparecido com a censura e a supressão da liberdade de expressão e de associação. O clima de anestesia gerado neste período continua a persistir. O autor indaga como funciona o espaço público em Portugal trinta anos depois do estabelecimento da democracia e constata que o país continua a não ter esse espaço aberto de discussão e troca de ideias, que é essencial para que a liberdade e a criação circulem no campo social. Nem mesmo na televisão.

Neste sentido, por exemplo, não há debate político. Os debates presenciados na mídia limitam-se às trocas de opiniões e de argumentos entre políticos, sempre de um partido, ou de comentaristas, os pretensos formadores de opinião que dialogam entre si. Além disso, muitos políticos são também comentadores, ou seja, fazem o discurso e o metadiscurso. Em outros campos, como nas artes e na literatura acontece o mesmo, não há espaço público de troca de opiniões, os artistas, os críticos e os acadêmicos vivem nos seus casulos e não dialogam de forma mais ampla, por meio por exemplo de publicações, exposições e conferências.

Se, por um lado, a televisão e a imprensa estão abertas ao país e ao mundo, por outro filtram tudo o que transmitem pela sua especificidade enquanto meios de comunicação. A função da mídia consiste em

abrir o espaço da comunicação social, que difere do espaço público, mas nem mesmo nesse nível se edificou um sistema que desse voz aos “sujeitos coletivos da enunciação”, sempre enquadrados (…) em fórmulas expressivas de representação que pervertem o que deveria ser (…) um fórum em que os cidadãos pudessem discutir problemas, levantarem questões, pensar e agir sobre a sua sociedade (GIL, 2005:33).

Com isso, a própria mídia contribui para esta situação geral da não-inscrição. O autor defende que, pela sua aparência de espaço público, o espaço midiático dá-se como anônimo, ou melhor, como uma realidade anônima, uma espécie de elemento pertencente ao aparelho de Estado, como os tribunais e as escolas. Sendo assim, como pertence a todos e a ninguém, a mídia não promove nem a participação nem a discussão.

Por outro lado, a mídia deveria ser um dispositivo essencial do poder público dos cidadãos e, nesse sentido, deveria se diferir dos aparelhos do Estado. Na opinião de José Gil, a televisão, a rádio e a imprensa têm vocação para construir o real cotidiano das comunicações concretas, não apenas das “notícias”.

Neste sentido, a série Portugal, um retrato social pode ser vista como uma contribuição da própria mídia para repensar um período importante da história do país, ao resgatá-la e recontá-la audiovisualmente, por meio das imagens de arquivo. Mas não só. Considerando que a televisão promove um espécie de laço social entre as pessoas (como argumenta Dominique Wolton), no sentido em que fazem parte das conversas do dia a dia e geram um certo hábito no público de seguir e comentar a história que está sendo contada, esta série discute as transformações sociais, políticas, econômicas e culturais do país nos últimos 40 anos e contribui à sua maneira, e pontualmente, para que as mentalidades mudem e para que se saia da inércia da não-inscrição.

Gil (2005: 55) afirma que

conversar, dialogar são maneiras de construir um plano de inscrição de falas e pensamentos. Por vocação interna a fala inscreve o espaço público e, enquanto tal, ela é, por si só, uma pré-inscrição (como expressão de um afecto, de uma obra, de um pensamento). O plano da inscrição das falas constrói-se como plano de forças com uma independência própria: só a partir da sua existência a conversa pode desenvolver-se, fluir sem esforço, como que movida por uma mola interior.

Sendo assim, podemos considerar que a televisão pública cumpre um papel essencial não apenas de resgate de um modo de vida, mas também de inscrição; não apenas do passado mas que tem, também, repercussões no presente. Neste sentido, o trabalho realizado por António Barreto e Joana Pontes tem grande relevância no panorama midiático português. Ao resgatar a história, recontá-la audiovisualmente, com imagens de arquivo e apresentar dados não apenas interpretativos mas também quantitativos e estatísticos, que dão certa objetividade ao discurso, os autores apresentam um ponto de vista histórico e sociológico e também promovem a discussão sobre as transformações sociais, econômicas e culturais do país nos últimos 40 anos contribuindo à sua maneira, e pontualmente, para que se saia da inércia da não-inscrição.

 

* Gabriela Borges é pesquisadora e professora de Estéticas e Linguagens Audiovisuais. Graduada em Comunicação Social pela UFMG. Mestre e Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, com estágios de investigação na Universidade Autónoma de Barcelona e no Trinity College Dublin. Lecionou disciplinas práticas e teóricas nos cursos de Comunicação Social em universidades brasileiras e no curso de Cinema e Teatro do Trinity College Dublin. Realizou o seu pós-doutoramento no Ciac (Centro de Investigação em Artes e Comunicação) e leciona actualmente como professora convidada na Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade do Algarve. Tem vários artigos publicados em revistas científicas brasileiras e estrangeiras e organizou o livroDiscursos e práticas de qualidade na televisão lançado recentemente pela Livros Horizonte, Lisboa.

 

 

Referências Bibliográficas

BORGES, Gabriela. Reflexões sobre o projecto A 2: em cena: estudo de parâmetros de qualidade para a análise de programas. Anais do V SOPCOM, Universidade do Minho, Setembro, ISBN 978-989-95500-1-8.http://lasics.uminho.pt/ojs/index.php/5sopcom (no prelo).

 

———————. Parâmetros de qualidade para a análise de programas de âmbito cultural: uma proposta teórico-metodológica. Revista Electrónica Nau do NP Comunicação Audiovisual do Intercom, Vol. 1, Nº. 1, E-ISSN 1983-6376. Disponível em http://revcom2.portcom.intercom.org.br/index.php/NAU/issue/current/showToc, 2008.

 

GIL, José. Portugal, hoje. O medo de existir. Lisboa, Ed. Relógio D’Água, 2005.

 

WOLTON, Dominique. Elogio do grande público. Uma teoria crítica da televisão. São Paulo. Ed. Ática, 2006.

 

 

NOTAS

1 Disponível em http://www.ics.pt/Ficheiros/serv_pub/Neo_Op_AV.pdf . Consulta em 25/09/2006.

 

2 Disponível em http://www.anacom.pt/content.jsp?contentId=506380 . Consulta em 25/09/08.

 

3 Disponível no blog DOC LOG da documentarista Leonor Areal em http://doc-log.blogspot.com/2006/07/passado-e-futuro-do-documentrio.html . Consulta em 27/08/08.

 

4 RTP newsletter Nº. 9, de dezembro de 2007. Disponível emhttp://ww1.rtp.pt/wportal/grupo/newsletter/index9.php . Consulta em 25/09/08.

 

5 Disponível em http://www.tvuniverso.com/index.php/RTP/Documentarios-em-forca-na-nova-grelha-da-RTP2.html . Consulta em 20/09/08

 

6 Disponível em http://www.tvuniverso.com/index.php/RTP/Documentarios-em-forca-na-nova-grelha-da-RTP2.html . Consulta em 20/09/08

 

7 Texto de apresentação da série de documentários. Disponível emhttp://www.rtp.pt/wportal/sites/tv/portugal_retrato/index.shtm . Consulta em 25/09/08.

 

8 A polícia secreta da ditadura salazarista.

 

9 A discussão do modelo teórico de análise da qualidade está disponível emReflexões sobre o projecto A 2: em cena: estudo de parâmetros de qualidade para a análise de programas. Anais do V SOPCOM, Universidade do Minho, setembro, ISBN 978-989-95500-1-8. http://lasics.uminho.pt/ojs/index.php/5sopcom (no prelo).

 

10 A explicação pormenorizada dos indicadores de qualidade do Plano do Conteúdo e da Mensagem Audiovisual foi desenvolvida em artigo publicado na Revista NAU. Disponível emhttp://revcom2.portcom.intercom.org.br/index.php/NAU/article/view/4216/4326 . Consulta em 20/09/08.