Noções do mundo hippie hoje: seus desdobramentos culturais e políticos | de Martine Xiberras

* Dados da autora
** Tradução Ricardo Ferreira Freitas 1


Introdução
O movimento hippie exerce ainda hoje um fascínio geral; o que se passou exatamente e o que ficou na memória contemporânea? Por que permanece como uma aura, um souvenir desse encantamento? O que nos faz sentir essa atração e essa nostalgia, mesmo por aqueles que não conheceram essa época na qual existiu uma espécie de magia coletiva, um paraíso ao alcance da mão…

A perspectiva antropológica do imaginário (Gilbert Durand) pode permitir a compreensão ou nos aproximar um pouco mais da perspectiva global dos hippies. Trata-se de um ethos ou um credo comum que foram construídos como uma herança condensada de todas as grandes utopias ocidentais e orientais. Um imaginário equilibrado, ao mesmo tempo heroico e místico, propriamente sintético nos termos de G.Durand.

A ótica do imaginário nos permite ilustrar como um imaginário surgiu e depois foi disseminado, desdobrando-se, às vezes se invertendo, ou derivando até os dias de hoje no cotidiano, sob formas desbotadas, por vezes desdobradas, ou mesmo travestidas. O desdobramento ou a disseminação dos esquemas presentes no mundo hippie supõe que as ideias principais, ou imagens matrizes, estão ainda presentes atualmente. No entanto, falta a articulação desses elementos que estão dispersos, disseminados, difratados em diferentes campos, culturais e sociais. Iremos também sublinhar como esses esquemas informam ainda sobre o social no século XXI. O campo de observação é a Europa, a França em particular.

Um movimento cultural fulgurante
Ao analisar de perto, ao ler as histórias de vida dos atores e de suas aventuras comunitárias, o movimento reivindica raízes longínquas e diversas: o cristianismo primitivo, o fourierismo2, o orientalismo…

Outras fontes e referências mais próximas vão servir de catalisador do século XX, nos anos 60: as drogas do século XX dão um salto adiante, a revolução sexual de Reich explode realmente, o imaginário da Beat generation vem martelar seu ritmo endiabrado. A utopia psicodélica nasce como uma flor sobre o pedestal da sociedade prometeica 3 dos anos 60. O filme “A primeira noite de um homem”, The Graduate com Dustin Hoffmann, e seu fundo musical de Mrs. Robinson de Crosby, Still, Nash e Neil Young, ilustram bem o salto epistemológico que se produziu no seio da família americana4 .
Desde seu nascimento, o imaginário psicodélico é uma utopia em atos, uma filosofia que nasce no movimento de contestação política, na efervescência musical, e na liberação florida dos corpos, um flower power como ele próprio se auto-proclama. As comunidades logo terão os porta-vozes, os ídolos e os ícones, e mesmo um papa, Timothy Leary, que instituirá sua doutrina e suas palavras de ordem. A filosofia de movimento é contida na fórmula: Turn in, tune in, drop up5 .

Todas as outras experiências sensíveis do mesmo tipo, viagens chamânicas, transe de criação, transes poéticos como os de Paul Valéry em “O cemitério marinho”, ou transes de êxtase dos estados de Nirvana e Buda, parecem induzir a uma diversidade de estados de consciência. O acesso é permitido pelas práticas ancestrais de ascendência, de concentração, de meditação, como na yoga pela redução ou suspensão da respiração, ou ainda graças à escuta de músicas privilegiadas tradicionais6 , aqui reinventadas pelas sonoridades da música psicodélica.

Um Ethos
Outro marco daí em diante célebre, Make love, no war, Faça amor, não faça guerra, permite resumir os princípios éticos para o grande público que compreendem mal essa nova forma de contestação. As diferentes regras que daí resultam se instituirão pouco a pouco, a ponto de ficarem como rituais.
No war, (Não faça guerra), representa o pólo ou o aspecto da reivindicação política (parar a guerra do Vietnã) e Make love (Faça amor), o outro polo da contraproposição, contida e sintetizada na palavra amor, vasto campo que a filosofia hippie vai desdobrar à sua maneira. De fato, esse conceito holístico da sua filosofia apresenta-se como um modelo completo de utopia, já que ele está bem fundado sobre uma simples, só e banal ideia, o amor. Uma visão holística, adquirida pela impregnação de uma mesma experiência sensível, multiplicada pelo uso dos psicotrópicos e que está sem dúvida ligada aos seus contatos com as fontes tradicionais que compartilham essa percepção: os mesmos esquemas definem suas concepções religiosas (êxtase cósmico e social), político (paz entre todos os povos, e a doçura da palavra para a resolução de conflitos), econômico (divisão, desprovimento), estético (beleza do natural), e ligação social (espírito coletivo e comunitário, ou neotribalismo)7 .

O credo dos novos membros comunitários contém desordenadamente: a liberdade sexual, o erotismo, as relações interpessoais, o esoterismo e a ecologia, …8 entre outros, mas trata-se antes de tudo de um ethos rigoroso, um princípio de partida coerente (liberação pelo amor) declinado sobre diferentes planos, depois sobre todos os planos, muito logicamente.

Logo, as idéias hippies se organizam, as ligações se entrelaçam entre as diferentes fontes que inspiram esses novos modos de vida coletiva e os hippies tentam se aproximar de outras minorias. A imprensa descreve então, não mais somente um movimento, mas uma cultura, ou uma subcultura, derivada das culturas mais tradicionais, e que procura alianças com outras minorias críticas e reivindicativas, na busca de um status social menos estigmatizado. Assim se multiplicam as subculturas, subtendências dos subpoderes potenciais (Black Power, Red Power, Ethnic Power) ou metafóricos (Flower Power, Green Power)9 .

O Enterro
Em 14 de janeiro de 1967, em uma grande reunião no Golden Gate Park, os hippies proclamam que o verão de 1967 seria o lugar sob o signo da paz, do amor e do LSD. Para esse célebre Summer of love (Verão do amor), mais de 500.000 jovens chegaram a São Francisco. Após o uso das drogas, que de certa forma, degeneraram os hippies, o bairro transformou-se em um lugar violento, desertando-o assim do resto da cidade. As drogas alucinógenas foram substituídas pouco a pouco pelos barbitúricos, depois os opiáceos, e logo a decadência e as doenças invadiram a superpopulação do bairro.

No outono os membros da comunidade de Haight sentindo-se, sem dúvidas, ultrapassados pelo movimento da população que eles provocaram, reuniram-se no Buena Vista Park para celebrar o fim da era hippie com uma cerimônia fúnebre. Em outubro de 1967, os hippies organizam o enterro simbólico de seu próprio movimento, enterrando um caixão no Buena Vista Park. Mas, desde o início dos anos 70, a sensibilidade idealista e ecológica iniciada pelos hábitos hippies parece surgir e surfar pelas ondas, revivendo como um eco distante nas gerações seguintes de jovens desesperados.

Derivações e desdobramentos, a disseminação dos esquemas
O choque com a realidade ficou difícil, após a saída do berço californiano, para um movimento hippie que se refugia nas montanhas e nos campos10. O poder de contágio do sonho psicodélico nascido em São Francisco era grande porque esse contágio ganhou o resto dos Estados Unidos e, depois, a Europa Ocidental.

Mas ao deixar o berço californiano, o sonho perdeu sua força e sua coerência e, com o tempo, ele acabou por se dispersar. As circunstâncias econômicas também colaboraram – as crises da sociedade da abundância acabaram com aquilo que haviam gerado. Sem dúvidas os valores centrais ou motrizes, os “esquemas”, que o constituem, perduram e estão instalados sustentavelmente na paisagem social ocidental, porém dispersos em pequenos pedaços e esvaziados de sua transcendência, de seu sentido inicial, canalizados e racionalizados pela pós-modernidade.

A disseminação geográfica
O imaginário psicodélico e as práticas culturais e sociais que as suscitaram são amplamente ecoadas pelos Estados Unidos da América. Mas, ao encontrar em sua expansão contextos bem diferentes, adquiriu rapidamente direções bem contrastantes. Indo às fontes de percepção, sua penetração entre os jovens das sociedades ocidentais está longe de ter se tornado igual em todos os lugares e constata-se que as suas declinações são inúmeras.

É da Inglaterra que vem esta revolução musical que atua sobre o plano artístico, mas também sobre o plano social. Daí, a emersão dos Beatles, depois dos Rolling Stones sobre o cenário musical britânico, o estilo de vida e de cultura.

Nos dois maiores países do continente, a França e a República Federal Alemã (então Alemanha Ocidental) a penetração do imaginário psicodélico é ao mesmo tempo colorido politicamente e também complexo. As culturas da França como da Alemanha não são estrangeiras às utopias familiares da contestação política violenta, e que se manifestam na liberação dos costumes com algum atraso em relação a seus vizinhos ingleses, holandeses e escandinavos.

É pelo viés de uma reivindicação política e social mais clássica que o movimento de contestação se imporá pelos eventos de maio de 68 na França e as manifestações dos estudantes berlinenses na Alemanha, constituindo incontestavelmente o ponto de entrada europeu nos movimentos de reivindicação dos anos 60. É, por conseguinte, sob uma forma já muito politizada que ele continuará a se desdobrar. A busca revolucionária substitui a busca mística, as manifestações políticas tradicionais substituem os love-ins, smoke-ins e be-ins, a fraternidade militante, a sonoridade do Peace and Love (Paz e Amor).

A disseminação ideológica e política
O movimento beatnik (hippie) disseminou-se principalmente em duas galáxias opostas; de uma parte os hippies e suas celebrações amorosas, e da outra parte uma nova esquerda americana que milita contra a guerra do Vietnã e a favor do Movimento pelos Direitos Cívicos para uma integração das minorias negras. Um forte exemplo é o Free Speach movement, nascido na Universidade de Berkeley, que milita contra o ensino exageradamente rígido, mas também contra o racismo, o pragmatismo, e a guerra do Vietnã. Como os hippies, esses militantes são contra os princípios fundadores da sociedade da abundância, sobretudo quando eles conduzem a um esbanjamento de barbáries e de alienação.

A herança das espiritualidades contemporâneas
Do sincretismo hippie ao New Age, as religiões e espiritualidades antigas e novas explodem a partir dos anos 70. A ideia de transcendência, com sua abordagem pelos rituais tradicionais e sua experimentação sensível, não abandonaram o novo milênio, pelo contrário. Mas a ideia de sagrado parece se refugiar longe do domínio das toxicomanias e de seus cortejos de problemas corporais, sanitários, econômicos e jurídicos para se desenvolver em direção a um longo e lento movimento de redescoberta das espiritualidades sob todas as suas formas.

Na aurora do ano 2000, as autoridades observam o desenvolvimento das seitas e os pesquisadores, a explosão de uma “nebulosidade esotérica e mística”, assim como a retomada de antigas religiões, budismo, islamismo e catolicismo no ocidente, ou das práticas tais quais a astrologia, a adivinhação, a quiromancia…

Das portas da percepção à toxicomania
Com os anos 60, os países europeus enfrentaram uma nova forma de toxicomania, a toxicomania de massa ou do povo. Mas ao passo que os usuários das sextees estão centrados sobre os produtos da família dos phantastica, e fundados pela filosofia hippie, até os anos 70, esse consumo de massa ocidental se infiltra nos produtos da família dos hipnóticos, heroína principalmente, mas também álcool e barbitúricos. Palavra chave dessa nova nebulosidade underground: os hipnóticos são mais estupefacientes, mais viciantes, como a heroína. Tudo parece se opor a essas duas formas de uso da droga: as famílias dos produtos utilizados, os imaginários revelando as práticas e filosofias de vida opostas, inversas.

As lógicas das décadas seguintes são uma lógica de compilação dos produtos. A manutenção dos hipnóticos, retorno com força das phantastica, adaptação oportunista dos Extancia, em progressão. Os Golden Eightees, ou os brilhantes anos 80, são reflexos da economia que floresce, associando socialismo e economia de mercado, e as drogas de adaptação.

Efeitos sobre a música, as socialidades contemporâneas
O movimento techno, que começa nos anos 80 e explode nos anos 90, lembra e parece comemorar, sem cessar, as grandes aglomerações festivas e funcionais como o concerto de Woodstock ou aquele da ilha de Wight pelas grandes festas, les technivals. Essas festas gigantescas, as raves, agrupam milhares de pessoas em lugares insólitos das grandes metrópoles (depósitos abandonados, canteiros, prédios inabitáveis), depois vão imigrar para os lugares mais bucólicos onde elas serão mais livres, as free parties. As festas techno também irão se institucionalizar e penetrar em lugares mais reconhecidos como as boates e os estádios e se transformam em technivals, que duram muitos dias. Os frequentadores de raves são também consumidores da pequena pílula de ecstasy, que se toma a dois, ou em grupo, para se entregar a esse tipo de festa. Como o LSD alucinógeno dos hippies, é uma droga hedonista que multiplica as sensações, e como as anfetaminas, permite a liberação das forças físicas, para ficar toda a noite sem dormir, dançando. Como o LSD, o ecstasy poderia ser uma droga do amor, pois, ela é um multiplicador dos efeitos sexuais e eróticos. No entanto, os participantes de raves não a utilizam nesse sentido. A droga parece mais favorecer uma espécie de fusão com o coletivo, pares ou o público dessas festas. Dançar todos juntos como um só corpo coletivo, esse envolvimento é o nirvana do frequentador da rave.

O movimento reggae, e o rastafári, como os hippies, consomem cannabis e usam os cabelos longos (de preferência não penteados), as famosas tranças ou dread locks, lembrando assim suas raízes africanas, Mãe África, ou aquelas dos sadhous indianos, Mãe Índia, e poderiam ser considerados como seus herdeiros diretos. Tanto o movimento reggae como o movimento hippie desenvolvem uma abordagem holística de sua reivindicação cultural. Ao mesmo tempo movimento musical e movimento religioso, o rastafarianismo, tem um forte conteúdo mitológico, é também um movimento político de contestação e de reivindicação de uma cultura própria. Eles adotam um modo de vida fundamentada sobre a paz e a tolerância, a dignidade pessoal e a redescoberta das harmonias naturais e cósmicas esquecidas pelo mundo moderno. There is a natural mystic flowing to the air/ Há qualquer coisa de naturalmente místico no ar, canta Bob Marley que divulga o movimento e suas dimensões místicas, através do reggae jamaicano, suas cores, vermelho /ouro / verde, seus valores, o sonho bíblico de Zion, (Iron, Lion, Zion), e o Deus Jah de um povo negro vindo da Etiópia, os ancestrais longínquos dos rastas.

O movimento hip hop, lembra também a utopia hippie, porém de maneira mais remota ainda, já que a música rap e o mundo dos rappers poderiam desenvolver uma crítica radical de modernidade e uma vontade de viver aqui e agora, senão na harmonia, mas ao menos na dignidade e na honra de uma cultura reinventada. Ponto comum, contudo, o cannabis, é um meio de se desprender e de romper com a vida mediana proposta pelas sociedades ocidentais e, no caso francês, com o deserto da vida, dos conjuntos residenciais, para fundar uma cultura própria. Um mesmo velho sonho coletivo de um paraíso perdido, a Zoulou nation11 , os sound systems, os crews, os possies, designam os bandos, clãs ou famílias aumentadas, que vão, logo, se transformar no ponto focal do estilo de vida de rua no sul do Bronx12 , e também nas periferias de todas as grandes capitais ocidentais, dos jovens encapuzados e dos tênis Nike.

Efeitos sobre a socialidade, “o espírito em grupo”
Viver em comunidade é então um ato político para os hippies, é sempre um ato de revolta ou de reivindicação de uma vida alternativa, é um ajuntamento de indivíduos decididos a viver em comum uma vida diferente daquela que lhes foi proposta pela sociedade da qual eles saíram13 . Essas são as motivações de todos os jovens que vão deixar suas famílias, escolas, empregos, para fundar uma comunidade. Os grupos se reencontram, simpatizam-se, fundem-se e decidem viver juntos, criando seus novos princípios e costumes de vida.

Adotando e reivindicando um modo de vida comunitário, esses coletivos vão reencontrar antigas fontes desses modos de organização, e mesmo desenvolver alianças com a imprensa, o mundo intelectual e político, para defender e argumentar suas posições. Desses exemplos, alguns testemunhos reais e romanescos de aventuras em comunidades, de suas regras de vida inventada e de sua trágica história coletiva, estão hoje descritas em nossa literatura14 .

É então possível constatar a existência e a diversidade de ritos: festas, assembleias gerais, reuniões em torno da mesa comum,…15 , rituais recompostos pela necessidade da vida em comum, e bordados sobre os modelos de organização de coletivos já existentes.

As consequências sobre as representações da sociedade permitem abrir e assistir a retomada dos coletivos em todos os domínios: renascimento da vida associativa, da solidariedade grupal, talvez tribal; na pedagogia, as escolas paralelas, “as crianças livres do Summer Hill”, escolas Montessori, escolas occitânicas; na psiquiatria, as comunidades terapêuticas da antipsiquiatria (Deleuse, Cooper e Laing); na arte, os ateliês de criação coletiva, as experiências da arte-terapia de Jean-Pierre Klein; na economia, as cooperativas de consumidores, as compras em grupo; no casal, o desejo para uma vida mais comunitária (famílias plurais repensadas em torno das crianças).

Efeitos sobre a sexualidade: herança complexa da revolução sexual
O mesmo acontece para todos levantes sociais, éticos e estéticos esboçados pelo movimento psicodélico. A liberdade sexual aparece como uma das aquisições majoritárias desse período, e a libertação se estende a outras formas de sexualidade mais específicas. São Francisco se transforma nos anos 70 na cidade dos gays. Mas nas últimas décadas não reteve o lado profano do “amor universal” coroados pelos hippies. A idéia que a energia sexual bem canalizada, como o quer o modelo tântrico, permite se direcionar à “unidade cósmica”, ou somente uma maior circulação do desejo conduzido a uma nova sociedade esquecida. O desejo sexual não visa mais apenas à satisfação, ajusta-se mais ou menos ao sucesso das estruturas sociais que impediram a sua expressão.

Esse retrocesso e essa racionalização do imaginário permitem compreender esse “retorno do reprimido” contemporâneo, a coexistência dos arcaísmos culturais e moralismos sociais, com as expressões mais liberadas da sexualidade, e todas as suas recuperações plurais na esfera do mercado, que são particularmente manifestos na complexidade contemporânea. Paradoxalmente após essa liberação dos corpos e dos costumes, os efeitos parecem invertidos e provocam um retorno de diferentes regras morais e do declínio, ou um confinamento sobre si mesmo, dos indivíduos e dos modelos. Para os homens, poderíamos qualificar de “cúspide” do masculino, esse movimento de recuo do modelo “machista” e paternalista do patriarcado. De fato, nos últimos trinta anos voltamos periodicamente à afirmação de que “não há mais homens”. A identidade masculina apresenta, além disso, uma diferença em relação à ideia da virilidade, ou em relação a um comportamento médio dos homens, durante a época imediatamente anterior.

Para as mulheres, que possuem agora importante capital cultural e social, apresentam-se todas as razões de estarem amedrontadas por essa terrível concorrência que se instaura, sobre o mercado matrimonial e amoroso, entre elas mesmas e para seus equivalentes masculinos. Mais que o entusiasmo, é a desconfiança que se instala do lado feminino como do masculino. Essa inadequação das representações femininas e masculinas, e do casal no estado real da sociedade, gera inúmeras desconfianças particulares, um paradoxo generalizado, já que essa desconfiança resulta também no plano geral de uma inadequação devido à demografia social, assim como a repartição desigual do capital social e cultural. Contrariamente às gerações dos anos 60-80 e pós-60-80, aWoodstock Generation, que conquistaram a abertura dos direitos jurídicos, as novas gerações encaram barreiras invisíveis do tipo cultural.

Efeitos sobre a nova sensibilidade ecológica
As preocupações ecológicas dos hippies invadem hoje o universo de nossos pensamentos e programas políticos. A ecologia se transformou em um dos importantes termos irreversíveis da dialética de dominação da natureza: nossa vontade de dominar a natureza se inverteu em preocupação pela sua proteção.

Com a mesma ideia de uma “Idade de ouro” na qual os homens e os deuses comunicavam-se livremente, e na qual os alimentos estavam imediatamente disponíveis, falava-se de uma idade vegetariana. A idade de ouro vegetariana que se lê no simbólico do mel, na nostalgia desse tempo sagrado que se ocupa dos mitos relativos à deusa Deméter e nos rituais de cozinha, “Em todos os mitos da Idade de ouro perdida, o vegetarianismo comporta uma conotação de pureza e bondade”16 . Isso é particularmente evidente na Índia ou no Extremo Oriente, no bramanismo ou no budismo onde a carne é considerada como um impedimento à ascensão espiritual; mesmo no mundo ocidental, nos dogmas da igreja cristã com a quaresma, período de purificação, retorno a inocência onde a interdição de alimento “carne” corresponde também à interdição às relações sexuais; da mesma maneira em inúmeras especulações filosóficas, celebra-se o estado de natureza, uma alimentação amplamente vegetariana, como nas obras de Rousseau, por exemplo.

Efeitos econômicos
Da viagem de iniciação às viagens banalizadas, a moda contemporânea dos deslocamentos nasce a partir das viagens iniciadas pelo movimento hippie. Viagem de carona, ou viagens em grandes companhias a custos reduzidos. Os enumerados destinos são reinventados pela viagem hippie: de Katmandou e Marraquexe, aos ciganos rurais, as grandes estradas, as ecos-comunidades na vida nas árvores, ou simplesmente passar suas férias no campo. Sem fronteiras para os hippies, como o nome da companhia que fará fortuna17 … Sem diferenças de raças contra o predomínio ocidental, essa é a bandeira do hippie nas viagens em que ele gosta de viver como os nativos.

Do libertarismo ao liberalismo. O trabalho intermitente dos hippies parece ter se transformado no modelo de trabalho atual (flexibilidade, tempo parcial). As co-locações, novas maneiras de morar comunitário, lembram também um eco longínquo do modo de vida dos hippies. O pensamente em rede, o desejo de comunicar e a invenção da informática. Timothy Leary explica que essa revolução da informática não teria tido lugar se a experiência com o LSD não tivesse ajudado a descobrir seus principais atores, a interconexão de todos os elementos do cosmos, assim como uma autêntica comunicação com o outro18 . Os itinerários do Bill Gates ou de Steve Jobs, de certa maneira membros da revolução psicodélica, poderiam ter algum crédito nessa ideia19 .

* Martine Xiberras é doutora em Antropologia Social e Cultural e encontra-se atualmente ligada à Universidade Paul-Valéry-Montpellier-III. Preocupada com os flagelos sociais contemporâneos, é um dos autores atuais mais importantes neste domínio.

** Ricardo Ferreira Freitas é professor da Faculdade de Comunicação Social da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). É doutor em Sociologia pela Sorbonne, mestre em Comunicação pela UFRJ e graduado em Relações públicas pela Uerj.

NOTAS

1 Com colaboração da revisora técnica Tais Alexandre Baptista.

2Fourierismo : seguidores do pensador Fourier.

3 Prometeica : oriundo de Prometeu.

4 Assistir ao filme “Théorême , Teorema” de Pasolini “salto epistemológico” da família italiana.

5 Turn in: ligar,conectar ; Tune in: expandir sua consciência; Drop up: deixar pra lá.

6 G. Lapassade, La Transe; G. Rouget, La Musique et la transe, Paris, Gallimard, 1990.

7 O filme La grande Verte.

8 G. Lapassade, La Transe; G. Rouget, La Musique et la transe, Paris, Gallimard, 1990. p.151

9 Em Roger-Gérard Schwartzenberg, Sociologia Política.

10 Atualmente vivem em pequenos grupos e, localidades rurais como Mendocino Countt ou Santa Cruz Mountains, nos Estados Unidos.

11 A história de Afrika Bambaataa foi recontada por G. Lapassade.

12 T. Polhemus, Street Style, p. 106

13 Bernard Lacroix, L’utopie communautaire, A utopia comunitária

14 Bouxyou et Delannoy, p. 169

15 TC Boyle,

16 Sr. Toussaint-Samat, Natural and Moral History of Foods, Paris, Bordas, 1985, p.84.

17 Nouvelles Frontières (Novas fronteiras) é uma das mais importantes empresas francesas na área de turismo.

18 Cf. P. Mignon, art. cit., p. 61 sq

19 Ver, por exemplo, J. Wukovitz, Bill Gates: Software King, F. Watts, 2000.

 

Da fronteira ao originário: estranheza e familiaridade no romance – Relato de um certo Oriente | de Daniela Birman

“E foi atirado para sempre àquele lugar intermediário […].”
Salman Rushdie

Introdução
Um estranho e pequeno peixe, de olhar cindido, é objeto de um breve diálogo desdobrado no conto “A casa ilhada”, de Milton Hatoum.1 Neste, o narrador nos relata a cena em que admirava tal peixe, no aquário do Bosque da Ciência, em Manaus, quando um estrangeiro se dirigiu a ele: “Então eu soube que o tralhoto, com seus olhos divididos, vê ao mesmo tempo o nosso mundo e o outro: o aquático, o submerso”2, nos conta ele. Encontrados na região amazônica, tais peixes são comparados pelo escritor manauara aos seus narradores romanescos.3 Com efeito, em seus três romances o autor criou personagens que podem ser caracterizados como fronteiriços, situados num posicionamento limítrofe: entre a família e fora desta, a cidade e seu exterior, entre dois tios, ou entrepai e filho em extremo conflito.4 E esta localização, segundo buscaremos expor ao examinarmos o olhar que norteia a narrativa de Relato de um certo Oriente,5potencializa a capacidade de enxergar o próprio universo com olhar estrangeiro. A visão do narrador-fronteiriço, nesse contexto, pode ser aproximada daquela do tralhoto. Citamos a comparação feita por Hatoum:

É como se fosse aquele peixe da Amazônia, o tralhoto […]. Ele vive na superfície, tem um olhão e metade do olho fica para fora, metade para dentro. Vê o céu e vê a água, as profundezas. É esse olhar duplo, do interior e do exterior, que é importante para esse tipo de narrador.6

Neste artigo, enfocaremos a posição limiar ocupada pela narradora do Relato em diversos espaços e grupos sociais: na família que a criou, a qual integra na condição de filha adotiva; em sua cidade, da qual partiu há mais de quinze anos; e em seu país natal. Buscaremos expor de que modo o posicionamento desta narradora, personagem responsável pela reunião e ordenação de todas as vozes do romance, a levará a se defrontar com a ausência de uma utópica origem7 e a se deparar com a camada do originário.8 Nesta, ela desnaturalizará o lugar que ocupa em sua família, verá sua cidade como marcada pela heterogeneidade e aprenderá ser perpassada por construções múltiplas e pela contingência. Procuraremos mostrar ainda como essa posição característica, que implica um esforço produtivo no sentido de demarcar seu espaço na sociedade, na casa ou na cidade em que se mora, é capaz de levar à indagação sobre os limites e as possibilidades de se contar uma história. Afinal, quem sabe que seu lugar no mundo é construído, e não dado, pode sentir como sua voz também o é; perceber que sua distância em relação ao objeto narrado é variável e, consequentemente, sua visão e as formas como ele o afeta.

Posição limítrofe
A narradora anônima do romance de estreia de Milton Hatoum é uma figura ao mesmo tempo familiar e estrangeira em sua cidade natal, Manaus, a qual visita após quase vinte anos de ausência e de onde escreve seu relato a partir deste olhar capaz de estranhamento e intimidade. O livro que lemos constitui, pois, uma longa carta redigida ao seu irmão, na qual ela conta sua passagem pelo espaço da infância deles e transmite a triste notícia da morte de Emilie, matriarca da família libanesa na qual os dois cresceram. Mas não é somente em Manaus que ela ocupa esta posição fronteiriça. Na casa de sua infância, seu lugar também é limiar. Ela faz e não faz parte da família de Emilie, ou pelo menos possui um estatuto diferente de seus outros membros, pois, ao lado de seu irmão, foi adotada pela matriarca. O lugar da principal instância organizadora do Relato é ocupado, portanto, por uma figura que receberá contornos mais precisos e fortes no segundo romance de Hatoum, Dois Irmãos: a do agregado da família, personagem emblemático da nossa sociedade e presente em obras seminais da literatura nacional.9

Além de estar associado ao afastamento da cidade natal e à condição de filha adotiva, o olhar fronteiriço de nossa narradora também pode ser relacionado ao estatuto limiar da nacionalidade desta: nem inteiramente brasileira nem estrangeira. Com efeito, ao apontar o caráter limítrofe da narradora do Relato e do personagem André, de Lavoura arcaica, Sarah Wells ressalta o fato de ambos pertencerem à segunda geração de imigrantes, nascida no país de destino de suas respectivas famílias. Ou, como ela escreve, os dois são “parcialmente definidos por seu estado intermediário: nem nascidos aqui nem inteiramente lá”.10

Segundo a autora, para tais personagens, a história de migração de seus familiares, e as rupturas que estas implicam, ao mesmo tempo em que não podem ser esquecidas, não são priorizadas em suas experiências. Desta forma, “a nova pátria não é de todo nova para membros da segunda geração. Tampouco podem eles recriá-la como bem entenderem. O solo pode não ser construído com gerações de antepassados, mas também lhes é vedado buscar em outro espaço sua realização”.11 Nesse sentido, o fato de ter nascido no lugar em que se cresceu, e no qual é possível permanecer, não garante uma relação estável com a noção de identidade, pois a construção desta não pode excluir o vínculo com o país de origem e a cultura de seus pais nem aceitar integralmente este país e cultura como suas únicas “pátrias”. Pelo contrário. O pertencimento à segunda geração de imigrantes é entendido aqui como fator agravante do caráter fronteiriço de nossa narradora.

Mas vejamos como a própria personagem enuncia e problematiza sua condição. Embora seja agregada da família, ela acredita ser tratada exatamente como os outros membros, enunciado que, ao negar sua diferença, já o torna suspeito. Ao falar de seu “avô”, o marido de Emilie, por exemplo, a narradora comenta:

Foi ele quem me ajudou a sair da cidade para ir estudar fora, e além disso nunca se contrariou com a nossa presença na casa, desde o dia em que Emilie nos aconchegou ao colo, até o momento da separação. Desfrutamos os mesmos prazeres e as mesmas regalias dos filhos, e com ele padecemos as tempestades de cólera e mau humor de um pai desesperado e de uma mãe aflita. Nada e ninguém nos excluía da família, mas no momento conveniente ele fez questão de esclarecer quem éramos e de onde vínhamos.12

Ao citarmos este trecho do livro, chamamos a atenção para o fato de ela declarar seu estatuto igualitário em relação aos outros integrantes da família, declaração que só se faz necessária num contexto em que a igualdade de tratamento coexiste com certa distinção. Nesse caso, a igualdade não pode ser naturalizada e calada, mas deve ser enunciada como resultado de uma conquista ou da generosidade e bondade alheia (evidentes na frase “nunca se contrariou com a nossa presença na casa”). Nesse contexto, podemos supor que, ao se deparar com o fato de que sua condição no interior da família não é dada, a personagem se defronta com o caráter contingente de sua entrada na casa em que cresceu – dependente de diferentes fatores, como a receptividade positiva da família adotiva, a impossibilidade de sua mãe de criá-la ou a vontade desta em entregar-lhe para adoção –, de seu próprio lugar na casa e, quem sabe, na sociedade.

Por meio da diferença em relação ao outros membros da família, que desnaturalizasua condição no interior desta, faz-se presente no romance uma importante temática vivida por nossa narradora: a questão da ausência, em seu modo positivo, de uma procedência que ela poderia utopicamente tomar (e desejar) como umaorigem. Ao citarmos o termo origem aqui, o entendemos como um utópico solo fundador, lugar primeiro, inicial, que deteria a verdade e a essência dos que dali se originaram. Apoiamo-nos, assim, no sentido do termo exposto por Foucault em “Nietzsche, a genealogia e a história”.13

Nesse contexto, o caráter contingente do lugar de nossa narradora no mundo pode lhe apontar como seu modo de viver, pensar e sentir não são inatos nem necessários e que, para além de seu universo, há sempre um fora. Ao enunciarmos aqui este termo, de inspiração claramente blanchotiana, restringimos seu sentido àquilo que é exterior a um determinado ambiente, que, como qualquer espaço-tempo, limita de um determinado modo as vivências, as reflexões e os discursos possíveis de serem produzidos em seu interior.

Supomos ainda que nossa narradora, ao se deparar com a ausência de origem, defronta-se com a camada do originário, aquela que, de acordo com a descrição de Foucault, indica que não possuímos um solo fundador nem somos contemporâneos do que nos faz ser, visto sermos determinados por construções mais antigas do que nós, com temporalidades próprias – as quais podemos, ilusoriamente, supor como fixas e naturais, acreditando no mito da origem. Essa camada do originário é assim apresentada em As palavras e as coisas:

[…] o originário no homem é aquilo que, desde o início, o articula com outra coisa que não ele próprio; é aquilo que introduz na sua experiência conteúdos e formas mais antigas do que ele e que ele não domina; é aquilo que, ligando-o a cronologias múltiplas, entrecruzadas, freqüentemente irredutíveis umas às outras, o dispersa através do tempo e o expõe em meio à duração das coisas. […] O que se anuncia no imediato do originário é, pois, que o homem está separado da origem que o tornaria contemporâneo de sua própria existência.14

Neste caso, nossa narradora perceberia que, embora constituída e atravessada pelas histórias, pelos hábitos e pelos afetos de sua família adotiva, esta não constitui um fundamento de seu modo de ser, visto que sua entrada nela é marcada antes pelo acaso do que pela necessidade. Dessa maneira, ela não pode nem se desvincular inteiramente da influência da esfera familiar nem acreditar como natural e obrigatória sua inserção numa história linear e contínua deste grupo de pertencimento. E se ela consegue se ver como fruto de construções diversas, também poderá assim enxergar seus próximos. Além disso, ao se defrontar com o desmoronamento da ideia de origem, nossa personagem terá acesso ao pensamento e ao desejo de liberdade, que inclui a possibilidade de se abrir para outros modos de ser e viver, de escolher outras máscaras.

A temática da ausência de origem e da entrada na camada do originário também transparece no fato de que ela não possui uma cidade natal onde se sinta inteiramente em casa – e para a qual, portanto, possa voltar como quem retorna aomesmo, o que lhe restituiria ou lhe confirmaria sua identidade, essência e verdade. Certamente, nem ela nem ninguém tem acesso a tal cidade, mas esse fato pode se tornar mais evidente para aqueles que se afastaram de onde nasceram e, ao retornar, percebem como o lugar de regresso se distanciou dele mesmo (e como o que foi ontem já não é mais).

Com efeito, nossa narradora reconhece, logo no primeiro capítulo do livro, antes de começar a lembrar e contar sobre seu tempo de menina, que a cidade visitada não existe como objeto real, mas é produto da imaginação (e, podemos supor, do afeto e do desejo). Trata-se, nesse caso, da Manaus evocada pela rememoração de sua infância, cuja fundação não coincide, portanto, com o tempo usual da história, mas refere-se àquele da memória:

Antes de sair para reencontrar Emilie, imaginei como estarias em Barcelona, entre a Sagrada Família e o Mediterrâneo […], quem sabe se também pensando em mim, na minha passagem pelo espaço da nossa infância: cidade imaginária, fundada numa manhã de 1954…15

Ao iniciar o livro com este ato de recordação, nossa narradora indica que a Manaus que busca não é (ou não apenas) aquela a qual encontra como presença, mas, sobretudo, a de seu passado. Qualquer viagem de retorno se torna, nesse contexto, impossível, visto que a infância não se fará de novo presente e a cidade não voltará a ser o que era. Contudo, através dos seus passeios pelas ruas, do encontro com diferentes personagens, cores e cheiros da Manaus atual, a paisagem e os fatos da infância podem ser evocados e construídos. Nesse contexto, o que nossa narradora poderá fazer, tal como ela anuncia, é declarar a dimensão imaginária da passagem por esse espaço que, para ser visitado, deverá ser rememorado.

Hatoum tem plena consciência da existência desta barreira intransponível entre o presente e o passado, não acreditando, pois, em nenhum projeto de restituição deste. O autor conta em entrevista que, ao voltar para Manaus, em 1984, após quase vinte anos fora da cidade16, ele “sentia falta de algumas paisagens e vozes da infância, estas coisas que constituem a nossa pátria simbólica”.17 No entanto, apesar da saudade (e das possíveis idealizações e devaneios a que esta pode levar), ele não parecia ter ilusões quanto a qualquer plano de retorno à terra de sua meninice: “Sabia que iria encontrar uma cidade devastada, e que toda busca de um paraíso é infrutífera, pois só há paraísos perdidos”.18 Em outra entrevista, porém, a história contada não é exatamente a mesma. Hatoum afirma, pois, ter retornado a Manaus “em busca de minhas primeiras paisagens, que não encontrei mais”.19Porém, independentemente das expectativas alimentadas na época, anterior à conclusão e publicação do Relato, o escritor hoje sabe que não há retorno à cidade encantada da infância. Mais do que isso. De volta a Manaus, não escapa de certo sentimento de dépaysement. É assim, por exemplo, que se refere à enxaqueca que o abate desde a infância “como uma metáfora de um mal-estar mais profundo: sentir-se exilado e estranho na própria terra natal”, segundo escreveu Carlos Graieb em reportagem sobre o autor.20

O estranhamento em relação à própria cidade também se faz presente no sexto capítulo do Relato, no qual a narradora nos conta a visita realizada a um bairro cujo acesso lhe fora proibido quando criança, vivenciando a ameaça, o medo – e, acreditamos, o abalo de se deparar com a diferença num mundo que julgava ser o “seu” e no qual ilusoriamente se supõe somente o encontro com a identidade. Como Maria Zilda Ferreira Cury comenta, referindo-se a esta passagem do romance, “o espaço de origem torna-se estranhamente desconhecido. A narradora transforma-se em estrangeira, suscitando um olhar de estranheza dos outros nativos, pondo […] em ‘suspeição’ a inteireza identitária”.21 Reproduzimos, pois, o trecho em questão:

Atravessei a ponte metálica sobre o igarapé, e penetrei nas ruelas de um bairro desconhecido. Um cheiro acre e muito forte surgiu com as cores espalhafatosas das fachadas de madeira, com a voz cantada dos curumins, com os rostos recortados no vão das janelas, como se estivessem no limite do interior com o exterior, e que esse limite (a moldura empenada e sem cor), nada significasse aos rostos que fitavam o vago, alheios ao curso das horas e ao transeunte que procurava observar tudo, com cautela e rigor. Havia momentos, no entanto, em que me olhavam com insistência: sentia um pouco de temor e de estranheza, e embora um abismo me separasse daquele mundo, a estranheza era mútua, assim como a ameaça e o medo. E eu não queria ser uma estranha, tendo nascido e vivido aqui.22

Embora o enunciado não nasça de uma visita a um lugar familiar, o desconforto de nossa narradora em sua cidade natal aparece de modo bastante evidente no seu desejo em não ser uma estranha ali. Pois, podemos supor, caso ela se sentisse em Manaus como em casa, de acordo com o sentido dado pelo senso comum a essa palavra, o estranhamento da visita a um lugar desconhecido poderia ser experimentado por meio da transformação apenas do outro no estrangeiro, naquele que difere dela – e na exclusão daquele espaço do território da “sua cidade” (que poderia, desse modo, ser declarada “partida”). Esta seria, pois, a atitude decorrente de um olhar em busca do exótico que, independentemente da atração ou do medo despertados pelo Outro, o mantém à distância (mesmo quando se aproxima dele e acredita entabular um diálogo). O equívoco, nesse caso, parece residir na ideia e no sentimento de que em casa só nos deparamos com o conhecido ou homogêneo. E que, caso o diferente surja, este só pode ser estrangeiro e, consequentemente, pertencer a outro espaço, denominado por expressões como as de “cidade proibida”23 ou “outro lado da cidade partida”.

O olhar de nossa narradora não realiza, contudo, esta operação de classificação e exclusão. Com efeito, em vez de enfatizar a estranheza daquele que é diferente dela, e em relação ao qual ela sente ameaça e medo, ela ressalta sua vontade em não ser uma estrangeira ali, potencializada pelo fato de estar na sua cidade natal – ou seja, a imagem do lugar aonde nasceu e cresceu abrange espaços que não a incluem, onde ela não é reconhecida pelos outros, não os reconhece e nem experimenta nenhuma espécie de acolhimento.

No lugar da origem como fundamento temos, portanto, a camada do originário, indicando-nos que a cidade natal (em seus territórios familiares e estrangeiros) é atravessada e marcada por ordens e construções múltiplas, as quais não dominamos nem muitas vezes temos acesso. Apenas com a substituição da origem pelo originário, substituição que desvincula nosso lugar de procedência das noções de identidade e essência, nossa ideia da cidade de onde viemos poderá incluir espaços e indivíduos que não reconhecemos e com os quais não nos identificamos. Será, portanto, a partir da defrontação com esta camada que nossa narradora poderá perceber Manaus como atravessada pela heterogeneidade e pela diferença – noções incompatíveis com aquelas comumente aceitas de solo, raiz, lar ou origem e capazes, quando lidas pela ótica dessas últimas ideias, de gerar ameaça e medo.

A casa materna
Mas não é apenas a cidade natal, a infância ou a família que podemos confundir ingênua ou apressadamente com a noção de origem. A ausência desta, e a experiência do caráter inalcançável de sua busca, também serão indicadas no romance por meio da distância entre nossa narradora e sua mãe biológica, a quem ela viu apenas uma vez quando criança. Surge aqui, porém, uma importante diferença. Como pretendemos mostrar, nossa narradora nunca confundiu a figura materna com uma ideia positiva de origem e de fundamento. Ela parece antes ter buscado, obstinadamente, enxergar a ausência da figura da mãe, ver a origem como ausência, em sua dimensão negativa, experiência radical que consideramos importante indicar.

Com efeito, embora se dirija à casa materna quando chega a Manaus, nossa narradora não planejava encontrar a mãe por lá. Como ela mesma nos conta: “Já passava das onze horas quando cheguei na casa que desconhecia. Ninguém foi avisado de que eu chegaria aquela noite, mas eu sabia que, na ausência da mãe, a empregada ficaria sozinha na casa construída próxima ao sobrado onde Emilie morava.”24 E no final do romance, a personagem nos revela ter conhecimento da localização materna naquele momento: “Ela (sua amiga Miriam) soube que minha mãe ia viajar pela Europa e passaria por Barcelona para te visitar. Minha história com ela é a história de um desencontro.”25

Neste caso, contudo, o “desencontro” parece ter sido planejado. Por que, ao retornar a Manaus, ela volta à casa materna, e não à de Emilie, sabendo que sua mãe, porém, não estará lá, mas sim com o irmão em Barcelona? Que ausência perturbadora é essa que ela parte à procura? Citando suas próprias palavras, podemos dizer que ela buscava o encontro com o impossível, que nunca se materializará: “Emilie nunca me escondeu nada, como se me dissesse: tua mãe é uma presença impossível, é o desconhecido incrustado no outro lado do espelho.”26

E ela enfatiza o vazio existente na casa materna assim que entra nos aposentos localizados em seu andar térreo, no dia seguinte àquele de sua chegada. Dessa forma, ao nos expor os objetos “orientais” reunidos no ambiente, e o reflexo destes num espelho que produzia “uma perspectiva caótica de volumes espanados e lustrados todos os dias”27, ela acrescenta: “como se aquele ambiente desconhecesse a permanência ou até mesmo a passagem de alguém.”28

Como sabe de antemão que a casa estará repleta da ausência da mãe, podemos concluir que esse impossível que ela procura não consiste em algo positivo: algo que existe, ou existiu, mas ela não poderá encontrar (sua mãe, por exemplo, ou outro lugar de “procedência”, como sua cidade natal), referindo-se antes à experiência de não se alcançar, de se buscar uma ausência que nunca surgirá na sua concretude, tal como a morte. A sua busca, assim, é atravessada por uma impossibilidade fundamental e sua viagem de retorno é interminável.

Nesse contexto, o seu afastamento possui um caráter radical, já que não existe um lugar que faça com que nossa narradora sinta-se plenamente em casa; que dê a sua vida um local próprio na ordem do universo, com um sentido correspondente e, portanto, uma identidade sólida, uma subjetividade estável. E esse sujeito “desenraizado” (termo que discutiremos logo abaixo), que estranha o mundo aonde mora e aquele de onde veio, poderá notar com facilidade como as narrativas, as crenças, os hábitos e as identidades são construções. Mas ao mesmo tempo em que percebe isso, sentirá que sua voz, e aquela que reproduz dos outros, também o são.

Exílios
Gostaríamos de enfatizar algumas conclusões, refazendo em parte o caminho percorrido e introduzindo novas noções. A primeira apoia-se na ideia de que o “desenraizamento” não significa aqui somente uma distância em relação à terra natal, que desaparece com a simples volta ao país “de origem”. O imigrante, migrante ou, em última instância, qualquer indivíduo, pode também experimentar uma perda radical da pátria e do sentimento de pertencimento a um país, uma cultura, uma língua. Por esta razão, consideramos delicado utilizar, sem o devido cuidado, termos como “desenraizamento” ou “exílio” neste sentido e contexto específicos, pois estes supõem a existência de raiz, pátria, solo. E, se o que se quer ressaltar não é a distância da cidade ou do país natais, mas justamente a impossibilidade de se sentir em casa, em qualquer lugar do mundo, o emprego de noções como estas deveria ser acompanhado da ressalva de que esta “casa” ideal inatingível pode ser vivida, de modo intenso, como perdida, porém não apenas não existe no presente como nunca existiu.

Esta concepção de perda radical da terra natal é aquela priorizada por Hatoum não apenas na construção da personagem-narradora do Relato, mas também na interpretação de sua própria enxaqueca como metáfora da experiência de exílio e estranhamento em terra natal29 e na sua descrição daquele que se muda para outro país. Para o autor, com efeito, “o imigrante é aquele sujeito que diz: ‘Percebi que não tenho nenhum lugar para ir e não tenho também nenhuma razão para ir para algum lugar.’”30

É também de acordo com essas considerações que compreendemos o vínculo traçado por Lukács entre romance e exílio, quando este se refere à forma da nossa grande épica como “expressão do desabrigo transcendental”.31 Entendemos, assim, o vínculo criado pelo teórico húngaro para caracterizar o romance como uma enunciação da perda da ideia de origem e de fundamento – e, consequentemente, das tradições estáveis, dos sentidos e valores dados. No entanto, consideramos que, embora outrora se impusesse como absolutos, a “pátria transcendental” ou, citando outras expressões do léxico de Lukács, o mundo como “totalidade-homogênea”, o “sentido imanente à vida”, sempre resultaram de construções, de modo que sua perda é antes signo do desmoronamento destas do que do fim de uma presença dada. Isto não impede, claro, que esta “perda” seja vivida com a nostalgia de quem foi expulso do paraíso ou com os festejos daquele que saúda, enfim, a liberdade.

Ao diferenciarmos os “exílios” aos quais nos referimos também impedimos uma perigosa generalização da questão. Evitamos, desse modo, banalizar um problema político de importante dimensão no mundo contemporâneo: aquele das massas de refugiados, expatriados e imigrados formadas nos séculos XX e XXI. Evidentemente, as duas formas de desterramento se entrecruzam e se influenciam de diversos modos. Como afirmamos, aquele que deixa sua terra natal, segundo sugere a criação da personagem de nossa narradora, pode se deparar com a ausência de origem e com o estranhamento dos seus supostamente “iguais”. Da mesma maneira, num mundo de fronteiras móveis, ou, segundo o exame de Lukács, num universo que teria perdido a totalidade e a homogeneidade, nos defrontamos com a existência do fora. Dessa forma, a diferenciação aqui defendida não se acredita pura, reconhecendo sua precariedade. No entanto, ao apontarmos o estranhamento radical de nossa narradora e enfatizarmos sua possibilidade de ser vivido por qualquer um de nós, corremos o risco, identificando-o a uma ideia genérica de exílio, de transformar a dor dos indivíduos integrantes das massas acima referidas naquela de qualquer um, o que significa, em termos de força política, na de ninguém. Concordamos, nesse contexto, com Said quando este afirma que

para tratar o exílio como uma punição política contemporânea é preciso mapear territórios de experiência que se situam para além daqueles cartografados pela própria literatura de exílio. Deve-se deixar de lado Joyce e Nabokov e pensar nas incontáveis massas para as quais foram criadas as agencias da ONU. […] Negociações, guerras de libertação nacional, gente arrancada de suas casas e levada às cutucadas […] para enclaves em outras regiões: o que essas experiências significam? Não são elas, quase que por essência, irrecuperáveis?32

Após essas ressalvas, podemos retornar às nossas conclusões e ao exílio radical de nossa personagem. Gostaríamos de ressaltar o movimento da passagem, que acreditamos ter sido realizado por nossa narradora, do posicionamento limiar à defrontação com a ausência de origem e com a camada do originário. Como vimos, ao ocupar uma posição fronteiriça na família em que foi criada e na cidade em que nasceu e cresceu, ela estranhou a si mesma, ampliou as fronteiras da Manaus visitada e “visitável” e desnaturalizou sua condição na casa da infância. A posição fronteiriça, nesse caso, impulsionou o enfrentamento desta camada, a partir do qual podemos questionar as ordens em que vivemos e que nos constituem. E nossa personagem, com efeito, viveu a experiência de que, embora formada por esses antigos hábitos e vivências em comum, nenhum deles contém uma verdade ou essência sobre si mesma, de modo que ela pôde se estranhar, transgredir limites e ver-se como fruto de contingências e acasos aos quais não domina e muitas vezes não tem nem sequer acesso.

No entanto, se ela não possui uma identidade primeira, qual voz deve adotar para nos contar a história? Esse posicionamento fronteiriço, ao exacerbar o descentramento de nossa narradora e levá-la a se deparar com a constelação de contingências, historicidades e acasos que a atravessam, a impelirá também a questionar e a refletir sobre os limites de se contar uma história.33 Neste caso, ela se defrontará com o fato de que nem sua fala nem aquelas que nos restitui são naturais, que toda citação é uma forma de apropriação e os sentidos constituem construções.

E será através do embate entre, de um lado, o desejo de relatar sua história e, de outro, a impossibilidade de encontrar uma voz natural e de reproduzir de forma “adequada” aquela dos outros, que ela optará por uma escrita auto-reflexiva, marcada pela renúncia às noções de verdade e de totalidade e pela assunção de seu caráter inventivo e rememorativo. Assim, ao concluir, ao menos aparentemente, sua carta ao irmão, a narradora nos conta que voz é essa que ela buscou criar para resgatar sua infância, perdida no passado, e transmitir, à distância, uma terrível notícia: a morte de Emilie. Ela procurou, pois, reinventar um tom familiar e esquecido, incorporando nele, de modo ativo, as lacunas deixadas para trás: “Era como se eu tentasse sussurrar no teu ouvido a melodia de uma canção seqüestrada, e que, pouco a pouco, notas esparsas e frases sincopadas moldavam e modulavam a melodia perdida.”34

 

* Daniela Birman é jornalista e doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Fez pós-doutorado em Estudos Culturais no Programa Avançado em Cultura Contemporânea (PACC/UFRJ).

NOTAS

1 HATOUM, Milton. A casa ilhada. Estudos Avançados, São Paulo, vol. 19, n. 53, p. 325-329, 2005. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ea/v19n53/24097.pdf . Acesso em: 7 out. 2007.

2 Ibidem, p. 325.

3 Cf. BIRMAN, Daniela. Das cinzas à memória. O Globo, Rio de Janeiro, 20 ago. 2006. Suplemento Prosa & Verso, p. 6.

4 Referimo-nos aqui aos seguintes narradores: a mulher ao mesmo tempo estrangeira e enraizada na cidade de Manaus, de Relato de um certo Oriente; Nael, o curumim bastardo que mora numa casa de brancos de ascendência libanesa de Dois irmãos; e Lavo, o órfão criado por dois tios em pé de guerra de Cinzas do Norte. Cf. HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. Idem. Dois irmãos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. Idem. Cinzas do Norte. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

5 A partir de então, poderá ser chamado apenas de Relato.

6 BIRMAN, Daniela. Das cinzas à memória. O Globo, Rio de Janeiro, 20 ago. 2006. Suplemento Prosa & Verso, p. 6.

7 Sobre o conceito de origem, ver FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogia e a história. In: ____. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979. P. 15-37.

8 Sobre o sentido do termo originário aqui empregado, ver FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1987. P. 345-351.

9 Ver o estudo clássico de Roberto Schwarz sobre o tema em Machado de Assis. SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. 5. ed. São Paulo: Duas Cidades/ Ed. 34, 2000.

10 WELLS, Sarah. O improvável sucessor de Nassar: a genealogia alternativa de Milton Hatoum. In: CRISTO, Maria da Luz Pinheiro de (org.). Arquitetura da memória. Manaus: Editora da Universidade Federal do Amazonas/UNINORTE, 2007. P. 63, grifo da autora. Podemos considerar nossa narradora integrante da segunda geração de imigrantes de duas diferentes maneiras: como filha adotiva de Emilie ou como filha “natural” da mulher desconhecida de ascendência árabe, habitante da casa de decoração suntuosa e gosto duvidoso descrita no primeiro capítulo do livro. Neste segundo caso, porém, não possuímos nenhuma prova da procedência de tal mulher. Trata-se, pois, somente de uma hipótese interpretativa.

11 Ibidem, p. 64.

12 HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. Op. cit, p. 20.

13 FOUCAULT, Michel. “Nietzsche, a genealogia e a história”. In: ____. Microfísica do poder. Op. cit., p. 15-37.

14 FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Op. cit., p. 347-348.

15 HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. Op. cit., p. 12.

16 Nascido em Manaus, em 1952, Hatoum viveu nesta cidade até os 15 anos, quando se mudou para Brasília (onde morou nos anos de 68 e 69). Ele passou a década de 70 em São Paulo e depois ganhou o mundo, tendo vivido em Barcelona, Madri e Paris. Após 18 anos fora, retornou a Manaus, onde foi professor de literatura francesa da Universidade Federal do Amazonas. Em 1999, deixou a cidade de novo. Desde então, mora em São Paulo.

17 GRAIEB, Carlos. “Amazônia está à margem da História”, diz escritor. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 8 mar. 1995. Caderno 2, p. D1.

18 Ibidem.

19 CASTELLO, José. Milton Hatoum reclama a volta da indignação. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 14 nov. 1998. Caderno 2, p. D4.

20 GRAIEB, Carlos. Milton Hatoum cria pátria entre dois mundos. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 8 mar. 1995. Caderno 2, p. D1.

21 CURY, Maria Zilda Ferreira. De orientes e relatos. In: SANTOS, Luis Alberto Brandão; PEREIRA, Maria Antonieta (orgs.). Trocas culturais na América Latina. Belo Horizonte: Pós-Lit/FALE/UFMG; Nelam/FALE/UFMG, 2000. P. 172.

22 HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. Op. cit, p. 123.

23 Ibidem, p. 123.

24 Ibidem, p. 164.

25 Ibidem, p. 162.

26 Ibidem, p. 162.

27 Ibidem, p. 10.

28 Ibidem, p. 10.

29 Cf. GRAIEB, Carlos. Milton Hatoum cria pátria entre dois mundos. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 8 mar. 1995. Caderno 2, p. D1.

30 CASTELLO, José. Milton Hatoum reclama a volta da indignação. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 14 nov. 1998. Caderno 2, p. D4.

31 LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. São Paulo: Duas Cidades/Ed. 34, 2000. P. 38.

32 SAID, Edward W. Reflexões sobre o exílio. In: ____. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. P. 48-49.

33 Identificamos nesta passagem do fronteiriço à reflexão sobre nossos limites, realizada pela narradora do romance, a postura integrante da concepção de crítica defendida por Foucault e presente em suas ontologias do presente. Com efeito, em “Qu’est-ce que les Lumières?”, o filósofo defende um ethos filosófico no qual o sujeito romperia com a escolha entre exterior e interior, localizando-se no limiar, de onde examinaria os limites que constituem nosso modo de agir, pensar e dizer – e que, transgredidos, permitirão nossa transformação e o exercício de nossa liberdade. “Parece-me que a questão crítica, hoje, deve ser invertida em questão positiva: naquilo que nos é dado como universal, necessário, obrigatório, qual é a parte do que é singular, contingente e causado por coações arbitrárias”, escreve Foucault. Cf. FOUCAULT, Michel. Qu’est-ce que les Lumières?. In: ____. Dits et écrits IV. Paris: Gallimard, 1994. P. 574.

34 HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. Op. cit., p. 166.

 

Cinéfilos e fazedores de cinema a contrapelo | de Alice Fátima Martins

Na sétima de suas Teses sobre História, Walter Benjamin (1994) destaca que, em geral, historiadores constroem suas narrativas com base na relação de empatia com os vencedores e poderosos. No entanto, os bens culturais devem sua existência não somente ao esforço de gênios ou poderosos, mas também (talvez, sobretudo…) “à corvéia anônima dos seus contemporâneos” (p. 225). Assim, reivindica como fundamental a tarefa de “escovar a história a contrapelo”, desde o ponto de vista dos oprimidos, ou dos vencidos, lançando-se em insurgência não só contra a tirania, mas também contra a própria corrente histórica.

Sem perder de vista o necessário esforço para evitar as armadilhas reducionistas das análises dicotômicas, a expressão “a contrapelo”, que assume o lugar de advérbio de modo no título deste artigo, buscada em Benjamin, refere-se ao trabalho de cidadãos comuns que, movidos a paixão pelo cinema, dedicam seus esforços para assegurar, não só para si, como também para suas comunidades, o acesso a histórias contadas pela indústria cinematográfica, e também a aventura de contar suas próprias histórias, ainda que em condições precárias, e à revelia dos sempre onerosos orçamentos das produções cinematográficas disponíveis no mercado do entretenimento.

Nesses termos, o trabalho desenvolvido por fazedores de filme tais como Afonso Brazza (DF) e seu Manoel Loreno (ES), e pelo senhor José Zagati (SP), responsável pelo Mini Cine Tupy, fornece pistas para que sejam tecidas algumas reflexões sobre as noções de identidade(s) e pertencimento na cultura contemporânea, no panorama do complexo mercado das narrativas audiovisuais, dentre as quais estão as cinematográficas, e suas dinâmicas de produção / distribuição / circulação / consumo / descarte das mercadorias culturais no mundo globalizado.

Como linguagem, o cinema instaurou sintaxe própria para a arte de contar histórias, ficcionais ou não, atendendo a diferentes propósitos e objetivos. No decurso do século XX, o cinema instituiu-se indústria de narrativas e um dos principais filões de entretenimento, com abrangência planetária, partindo de alguns núcleos localizados no Ocidente, estendendo-se para o Oriente, num trânsito intenso de fluxos de narrativas e contranarrativas cujas histórias afirmam e questionam posições e pontos de vista, defendem e denunciam, reafirmam e negam relações de poder, chocam e entediam, omitem e explicitam, dissimulam, surpreendem, assustam, divertem, sempre forjando e alimentando imaginários, integrando, no continuum, as dinâmicas de (re)configuração das relações identitárias.

Desde os seus primórdios, o cinema é portador de uma natureza inerentemente globalizada, multicultural e transnacional. Stam e Shohat chamam a atenção para o fato de que “os mesmos filmes projetados em 1895 no Grand Café de Paris eram projetados apenas alguns meses depois em locais como Beijing (então Pequim), Cairo, Bombaim e Cidade do México” (2004, p. 400). Não por acaso, ele foi instaurado no auge da efervescência da sociedade industrial, integrando o que se costumou chamar de indústria cultural, expressão cunhada, inicialmente, no contexto das discussões propostas pelos pensadores da Escola de Frankfurt. Dando sequência, então, a essas ideias, na década de 60, Edgar Morin (1999), no texto A indústria cultural, tratou dessa questão, no contexto da sociedade-indústria, a partir dos processos culturais que se desenvolvem sob o impulso primeiro do capitalismo privado. Essa indústria, ultraligeira, produz uma mercadoria intangível, destinada ao consumo psíquico, do comportamento, e obedece à reprodução de certos padrões, para assegurar sua aceitação pelo público. No entanto, ao mesmo tempo, seus produtos precisam apresentar novidades capazes de manter a motivação de consumidores susceptíveis de se entediarem com o já conhecido. Devem ser capazes, também, de conquistar novos públicos-consumidores, no desafio contínuo de ampliação de domínio de mercados. Fica estabelecida, assim, uma contradição dinâmica entre inovação e padronização.

Para Morin (1999), o cinema é uma usina de produzir histórias (ou um complexo de usinas), organizada em torno de uma rígida divisão de trabalho que tem como base a estrutura industrial. A fabricação de suas mercadorias observa uma racionalização que preside o processo desde o planejamento, o estudo do mercado cultural, até o consumo propriamente dito pelos públicos-alvo. E pressupõe, também, sua rápida substituição por outros itens, com inovações que os tornem, supostamente, mais interessantes que seus precedentes.

Ora, a divisão do trabalho e a padronização podem sufocar os processos de criação. Para superar esse risco, a indústria cultural – nela, a indústria cinematográfica – estabelece relações com produções culturais situadas fora dos circuitos dominantes, nos processos de criação ou de distribuição, marcadas por baixos orçamentos, muita invenção e experimentação, formando, assim, trânsitos entre centros e periferias, de modo que as relações entre o padrão e a invenção resultam sempre dinâmicas e imprevisíveis, nunca estáveis.

Ajustando o foco da discussão nas histórias contadas pelo cinema, vale lembrar: essas fábricas de imagens sonoras em movimento produzem signos que articulam narrativas, nas quais se delineiam os vínculos de pertencimento seja daqueles que as realizam, seja do público, nas salas de cinema, ou nos ambientes domésticos, no momento em que interagem com essas histórias, incorporando-as ao seu imaginário. Nos percursos entre quem as conte e quem as consuma, entrecruzam-se elementos conformadores de identidades plenas de tensões e contradições. São as tramas de agonísticas cujas tessituras conformam perfis de bandidos e mocinhos, amantes e odiados, parceiros e solitários, forjando os que pertencem a este ou aquele grupo, os estrangeiros, e ainda os indesejados. Tais referências demarcam visões de mundo de quem conta as histórias na direção de quem as consome. Da parte dos espectadores, não há identidades monolíticas únicas. Ao contrário, nos mais diversos contextos, estão envolvidos em referenciais identitários múltiplos, a partir dos quais se relacionam com as narrativas cinematográficas: “As posições espectatoriais são multiformes, fissuradas, esquizofrênicas, desigualmente desenvolvidas, cultural, discursiva e politicamente descontínuas, e constituem parte de um domínio em constante modificação (…).” (STAM & SHOHAT, 2005, p. 421).

A noção de identidade, neste trabalho, está estreitamente relacionada com a depertencimento(s). O sujeito se reconhece na medida em que reconheça seu pertencimento a esta ou aquela rede de relações. E ainda a esta e aquela rede. Ou ainda se localize em interstícios, entrerredes, na perda de uns e no estabelecimento de novos pertencimentos, de diversas naturezas. Assim, cada indivíduo liga-se, em diferentes intensidades, a redes de vínculos e, portanto, de relações identitárias que se entrecruzam, sobrepõem, concorrem, tensionam, configurando seu estar no mundo, sempre em movimento. Nessa linha, a cultura pode ser pensada como produção de signos compartilhados coletivamente, que estabelecem as mediações dos elos nas redes de pertencimento. E as narrativas fílmicas, que são, ao mesmo tempo, produto da indústria cinematográfica, entretenimento, mercadoria cultural intangível e imponderável, articulam, criam, sobrepõem, renovam signos em profusão, em interação com o contexto sócio-cultural no qual está inscrita.

A produção de excedentes

A sociedade industrial funda-se na produção de excedentes. Isso significa que as mercadorias não são produzidas para atender a necessidades objetivas, mas trazem, na sua própria concepção, a geração de novas e sempre insaciáveis necessidades. Assim, mercadorias são produzidas em excesso, sempre a mais, para ampliar o seu consumo. A entrada de novas mercadorias em circulação pressupõe o descarte das velhas (as ideias de novasvelhas constituem solo incerto…), de modo que se produz, também, lixo em excesso. Uma das consequências é que, nos centros urbanos, formam-se lixões, nos quais são jogados os mais diversos itens, danificados, perecidos, ou simplesmente substituídos por novos modelos.

Mas os lixões não são o ponto final do percurso cumprido por essas mercadorias, como descartes. Nesses territórios, desafiando desconfortos, mau cheiros, riscos de contaminações as mais diversas, e disputando espaço com animais outros, legiões de cidadãos recolhem os restos, e os reaproveitam de quantas formas: em construções alternativas e rudimentares de moradias, no consumo de alimentos muitas vezes em processo de deterioração, na recuperação de vestuários, na seleção de papelões, garrafas, dentre outros itens de interesse para as indústrias de reciclagem.

Na sociedade pós-industrial, marcada pela expansão sem precedentes das tecnologias de comunicação e de informação, igualmente, há circulação de informação, signos e entretenimento em demasia. Portanto, não são apenas as fábricas de mercadorias materiais que produzem em excesso, entulhando prateleiras e desejos dos consumidores, e gerando, no outro polo do processo de consumo, lixões cada vez mais extensos. Da mesma forma, há mercadoria simbólica em excesso, multiplicada em progressão geométrica, a cada fração do tempo, confundindo e saturando a percepção da audiência.

Do mesmo modo que parcelas significativas da população dos grandes centros urbanos trabalham nos lixões, tendo em vista toda sorte de reciclagem, é possível pensar, também, na existência de lixões intangíveis de produtos simbólicos da indústria cultural, de cujos descartes quantos cidadãos se apropriam, devorando-os, para regurgitá-los, recriando narrativas próprias, e, nelas, a própria noção de pertencimento. Stam e Shohat (2005) referem-se aos processos pelos quais as mercadorias culturais são importadas, nacionalizadas e mobilizadas para uso local.

Nesse cenário, entre a grande indústria e esses lixões culturais, há complexas redes e instâncias de fermentação da cultura, por vezes mais, noutras vezes menos artesanais, podendo ser mais, ou menos, inseridas nos circuitos culturais oficiais, por vezes mais locais, intracomunitárias, noutras mais afeitas ao caráter globalizado de produção: transculturais, “desterritorializadas”, multimidáticas, “pós-modernas”…

Se, de um lado, a indústria cinematográfica dominante tem produzido, em excesso, narrativas sobre “os ‘vencedores’ da história, em filmes que idealizam o empreendimento colonial como uma ‘missão civilizatória’ (…)” (STAM & SHOHAT, 2005, p. 400), entre os públicos consumidores dessa mercadoria intangível, agentes anônimos de cultura tratam de realizar e difundir suas narrativas, fazendo uso da imagem em movimento, pautados pela sintaxe do cinema, apropriando-se de repertórios aprendidos nos filmes veiculados por salas de cinema e programações televisivas. Tais narrativas trazem, como traço fundante, as marcas digitais de modos próprios e singulares de contar histórias e com elas interagir.

Muitas dessas produções são classificadas, por quantos críticos de cinema, como filmes trash,1 desqualificando-os. Uma coisa é certa: é preciso questionar desde onde tais avaliações são formuladas: se desde o ponto de vista dos poderosos e vencedores, ou da corvéia anônima… Além disso, os chamados filmes trash podem ser pensados como resultado desse processo de saturação de signos, informações e histórias, no mercado cinematográfico dominante. Produzem-se narrativas em excesso, nas quais há excesso de correrias, destruições, assassinatos, mortos, explosões, tiroteios, acidentes espetaculares, dentre outros ingredientes recorrentes em boa parte dos títulos colocados à disposição do grande público. Esses agentes anônimos que atuam nos lixões da indústria cultural reciclam os restos descartados pelo grande mercado, criando suas próprias histórias, que interagem, dialogam com as histórias contadas pelas grandes produções. E o fazem dispondo de poucas e precárias ferramentas, em estruturas narrativas que, ou por falta de condições técnico-orçamentárias, ou mesmo pela própria natureza de seus projetos, constituem-se a contrapelo dos cânones oficiais, sobretudo das narrativas dos vencedores.

Da Boca do Lixo para o cerrado, um Rambo brasileiro

Agora vou partir, vou viver junto com os animais, eles não têm maldade no coração. (Dirige-se à mocinha). Vamos. Mas sempre tem a verdade. Nem Cristo escapou dos inimigos. Agora eu lhe pergunto: pra quê tanta violência? Pra quê matar, destruir a vida do próximo, sabendo que somos todos irmãos, na paz, na alegria e na tristeza. Meu Deus, eu não lhe peço perdão, porque isso eu não mereço, mas lhe peço: perdoe o resto do mundo. Deus escreve certo por linhas tortas…

Fala da personagem interpretada por Afonso Brazza, na sequência final do filme No eixo da morte (1997).

Os filmes realizados pelo cineasta-bombeiro Afonso Brazza fizeram com que ele chegasse a ser considerado, por alguns críticos de cinema mais entusiasmados, se não o maior cineasta de Brasília, um dos mais criativos e instigantes. Em contrapartida, seus filmes foram qualificados, muitas vezes, como trash. Ele próprio costumava fazer provocações, reivindicando, para si o título de “pior cineasta do mundo” (PROGRAMA DO JÔ, 2002).


Ainda adolescente, Brazza seguiu para São Paulo em busca do cinema. Ali, iniciou-se na Boca do Lixo, onde conheceu José Mojica Marins, o Zé do Caixão, e aprendeu a trabalhar com produções de baixo orçamento. Nos anos 80, mudou-se para o Gama, no Distrito Federal, onde passou a trabalhar como soldado do Corpo de Bombeiros. Entre os anos 1982 e 2002, dirigiu quase uma dezena de filmes de longa metragem: O matador de escravos (1982); Os Navarros (1985); Santhion nunca morre (1991);Inferno no Gama (1993); Gringo não perdoa, mata (1995); No eixo da morte (1997); Tortura selvagem: a grade (2000); Fuga sem destino(2002). Este último ficou inacabado, por ocasião de seu falecimento. Editado por amigos, sob a liderança de Pedro Lacerda, foi lançado em 2006, integrando a programação oficial do Festival de Cinema de Brasília.

A ideia de reciclagem transpira no corpo todo de sua obra, formada por histórias contadas com retalhos cujas emendas não são disfarçadas. Narrativas que divertem, antes de tudo, a quem as realiza. As sequências são desconexas, não há preocupação com continuidade, o som é dublado com vozes de outras pessoas, e muitas vezes os lábios dos atores indicam que estão pronunciando falas diversas das que se está ouvindo. Morrer nas mãos do herói é sempre divertido: por vezes, os bandidos resistem em morrer, para permanecer mais na cena, noutras, morrem antes mesmo dos disparos os atingirem. Tais características, que serviriam para desqualificá-los, ao contrário, tornam esses filmes obras vibrantes e intrigantes. E, para o público, diversão garantida!

Cenas do filme Tortura selvagem: a grade(2000), dirigido por Afonso Brazza.

Nelas encontram-se alguns elementos indispensáveis aos filmes de ação produzidos em massa pela indústria norte-americana: um herói, sempre interpretado pelo próprio Brazza, cujas entradas envolvem mistérios, estratégias, gestos amplos, falas de efeito, vociferações, ameaças e advertências aos “agentes do mal”; mulheres bonitas, algumas vilãs outras vítimas; a mocinha de todas as suas histórias, bela e loira, interpretada pela sua esposa, a atriz Claudete Joubert; muitos bandidos que aparecem de todos os lugares, não interessa saber como, mas por certo para serem implacavelmente combatidos e mortos das mais diversas formas; fugas de carro, saltos de pontes, lanchas velozes, explosões. Tudo executado como quem brinca: fazer cinema é, sobretudo, diversão, nas versões de Afonso Brazza.

O herói composto pelo cineasta, recorrente em todos os filmes, embora assumindo diferentes nomes e trajetórias, é inspirado na personagem Rambo, interpretado pelo ator norteamericano Silvester Stalone, o que lhe valeu a alcunha de Rambo do Cerrado2: um soldado do Corpo de Bombeiros, orgulhoso de sua farda, ocupado em salvar as pessoas, com sua missão levada às últimas consequências, inclusive na dimensão do imaginário.

No tocante aos custos, a maior parte de seus filmes foi realizada com orçamentos bem modestos. À medida que ganhou espaço e visibilidade para o seu trabalho, passou a ampliar as fontes e a forma de apoio com que passou a contar. Assim, o filme Tortura selvagem: a grade, por exemplo, custou R$ 200.000,00, podendo ser considerado uma superprodução, tendo-se em vista que seu primeiro título, O Matador de escravos, realizado em 1982, custou o correspondente a R$ 8.000,00, em valores atualizados.

Na passagem gradativa para produções mais sofisticadas e caras, sem terem sido apagados os traços de autoria, seus filmes, que não deixaram de ser trash, rapidamente ganharam o status de cult. Muitos intelectuais de Brasília, entre jornalistas, artistas, poetas e outros, faziam questão de colaborar e participar dessas produções. Por ocasião da morte do cineasta, em 2003, o jornalista Ricardo Noronha declarou, em matéria veiculada num jornal local:

Tenho a honra de ter sido morto por Afonso Brazza duas vezes. O primeiro tiro pegou exatinho no meio da testa. (…) Caí de costas e ainda reuni forças para virar a cabeça de lado, de maneira assim pouco provável, antes de expirar. [a cena] está em Tortura Selvagem – a grade, filme de pancadarias e tiroteios deliciosamente sem nenhuma cena de tortura, sem grade alguma. A segunda vez que Afonso Brazza me matou foi à traição. Me acertou um tiro pelas costas. (…) Dei um rolamento para a frente, me estabaquei no chão. (…) Ainda não vi essa cena. Está em Fuga sem Destino. A não ser que nosso Brazza tenha aprontado das suas e deixado esse pedaço de película perdido no chão de sua sala de edição caseira, no Gama. (NORONHA, 2003).

Embora tenha conquistado mais visibilidade junto à mídia e espaço junto às agências de fomento para o cinema, o que lhe valeu voos mais ousados em cenas de ação, não conseguiu avançar muito junto aos meios de distribuição de seu trabalho, de modo que a circulação dos filmes não conquistou maiores espaços fora do Distrito Federal, seja na projeção em salas de cinema, ou no formato VHS ou DVD para venda e empréstimo. Ainda hoje, um número muito reduzido de títulos pode ser encontrado em poucas locadoras da capital federal.

O sonho de Loreno, o cineasta analfabeto, servente de pedreiro, locutor de rádio

Até debaixo de chuva eu gravei filme. ‘Tava chovendo, e chuva grossa. Nós ‘tava lá no meio do pasto, correndo atrás uns dos outros, dando tiro, tudo moiadinho, e todo mundo alegre, todo mundo animado. Era aquela alegria! Sabe por quê? Não era pra aparecer lá fora na televisão, era pra ver. Quando chegava de tarde, a gente aprontava a fita, quando era mais tarde, ficava pronto, aí ia todo mundo lá pra assistir o filme, sentir o prazer de ver ele no próprio trabalho, alegria só pra vê eles ali dentro da televisão.

Seu Manoel Loreno, Mantenópolis, ES (2009).

A pequena Mantenópolis fica no noroeste do Espírito Santo. Atualmente, uma das principais atividades econômicas da região é a produção de café. A migração de parcela importante da população para os Estados Unidos da América do Norte também é um traço marcante da cidade, com reflexos na economia local, na organização das famílias, nas construções de casas, nos sonhos de futuro, e, sobretudo, no imaginário dos que ficam… Seu Manoel Loreno nunca saiu do país, mas tem notícias de que seus filmes já foram vistos em redes norteamericanas de televisão, fazendo sucesso entre as comunidades brasileiras lá instaladas. Mas nunca recebeu nenhum comunicado oficial a respeito, tampouco foi remunerado de qualquer forma por alguma possível exibição de seu trabalho.

Ele, que já foi servente de pedreiro, é apaixonado por cinema, desde muito cedo. Em meados da década de 60, enquanto o Cine Império estava em funcionamento, ainda meninote carregava cartazes pelas ruas, anunciando a programação da sala, para assistir aos filmes nas sessões noturnas. Nos anos 70, continuava trabalhando como anunciador, sem salário, tão somente em troca dos ingressos para as sessões.

Seu Manoel relata que, enquanto via os filmes, em sua maioria, estrangeiros – filmes de Tarzan, de faroeste, dentre outros – ficava imaginando suas próprias histórias projetadas no telão. Em seu sonho, anunciadores, outros que não ele, carregariam cartazes pelas ruas com a propaganda de seus filmes. No final dos anos 80, soube aproveitar a oportunidade quando apareceu alguém com uma câmera de vídeo, que se dispôs a fazer as gravações: realizou seu primeiro filme, A vingança de Loreno (1989). Desde então, segundo relata, já contabiliza quase 50 títulos de sua autoria 3, boa parte dos quais, contudo, encontra-se perdida: realizados em VHS, sem cópia, tomados emprestados por vizinhos, forasteiros, curiosos, muitos dos quais não foram devolvidos. Quantos desses foram remetidos para amigos ou conhecidos que moram nos Estados Unidos da América do Norte, sem que deles mais se tivesse notícias…

Quando começou a fazer seus filmes, a população de Mantenópolis não tinha mais o hábito de assistir filmes no cinema. A sala de projeções já havia fechado há algum tempo – ainda hoje não há sala de cinema na cidade – e as pessoas acompanhavam apenas a programação das redes abertas de televisão. Desse modo, seu Manoel instaurou uma atividade inovadora que, além da natureza artística, cultural e de entretenimento, mostrou grande potencial agregador da comunidade, que se reunia para trabalhar nos filmes e para assistir aos trabalhos realizados. Ele não tem dúvidas: “Eu sei que eu emocionei muita gente fazendo filme aí…”, ainda que a exibição não fosse em grandes telões, mas no écran de modestos aparelhos de televisão, instalados na quadra de esportes. Seus olhos brilham, recordando os primeiros anos, quando “todo mundo ficava doidinho pra ver”.

Seu Manoel Loreno, em cenas do filme O homem sem lei (2003), de sua própria direção.

Para realizar seus filmes, em primeiro lugar ele imagina toda a história, e a divide em partes: “se eu vou fazer um filme daqui a uns trinta dias, aí eu já vou pensando a história dele, eu penso quantas pessoas vai gastar, cena por cena, quantas partes vai gastar…” (LORENO, 2009) Em geral, seus filmes contam com aproximadamente trinta partes. Então ele planeja a execução de cada uma delas, incluindo o número de participantes, as roupas e locações necessárias, os acontecimentos. Após as orientações sobre o que cada um deve falar e fazer, inicia a gravação. Os atores são membros da comunidade, trabalhadores rurais, vizinhos, pessoas com mesmo tipo de inserção sociocultural que ele. Ele conta, também, com a atuação entusiasmada e bem humorada da esposa, dona Isa. Geralmente, os trabalhos duram um final de semana. E como as cenas são gravadas na própria sequência da história, ao final, o filme está pronto (uma espécie de copião, sem edição), razão pela qual, findas as gravações, todos podiam assistir ao trabalho concluído, sempre no domingo à noite.

Embora tenha conseguido mobilizar tantas pessoas da comunidade desde o início, ele era, quase sempre, referido como lunático, e seu trabalho considerado como uma atividade sem maior relevância, não muito mais do que mera distração. Seu reconhecimento veio a partir da visibilidade conseguida com a participação em programas de entrevista em redes de televisão de grande audiência. Tornou-se uma espécie de embaixador da pequena cidade no cenário nacional, e foi recebido entre os conterrâneos como celebridade. No entanto, essa inserção na mídia resultou no imprevisível:

(…) mas agora eu vou falar: (…) aparecer na televisão no Brasil inteiro não me trouxe facilidade pra fazer mais filme. Num ponto foi bom, mas no outro não foi não. Então, foi ruim, que as pessoas não ajudam mais: tem que pagar o dia, e tem que dar o almoço prá eles. Por que, de qualquer maneira, se for um filme de faroeste, eu tenho que gastar umas 80 pessoas. Pra fazer esse filme, então, 80 pessoas, como é que a gente aguenta pagar? (LORENO, 2009).

Seu Manoel sempre contou com a colaboração dos membros da comunidade para realizar seus filmes, pelos quais não recebe retorno financeiro, ou quando recebe algum valor, é simbólico. No entanto, a visibilidade conquistada criou uma nova condição nessa rede solidária. A maior parte de seus parceiros entendeu que ele teria conquistado, além da visibilidade, alguma forma de ganho em dinheiro, de modo que passaram a reivindicar para si, também, alguma forma de pagamento. É possível supor que, inicialmente, houvesse uma espécie de contrato intracomunitário para a produção desse trabalho, o que teria sido rompido a partir da projeção midiática de seu Manoel, em detrimento dos demais, e da expectativa destes quanto a ganhos financeiros. Quebrou-se, assim, a magia das contações de histórias por meio das imagens sonoras em movimento, sob a liderança do cineasta analfabeto, ex-servente de pedreiro, atualmente locutor-comentarista da TransaSon FM, rádio comunitária de Mantenópolis.

Hoje, ele imagina pelo menos três projetos: “Se eu tivesse uns dois mil, eu conseguia fazer um filme com menos pessoas…” As histórias latejam em profusão em sua imaginação. O desejo de realização o inquieta, e a frustração ante as dificuldades têm angustiado seu Manoel Loreno, em pleno impulso de criação… “Não tem cabimento eu não conseguir fazer mais nenhum filme!” Ele tem o roteiro pronto de um filme intitulado Liberado para matar, cuja ação começa em Vitória, e termina em Mantenópolis… umroad movie de ação… “Ah, mas pra esse, ia precisar de muito mais dinheiro, pelo menos uns vinte mil…” (LORENO, 2009)

Cinema, reciclagem e meio ambiente, tudo a ver!

Eu sempre querendo fazer plateia. Não é que eu queria fazer cinema, fazer cinema é outra coisa. Aquela lembrança, quando eu entrei no cinema, a primeira coisa que fiz foi ver o filme passando: a luz tá vindo de lá, e a tela, e aquelas pessoas estavam ali, sentadas, assistindo. A luz, a tela, e as pessoas. Então eu queria fazer era aquilo. Era a emoção, as pessoas assistindo e eu passando o filme, eu sonhei com isso por toda a minha vida. Era um sonho.
Sr. José Zagati, Taboão da Serra, SP (2009).

O corpo esguio e elegante, o sorriso largo, os gestos que acompanham os relatos, avivando-os para a oitiva dos interlocutores, as mãos expressivas e calejadas pelo trabalho braçal de catar papel para reciclagem: o sr. José Zagati é um narrador por excelência, dentro do espírito descrito por Walter Benjamin:

(Pois a narração, em seu aspecto sensível, não é de modo algum o produto exclusivo da voz. Na verdadeira narração, a mão intervém decisivamente com seus gestos aprendidos na experiência do trabalho, que sustentam de cem maneiras o fluxo do que é dito). A antiga coordenação da alma, do olhar e da mão (…) é típica do artesão, e é ela que encontramos sempre, onde quer que a arte de narrar seja praticada. Podemos ir mais longe e perguntar se a relação entre o narrador e sua matéria – a vida humana – não seria ela própria uma relação artesanal. (BENJAMIN, 1994, pp. 220-221)

Fazendo uso da habilidade para narrar vidas, desde a sua própria, ele relata ter ido ao cinema, pela primeira vez, aos cinco anos de idade, na pequena cidade de Guariba, no interior de São Paulo, levado pela irmã. Era um filme de Billy the Kid. A experiência primal não se apagou de sua memória. Mais tarde, tendo se mudado com a família para Taboão da Serra, conheceu o Cine Tupy, que, na adolescência, passou a frequentar. Durante a semana, fazia pequenos trabalhos para comerciantes do bairro onde morava, em troca dos quais recebia “umas moedas” que guardava para ir ao cinema no domingo. “Então eu pegava o ferro-de-brasa da minha mãe, fazia questão de pegar minha melhor roupinha, eu esquentava o ferro e passava: eu vou ao cinema!” (ZAGATI, 2009)

Sr. José Zagati | Foto: Hamilton Alves(2009)
Kombi do Mini Cine Tupy | Foto: Alice Fátima Martins 2009)
Coleção de rolos de filme e fitas VHS | Foto: Alice Fátima Martins (2009)
Sr. José Zagati e crianças assistem projeção de filme | Foto: J. Bamberg (2009)

Na vida adulta, trabalhou como servente de pedreiro, metalúrgico, dentre outras tantas atividades. Mas, em 1990, desempregado, começou a catar papel, “e foi daí que eu consegui realizar o meu sonho”, afirma. Frequentemente encontrava pedaços de filme: “quando eu achava um pedaço de filme, aquilo para mim era um grande tesouro que eu tinha encontrado”. Ele próprio questiona por que se encontravam tantas coisas relativas a cinema no grande aterro sanitário, e explica que todo o lixo resultante das reformas feitas nos prédios do centro de São Paulo era depositado ali. Eram entulhos de quantos prédios derrubados para que outros fossem erguidos, e outros tantos refeitos, para assumir novas feições e funções, pela pressão do progresso. Dentre esses prédios, estavam as antigas salas de cinema, muitas das quais fechadas, recebendo outras destinações. “Eu comecei a encontrar esses restos, esses pedaços de filme, fui guardando, tudo quanto foi pedaço, aquela coisa de Cinema Paradiso, (…) vou guardar, isto aqui é história…” (ZAGATI, 2009). Então, ele encontrou a carcaça de um projetor no lixo. Embora não funcionasse, ele a levou consigo, para casa. Algum tempo depois, numa “loja de usados” do centro de São Paulo, comprou o primeiro projetor em condições de funcionamento. Seu relato é emocionado:

Peguei o projetorzinho e vim (faz o gesto de quem carrega uma criança), peguei o ônibus e vim com ele no colo assim, parecia um bebê, louco prá chegar em casa prá botar ele prá funcionar, e ver os pedaços dos filmes que eu tinha juntado. Aí eu arrumei, quando foi no outro dia de tardezinha, estendi um lençol lá em cima duma cerca, eu morava num bairro aqui perto, né, aí eu pendurei um lençol, de tardezinha, puz uma mesinha lá na rua, botei o projetorzinho. Foi escurecendo, comecei a passar aquele filme (imita o som da máquina) rrrrrrrrrrrrrrrrrrr. Assim que surgiu o cinema aqui! (sorri) Aí começou a vir aquelas crianças todas, todo mundo curioso, o que é isso, Zagati? Que é isso seu Zagati? Eu falei: Isso é cinema! Eles nunca tinham visto aquilo… Como ainda tem muita gente que nunca foi ao cinema, ainda tem muita gente assim, que nunca viu. Aí, eles erguia o pano, não via nada, olhava no projetor, tão encantados com aquilo, eu tão feliz com aquilo! (ZAGATI, 2009).

A primeira projeção de um filme de longa metragem, completo, ele conseguiu realizar em agosto de 1998, inaugurando o Mini Cine Tupy, numa homenagem ao antigo Cine Tupy, que povoou sua infância e juventude com histórias e sonhos. Desde então, o trabalho de projetar filmes para a comunidade, na sede do “cineminha”, ou em outros locais, tais como escolas, asilos, hospitais, praças, dentre tantos, confunde-se cada vez mais com o de catar material para reciclagem. Atualmente, ele é membro da Cooperativa Zagati de Agentes Ambientais, que ajudou a fundar. Tem orgulho de seu papel social, e clareza das relações intrínsecas entre os cuidados com o meio ambiente, a reciclagem, e a produção de cultura. Por isso mesmo, escreveu em seu carrinho de coleta de papelão os seguintes versos, de sua autoria:

Reciclar é bom

A natureza agradece

Tudo pelo cinema!

A sétima arte merece!

(ZAGATI, 2009)

Banquetes antropofágicos: da dor e da delícia de devorar o outro

Nas últimas décadas, muitas salas de cinema foram fechadas, em cidades do interior e nas periferias dos grandes centros urbanos. Uma pesquisa realizada por uma parceria entre o Ministério da Cultura e o IPEA constatou que mais de 90% dos municípios não possuem sala de cinema. A migração das salas para as grandes redes instaladas em shopping centers implicou na exclusão do acesso a uma parcela significativa da população de suas programações, o que se reflete na informação de que apenas 13% dos brasileiros frequentam cinema pelo menos uma vez ao ano. Ou seja: os outros 87% não vão ao cinema, ou vão muito raramente. (BRASIL, 2007).

Os srs. Manoel Loreno e José Zagati desenvolvem um trabalho na contramão desse cenário, reunindo os poucos recursos de que dispõem para veicular realização e exibição de filmes à sua comunidade, no exercício incansável de busca do sonho. Se Afonso Brazza, residente no Gama, Distrito Federal, também, à sua época, não contava com salas de cinema, cumpriu uma trajetória que, embora mais cosmopolita, não foi menos entulhada pelos excessos da indústria cultural.

Esses três homens têm em comum a paixão pelo cinema, que mobilizou seu imaginário e nutriu seus sonhos desde a infância. Do mesmo modo, são apaixonados pelo lugar onde vivem, estabelecendo com ele uma relação de intimidade e encantamento, endereçando-lhe o seu trabalho. Brazza traz para as telas as paisagens e os percursos da capital federal, tornando-os personagem de primeiro plano em seus enredos. Suas histórias são urbanas, trespassadas pelo trânsito de automóveis, ônibus, ruas movimentadas, arquitetura, edifícios, construções, mas também por amplas áreas verdes, e sobretudo pela abóbada celeste do Planalto Central. Seu Manoelzinho respira uma atmosfera mais rural, interiorana, traços fisionômicos de sua pequena Mantenópolis. Reconta histórias de homens brabos as quais tem ouvido desde seus tempos de infância. E reinventa outras, sempre pensando, como cenário, nos caminhos entre o cerrado e as matas da paisagem recortada por morros e pedras de grande plasticidade. A comunidade e sua inserção sociocultual e ambiental também constituem a paisagem para a qual é endereçada uma das paixões do sr. José Zagati (ao lado do cinema, é claro, e de sua esposa, d. Madalena…), que percorre suas ruas, recolhendo material para reciclagem, olhando suas gentes, observando os movimentos, levando projeções de filmes, reunindo crianças, artistas, outros quantos sonhadores, estabelecendo elos, relações, sentidos…

Afonso Brazza e seu Manoelzinho, fazedores de cinema, apropriam-se de signos produzidos pelo outro, particularmente pela indústria norteamericana de cinema, que concentra parcela majoritária das produções cinematográficas ocidentais, mas, sobretudo, detém a hegemonia das redes de distribuição dos filmes. Mas essa apropriação pressupõe a assimilação e a retradução em termos de parâmetros próprios, identitários. Heróis dos outros, como o Rambo, cowboys e outras personagens, ganham versãotupiniquim. Mais que isso, ganham identidade própria numa nova malha de pertencimento. São devorados e regurgitados, numa apresentação para o mundo a partir dos cenários onde as novas versões são gestadas.

Em termos conceituais, a ideia de antropofagia como metáfora do processo cultural brasileiro foi eleita pelos modernistas, na década de 20 do século passado. O Manifesto Antropofágico, escrito, em 1928, por Oswald de Andrade (1995), busca responder a algumas questões colocadas pela Semana de Arte Moderna, em 1922, e reivindica uma atitude de devoraçãodos valores europeus, suas condutas normativas, seus cânones hegemônicos, para a reformulação na perspectiva das referências identitárias brasileiras.

Para o filósofo espanhol Eduardo Subirats (2001), a antropofagia brasileira inverteu o discurso das vanguardas européias e da definição da modernidade como um modelo externo, uma nova figura de colonização estética e política. Ela formulou, além disso, um projeto original de civilização não redutível às categorias do progresso capitalista ou tecnológico-industrial, buscando realizar a síntese o erudito e o popular, o hegemônico e o marginal, o altamente tecnológico e o artesanal.

No entanto, a ideia de antropofagia neste trabalho evoca uma outra fonte metafórica, da obra de João Ubaldo Ribeiro, Viva o povo brasileiro! (2008). O romance trata da saga de pequenos heróis da nação, tecendo uma anti-história em contraponto à história oficial, ou, retomando a ideia inicial deste artigo, uma história escovada a contrapelo (BENJAMIN, 1994). Embora esse romance tenha vários pontos de aproximação com o manifesto e o ideário modernista, com ele estabelecendo um diálogo inevitável, o texto de Ribeiro não tem um projeto político e intelectual em que a antropofagia seja apontada como o caminho para a solução dos impasses culturais no cenário brasileiro. Em contrapartida, também não assume o ponto de vista falso moralista dos colonizadores que condenam o ritual antropofágico. Ao abordar a história da dominação, fundada em quantas formas de violência, João Ubaldo Ribeiro busca a própria voz do dominado, seja do ponto de vista das relações de poder, da produção da cultura, da história como um todo. Nela, o ato de devoração prazerosa do outro aparece como o gesto germinal dos processos de miscigenação que articulam o sentido de brasilidade, no seu melhor, e também no seu pior…

A diferença entre a antropofagia e o canibalismo está no aspecto ritual, presente na primeira, ausente no segundo. O canibal devora o outro, seu semelhante, reduzindo-o à condição de caça, ou alimento circunstancial. Nos rituais antropofágicos, o outro é reconhecido e respeitado, e seu devorador quer assimilar sua vitalidade e força, incorporando, assim, suas características à própria identidade. Embora a distinção conceitual entre antropofagia e canibalismo não seja consensual entre estudiosos e pesquisadores, essa concepção orienta a discussão proposta neste trabalho, que trata da atuação de agentes produtores de cultura mais que meros caçadores de restos nos lixões intangíveis da indústria cultural: na verdade, devoradores rituais do excedente simbólico despejado pelo outro, pelos outros. Devorando ritual e prazerosamente o lixo descartado, reprocessam-no, integrando-o às suas próprias redes de pertencimento e sentidos. A natureza, a cultura e o cinema agradecem, como preconiza o sr. José Zagati.

Figuras que não se submetem aos modelos impostos por outrem, mas os incorporam aos seus próprios referenciais e ferramentas, Afonso Brazza, seu Manoelzinho e o sr. José Zagati não estão sozinhos no cenário brasileiro. Tantos outros se aventuram à labuta de catar lixo da indústria cultural, fazendo uso de recursos geralmente precários para produzirem suas próprias narrativas, para abrir espaços de veiculação de narrativas, de modo independente em relação ao mercado oficial cinematográfico. De alguma forma, esses agentes culturais interagem não apenas com as narrativas e os veículos hegemônicos, mas com a própria intervenção colonizadora destas em seus contextos, absorvendo e retraduzindo seus signos, atribuindo-lhes novos significados, recontando suas próprias histórias.

São tomadas de posição no mundo presididas pela interlocução ativa e criadora, dialogal. Afinal, nenhuma imagem, e, de resto, nenhuma narrativa é fechada, mas tem seu sentido completado na relação com o público, que a interpreta e reconstrói em sua própria percepção. Nos processos de interpretação de narrativas, sejam imagéticas, literárias ou cinematográficas, entram em cena tanto os referenciais subjetivos, individuais, quanto os coletivos, culturais. Indivíduo e coletivo são, afinal, duas dimensões imbricadas e indissociáveis nas dinâmicas do tecido social. No tocante ao trabalho desses cinéfilos e fazedores de filme a contrapelo, mais do que meramente interpretar essas narrativas, reconstruindo-as no próprio imaginário, de fato in-corporam, antropofagicamente, os signos das histórias contadas pelos outros, os heróis dos outros, em histórias autorais e ambientes regidos por sua soberania, que dizem de seu tempo, de suas relações, de sua própria inserção no mundo. De seus pertencimentos.

* Alice Fátima Martins é professora do Programa de Pós-Graduação em Cultura Visual, na Faculdade de Artes Visuais da UFG, com pesquisa de pós-doutorado desenvolvida no Programa Avançado em Cultura Contemporânea (PACC/UFRJ), financiada pela FAPERJ.

 

NOTAS

1 No cinema, não há consenso em relação à classificação de filmes como trash. Em geral, são assim referidos os filmes de baixo custo, “mal realizados”, em sua maioria, caricaturas de filmes de horror ou de ação.

2 Embora no filme Tortura selvagem: a grade os antagonistas do herói refiram-se, algumas vezes, à sua personagem, em pleno enredo, como o Kojak, em função da cabeça raspada.

3 Alguns títulos dentre os filmes realizados por sr. Manoel Loreno: A vingança de Loreno, O gatilho mais rápido do Oeste, A revolta de Loreno, Loreno volta para matar, O sonho de Loreno, Natal sangrento, Karatê, Golpe fatal, A vingança do apaixonado, O amor proibido, O homem feliz, A gripe do frango, O homem sem lei, O rico pobre.

4 A escrita do nome do cinema não está unificada nos documentos, camisetas, folders, etc. Considerando o cinema homenageado pelo sr. José Zagati, o antigo Cine Tupy, e a maior parte do material de divulgação veiculado, neste artigo é adotada a grafia Mini Cine Tupy, apesar de, na porta da Kombi, constar Mini Cine Tupi.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

ANDRADE, Oswald de. A utopia antropofágica. 1ª publicação em 1928. São Paulo: Globo, 1995. 2ª Ed. Disponível em http://www.puc-campinas.edu.br/centros/clc/Acesso em 23 de fev. de 2008.

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas, volume 1: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994.

BRASIL, Ministério da Cultura. Economia e política cultural: acesso, emprego e financiamento. Coleção Cadernos de Políticas Culturais, volume 3. Brasília: Ministério da Cultura, 2007.

BRAZZA, Afonso. Depoimento. Entrevistador: Jô Soares. Transcrição: Alice Fátima Martins. Entrevista concedida ao Programa do Jô. Rio de Janeiro: Rede Globo de Televisão, 2002. Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=qDyZqlxdrEM&feature=related. Acesso em 22 de fev. de 2008.

MORIN, Edgar. A indústria cultural. In FORACHI, M. A. e MARTINS, J. S. (1999) Sociologia e sociedade: leituras de introdução à sociologia. Rio de Janeiro/São Paulo: Livros Técnicos e Científicos, 1999.

LORENO, seu Manoel. Depoimento. Entrevistadores: Alice Fátima Martins e Jairo R. P. Bamberg. Arquivo digital formato MP3. Transcrição: Alice Fátima Martins. Entrevista concedida ao Projeto de pesquisa catadores de lixo da indústria cultural. Rio de Janeiro: PACC/FCC/UFRJ/FAPERJ, 2009.

STAM, Robert & SHOHAT, Ella. Teoria do cinema e espectatorialidade na era dos “pós”. In RAMOS, Fernão Pessoa. Teoria contemporânea do cinema, volume 1: pós-estruturalismo e filosofia analítica. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2005.

ZAGATI, José. Depoimento. Entrevistadores: Alice Fátima Martins e Jairo R. P. Bamberg. Arquivo digital formato vídeo. Transcrição: Alice Fátima Martins. Entrevista concedida ao Projeto de pesquisa catadores de lixo da indústria cultural. Rio de Janeiro: PACC/FCC/UFRJ/FAPERJ, 2009.

REFERÊNCIA FILMOGRÁFICA

O HOMEM SEM LEI. Seu Manoel Loreno. DVD. Brasil, 2003.

TORTURA SELVAGEM: A GRADE. Afonso Brazza. Película. Brasil. 2000. Disponível em http://video.google.com/videoplay?docid Acesso em 17 de janeiro de 2008.

 

Tramas urbanas: un posicionamiento teórico crítico sobre la experiencia cultural contemporánea de la periferia urbana carioca y paulista | de Lucía Tennina


Ésta es la tapa de un libro. Salta a la vista que es a todo color. El título de este libro es Cooperifa, y el subtítulo, Antropofagia Periférica, que nos remonta al movimiento vanguardista brasileño de los años ‘20, pero desde un lugar diferente: la periferia. “Sérgio Vaz” es el nombre del autor.


En la contratapa del libro se lee un texto de Mano Brown, un rapper brasileño oriundo del barrio periférico Capão Redondo y vocalista del grupo Racionais MC’s., que se titula “El general de las palabras”. Como es corriente en este tipo de escrituras, la metáfora bélica articula sociedad y literatura. El título de la reseña apunta a Sérgio Vaz escritor.


A diferencia de otros libros, éste tiene sus auspiciantes: Petrobrás, el Ministerio de Cultura y el Gobierno Federal.

En la página de apertura, otro paratexto nos informa que el libro que tenemos en las manos pertenece a una colección, Tramas Urbanas, que consta de diez volúmenes. El texto no tiene firma.

Los créditos señalan que la curaduría de la colección está a cargo de Heloísa Buarque de Hollanda, consagrada crítica literaria brasileña, y la consultoría pertenece a Ecio Salles, literato brasileño oriundo de un suburbio carioca y coordinador del movimiento cultural Afro Reagge



En el interior se pueden ver los escritos de Sérgio Váz intercalados con fotos de él: algunas del artista cuando niño, otras de las actividades que desarrolla en la periferia y otras en las que el autor se promociona a sí mismo en su propio cuerpo, como si además de los secretos de la pobreza conociera los de la mercancía capitalista.

Las separaciones entre capítulos llevan una tipografía tridimensional, que supera el tamaño de la página y que tiene diferentes tonalidades de grises, algunas veces pixeladas. También están pixeladas las fotos.

El último capítulo narra el origen del libro y las mediaciones para su concreción, encarnadas en Heloísa Buarque de Hollanda quien aparece como comitente: “ (…)Heloísa me pediu que eu contasse um pouco da minha história e da Cooperifa (…)”


Este libro, junto a otros nueve, forman una pequeña biblioteca: la de Tramas Urbanas, que comenzó a salir en el 2007 y al año siguiente cerró con 10 títulos.

Desde fines de la década del ’90, el campo literario brasileño comienza a verse atravesado por una serie de escrituras aproximadas por el origen social de los escritores que la producen, todos oriundos de la periferia urbana, además de por afinidades temáticas centradas en la marginalidad social, la criminalidad, la violencia, el tráfico de drogas y el racismo. En el año 2001 la revista Caros Amigospublicó una edición especial sobre la literatura producida en las favelas/barrios pobres. Se trata del primero de los tres números que esta revista dedicó a dichas escrituras, llamada en esas ocasiones Caros Amigos –Literatura Marginal Ato I (2001), Ato II (2002) y Ato III (2004). A partir de esta publicación, ideada, organizada y editada por el escritor Ferréz, se instala y se disemina el concepto “literatura marginal”, alrededor del cual se agrupa un importante número de escritores de origen subalterno, conformando en conjunto un movimiento literario.

Frente a este fenómeno, el círculo de los letrados viene actuando confusamente: o no emite palabra, o deslegitima sus producciones, o, por el contrario, las legitima idealizadamente. Aunque todavía no hay, entonces, una cartografía crítica armada, una voz que se destaca es la de Heloísa Buarque de Hollanda, quien, no casualmente, es la primera académica que, al surgir la poesía marginal en los ’70, se abre para su comprensión y arma la famosa antología llamada 26 poetas hoje. Frente a la “literatura marginal” de los últimos años, la operación crítica que Heloísa Buarque toma es absolutamente diferente a la que llevó a cabo con la poesía marginal. No hay artículos de su autoría en relación con dichos textos, solamente hay algunas entrevistas en las que se puede leer que, en este caso, su programa apunta a “dar voz a quienes no tienen voz” (Revista Raiz, 12-09-08), de ahí que organice la colección Tramas Urbanas.

Este silencio puede interpretarse en una línea foucaultiana, como un acto de crítica política, negándose a hablar por ellos y a caer en la trampa de la representación. Ahora bien, ese “dar voz” está determinado por varias mediaciones que, si bien no se articulan en palabras, le dan forma al fenómeno y lo condicionan dotándolo de nuevos sentidos ¿Pueden pensarse tales operaciones en tanto posicionamientos teórico-críticos?

El gesto fundamental de Tramas urbanas es colocar a los textos que publica en el entramado de la demanda ciudadana pero a su vez, la demanda del libro en relación con esos autores es la de que entreguen un relato de vida. Los libros firmados por escritores de la periferia no presentan poemas o textos literarios, sino que cuentan la historia de cada uno de ellos. La propuesta de esta colección no consiste en un espacio de experimentación, sino que apunta a la presentación de historias particulares que dan cuenta de un universo colectivo, presentado como representable y con un sistema de significación complejo y propio. Se trata de una decisión que instala un punto de vista frente a los escritos periféricos: la condición de reciprocidad entre dichas producciones y un relato biográfico ligado al contexto, relato que, a su vez, funciona como eje desde el cual se narra.

Este posicionamiento apunta, a su vez, a un tipo de lector para los libros de esta colección, que igualmente se puede predecir desde su precio, que ronda los 30 reales. La historia de vida presentada en la colección Tramas Urbanas contrasta fuertemente con los datos biográficos que los escritores de la periferia escriben en textos publicados por ellos mismos. En estos casos, la referencia a la vida del autor se señala en pequeñas notas al pie de pocas líneas, donde se indica el barrio en el que vive, su trabajo, otros títulos de libros suyos y las actividades culturales en las que participa.


Se trata de pequeñas puntualizaciones que ayudan a un sujeto de experiencias similares a identificarse y a imaginar una comunidad. La historia de vida en Tramas Urbanas consiste, por el contrario, en un largo relato cargado de información, de explicaciones y de fotografías, que para un periférico resultarían redundantes, pero para un lector no nativo aportan a la comprensión de ese espacio. En el caso de la colección en cuestión, entonces, el foco de interés desde el cual se hace pública la cultura de la periferia, es su misma condición de “periférica”. Recordemos en este punto, como nota de color, que la palabra “interés” deriva de una construcción impersonal latina inter est, que significa “es diferente”. Y en este caso es la diferencia en lo que hace a la experiencia urbana lo que se vuelve un valor instrumental para que la editorial presente esta colección.

El acento en esta diferencia tiene su eco, a su vez, en la separación dentro de la editorial Aeroplano de la colección Tramas Urbanas. Es importante aclarar que esta división no se justifica desde cuestiones de género literario, sino que es la idea misma de periferia la que establece una distinción entre estos diez libros y el resto de los publicados por esta editorial. Si se toman en cuenta todos los libros que completan esta colección, se puede ver que no se centran solamente en escritores de la periferia, solamente dos se ocupan de ello. Otros tres refieren al movimiento del hip-hop, y uno al movimiento tecno. Dos remiten a la estética de ese espacio. También la categoría “violencia” interviene en los títulos, vinculada a la memoria de acontecimientos trágicos en el conjunto habitacional Vigário Geral. Finalmente, hay una referencia a la historia de un medio cultural alternativo.

La colección aparte dentro de la editorial Aeroplano se sostiene desde la consideración e interpretación de eventos articulados en el espacio urbano institucionalmente reconocido como “periférico”. No hay, en este sentido, un cuestionamiento desde el punto de vista territorial de la idea de “periferia”: lo que se cuenta ocurre en barrios pobres o favelas. Hay sí, de todos modos, una complejización de tal concepto a partir de la consideración de ese lugar desde procesos activos de creación que moldean un conocimiento histórico imposible de entenderse desde una estructura fija y previa.

En paralelo a esta formulación del concepto de periferia, se desprende una modulación particular del concepto de “cultura”, ya no tomada como modelo a alcanzar, sino como un conjunto que funciona, junto con la memoria, la comunicación y el habitus de la vida cotidiana, como parte de un proceso de constitución de un sujeto y, por extensión, de una comunidad. La noción que se articula de cultura aquí, en este sentido, más que trascendente es incluyente. Culturalización de particularidades, podríamos decir, sin búsquedas de formas comunes y sin pretensiones de integrar. Pero ¿qué diferencia hay entre integrar e incluir? ¿Por qué hablo de una cultura incluyente pero no integrativa? Como explica João Camillo Penna, las operaciones de integración son universalizantes, “(…) buscan homogeneizar la sociedad a partir del centro, en un marco nacional” (Penna, 2009: 173). En cambio, la inclusión considera las particularidades positivamente y sobre ellas desarrolla medidas transitorias (transitorias en tanto “(…) el remedio no intenta curar al enfermo, sino apenas mantenerlo convaleciente en la cama” (Penna, 2009: 173)). Frente al gesto de criminalizar la periferia, y, en consecuencia, considerarla como “marginal”, la política de inclusión, señala Penna, se activa básicamente desde la culturalización de la misma. La colección de Heloísa Buarque pretende, entonces, mostrar una culturalización de la vida sufriente que, a diferencia de la criminalización, anima al diálogo y, por lo tanto, a la inserción.

La posibilidad de diálogo es una de las afirmaciones más evidentes que establece la colección Tramas Urbanas. Y se plantea desde varios aspectos. En cuanto atendemos, por ejemplo, a los nombres de los autores, se puede ver que algunos de los que firman los libros no son de la periferia, sino que son artistas o académicos de origen social medio. La referencia a la periferia se propone, en este sentido, a partir de un diálogo entre voces de sujetos con vinculaciones diferentes en relación con ese lugar. El ejemplo más claro es el libro Vigário Geral, escrito en conjunto por una historiadora de clase media y un literato oriundo de un suburbio carioca y coordinador cultural del movimiento Afro Reagge.

No se trata, de todos modos, de una nivelación absoluta de las voces. Esto se puede comprender si prestamos atención a la reseña que tiene cada contratapa, en la que escriben rappers o escritores periféricos cuando se trata de autores del mismo origen, pero cuando no, como en el caso de Cidade Ocupada, libro escrito por un artista de clase media, quien reseña el libro es una reconocida voz de la academia ligada al cine y a las artes visuales, Ivana Bentes. En este sentido, se puede inferir que, si bien Tramas Urbanas remite a un diálogo entre periferia-academia, reconoce las agencias desde las que cada una de las voces se formó y actúa.

El diálogo a nivel de las voces se puede visualizar también en los aspectos gráficos del objeto libro. Si nos centramos en las tapas, por ejemplo, en cada uno de los diez ejemplares que conforman esta colección se advierte una especie de collage de imágenes, grafittis, papeles, colores que no coinciden con los propios de las fotografías, sino que están superpuestos. No hay pretensión alguna de proponer una imagen homogénea, sin pliegues ni superposiciones. Tampoco hay intención de señalar imágenes que pretendan documentar, es decir, mostrar una verdad, de ahí que las fotografías no mantengan su color original y que en su mayoría se muestren pixeladas. La propuesta de las tapas parece adelantar, más bien, una idea de periferia en tanto forma de elementos superpuestos y en diálogo.

El montaje de la tapa da cuenta, asimismo, de una propuesta de lectura, que se reitera en la separación entre capítulos. En esos casos, la titulación de cada parte ocupa dos páginas, en las que se lee el nombre en letras bien grandes, que muchas veces superan el espacio, por lo que aparecen cortadas, y en general con las palabras superpuestas, provocando un efecto 3 D, que, como tal, no solamente arrastra un efecto visual, sino también táctil y cinético. Así, el ojo del lector, habituado a las letras en sucesión y sin relieves ni matices, se enfrenta con sensaciones particulares, justamente al tomar el libro y también antes de empezar a leer cada capítulo.

Finalmente, en lo que hace a los aspectos gráficos, tanto dentro como fuera del libro aparece pequeño y completo, o bien de cerca y fragmentado, el logo de la colección: una especie de tejido que remite directamente a la palabra “Tramas”. En el nombre de la colección no resuena ninguna categoría relacionada al “arte” o a la “cultura”, sino más bien a la idea de artesanía, es decir, un producto hecho a mano que, parafraseando a Benjamin, está marcado por las huellas de los dedos de quien lo crea. En otras palabras, “tramas”, o, en español, “tejido” apunta a la relación entre el artesano y el objeto que trabaja, en consonancia con la reciprocidad historia de vida-escritura.

La palabra tejido remite, a su vez, al trabajo por medio de un material en crudo, vinculado directamente a las afirmaciones de los periféricos respecto de los materiales de sus producciones, como el habla de la calle en el caso de los escritores. Por ejemplo, dice el rapper Mano Brown en la contratapa del libro de Sergio Vaz: “Sergio Vaz é um cara diferenciado, um cara que trabalha na arte de garimpar matéria prima na quebrada: o ser humano e seus pensamentos. Ele usa como arma e instrumento, a humildade do malandro e a inteligencia, no momento certo e na hora certa.”. Tejido, entonces, como esa materia prima no mediada ni presentada como objeto de consumo.

La última frase de estas palabras de Mano Brown, nos trasladan a un tercer significado de “tramas”: a la idea de “conspiración”, es decir, de la unión de un grupo contra otro. Este aspecto resulta un punto fundamental, en tanto señala un elemento propio de los movimientos culturales de la periferia, el de la violencia. El llamar de “tramas” a esta colección asume que una categoría que problematizan estas producciones es ésa. Y efectivamente, todos los escritores de la periferia afirman la calificación de violentos que pesa sobre ellos, aunque la articulan a otro cuerpo: el lenguaje mismo (recordemos aquel “general de las palabras” que leímos al principio).

Finalmente, la palabra “trama”, según el diccionario, significa “relatos”, contextualizados en este caso en la “urbe”, y no en la periferia: llamativamente el adjetivo es “urbanas” y no “periféricas”, por lo que la atención se centra en los significados de rapidez, movimiento. Así, “tramas urbanas” abre también la idea de formaciones móviles y dificultosamente fosilizables, de ahí que no sea la palabra “historias” la que da nombre a la colección, que remitiría a cierto ordenamiento.

¿Qué se puede decir, por último, de la introducción sin firma que abre cada uno de los libros? En principio, que al leerla se comprende sin problemas que es la voz de Petrobrás la que articula esas palabras. Hay, entonces, junto a la voz de los intelectuales y la de los artistas, una tercera voz que participa en este diálogo. Desde una retórica del desarrollo y de la inclusión, esta empresa justifica su ayuda económica para la colección de libros: “A Petrobrás, maior empresa brasileira e maior patrocinadora das artes e da cultura em nosso pais, apóia essa coleção de livros. Entendemos que é de nossa responsabilidade social contribuir á inclusão cultural e o fortalecimento da cidadania que esse debate pode propiciar.”. La voz de Petrobrás es la que hace posible este tipo de producciones de diálogo intelectuales-periféricos, por medio de la ayuda económica. A partir de una “ética de la discriminación positiva”, como dice el antropólogo Renato Rosaldo, Petrobrás se posiciona como un puente para que la diferencia se incluya a la ciudadanía por medio de la cultura. Nuevamente, la vinculación de la idea de cultura con el programa de la inclusión. Pero hay más: la concepción de dicha categoría que se puede percibir en la palabra de Petrobrás se expande hacia la idea de cultura como medio para resolver problemas en pós de la ampliación de la idea de “ciudadanía” en la sociedad brasileña y hacia la idea de apuesta económica en función de ese propósito. En palabras de George Yúdice, se trata de la idea de “cultura” en tanto “recurso”, entendida como “(…) expediente para el mejoramiento tanto sociopolítico cuanto económico, es decir, para la participación progresiva en esta era signada por compromisos políticos declinantes, conflictos sobre la ciudadanía y el surgimiento de lo que Jeremy Rifkin denominó “capitalismo cultural”.” (Yúdice, 2002: 23). La cultura situada, entonces, entre un programa de justicia social y un programa económico.

En base a la palabra de Petrobrás, podría llegar a hipotetizarse que, al fin y al cabo, esta colección lo que termina siendo es una forma más para que las clases gerenciales saquen provecho, por medio de la retórica de la inclusión, de las producciones de los grupos periféricos. Pero este reduccionismo se complejiza y debilita al considerar que la voz de los periféricos no se articula solamente desde esta colección, sino que los libros de Tramas Urbanas son una forma más de modular la palabra periférica, en este caso en diálogo con voces intelectuales y con potenciales lectores de clase media. Esto se puede percibir claramente cuando, al final del libro, Sérgio Vaz dice: “Quando a Heloisa pediu que eu contasse um pouco da minha história e da Cooperifa, no começo eu não estava muito afim, por conta da minha memória um tanto quanto irresponsavel e mentirosa. Mas também não podia me furtar o direito de dividir com você essa história de luta em prol da cidadania através da literatura”. Ése primer “Heloisa me pediu” con el que comienza la cita es clave, dado que marca el papel activo del escritor de la periferia, en este caso, frente a las demandas desde el mundo letrado. Lo que se establece con la afirmación del pedido, la reflexión sobre el mismo y la aceptación es que no se trata de una operación consentida por los escritores en tanto única alternativa para la circulación de sus textos. A diferencia de las posibilidades inexistentes que Carolina de Jesus, autora de Quarto de despejo. Diário de uma favelada, tenía en relación con la publicación de sus escritos en los años 60, los escritores “en la favela” (y no “de la favela”, como suele aclarar Ferréz, uno de los más combatientes escritores del movimiento “literatura marginal”) han llevado a cabo en los últimos años un gran número de cooperativas editoriales y medios alternativos para que sus textos circulen y sean accesibles.

Escribir un libro para la colección Tramas Urbanas es una operación más dentro de la “historia de lucha em prol da cidadania”. Es un “arma” en contra de la criminalización de sus vidas y en pos de la culturalización de las mismas. Más que una “culturalización de la vida sufriente”, que es la operación que se hace desde la colección, los escritores apuntan a una “culturalización del ciudadano sufriente” . En este triple agenciamiento –el de los letrados, empresas y escritores de la periferia- se complejiza la operación de la culturalización como escenario de debate.

Esta operación “bélica” de los escritores consta de dos pasos: una subjetivación del sujeto periférico por medio de la escritura, y una objetivación de ésta, por medio del libro. El “aura” del objeto libro, defendida por los “letrados”, es reafirmada en este caso por y frente a los escritores de la periferia urbana. Así, ese antiguo lazo entre los discursos y la materialidad, que la revolución digital hace tiempo está empezando a quebrar, se renueva a la hora de leer una voz contextualizada en la periferia. Pero la diversidad en las formas de presentar ese objeto obliga a la revisión de los gestos y las nociones que nuestros ojos, aquellos “órganos de la tradición”, según el principio de Boas, asocian con lo escrito. En este sentido, la colección Tramas Urbanas da cuenta de que frente a este tipo de escrituras periféricas es necesario revisar los modos de leer y, en consecuencia, los modos de hacer crítica.

BIBLIOGRAFIA

Foucault, Michel, Microfísica del poder, Madrid, Ediciones La Piqueta, 1992

Hollanda, Heloísa Buarque, 26 poetas hoje, 2da edição, Rio de Janeiro, Aeroplano Editora, 1998

———————————–, “Coleção Tramas Urbanas lança livro sobre movimento literário da periferia paulistana”, en Revista Raiz, São Paulo, 12 setembro 2008

Penna, João Camillo, “Criminalización y culturalización de la pobreza”, en Revista Confines, Buenos Aires, número 23, abril de 2009: pp. 169-179

Yúdice, George, El Recurso de la cultura, Barcelona, Editorial Gedisa, 2002

 

Radicais, Raciais, Racionais: a grande fratria do rap na periferia de São Paulo. Violência e Mal Estar na Sociedade | de Maria Rita Kehl

Comício do Partido dos Trabalhadores, dia 1º de maio de 1999. Tem mais gente do que no ano passado, ou retrasado, mas a diferença não é muito significativa. O que chama a atenção é a presença de um outro tipo de gente, um “público” diferente da militância petista que já se pode chamar de tradicional, 18 anos depois. São jovens das periferias de São Paulo. A caracterização é clara. Olha-se para eles e se vê que não vieram dos sindicatos, das comunidades católicas, da base organizada de alguns deputados, da militância feminista. Esta moçada usa boné, bermudas largas, moletons imensos, cabelo raspado e óculos escuros. São escuros também, a grande maioria. Estão atentos, um pouco tensos, impacientes, mas nada agressivos. Escutam os discursos (sempre os mesmos, sempre chatos, com exceção das falas vivas do Lula e do Vicentinho), aplaudem, vaiam, repetem algumas palavras de ordem. O clima é pacífico e ordeiro, contrariando preconceitos da classe média branca. Alguns garotos sobem nas janelas do prédio dos Correios para ver melhor; um vitrô abre sozinho, pode-se presentir uma invasão, mas não: os próprios meninos se encarregam de fechar o vidro e continuam equilibrados perigosamente, assistindo a tudo lá do alto.

Quando o animador do comício anuncia a apresentação de alguns grupos de rap, encerrando com os Racionais MC’s, dá para entender a presença da moçada: são os manos. O grande exército dos fãs dos Racionais. Vale falar em fãs, no caso deles? Não, com certeza deve haver um termo que indique outro tipo de interação entre a multidão de jovens pobres e os grupos de rap que os representam. É como se cada um deles se considerasse um rapper em potencial, capaz de contar sua vida no ritmo repetitivo e opressivo, nas rimas obrigatórias, às vezes preciosas, às vezes brutais, executando a dança que não autoriza alegria nenhuma, sensualidade nenhuma — disto que nasceu na periferia de algumas cidades americanas como rhythm and poetry e se espalhou pelo Brasil, partindo de São Paulo, é claro: a mais opressiva das cidades brasileiras.

Há 17 anos, a grande festa petista de encerramento da campanha da primeira candidatura do Lula em 1982, daquela vez ao governo de São Paulo, contou com a presença estranha, espontânea, não necessariamente politizada, mas talvez em busca de alternativas, de vários punks da periferia. Sem liderança, desorganizados, os punks fizeram um certo “turismo revolucionário” em volta do PT, que não sabia o que fazer com eles. Seis anos depois, num melancólico e esvaziado 1º de maio de 1988 na praça da Sé, via-se um grupo de punks, já então aderidos a um patético neonazismo, cruzar a praça em atitude ameaçadora, procurando briga. Viraram inimigos da esquerda, truculentos, racistas. Buscaram reconhecimento — isto que todo jovem busca, mas que os pobres precisam lutar muito mais para obter — identificando-se com o opressor. Arrogância, racismo, violência física; os punks marcaram sim sua presença na cidade, mas não foram capazes de superar a condição subjetiva de sua alienação. Tudo o que conseguiram fazer foi passar adiante, para cima de outros garotos ainda mais frágeis do que eles, a humilhação que se recusavam (com razão) a sofrer.

Agora é diferente. A esquerda talvez ainda não saiba o que fazer, ou o que propor, para os milhares de rappers que, liderados pelo Mano Brown, parecem interessados em radicalizar um discurso contundente de oposição. Mas os “manos” têm uma idéia um pouco mais precisa de sua revolução, a começar pelas armas: sua palavra em primeiro lugar. Em seguida, sua “consciência”, sua “atitude” — expressões empregadas insistentemente nas letras dos Racionais, e que em termos gerais significam: orgulho da raça negra e lealdade para com os irmãos de etnia e de pobreza. Sabem para quem estão falando, e sabem sobretudo de onde estão falando: “Mil novecentos e noventa e três, fodidamente voltando, Racionais/ usando e abusando de nossa liberdade de expressão/ um dos poucos direitos que um jovem negro ainda tem neste país./ Você está entrando no mundo da informação/ autoconhecimento, denúncia e diversão./ Este é o raio-X do Brasil, seja bem vindo” (“Fim de semana no parque” — Mano Brown e Edy Rock).

Os quatro jovens integrantes do grupo — Mano Brown, Ice Blue, KL Jay e Edy Rock —, apesar das 500 mil cópias vendidas do último CD, Sobrevivendo no inferno, recusam qualquer postura de pop-star. Para eles, a questão do reconhecimento e da inclusão não se resolve através da ascensão oferecida pela lógica do mercado, segundo a qual dois ou três indivíduos excepcionais são tolerados por seu talento e podem mesmo se destacar de sua origem miserável, ser investidos narcisicamente pelo star system e se oferecer como objetos de adoração, de identificação e de consolo para a grande massa de fãs, que sonham individualmente com a sorte de um dia também virarem exceção. Os integrantes dos Racionais apostam e concedem muito pouco à mídia. “Não somos um produto, somos artistas”, diz KL Jay em entrevista ao Jornal da Tarde (5/8/98), explicando por que se recusam a aparecer na Globo (uma emissora que apoiou a ditadura militar “e que faz com que o povo fique cada vez mais burro”) e no SBT (“Como posso ir ao Gugu se o programa dele só mostra garotas peladas rebolando ou então explorando o bizarro”?). Até mesmo o rótulo de artista é questionado, numa recusa a qualquer tipo de “domesticação”. “Eu não sou artista. Artista faz arte, eu faço arma. Sou terrorista” (Mano Brown).

O tratamento de “mano” não é gratuito. Indica uma intenção de igualdade, um sentimento de fratria, um campo de identificações horizontais, em contraposição ao modo de identificação/dominação vertical, da massa em relação ao líder ou ao ídolo. As letras são apelos dramáticos ao semelhante, ao irmão: junte-se a nós, aumente nossa força. Fique esperto, fique consciente — não faça o que eles esperam de você, não seja o “negro limitado” (título de uma das músicas de Brown) que o sistema quer, não justifique o preconceito dos “racistas otários” (título de outra música). A força dos grupos de rap não vem de sua capacidade de excluir, de colocar-se acima da massa e produzir fascínio, inveja. Vem de seu poder de inclusão, da insistência na igualdade entre artistas e público, todos negros, todos de origem pobre, todos vítimas da mesma discriminação e da mesma escassez de oportunidades. Antes dos Racionais, muitos grupos se apresentaram no Anhangabaú neste 1º de maio. A impressão que se tinha é que eram todos protegidos dos manos mais velhos, que aceitaram tocar sob condição de abrir espaço para os menos conhecidos. Quando um começo de vaia recebeu a apresentação do Apocalypse 16, os meninos não se intimidaram. Com voz de criança, o líder desta banda cujos componentes não aparentam mais do que 14, 15 anos, chamou a atenção da platéia, conclamou à união, à “atitude consciente”, lembrou que eram todos manos; calou a vaia e terminou seu pequeno discurso com: “Apocalypse 16, armados de consciência!” — depois tocaram. Sem muito sucesso, mas tocaram.

Os rappers não querem excluir nenhum garoto ou garota que se pareça com eles.

“Eu sou apenas um rapaz latino-americano/ apoiado por mais de cinqüenta mil manos/ efeito colateral que o seu sistema fez”, canta Mano Brown, líder dos Racionais (“Capítulo 4, Versículo 3”.) À diferença das bandas de rock pesado, não oferecem a seu público o gozo masoquista de ser insultados por um pop-star milionário fantasiado de outsider. A designação “mano” faz sentido: eles procuram ampliar a grande fratria dos excluídos, fazendo da “consciência” a arma capaz de virar o jogo da marginalização. “Somos os pretos mais perigosos do país e vamos mudar muita coisa por aqui. Há pouco ainda não tínhamos consciência disso” (KL Jay).

A que perigo Jay se refere? A julgar por algumas declarações à imprensa e a maior parte das faixas dos CDs dos Racionais, há uma mudança de atitude, partindo dos rappers e pretendendo modificar a auto-imagem e o comportamento de todos os negros pobres do Brasil: é o fim da humildade, do sentimento de inferioridade que tanto agrada à elite da casa grande, acostumada a se beneficiar da mansidão — ou seja: do medo — de nossa “boa gente de cor”. “Quando vocês falam com um cara, o que esperam que aconteça depois?” (Raça) — Brown: “Levantar a cabeça, perder o medo e encarar. Se tomar um soco, devolve”. “E o que aconteceria (Raça) se todo negro da periferia agisse assim?” — “O Brasil ia ser um país mais justo”. As mensagens dos Racionais para o pessoal que ouve e compra seus CDs são as seguintes: “Gostaria que eles se valorizassem e gostassem de si mesmos” (Mano Brown); “Ideologia e autovalorização” (KL Jay); “Dignidade deve ser o seu lema” (Ice Blue); “Que escutem os Racionais, é lógico; E paz!”(Edy Rock) (entrevista para DJ Sound n.15, 1991).

Eles apelam para a consciência de cada um, para mudanças de atitude que só podem partir de escolhas individuais; mas a autovalorização e a dignidade de cada negro, de cada ouvinte do rap, depende da produção de um discurso onde o lugar do negro seja diferente do que a tradição brasileira indica. Daí a diferença entre os Racionais e outro jovem músico negro, outro Brown, este baiano. “Tem gente que fala que o rap de São Paulo é triste (Raça). O Carlinhos Brown falou que isto é não saber reinar sobre a miséria” — Mano Brown: “Na Bahia os caras têm que esconder a miséria que é pro turista vir, pra dar dinheiro pros caras lá, inclusive o Carlinhos Brown. São Paulo não é um ponto turístico. E esse negócio de reinar sobre a miséria, você não pode é aceitar a miséria. Mas acho válido o que ele faz pela sua comunidade.”

Acontece que os Racionais não estão interessados nem em reinar sobre a miséria (o que seria isto? uma forma mais sedutora de dominação?), nem em esconder a miséria para inglês ver. Seu público-alvo não é o turista — são os pretos pobres como eles. Não, eles não excluem seus iguais, nem se consideram superiores aos anônimos da periferia. Se eles excluem alguém, sou eu, é você, consumidor de classe média — “boy”, “burguês”, “perua”, “babaca”, “racista otário” — que curtem o som dos Racionais no toca-CD do carro importado “e se sente parte da bandidagem” (KL Jay). Ou seja: não estão vendendo uma fachada de malandragem para animar o tédio dos jovens de classe média.

Assim, fica difícil gostar deles não sendo um(a) deles. Mais difícil ainda falar deles. Eles não nos autorizam, não nos dão entrada. “Nós” estamos do outro lado. Do lado dos que têm tudo o que eles não têm. Do lado dos que eles invejam, quase declaradamente, e odeiam, declaradamente também. Mas, sobretudo, do lado dos que eles desprezam.

Como gostar desta música que não se permite alegria nenhuma, exaltação nenhuma? Como escutar estas letras intimidatórias, acusatórias, freqüentemente autoritárias, embaladas pelo ritmo que lembra um campo de trabalhos forçados ou a marcha dos detentos ao redor do pátio, que os garotos dançam de cabeça baixa, rosto quase escondido pelo capuz do moleton e os óculos escuros, curvados, como se tivessem ainda nos pés as correntes da escravidão? Por onde se produz a identificação através de um abismo de diferenças, que faz com que adolescentes ricos ouçam e (por que não?) entendam o que estão denunciando os Racionais, e uma mulher adulta de classe média receba a bofetada violenta do rap não como um insulto mas como um desabafo compartilhado, não como uma provocação pour épater, mas como uma denúncia que a compromete imediatamente com eles?

Se eles não me autorizam, vou ter que forçar a entrada. A identificação me facilita as coisas; aposto no espaço virtual, simbólico, e portanto inesgotável, da fratria e me passo para o lado dos manos, sem esquecer (nem poderia) a minha diferença — é de um outro lugar, do “meu” lugar, que escuto e posso falar dos Racionais MC’s. É porque eles falam diretamente não apenas à minha má consciência de classe média esquerdista, mas ao mal-estar que sinto por viver num país que reproduz diariamente, numa velocidade de linha de montagem industrial, a violenta exclusão de milhares de jovens e crianças que, apesar dos atuais discursos neoliberais que enfatizam a competência e o esforço individual, não encontram nenhuma oportunidade de sair da marginalização em que se encontram. Milhares de crianças e jovens cujas vidas correm o risco de ser apenas o “efeito colateral que o seu (meu!) sistema fez” (“Cap. 4, Versículo 3” — Mano Brown). É a capacidade de simbolizar a experiência de desamparo destes milhões de periféricos urbanos, de forçar a barra para que a cara deles seja definitivamente incluída no retrato atual do país (um retrato que ainda se pretende doce, gentil, miscigenado), é a capacidade de produzir uma fala significativa e nova sobre a exclusão, que faz dos Racionais MC’s o mais importante fenômeno musical de massas do Brasil dos anos 90.

A FRATRIA ÓRFÃ

60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já
sofreram violência policial. A cada 4 pessoas mortas pela polícia,
3 são negras. Nas universidades brasileiras, apenas
3% dos alunos são negros. A cada 4 horas, um jovem
negro morre violentamente em São Paulo.

Brown, Cap. 4, Versículo 3

Quem prestar atenção nas letras quilométricas do rap, provavelmente vai se sentir mal diante do tom com que são proferidos estes discursos. É um tom que se poderia chamar de autoritário, mistura de advertência e de acusação. A voz do cantor/narrador dirige-se diretamente ao ouvinte, ora supondo que seja outro mano — e então avisa, adverte, tenta “chamar à consciência” —, ora supondo que seja um inimigo —, e então, sem ambigüidades, acusa. Diante de uma voz assim tão ameaçadora, de um discurso que nos convida a “trocar uma idéia” mas não troca nada, não negocia nada de seu ponto de vista e de sua posição (posição sempre moral, mas não necessariamente moralista — veremos), cabe ao ouvinte indagar: mas como ele se autoriza? Quem ele pensa que é?

O Brasil é um país que se considera, tradicionalmente, órfão de pai. Não prezamos nossos antepassados portugueses; não respeitamos uma elite governante que não respeita nem a lei, nem a sociedade, nem a si mesma; não temos grandes heróis entre os fundadores da sociedade atual, capazes de fornecer símbolos para nossa auto-estima. Nossa passagem do “estado de natureza” (que é como, erradamente, simboliza-se as culturas indígenas) ao “estado de cultura” não se deu com a chegada de um grupo de puritanos trazendo o projeto de fundar uma comunidade religiosa, como no caso dos Estados Unidos, mas pelo despejo, nessas terras, de um bando de degredados da Coroa portuguesa. Não vieram para civilizar, mas para usufruir e principalmente, usurpar. Pelo menos é assim que se interpreta popularmente, com boa dose de ironia, a chegada dos portugueses ao Brasil.1 Fundou-se assim o mito da “pátria-mãe gentil” (que Caetano Veloso acertadamente chamou “mátria”, pedindo a seguir: “quero fratria”!) que tudo autoriza, tudo tolera, “tudo dá”.

É óbvio que o mito da abundância fácil produziu exploração, concentração de riquezas numa escala que nos coloca em primeiro lugar no ranking da vergonha mundial e miséria. É óbvio que a orfandade simbólica produziu não uma ausência de figuras paternas, mas um excesso de pais reais, abusados, arbitrários e brutais como o “pai da horda primitiva” do mito freudiano. O que falta à sociedade brasileira não é mais um painho mandão e pseudo protetor (vide ACM, Getúlio, Padre Cícero, etc.), mas uma fratria forte, que confie em si mesma, capaz de suplantar o poder do “pai da horda” e erigir um pai simbólico, na forma de uma lei justa, que contemple as necessidades de todos e não a voracidade de alguns.

Mas, numa sociedade acostumada ao paternalismo autoritário, também para as formações fraternas, em sua função criadora de significantes e de cidadania, coloca-se uma questão: como evitar que, do ato de coragem coletivo que elimina a antiga dominação do pai onipotente e institui um novo pacto civilizatório, produza-se um novo usurpador na figura do herói? Por outro lado, como manter, na ausência do herói concentracionário da fala coletiva (lembrar Roland Barthes: “o mito é uma fala roubada”), um discurso consistente que suporte e legitime as formações sociais produzidas na horizontalidade das relações democráticas? Como sustentar, na expressão de Jacques Rancière, a “letra órfã”, as novas formas de linguagem produzidas nas trocas horizontais e que tentam comunicar, de um semelhante a outro, experiências que façam sentido, que produzam valor, que sugiram um “programa mínimo” para uma ética da convivência?

As falas dos Racionais oscilam; passam do lugar comunitário dos manos ao lugar do herói exemplar, escorregando dali para o lugar da autoridade, falando em nome de um “pai” que sabe mais, que pode aconselhar, julgar, orientar. Por que “Racionais”? — perguntou o repórter da revista Raça. Edy Rock responde: “Vem de raciocínio, né? Um nome que tem a ver com as letras, que tem a ver com a gente. Você pensa pra falar.” (grifo nosso). Brown: “Naquela época o rap era muito bobo. Rap de enganar, se liga, mano? Não forçava a pensar”. Mais adiante, Brown (respondendo a uma questão de por que o rap é político): “Você já nasceu preto, descendente de escravo que sofreu, filho de escravo que sofreu, continua tomando ‘enquadro’ da polícia, continua convivendo com drogas, com tráfico, com alcoolismo, com todos os baratos que não foi a gente que trouxe pra cá. Foi o que colocaram pra gente. Então não é uma questão de escolha, é que nem o ar que você respira. Então o rap vai falar disso aí, porque a vida é assim.”

Vejamos um dos muitos trechos de letras que ilustram esta dupla inscrição do sujeito, que, por um lado, “pensa pra falar” — produz uma fala própria, destacada dos discursos do Outro —, mas, por outro lado, não poderia falar de outra coisa, “porque a vida é assim”, ou seja, não confunde sua autonomia pensante e crítica com uma arbitrariedade de referências, como o delírio de auto-suficiência típico da alienação subjetiva das sociedades de consumo. O distanciamento necessário para se pensar antes de falar vem de um mergulho na própria história (“somos descendentes de escravo que sofreu…”) e de uma aceitação ativa, não conformista, da própria condição, do pertencimento a um lugar e uma coletividade que, ao mesmo tempo que fortalece os enunciados, recorta um campo a partir de onde o sujeito pode falar, dificultando o escape na direção de fantasias de adesão a fórmulas imaginárias de aliciamento ou de consolação.

“Eu não sei se eles/ estão ou não autorizados/ a decidir o que é certo ou errado/ inocente ou culpado retrato falado/ não existe mais justiça ou estou enganado? Se eu fosse citar o nome de todos os que se foram/ o meu tempo não daria para falar mais…/ e eu vou lembrar que ficou por isso mesmo/ e então que segurança se tem em tal situação/ quantos terão que sofrer pra se tomar providência/ ou vão dar mais um tempo e assistir a seqüência/ e com certeza ignorar a procedência./ O sensacionalismo pra eles é o máximo/ acabar com delinqüentes eles acham ótimo/ desde que nenhum parente ou então é lógico/ seus próprios filhos sejam os próximos (…) Ei Brown, qual será a nossa atitude?/ A mudança estará em nossa consciência/ praticando nossos atos com coerência/ e a conseqüência será o fim do próprio medo/ pois quem gosta de nós somos nós mesmos/ tipo, porque ninguém cuidará de você/ não entre nessa à toa/ não dê motivo pra morrer/ honestidade nunca será demais/ sua moral não se ganha, se faz/ não somos donos da verdade/ por isso não mentimos/ sentimos a necessidade de uma melhoria/ nossa filosofia é sempre transmitir/ a realidade em si/ Racionais MC’s” (“Pânico na zona Sul”).

Nos últimos versos de “Júri Racional” o grupo condena um negro “otário” que “se passou para o outro lado”, recusando a identificação com os manos em troca da aceitação dos playboys.

“Eu quero é devolver nosso valor, que a outra raça tirou./ Esse é meu ponto de vista. Não sou racista, morou?/ E se avisaram sua mente, muitos de nossa gente/ mas você, infelizmente/ sequer demonstra interesse em se libertar./ Essa é a questão, autovalorização/esse é o título da nossa revolução./ Capítulo 1:/ O verdadeiro negro tem que ser capaz/ de remar contra a maré, contra qualquer sacrifício./ Mas no seu caso é difícil: você só pensa no próprio benefício./ Desde o início, me mostrou indícios/ que seus artifícios são vícios pouco originais/ artificiais, embranquiçados demais./ Ovelha branca da raça, traidor! Vendeu a alma ao inimigo, renegou sua cor” Refrão: “Mas nosso júri é racional, não falha/ por quê? não somos fãs de canalha! Conclusão: “Por unanimidade/ o júri deste tribunal declara a ação procedente/ e considera o réu culpado/ por ignorar a luta dos antepassados negros/ por menosprezar a cultura negra milenar/ por humilhar e ridicularizar os demais irmãos/ sendo instrumento voluntário do inimigo racista./ Caso encerrado”.

O viés autoritário desses versos, a nosso ver, tem pelo menos três determinantes. Primeiro, a certeza de que uma causa coletiva está em jogo. Trata-se de estancar o derramamento de sangue de várias gerações de negros, de barrar a discriminação sem recusar a marca originária. Nada de abaixar a cabeça, fazer o “preto de alma branca” que a elite sempre apreciou. Trata-se de produzir “melhoria” na vida da periferia. Mas para isto — aí vem a segunda razão — é necessário “transmitir a realidade em si”. Isto porque a maior ameaça não vem necessariamente da violência policial, nem da indiferença dos “boys”. Vem da mistificação produzida pelos apelos da publicidade, pela confusão entre consumidor e cidadão que se estabeleceu no Brasil neoliberal, que fazem com que o jovem da periferia esqueça sua própria cultura, desvalorize seus iguais e sua origem, fascinado pelos signos de poder ostentados pelo burguês. É aí, dizem as letras de Brown, que ele se perde:

“Você viu aquele mano na porta do bar/ ele mudou demais de uns tempos pra cá/ cercado de uma pá de tipo estranho/ que promete pra ele o mundo dos sonhos./ Ele está diferente, não é mais como antes/ agora anda armado a todo instante/ não precisa mais dos aliados/ negociantes influentes estão ao seu lado./ Sua mina apaixonada, linda e solidária/ perdeu a posição, ele agora tem várias… (…) Ascenção meteórica, contagem numérica/ farinha impura, o ponto que mais fatura/ um traficante de estilo, bem peculiar/ você viu aquele mano na porta do bar?” (…) “A lei da selva é assim, predatória/ clic, clec, BUM, preserve sua glória/ transformação radical, estilo de vida/ ontem sossegado, e tal/ hoje homicida/ ele diz que se garante e não tá nem aí/ usou e viciou a molecada daqui”… (“Mano na porta do bar” — Brown e Rock).

Aqui entra a terceira determinação, que justifica que o discurso predominantemente moral dos Racionais não se confunda com moralismo, já que não fala em nome de nenhum valor universal, além da preservação da própria vida. O tom autoritário das letras está avisando os manos: onde reina a “lei da selva” a pena de morte já está instalada, sem juízo prévio. Diante da vida sempre ameaçada, não se pode vacilar.

“Você está vendo o movimento na porta do bar?/ tem muita gente indo pra lá, o que será? /(…) Ouço um moleque dizer, mais um cuzão da lista/ dois fulanos numa moto, única pista/ eu vejo manchas no chão, eu vejo um homem ali/ é natural para mim, infelizmente./ A lei da selva é traiçoeira, surpresa/ hoje você é o predador, amanhã é a presa./ Já posso imaginar, vou confirmar/ me aproximei da multidão e obtive a resposta/ você viu aquele mano na porta do bar?/ ontem ele caiu com uma rajada nas costas”…

O terror, e não o poder, dá o tom exasperado a essas falas. O crime e a droga são uma tentação enorme, agravada ainda pela falta de alternativas. O rap não oferece, evidentemente, nenhuma saída material para a miséria; também não aposta na transgressão como via de auto-afirmação, como é comum entre os jovens de classe média (exemplo disso é o sucesso do grupo Planet Hemp). Muito menos no confronto direto com a principal fonte de ameaças contra a vida dos jovens, que a julgar pelo rap, é a própria polícia. Conformismo ou sabedoria? Provavelmente um pouco de cada um, se é que se pode considerar conformista o ceticismo dos manos quanto à possibilidade de enfrentamento com as instituições policiais no Brasil. O que o rap procura promover são algumas atitudes individuais fundamentadas numa referência coletiva. “Se eu fosse aquele cara que se humilha no sinal/ por menos de um real, minha chance era pouca/ mas se eu fosse aquele moleque de touca/ que engatilha e enfia o cano dentro de sua boca/ de quebrada, sem roupa, você e sua mina/ um, dois, nem me viu! já sumi na neblina./ Mas não! permaneço vivo, eu sigo a mística/ 27 anos contrariando a estatística (grifo nosso)./ Seu comercial de TV não me engana/ eu não preciso de status, nem fama./ Seu carro e sua grana já não me seduz/ e nem a sua puta de olhos azuis./ Eu sou apenas um rapaz latino-americano/apoiado por mais de cinqüenta mil manos (grifo nosso)/ efeito colateral que seu sistema produz…” (“Capítulo 4, Versículo 3”).

FUNÇÃO DO PAI, INVENÇÕES DOS MANOS

Os “cinqüenta mil manos” produzem um apoio — mas onde está um pai? Qual o significante capaz de abrigar uma lei, uma interdição ao gozo, quando a única compensação é o direito de continuar, “contrariando as estatísticas”, a lutar pela sobrevivência? Surpreendentemente, Mano Brown “usa” Deus para fazer esta função. Embora em nenhum momento fale em nome de igreja nenhuma, Deus é lembrado — mas para quê? “Irmão, o demônio fode tudo ao seu redor/ pelo rádio, jornal, revista e outdoor./ Te oferece dinheiro, conversa com calma/ contamina seu caráter, rouba sua alma/ depois te joga na merda sozinho,/ transforma um preto tipo A num neguinho./ Minha palavra alivia sua dor,/ ilumina minha alma, louvado seja o meu Senhor/ que não deixa o mano aqui desandar,/ ah, nem sentar o dedo em nenhum pilantra./ Mas que nenhum filho da puta ignore a minha lei./ (“Capítulo 4, Versículo 3”).

Deus é lembrado como referência que “não deixa o mano aqui desandar”, já que todas as outras referências (“rádio, jornal, revista e outdoor”) estão aí para “transformar um preto tipo A num neguinho”. Deus é lembrado como pai cujo desejo indica ao filho o que é ser um homem: um “preto tipo A”. Pela primeira vez, fez sentido para mim a frase “Jesus te ama”, que vejo freqüentemente colada nos vidros dos carros (embora naqueles casos, a meu ver, o sentido propagandístico, voltado ao aliciamento e à domesticação do outro, predomine sobre o sentido de auto-ajuda da utilização de Deus feita por Mano Brown); pois é preciso que o Outro me ame, para que eu possa me amar. É preciso que o Outro aponte, a partir do seu desejo (que não se pode conhecer, mas a cultura não cessa de produzir pistas para que se possa imaginar), um lugar de dignidade, para que o sujeito sinta-se digno de ocupar um lugar.

Não me atrevo a interpretar a religiosidade pesssoal, íntima, dos componentes do grupo. Mas sugiro que o Senhor que aparece em alguns destes raps (junto com os Orixás! ver “A fórmula mágica da paz” — Mano Brown: “agradeço a Deus e aos Orixás/ parei no meio do caminho e olhei para trás”), além de simbolizar a Lei, tem a função de conferir valor à vida, que para um mano comum “vale menos que o seu celular e o seu computador” (“Diário de um detento”, Brown e Jocenir, este último prisioneiro da casa de Detenção de São Paulo). No que depender da lei dos homens, estes jovens já estão excluídos, de fato, até do programa mínimo da Declaração dos Direitos do Homem. A alternativa simbólica moderna, imanente, a Deus, seria “a sociedade” — esta outra entidade abstrata, abrangente, que deveria simbolizar o interesse comum entre os homens, a instância que “quer” que você seja uma pessoa de bem, e em troca lhe oferece amparo, oportunidades e até algumas alternativas de prazer.

A sociedade — temos mais de 200 anos de Iluminismo nas costas! Mas será que o Iluminismo alguma vez falou para a ralé? — é uma instância superior a Deus do ponto de vista da emancipação dos homens, já que existe no reino deste mundo, organizada a partir — supõe-se — das necessidades e acordos estabelecidos entre semelhantes, e maleável na medida das transformações destas necessidades. Mas, do ponto de vista dos manos, a sociedade é hostil ou, no mínimo, indiferente. A sociedade “não se importa”, não vai alterar seu sistema de privilégios para incluir e contemplar os direitos deles. A regressão (do ponto de vista filosófico) a Deus faz sentido, num quadro de absurda injustiça social, considerando-se que a outra alternativa é a regressão à barbárie.

Vale lembrar — estarei sendo otimista, interpretando a partir de meu próprio desejo? — que o Deus de Brown não produz conformismo, esperança numa salvação mágica, desvalorização desta vida em nome de qualquer felicidade eterna. Deus está lá como referência simbólica, para “não deixar desandar” a vida desses moços nada comportados que falam numa revolução aqui na terra mesmo (“Deus está comigo, mas o revólver também me acompanha.” Ice Blue ao JT, s/d) e lembram sempre: “Quem gosta de nós somos nós mesmos” (“Pânico na Zona Sul”).

Mas que não se confunda este “gostar de nós” com uma afirmação de auto-suficiência, de um individualismo que só se sustenta (imaginariamente!) nos casos em que é possível se cumprir as condições impostas pela sociedade de consumo — a posse de bens cuja função é obturar as brechas da “fortaleza narcísica” do eu, a alienação própria da posição do “senhor”, que não lhe permite enxergar sua dependência quanto ao trabalho do “escravo”, e a disponibilidade do dinheiro como fetiche capaz de velar, para o sujeito, a consciência de seu desamparo. O mandato “goste de você” emitido pelos Racionais não poderia ser uma incitação ao individualismo mesmo se quisesse, já que estas condições estão muito longe de se cumprir dada a situação de permanente desamparo e falta no real, da vida na periferia — a não ser, é claro, em sua face bárbara, a do tráfico e consumo de drogas.

O traficante representa, nas letras de Brown e Edy Rock, a face bárbara do individualismo burguês: o cara que não está nem aí pra ninguém, que só defende o dele, que não tem escrúpulos em viciar a molecada, expor crianças ao perigo fazendo avião para eles. A outra face é a do otário, o “negro limitado” (título de música — Brown e Rock), a quem falta “postura”, “atitude”, que se ilude pensando que pode se destacar entre seus semelhantes recusando a raça, etc. “Não quero ser o mais certo/ e sim o mano esperto”, responde Brown ao mano “limitado”. Mais uma vez, uma postura moral se funda sobre a ameaça extrema do extermínio. O “mano esperto” é o que sabe que a opção da alienação — que na miséria da periferia precisa da droga para se sustentar — está sujeita à pena de morte, à lei da selva da polícia brasileira ou destes capitalistas selvagens que são os donos do tráfico: “A segunda opção é o caminho mais rápido/ e fácil, a morte percorre a mesma estrada, é/ inevitável./ Planejam nossa restrição, esse é o título/ da nossa revolução, segundo versículo/ leia, se forme, se atualize, decore/ antes que racistas otários fardados de cérebro atrofiado/ os seus miolos estourem e estará tudo acabado./ Cuidado!/ O Boletim de Ocorrência com seu nome em algum livro/ em qualquer arquivo, em qualquer distrito/ caso encerrado, nada mais que isso” (“Negro Limitado”).

A insignificância da vida, o vazio que nossa passagem pelo mundo dos vivos vai deixar depois de nossa morte — nós que apostamos sempre em marcar nossa presença deixando uma obra, uma palavra, uma lembrança imortal —, isto que a psicanálise aponta como a precariedade da condição humana e que um neurótico de classe média precisa trabalhar tanto para suportar, estão dados no dia-a-dia, na concretude da vida no “inferno periférico”(Edy Rock) de onde eles vêm. Portanto, a possibilidade do delírio narcísico-individualista está excluída, a não ser que se encare as conseqüências da opção pelo crime. “Não tava nem aí, nem levava nada a sério/ admirava os ladrão e os malandro mais velho/ mas se liga, olhe ao redor e diga/ o que melhorou da função, quem sobrou, sei lá/ muito velório rolou de lá pra cá/ qual a próxima mãe a chorar/ já demorou mas hoje eu posso compreender/ que malandragem de verdade é viver (grifo nosso)/ Agradeço a Deus e aos Orixás/ parei no meio do caminho e olhei para trás”… (“Fórmula Mágica da Paz”— Mano Brown).

A outra opção — a primeira, aliás, nos versos da música “Negro Limitado” — é o apelo ao outro como parceiro na construção de outras referências, na invenção de espaços simbólicos que possibilitem alguma independência em relação à sedução do circuito crime-consumismo-extermínio. Assim, o “goste de você” não soa como comando ao isolamento, a um fechar-se sobre si mesmo como resposta para todos os problemas. Ao contrário, a frase soa como apelo ao outro para que reconheça e valorize a semelhança entre eles.

O apelo ao reconhecimento é geralmente endereçado ao pai. O irmão, o semelhante, será destinatário deste apelo apenas quando o pai dá as costas? Pensamos que não; o reconhecimento paterno, fundamental para que o sujeito constitua uma certeza imaginária sobre “quem ele é” (para o desejo do pai), pode gerar também um aprisionamento narcísico. O sujeito só começa a se mover de sua posição no triângulo edípico, entre o olhar da mãe que seduz e o do pai que interdita e se oferece à identificação (e ao ideal), quando da entrada de um outro, um irmão (consangüíneo ou não), que abre para a alteridade, para a constatação, em espelho, de sua própria insignificância; mas também para a infinidade de possibilidades subjetivas que se abrem ante a descoberta da semelhança na diferença.

O outro funciona também como parceiro e cúmplice nas moções de transgressão em relação à interdição paterna — e então, de duas, uma. Ou a interdição não se sustenta mais — pense-se no caso de um pai perverso, por exemplo, capaz de manter uma posição autoritária, mas incapaz de simbolizar a lei e sujeitar-se a ela —, e neste caso os irmãos escapam à função paterna, fazendo sua própria versão do desejo do pai (a père-version a que se refere Lacan) e fundando, na delinqüência, uma gangue; ou a lei se mantém cumprindo sua função mínima de interditar o gozo (aos filhos, mas também ao pai!), mas a aliança fraterna possibilita que os sujeitos explorem e ampliem suas margens, relativizando o discurso da autoridade encarnado pela figura do pai real. É a constatação da semelhança na diferença que se dá com a entrada do “pequeno outro”, que permite ao sujeito separar a lei simbólica — diante da qual todos se equivalem — da figura real do pai encarnado naquele sujeito frágil, arbitrário, limitado e desejante que, mesmo quando se faça respeitar, é incapaz de apagar as diferenças significantes entre todos os filhos que levam o mesmo nome, o seu nome.

Fizemos esta longa passagem para dizer que a fratria não é convocada a operar só na falta do pai. Mas, quando ninguém nessa vida encarna o pai, quando é preciso apelar ao “Senhor” para imaginar que “alguém” (no eixo vertical da constituição subjetiva) me ama e me proíbe abusos, o reconhecimento entre irmãos se torna essencial. Até mesmo para sustentar a existência deste Deus, aliás, que se não fosse o significante de uma formação simbólica (portanto coletiva), seria o elemento central de um delírio psicótico. Além disso, na falta do reconhecimento de um pai, é a circulação libidinal entre os membros da fratria que produz um lugar de onde o sujeito se vê, visto pelo olhar do(s) outro(s). Prova disto é a grande importância que a criação de apelidos adquire nos grupos de adolescentes, por exemplo, como indicativos de um “segundo batismo”, a partir de outros campos identificatórios por onde os sujeitos possam se mover, ampliando as possibilidades estreitas fundadas sobre o traço unário da identificação ao ideal paterno. As identificações horizontais talvez permitam a passagem da ilusão de uma “identidade” (em que o sujeito se acredita idêntico a si mesmo, colado ao nome próprio dado pelo pai) à precariedade das identificações secundárias, a partir de outros lugares que o sujeito vai ocupando entre seus semelhantes, e que o apelido dado pela turma é capaz de revelar.

Quando os Racionais apelam a que os manos se identifiquem com a causa dos negros, estarão propondo um campo identificatório — com sua diversidade de manifestação singulares — ou a produção de uma identidade, com sua camisa-de-força subjetiva? “Gosto de Nelson Mandela, admiro Spike Lee,/ Zumbi, um grande herói, o maior daqui./ São importantes pra mim, mas você ri e dá as costas/ então acho que sei de que porra você gosta:/ se vestir como playboy, freqüentar danceterias/ agradar os vagabundos, ver novela todo dia,/ que merda!/ Se esse é seu ideal, é lamentável/ é bem provável que você se foda muito/ você se autodestrói e também quer nos incluir/ porém, não quero, não vou/ sou negro, não vou admitir!/ De que valem roupas caras, se não tem atitude?/ e o que vale a negritude, se não pô-la em prática?/ A principal tática, herança da nossa mãe África/ a única coisa que não puderam roubar!/ se soubessem o valor que a nossa raça tem/ tingiam a palma da mão pra ser escura também!” (“Júri racional” — Mano Brown). A questão é complicada. Uma vez, indagado sobre sua identificação ao judaísmo, Freud respondeu que se não existisse anti-semitismo, não faria questão nem de circuncidar os próprios filhos; mas diante do preconceito, não tinha outra opção senão a de se afirmar como judeu. Talvez se possa interpretar desta forma a convocação dos Racionais a uma “atitude” que sustente o amor-próprio entre os negros contra o sentimento de inferioridade produzido pela discriminação, o que passa pela afirmação da raça — este significante tão duvidoso, que produz discriminação ao mesmo tempo que indica a diferença.

Mas, quem sabe se possa mesmo ultrapassar esta limitação imaginária, este suporte físico — cor da pele — que produz simultaneamente a identificação e a discriminação racial? Quem sabe a multidão de admiradores dos grupos de rap não estará tentando dizer, como os estudantes parisienses em maio de 68, quando o governo tentou expulsar Daniel Cohn-Bendit sob a alegação de não ser um cidadão francês: “somos todos judeus alemães”!, e explodir a fronteira da raça pela via das identificações com as formações culturais: somos todos manos negros da periferia? Finalmente, está claro por que posso me autorizar a falar de, ou mais, a falar com, os manos dos Racionais. Pois, se a afirmação dos campos identificatórios (estou recusando propositalmente o termo identidade) não produzir laços sociais, afinidades eletivas que incluam o semelhante na diferença (tornando obsoletos os traços da raça, ou do sexo, por exemplo), há sempre de produzir isolamento entre os grupos e, num sentido ou no outro, discriminação. Que a auto-estima e a dignidade dos rapazes negros da periferia não dependam da aceitação por parte da elite branca, não significa que não produzam outros laços, outras formas de comunicação, inclusive com grupos mais ou menos marginais a esta própria elite. Neste caso, a identificação que começou pela cor da pele, ampliou-se para abrigar outros sentidos: exclusão, indignação, repúdio à violência e às injustiças, etc. Não somos “todos” pretos pobres da periferia, mas somos muitos mais do que eles supunham quando começaram a falar.

O CÉU CHEIO DE PIPAS

Caralho, que calor, que horas são/ posso ouvir a pivetada
gritando lá fora/ hoje acordei cedo pra ver/ sentir a brisa da
manhã e o sol nascer./ É época de pipa, o céu tá cheio/ quinze anos
atrás eu tava ali no meio./ Lembrei de quando era pequeno, eu e os
caras./ faz tempo — diz aí! — o tempo não pára…

Brown, Fórmula mágica da paz

Este trecho, quase no final de a “Fórmula mágica da paz”, é dos poucos — senão o único — em que o rap dos Racionais permite alguma sublimação dos sentidos, algum sentimento de elevação ou de alegria. Afinal, não é isto que o “ritmo e poesia” deveriam nos proporcionar?

Mas não. Nenhuma exaltação, nenhuma referência sublime é possível a uma arte que tem por principal função tentar simbolizar um cotidiano que se depara todo o tempo com o nó duro do real, no sentido que a psicanálise lacaniana atribui à palavra: o indizível, o que está além da capacidade de elaboração pela linguagem, o que nos escapa sempre.

O real domina a vida da periferia. É disto que falam os versos de Mano Brown e Edy Rock. São os últimos pensamentos de um homem que acaba de ser baleado, depois de seguir a carreira de um amigo no crime e ter sido acusado, pelo resto do bando, de entregá-lo à polícia.2 É o último dia na vida de um ex-presidiário que tenta se readaptar e criar o filho dignamente, mas acaba sendo acusado injustamente de um roubo nas redondezas e é executado pela polícia que invade sua casa na madrugada.3

É a história de um mano gente fina: “Você viu aquele mano na porta do bar? jogando bilhar, descontraído e pá/ cercado de uma pá de camaradas/ da área uma das pessoas mais consideradas/ ele não deixa brecha, não fode ninguém/ adianta vários lados sem olhar pra quem/ tem poucos bens, mais que nada/ um fusca 73 e uma mina apaixonada”… (“Mano na porta do bar” — Brown e Rock. Citada na p.7). Mas que começa a mudar, cercar-se de “tipos estranhos” que lhe prometem “o mundo dos sonhos”; o mano entrou no tráfico, matou a sangue-frio, “usou e viciou a molecada daqui” e tem o fim previsível: “Você tá vendo o movimento na porta do bar? / tem muita gente indo pra lá, o que será? (…) Você viu aquele mano na porta do bar? Ontem o cara caiu com uma rajada nas costas…”

O real domina a vida da periferia, em suas faces extremas: a droga e seu gozo mortífero; a violência do outro — freqüentemente a polícia — 4 com quem é impossível qualquer diálogo, qualquer negociação; a miséria, que segundo Hanna Arendt nos exclue da condição humana porque nos faz prisioneiros da necessidade; e acima de tudo, a morte. O real se manifesta na figura do destino inexorável: hoje a pivetada vai para a escola, empina pipas na rua, joga bola — logo mais estarão traficando, viciados no crack, a caminho da morte certa. As letras de Brown e Edy Rock falam de um verdadeiro extermínio dos jovens de periferia; como acontece com os relatos dos sobreviventes dos campos de concentração, não há lugar para o sublime aqui.

Também não há muito lugar para o prazer, a alegria, a brincadeira. A droga e o álcool oferecem uma possibilidade de gozo. Os sonhos de consumo, de apropriar-se dos fetiches burgueses, “moto nervosa/ roupa da moda/ mina da hora”, parecem oferecer um certo semblant de felicidade (assim como para os consumidores ricos, aliás), mas ficam inacessíveis a não ser que o cara enverede pelo crime. Não há beleza na paisagem da periferia. Nada de sombra e água fresca; nada de “área de lazer” — “Aqui não vejo nenhum centro poliesportivo/ pra molecada freqüentar nenhum incentivo/ o investimento no lazer é muito escasso/ o centro comunitário é um fracasso/ mas se quiser se destruir está no lugar certo/ tem bebida e cocaína sempre por perto”… (“Fim de semana no parque” — Brown e Rock). A inveja da vida dos ricos, dos bairros burgueses, dos privilégios, é inevitável: “Olha só aquele clube, que da hora/ olha aquela quadra, aquele campo, olha/ quanta gente/ tem sorveteria, cinema, piscina quente/ olha quanto boy, olha quanta mina/ afoga aquela vaca dentro da piscina/ tem corrida de kart, dá pra ver/ é igualzinho ao que eu vi ontem na TV./ Olha só aquele clube, que da hora/ olha o pretinho vendo tudo do lado de fora”…

Apesar desta inveja, os manos tentam afirmar sua diferença. A periferia que se valorize; os negros que tratem de bancar sua cultura, seus valores — este é o antídoto contra a alienação, contra a sedução promovida pela propaganda, pela tevê, arautos da sociedade de consumo. “Na periferia a alegria é igual/ é quase meio dia a euforia é geral/ é lá que moram meus irmãos, meus amigos/ e a maioria aqui se parece comigo./ E eu também sou o bam-bam-bam e o que manda/ o pessoal desde as 10 da manhã está no samba/ preste atenção no repique, atenção no acorde…”(“Fim de semana…”).

O real é a matéria bruta do dia-a-dia da periferia, é a matéria a ser simbolizada nas letras do rap. Uma tarefa que, como todo trabalho de simbolização, depende de um trabalho de criação de linguagem que só pode ser coletivo. É como se os poetas do rap fossem as caixas de ressonância, para o mundo, de uma língua que se reinventa diariamente para enfrentar o real da morte e da miséria; por isso eles não deixam a favela, não negam a origem. “Essa porra é um campo minado/ quantas vezes eu pensei em me jogar daqui/ mas aí, minha área é tudo o que eu tenho/ a minha vida é aqui e eu não consigo sair/ é muito fácil fugir, mas eu não vou/ não vou trair quem eu fui, quem eu sou” (“Fórmula mágica da paz” — Brown).

Este sentimento de pertinência e de dívida simbólica para com a origem e o semelhante lembram a diferença estabelecida por Alain Renault entre indivíduo e sujeito. O primeiro, tributário do ideal individualista de independência — centramento em si mesmo, negação da dívida, valorização narcísica do eu; o segundo, herdeiro do princípio humanista de autonomia — emancipação em relação a qualquer autoridade divina, transcendente, mas reconhecimento do laço social como fundamento do que é propriamente humano em cada um. Sujeitos autônomos, e não indivíduos independentes, os manos apelam a seus semelhantes para refazer o assassinato do pai abusivo, opressor, e recriar uma lei que proteja a todos do desamparo, que permita alguma alternativa ao real.

Enquanto isso, alguns raros momentos de contemplação são contrabandeados pelas brechas de uma vida que não oferece nada de graça. Acordar cedo, sentir a brisa, ver o sol nascer. O céu está cheio de pipas: como uma madeleine dos pobres, a visão dos quadradinhos coloridos lá no alto evoca a infância, o tempo perdido, a inocência que ficou para trás.

Mas as pipas são também a criação de um espaço virtual para a beleza, neste “campo minado” sem pontos de luz. As pipas obrigam o olhar a se manter acima da miséria, na direção de um céu que não é o céu da morte, de Deus e das almas; é o céu dos vivos. O céu que as crianças enfeitam com poucos recursos, cola, papel-de-seda e linha; céu da linguagem, céu humano. O céu cheio de pipas da periferia é uma interferência estética sobre a miséria e a recusa da desumanização que ela promove. Como a música, que só precisa das ondas do ar para existir e repercutir, como os versos quilométricos do rap, as pipas da molecada representam a ultrapassagem do reino da necessidade e do puro tempo imediato, sem passado e sem futuro, a que a necessidade nos reduz. No poema de Brown, o céu cheio de pipas surge como evocação da infância e projeção para um tempo futuro (“diz aí! — o tempo não pára”), um “fora daqui/aqui mesmo”, um real tornado manso pela força da cultura.

Mas é no tempo presente, saindo do barraco para sentir a brisa da manhã, que o poeta/narrador de “Fórmula mágica…” obtém sua rápida epifania, seu curto instante de contemplação. A beleza, como se sabe, não exige grandes pompas para exercer seu poder transtornador; razão pela qual, apesar das diferenças de escolaridade, existem tantos poetas na periferia quanto em qualquer outro lugar. Termino propondo uma ponte, tão arbitrária quanto uma associação livre pode ser, entre a poesia de Brown e a prosa de Jean Genet, seu primo distante, numa das muitas passagens do Diário de um ladrão em que este escritor surpreendente estabelece uma relação entre a criação estética e uma atitude moral:

“A emoção muito especial que, ao acaso, chamei de poética, deixava em minha alma uma espécie de rastro de intranqüilidade que ia se atenuando. O murmúrio de uma voz, de noite, e no mar o barulho de remos invisíveis, naquela situação estranha, me haviam transtornado. Conservei-me atento para agarrar esses instantes que, errantes, me pareciam estar à procura de um corpo, uma alma penada, de uma consciência que os anote e os experimente. Quando o encontram, param: o poeta esgota o mundo. Mas, se ele propõe outro, só pode ser da sua própria reflexão. Quando, na Santé, comecei a escrever, nunca foi com o intuito de reviver minhas emoções ou de comunicá-las, mas para que, da expressão delas imposta por elas, eu compusesse uma ordem (moral) desconhecida (de mim mesmo, em primeiro lugar)” (Genet, 1983:163).

É possível se concordar com Genet, quando ele afirma que a emoção estética produz uma ordem moral? O rap seria moral só por fazer “ritmo e poesia”, independente do conteúdo ideológico de sua pregação? Talvez sim, nos casos em que a emoção estética seja capaz de produzir uma fala nova e promover uma experiência, “desconhecida de mim mesmo em primeiro lugar”, isto é: revelar uma dimensão oculta do sujeito para ele mesmo e propor outro mundo (Genet), que “só pode ser o da sua própria reflexão”. Ética e estética podem coincidir quando esta última tiver o poder de abrir uma brecha na pedra dura do real, adiando temporariamente nosso confronto inevitável com a morte.

FÓRMULA MÁGICA DA PAZ
Mano Brown

Essa porra é um campo minado
Quantas vezes eu pensei em me jogar daqui
mas aí, minha área é tudo que eu tenho
a minha vida é aqui e eu não consigo sair,
é muito fácil fugir mas eu não vou, não vou trair quem eu fui e
quem eu sou.
Gosto de onde estou e de onde eu vim,
ensinamento da favela foi muito bom pra mim.
Cada lugar é um lugar, cada lugar uma lei,
cada lei uma razão e eu sempre respeitei.
Qualquer jurisdição, qualquer área,
Jardim Santo Eduardo, Grajaú, Missionária
Funxal, Pedreira e tal, Joaniza
eu tento adivinhar o que você mais precisa.
Levantar sua goma ou comprar uns panos
um advogado pra tirar seu mano.
No dia da visita você diz
que eu vou mandar cigarro pros malucos lá no X.
Então como eu estava dizendo, sangue bom,
isso não é sermão, ouve aí, eu tenho o dom.
Eu sei como é que é, é foda parceiro
é a maldade na cabeça o dia inteiro.
Nada de roupa, nada de carro, sem emprego
não tem Ibope, não tem rolê, sem dinheiro.
Sendo assim, sem chance, sem mulher,
você sabe muito bem o que ela quer,
encontre uma de caráter se você puder,
é embaçado ou não é,
ninguém é mais que ninguém, absolutamente,
aqui quem fala é mais um sobrevivente.
Eu era só um moleque, só pensava em dançar,
cabelo black e tênis All Star.
Na roda da função mó zoeira,
tomando vinho seco em volta da fogueira,
a noite toda e só contando história,
sobre o crime, sobre as tretas da escola.
Não tava nem aí, nem levava nada a sério
admirava os ladrão e os malandro mais velho,
mas se liga, olhe ao seu redor e me diga,
o que melhorou da função, quem sobrou, sei lá,
muito velório rolou de lá pra cá,
qual a próxima mãe que vai chorar,
já demorou muito mais hoje eu posso compreender
que malandragem de verdade é viver.
Agradeço a Deus e aos Orixás,
parei no meio do caminho e olhei prá trás.
Meus outros manos todos foram longe demais:
Cemitério São Luís aqui jaz.
Mas que merda meu oitão tá até a boca,
que vida louca, porque é que tem que ser assim,
ontem sonhei que um fulano se aproximou de mim,
agora eu quero ver, ladrão, pá.pá.pá,
fim; é sonho, é sonho, deixa quieto,
sexto sentido é um dom, eu tô esperto.
Morrer é um fator, mas conforme for,
tem no bolso uma agulha e mais cinco no tambor.
Vai, joga o jogo, vamos lá,
pá, caiu a 8 eu mato a par
eu não preciso muito pra me sentir capaz
de encontrar a Fórmula Mágica da Paz.
(Refrão) Eu vou procurar, sei que vou encontrar, eu vou
procurar, eu vou procurar,
você não bota uma fé mas eu sei que vou atrás
da minha Fórmula Mágica da Paz.

Caralho, que calor, que horas são,
posso ouvir a pivetada gritando lá fora.
Hoje acordei cedo pra ver,
sentir a brisa de manhã e o sol nascer.
É época de pipa, o céu tá cheio,
quinze anos atrás eu tava ali no meio,
lembrei de quando era pequeno,
eu e os cara; faz tempo, diz aí, o tempo não pára.
Hoje tá da hora o esquema prá sair,
mano não demora, mano chega aí,
cê ouviu os tiro? ouvi de monte, então:
diz que tem uma pá de sangue no campão.
Ih, mano, toda mão é sempre a mesma idéia junto,
treta, tiro, sangue, aí! muda de assunto!
traz a fita pra eu ouvir porque eu tô sem,
principalmente aquela lá do Jorge Ben.
Uma pá de mano preso chora a solidão,
uma pá de mano solto sem disposição,
penhorando por aí,
rádio, tênis, calça, acende num cachimbo, virou fumaça.
Não é por nada não, mas aí, nem me ligo a hora,
a minha liberdade eu curto bem melhor,
eu não estou nem aí pro que os outros fala,
quatro, cinco, seis pretos num Opala.
Pode vir, gambé, paga pau, tô na minha moral na maior,
sem goró, sem pacau, sem pó, eu tô ligeiro
eu tenho a minha regra, não sou pedreiro, não fumo pedra.
Um rolê com os aliados já me faz feliz,
respeito mútuo é a chave do que eu sempre quis,
me diz, procure a sua, a minha eu vou atrás, até mais, na
Fórmula Mágica da Paz.

Refrão: Eu vou procurar…etc.
Choro e correria num saguão de hospital,
dia das crianças, feriado indo pro final,
sangue e agonia entram pelo corredor;
– ele está vivo? pelo amor de Deus, doutor!
Quatro tiros do pescoço pra cima,
puta que pariu, a chance é mínima.
Aqui fora revolta e dor, lá dentro estado desesperador.
Eu percebi quem eu sou realmente,
quando ouvi o meu subconsciente:
aí, Mano Brown cuzão, cadê você,
seu mano tá morrendo, o que você vai fazer?
pode crê, eu me senti inútil, me senti pequeno,
mais um cuzão vingativo, vai vendo.
Puta desespero, não dá pra acreditar,
que pesadelo, eu quero acordar,
não dá, não deu, não daria de jeito nenhum,
o Delei era só mais um rapaz comum.
Daqui a poucos minutos, mais uma dona Maria de luto.
Na parede o sinal da cruz,
que porra é essa? que mundo é esse? onde está Jesus?
Mais uma vez um emissário
não incluiu o Capão Redondo em seu itinerário.
Corro, eu tô confuso, preciso pensar
me dá um tempo pra eu raciocinar,
eu já não sei distinguir quem tá errado, sei lá,
minha ideologia enfraqueceu,
preto, branco, polícia, ladrão ou eu,
quem é mais filha da puta eu não sei, aí fodeu,
fodeu, decepção nessas horas,
a depressão quer me pegar, vou sair fora.
Dois de novembro era Finados,
eu parei em frente ao São Luís do outro lado
e durante meia hora eu olhei um por um,
e o que todas as senhoras tinham em comum:
a roupa humilde, a pele escura,
o rosto abatido pela vida dura,
colocando flores sobre a sepultura,
podia ser minha mãe, que loucura.
Cada lugar uma lei, eu tô ligado,
no extremo sul da Zona Sul tá tudo errado,
aqui vale muito pouco a sua vida,
a nossa lei é falha é violenta é suicida,
se diz que me diz que, não se revela,
parada pro primeiro na lei da favela,
legal, assustador é quando você descobre
que tudo deu em nada e que só morre o pobre.
A gente vive se matando, irmão, por quê?
não me olhe assim, eu sou igual a você,
descanse o seu gatilho, descanse o seu gatilho
porque no trem da malandragem meu Rap é o trilho.

* Maria Rita Kehl é psicanalista, jornalista, poeta nas horas vagas e escritora. Autora de, entre outros: Sobre ética e psicanálise(Companhia das Letras, 2002),Ressentimento (Casa do psicólogo, 2004), Deslocamentos do feminino (Imago, 1998, 2a. edição em 2009), O tempo e o cão – atualidade das depressões(Boitempo, 2009).

NOTAS

Ao Luan, que me apresentou os Racionais MC’s.

1 Veja-se a respeito o artigo de Contardo Calligaris (1991).

2 “Tô ouvindo alguém me chamar” (Mano Brown) — “Tô ouvindo alguém gritar meu nome/ parece um mano meu, é voz de homem/ eu não consigo ver quem me chama/ é tipo a voz do Guima/ não, não, o Guima tá em cana/ Será? ouvi dizer que morreu, não sei. (…) Parceria forte aqui era nós dois./ Louco, louco, louco e como era/ cheirava pra caralho, vixe! sem miséria!/ todo ponta firme/ foi professor no crime/ também, maior sangue frio, não dava boi pra ninguém!/ Puta, aquele mano era foda!/ só moto nervosa/ só mina da hora/ só roupa da moda”…

3 “O homem na estrada”(Mano Brown) — “O homem na estrada recomeça sua vida/ sua finalidade, a sua liberdade, que foi perdida,/ subtraída/ e quer provar a si mesmo que realmente mudou/ que se recuperou, que quer viver em paz/ não olhar prá trás, dizer ao crime nunca mais/ pois sua infância não foi um mar de rosas não/ na Febem, lembranças dolorosas então (…) Equilibrado num barraco incômodo, mal acabado e sujo/ porém seu único lar, seu bem e seu refúgio/ cheiro horrível de esgoto no quintal/ por cima ou por baixo, se chover será fatal/ um pedaço do inferno aqui é onde estou…”

4 “Não confio na polícia, raça do caralho!/ se eles me acham baleado na calçada/ chutam minha cara e cospem em mim/ e eu sangraria até a morte, já era, um abraço/ por isso minha segurança eu mesmo faço” (“Homem na estrada” — Mano Brown).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARTHES, R. “O mito como linguagem roubada”. In: Mitologias. São Paulo, Difel, 1975, p.152-158.

CALLIGARIS, C. “Função paterna”. In: Hello Brasil. São Paulo, Escuta, 1991, p.59-81.

DOR, J. O pai e sua função em psicanálise. Rio de Janeiro, Zahar, 1985.

FREUD, S. “Totem y Tabu”. In: Obras Completas, v.II. Madri, Biblioteca Nueva, 1976.

GENET, J. Diário de um ladrão. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1983.

KEHL, M.R. A mínima diferença. Rio de Janeiro, Ed. Imago, 1996.

______. Processos primários (poemas). São Paulo, Estação Liberdade, 1996.

______. Deslocamentos do feminino. Rio de Janeiro, Ed. Imago, 1998.

RANCIÈRE, J. Políticas da escrita. Rio de Janeiro, Editora 34, 1999.

RENAULT, A. O indivíduo. São Paulo, Difel, 1998.

 

Cultura e consciência: a “função” do Racionais MC`s | de Jorge Nascimento

1- INTRODUÇÃO

Ainda existem discordâncias quanto aos conceitos de raça e etnia. De uma maneira abrangente, poderíamos dizer que tais termos foram moldados a partir da nomeação do diferente. A dificuldade de apreensão da diferença, ou da diferença não-catalogada, das culturas ditas minoritárias, é uma constante em práticas conservadoras e/ou colonialistas. Segundo Lívio Sansone 2 , no Brasil: “Se a identidade étnica não é entendida como essencial, é preciso concebê-la como um processo, afetado pela história e pelas circunstâncias contemporâneas e tanto pela dinâmica local como pela global.”

E, hoje, as Culturas Oficiais e os próprios veículos de comunicação de massa ainda apresentam dificuldades ao se relacionarem com as culturas chamadas periféricas. A inserção das minorias independentes no sistema de representação simbólico-cultural na sociedade há de ser feita através da crítica e requer uma prática que privilegie o papel constitutivo da diferença na formação cultural de uma comunidade. Assim sendo, o papel da chamada cultura de massas como veículo das dispersas vozes sociais é um fator de importância fundamental em nossa forma de pensar os discursos dispersos na sociedade. Vejamos algumas ponderações do professor Muniz Sodré 3:

Da sociedade global das nações ricas excluíram-se os povos das sociedades colonizadas. O movimento de integração (…) é excludente em termos de economia e política. Mas também de cultura: ao perder a singularidade de sua diferenciação e reduzir-se às constantes repetitivas de sua experiência, a cultura perde a vitalidade do encontro com o outro e de regeneração de si mesma.

O processo de marginalização da cultura é um filtro ideológico já gasto, mas ainda muito eficiente, porém, os novos meios estão aí, as informações burlam sistemas de vigilância e guetização, circulam. Se temos um histórico elitista, excludente e colonialista, sabemos hoje das potencialidades das ditas culturas minoritárias e suas manifestações artísticas. Vamos citar dois exemplos datados de como a mídia oficial – no caso dois jornais de grande circulação – pode ser tendenciosa, ou melhor, preconceituosa. No primeiro texto, o autor se refere a um processo ambíguo de abrasileiramento ou latino-americanização como uma maneira de assunção da barbárie ibérica novomundista, ou seja, de distanciamento do paradigma saudável, através da contaminação das ondas caribenhas que vêm do norte do país. Há a enumeração das características negativas que parecem apoderar-se de um paradigma utópico mineiro-britânico, o que, inclusive, embranquece civilizadamente o nosso Machado de Assis. Vejamos:

Aos poucos o Brasil vai se tornando mais uma grande república do Caribe, outro México, uma inchada e paciente Jamaica ou Guatemala de dimensões continentais. Vem do Norte uma crescente e irresistível onda que vai lambendo o país, tomando de assalto sua cultura, sua política. (…) Estaria nascendo, enfim, um novo Brasil mais brasileiro, vale dizer, mais latrino-americano, cucaracho, caliente, orgulhoso e assumidamente negróide, cubano (…) A mineiridade, o humor quase britânico (civilizadíssimo) de Drummond e Machado já eram (…) Dois Brasis: um país, digamos, cone sul (…) e outro caribenho (…)4

O segundo fragmento trata de uma demonstração dos nossos governantes de seu equivocado populismo, quando deixam de tratar de um assunto moderno, civilizado, em troca de um apoio a uma digna representante da barbárie afro-brasileira. É interessante notar o aspecto evolucionista na abordagem da diferença. Partindo da máxima de que o Brasil é um país de contrastes, e utilizando um behaviorismo conservador, o articulista traça uma antítese entre uma tradição pré-civilizatória e a informatizada modernidade latente.

O Brasil é um país de contrastes. Enquanto diplomatas do Itamarati pretendiam explicar aos americanos do Departamento de Estado como funcionava a reserva de mercado de informática, políticos ilustres (…) reuniram-se num ato público impressionante: o enterro de Mãe Menininha do Gantois (…) era a mais famosa sacerdotisa de cultos espíritas de origem africana (…) A importância exagerada dada a uma sacerdotisa de cultos afro-brasileiros é a evidência mais chocante de que não basta ao Brasil ser catalogado como a oitava maior economia do mundo, se o País ainda está preso a hábitos culturais arraigadamente tribais (…) Enquanto o mundo lá fora desperta para o futuro, continuamos aqui presos a conceitos que datam de antes da existência da civilização5.

Sem entrar no mérito da discussão dos objetivos dos textos, já que temos fragmentos, é importante notar o nível de autodepreciação nos argumentos apresentados, e se digo que é um processo auto-referente é porque o autor põe em questão a ideia de homogeneização já tão fora de propósito nos anos 80, e mais ainda hoje no chamado mundo globalizado. Sete anos depois, o mesmo jornal é envolvido na discussão acerca de uma campanha publicitária sobre o lançamento do novo, bonito e moderno projeto gráfico de seu Caderno 2. No filme publicitário, um reconhecido ator branco faz elogios à beleza do periódico e compara com a forma gráfica do “outro” jornal e ergue uma folha com a foto de Tião Macalé, ator negro, sem dentes, de programas humorísticos (Nojento!!!). Sobre o veículo, os exemplos demonstram sua “linha editorial”, mas quanto ao pretenso discurso isento da propaganda, o texto mostra como ele vai lidar com esse tipo de ridicularização, ou estigmatização, de uma diferença que é a identidade de muitos. Segundo Mario Vítor Santos:

Sabe-se de algumas peças publicitárias (…) caracterizam-se por apelar aos preconceitos adormecidos, explorar com “habilidade” e sutileza seu potencial de despertar empatia (…) se o comercial do “Estadão” fosse veiculado nos EUA, por exemplo, o “Estadão”, a agência e até o ator teriam dificuldades políticas e comerciais. A tolerância da sociedade brasileira é tal que um jornal de expressão chega a julgar que um anúncio desse tipo possa contribuir para sua imagem.6

Acreditamos que, passados os anos, o discurso “politicamente correto” afeta os meios de comunicação. Pretendem-se cotas para negros nas universidades e nas novelas televisivas, políticas de reparação são discutidas, os negros inseridos no mercado, hoje, já são considerados uma fatia importante do bolo. Porém, na prática das relações sociais, parece-nos que o preconceito continua presente. Vejamos: os jovens atores (negros) do filme Cidade de Deus foram acusados de vândalos e expulsos de um shopping, em São Paulo, quando operavam uma máquina de banco. Sabemos o quanto a sociedade brasileira delegou aos negros somente representações artísticas tidas como aquém da produção de elevado valor simbólico. O compositor Carlos Cachaça, fundador da escola de samba Estação Primeira de Mangueira, dá seu testemunho.

Antigamente tinha a censura do Getúlio Vargas, o DIP, o Departamento de Imprensa e Propaganda. Eu fiz o samba campeão de 1933 e disse (…) que era muito temeroso sair com aquele samba que falava de Castro Alves, Olavo Bilac e Gonçalves Dias. A polícia não ia gostar (…) Naquela época era muita ousadia a negrada contar a história do Brasil em samba (…) era até motivo de ganhar porrada.7

Nos anos 40, a revista Cultura Política, elogiava as ações do governo, através do DIP. Os sambas associados à malandragem eram execrados, a linguagem, as gírias – a desvalorização do trabalho – eram tidas como exemplos de uma prática poética popular que ia contra as ideias trabalhistas de Getúlio Vargas. Nas rádios, maior meio de difusão da música popular na época, a prática da censura e a imposição de letras ideologicamente condizentes com a política eram procedimentos que tentavam inibir a índole popular que sempre, ironicamente, questiona as normas de condutas sociais impostas:

No Brasil, a Divisão de Rádio do Departamento de Imprensa Propaganda vem realizando, sem desfalecimentos, uma obra digna de encômios. Proíbe o lançamento das composições que, aproveitando a gíria corruptora da linguagem nacional, fazem o estúpido elogio da malandragem. E, não querendo limitar a sua ação ao campo da censura, distribui pelas estações dos Estados gravações de música fina, com noticiário de interesse coletivo.8

Se em outras partes, o racismo tem um histórico arianista que diz que as relações entre raças são condenáveis, baseando-se no axioma de que a mistura de raças é pior que os malefícios causados pelas sub-raças isoladas, no Brasil tal postura convive com a forma do racismo hierarquizado étnica e socialmente. Um samba, composto por Haroldo Barbosa e Janet de Almeida nos anos 40, brinca com os males causados pelo samba, que afligem tanto à Madame:

Madame diz que a raça não melhora
Que a vida piora por causa do samba
Madame diz que o samba tem pecado
Que o samba, coitado, devia acabar

Madame diz que o samba tem cachaça
Mistura de raça, mistura de cor
Madame diz que o samba democrata
É música barata sem nenhum valor

Vamos acabar com o samba
Madame não gosta que ninguém sambe
Vive dizendo que o samba é vexame
Pra quê discutir com Madame?

A ironia da letra é a resposta a uma visão eurocêntrica, aristocrática (a Madame), conservadora e excludente. A Madame não pode gostar da inserção no clima democrático do samba: mistura de raças e cor e, consequentemente, mistura social e, logicamente, execra a cachaça irmã. Assim, ironicamente se revela o movimento de troca e simbiose – perniciosos – contidas no espaço simbólico do samba. Nos últimos decênios do século passado, a partir da década de 70, uma reação à composição ideológica da cultura branca surge, no rastro dos movimentos afirmativos norte-americanos, e, principalmente, através do movimento black power. Em 1988, nos festejos em “comemoração” aos 100 anos da Lei Áurea, a escola de samba Unidos de Vila Isabel venceu o desfile com o enredo Kizomba: festa da raça, idealizado por Martinho da Vila. O samba-enredo, composto por Jonas, Rodolpho e Luiz Carlos da Vila, traz o afro-profano como força geradora e veículo da festa-mensagem, faz-se enquanto grito afirmativo e desejo que reivindica o fenômeno Palmares e a figura de Zumbi como propulsores da Liberdade, conceito acima das leis dos homens. A festa (Nossa kizomba) é nossa Constituição – era o ano da Assembleia Nacional Constituinte. Os valores ancestrais, forças de deuses são postos em cena, jogo de cintura, cultura, bravura, sublimação daquilo que poderia ser anedótico ou grotesco, segundo a tradição excludente brasileira.

E é como fruto da exclusão e logicamente como busca de espaço afirmativo que vai se constituindo o movimento Hip Hop brasileiro e o RAP, herdeiro dos cantos falados por jamaicanos e americanos dos bairros pobres, surge como um movimento estético popular que se desenvolveu, ganhou a mídia americana e, consequentemente, o mundo. Surge saído da precariedade, do pouco, utilizando velhos toca-discos que são transformados em produtores de ritmos sobre as quais epicamente constituem-se rimas, frases e histórias.
A grande mídia brasileira tardou a dar importância à produção de jovens negros, com suas “letras” gigantescas e simples, que tratavam de temas comuns à população das periferias das grandes cidades. Aí surgem os Racionais MC’s 9 que, mesmo sem tocar nas rádios populares, lotavam galpões e centros comunitários e que, em 1997, conseguem a proeza de vender em torno de 500.000 cópias (originais e piratas) de um disco independente. Segundo Regina Novaes, em seu artigo Hip-Hop: o que há de novo:

Há muito que investigar para saber como e por que a periferia tornou-se um produto altamente vendável. O depoimento da antropóloga Marta Jardim é instigante. Ela fala de um contexto em que os jovens das periferias das grandes cidades também se tornam criadores de moda e estilo incorporados por muitos jovens de classe média. Não são estilos que buscam diluir a condição social periférica com uma roupa insuspeita do centro. Ao contrário, acentuam os traços socialmente associados à marginalidade, fazendo da roupa uma espécie de denúncia, de caricatura da imagem associada à periferia. Certamente, a diferença, imagens e falas fora do lugar, têm valor comercial no mercado.

E é como fruto desse mundo/mercado, saída das frestas sociais, que surge a palavra poética de jovens de periferia que (por estilo) sorriem pouco, falam com a linguagem cifrada provinda de penitenciárias e favelas, e que reivindicam bens de consumo questionando a ética conservadora antiga do “mais vale ser mendigo que ladrão”. Porém, a própria relação com o “mercado” é questionada. A postura político/ideológica os faz esquivos, reticentes. As aparições em TVs são raríssimas, e há o episódio da saída de uma gravadora multinacional em que um integrante da banda foi questionado sobre a oferta em dinheiro oferecida e recusada: “Você sabe de quanto dinheiro estamos falando.” “Sei, mas não quero”. Sem falsos purismos, há algo de diferente, estética e eticamente falando10 . Acreditamos que o movimento Hip Hop e especificamente, o RAP brasileiro seriam exemplos daquilo que hoje se discute: a absorção de modelos culturais globais juntamente com a incorporação de temáticas e práticas locais. Assim sendo, alguns grupos, mesmo utilizando formas muito parecidas com as norte-americanas, essencialmente tratam de assuntos típicos de nossas sociedades e, além de tudo, incorporam posturas políticas próprias.

Porém, o que fundamentalmente nos interessa é como vozes periféricas, palavras proferidas por jovens negros conseguem, pouco a pouco, burlar uma das maiores formas de exclusão social, principalmente nas nossas sociedades urbanas constituídas de cidades partidas: o estigma 11. Sabemos que o termo estigma compõe-se numa duplicidade de sentidos potencializadores da exclusão daquele que é desacreditável e desacreditado. Porém, muitos Manos e Minas estão ligados, ouvem as mensagens provindas de vozes que lhes parecem familiares, em maior ou menor grau.
É ilustrativo um fato veiculado na mídia impressa quando das eleições para presidência, em que o então candidato à reeleição Fernando Henrique Cardoso teria comentado sobre uma foto do então adversário Lula junto aos integrantes do grupo de RAP: de que não entendia o porquê de uma foto de um candidato ao lado de “jovens com ares de marginais”12 . O sociólogo, que também se autoproclamou como “tendo um pé na cozinha”, ignorava que aqueles jovens com aparência de marginais eram, essencialmente, a voz de mais de “cem mil manos”, representavam a exteriorização dos anseios, dúvidas e críticas de uma parcela importante do eleitorado, ou melhor, do voto tão desejado
Como vozes de estigmatizados conseguem romper barreiras e redefinir sujeitos emissores de discursos que pulam muros que tão fortemente separam ideias e visões de mundo? Temos conhecimento das barreiras impostas a discursos que teimam em manter uma essencialidade utópica. Pois tal busca utópica e, para muitos, anacrônica, de pureza e a consciência de ser um produto rentável, porém independente, a princípio afastou esse tipo de produção dos meios de comunicação. Porém, a força das histórias cantadas pelos rapazes criou seu público, redefiniu parâmetros básicos da indústria cultural.

2 – A FALA
Uma apreciação completa das dimensões estéticas de um rap exigiria não só que o escutássemos, mas que também o dançássemos, sentindo seus ritmos em movimento. (Richard Shusterman)

Vamos agora pensar analiticamente o RAP dos Racionais MC`s através apenas da poesia feita palavra escrita, o que representa mais que um risco, pois parte-se já de um pressuposto parcial que, inegavelmente, transforma uma manifestação complexa em texto. O RAP é fundamentalmente uma forma de estetização do real na qual à polifonia discursiva somam-se efeitos sonoros, rítmicos e as vozes, com suas entonações e formas expressivas provindas da fala. A palavra cantada ou canto falado do RAP possui, por si só, efeitos significativos que expandem e realizam o texto através de outras possibilidades que revigoram performaticamente os vocábulos. O RAP é palimpsesto, há camadas significativas a serem descobertas e posteriormente assimiladas para que, num conjunto em que forças expressivas irradiam possibilidades em ondas de diversas camadas, os fragmentos de sonoridades múltiplas produzam algo em que as partes signifiquem o todo.

Outro problema pode ser pensado como um agravante: como interpretar textos orais que brotam de poetas pouco escolarizados? Com que ferramentas podemos trabalhar? Se o aparato conceitual acadêmico é moldado para pensar manifestações poéticas tradicionais, cultas, como podemos encarar a produção popular e massiva produzida por artistas periféricos de um país periférico como o Brasil? Tal problemática foi, de certa forma, abolida pelos chamados Estudos Culturais, mas o ranço acadêmico ainda perdura. Na pesquisa deparamos com um bom número de trabalhos que abordam o RAP, mas, comumente, por via das Ciências Sociais e, em menor, número, pela Análise do Discurso. Aqui pensamos, de forma transdisciplinar, abordar o RAP como fenômeno literário, mas também como produto da cultura de massa e como manifestação cultural na qual o estético e o político dialogam. O RAP trabalha a palavra e, dessa forma, já emerge com um potencial de possibilidades interpretativas e analíticas inerentes ao próprio ser do discurso, Borges já disse que não há palavras simples, pois todas postulam o Universo, cujo atributo maior é a complexidade. O RAP, além de “apresentar um desafio às condições artísticas”, apresenta-se como um desafio duplo, pois também desafia uma outra condição: é poesia que deseja ter uma participação ativa dentro dos espaços socioculturais. Como pondera Shusterman 13:

Devemos sentir o poder artístico e estético de uma obra impressionar nossos sentidos e nossa inteligência. (…) Mas a justificação teórica pode ajudar a criar este espaço e ampliar os limites da arte pela assimilação de formas antes rejeitadas na categoria honorável da arte. Uma estratégia incontestável para tal assimilação é mostrar que, apesar do evidente afastamento em relação às convenções estabelecidas, uma forma expressiva ainda atende aos critérios mais decisivos para garantir o reconhecimento de sua legitimidade artística ou estética.

Entendemos que pontes entre o RAP e a crítica literária e cultural é possível. Enquanto expressão poética performática, essa manifestação estética popular contemporânea é digna de um olhar atento no qual suas possibilidades expressivas e suas carências ou virtudes formais e estilísticas possam ser analisadas a partir de diversos campos teóricos do saber. A própria constituição da poética do RAP é baseada num ethos no qual o posicionamento discursivo cria personas ficcionais tão próximas dum real pleno da periculosidade que tanto amedronta. A caracterização de uma poética bélica, juntamente ao fato de se assumirem como “guerreiros da selva de pedra”, já nos traz uma forma de compreensão do real que só pode ser considerada como um processo de estetização do mesmo, ainda que, fundamentalmente, pautado pela experiência da violência. Insistir numa conexão arte e vida pode parecer um disparate se tomarmos como base as doutrinas de não-interferência de uma certa pós-modernidade. Mas o movimento Hip Hop se espalhou pelo mundo, provocou intervenções na música pop mundial e, fundamentalmente, em muitos casos, manteve aceso o facho, pois pensa em trabalhar consciências a partir da palavra e das atitudes. Diz o próprio Mano Brown: “Eu não sou artista. Artista faz arte, eu faço arma, sou terrorista.” A frase, radical, utópica, revela a ideia da posse de um poder que a palavra comporta que pode parecer risível aos espíritos pós-utópicos com seus ares blasé. Para Shusterman 14, ocorre uma aproximação entre a visão e prática do RAP e o pragmatismo:

A teoria da catarse, de Aristóteles, embora focada na piedade e no medo, apresenta a solução estética padrão: a arte é valiosa porque permite que emoções perigosas, contudo gratificantes, sejam desfrutadas, mas depois exorcizadas por expressá-las em mundo seguro, pois fictício, de mimese; um reino claramente distinto do real. Aristóteles, mesmo defendendo a arte, junta-se a Sócrates, Platão e à principal tradição da estética que opõe arte à vida real e procura mantê-la em um reino à parte. Pragmatismo e a estética do RAP não podem aceitar essa solução, uma vez que insistimos na profunda conexão da arte com a vida, seu uso como instrumento para a construção da ética e do estilo de vida de uma pessoa, um meio de engajamento político para aumentar a consciência e promover mais liberdade.

Luiz Tatit, situando historicamente o aparecimento do RAP no Brasil, após o rock dos anos 80, revela uma relação interessante entre forma e função social da música popular, vinculando o primeiro à orfandade que vitimou a juventude, traçando o caminho para a abertura de outras possibilidades dialógicas entre a música popular brasileira e a música pop norte-americana:

Enquanto isso, o espaço de rebeldia da juventude excluída, órfã do rock de “atitude”, começa a se recompor em torno de um canto que radicalmente eliminava as durações vocálicas próprias da face melódica da canção, anunciando assim um rompimento com as formas de expressar lamúrias e desventuras amorosas. Nem passional, portanto, nem propriamente temático, esse canto recuperava a entoação pura, não pelo breque do samba nacional, mas pelo break da cultura hip hop oriunda de Nova York. Na verdade, as articulações entrecortadas e ritmadas do rap brasileiro inauguravam uma outra via de aproximação com a sonoridade norte-americana: em vez da influência pop habitual, mantida desde os tempos de Frank Sinatra, agora na exposição crua de toda canção popular: a fala.15

Dessa forma, ou seja, privilegiando o que se fala no RAP, podemos então abordar essa manifestação poética popular que possui ancestrais antigos nas formulações expressivas do homem. Os narradores benjaminianos aqui vêm travestidos de experiências vivenciadas na luta urbana e inclusive afirmam: “Eu ontem era caça e hoje, pá! Sou o predador” (Otus 500). Sua fala é plena de autoridade. Aqui, então, será privilegiada a palavra oral, transformada em signo para que assim possamos, de alguma forma, apreendê-la, mesmo com todas as ressalvas expostas. Mas a palavra oralizada, potencializada tecnologicamente, aqui possui um “alcance social” e, mesmo privada de seus outros atributos perfomáticos, possui ainda, em nosso entendimento, uma força comunicativa que desvela interessantes revisões da realidade. Como observa Paul Zumthor: “habituados que somos, nos estudos literários, a só tratar do escrito, somos levados a retirar, da forma global da obra performatizada, o texto e nos concentrar nele.” Concordamos, mas note-se, porém, que aqui lidamos não com o escrito, mas com o transcrito, ou seja, trabalhamos com palavras que foram proferidas, e aqui utilizamos o verbo proferir de forma ampla, também em seus sentidos primários de “estender para diante, exercer publicamente”. Sabemos que tais palavras só se tornaram notação gráfica simbólica por obra da própria indústria e pelos meios de comunicação digitalizados. Diríamos que o RAP seria um estilo oral performático, mas trataremos da palavra que, diríamos, brotou letra falada, mediada agora pela escrita. Resumindo: vamos nos ater no texto e não na obra, já que, ainda segundo Zumthor, o texto “designa uma seqüência mais ou menos longa de enunciados, e a obra seria tudo que é poeticamente comunicado”.

Em uma entrevista recente16 , o escritor/cantor/compositor Chico Buarque expõe algumas considerações sobre o fenômeno do RAP no Brasil. Vejamos um trecho da entrevista:

Folha – Você parece estar descrevendo um esgotamento histórico…
Chico – A minha geração, que fez aquelas canções todas, com o tempo só aprimorou a qualidade da sua música. Mas o interesse hoje por isso parece pequeno. Por melhor que seja, por mais aperfeiçoada que seja, parece que não acrescenta grande coisa ao que já foi feito. E há quem sustente isso: como a ópera, a música lírica, foi um fenômeno do século 19, talvez a canção, tal como a conhecemos, seja um fenômeno do século 20. No Brasil, isso é nítido. Noel Rosa formatou essa música nos anos 30. Ela vigora até os anos 50 e aí vem a bossa nova, que remodela tudo – e pronto. Se você reparar, a própria bossa nova, o quanto é popular ainda hoje, travestida, disfarçada, transformada em drum’n’bass. Essa tendência de compilar e reciclar os antigos compositores de certa forma abafa o pessoal novo. Se as pessoas não querem ouvir as músicas novas dos velhos compositores, por que vão querer ouvir as músicas novas dos novos compositores? Quando você vê um fenômeno como o RAP, isso é de certa forma uma negação da canção tal como a conhecemos. Talvez seja o sinal mais evidente de que a canção já foi, passou. Estou dizendo tudo isso e pensando ao mesmo tempo que talvez seja uma certa defesa diante do desafio de continuar a compor. Tenho muitas dúvidas a respeito. Às vezes acordo com a tendência de acreditar nisso, outras não.

Folha – E o RAP? Sem abusar das relações mecânicas, parece que estamos diante de uma música que procura dar conta, ou que reage a uma nova configuração social, muito problemática.
Chico – Eu tenho pouco contato com o RAP. Na verdade, ouço muito pouca música. O acervo já está completo. Acho difícil que alguma coisa que eu venha a ouvir vá me levar por outro caminho. Já tenho meu caminho mais ou menos traçado. Agora, à distância, eu acompanho e acho esse fenômeno do RAP muito interessante. Não só o RAP em si, mas o significado da periferia se manifestando. Tem uma novidade aí. Isso por toda a parte, mas no Brasil, que eu conheço melhor, mesmo as velhas canções de reivindicação social, as marchinhas de Carnaval meio ingênuas, aquela história de “lata d’água na cabeça” etc. e tal, normalmente isso era feito por gente de classe média. O pessoal da periferia se manifestava quase sempre pelas escolas de samba, mas não havia essa temática social muito acentuada, essa quase violência nas letras e na forma que a gente vê no RAP. Esse pessoal junta uma multidão. Tem algo aí.

Não se sabe se o RAP vem definir uma nova tipologia artística que substituiria o que se conhece por canção popular no Brasil, o próprio Chico somente especula sobre a questão, mas é notório que, além das temáticas, o fenômeno apresenta uma nova configuração do que seriam letras e músicas das canções. Usando várias espécies de apropriações de bases sonoras, com suas “letras” quilométricas, e o estilo mais recitado que cantado – o canto falado –, o RAP revela-se como caminho de acessibilidade das populações periféricas das cidades para uma forma de expressão estética produzida a partir do próprio lugar. Utilizando-se da tecnologia mais facilmente disponibilizada atualmente, os pobres incultos estão dando um salto entre o seu mundo violento e problemático e o mundo das mídias. O tradicional “versar” soma-se às possibilidades de corte e colagem de sonoridades diversas – eletrônicas, além dos tradicionais vocais – e criação de formas expressivas próprias. A voz do rapper é a voz poética que traz um ethos discursivo marcante, que reitera o lugar do discurso e o faz sensível ao ouvinte decodificador, que “lê” as palavras proferidas numa ambientação na qual se mesclam elementos vários, criando um clima que o insere num mundo representado, que é a simulação de dados de uma realidade que lhe é familiar. Podemos tomar como exemplo o início do cd duplo Nada como um dia após o outro, a faixa introdutória Sou + você. As primeiras sonoridades são: uma freada de carro, rajadas de tiros, latidos de cães, mais tiros, som de uma motocicleta pondo-se em movimento, depois de uma pequena pausa silenciosa, um galo que canta, som de pássaros, ruído de um despertador digital, então iniciam-se acordes musicais e, finalmente, entra o chamamento, através da voz de Mano Brown, como se iniciassem as transmissões de um programa radiofônico:

Bença, Mãe
Estamos iniciando nossas transmissões,
essa é a sua rádio Exodus
Vamo acordá, vamo acordá, porque o sol não espera
demorô, vamo acordá, o tempo não cansa
ontem à noite você pediu, você pediu….
uma oportunidade, mais uma chance,
como Deus é bom, né não nego?
Olha aí, mais um dia todo seu
que céu azul loko hein?
Vamo acordá, vamo acordá
agora vem com a sua cara
sou mais você nessa guerra
a preguiça é inimiga da vitória
o fraco não tem espaço e o covarde morre sem tentar
Não vou te enganar, o bagulho tá doido
ninguém confia em ninguém, nem em você
os inimigos vêm de graça, é a selva de pedra
ela esmaga os humildes demais
você é do tamanho do seu sonho
faz o certo, faz a sua
vamo acordá, vamo acordá
cabeça erguida, olhar sincero
tá com medo de quê?
Nunca foi fácil, junta os seus pedaços e desce pra arena
mas lembre-se: aconteça o que aconteça
nada como um dia após o outro dia.

Neste RAP introdutório estão presentes, de certa forma, muitas das temáticas características presentes na poética dos Racionais: o caráter pedagógico, a religiosidade como apoio, a exortação ao enfrentamento positivo da realidade da selva de pedra que esmaga e inferioriza os “humildes demais”, o chamado para a atividade, para a luta. Essa poetização energética e bélica é uma tônica (ou um tônico), processo de ritualização suburbana (ou periférica) da realidade, do dia-a-dia. E aqui utilizamos a palavra exortação em mais de uma acepção, abrindo o campo semântico que passa por encorajamento, estímulo, incitação, mas também conselho, advertência, além da conotação jurídica do termo como “apelo que o juiz faz aos jurados para que tomem suas decisões de acordo com a própria consciência e com os ditames da justiça”. Pois dentro da guerra diária redefinida na poética dos Racionais é primordial a ideia de que a consciência (o quarto elemento da cultura Hip Hop) é um dado fundamental perante os tribunais humanos e divinos (Em outro RAP – Vida Loka II – está dito que “O promotor é só um homem, Deus é o juiz”). Assim sendo, na introdução desse livro sonoro que é o cd, há a convocação de um processo de passagem: a saída da passividade sonolenta para a entrada na atividade guerreira do enfrentamento das vicissitudes. Esse despertar para um novo dia – Vamo acordá –, para os ouvintes da Radio Exodus é como um despertar de atitudes que venham trazer a possibilidade desse utópico dia solar, depois da noite de tiros que podem retirar de circulação alguns guerreiros. Um dado então é primordial: a importância dos relógios, ou seja, da marcação do tempo, que não é mais o tempo vulgar, mas o tempo em que se deve acordar – lembro de um esboço de centro cultural da Cidade de Deus chamado “Acorda crioulo”. Segundo Shusterman17 , referindo-se ao RAP dos Estados Unidos:

Certamente as verdades e as realidades que o hip hop revela não são as verdades transcendentais e eternas da filosofia tradicional, mas antes fatos mutáveis do mundo material, histórico e social. Mesmo assim, a ênfase dada à mudança temporal e à natureza maleável do real (refletidas nas datações das músicas de rap e na expressão “saber que horas são”) representa uma posição metafísica respeitável, em concordância com o pragmatismo americano.

Ainda segundo o filósofo, “essa é a noção é o tema central do disco de Kool Moe Dee, ‘Do you know what time is it?’, e encontra uma expressão no vestuário de Flavor Flav, do Public Enemy: um imenso relógio que ele usa como colar”. Sabendo da admiração dos integrantes dos Racionais pelo grupo norte-americano, inclusive fizeram abertura do show do Public Enemy em São Paulo, podemos inferir que tal filiação temática faz parte de uma forma de persuasão para que os pretos e pobres saiam da passividade e comecem a agir, ou seja, é uma característica filosófica e política do RAP “socialmente engajado” ao qual o grupo paulista é filiado. Em outros RAPs a questão da hora, do despertar para tomar conhecimento dos fatos – independente da natureza ou do âmbito a que eles se referem – está presente direta ou indiretamente.
Retomando o discurso poético de Sou + você, notamos a presença de formas verbais – demorô, iniciando, (o sol não) espera, (o tempo não) cansa, (agora) vem – que nos trazem a percepção de ações que possuem marcada dimensão temporal, tais formas verbais juntam-se a marcadores temporais – noite, dia, agora, sol – e definem a temporalidade como intrinsecamente ligada à pragmática da atividade cotidiana, porém reafirmada como discurso metafórico que clama aos seus ouvintes que o agora é o tempo de mudanças e que o mais importante é a sobrevivência em meio à “selva triste”…
Segundo Amarino Oliveira de Queiroz :18

A tradição das narrativas orais e de outras formas poéticas da oralidade, flagradas através do trabalho desenvolvido por diversos escritores africanos contemporâneos vem se constituindo, em maior ou menor grau, num dado significativo que se alia ao processo de elaboração das literaturas escritas produzidas naquele continente. Tomando-se o exemplo de alguns países africanos de língua portuguesa, poderíamos sugerir que a retomada dessa oratura e, conseqüentemente, sua reelaboração através da palavra fixada pela escrita ou performatizada pela associação entre voz, gesto, movimento, encenação e traço, como ocorre no rap, tem consistido num importante elemento capaz de viabilizar não apenas uma mais completa assimilação dessas modalidades expressivas, mas também uma contribuição efetiva no sentido de afirmar positivamente as identidades culturais daqueles países. (…)

Segundo o que se depreende do artigo, o tradicional canto falado dos africanos é um dos pilares fundadores do RAP contemporâneo, num processo de expansão e de retorno à África, através da mundialização da cultura Hip Hop, processo circular de trocas e hibridismos constantes que veio redefinir parâmetros das chamadas culturas tradicionais, fundamentalmente por intermédio na cultura massiva:

Em meados dos anos 60 do século passado, alimentando-se do canto falado da África, o discurso sobre bases musicais eletrônicas emergidos nos bailes da periferia de Kingston, Jamaica, amplificou-se, reeditando o contador/cantador tradicional em outra versão: o toaster. Este, por sua vez, acabaria por desdobrar-se no DJ e no poeta rapper dentro da cultura Hip Hop que se aproximava. No início da década seguinte, o que hoje identificamos como rap daria um outro salto: a crise econômica no Caribe, desencadeadora de novo processo diaspórico, faria com que o ritmo & poesia dos toasters chegasse ao ambiente urbano da metrópole pós-industrial estadouniudense, ali se infiltrando e a partir dali de difundindo pelo mundo inteiro, até marcar presença na África contemporânea.19

Os antecedentes da oralidade na composição do que chamamos aqui de RAP é um fator preponderante na sua formação, as relações com práticas orais tradicionais são tidas como fundamentais na própria formação do gênero nos guetos20 norte-americanos, assim, provindo da Jamaica, o canto falado, já presente no reggae tradicional, migrou para os EUA e ambientou-se numa fusão com outros estilos da black music. Segundo Goetz :21

Nos Estados Unidos, o hip hop é freqüentemente mitologizado em termos de uma dureza quase sobrenatural sustentando o “gangsta RAP” ou um passado ancestral distante envolvendo o “Griot”, um contador de histórias das sociedades africanas. Os rappers, supostamente informados por essa tradição oral africana e vocalizando os ressentimentos de afro-americanos subalternos, são transformados em uma autêntica força política de uma diáspora africana. Além do mais, o hip-hop é ligado ao destino de afro-americanos que vivem em dificuldade no cinturão de ócio urbano abandonado por uma sociedade pós-industrial.

3 – RAP: Negro drama contemporâneo

Há toda uma discussão acerca das verdadeiras fontes tradicionais do RAP, porém, acreditamos que o que ocorre é um processo de absorção de tradições transformadas histórica e geograficamente, somadas às mutações possibilitadas pela tecnologia e por particularidades e especificidades culturais localizadas. Segundo Douglas Kellner :22

O rap também depende de virtuosismo tecnológico, e o DJ, que manipula os sons eletrônicos, é parte importante da equipe. Portanto trata-se de uma forma que combina tradições orais afro-americanas com sofisticadas modalidades tecnológicas de reprodução de som. Além disso, os sons do rap muitas vezes são transgressivos, infringindo as regras de correção e do discurso aceitável. Trata-se freqüentemente de sons desordenados, com ruídos de carros de polícia, helicópteros, tiros, vidros quebrando e agitação urbana. Os sons do rap são especialmente perturbadores quando tocados no último volume em espaços públicos, anunciando que o inimigo está dentro, que a sociedade está dividida e enfrenta conflitos explosivos.

Um exemplo desses procedimentos que fundem tradição e contemporaneidade foi dado claramente no filme Sou feia, mas tô na moda, um documentário de Denise Garcia que trata, fundamentalmente, do chamado funk sensual produzido por mulheres, principalmente na Cidade de Deus, Rio de Janeiro. Ainda que tratando na maior parte do tempo da produção das mulheres, no filme há mostras do funk mais antigo, dos anos 80 e 90. Em forma de improviso, numa roda, as pessoas batem palmas substituindo as percussões eletrônicas e “mandam” os seus versos. O que se observou foi que, longe da parafernália tecnológica de bases e samplers, e sem a presença do produtor, o que havia era um grupo de jovens – quase todos negros – celebrando triste, alegre ou ironicamente a vida, cantando sobre situações coletivas e individuais.
A partir dessa observação e de outras feitas em contato com funkeiros cariocas (e através do filme Fala, tu 23 ), notamos a proximidade com o samba de roda, o jongo, ou as rodas de partido alto, além de ecos cariocas dos próprios terreiros de umbanda e candomblé. Embora, para um especialista em música, essas observações possam parecer demasiadamente simples e reducionistas, o que se percebeu foi a revitalização de procedimentos que estão presentes em culturas tradicionais, principalmente de origem tribal e da qual as populações pobres em geral são depositárias. No Brasil, a formação circular de pessoas marcando o ritmo com as mãos, dançando, lamentando ou celebrando, é forma tradicional de congregação e essas raízes se fazem presentes como substrato cultural latente e como forma de manifestação estética, corporal e ideológica 24. Inclusive o RAP brasileiro está absorvendo cada vez mais sonoridades locais, principalmente do samba com suas diferentes cadências. Como já foi dito, aqui não se está fazendo um tratado sobre música, não se tem conhecimento técnico do assunto e nem é nossa intenção. Porém, sabendo-se do caráter extremamente coletivo e grupal dessas manifestações e da precariedade dos meios para produzi-las tecnologicamente, notamos como as raízes sonoras das comunidades tradicionais estão presentes, inclusive no próprio RAP. Finalizando essas considerações acerca das características mais ou menos essencialistas do RAP, podemos trazer para a discussão as palavras de Regina Novaes 25, sobre o movimento Hip Hop, no qual o RAP se insere:

Além do RAP (com seus DJs e MCs) e do break, há também o grafite26 , compondo a trilogia sagrada de um fenômeno social que é chamado pelos próprios participantes de movimento ou cultura hip-hop. Sabe-se que nos EUA há grupos violentos, financiados pelos traficantes. Mas há também os grupos de caráter pacífico que se propõem a substituir a violência das brigas entre grupos pela competição na música, na dança e no grafite. No Brasil os grupos que se tornaram conhecidos são contra as drogas e pregam a paz. Essa postura favorece conexões entre os grupos do movimento hip-hop com instâncias governamentais, organizações não-governamentais e igrejas. (…) O hip-hop não é, portanto, um movimento orgânico que produz grupos homogêneos. Ao contrário, existem várias correntes, linhas e ênfases que os diferenciam em países, cidades, bairros e estilos, já que a circulação de bens culturais não se faz nunca em uma direção unilateral. Assim sendo, a discussão sobre as origens nunca vai acabar. Essa é uma controvérsia constitutiva do hip-hop. Na verdade, ao reafirmar ou negar raízes do passado, os grupos estão se posicionando sobre questões do presente, estão fazendo escolhas e construindo alianças e identidades.

O fato dos negros, em suas diferentes etnias, servirem à colonização como força de trabalho escravo é um dado fundamental para a introdução em qualquer assunto relativo à exclusão e ao racismo no Brasil. Buscando a brevidade, trataremos de alguns pontos considerados como relevantes para o desenvolvimento das análises, ou seja, como se instauram o discurso e a prática racistas na sociedade brasileira.
A primeira observação refere-se ao fato de o tratamento mais violento dado aos negros escravizados haver ocorrido nas colônias. Porém, o dado da exclusão se fez sempre presente. Na sociedade ibérica renascentista, as práticas excludentes refletem o ideário de formação da identidade nacional. Segundo escritos datados dos começos do s. XVI, aos negros deveria ser assegurada: “una vida soportable y humana”. Mas, ainda assim, na Espanha, a exclusão legalizada teve de ser posta em prática; aos negros e gitanos eram reservados os piores ofícios. Como exemplo, temos o caso de um

moreno que puso una modestísima escuela de niños en la Laguna, fue requerido a que mostrase la carta de examen expedida por los veedores, y el susodicho responsable la no tenía, por cuya razón, el señor teniente Mayor le notificó cierre de la escuela y no enseñase muchachos, pena de que será castigado.27

O texto oficial nos dá informações interessantes: além da liberdade e cidadania relativas, revela o discurso humanista que intervém e impede a ação de um “trabalhador não-qualificado”, o que ajudaria na manutenção de excluídos não-escolarizados. Negros poderiam (e deveriam) ser cristãos, mas não poderiam ser sacerdotes; poderiam (como impedir?) aprender, mas não estavam legalmente aptos a ensinar. O fato da exclusão legal, em confronto com a exclusão não-oficial, será uma constante nas relações inter-raciais até nossos dias. Para os negros, então: “la única via de integración total eran las uniones sucesivas que iban emblanqueciendo su piel”. Na Sevilha renascentista começa a ser posta em prática a teoria da mulatização: extinção natural do negro. Há as etapas do processo, uma tabela é, cientificamente, elaborada. Tal tabela considera como “gente blanca” o filho da sexta geração de mulato que se unisse sempre com branco. Mas o caso se complica na América com as possibilidades combinatórias entre “puros” e “mestiços”. No Brasil, tal teoria de homogeneização sociorracial desfez-se na modernidade, ou melhor, revestiu-se da capa parda da pobreza, já citada por Caetano Veloso e redefinida nos versos dos Racionais: “mais um filho pardo, bastardo sem pai”. Dada a impossibilidade de absorção do negro nos modos de produção pós-escravagistas e da inserção de brancos pobres, surge uma outra fase de relacionamento inter-racial na América, que se agravou na América Católica.

Como observa Roberto da Matta, o racismo brasileiro vem de fontes eruditas que, por sua vez, provinham das teorias evolucionistas de s. XVII, e toma forma acabada no s. XIX:
como instrumento do imperialismo e como uma justificativa “natural” para a supremacia dos povos da Europa Ocidental sobre o resto do mundo (…) Gobineau colocava a tese de que a sociedade brasileira era inviável porque possuía uma enorme população mestiça, produto indesejado e híbrido do cruzamento de brancos, negros e índios.28

As teorias raciais e racistas sempre buscaram apoio nos discursos e práticas legais, religiosas 29e científicas. Porém, no Brasil, diferentemente dos EUA, a hierarquização legalista ibérica, à qual nos referimos, funciona como no esquema discutido por Foucault, em que há exclusão dentro do próprio sistema social. A particularidade do racismo brasileiro – que se nega internamente, anti-ideológico – nos traz a figura simbólica da mulatização, que se desfaz na exclusão. A ideologia social do racismo brasileiro se renova na crise contemporânea, clímax e acúmulo de mais uma: a impossibilidade de modernização neoliberal em confronto com representações sociais tênues, característica de uma sociedade heterogênea e centralizadora de riqueza.

Se fizemos essa pequena introdução histórica de uma evolução das teorias racistas que convivem com a formação do Brasil, desde a herança humanista ibérica e das modernas e científicas teorias modernas, foi para situar o ponto focal neste momento: a relação entre racismo e violência policial. Se a violência policial no Brasil é constante contra a população em geral, o fato se complica tratando-se de pobres e pretos. Casos de violência associada à prática do racismo são constantes. A imagem do negro/pobre estigmatizado como potencial risco à sociedade é parte integrante de uma visão que, se por um lado é apoiada pelas estatísticas, por outro sugere e redefine um caráter lombrosiano 30 que mascara a complexidade de um processo histórico de exclusão social do qual os negros e seus descendentes são as maiores vítimas. As formas de estigmatização dos negros evoluem e se adaptam às próprias revisões de parâmetros sociais que se redefinem historicamente, os discursos e visões evoluem, mas as práticas discriminatórias e racistas persistem como substrato latente dos indivíduos e da sociedade. Se o discurso biológico não dá conta, redefinem-se novas formas de manutenção dos processos estigmatizantes e excludentes, como afirma Stuart Hall :31

A diferença genética – o último refúgio das ideologias racistas – não pode ser usada para distinguir um povo do outro. A raça é uma categoria discursiva e não uma categoria biológica. Isto é, ela é a categoria organizadora daquelas formas de falar, daqueles sistemas de representação e práticas sociais (discursos) que utilizam um conjunto frouxo, freqüentemente pouco específico, de diferenças em termos de características físicas – cor da pele, textura do cabelo, características físicas e corporais, etc. – como marcas simbólicas, a fim de diferenciar socialmente um grupo de outro.

Mas, segundo Milton Santos : 32

No Brasil, onde a cidadania é, geralmente, mutilada, o caso dos negros é emblemático. Os interesses cristalizados, que produziram convicções escravocratas arraigadas, mantêm os estereótipos, que não ficam no limite do simbólico, incidindo sobre os demais aspectos das relações sociais.

Ora, sabemos que a violência da polícia brasileira é voltada, fundamentalmente, àqueles que historicamente têm de ser postos em seu devido lugar, e “lugar de preto é na senzala”, diz um velho dito irônico. Ou seja, a manutenção dos excluídos em seus nichos habitacionais – subnormais, confinados e promíscuos, segundo a definição do geógrafo – é a tônica de políticas e práticas sociais cristalizadas, normatizadas ou assumidas por poderes oficiais e paralelos. Assim, as periferias urbanas brasileiras apresentam diversas similitudes com os guetos norte-americanos, habitados por seres humanos que foram etiquetados como underclass, subcidadãos que sobrevivem em meio à patologização social e individual. Segundo Wacquant :33

Esse “grupo” pode ser supostamente identificado como por uma série de características intimamente interligadas – desordem: uma sexualidade fora de controle, famílias chefiadas por mulheres, altas taxas de absenteísmo e reprovação nas escolas, consumo e tráfico de drogas, além da propensão ao crime violento, “dependência” persistente em relação a auxílio público, desemprego endêmico (devido, de acordo com algumas versões, à rejeição ao trabalho e à recusa em ajustar-se às estruturas convencionais da sociedade), isolamento em áreas com alta densidade de famílias problemáticas etc.

Ou seja, parece que aqui vemos comprovada a máxima dos Racionais: “periferia é periferia em qualquer lugar”, pois as descrições acima, somadas à questão dos quatro elementos de guetização vistos anteriormente – preconceito, violência, segregação e discriminação – reforçam a conceituação do gueto urbano contemporâneo feito pelo sociólogo francês, com o agravante de que os benefícios sociais brasileiros para tal “categoria” é escasso e/ou insuficiente. Então, no Brasil, com o advento, instituição e crescimento do tráfico de drogas e a consequente guetização e assunção belicista desses territórios o fato se complica, pois assim há o respaldo para o tratamento dado aos habitantes desses locais marginalizados, estigmatizados, onde comumente a única relação com o poder público – salvo a presença de candidatos em campanha eleitoral – se dá através da presença de forças policiais que acabam “se integrando” de maneira conflitante e violenta ao dia-a-dia de tais comunidades.

Para concluir, partimos então em uma direção que pretende ser desembocadura para nossa argumentação, ou seja, como o movimento Hip Hop e, no caso específico, o RAP dos Racionais MC’s insere-se como forma contemporânea de questionamento das formas de exclusão e estigmatização presentes na sociedade brasileira contemporânea, fazendo parte de um processo de tomada de consciência racial radical: o RAP transforma pardos em negros. Segundo Munanga (2004) : 34

Os movimentos negros brasileiros contemporâneos, nascidos na década de 70, retomaram a bandeira de luta dos movimentos anteriores representados pela Frente Negra, substituindo o anti-racismo universalista pelo anti-racismo diferencialista. Sob a influência dos movimentos negros norte-americanos, eles tentam dar uma redefinição do negro e do conteúdo da negritude no sentido de incluir neles não apenas as pessoas fenotipicamente negras, mas sobretudo os mestiços e descendentes de negros, mesmo aqueles que a ideologia do branqueamento já teria roubado.

No Brasil, geralmente, o RAP é tido como uma forma essencialista de expressão artística, nos mesmos modelos, porém apresentando especificidades que o afastaram do RAP consumido hoje nos Estados Unidos. Se, no início, as bases, samplers, sonoridades eram típicas dos EUA, comumente adaptações de bases de hits da black music, houve também a procura de outras referências, sendo buscadas inferências de músicos e ritmos brasileiros, um caso típico de releitura, movimento de hibridização de fontes externas a partir da mescla com sonoridades e temáticas localizadas.35
Pensando especificamente no RAP dos Racionais, trata-se de um discurso que se pretende prática vital. Para os rapazes de São Paulo, o RAP não é jogo, é guerra, e os rappers, conscientes de sua missão, são considerados guerreiros (várias são as passagens em que as metáforas bélicas são utilizadas como confirmação de que existe uma batalha que está sendo perdida pelos Manos). Sobre o termo Mano, é interessante notar que é uma forma de aglutinação fraterna de sujeitos que estão agrupados em um sentido de autoconsciência de sua função: buscar os espaços de cidadania negados pelo “sistema”. Tal categoria seria uma apropriação e ampliação de um conceito que não já tinha razão de ser no Brasil: o brother “negro” dos EUA. O Mano será, então, uma categoria que ultrapassa fronteiras raciais ou étnicas, porém que é formada, em sua grande maioria, por descendentes de negros e de migrantes. Em uma das canções, Negro drama, com seu caráter autobiográfico, está dito sobre o nascimento do personagem: “Família brasileira/ dois contra o mundo/ mãe solteira/ de um promissor vagabundo (…) O bastardo/ mais um filho pardo/ sem pai”. Ao se assumir como “pardo”, denominação genérica dada aos seres híbridos comuns no Brasil, o discurso rejeita o embate negro x branco. Ao internalizar a nominação pejorativa daquilo que não é bem definido enquanto cor da pele, o discurso poético vai agir na direção que aponta para o Mano, ou seja, para um ser sem cor, fruto do processo de exclusão social. Embora conscientes de que a marca epidérmica é fundamental, no RAP dos Racionais o embate já migrou, o inimigo não é o sujeito branco – embora ele possa aparecer assim em diversas situações – mas sim o “sistema” branco capitalista que empurra para os guetos urbanos 36 toda uma série de pessoas que poderiam ser definidas, inclusive, como “os brancos quase pretos de tão pobres”, tão poeticamente pintados por Caetano Veloso e Gilberto Gil no Rap-lamento Haiti. Porém, nos RAPs dos Racionais, o fato de possuir a pele escura sempre é agravante ao problema da estigmatização e consequente exclusão e vitimação por parte dos organismos estatais de controle e dos tentáculos do poder – policiais, seguranças, gerentes de lojas etc. Sabemos, porém, que o tratamento dado ao negros é diferenciado, em todos os níveis de relações sociais. Após análises estatísticas, a professor Marcelo J. P. Paixão37,chegou à seguinte conclusão que, de certa forma, conclui nossas observações:

O que essa plêiade de indicadores demonstra é a existência de uma coerência entre dados no seguinte sentido: i) seja qual for o indicador escolhido para analisar as desigualdades raciais, em todos eles os negros encontram-se em uma situação pior que a dos brancos; ii) seja qual for a região do país, os indicadores sociais e demográficos dos negros são menos favoráveis que os indicadores dos brancos; iii) mesmo quando se desagregam estes dados por gênero, o que se vê é que os homens brancos estão em melhor situação que as mulheres brancas, que estão em condições mais favoráveis que os homens negros, que estão em uma situação menos grave que as mulheres negras. Sendo assim, verifica-se que os argumentos de que no Brasil ser branco ou ser negro é indiferente do ponto de vista da estratificação social não são verdadeiros, ou, antes, pode-se argumentar que o problema social brasileiro possui um evidente e nítido componente social.

O RAP dos Racionais, fundamentalmente nos últimos dois trabalhos (Sobrevivendo no Inferno, de 1997 e Nada como um dia após o outro, de 2003) passou dos resquícios de uma visão racial com ecos do movimento norte-americano, para uma visão local interessante, em que o fundamental é a interação do pobre favelado a um processo de conscientização e busca da cidadania. Segundo Maria Rita Kehl : 38

Alguma coisa mudou na atitude de Brown e seus manos depois de Sobrevivendo no inferno, onde eles demarcavam o território do rap excluindo os “filhinhos de papai” que se faziam passar por malandros escutando os Racionais MC`s no rádio do carro. Em 2002, os músicos mais populares do hip hop paulista entenderam que a potência de seu “rythm and poetry” ultrapassa barreira de classe e de raça. Ninguém consegue impedir que os jovens do Jardim América 39 se identifiquem com o discurso produzido pelos moradores do Jardim Ângela.

Porém, o sabemos, como nos fala Kebengele Munanga, que o processo de “branqueamento físico da sociedade brasileira” fracassou e os abismos sociais estigmatizantes perduram, se os playboys assumem roupas, gestos e falas, o que se pode fazer? Mas no próprio cd está incluída a sintomática Da ponte pra cá, um enfático e irônico grito de exclusão dos playboys.

quero sua irmã e seu relógio Teg Heuar
Um conto se pá, da pra catar
ir para a quebrada e gastar antes do galo cantar
Um triplex para a coroa e o que malandro quer
não só desfilar de Nike no pé
Ô, vem com a minha cara e o din-din do seu pai
mas no role com nóis “ce” não vai
Nóis aqui vocês lá, cada um no seu lugar.
Entendeu? Se a vida é assim, tem culpa eu

Brown continua afirmando que não tem nada pra dizer para “os classe média”. Enquanto produto da indústria cultural, o RAP pode ser consumido por quem quer que seja, mas sabemos que o público-alvo, termo que aqui cai muito bem, continua sendo os moradores das periferias das cidades brasileiras. Como elemento integrante da cultura Hip Hop, o RAP dos Racionais é estetização e também parte de um ideário político que se conjuga com uma série de orientações que reivindicam direitos e melhorias estruturais e culturais para as comunidades pobres. A maioria dos shows ocorre ainda em espaços que não são os destinados aos pop stars. As aparições na TV escassearam ainda mais, porém as redes de comunicação se ampliam e a fala poética que reverbera os anseios de pretos, pobres, favelados se consolida como uma poética popular que busca, através da palavra, a conscientização daqueles que historicamente estiveram sempre à margem dos mínimos direitos do cidadão.

Vamos agora nos ater mais detalhadamente a um dos RAPs mais famosos dos Racionais, Negro Drama, que estruturalmente está dividido em duas partes principais, nas quais duas vozes poéticas e performáticas falam da dificuldade de sobrevivência de quem vive entre o sucesso e a lama ou entre a lama e a fama. Há variações do verso-mote, Negro drama, que oscila para negro trama, ou sente o drama, algumas aliterações que enriquecem a sonoridade das rimas. Na letra constam três gêneros narrativos tradicionais que são negados: “Não é conto, nem fábula, lenda ou mito”. E aqui transparece uma característica que foi sendo depurada na poética dos Racionais. Como afirmou Mano Brown, no início da carreira as letras produzidas usavam em maior quantidade de versos, um vocabulário mais elaborado, técnico, poderíamos dizer, mas que, segundo o próprio rapper, parecia linguagem de sociólogo. Em Sobrevivendo no inferno (1997), a oralidade – com gírias, onomatopéias, referência da linguagem publicitária, entre outras formas – foi explorada com efeitos surpreendentemente expressivos, mas também havia a introdução de referências que ultrapassam o léxico do dia-a-dia e do gírio (como Cidadão Kane). No disco duplo de 2003, Nada como um dia após o outro dia, as referências da cultura letrada aparecem com uma frequência maior, como as citadas acima (conto, fábula, lenda e mito). O enunciador poético se declara um Poeta entre o tempo e a memória, verso que nos remete ao caráter ambíguo da genética do próprio RAP que possui em sua formação heranças arcaicas e que se move dentro da temporalidade histórica do agora. Em Estilo cachorro, irônica saga de um rolê noturno, o personagem é “pontual como o Big Ben, quatro anos assim, nem Shakespeare imaginaria um fim”, ou seja, o “clássico” junta-se ao popular e ao trivial. Se pensarmos no caráter pedagógico do RAP dos Racionais, podemos cogitar que tal presença de referências da cultura “oficial” pode servir como forma de levar os ouvintes a buscarem o significado e produtividade de tais referentes na mensagem poética do RAP.

Em Negro Drama nota-se a afirmação discursiva de que raízes culturais, raciais e ideológicas seriam mais fortes que o poder dado aos ídolos pops, posição contrária à aculturação sofrida, por exemplo, pela personagem descrita no RAP Qual mentira vou acreditar que se transforma de uma linda negra passista em uma vaca nazista que condena o tipo e as atitudes de pessoas de sua mesma origem.

O tema da pressão sofrida pela ambiguidade de ser um Mano e um artista reconhecido também se faz presente nos últimos dois trabalhos dos Racionais, tal fato relaciona-se com todas as implicações relativas às relações de poder e a “patrulha ideológica” sofrida, além da também ambígua relação com o tráfico e o consumo de drogas, pois as letras do grupo são firmes na crítica à alienação em todas as suas formas.

Em Negro Drama, a introdução, falada, nos introduz ao sentido narrativo da história pessoal, ou seja, reivindica o direito à palavra que possui a verdade, pois é um discurso poético (ficcional) autenticado pelo seu emissor. Não se trata de apenas contar mais uma história, o caso agora é dar um depoimento vital, de um testemunho que dota, poeticamente, o discurso da verticalização necessária de uma história vivenciada, daí o caráter exemplar épico ser trazido através da tecnologia: o cd traz a voz do gueto para o mundo digital: tradição e modernidade que criam possibilidades outras de revisão dos paradigmas da cultura pop.

Na segunda parte do RAP, inicia-se a outra parte da narrativa poética de uma história que não será contada por nenhum Forest Gump, pois nesse RAP busca-se a verdade que “daria um filme”, então a reminiscência autobiográfica apresenta o personagem e a cena: “Uma negra, uma criança nos braços, solitária na floresta de concreto e aço”. Então evidencia-se a negativa anterior, ou seja, os versos dizem a verdade, não estamos lidando, ouvintes/leitores, com conto, fábula, lenda ou mito. Nos versos posteriores, contundentes e perspicazes, está dito o seguinte:

Eu sou problema de montão
de carnaval a carnaval
Eu vim da selva, sou leão
sou demais pro seu quintal
Problema com escola eu tenho mil, mil fita
Inacreditável, mas seu filho me imita
No meio de vocês ele é o mais esperto,
Ginga e fala gíria. Gíria não, dialeto.

Esses versos, de certa forma, propulsionaram nossa pesquisa, e neles se concentra um tipo de enfrentamento que estimulou, por exemplo, as observações de Maria Rita Kehl sobre o possível trânsito entre a mensagem do Capão e o mundo dos playboys. Porém, acreditamos que a ironia dessa pequena “vitória” contra o Senhor de engenho funciona, através da reversibilidade irônica, como afirmação da ética e da estética da favela, exemplificada na auto-valorização dos jovens e da quebrada (o bairro, a favela) que ocorre, por exemplo, em Da ponte pra cá. Finalizando, há, sabemos, uma discussão que perpassa o tipo de pesquisa que aqui se apresenta, ou seja, sobre a qualidade literária do corpus em questão, debate que evidencia valorações sobre cultura e arte preferenciais. E aqui apresentamos algo que é descrito por um de seus autores como som de preto, sem massagem. Estamos lidando com uma prática discursiva, performática, estilística, ou seja, poética, produzida por quem sempre esteve abaixo da linha indelével que separa e define padrões culturais e delimita espaços territoriais e simbólicos, ou seja, lidamos com ética e estética, formas estas conjugadas em algo distinto. Mas, talvez, para quem o RAP se dirige preferencialmente, ele seja algo muito maior, seja prática política, ponte entre Arte e Vida, ou simplesmente alento vital, ou seja, Ritmo e Poesia.
APÊNDICES

I – Da ponte pra cá

A lua cheia clareia as ruas do capão,
Acima de nós só Deus humilde né não? né não?
Saúde: plin, mulher e muito som,
Vinho branco para todos um advogado bom
Cof,cof, ah, esse frio tá de fuder,
Terça feira é ruim de role, vou fazer o que
Nunca mudou nem nunca mudará
O cheiro de fogueira vai, perfumando o ar
Mesmo céu, mesmo cep no lado sul do mapa,
Sempre ouvindo um rap para alegrar a rapa
Nas ruas da sul eles me chamam brown,
Maldito,vagabundo, mente criminal
O que toma uma táça de champagne também curte
Desbaratinado, tubaína, tutti-frutti.
Fanático, melodramático, bom-vivant,
Depósito de mágoa quem esta certo é o saddam, ham…
Playboy bom é chinês, australiano,
Fala feio e mora longe não me chama de mano
“- e aí brother, hey, uhuuul, ” pau no seu c…aaaíí,
Três vezes seu sofredor odeio todos vocês
Vem de artes marciais que eu vou de sig sauer,
Quero sua irmã e seu relógio tag heuer
Um conto se pá, dá pra catar,
Ir para a quebrada e gastar antes do galo cantar.
Um triplex para a coroa é o que malandro quer,
Não só desfilar de nike no pé
Ô vem com a minha cara e o din-din do seu pai,
Mais no rolé com nóis ?ce? não vai
Nóis aqui, vocês lá, cada um no seu lugar.
Entendeu? se a vida é assim, tem culpa eu?
Se é o crime ou o creme, se não deves não teme,
As perversa se ouriça e os inimigo treme
E a neblina cobre a estrada de itapecirica…
Sai, Deus é mais, vai morrer para lá zica

Não adianta querer, tem que ser tem que pá,
O mundo é diferente da ponte pra cá
Não adianta querer ser tem que ter para trocar,
O mundo é diferente da ponte pra cá

Outra vez nóis aqui vai vendo,
Lavando o ódio embaixo do sereno
Cada um no seu castelo, cada um na sua função,
Tudo junto, cada qual na sua solidão
Hei, mulher é mato a Mary jane impera,
Dilui a rádio e solta na atmosfera
Faz da quebrada o equilíbrio ecológico,
Distingüe o judas só no psicológico
Hó, filosofia de fumaça analise,
E cada favelado é um universo em crise
Quem não quer brilhar, quem não? mostra quem,
Ninguém quer ser coadjuvante de ninguém
Quantos caras bom, no auge se afundaram
Por fama
E tá tirando dez de havaiana
E quem não quer chegar de honda preto em banco de
couro,
E ter a caminhada escrita em letras de ouro
A mulher mais linda sensual e atraente,
A pele cor da noite, lisa e reluzente
Andar com quem é mais leal e verdadeiro,
Na vida ou na morte o mais nobre guerreiro
O riso da criança mais triste e carente,
Ouro, diamante, relógio e corrente
Vem minha coroa onde eu sempre quis pôr,
De turbante, chofer uma madame nagô.
Sofrer pra que mais se o mundo jaz do maligno,
Morrer como homem e ter um velório digno
Eu nunca tive bicicleta ou video-game,
Agora eu quero o mundo igual cidadão Kane,
Da ponte pra cá antes de tudo é uma escola,
Minha meta é dez, nove e meio nem rola
Meio ponto a ver, hum e morre um,
Meio certo não existe truta o ditado é comum
Ser humano perfeito, não tem mesmo não,
Procurada viva ou morta a perfeição
Errare humanus est, grego ou troiano,
Latim, tanto faz pra mim: fi de baiano
Mas se tiver calor, quentão no verão,
Ce quer da um rolé no capão daquele jeito,
Mas perde a linha fácil, veste a carapuça,
Esquece estes defeitos no seu jaco de camurça
Jardim Rosana, Três estrela e imbé,
Santa Tereza, valo velho e dom José.
Parque chácara, lídia, vaz,
Fundão muita treta com a Vinícius de Moraes

Refrão

Mas não leve a mal tru, ce não entendeu,
Cada um na sua função, o crime é crime e eu sou eu.
Antes de tudo eu quero dizer, pra ser sincero
Que eu não pago de quebrada mula ou banca forte.
Eu represento a sul, conheço loco na norte,
No 15 olha o que fala, perus, chicote estrala
Ridículo é ver os malandrão vândalo,
Batendo no peito feio e fazendo escândalo
Deixa ele engordar, deixa se criar bem,
Vai fundo, é com nóis, super star, superman, vai…
Palmas para eles digam hey, digam how,
Novo personagem pro Chico Anísio show
Mas firmão né, se deus quer sem problemas,
Vermes e leões no mesmo ecossistema
Ce é cego doidão? então baixa o farol!
Hei hou, se qué o quê com quem diow?
Tá marcando, não dá pra ver quem é contra a luz
Um pé de porco ou inimigo que vem de capuz
Hey truta eu tô louco, eu tô vendo miragem,
Um bradesco bem em frente a favela é viagem
De classe “a” da “tam” tomando jb
Ou viajar de blazer pró 92 dp
Viajar de GTI quebra a banca,
Só não pode viajar com os mão branca
Senhor guarda meus irmão nesse horizonte cinzento,
Nesse capão redondo, frio sem sentimento
Os manos é sofrido e fuma um sem dar goela,
É o estilo favela e o respeito por ela
Os moleque tem instinto e ninguém amarela.
Os coxinha cresce o zóio na função e gela
Qual mentira vou acreditar
São apenas dez e meia, tem a noite inteira
Dormir é embaçado, numa sexta-feira
TV é uma merda, prefiro ver a lua
Preto, Edy Rock, Star, a caminho da rua
hã… sei lá vou pruma festa, se pam
se os cara não colar, volto às três da manhã
Tô devagar, tô a cinqüenta por hora,
ouvindo funk do bom, minha trilha sonora.
A polícia cresce o olho, eu quero que se foda
Zona Norte, a bandidagem curte a noite toda.
Eu me formei suspeito profissional,
bacharel pós-graduado em “tomar geral”.
Eu tenho um manual com os lugares, horários,
de como dar perdido… ai, caralho..

Prefixo da placa é MY
sentido Jaçanã, Jardim Ebron
Quem é preto como eu já tá ligado qual é,
Nota Fiscal, RG,polícia no pé
escuta aqui: o primo do cunhado do meu genro é mestiço,
racismo não existe, comigo não tem disso,
é pra sua segurança
Falou, falou, deixa pra lá.
Vou escolher em qual mentira vou acreditar.
Tem que saber mentir, tem que saber lidar
em qual mentira vou acreditar?

A noite é assim mesmo, então… deixa rolar.
Em qual mentira vou acreditar?
Tem que saber mentir, tem que saber lidar.
Em qual mentira vou acreditar?
Pó, que caras chato, o!
Quinze pras Onze,
eu nem fui muito longe e os “home” embaçou.
Revirou os banco, amassou meu boné branco,
sujou minha camisa do Santos.
Eu nem me lembro mais pra onde eu vou.
E agora, que será que ligou
“Espere na atração, eu tô na Zona Sul,
eu chego rapidinho,assinado: Blue”.
Pode crer, naquele lado de Santana,
conheço uns lugar, conheço umas fulana.
Juliana? Não. Mariana? Não. Alessandra? Não. Adriana?
O nome é só um detalhe, o nome é só um nome.
953… hum, esqueci o telefone.
“Ôrra, demorou, heim?!”
E aí, Blue, como é?
Isso aqui é um inferno, tem uma pá de mulher,
trombei uma pá de gente, uma pá de mano,
tô há quase uma hora te esperando.
Passou uma figura aqui e deu idéia,
disse que te conhece e pá, chama Léa.
Cabelo solto, vestido vermelho,
estrategicamente a um palmo do joelho.
Os caras comentaram o visual,
“oz bi”, que tal, pagando o maior pau.
Ninguém falou, ah! ah! mas eu ouvia
meio mundo xingando por telepatia
(filha da puta!).
Economizava meu vocabulário,
não tinha o que falar, falava o necessário
meio assim, é claro, será qual é que é, truta
é o que não falta, mina filha da puta.
Tudo comigo, confio no meu taco,
versão africana “Don Juan de Marco”,
tudo muito bom, tudo muito bem,
sei lá o que é que tem, idéia vai, idéia vem,
ela era princesa, eu era o plebeu,
quem é mais foda que eu, espelho, espelho meu.
“Tipo Taís de Araújo ou Camila Pitanga?”.
Uma mistura. Confesso: fiquei de perna bamba.
Será que ela aceita ir comigo pro baile?
Ou ir pra Zona Sul ter um “Grand Finale”?
Amor com gosto de gueto até às seis da manhã,
me chamar de “meu preto” e me cantar “Djavan”.
Ninguém ouviu, mas… puta que pariu!
Em fração de segundos meu castelo caiu!
A mais bonita da escola, rainha, passista,
se transformou numa vaca nazista!
Eu ouvindo James Brown, pá, cheio de pose,
ela pergunto se eu tenho… o quê? Gun’s Roses?
Lógico que não! A mina quase histérica,
meteu a mão no rádio e pôs na Transamérica.
Como é que ela falou? Só se liga nessa,
que mina cabulosa, olha só que conversa:
que tinha bronca de neguinho de salão (não…)
que a maioria é maloqueiro e ladrão (aí não…).
Aí não, mano! Foi por pouco,
Eu já tava pensando em capotar no soco
Disse pra mim não falar gíria com ela,
pra me lembrar que não to na favela.
Bate-boca, maior goela, será que é meia-noite, já?
A Cinderela virou bruxa do mal.
Me humilhar não vai, vai tirar o caralho
levanta o seu rabo racista e sai!
Eu conheço essa perversa há maior cara
correu a banca toda de uns “pleiba” que cola lá na área.
Pra mim ela já disse que era solitária
que a família era rígida e autoritária
Tem vergonha de tudo, cheia de complexo
que ainda era cedo pra pensar em sexo

REFRÃO

Ih! Caralho! Olha só quem tá ali?
O que que esse mano tá fazendo aqui?
E aí, esse maluco veio agora comigo,
Ligou, que era até seu amigo,
que morava lá na sul,irmão da Cristiane,
dei um “cavalo” pra ele no Lausane.
Ia levar um recado pra uns parente local
, da Igreja Evangélica Pentecostal.
Desceu do carro acenando a mão
“Na paz do Senhor!”.
Ninguém dava atenção.
Bem diferente do estilo dos crentes.
Um bom “jaco” e touca, mas a noite tá quente.
Que barato estranho, só aqui tá escuro.
Justo nesse poste não tem luz de mercúrio.
Passaram vinte fiéis até agora,
dá cinco reais, cumprimenta e sai fora.
Um irmão muito sério, em frente à garagem
outro com a mão na cintura em cima da laje.
De vez em quando a porta abre e um diz:
“tem do preto e do branco?” e coça o nariz.
Isso sim, isso é que é união!
O irmão saiu feliz, sem discriminação!
De lá pra cá veio gritando, rezando:
“Aleluia, as coisas tão melhorando!”.
Esse cara é dentista, sei lá…
diz que a firma dele chama “Boca S.A.”.
Será material de construção? Vendedor de pedras?
Lá na zona sulera patrão.
Ih! patrão o caralho! Ele é safado
Fugiu do Valo Velho com os dias contados
A paranóia de fumar era fatal
Arrombava os barracos, saqueava os varal
Bateu na cara do pai de um vagabundo.
Hum… tá fazendo hora extra no mundo
A noite tá boa, a noite tá de barato
mas puta, gambé, pilantra é mato

Tem que saber mentir
tem que saber lidar.
Em qual mentira vou acreditar?
A noite é assim mesmo, então deixa rolar
Em qual mentira vou acreditar?

Negro Drama
NEGRO DRAMA
entre o sucesso e a lama
Dinheiro, problemas, invejas, luxo, fama
NEGRO DRAMA
Cabelo crespo e a pele escura
A ferida, a chaga, à procura da cura
NEGRO DRAMA
Tentar ver e não vê nada
A não ser uma estrela
Longe, meio ofuscada

Sente o drama,
O preço, a cobrança
No amor, no ódio
A insana vingança

NEGRO DRAMA
Eu sei quem trama
E quem tá comigo
O trauma que eu carrego
Pra não ser mais um preto fodido

O drama da cadeia e favela,
Túmulo, sangue, sirene, choros e velas
Passageiro do Brasil, São Paulo, agonia
que sobrevive em meio às honras e covardias
Periferias, vielas, cortiços
Você deve tá pensando
O que você tem a ver com isso

Desde o início, por ouro e prata
Olha quem morre, então, veja você quem mata
Recebe o mérito a farda que pratica o mal
Me ver pobre, preso ou morto já é cultural
Histórias, registros e escritos
Não é conto, nem fábula, lenda ou mito
Não foi sempre dito que preto não tem vez
Então, olha o castelo e não
foi você quem fez, Cuzão

Eu sou irmão dos meus truta de batalha
Eu era a carne, agora sou a própria navalha

Tim…Tim…
Um brinde pra mim
Sou exemplo de vitórias,
Trajetos e Glórias

O dinheiro tira um homem da miséria
Mas não pode arrancar de dentro dele a favela
São poucos que entram em campo pra vencer
A alma guarda o que a mente tenta esquecer

Olho pra traz, vejo a estrada que eu trilhei
Mó cota
Quem teve lado a lado e quem só ficou na bota
Entre as frases, fases e várias etapas
Do quem é quem, dos Mano e das Mina fraca

Hum..
NEGRO DRAMA de estilo
Pra ser, se for tem que ser
Se temer é milho
Entre o gatilho e a tempestade
Sempre a provar
Que sou homem e não um covarde
Que Deus me guarde
Pois eu sei que ele não é neutro
Vigia os rico, mas ama os que vêm do gueto
Eu visto preto por dentro e por fora
Guerreiro, Poeta entre o tempo e a memória
Ora, nessa história, vejo o dólar
E vários quilates. Falo pro mano
Que não morra, e também não mate
O Tic Tac
Não espera, veja o ponteiro
Essa estrada é venenosa
E cheia de morteiro
Pesadelo, hum, é um elogio
Pra quem vive na guerra
A paz nunca existiu
Num clima quente
A minha gente soa frio
Vi um Pretinho
Seu caderno era um Fuzil.

NEGRO DRAMA
Crime, futebol, música. Carai!
Eu também não consegui fugir disso aí
Eu sou mais um
Forest Gump é mato
Eu prefiro contar uma história real
Vou contar a minha….

Daria um filme
Uma negra e uma criança nos braços
Solitária na floresta de concreto e aço
Veja, olhe outra vez o rosto na multidão
A multidão é um monstro sem rosto e coração
Hey, São Paulo, terra de arranha-céu
A garoa rasga a carne, é a Torre de Babel
Família brasileira, dois contra o mundo
Mãe solteira de um promissor vagabundo
Luz, câmera e ação: gravando a cena vai
O bastardo, mais um filho pardo, sem pai
Hey, Senhor de engenho, eu sei bem quem você é
Sozinho cê num güenta
Sozinho cê num güenta a pé
Cê disse que era bom, e as favela ouviu
Lá também tem uísque e Red Bull
Tênis Nike, Fuzil
Admito, seus carro é bonito
Hé, e eu não sei fazer
Internet, vídeo-cassete, os carro loko
Atrasado eu tô um pouco, sim, tô, eu acho
Só que tem que
seu jogo é sujo e eu não me encaixo
Eu sou problema de montão
de carnaval a carnaval
Eu vim da selva, sou leão
sou demais pro seu quintal
Problema com escola eu tenho mil, mil fita
Inacreditável, mas seu filho me imita
No meio de vocês ele é o mais esperto,
Ginga e fala gíria. Gíria não, dialeto
Esse não é mais seu, hó, subiu
Entrei pelo seu rádio, tomei, cê nem viu
Nós é isso, aquilo. Quê? Cê não dizia
Seu filho quer ser preto, rá, que ironia
Cola o pôster do Two-Pac aí
Que tal? Que cê diz?
Sente o negro drama
Vai, tenta ser feliz
Hey, bacana
Quem te fez tão bom assim
O que cê deu, o que cê faz
O que cê fez por mim
Eu recebi seu Tik, quer dizer Kit
De esgoto a céu aberto e parede madeirite
De vergonha eu não morri
Tô firmão, eis-me aqui
Você não, você não passa
Quando o Mar Vermelho abrir
Eu sou o Mano
Homem duro do gueto, Brown, Obá
Aquele loko que não pode errar
Aquele que você odeia amar nesse instante
Pele parda e ouço funk
E de onde vem os diamante?
Da lama
Valeu, mãe
Negro drama
Aí, na época dos barraco de pau lá na pedreira
onde vocês tavam?
o que vocês deram por mim ?
o que vocês fizeram por mim ?
agora tá de olho no dinheiro que eu ganho
agora tá de olho no carro que eu dirijo
demorou, eu quero é mais
eu quero é ter sua alma
aí, o rap fez eu ser o que sou
Ice blue, Edy rock e KL Jay, e toda a família
e toda geração que faz o rap
a geração que revolucionou
a geração que vai revolucionar
anos 90, século 21é desse jeito
aí, você saí do gueto
mas o gueto nunca saí de você, morou, Irmão
você tá dirigindo um carro
o mundo todo tá de olho em você, morou
sabe por quê?
pela sua origem, morou Irmão
é desse jeito que você vive
é o negro drama
eu não li, eu não assisti
eu vivo o negro drama, eu sou o negro drama
eu sou o fruto do negro drama
aí dona Ana, sem palavra, a senhora é uma rainha, rainha
mas aí, se tiver que voltar pra favela
eu vou voltar de cabeça erguida
porque assim que é
renascendo das cinzas
firme e forte, guerreiro de fé
Vagabundo nato.
* Jorge Nascimento formou-se em Letras pela UFRJ, onde cursou graduação, mestrado e doutorado em Língua Espanhola e Literaturas Hispânicas. Desde 1993 é professor da Universidade Federal do Espírito Santo, atuando na graduação e no mestrado em Estudos Literários, desenvolvendo pesquisas sobre literatura hispano-americana e brasileira. Atualmente pesquisa o RAP dos Racionais MC`s e Literatura Marginal.
Contato: jorgelizn@gmail.com

 

 

1 Entre o pessoal do RAP, o termo função é utilizado como trabalho, atividade, “correria”.

2 SANSONE, Lívio. Negritude sem etnicidade: o local e o global nas relações raciais e na produção cultural negra no Brasil. Salvador: EdUFBA, São Paulo: Pallas, 2003. (p.12)

3 SODRÉ, Muniz. Claros e escuros: identidade, povo e mídia no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1999. (p. 22)

4 PEDREIRA, Fernando. In: Jornal do Brasil 12/05/93.

5 Fantasmas primitivos e superstições cibernéticas. Editorial de O Estado de S. Paulo, 17/08/86.

6 O “Estado” contra Tião Macalé. Folha de S. Paulo, 05-09-93.

7 Entrevista concedida a Alexandre Medeiros e Tim Lopes. Jornal O Dia, 31-01-94.

8 Cit. In: PARANHOS, A. Os desafinados do samba na cadência do Estado Novo. Revista Nossa História. Ano 1, n.4, fev., 2004. (p. 21)

9 Formado em 1990, por Mano Brown, Edy Rock, Ice Blue e KL Jay, o grupo Racionais Mc’s destacou-se na coletânea “Consciência Black”, lançada pela gravadora Zimbabwe Records, com os sucessos: “Pânico na Zona Sul” e “Tempos Difíceis”. Em 1992, lançaram seu primeiro LP “Holocausto Urbano” que vendeu cerca de 50 mil cópias. Nos anos 90 e 91 trabalharam com shows por toda a capital e interior, receberam o Prêmio de Melhor Grupo de RAP do Ano e participaram da abertura do Show do Public Enemy no Ginásio do Ibirapuera. Em 1992 deram um importante passo, e fizeram shows na Febem e deram palestras para alunos nas escolas públicas. Em 1993, foram a atração no Teatro das Nações, com o projeto Música Negra em Ação. O sucesso total veio com o CD “Raio X do Brasil”. Conquistaram o maior Prêmio da Música Popular Brasileira o “Prêmio Sharp”, Mano Brown ganhou como compositor revelação com a música “Homem na Estrada”. No final de 1997, com seu próprio selo (Cosa Nostra), lançaram o CD “Sobrevivendo no Inferno”, que vendeu mais de 500mil cópias, sem contar os CDS piratas. No ano de 1998, lançaram dois videoclips “Diário de um Detento” e “Mágico de Oz”. Em agosto do mesmo ano foram os vencedores do Vídeo Music Brasil, promovido pela MTV, recebendo os prêmios “Melhor Grupo de Rap” e “Escolha da Audiência”. Em 2003 lançaram o CD “Nada como um dia depois de outro dia”. (Fonte:http:// www.capao.com.br)

10 É melhor não aparecer nestes programas que tiram sarro dos grupos. Não iríamos vender nosso som para estes caras. Não somos produto, somos artistas. (Edy Rock, Racionais, Jornal da Tarde, 4/8/98).

11 Os gregos, que tinham bastante conhecimento de recursos visuais, criaram o termo estigma parar se referirem a sinais corporais com os quais se procurava evidenciar alguma coisa de extraordinário ou mau sobre o status moral de quem os apresentava. Os sinais eram feitos com cortes ou fogo e avisavam que o portador era um escravo, um criminoso ou traidor – uma pessoa marcada, ritualmente poluída, que devia ser evitada, especialmente em lugares públicos. (GOFFMAN, I. Estigma. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1975. p. 11).

12 (Revista Isto É, 21 de outubro de 98).

13 SCHUSTERMAN, Richard. Vivendo a arte: o pensamento pragmatista e a estética popular. São Paulo: Editora 34, 1998. Trad. Gisela Domschke. (pp. 164-165)

14 SCHUSTERMAN, Richard. Estética rap: violência e a arte de ficar na real. In: DARBY, Derrick; SHELBY, Tommie. Hip Hop e a filosofia. São Paulo: Madras, 2006. Trad. Martha Malvezzi Leal. (pp. 68-69)

15 TATIT, Luiz. O século da canção. Cotia: Ateliê, 2004. (p. 243)

16 A canção, o rap, Tom e Cuba, segundo Chico. Jornal Folha de S. Paulo, 26/12/04. Disponível em:http://www.chicobuarque.com.br/texto/entrevistas/entre_fsp_261204c.htm
Idem (p. 160).
Cf. Griots, cantadores e rappers: do fundamento do verbo às performances da palavra. In: DUARTE, Zileide (org.). Áfricas de África. Recife: Programa de Pós-graduação em Letras / UFPE, 2005. (p. 11-12)

17 Idem (p.13)

18 O gueto norte-americano, o único que veio à luz do outro lado do Atlântico – os brancos de diversas origens, inclusive judeus, conheceram apenas bairros étnicos, de recrutamento essencialmente voluntário e heterogêneo, e que, mesmo miseráveis, sempre permaneceram abertos para o exterior por meio de pequenos canais de comunicação com uma sociedade branca norte-americana compósita -, representa a realização hiperbólica dessa lógica de dominação etnorracial imposta por um poder exterior. Nascido nas primeiras décadas do século passado sob o impulso das grandes migrações de negros dos estados do Sul, descendentes de escravos libertos. (WACQUANT, Loïc. As duas faces do gueto. São Paulo: Boitempo, 2008. Trad. Paulo César Castanheira. p. 18)

19 OTTMANN, Goetz. Entre a fluidez e a unidade: o que é local no Hip-Hop brasileiro. Disponível em http://www.imaginario.com.br/artigo/a0061_a0090/a0085.shtml

20 KELLNER, Douglas. A voz negra: de Spike Lee ao rap. In: —. Cultura e mídia. São Paulo: EDUSC, 2001. Trad. Ivone C. Benedetti. (p. 232)

21 Macarrão, 33 anos, apontador do jogo do bicho, duas filhas, morador do morro do Zinco e torcedor do Fluminense. Toghum, 32 anos, vendedor de produtos esotéricos, budista e morador de Cavalcante. Combatente, 21 anos, moradora de Vigário Geral, frequentadora da Igreja do Santo Daime e operadora de telemarketing. Durante 9 meses, entre 2002 e 2003, uma equipe filmou o dia-a-dia destes três cariocas da Zona Norte, que batalham e sonham em fazer da sua música, o RAP, o seu ganha-pão. O resultado é uma crônica composta pelo cotidiano, letras e dramas deste três personagens. (Sinopse do filme disponível em: http://adorocinema.cidadeinternet.com.br/filmes/fala-tu/fala-tu.htm)

22 Podemos pensar no padre Bartolomé de las Casas, citado por Borges, que afirmava que era um pecado escravizar índios, já que havia negros que serviriam melhor a tal prática.

23 Este artigo está publicado em Proposta – Revista Trimestral de Debate da FASE, Ano 30. 90: 66-83. Disponível emhttp://www.redemulher.org.br/generoweb/rnovaes.htm

24 Um quarto elemento é considerado pelos militantes do movimento é a Consciência.

25 Cit. In: SANTA CRUZ GAMARRA, D. El negro en iberoamérica. CUADERNOS HISPANOAMERICANOS. Madrid: n. 451-452., jul.-oct., 1988.

26 MATTA, Roberto da. Relativizando: uma introdução à antropologia social. Rio de Janeiro: Rocco, 1990.

27 Podemos pensar no padre Bartolomé de las Casas, citado por Borges, que afirmava que era um pecado escravizar índios, já que havia negros que serviriam melhor a tal prática.

28 Cesare Lombroso foi um professor universitário e criminologista italiano, nascido a 6 de novembro de 1835, em Verona. Tornou-se mundialmente famoso por seus estudos e teorias no campo da caracterologia, ou a relação entre características físicas e mentais. Lombroso tentou relacionar certas características físicas, tais como o tamanho da mandíbula, à psicopatologia criminal, ou a tendência inata de indivíduos sociopatas e com comportamento criminal. Assim, a abordagem de Lombroso é descendente direta da frenologia, criada pelo físico alemão Franz Joseph Gall no começo do século XIX e estreitamente relacionada a outros campos da caracterologia e fisiognomia (estudo das propriedades mentais a partir da fisionomia do indivíduo). Sua teoria foi cientificamente desacreditada, mas Lombroso tinha em mente chamar a atenção para a importância de estudos científicos da mente criminosa, um campo que se tornou conhecido como antropologia criminal. A principal idéia de Lombroso foi parcialmente inspirada pelos estudos genéticos e evolutivos no final do século XIX, e propõe que certos criminosos têm evidências físicas de um “atavismo” (reaparição de características que foram apresentadas somente em ascendentes distantes) de tipo hereditário, reminiscente de estágios mais primitivos da evolução humana. Estas anomalias, denominadas de estigmas por Lombroso, poderiam ser expressadas em termos de formas anormais ou dimensões do crânio e mandíbula, assimetrias na face, etc, mas também de outras partes do corpo. Posteriormente, estas associações foram consideradas altamente inconsistentes ou completamente inexistentes, e as teorias baseadas na causa ambiental da criminalidade se tornaram dominantes. (Disponível em: http://www.cerebromente.org.br)

29 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. (p. 62-63)

30 Ser negro no Brasil hoje. Disponível em:http://www.ige.unicamp.br/~lmelgaco/santos.htm

31 Idem p. 44.

32 MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2004 (p.137).

33 O rap entrou no Brasil repertório da mídia nacional hoje, ou em 1998 pelo menos, depois de dez anos de presença na periferia. (…) O gosto dos playboys pelo rap dos Racionais, seu consumo tolerante de discursos antagônicos a seus interesses e a conseqüente integração do rap à cultura de massa hegemônica seria a atitude de quem se encontra em posição de superioridade hierárquica. (…) Enquanto os Racionais MCs fazem poesia a partir de sua percepção do racismo branco e da resistência negra, colocam em cena e – mais importante – em música, a onipresença muda no Brasil da opressão e da violência. A popularidade repentina do rap brasileiro, sua participação na cultura hegemônica brasileira, talvez seja a evidência de uma nova elaboração da autoconsciência brasileira. Essa reelaboração enfatiza o fato de que a segurança física está ao alcance de poucos, e a guerra civil de baixa intensidade entre os “excluídos” e as autoridades, envolvendo traficantes de drogas e a polícia, é parte permanente do cenário contemporâneo. Junto com a cordialidade que parece imperar nas relações entre grupos díspares e antagônicos e que permite que a classe média afirme carinhosamente “nóis sofre, mas nóis goza”, outros valores sociais regem o cotidianos. O consumo branco do rap implica, portanto, uma nova apreensão das relações sociorraciais. Em suma, esse consumo é uma forma de afirmar a violência das relações sociais; siginifica identificar-se com uma espécie de música de protesto. Música de protesto nos lembra os anos 60 e aí podemos afirmar (…) que o consumo do rap pela classe média branca talvez seja um substituto para a ação. Mas Francisco Carlos Teixeira (…) disse que cantar uma música de protesto em circunstâncias de perseguição policial pode, sim, ser ação política. Os rappers, cujos primeiros shows na periferia sofriam de repressão policial, certamente sabem do que ele estava falando. (SOVIK, Liv. What a wonderful world: música popular, identificações, política anti-racista. In: RAMOS, Sílvia (org.). Mídia e racismo. Rio de Janeiro: Pallas, 2002. p. 103-104)

34 Utilizamos o termo gueto, pois acreditamos que as favelas brasileiras se relacionam com a seguinte definição. Gueto é uma forma urbana específica que conjuga os quatro elementos do racismo repertoriados por Michel Wierviorka – preconceito, violência, segregação e discriminação. (WACQUANT, p. 18)

35 PAIXÃO, Marcelo J. P. Desenvolvimento humano e relações sociais. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. (p.80)

36 KEHL. M. R. Quem tem moral com os adolescentes? (Duas hipóteses sobre a crise na educação no século XXI). Texto apresentado no IV Colóquio do Laboratório de Estudos e Pesquisas Psicanalíticas e Educacionais/LEPSI- USP. Oct. 2002. Disponível em: http://www.proceedings.scielo.br/

37 Um bairro rico da cidade de São Paulo.

 

Fronteiras cruzadas – A ficção no jornalismo e a reportagem na literatura | de Cristiane Costa

Sinônimo de neutralidade e oposto à subjetividade, espaço tradicionalmente reservado à ficção, o conceito de objetividade jornalística vem sendo minado desde o século passado pela propaganda política fascista (que mostrou como era possível manipular qualquer fato ou número), pelas teorias psicanalíticas (que demonstraram o quanto o inconsciente influencia nossa interpretação do mundo) e até mesmo pela própria capacidade de simulação da literatura realista. Mas foi preciso que um novo surto de jornalismo-mentira, a partir dos anos 80, revelasse sua fragilidade, mostrando que a objetividade jornalística é antes de mais nada um artifício. Os vários escândalos que abalaram a credibilidade da imprensa levaram o público a perceber, na prática, que o status de ficcional ou factual depende de um contrato implícito. No caso do jornalismo, o de narrar um fato verdadeiro. No da literatura, o de privilegiar a imaginação e a concepção estética.

Ficou claro que a convenção que determina a exclusão de conteúdos não-ficcionais da literatura e de elementos subjetivos da reportagem interfere profundamente na forma de recepção de um texto. Às vezes, basta mudar seu suporte material. Uma reportagem pode ganhar status literário quando impressa em livro. Ou um texto ficcional simular uma reportagem a ponto de enganar jurados experientes de prêmios como o Pulitzer.

Isso faz com que se coloque em jogo a própria distinção entre o que é jornalismo e o que é literatura, seus graus de separação e contaminação. O fato é que, historicamente produzidas, e devidamente naturalizadas, as definições de objeto literário e objeto jornalístico têm variado ao longo do tempo, conforme as convenções narrativas. Isso acontece porque os diferentes graus de separação entre jornalismo e literatura correspondem à divisão em dois modos distintos de produzir, publicar, difundir, ensinar, ler e criticar os textos, baseados nos mitos da objetividade da imprensa e o da autonomia da ficção como uma categoria estética. Essa divisão instaura convenções narrativas diferentes para a literatura e para o jornalismo, estabelecendo um contrato de leitura entre emissor e receptor que está na base da polarização entre os dois campos. São essas convenções que regulam o estatuto social do escritor, a forma de consumo e os critérios estéticos para apreciação de um texto.

A principal convenção que rege o jornalismo contemporâneo certamente é o compromisso com a realidade. Convencionou-se que a narrativa jornalística trata de um fato real e não imaginário. Já à literatura, o critério de veracidade não se aplicaria. Um segundo critério distinguiria os dois gêneros: a linguagem. Em oposição ao discurso literário, o jornalismo daria ênfase ao aspecto utilitário da linguagem, sua transitividade, voltada para a compreensão do leitor, e em sua transparência, o meio pelo qual as informações são passadas da forma mais objetiva possível. Esse efeito é produzido na medida em que o narrador jamais intervém, apagando as marcas de sua subjetividade. Mas seria a escolha do pronome pessoal apenas um álibi retórico, um artifício literário como outro qualquer?

Não se quer aqui negar as diferenças entre um gênero e outro. Nem defender a volta do jornalismo mentira. Mas discutir se estas diferenças estariam baseadas em estruturas profundas, formas universais. Ou seriam “apenas depósitos de cultura (ainda que pareçam muito antigos)”, como sugere Roland Barthes: repetições, não fundamentos; citações, não expressões, estereótipos, não arquétipos?

É necessário, portanto, levantar quais são as “mitologias” que vão regular os critérios críticos e os modos de produção, difusão e consumo de um texto. E até mesmo o valor comercial ou intelectual de seu autor. A partir de que momento as categorias literatura e jornalismo são naturalizadas e a fronteira entre os dois campos definida? O fato é que, se as fronteiras entre jornalismo e literatura foram construídas _ a partir de valores bipolares como realidade e imaginação, objetividade e subjetividade, linguagem utilitária e expressiva, significante e significado _ ou se fazem parte da essência dos dois gêneros, o fato é que elas são visíveis.

A ideia de objetividade jornalística, que prevê a separação radical entre real e ficcional, levou tanto o jornalismo quanto a literatura contemporâneos a um impasse. De um lado, os romances apelam para o formato de making of, que relata o processo de apuração de uma reportagem, misturando realidade e imaginação, dados objetivos e impressões subjetivas, como é o caso de Nove noites, de Bernardo Carvalho, Inveja, de Zuenir Ventura, e Santa Evita, de Tomás Eloy Martinez. De outro, ressurge o chamado “jornalismo ficcional”, conceito criado a partir da onda de reportagens falsas que abalaram a credibilidade da imprensa mundial a partir dos anos 80.

Autor do livro Hiroshima, a reportagem editada na revista New Yorker, em 1946, que se tornou um dos maiores clássicos do jornalismo literário, John Hersey definiu a principal diferença entre ficção e não-ficção. “Há uma regra sagrada no jornalismo. O repórter não pode inventar”, afirmou num ensaio publicado em 1980. Para Hersey, a legenda implícita da imprensa deveria ser: “Nada disso foi criado”. Foi a primeira reação pública a uma série de denúncias que, a partir do início da década de 80, iria minar a credibilidade dos jornais.

O primeiro caso diagnosticado foi o da repórter Janet Cooke, autora de uma grande reportagem publicada no jornal The Washington Post, intitulada “Jimmy’s world”, sobre o dramático cotidiano de um garoto de 8 anos de classe média viciado em heroína. Janet Cooke descreveu em detalhes seu rosto de anjo, assim como as marcas das picadas em seu braço. E não poupou o leitor de cenas chocantes, como quando o namorado da mãe de Jimmy, um traficante de drogas, injeta heroína em suas veias. A reportagem correu mundo e mobilizou uma força especial de policiais e assistentes sociais de Washington para localizar o garoto, que a repórter se negava a identificar, alegando respeito às fontes. A verdade só veio à tona quando ela ganhou o Pulitzer e sua biografia foi divulgada. Boa parte do currículo de Janet Cooke tinha sido inventada, assim como a história de Jimmy.

A jornalista poderia ter conquistado o Pulitzer de ficção, mas, em vez disso, foi execrada. O affair Janet Cooke repercutiu em todo mundo, por ter destruído um dos pilares do jornalismo contemporâneo: o compromisso com a realidade. Apesar de exemplarmente condenada pelos colegas e pela opinião pública, casos semelhantes proliferaram na imprensa americana, ameaçando virar uma epidemia. Em 1981, o jornalista Christopher Jones publicou uma reportagem de capa no jornal The New York Times, em que narrava sua experiência de conviver durante um mês, nas selvas do Camboja, com guerrilheiros do Khmer Vermelho. Choveram cartas de leitores e experts no assunto, apontando erros factuais e geográficos grosseiros na reportagem, a ponto de um personagem feminino supostamente entrevistado ser descrito como um homem. Após checar todos os dados, o NYTconcluiu que Jones não esteve com os rebeldes cambojanos nem entrevistou as pessoas citadas. O jornal Village Voice foi mais além: demonstrou que o repórter não tirou a reportagem do nada. Surpreendentemente, parte dela foi plagiada da literatura, mais exatamente de um romance de André Malraux, de 1930.

Outros casos foram relatados, em jornais de menor importância, até que o affairJason Blair veio à tona. Em 2003, mesmo escaldado pelo caso Jones, o New York Times acabou publicando quatro páginas com correções das reportagens de Blair. O escândalo teve várias consequências, entre elas a saída do diretor-executivo do jornal. “Eu menti, menti e menti um pouco mais. Eu menti sobre onde estive, eu menti sobre onde obtive as informações, eu menti sobre como escrevi reportagens”, confessou o repórter, na primeira página de seu livro Burning down my master`s house: my life at The New York Times.

O livro foi lançado em março de 2004 com uma campanha de marketing digna dos maiores autores de best-sellers: tiragem inicial de 100 mil exemplares (que, insuficiente, exigiu uma segunda, de 20 mil, na semana seguinte), audiobook, entrevistas nos principais programas da televisão americana e um adiantamento de US$ 500 mil. Seu autor não procurou se defender das acusações de falta de ética profissional. Simplesmente contou toda a “verdade” sobre suas mentiras e explicou como, afinal, nem o maior jornal do mundo é capaz de garantir a veracidade de suas notícias.

Enquanto o jornalismo reage ultrajado ao descumprimento de seu mandamento número 1, o compromisso com o real, fonte de toda a sua credibilidade, o conceito de literatura também vem sendo relativizado, dissolvendo a oposição entre ficção e não-ficção numa nova ordem de discursos. Se a crise da narrativa, expressa pela teoria literária pós-moderna, mina a noção romântica do texto como uma obra de arte que expressa a subjetividade do autor como uma persona literária coerente, por parte do jornalismo ela faz o caminho inverso, destruindo a ilusão de uma objetividade isenta de contaminações, como em experiências de laboratório que jamais se reproduzem na vida real. No mundo contemporâneo, a morte do autor como um ser casto e incorruptível corresponde à morte do repórter como produtor de verdade.

A literatura, especialmente a partir dos anos 90, também se dedicou a embaralhar as categorias de ficção e não-ficção. Um dos melhores exemplos é o premiado romance Nove noites, do jornalista Bernardo Carvalho, uma espécie de making ofde uma grande reportagem. Híbrido, o livro eventualmente se aproxima da reportagem e da biografia, inventariando documentos, arquivos e depoimentos reais, misturados a personagens e cartas imaginadas e às próprias lembranças do autor e sua relação problemática com o pai. O formato making of está presente, ainda, em Inveja: o mal secreto, de Zuenir Ventura; Santa Evita, do jornalista argentino Tomaz Eloy Martinez, e O ladrão de orquídeas, da jornalista americana Susan Orlean, entre outros jornalistas escritores.

Na forma de cruzar as fronteiras entre literatura e jornalismo, o modelo do making of se distancia completamente de experiências como o romance-reportagem, que ficcionaliza a informação, e mesmo do new journalism, que injetou técnicas literárias no texto jornalístico. Ao colocar em cena os bastidores da apuração, sua construção em forma de tentativa e erro, o modelo acaba por mostrar ser impossível separar fato de ficção, real de imaginação, dados objetivos da subjetividade do autor, o repórter do escritor moldado por suas influências literárias.

Mas há grandes diferenças entre o velho romance realista _ quase sempre na terceira pessoa, impessoal, cujo projeto é esconder do leitor o ato deliberado de construção literária _ e o novo _ desconstrucionista, na primeira pessoa, que revela não só os andaimes da imaginação, mas o processo de apuração do jornalismo. A função objetiva (embora nem sempre consciente) do romance making of é minar a ilusão de verdade. Mostrar que o fato também é uma construção discursiva, uma ilusão referencial. A tensão que provoca entre os aspectos jornalísticos e literários introduz ambiguidades e dúvidas na narrativa, levando o leitor a se confundir sobre o que é factual e o que é ficcional. E mostra como ele pode ser facilmente iludido.

Convenções narrativas diferentes para a literatura e para o jornalismo estabelecem um contrato de leitura entre emissor e receptor que está na base da polarização entre os dois campos. São essas convenções que regulam o estatuto social do escritor, a forma de consumo e os critérios estéticos para apreciação de um texto que precisam ser rediscutidas.

A confusão provocada por crossover texts, como o jornalismo ficcional e o making of literário, revela que essas convenções narrativas têm uma autoridade muito maior do que aparentam, como produtoras de real. No caso da imprensa, não é apenas o poder de declarar a verdade sobre os acontecimentos, mas de ditar até mesmo a forma como um discurso pode ser lido como verdadeiro. Uma vez naturalizada, essa tecnologia cognitiva pode ser facilmente manipulada. E, com isso, a obsessão pela objetividade dos meios de comunicação ser usada para esconder, por exemplo, o uso do jornalismo como veículo de propaganda, disfarçado pela voz imparcial, neutra, da terceira pessoa do singular.

Jornalismo e literatura teriam raízes em comum ou duas genealogias distintas? Para compreender isso, é preciso voltar ao ponto em que news (notícias) e novels (romances) se separam, dando origem a campos diferentes. E levantar quando surge a definição da literatura como um discurso exclusivamente ficcional, origem do modelo de romance moderno. Segundo Raymond Williams, o processo de especialização literária é quem vai provocar uma distinção de outros tipos de escrita – filosofia, ensaio, história e jornalismo – que podem ou não possuir mérito literário (significando que, além de seu intrínseco interesse específico, eles são bem-escritos). Mas que não são normalmente descritos como literatura, que pode ser entendida como “livros bem-escritos de um tipo imaginativo ou criativo”.

Sob a Renascença, o sentido de “litterae humanae” distinguia os textos seculares dos religiosos. Mas com a crescente especialização da literatura em direção à ficção, a um texto produzido exclusivamente pela imaginação, foi lançada uma das bases do romantismo: a consagração da figura do autor. Hoje, para se desconstruir esse processo, o conceito fechado de literatura deve ser abandonado em prol de outros mais abertos, como texto, escritura ou discurso, “que tentam recobrar o senso mais ativo e geral que a extrema especialização parece ter excluído”.

A percepção do leitor sobre o que é literatura e o que é jornalismo é dada, antes de mais nada, por categorias discursivas que pouco a pouco entraram para o senso comum, como objetividade e subjetividade. Algo socialmente construído, mais do que naturalmente dado pelo texto em si. Portanto, não é à toa que seja justamente na fronteira entre os dois campos que estão sendo realizadas algumas das mais interessantes experimentações narrativas da contemporaneidade.

BIBLIOGRAFIA

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MARTINEZ, Tomás Eloy. Santa Evita. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

NASSIF, Luís. O jornalismo dos anos 90. São Paulo: Futura, 2003.

NOBLAT, Ricardo. A arte de fazer um jornal diário. São Paulo: Contexto, 2002.

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RABAÇA, Carlos Alberto; BARBOSA, Gustavo Guimarães. Dicionário de comunicação. Rio de Janeiro: Campus, 2002.

STEINER, George. Gramáticas da criação. São Paulo: Globo, 2004.

VASCONCELOS, Sandra Guardini. Dez lições sobre o romance inglês do século XVIII. São Paulo: Boitempo, 2002.

VENTURA, Zuenir. Inveja: o mal secreto. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

WILLIAMS, Raymond. Keywords: a vocabulary of culture and society. New York: Oxford University Press, 1985.

 

* Cristiane Costa é doutora em Comunicação e Cultura pela Eco-UFRJ, onde é professora adjunta de jornalismo. Foi editora do Caderno Ideias, o suplemento literário do Jornal do Brasil, do Portal Literal e da Revista Nossa História, além de uma das curadoras do evento “Laboratório do Escritor”, do Centro Cultural Banco do Brasil. É autora de Pena de aluguel: escritores jornalistas no Brasil – 1904/2004 (Companhia das Letras).

 

Os clóvis inventam o contemporâneo carioca | de Marcus Vinícius Faustini

Em uma sequência do documentário
Carnaval, Bexiga, Funk e Sombrinha, o
líder da Turma do Pânico apresenta à
câmera o tema dos sete pecados capitais
que irá nortear todos os desenhos das
fantasias de sua turma.
Para representar o tema eles escolheram
os personagens da Disney. Segue-se
um pequeno plano–sequência, acompanhado
da voz em off do líder da turma,
em que a câmera observa em vários
desenhos pendurados numa corda as representações
dos pecados: para a luxúria,
eles escolheram uma Minnie em expressão
levemente maliciosa e cercada
pelos esquilos.
Essas imagens podem parecer, ao
juízo de alguns, um forte argumento para
caracterizar a prática contemporânea da
manifestação dos clóvis na periferia do
Rio de Janeiro como algo de baixa cultura,
sintoma da invasão da indústria
cultural, ou até mesmo alienante.
É um fim de tarde de um final de semana
próximo do carnaval e estamos em
cima de uma laje onde mais de 30 integrantes
da turma acompanham as filmagens.
No entorno, Marechal Hermes
pode ser vista e reconhecida como subúrbio
carioca de pungente significado.
Depois que a câmera é desligada, todos
os membros da equipe de filmagem são
convidados para participar do churrasco
do grupo, que se seguiria.
Nesta pequena descrição de um momento
do processo fílmico do documentário
em questão, reside toda a natureza
teórica possível que faz, em minha opinião,
da prática contemporânea da manifestação
dos clóvis na periferia carioca
um importante elemento para compreendermos
a complexidade de uma
cidade muito cantada nos sambas e nas
marchinhas de carnaval, mas pouco experimentada
fora do eixo Centro–Zona
Sul. Durante nossa pesquisa para iniciar
as filmagens, encontramos mais de
70 turmas em atividade que articulam
uma expressão estética capaz de pegar
elementos da sociedade de consumo
(Disney, Nike, etc.) e dar-lhes novos significados,
criando também uma dinâmica
econômica que envolve várias redes
e códigos éticos que se constroem em
torno da territorialidade. A capacidade
de gerar procedimentos estéticos livres
de conceitos limitadores é tão instigante
que as turmas criam, sem nenhum constrangimento,
seus hinos em cima de bases
funk.
Minha aproximação e desejo de me
relacionar com essa expressão vão além
da observação intelectual sobre determinado
tipo de manifestação. Nas férias de
minha infância, entre as casas de minha
avó, no Jacarezinho, das tias, na
Baixada Fluminense, e minha própria
casa, em Santa Cruz, sempre presenciei
as turmas de mascarados que invadiam
as ruas e tentavam assustar a molecada,
que se vingava cantando que o Bate-Bola
apanhava de mulher. Com o passar dos
anos, comecei a perceber que aquela era
uma manifestação desconhecida por
grande parte da cidade e que só saía de
sua invisibilidade por meio de um processo
de criminalização muito presente
na mídia durante os carnavais. O filme
usa como estratégia uma aproximação
com as ações dos personagens e os acontecimentos
para dar uma resposta a esse
outro olhar jornalístico distanciado, descrito
acima, que de maneira bastante
nebulosa reduz a prática cultural dos
Clóvis a uma dinâmica de vandalismo e
descontrole juvenil.
O procedimento que usamos para essa
estratégia foi a conversa no lugar da
entrevista, a observação das imagens que
apareciam no lugar de uma tese pré-determinada
que busca nas imagens suas
justificativas. Por outro lado, no processo
de montagem do filme, percebendo a
força social e a expressividade estética
dos clóvis e ao mesmo tempo singularidades
territoriais que diferenciavam em
muitos aspectos as turmas, resolvemos
partilhar o filme territorialmente também,
em seu espaço fílmico. De Marechal
Hermes até Santa Cruz as turmas
vão ganhando diferenças nas estratégias,
procedimentos e práticas que obrigam
uma possível tarefa de radiografia
a ter que ser atenta e não generalizante.
Entretanto, o procedimento que acredito
ter sido mais importante na construção
da diegese do filme foi a utilização
do dispositivo de só filmar as turmas
durante sua preparação para o carnaval
de 2005, e não a inclusão de um
intelectual organizando teoricamente a
manifestação em qualquer sistema de
folclore ou cultura popular. O que vemos
ao longo de todo o filme são os próprios
membros das numerosas turmas
discorrendo sobre suas práticas, estratégias,
afetos e memórias de uma manifestação
que tem na emoção uma de suas
bases principais. Dois momentos me
parecem importantes para demonstrar
esse aspecto da emoção. Durante a preparação
da saída da Turma do Cobra,
que se esconde dentro de uma garagem,
para que ninguém veja sua fantasia, a
rua vai ficando cheia de moradores da
comunidade do entorno, e no momento
da saída os quase 100 integrantes da turma
vão para a rua ao som de fogos ininterruptos
e batem suas bexigas no chão
com uma encenação de fúria que, para
desconhecidos, pode ser interpretada
como manifestação de violência, mas
que toda a comunidade vê como belo e
entusiasmante, o que fica bem definido
na voz de uma senhora que passa naquele
momento e diz para a câmera: “são
os nossos meninos, eu estou muito feliz!”.
O que temos diante de nós é um
gesto de significação contemporânea,
pois o que vimos flerta diretamente com
a idéia de performance muito presente
em trabalhos de artistas dos mais
instigantes de nossa época. Outro procedimento
bastante interessante e que
pode, desta vez aos olhos de intelectuais
insensíveis a essas expressões, provocar
um olhar preconceituoso e crítico,
é a incorporação do tênis de marca
nas fantasias: Nike, Adidas, em modelos
que ao serem molhados expelem
imediatamente a água, são agregados à
fantasia sem nenhum sentimento de culpa
associado a noções como consumismo
ou descaracterização da prática cultural
em questão. No momento da história do
capitalismo em que este deixa de ser
fordista e passa a ser cognitivo, procurando
se apropriar e colocar na roda do
capital produções imateriais, ver uma
manifestação popular evocando algumas
das marcas mais importantes desse capitalismo,
e a sensação imaterial que ele
quer nos render, é uma provocação no
mínimo interessante, pois o tênis nesse
momento deixa de representar sua função
primária (calçar) e também sua função
na lógica do capital (o reconhecimento
como aquele que usa aquela marca)
e passa a ser incorporado como mais
um elemento da fantasia. É como se eles
dessem o seguinte recado: Esse tênis
caro e difícil, nós podemos ter em grandes
quantidades, e podemos usá-lo até
em nossas brincadeiras, como quisermos,
e não apenas como os comerciais
anunciam.
Esse elemento do tênis somado à
enorme quantidade de pano necessária
para fazer a fantasia e seu custo total
trazem à cena a necessidade de redes e
estratégias econômicas que as turmas
realizam durante o ano inteiro para produzir
a tão esperada saída no sábado de
carnaval. É uma rede econômica complexa,
com vários atores executando vários
papéis. O filme acompanha principalmente
o policial Leonardo, que faz
pinturas para as fantasias de várias turmas.
A sutileza e a sofisticação são tantas
que até as máscaras têm pinturas singulares
e pessoas específicas que realizam esse trabalho.
Nos aproximamos de mais um carnaval no Rio de Janeiro e mais uma
vez as turmas estarão presentes nos territórios colocando em questão,
com sua prática, a ideia de centralidade e representação da cultura.
Por fim, quero ressaltar a presença
das crianças nessas turmas, que no
meio de homens já ensaiam a continuidade
dessa história. O intrigante é pensar
que esses meninos, invisíveis para
grande parte da cidade e da sociedade,
colocam máscaras para serem vistos.

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* Marcus Vinícius Faustini é cineasta, diretor teatral, escritor, atual Secretário de Cultura de Nova Iguaçu e lançou nos cinemas o documentário Carnaval, Bexiga, Funk e Sombrinha no ano de 2006. O filme recebeu menção honrosa da 11a Mostra do filme etnográfico e participou de vários festivais no Brasil, India e Itália.