Cruzamentos, tensões, possibilidades: textos e imagens sobre o nosso tempo | de Alice Fátima Martins

Insistem, alguns, em denominar os tempos que vivemos de pós-modernos. Resistem, outros, reafirmando-os parte contínua da modernidade, potencializadas suas contradições e seus projetos orientadores. Há, ainda, aqueles que questionam a própria ideia de modernidade – por consequência, a de pós-modernidade – denunciando sua natureza autorreferencial. Para esses, a noção de modernidadetraz, implícita, a certeza de que teríamos atingido o ápice da civilização humana: antes de nós só haveria atraso, depois de nós, nenhum avanço mais seria possível. Entre tantos, num texto escrito em 1988, Boaventura de Souza Santos já chamava a atenção para o fato de que

vivemos num tempo atônito que ao debruçar-se sobre si próprio descobre que os seus pés são um cruzamento de sombras, sombras que vêm do passado que ora pensamos já não sermos, ora pensamos não termos ainda deixado de ser, sombras que vêm do futuro que ora pensamos já sermos, ora pensamos nunca virmos a ser (1988).

Desde então, temos testemunhado o aprofundamento de encruzilhadas e labirintos em que se embaralham o novo e o velho, passado e futuro, risco e tradição, sombras e luzes…

Esse foi o sentido que orientou os convites feitos aos autores cujos textos integram o corpo deste número da Revista Z Cultural, na tentativa de montar um modesto painel em que alguns temas se entrecruzam, tomando como pontos de partida questões, perguntas, ocupações, dúvidas, inquietações correntes, contemporâneas. Memórias do já vivido, indagações sobre o porvir, reflexões sobre movimentos, potencialidades, virtualidades.

Os artigos estão organizados em dois grandes conjuntos que, embora portadores de tonalidades distintas, estabelecem necessários diálogos entre si. O abre-alasdo primeiro conjunto, assinado por J. Bamberg e escrito em prosa-poemática, articula memórias do sertão brasileiro, tomando a metáfora do muro como (des)limite, referência, marcação, projeção. Com linguagem não tão poética, mais técnica, Brasilmar Ferreira Nunes aborda alguns aspectos do desenvolvimento urbano do eixo formado pelas cidades Brasília, Anápolis e Goiânia, na região central brasileira, apontando dados que podem orientar políticas públicas no tocante à cultura regional, nas artes em geral, nas questões patrimoniais, midiáticas, e outras atividades que integrem as assim nomeadas indústrias criativas. No artigo que se segue, Edna Goya esboça caminhos históricos da gravura em território goiano: modalidade de impressão incorporada às técnicas e fazeres artísticos, no contexto das artes visuais, que acumula saberes seculares, vindo atravessar o batente do século XXI como campo de expressão pleno de vigor e capacidade de incorporar novas informações, perguntas, possibilidades. Abrigando, inclusive, quantas inquietações caras às manifestações contemporâneas da arte. Algumas das quais a também gravadora e artista plástica Manoela Afonso compartilha no artigo que assina, ao indagar sobre possibilidades de deslocamentos da experiência artística e estética desde o objeto para o ato relacional entre as pessoas que compartilham a própria experiência.

O segundo conjunto inicia-se com a provocação de Noeli Batista dos Santos, ao propor a metaforametria como procedimento avaliativo para o estudo do campo de produção de metáforas visuais por meio da sensibilização do olhar, num contexto em que as pessoas submetem-se, como funcionários, às programações dos aparelhos produtores de imagens. Avança sobre a temática das tecnologias da imagem, e suas relações com a arte, o artigo assinado por Cleomar Rocha, que traz à discussão a noção de ciberespaço, à luz de questões relativas à cultura contemporânea. Não menos contemporânea é a condição de supervisibilidade a que todos se encontram submetidos, seres de toda natureza, inclusive osvampiros. Esses são as personagens-tema do conjunto de reflexões trazido por Laura Coutinho e Adriana Moellmann, que têm no cinema o foco de suas indagações. A natureza humana em metamorfose é assunto a ocupar também a atenção de Alexandre Quaresma, cujo artigo trata dos deslumbramentos e incertezas decorrentes das possibilidades bionanotecnocientíficas, e algumas repercussões de âmbito sociocultural. Fecha a revista a análise proposta por Eduardo de Araújo Teixeira sobre a obra literária Nós que adoramos um documentário, de Ana Rüsche, em que questões como memória, autobiografia e ficção, presente e futuro se entrecruzam, na reinvenção de paisagens subjetivas e do vivido.

Agradeço a cada um dos autores por disponibilizar seus trabalhos, integrando este conjunto de diálogos que, esperamos, contribua, se não para compreendermos um pouco mais das sombras de nossos tempos, ao menos para nos impulsionar a avançarmos em nossas buscas, sobretudo na vontade de prosseguir perguntando, mais que respondendo, a respeito de tudo quanto não saibamos, de tudo quanto ignoremos. E é tanto! E é sempre muito mais do que imaginamos!

Agradeço, também, à Heloísa Buarque de Hollanda, pelo convite para organizar este número, o que oportunizou, afinal, encontrar pessoas queridas, tecer possibilidades a partir de suas produções, disponibilidades e motivações. Encontros no labirinto. Textos e imagens sobre o nosso tempo.

Boas leituras!

 

 

Referência

SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências na transição para uma ciência pós-moderna. Estudos Avançados, São Paulo, v. 2, n.2, Aug. 1988. Disp. em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40141988000200007&lng=en&nrm=iso>.
Acesso em 13 nov. 2010. DOI: 10.1590/S0103-40141988000200007.

 

* Professora adjunta VI na Faculdade de Artes Visuais da UFG, professora permanente do Programa de Pós-Graduação em Cultura Visual. Doutora em Sociologia. Desenvolveu projeto de pesquisa de pós-doutoramento no Programa Avançado de Cultura Contemporânea da UFRJ no período de 2009 a 2010, com bolsa da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro.

 

No Muro | de J. Bamberg


Gyn-Go/BsB-Df Abril/outono 2007
p/ Alice Fátima Martins, Manoela Afonso,
Don José Alvarez
e os meus brabos,
todos, sertanejos, antepassados.

 


Verso 1

No Sertão do Razo, onde nascí, diz-se que aquêle que atravessa as suas terras brutas, em verdade, navega, na sua imensidão sêca, no seu mar entreliçado de caatinga e de calor escaldante. Assim sendo, sou um navegante diferente, pois que, montado num burrão bem reiúno, repente, investido dos meus paramentos, das minhas esporas-4-Potosí, do meu manguá-de-rêlho, peiteira, gibão, luvas e chapéu de barrigueira de suçuapára, perneiras da costaneira do mesmo bicho e tudo o mais que nos componha, abaixo de Deus, dos carcará e dos urubus. Nos seguindo, em sombra, o meu Rizo, cachorro boca-prêta, rajado-caatingueiro-do-rabo-fino. Onde vou, ele, lá… Sou o encourado que por lá trafega os seus recônditos mais inextricáveis à toando a boiada inconsútil em meu tropel. E isso, desde muito antes de até haver nascido, pois que tocou-me vir ao mundo,qual os meus,todos, bem no meio dessa terra ressequida, debaixo de um pé-de-umbuzeiro de frondão bem protetor, refrescador de quase todas as misérias circundantes e ameaçadoras de sempre, logo ao fêcho de um dia de começo de outono, o primeiro com chuvada boa e morna, depois de fechado o sétimo ano de estio por lá.

A menina que me pariu, minha mãe, já assustada, comigo no seu colo a esturricar-lhe os peitos, sedento, puxando-lhe as suas águas no colostro, buscava forças para a nossa travessia em seguida e em riba de um carro-de-bois, em junta traquejada, até o pé do muro que restou de velho sobradão largado lá no meio do tempo, onde nos arranchamos a contra-vento, com todos os petrêchos, animais de monta e carga, agregados, parentalha, e isso, escarreiradamente, depois do meu anúncio, em chôro troado, de que viera a êste mundo para decifrá-lo! E assim, cheguei, chegamos e para isso aquí estamos, todos, em vida de decifrações contínuas, eternas. Riposto velhas sinas. E aqui, hoje,já um velho encourado, curtido nos sóis dos dias, conto-lhes dos “por quê”…

 

Verso 2

Ter um muro como referência,nesses ermos,é destino, Estrêla-de-Belém a ser perseguida.É como marcar a ferro em brasa a saga de ida em frente, até passarmos as horas das formulações, questionamentos e outras instruções de como re-fincá-lo em um ponto adiante na re-invenção do tempo por todos nós, navegantes. Pois, se êle é eterno, e, o é, essa fatia à qual renominamos de, agora, hoje, amanhã, realidade, seria tão sòmente mero recorte, marcação de passagem, afirmação do nosso nome assentado na sua face de pedra e cal, no muro do tempo, do lado que o sol nasce, e êle, o muro preconcebido, está lá desde sempre, qual fragmento do todo, como um arco é uma fração do círculo. Assim, êsse muro/recorte nos precede e se assenta, abrigo primeiro, detalhe da montanha e da caverna que nêle há, brique-a-brique da muralha ciclópica que, ilusòriamente, nos defenderia do , outro, do inimigo, em tempos muitíssimo para trás, antanhos.

 

Verso 3

Um muro é, na verdade, o não-limite-falso-determinado, assinalado, a nos provocar falas internas diante das suas miragens fronteiriças: “…Me ultrapasse. Vença-me e vá-se embora! Vença o mundo e êle será seu, a seu tempo…” . Sendo êle próprio a sua mesma marca revelada à sua própria sombra, na vala que nos separa em antes-e-depois da sua, nossa, construção, anunciando-se em nós, nêle mesmo, em suas lascas de pedra-de-lajêdo amontoadas, fincando o marco do outro lado onde estão os nossos ,e os outros, os inimigos e seus corpos formando o rebôco que forra a outra face desconhecida dêsse mesmo linde, mas, que vemos mui raramente, apenas quando passamos a sua linha de lado, sua claridade ou sombra, luz ou escuridão, o agora ou o desconhecido, nós ou êles, ess’outros, do lado de lá do muro sobreerguido a cada dia das nossas vidas em constante de construção e desconstrução, estampando nossa toda estupidez, nossa insanía, sanha de sangue, o des-limite, o nem ser, a pior forma de validamento do dispensável. É, esse muro, feito da compostagem dos corpos dêsses nossos ,outros, apesar, de, quando em vez, da consciência auto-crítica e sua boa paga em moeda de quase possível, em perenidades de boa Paz.

 

Verso 4

O muro é o arrimo para a miríade de vidas que o constrói, seja para os musgos nas entre-lascas das pedras ou na água barrenta fervilhante de micro-organismos a dar unto à sua massa de rejunte. Sêco, ao sol, parece ôlho de môsca, um pedaço grande de mica laminulada, um broche inteiro de macassita rebrilhante ou um painel de espaços para as mais variadas inscrições, a sangue pisado, a piche, spray, raio laser, sei lá mais o que. Fulano esgravatou-lhe uma rosácea, muito depois do índio ancestre riscar de urucum e sangue vivo a sua vitória contra um mapinguarí improvável. Beltrano fixou em vermêlho-e-prêto as mais terríveis imprecações sôbre si mesmo e sua amada impossível. Sicrano escrachou a todos com palavrões e desenhos de extra-terrestres. E, uma velha senhora, em idiolêto só seu, mas, plenamente compreensível aos seus pares, lascou: ” – têùn càuvãu pafôgu béinbõ 200 alátra” … U’a moça da cidade, veio, fotografou, filmou tudo e perguntou de tudo a todos, e se foi, como um risco feito no muro, de ponta a ponta, em linha irregular a perpassar todas as demais formas e micro-vidas alí postadas… Nêle foi afixado o édito da derrocada de Babel, a fala do, meu, em suas ruínas quanto à dôida afirmação do ,nosso ,e que antes a empilhara em tôrre que buscava os céus do não-futuro, do jeito que se havia, em negação fragílima do imprecatável. Destruída, sobrou-lhe o radier e coisa de metro-e-quase-dois, da sua base original e todo o mais, devidamente calcinados pelo Fogo do Castigo.O muro atávico esboroou-se e o que hoje existe o faz sôbre outros muito antigos muros afundados em raconte de estórias que, repetidas, viraram história: “…Veridiano-benze-quem e seu bravo cachorro ‘Vence-demanda’ morreram fuzilados, igualmente aos seus avós, encostados bem alí, no paredão de pedras, por conta de uma eleição apoiada do lado errado do muro!…”. É o que se diz, lendo-se a sentença da sua condenação real. Aliás, não interessa o contexto se a referência é tão sólida e marcada das cicatrizes do ricochête das balas “7.62-ponta-de-cruz”. O muro ficou e êle, o Veridianão falado, hoje, é um fantasmão, mais o seu cão-alma, correndo pelos bêcos estreitos nas madrugadas sem lua, na Vila de Santantõi de Lisbôna, distrito do Krenguenhén, no Sertão-de-Deus-o-tenha, sussurrando: “-… LIBERDADE!… LIBERDADE!…” O muro, lá, impassível, com as suas espinhas na cara a contra-sol.

Já o meu cachorro Rizo não pode avistar um muro. É só chegar, cheirar e afirmar os limites com a tinta breve do seu mijo ardido, em colocação “ad nauseam” do seu todo poder de bicho-macho. A cada vez que alguém passa, êle avisa em seu latido que aquém do limite tem ,outros,estranhos e que isso não é o certo e que carece de providências e consêrtos, fazendo alarido apoiado na cachorrada moradora de outros cantos de muro, em côro de infeliz concêrto…

Um muro, se mal entendido também poder ser um cêrco asfixiando-nos na fronteira nervosa e medrosa da xenofobia do intra-muros, no mêdo do outro, nos mêdos em régua-torta de perdição da noção básica da razão mínima. Havemos que vencer os mêdos, haveremos que pular os muros, venceremos em vira-mundo, trocando de caminhos, varejando as outras trilhas das verêdas e dos paços, buscando-se as passagens que nos levem à boa água, ao melhor destino, certamente, isso tudo, extra-muros, pois o Sertão, nosso, interior, quer a água da alegria, não se cabendo lindeiro, pois êle mesmo se quer avançar em busca de outros chãos mais úmidos que ofereçam fermento de mais e mais vida em abençoada abundância.

 

Verso 5

Afinal, a gente não nasce para o que esteja marcado na parede singela do muro da vida que recebemos para transformá-la. A vida se quer nisso, nessa mudança a toda hora, por isso, não se cabendo no tempo que a sombra do muro marca. A vida é sempre mais e mais e mais, muito além dos limites, além do horizonte longínquo, do traço das elipses, muitíssimo para lá das zonas mais densas e escuras do cosmo onde nascem as nebulosas com todas as constelações que nem sabemos porquê…

Ela, a Vida, não cabe no muro do universo e vive e revive, sim, no infinito, pousada numa dobra da Mão de Deus, bem p’rá lá de quaisquer muros e nos oferecendo o convite em desafio eterno e simples: “Vem!…” .

 

 

1. Versão condensada.
2. O autor prefere o uso de estilo, em prosa-poemática, como meio de preservação de falares ancestres da nossa língua, ainda falada e assim escrita, no sertão…

 

 

* J Bamberg é sertanejo, baiano, professor pesquisador, humanista.

 

A aglomeração Goiânia-Anápolis-Brasilia: notas de pesquisa e sugestões de políticas | de Brasilmar Ferreira Nunes

Apresentação

Procuramos no presente artigo refletir sobre as características do macro-eixo Goiânia/Anápolis/Brasilia que se constitui hoje no principal pólo urbano do Centro-Oeste brasileiro com potencial de se transformar numa área de irradiação de padrões sociais modernizantes. Esse macro-eixo que agrega nossa capital política, uma capital estadual e uma das principais cidades de porte médio da região detém vantagens locacionais ímpares e está se transformando no principal pólo urbano da Região dando sinais de fortalecimento de uma sociedade moderna no Planalto Central do país.

Breve diagnóstico do Centro-oeste brasileiro
A Região Centro-Oeste é composta por 3 Estados (Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul) e o Distrito Federal ; segundo o censo demográfico do IBGE de 2010 conta com uma população total de 14050340 habitantes. Desde a época colonial tratou-se de Região periférica na economia e sociedade brasileira; passa, porém, na Segunda metade do século XX, por rápidos processos modernizantes na sua estrutura econômica, social e política. Particularmente, a partir da transferência da capital federal para Brasília, quando então foi implantada a rede de transporte e comunicação interligando o Centro-oeste com o restante do país, é que se pode considerar que frentes modernas de ocupação impactaram vigorosamente sua malha urbana.

De fato, a nova capital federal se insere numa lógica em curso de generalização de relações capitalistas para o conjunto do território brasileiro que havia se iniciado a partir dos anos 30 com a implementação das políticas nacionais de colonização, integração e interiorização da economia sob a égide do Estado. Sua localização no Centro-oeste reconfigura a lógica regional, na medida em que consolida um processo de mudanças na distribuição territorial da população regional, processo este que já havia se iniciado na primeira metade do século XX com a construção de Goiânia (NUNES, 2004).

As duas cidades hoje, junto com Anápolis, consolidam um eixo urbano dinâmico e elevado poder de polarização da rede urbana regional. A população ai residente se aproximava dos 3.600.000 habitantes (IBGE, 2000), o que aproximadamente corresponderia a 31% do total regional, indicando um elevado grau de concentração espacial da população. Estudos do IPEA (1999) mostram que o poder de influência deste eixo se estende por todo o Centro-oeste, parte de Minas Gerais, Bahia e São Paulo alcançando as bordas sul da Região amazônica.

O suporte dado pelo setor público foi fundamental tanto para a ocupação como para a transformação produtiva recente do Centro-oeste, com investimentos em infra-estrutura de transportes, energia, armazenagem. Políticas levadas a cabo por diferentes governos subsidiando créditos rurais e preços mínimos, bem como os programas de colonização, de incentivo à pecuária, e principalmente o programa de incentivo às frentes comerciais (POLOCENTRO) fizeram do Centro-oeste, exemplo típico de região de fronteira que se consolida como área de moderna produção agro-industrial.

Ainda segundo o IPEA constatamos que o crescimento mais expressivo se deu nas décadas de 70 e 80 do século passado. Os anos 70 foram marcados basicamente pela agroindustrialização regional, tecnificação das lavouras e da pecuária. A partir daquela década se implantam pequenos grupos empresariais locais e regionais, com suporte de capital acumulado no setor comercial, sendo favorecida pelos incentivos fiscais. De fato, “as ações combinadas do Estado e do capital privado transformaram a realidade econômica e social do Centro-oeste, redefinindo a dinâmica demográfica, modificando o perfil do trabalho e do emprego, criando importantes complexos de armazenagem e submetendo a pesquisa e a extensão rural aos interesses dos grandes capitais. Estas transformações possibilitaram a expansão intra-regional do comércio, estabelecendo as condições regionais para a integração aos mercados nacional e internacional. Hoje é um espaço do agrobusiness de amplitude nacional e mesmo internacional”.(IPEA, 1999,159).

Das reflexões anteriores podemos nos deter em alguns aspectos que nos permitirão avançar em nosso objetivo. De um lado, a inserção da Região na lógica da acumulação mundial; de outro as possibilidades de considerar o espaço das cidades regionais como estratégicos nos processos em curso de mudança. A partir dessas duas dimensões escolhidas poderemos traçar algumas perspectivas de análise da realidade regional e seus potenciais.

Globalização, Região e Cidades

A globalização dos mercados e da cultura no mundo moderno pode ser entendida como um processo histórico que, graças ao enorme progresso nos meios de comunicação e nas estruturas produtivas, redefiniram de forma radical a relação tempo e espaço. Assim é que nos dias atuais não se coloca mais em questão o fato de que se trata de um processo que se impõe ao mundo todo, independentemente dos níveis de desenvolvimento e da política seguida por cada país considerado isoladamente. O fenômeno traz inúmeras implicações econômicas, sociais e culturais, mas podemos considerar quase que como resultado “mecânico” desse processo a ocorrência de uma elevada concentração da riqueza gerada internacionalmente e um agudo processo de exclusão social que assume formas diferenciadas segundo contextos socioculturais específicos. Esse é um fenômeno que se observa a nível geral e a na dimensão interna das economias nacionais.

Interessa-nos todavia aqui o fenômeno urbano e não o macro-regional. Nossa hipótese é de que nessa escala urbana podemos perceber processos em pequena escala relativa que nos apontam movimentos em curso nos diferentes sub-territórios do país, decorrentes de dinâmicas “locais” que são relativamente escamoteadas quando utilizamos escalas territoriais mais amplas. Portanto, a escala urbana nos permite analisar fenômenos sócio-econômicos a partir de um duplo movimento: por um lado, no nível global, o ganho de importância do papel das cidades na formação das redes mundiais de articulação dos interesses macro sistêmicos, e, por outro, no nível sub-regional, o impacto da formação de aglomerados relativamente importantes que, no geral, vêm de par com o esvaziamento populacional do campo.

De fato, o fenômeno urbano hoje é estratégico a tal ponto que, apoiada por agências de desenvolvimento internacionais (BID, BIRD, etc) a política urbana adquire primazia nas políticas públicas, com programas e projetos envolvendo vultosos recursos financeiros e técnicos para a oferta de serviços coletivos (saúde, saneamento, transporte, habitação, etc) envolvendo vultosos recursos financeiros e técnicos. As anteriores políticas de desenvolvimento regional hoje são substituídas por ações estratégicas nas cidades que absorvem vultosos volumes em investimentos públicos e privados. Essa alteração estrutural na escala das prioridades de políticas e a prioridade dada às políticas urbanas fazem das políticas setoriais urbanas um “grande negócio” e a cidade passa a ser enxergada como um modelo calcado em princípios econômicos apoiada pelo tripé – desregulamentação, privatização e lugar de mercado. Nesse contexto, o espaço urbano é visto como uma parte do mercado global, conformando a chamada cidade estratégica. Os aglomerados urbanos de porte atuam como empresas, agindo no mercado global e nacional mediante estratégias competitivas para atração de investimentos a partir da noção de produtividade urbana (World Bank, 1991; 2000).

Com base em tais elementos gerais, nossa hipótese é de que está em curso no macro-eixo Goiânia/Anápolis/Brasília a formação de um núcleo moderno que altera a lógica regional não apenas econômica, mas também social e cultural num movimento contraditório entre o velho e o novo que se anuncia. Esse processo se manifesta de forma desigual reproduzindo fenômenos “arcaicos” na medida em que dimensões “modernas” se implantam, ou seja, apesar dos avanços que possam ser identificados, se reproduz aqui desigualdades seculares. Temos então o fenômeno da heterogeneidade estrutural que caracteriza as sociedades atuais, fenômeno este que se constata também nessa sub-região.

A presença de infra-estrutura adequada: aeroportos internacionais, modernos sistemas de comunicação, equipamentos de turismo, hotéis, consultorias internacionais, centros de convenções, museus, universidades, etc. garantem o fluxo de pessoas, serviços e mercadorias, constituindo um mercado de consumo de massa e também especializado com elevado nível de segmentação com padrões de alta sofisticação, sobretudo pela presença do setor público que emprega com salários estáveis e relativamente elevados. Por outro lado, constituem os pontos especiais de entrada no Centro-Oeste de novos produtos e novas tecnologias geradas mundialmente. Isso faz desse macro-eixo um núcleo de absorção e de difusão de novas relações sociais, políticas e de novos padrões de crescimento, exercendo papel estratégico nas mudanças culturais, entendidas no seu sentido amplo.

Entretanto, o ganho de importância desse macro eixo urbano não está significando alteração na participação relativa da Região na geração da riqueza nacional. Vejamos isso mais de perto. Considerando dois extremos – 1995 e 2008, estudo do IPEA nos aponta que a participação de cada Unidade da Federação no PIB brasileiro, variou muito pouco no período. Em outras palavras, aqueles Estados que em 1995 apresentavam a maior participação no PIB são os mesmos de 2008, bem como os quatro com menor participação; as variações foram mínimas, destacando-se apenas o DF que caiu duas posições (4,3 para 3,9%); São Paulo e Rio de Janeiro são ainda os principais geradores de riqueza nacional mesmo se perdem alguns pontos percentuais no ranking. Goiás passa de 2,0 a 2,5%; Mato Grosso de 1,0 a 1,7% e Mato Grosso do Sul de 0,9 a 1,1% no período (Fonte: Ipea a partir de dados do IBGE 2010). Os dados nos mostram portanto que houve uma desconcentração da atividade econômica, mas ela foi incapaz de mudar substancialmente o perfil regional brasileiro, sugerindo que a distribuição da atividade econômica no território nacional advém de mecanismos econômicos que garantem a estabilidade do sistema, ao menos no curto período aqui examinado.

Entretanto, tais indicadores nos apontam para outras dimensões do processo econômico regional, ou seja, mostram uma realidade que análises muito apressadas tendem a argumentar exatamente o contrário. Temos sim, um núcleo urbano de porte e importância com o eixo Goiânia –Anápolis – Brasília desempenhando papel estratégico, se bem que em escala subordinada aos padrões de crescimento e desenvolvimento ditados pela duas metrópoles nacionais. Voltaremos a esse ponto na seqüência, mas estamos pressupondo que esta subordinação não implica dependência absoluta da dinâmica regional àquela de São Paulo/Rio de Janeiro. Há um grau de interdependência e de autonomia relativa, sobretudo se pensarmos na dinâmica dos agro-negócios do Centro-oeste, fator estratégico de suporte à economia brasileira. Sem considerarmos, evidentemente, o fato de que Brasília sendo sede do governo federal dá ao Centro-oeste um peso político ímpar no cenário nacional.

Interessa-nos na perspectiva sociológica identificar na área as formas segundo as quais determinadas maneiras de pensar, agir e sentir que poderiam ser consideradas universais, se considerarmos que estamos tratando de uma região inserida nos mercados globais. Particularmente tentaremos decodificar as formas e os impactos de entrada de relações sociais ditadas por parâmetros globais de produção e consumo que, de forma desigual e combinada vão ocupando espaços físicos e mentais numa Região que guarda ainda resquícios de um “Brasil profundo”. O importante é saber como tais modelos de relações concorrem para a transformação das formas de sociabilidade e de solidariedade entre grupos e indivíduos numa Região até recentemente escamoteada dos grandes processos sociais em curso na sociedade brasileira. Para tanto, iremos priorizar aspectos da dimensão urbana do processo de mudança social.

Perspectivas da gestão urbana

O dinâmico agro-negócio que se consolidou na região nessas últimas décadas, expandindo a fronteira agrícola permitiu ao Centro-Oeste e aos seus principais pólos urbanos uma posição entre as regiões dinâmicas do país, mesmo se ainda bem afastadas em importância de SP e RJ. Mantendo-nos nessa perspectiva do “pensar, agir e sentir” e analisando as três cidades vemos que desempenham papéis complementares na economia e na cultura num sentido mais amplo. Goiânia uma cidade planejada nos anos 30 e Brasília nos anos 50 do século XX se transformaram em pólos econômicos rapidamente. Cada qual com sua vocação, mesmo se ambas sejam sedes de poderes públicos. Anápolis, entre as duas se beneficia dessa localização privilegiada e vai se firmando como pólo industrial regional. É evidente que o DF passa nesse seu curto período de existência a cumprir funções que vão além de centro político administrativo nacional. Contudo, continua ainda sendo altamente dependente do setor público na composição do seu PIB, que é ali quase o triplo da média nacional. Goiânia embora com um setor público também significativo, diversifica suas funções sobretudo terciária e de prestação de serviços. A título de ilustração lembremos que enquanto a densidade demográfica do Centro-oeste para 2010 é de 8,7 hab/km2, a densidade demográfica do DF é de 442,82 hab/km2 e da Região Metropolitana de Goiânia é de 513,71 hab/km2.

Essas observações nos mostram que a Região Centro-Oeste reproduz na sua rede urbana fenômeno similar ao que se observa nas demais regiões do país, qual seja, a concentração das funções urbanas em alguns poucos centros importantes e uma numerosa e extensa rede de pequenas cidades que, para o Centro-Oeste são fundamentalmente pontos de apoio logístico às atividades agro-pecuárias. Somos um país continental e poderíamos imaginar que essa concentração urbana estivesse refletindo desequilíbrio nos padrões de desenvolvimento regional e urbano. Entretanto, estudos vêm mostrando que a aglomeração/concentração de população e atividades está na lógica de desenvolvimento de sociedades de mercado. Mais ainda, sabe-se que economias muito pobres são espacialmente bem distribuídas, se não bastasse o fato de que nelas o excedente econômico que poderia ser concentrado é de pequeno vulto, não havendo, portanto o que concentrar (Williamson, 1965).

Cabe ainda lembrar que a decisão locacional de atividades produtivas numa lógica de mercado está sempre priorizando os ganhos da decisão. No nível de uma empresa individualmente há, portanto maiores possibilidades de implantação nas áreas onde o cálculo econômico é mais benéfico. Isso é que leva à localização prioritária em aglomerações urbanas (infra-estrutura, força de trabalho, serviços, mercado de consumo, etc) justamente onde as economias de aglomeração e de urbanização se manifestam. Explica-se portanto, a concentração das atividades econômicas e pessoas em cidades, e mais ainda, maiores cidades detêm maiores poderes de atração de empresas e indivíduos1 .

Portanto, deixemos de lado análises que atribuem ao Estado ou às empresas uma perspectiva expressa de priorizar certas localidades em detrimento de outras nas suas decisões, numa pretensa conspiração. Cabe, isso sim, decodificar a lógica do lugar e se dar conta dos limites e potencialidades de uma estratégia de desconcentração ou concentração. Se quisermos avançar um pouco mais nas ponderações, podemos argumentar que políticas sociais bem estruturadas podem gerar maior bem-estar do que um avanço percentual de um estado na participação do PIB nacional. O que talvez valesse a pena insistir é que historicamente no caso brasileiro a concentração da atividades econômica teve sua fase aguda nos anos 1970 e a dispersão vem se dando em ritmo lento, conforme estudo do IPEA acima referido. O Centro-oeste alterou pouco a sua participação no PIB nacional, porém não restam dúvidas de que a qualidade de vida na Região vem apontando para ganhos expressivos, seja nas suas maiores aglomerações seja nas demais2 .

Todo este debate resumido acima mostra a importância da cidade nos processos de mudança social. No caso brasileiro, a chegada ao poder federal de novas forças políticas vem trazendo algumas alterações nas estratégias governamentais de gestão das cidades e do território. Lembremos que em 10/07/2001 foi sancionada a Lei n. 10.257, o chamado “Estatuto das Cidades” que estabelece diretrizes gerais da política urbana. O atual governo criou o Ministério das Cidades com objetivo principal o de reordenar as formas de ação estatal nas cidades, até então diluídas em Ministérios setoriais sem articulações claras e precisas entre as diferentes ações. Estão, portanto, dadas as condições institucionais de formular, implantar e gerir uma nova política urbana para o país.

Política urbana como elemento de mudança social

Seria oportuno sintetizar os princípios básicos que norteiam o processo em curso de formulação desta política urbana. Assim é que o compromisso do governo é o de garantir o processo de modernização da sociedade, gerar empregos e riqueza e estabelecer a justiça social. Isto implica que as ações governamentais devem se inserir na lógica de tais princípios e nas cidades brasileiras ocorrem problemas fundamentais a enfrentar: baixa taxa de investimento em infra-estrutura urbana nos últimos anos, a precariedade e ilegalidade do habitat das maiorias e a segregação sócio-espacial é o reflexo de políticas que até então priorizaram investimentos que atendessem as necessidades do capital e consumo das camadas privilegiadas da população. A concentração da renda, a diminuição dos investimentos em políticas sociais e a privatização dos serviços públicos só vieram agravar esta situação. O resultado é a imensa carência de habitação e de serviços como educação, saneamento, saúde, transportes, creches, abastecimento nas áreas populares das cidades. Há nas nossas cidades um déficit fantástico na oferta de serviços coletivos tanto em quantidade como em qualidade. As ações de governo para suplantar essa situação de desigualdade estrutural vêm se dando de maneira peculiar: programas como “Bolsa-família”, “Minha Casa Minha Vida”, estratégias de ampliação das matriculas no ensino superior, entre outros, alterando a distribuição da riqueza nacional de forma a diminuir o gap entre os mais pobres e os mais ricos.

Este diagnóstico, geral para o Brasil, se aplica também ao Centro-oeste. Dentro as duas lógicas centrais de reprodução da sociedade regional (agrobusiness e serviços) a região urbana Goiânia-Anápolis-Brasília se consolida como área e prestação de serviços tanto especializados quanto de apoio às atividades econômicas. Esta área é a responsável também pela articulação do Centro Oeste com o restante do país e com o mercado internacional. Razões desta natureza dão a este espaço um papel estratégico nos processos regionais de mudança. Portanto, potencialmente a área pode corresponder positivamente aos investimentos que porventura nela venham ser efetuados. Veremos isso ao longo do texto.

Se retomarmos as reflexões anteriores sobre o lugar da cidade na atual etapa da globalização e se levarmos em conta que o Centro-Oeste goza de algumas características na dinâmica da acumulação no país sustentamos a hipótese de que a gestão urbana regional deverá considerar a rede de cidades pré-existente e utilizar o potencial da área como fator de mudança, sobretudo para ultrapassar os níveis de desigualdade social e econômica que aí se apresentam. Particularmente deverá consolidar a polarização do eixo Goiânia-Anápolis-Brasília. No nosso entender está aí um ponto de sustentação das possibilidades de modernização da sociedade regional. Cabe insistir que num primeiro momento, a idéia de modernização da sociedade regional se vincula à ampliação das interações sociais calcadas na relação monetária, rompendo com formas usuais em sociedades agrárias como foi o Centro-Oeste até meados dos anos 1970. Além disso, consideramos aqui a tese segundo a qual a densidade populacional é um fator de mudança na medida em que a proximidade gera maiores estímulos à divisão social do trabalho, maior densidade política e mais autonomia entre os diferentes interesses. Ao mesmo tempo, a densificação populacional leva à tendência à generalização da moeda como instrumento real e simbólico na estruturação dos vínculos sociais. Vejamos os argumentos, retomando Durkheim da “Divisão do trabalho social” (1960).

Segundo seus argumentos, o progresso na divisão do trabalho induz transformações radicais nas sociedades: o seu processo cada vez mais intenso provocou a passagem da sociedade tradicional (solidariedade mecânica) para as sociedades complexas (solidariedade orgânica). O interessante é procurar nos argumentos utilizados as causas dessa passagem. Vemos que Durkheim dá um peso fundamental ao fator demográfico: em sociedades com poucos habitantes e dispersos em vastos territórios haveria a possibilidade de uma existência autônoma; famílias e grupos não se destroem economicamente podendo contar com recursos relativamente abundantes utilizando técnicas comuns. Entretanto, quando a população cresce e, ao mesmo tempo, se torna mais densa, a sobrevivência do grupo não é possível a não ser sob a condição de operar uma divisão de tarefas, de desenvolver a especialização e a complementaridade de funções. Nesta observação, Durkheim tira a seguinte proposição geral: “A divisão do trabalho varia em razão direta do volume da densidade das sociedades, e se ela progride de uma maneira continua ao longo do desenvolvimento social, é porque as sociedades se tornam regularmente mais densas e mais ainda volumosas”.(idem)

É ainda oportuno chamar a atenção para o peso estratégico que Durkheim dá às conseqüências do crescimento demográfico. Para ele os efeitos do aumento populacional são ainda mais importantes, ultrapassando os impactos sobre a divisão do trabalho. De fato, a densidade demográfica provoca o que Durkheim chamou de densidade moral. Os homens estando mais próximos, suas relações se multiplicam, se diversificam se intensificam; resulta daí um “estimulo geral”, uma maior criatividade e então uma elevação do nível de civilização desta sociedade. A conclusão de Durkheim é então a seguinte: “Na medida em que determinamos a causa principal do progresso da divisão do trabalho, nós determinamos também o fator essencial do que chamamos civilização… No momento em que o numero de indivíduos entre os quais as relações sociais são estabelecidas é mais considerável, eles não podem se manter a não ser que se especializem cada vez mais, se supercapacitando; deste estimulo geral resulta, inevitavelmente, um maior grau de cultura. Mais numerosos são os indivíduos mais eles exercem de perto sua ação uns sobre os outros, mais eles reagem com força e rapidez, mais consequentemente a vida social é intensa. Ora é esta intensificação que constitui a civilização”.(idem).

Dados da PNAD para 2001 nos mostram que, em termos nacionais, a Região Centro-oeste é a menos habitada do país, inferior mesmo a Região Norte. Conta pelos dados do IBGE de 2010 com 14050340 habitantes, o que corresponde a 7,36 % da população total do país (190732694 habitantes). Apesar da baixa densidade demográfica (8,74 hab/km2, enquanto que para o Brasil é de 22,4 hab/km2) sua população está urbanizada por taxas bastante elevadas: 88,82 % de seus habitantes moram em cidades de acordo com os critérios oficiais. Esta elevada proporção de habitantes urbanos é, inclusive, superior à média observada para o Brasil (84,35%).

Os dados da PNAD de 2000 apontam ainda que uma parcela importante desta população (49,2 % de homens e 50,8% de mulheres) está na faixa etária de 0-9 anos (16%); aqueles que podem ser enquadrados na terceira idade (acima de 60 anos) contribuem com 9,5% do total. A maior concentração de população por faixa etária está entre 20 – 39 anos (34%); entre 40-59 anos (22,6%); entre 10-19 anos (18%).., Este spectrum populacional por si só indica as prioridades de políticas sociais (educação de base por um lado e apoio à terceira idade, por outro) e de política de emprego para a PEA regional. De fato, a dinâmica demográfica do Centro-Oeste segue as tendências gerais para o Brasil apontando para a efetiva inserção da Região na lógica geral da sociedade brasileira. Estamos longe do tratamento periférico dado à área antes de sua modernização produtiva, particularmente em suas atividades agro-pecuárias.

A população regional detém um elevado grau de analfabetos : dados para 2008/2009 apontam 7,57% da população com 10 anos ou mais de idade não sabem ler nem escrever. Os dados do IBGE para 2000 apontavam que 11,02% dos alfabetizados contam com 4 anos de estudos e 11,10% com 11 anos de estudos, no eixo urbano em análise, dois dos maiores índices de freqüência à escola encontrado na Região. Aliás, esta é a maior quantidade de anos de escola observada também para o Brasil no seu conjunto. Há, portanto um elevado grau de pessoas com o primeiro e o segundo graus completos, enquanto que a presença no ensino universitário chega a ser irrisória: menos de 1% da população possui mais de 12 anos de escolaridade.

Como observado também para o restante do Brasil a população negra e parda é menos escolarizada que a branca (14,7% de analfabetos para os primeiros contra 10,21% para os segundos em 2000) . Entretanto, se considerada a partir de 1 ano de escola a participação de negros e pardos é sempre superior à dos brancos até atingir os 10 anos de estudo. A partir daí, ou seja, de 11 a 15 anos de sala de aula, os brancos tomam a dianteira dos negros e pardos, com distâncias cada vez maiores quanto mais se avança na escala de anos de estudo. A diferença se escancara quando olhamos a proporção daqueles com 15 anos ou mais de estudo e constatamos que dos 3,81% do total regional que detém esta posição, 74,27% são brancos e apenas 25,7% são negros e pardos. Pode-se avançar a hipótese de que na medida em que nos extremos inferiores de escolaridade os negros predominam e que nos extremos superiores os brancos predominam, haveria sutis mecanismos de segregação racial na sociedade regional.

Da população total, 54,5% compunham a PEA regional em 2001. Os dados naquele ano nos informam ainda que 1,47% desta PEA está ocupada em atividades agrícolas, o que significa que 98,43% se dedicam a atividades econômicas urbanas. Esta informação já demonstra o elevado grau de participação da economia urbana na geração da renda regional, especialmente na renda salário. Porém, a indústria não é a principal empregadora da força de trabalho regional: se somarmos a “industria de transformação”, “industria de construção” e “outras atividades industriais”, o setor industrial regional absorve apenas 5,5% da PEA. O principal setor empregador na Região é o de “prestação de serviços” responsável por 11% do emprego urbano; o “comércio” emprega 6% da PEA, índice semelhante ao do setor “social”. Temos aqui um típico caso de urbanização sem industrialização denotando uma especifica dinâmica intra-regional de consolidação de cidades, sobretudo se levarmos em conta que o setor agrícola sendo o eixo principal da economia regional emprega parcela restrita da PEA aí residente.

Claro que os dados que tomamos para este breve diagnóstico são parciais, merecendo maior refinamento3. Entretanto, refletem uma perspectiva da sociedade regional útil para avançarmos em nossas reflexões. Assim, em linhas gerais, podemos deduzir que o Centro-oeste é uma macro-região que apesar de sua recente inserção na dinâmica da economia e da sociedade nacional, vive um intenso processo de urbanização, uma inserção moderna na economia agro-exportadora, guardando, porém os resquícios da sociedade brasileira tradicional: desigualdades sociais, culturais e raciais. Em outras palavras, e conforme alguns dos indicadores escolhidos estamos tratando de uma típica região brasileira que, apesar de ainda recente no seu processo modernizante, vem repetindo, as características de outras Regiões mais tradicionais no país.

Cidade e modernidade cultural

Com base nos argumentos apresentados sustentamos a função modernizadora provocada pelo processo de urbanização. A cidade é o lugar da aglomeração de pessoas, onde a especialização do trabalho se faz necessária, obrigando os indivíduos a interagirem de forma contínua, mesmo se esta interação se faça, muitas vezes, de forma impessoal, calcado na lógica monetária(SIMMEL, 1998) Em outras palavras, e no essencial, Durkheim privilegia a interação social como principal fator da civilização e a cidade é o lugar por excelência dessa interação, da intensificação da influencia reciproca das pessoas. Se voltarmos a Durkheim podemos constatar que ele vai ainda mais longe: “Ao mesmo tempo que as sociedades, também os indivíduos se transformam em conseqüência de mudanças que se produzem no número de unidades sociais e de suas relações”. Vale dizer, portanto que, segundo o autor, o crescimento populacional terá então repercussões psíquicas sobre o caráter das pessoas, tanto quanto as conseqüências econômicas e sociais.

No caso particular do eixo Goiânia-Anápolis-Brasília temos uma situação específica: se por um lado, o país, no seu conjunto, vivencia certa estabilização dos índices de crescimento demográfico e do processo de transferência da população rural para a cidade, por outro, este eixo continua exercendo forte poder de atração migratória, oriundas, mais especificamente de áreas circunvizinhas. O crescimento populacional aqui ocorrido a partir dos anos 90 está muito condicionado à própria dinâmica migratória inter-regional e intra-municipal do que aos fluxos provenientes de outras regiões como ocorreu em períodos anteriores. A avaliação do IPEA é de que os reflexos dessa dinâmica na rede urbana regional vai se dar mais no sentido de consolidar as cidades já existentes e pouco influenciará o aparecimento de novos núcleos, pelo menos os que poderiam ser considerados de grande expressão. Certamente os problemas urbanos que ocorrem, e que por ventura virão a ocorrer, deverão estar concentrados, sobretudo nessa área mais densa correspondendo ao eixo Goiânia-Anápolis-Brasília. No geral, esse crescimento demográfico vem se dando de forma descontrolada, decorrência de problemas na origem dos fluxos, com crescimento exponencial de demandas por serviços coletivos nos lugares de destino, porém sem prioridade nas políticas públicas voltadas ao atendimento dessas novas demandas.

Não restam dúvidas de que essa região urbana é hoje zona de destino e não de transição dessas correntes migratórias. A política urbana deverá, portanto, ter como meta prioritária garantir condições condizentes com os padrões atuais de vida, tantos para os que aqui estão como para os que para aqui virão. Necessariamente, a transparência do setor público com controle da sociedade, a descentralização, o planejamento participativo e gestão pública orientada para o cidadão e para as minorias – negros, mulheres, crianças, etc. – apontam para a importância da desprivatização do Estado e a sua colocação a serviço do conjunto dos cidadãos, em especial dos setores socialmente marginalizados.

Gostaríamos, entretanto de insistir em alguns aspectos pouco destacados quando se analisa o espaço urbano do Centro-Oeste, especialmente a área Goiânia-Anápolis-Brasília. Temos que lembrar que nos meios acadêmicos hoje as grandes cidades são analisadas como produtoras e resultantes da intensa integração dos mercados, além de estarem na ponta da revolução tecnológica e da globalização cultural (SASSEN, 1998). No Brasil a rede urbana é polarizada pelas áreas metropolitanas de São Paulo e Rio de Janeiro, estando classificadas na escala do que se conhece como “cidades globais”, articuladas com a rede mundial de cidades. Esse papel estratégico é internamente manifestado pela capacidade que estas duas áreas têm de articular a rede de cidades nacional através de laços produzidos no setor terciário de serviços e no comércio de mercadorias (IPEA, 1999)

Há, portanto hegemonia desses centros sobre a rede urbana nacional que, no entanto detém ainda um grau de autonomia relativa face aos estímulos emanados pelos centros maiores. Particularmente a área que nos interessa tem ainda algumas peculiaridades: são centros político/administrativos e polarizam uma área com forte dinamismo econômico, sobretudo agro-pecuário, com uma rede urbana de baixa densidade. Essas características lhes dá um diferencial pois suas funções principais independem dos estímulos externos. Brasília é capital política e Goiânia capital estadual, com forte poder de polarização (IPEA, 1999): são atividades que necessitam para seu exercício, sobretudo de recursos estatais/orçamentários aos quais têm acesso e controle; Anápolis se beneficia de sua localização privilegiada entre as duas, interligada por modernas vias de comunicação.

Outra qualidade distintiva e que deve ser destacada é o fato de se tratar de cidades novas, planejadas, cujo desenho urbanístico, na medida em que rompe com padrões tradicionais de espaço urbano, atua como indutor de novas modalidades de convivência social, ou de interações sociais. Por outro lado, a presença nas duas cidades de um grupo importante de funcionários públicos com salários estáveis e de alto valor médio produz um espaço de consumo seguro, sem variações negativas, estimulando a incorporações de inovações em diferentes esferas da vida social, via padrões de consumo.

Temos então um cenário peculiar ao contexto no qual este macro-eixo se insere: uma sociedade urbana moderna, forte presença do trabalho assalariado, com elevados índices relativos de renda, um funcionalismo público que conta com a presença importante da mulher nos seus quadros, níveis educacionais que, embora não sejam ideais, está acima da média regional e mesmo nacional, etc. Sem pecarmos pelo exagero pode-se argumentar que temos as bases para a consolidação de uma sociedade moderna, pós-industrial, ou seja, orientada para uma economia na qual o capital de base intelectual se torna cada vez mais hegemônico, fundamentada no indivíduo, em seus recursos intelectuais e na capacidade de formação de redes sociais e na troca de conhecimento (BENDASSOLI, 2000).

Claro que há o reverso da medalha, ou seja, contínuo crescimento demográfico que muitas vezes não é constituído por indivíduos com o perfil de uma sociedade moderna, reproduzindo padrões de vida abaixo ou diferente do que se poderia aceitar nos tempos atuais. Entretanto, isso não compromete o argumento, pois estamos sempre considerando que o processo de generalização do mercado é desigual, e tem uma dinâmica inserida na sua própria lógica que gera efeitos contrários.

O contexto urbano em análise é, portanto lido aqui como um espaço de oportunidades, novas sociabilidades que se contrapõem àquelas de um Brasil profundo e que aos poucos dá ao individuo a condição de anonimato, característica essencial das personalidades urbanas. Se em Brasília tivemos a chegada de uma burocracia urbana metropolitana oriunda do Rio de Janeiro, ou se em Goiânia a condição de modernidade urbanística lhe permitiu inovações nos níveis de sociabilidade é de se pressupor que o migrante que aí chega se vê inserido numa lógica que o leva a abafar os traços de um provincianismo e que o identificaria com a condição anterior de existência, em favor da adoção de modos de vida mais adequados ao novo status. Insistimos que estamos tratando o migrante não como um aventureiro: aventureiros não fazem parte da lógica sistêmica, migrantes são aqueles à procura de inserção nessa lógica. Tanto Goiânia como Brasília, cada qual no seu tempo jogam forte no imaginário social de populações interioranas, sobretudo em razão do forte conteúdo simbólico e cultural que detêm e se espalha pelo território circunvizinho.

O que se defende aqui, portanto é a necessidade de incorporar nas reflexões sobre a dinâmica regional-urbana os fatores de mudança que ela contém fatores esses que valorizam a criatividade e o culto às rupturas e inovação (RAFAEL, 2010). São várias as esferas onde estas inovações se apresentam, mesmo com as resistências usuais: por exemplo, a esfera cultural que hoje está inserida na indústria cultural voltada à produção de bens simbólicos/culturais obedecendo aos princípios da economia de mercado capitalista (uso crescente da máquina, divisão e especialização do trabalho, etc.). O efeito é a mercantilização das tradições culturais do lugar, ou seja, cada vez as práticas culturais tradicionais são produzidas com vistas à troca e ao consumo, via mercado. Há aqui então um nicho de mercado – economia criativa – que abrange além das indústrias criativas, o impacto de seus bens e serviços em outros setores e processos da economia e as conexões que se estabelecem entre eles.

Reis (2008) analisa de maneira ampla como a economia criativa é abordada pelos estudiosos da questão em contextos distintos. Interessa-nos aqui recuperar o lugar da cidade como espaço criativo que é um dos enfoques selecionadas. O autor argumenta que tratá-la como “espaço criativo” permite atrair talentos e investimentos para revitalizar áreas urbanas; promover os clusters criativos, articular a cidade com os pólos criativos mundiais, articulados com a política de turismo e de atração de mão-de-obra criativa e, sobretudo, restauração do tecido socioeconômico urbano baseado nas especificidades locais 4.

Finalmente, se retomarmos os argumentos da rede urbana regional que se caracteriza por uma grande dispersão de pequenos núcleos e considerando que o eixo Goiânia-Anápolis-Brasilia polariza a dinâmica urbana regional naquilo que ela tem de “moderno” teremos então que lembrar que além dos aspectos econômicos e políticos que agregam, tem também dimensões da cultura que se irradia para os demais centros, sobretudo os mais próximos, ampliando um mercado consumidor de bens culturais. As distâncias geográficas de centros como São Paulo, Rio de Janeiro e mesmo Belo Horizonte, aliado a um mercado de consumo de rendas médias elevadas e com padrão mais sofisticado dinamiza a oferta e a comercialização de produtos exclusivos, refletidos nos shopping centers e comercio varejista em geral. Ao mesmo tempo, gera a oferta de bens culturais (museus, galerias, teatros, etc) para atender a essa demanda, favorecendo a ampliação e diversificação do turismo regional que altera a qualidade dos serviços ofertados para esse mercado específico5

Cabe aos estudiosos da realidade regional incorporar em suas reflexões essa dimensão, lembrando que o conceito de indústrias culturais é multidisciplinar, lida com a interface entre economia, cultura e tecnologia, centrada na predominância de produtos e serviços com conteúdo criativo, valor cultural, guiados pelo mercado. Esta esfera é, portanto ampla e variada e o quadro abaixo ilustra as implicações que o tratamento da realidade local a partir dessa dimensão pode compor. Evidente que nos quadros desse texto não é possível discriminar cada uma dessas dimensões, porém serve como indicação para futuros trabalhos.
Inclusive confirma o papel indutor de novos empreendimentos exercido pelas universidades ali situadas, que na medida em que apontam aspectos potencialmente inovadores da região, desperta em seus estudantes o interesse por novos temas de trabalho e pesquisa.

BIBLIOGRAFIA

BENDASSOLI, Pedro F. Indústrias Criativas: Definição, Limites E Possibilidades –Revista de Administração de Empresas – RAE: São Paulo – v. 49 – n.1 – jan./mar. 2009. p. 10-18

IPEA – Caracterizaçào e Tendências da Rede Urbana do Brasil – IPEA/UNICAMP/NESUR/IBGE – Campinas/SP, UNICAMP. IE, 1999 (Coleção Pesquisas, 3)

WORLD BANK – Cities in Transition: World Bank Urban and Local Government Strategy – Washington D.C., 1991

WORLD BANK – Urban Policy and Economic Development: A Agenda for the 1990s – Washington D.C. 1991

SASSEN, Saskia – As Cidades na Economia Mundial – Studio Nobel, São Paulo, 1998

PNAD – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicilios: 2001 – IBGE – Rio de Janeiro, 2001

NUNES, Brasilmar F.: Brasília: a fantasia corporificada. Edit. Paralelo 15, Brasília, 2004

DURKHEIM, Emille – De la Division du Travail Social – 7ª ed. PUF, Paris, 1960

ROCHER, Guy – Le Changement Social: Introduction à la Sociologie Génerale – Éditions HMH, Paris, 1968

SIMMEL, Georg – O Dinheiro na Cultura Moderna – in Simmel e a Modernidade(Sousa e Oelze orgs.) EDUNB, Brasília, 1998, pag. 23 e segs.

RAFAEL, Ulisses Neves. Cidades e migrações. In “Plural de cidades: novos léxicos urbanos” (Fortuna, C. e Leite, R.P. orgs.). Edições Almedina, Coimbra, 2010

WILLIANSON, O. Economic globalization – firms, market and polices. N.Y. University Press, New York

1ª CONFERÊNCIA NACIONAL DAS CIDADES – Cidade para Todos: Construindo uma Política Democrática e Integrada para as Cidades – Texto Base – Ministério das Cidades, Brasília, 2003

1Óbvio que a concentração excessiva gera o efeito inverso, ou seja, as deseconomias de aglomeração/urbanização (custo da terra, poluição, violência, déficit em serviços, etc) podendo reverter o fenômeno da concentração.

2De forma alguma estamos descartando as desigualdades sociais agudas que o processo vem gerando. Porém queremos insistir que há um segmento importante na área de população de classes de renda média elevada e que isso vem se traduzindo em processos específicos, que se contrapõe às situações de exclusão social. Esse fenômeno tem de ser pautado pelos estudiosos ao risco de alterarmos a realidade.

3Na medida em que não estavam ainda disponível certos dados populacionais mais recente, utilizamos os dados de 2000, que nos servem como aproximação.

4O Creative Economy Report 2008 (UNCTAD, 2008), estudo realizado no âmbito das agências do sistema das Nações Unidas (PNUD, UNESCO, OMPI, ITC) e coordenado pela Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento – UNCTAD – é a publicação mais detalhada sobre o tema no mundo. Seu argumento principal é que a economia criativa “implica um deslocamento dos modelos convencionais para um modelo multidisciplinar que abarca a interface entre economia, cultura e tecnologia, com foco na predominância dos serviços de conteúdo criativo. Por sua estrutura multidisciplinar, a economia criativa oferece uma opção factível de ser incorporada na estratégia de desenvolvimento de países em vias de desenvolvimento”. (UNCTAD, 2008) (tradução livre): “A economia criativa também aparenta ser uma alternativa factível para os países em vias de desenvolvimento. Em um contexto regido por políticas publicas efetivas, a economia criativa pode gerar vínculos entre as várias faces da economia, tanto em nível macro como micro. Esta conectividade tem um alto potencial para fomentar o desenvolvimento, oferecendo novas oportunidades para que os países em vias de desenvolvimento possam ingressar nas áreas de alto crescimento da economia mundial”.

5Basta lembrar a expansão do turismo em cidades como Pirenópolis, Goiás Velho, Alto Paraíso, ou mesmo, a inserção da música sertaneja nas grandes programações culturais do país movimentando recursos vultosos para se comprovar o que estamos querendo afirmar.

 

 

 

*Professor do Depto de Sociologia da UFF/PPGS, Pesquisador do CNPq e da FAPERJ
O autor agradece ao apoio logístico na coleta de dados de Júlio Cesar Sanchez do Dept. Sociologia da UFF

 

A Origem da Gravura de Arte em Goiás e seus Desdobramentos | de Edna Goya

Introdução

O desenvolvimento das artes plásticas em Goiás, assim como o desenvolvimento da gravura, nasce estimulado pela nova condição do estado, que busca transferir a capital – cidade de Goiás – para Goiânia, como forma de modernizar-se para inserir-se política, social, econômica e culturalmente no cenário nacional.

Desde a decadência da mineração do ouro e das pedras preciosas, quando o estado e a antiga capital entraram em declínio, os amplos setores da produção cogitavam da mudança do eixo político-administrativo da cidade de Goiás para um lugar estrategicamente melhor situado, como forma de promover o desenvolvimento regional e integrar o estado no contexto político, econômico e sociocultural dos centros mais avançados do país.

A transferência da capital, oficializada em 23 de março de 1937, significou não apenas o deslocamento do eixo político-administrativo do estado, mas também uma “estratégia de poder”. (CAMPOS, apud CHAUL, 1988, p. 15). Essa transferência veio propiciar a realização de outros benefícios, entre eles, ao longo dos anos, a constituição de uma nova configuração humana e geográfica nessa parte do território brasileiro e a criação, assim, das precondições ao revigoramento da região, surto de desenvolvimento socioeconômico que embalou o incremento das artes plásticas em Goiás e, no seu bojo, a origem da gravura como manifestação artística autônoma.

Oscar Sabino Júnior (Goiânia Global, p. 111), escritor e crítico goiano, considera que as tentativas culturais antes da nova capital estavam presas a um “saudosismo romântico”, que aboliam as possibilidades de originalidade e espontaneidade, isto porque estavam presas às técnicas e ao receituário tradicional, que marcaram movimentos e tendências anteriores. Os chamados “artistas”, segundo o autor, contentavam-se em alimentar o neorromantismo, acomodados às formas rígidas do passado.

A cultura e as artes, antes voltadas para as festividades religiosas, para a literatura e para as manifestações populares, foram adquirindo uma nova conotação. Se as artes plásticas, até então, foram marcadas pela participação isolada de José Joaquim da Veiga Valle (1806-1874), com a arte em estilo Barroco, considerada por Angotti “singular pelos aspectos formais e históricos, com imagens eruditas e aparentemente anacrônicas”, (SALGUEIRO, 1983, p. 25) e pela expressão, denominada pela critica local de neorromântica tardia, ou primitiva, mas que tende para o realismo, evidenciado na obra de Octo Outorino Marques (1915-1988)1, e de outros artistas, como Goiandira do Couto (1915), e Antônio Henrique Péclat (1913-1988), de tendência Clássica, ambos da cidade de Goiás, começaram a se modificar ao se sustentar paradigmas modernos. Esses artistas formam, na nova capital, a Sociedade PRÓ-ARTE de GOIÁS, responsável pelos primeiros movimentos artísticos na nova capital, fundada em 22 de outubro de 1945, e com as primeiras “escolinhas” (GOYA, p. 54) de arte, sendo que uma delas, pensada por Luis Augusto do Carmo Curado, em 1949/50, para atender o público infantil, dera origem ao ensino superior de arte. O projeto da escola é ampliado para agregar-se como faculdade à Universidade de Goiás, hoje Universidade Católica de Goiás/PUC, dando origem à primeira escola de ensino superior de arte – a Escola Goiana de Belas Artes (EGBA) 2.

Ainda, em 1945, começou a formar-se nessa associação uma consciência da necessidade de abertura também para as Letras e para as Artes, de forma a permitir certa autonomia tanto à literatura quanto às artes plásticas.

Também em 1945, forma-se outro grupo, chamado “Geração 45”, voltado para a literatura e composto por vários nomes dentre os quais, destacam-se José Décio Filho, José Godoy Garcia, Domingos Félix de Sousa, João Acióli e Bernardo Élis. Esse grupo marca o início do modernismo na literatura em Goiás, ao romper com a rotina acadêmica do passado, de tendência nacionalista.

Numa fase intermediária, surge o grupo “Os Quinze”, nascido sob o signo da competitividade. Era composto por dez membros, dentre os quais se destacava Jesus de Barros Boquady. Na época, era o único que denunciava tendência vanguardista (concretista).

Como fruto da efervescência da nova cidade e da necessidade de mudança é fundada, em 1952, a Escola Goiana de Belas Artes (EGBA), responsável pela introdução e institucionalização do ensino da gravura em Goiás. Em 1960, um grupo dissidente dessa escola funda o Instituto de Belas Artes de Goiás (IBAG), que, por ser gratuito, leva ao desaparecimento da primeira escola. Embora a EGBA tenha sido fundada em 1952, sua inauguração somente ocorreu no ano seguinte com o seu funcionamento autorizado a partir de maio, pelo Decreto n.º 32.258, de 23 de maio de 1953. Em sua inauguração, em 30 de março, fez-se uma grande exposição, aberta ao público, com a participação dos docentes, que objetivavam mostrar à sociedade goiana sua produção artística e cultural. À ocasião, o pintor Jordão de Oliveira, professor da Escola Nacional de Belas Artes (ENBA), apresentou um levantamento panorâmico da arte brasileira, falando sobre seus movimentos e tendências. Situou a produção artística goiana nesse contexto e teceu comentários sobre a obra de Frei Nazareno Confaloni, Gustav Ritter e Luiz Curado, dentre outros nomes das artes em Goiás.

Em 1954, Goiânia sofre o maior impacto cultural de sua curta história, com a realização do I Congresso Brasileiro de Intelectuais, aberto com a Exposição Nacional de Artes Plásticas. Visando romper o isolamento cultural da nova capital, Xavier Júnior, escritor e presidente da Academia Goiana de Letras, apoiado pela Associação Brasileira de Escritores, promove, em 20 e 21 de fevereiro, esse evento, que marcou os novos rumos da cultura e das artes em Goiás. O Congresso Brasileiro de Intelectuais, sediado pela EGBA evidencia-se como marco referencial e deflagrador do pensamento moderno nas artes plásticas em Goiás.

O congresso aconteceu graças a um esforço coletivo que incluiu professores e alunos da EGBA, dispostos a convidar artistas plásticos de todo o Brasil para participarem da exposição. Contou com representantes de várias áreas de conhecimento do cenário nacional e internacional, destacando-se o poeta e escritor Pablo Neruda, além de Lôio Pérsio (pintor), Jorge Amado (escritor), Mário Schemberg (cientista), José Reis Júnior (crítico), Mário Barata (escritor), Orígenes Lessa (romancista), Lima Barreto (cineasta), Inimá de Paula (pintor), Cláudio Corrêa e Castro (ator), Orlando Teruz (pintor), Mário Zanine (escritor), Jordão de Oliveira (pintor e professor), Sérgio Miliet (pintor), Aloísio Sayol de Sá Peixoto (colecionador e animador de arte, de Goiás) e Bruno Giorgi (escultor). Nesse evento, grandes nomes da gravura nacional compareceram a Goiânia, como Carlos Oswald, Carlos Scliar, João Quaglia, Glênio Bianchetti, Marcelo Grassmann, Mário Gruber, Rebolo Gonçalves (pintor e gravador), Osvaldo Goeldi, Renina Katz, Gilvan Samico, Glauco Rodrigues, Vasco Prado, Danúbio Gonçalves, Plínio César Bernhard, Edgar Koetz, Darel Valença Lins, Alfredo Volpi e Mestre Vitalino (gravador popular).

O evento inaugura, em Goiânia, o campo da cultura e das artes plásticas, de tendência moderna, fazendo com que o Centro-Oeste, pelo menos no campo artístico-cultural, passe a ser considerado no cenário nacional, ao promover e eleger temas de grande significação, demonstrando uma enorme preocupação com os rumos da cultura, não só goiana, mas brasileira, ao discutir a defesa da cultura, da indústria editorial e gráfica, o estímulo ao comércio de livros e publicações periódicas, a defesa da literatura infanto-juvenil, além de encaminhamentos para a extinção do analfabetismo, gratuidade e democratização do ensino, dotação orçamentária para fins culturais, estímulo à pesquisa científica, desenvolvimento das ciências aplicadas, liberdade de criação e de escrita, liberdade de associação cultural e profissional, melhoria das condições de vida e do trabalho intelectual, intensificação dos intercâmbios culturais e das relações culturais com os demais povos de forma recíproca.

A “Exposição Nacional de Artes Plásticas”, realizada durante o congresso, legitima definitivamente o contato da sociedade goiana com os ideais modernistas fortemente presentes na arte brasileira, dos anos 20 aos finais dos anos 50, que na gravura se destaca pelo expressionismo figurativo especialmente o praticado pelo Clube de Gravura do Sul liderado por Carlos Scliar. O evento atingiu tal dimensão que lançou Goiás além das fronteiras, incitando muitos comentários, entre eles, o de Bernardo Kordon, (escritor Argentino), em um artigo sobre arte popular karajá, publicado na revista Continente de Buenos Aires e transcrito na revista goiano Renovação (1954, p. 24) Ele afirma:

En el corazón Verde del Brasil rodaban los autos últimos modelos sobre las avenidas asfaltadas. Pero en compensación, dias después pudimos asomarmos a la infancia de la humanidad. Em Goiânia tomamos contacto com el arte de los karajás. Esta experiencia miracullosa se la debemos a la hospitalaria capital del desierto, a la Escuela Goiana de Belas Artes que dirige Luiz Curado e sus professores y artistas Henning Gustav e Fray Nazareno Confaloni.

Em outro comentário feito pelo brasileiro Mário Barata, no Diário de Notícias de Porto Alegre – RS e transcrito nesse mesmo número da Revista Renovação o escritor dizia que “Naquela Capital do Brasil Central, começa a produzir resultados um dos esforços mais simpáticos e estimulantes de todo o País” (LACERDA, 1955, p. 24). O Congresso mereceu também o seguinte comentário da Revista Horizonte, do Clube de Gravura de Porto Alegre, transcrito nessa mesma revista:

uma das grandes virtudes da exposição de Goiânia e não das menores –, foi precisamente de dar uma visão bastante clara do esforço que fazem grandes artistas no nosso país no sentido de fazer uma arte hoje utilizando valores de nossa herança cultural, principalmente popular.

Em torno das artes, uniram-se aqui pessoas das várias tendências, vindas de diferentes realidades socioculturais e artísticas, e de outros países. Para situar as artes de Goiás no cenário nacional, particularmente a gravura, é importante ressaltar que, ao mesmo tempo em que aqui brotavam as primeiras experiências artísticas modernas, em vários estados brasileiros vivia-se a plena efervescência. Todavia, outro acontecimento importante deve ser levado em consideração: a construção de Brasília e a mudança da capital federal para o Brasil central ocasionam a migração de um grande número de pessoas em busca de prosperidade e de lucro propiciado pela expansão do comércio, o que representou um grande estímulo ao desenvolvimento sociocultural de Goiás, contribuindo para a quebra definitiva do distanciamento de Goiás dos estados mais avançados do país.

O desenvolvimento das artes em Goiás, inclusive da gravura, visa a definição do perfil sociocultural da nova sociedade. Em virtude disso, as artes, na nova capital, nasceram ligadas a instituições como a EGBA, marco institucional do ensino superior de Arte em Goiás, articulada por Luiz Augusto do Carmo Curado, incorporada, como já mencionado, à Universidade de Goiás (hoje PUC) e pelo IBAG, segunda escola de arte de Goiás, ligado inicialmente ao Estado, e que veio posteriormente pertencer à Universidade Federal de Goiás (UFG), atual Faculdade de Artes Visuais.

 

A gravura na EGBA
A EGBA abre seus cursos em 1954, e a gravura tem dois importantes fundadores: Luis Curado que aprende gravura no Colégio Jesuíta Anchieta, em Friburgo e D. J. Oliveira que fez parte da Casa Santa Helena (SP), no período de 1949-1956. Curado funda, através do currículo da escola, o ensino de xilografia, da gravura em gesso e da serigrafia.

D. J. Oliveira evidencia-se como o segundo fundador da gravura goiana. Pratica a xilografia e começa a ensinar o método de gravação em madeira na EGBA, em 1961, e inicia, nessa escola, em 1967, com Grace Maria de Freitas os primeiros experimentos de gravação em metal, em chapa de latão, embora sua produção em gravura seja realizada em chapa de ferro, nas técnicas de água-tinta, água-forte, água-tinta de açúcar e ponta seca.

Estimulado pelos Professores Frei Nazareno Confaloni e Luiz Curado, pela desenvoltura de seu desenho figurativo D. J. Oliveira não só se sente motivado a fazer gravura, mas funda, em 1971, na EGBA, o ateliê de gravura em metal. A prensa desse ateliê configura-se como a segunda prensa 3para gravura em metal, no Brasil, é feita pela Casa Topal, de São Paulo e foi comprada sob a orientação de Marcelo Grassmann. Essa sala recebe o nome de “Sala Maria de Castro”, em homenagem ao incentivo recebido dessa professora, quando diretora da EGBA.

D. J. Oliveira permaneceu ligado ao ensino, na EGBA, durante 11 anos (de 1961 a 1972). Ao abandonar a escola, no mesmo ano, manda construir em Goiânia sua própria prensa, fabricada com base em um modelo francês, visto pelo artista em um ateliê da cidade de Madrid (Espanha). A prensa de D. J. Oliveira é a terceira de Goiás porque Vanda Pinheiro já havia montado seu ateliê de gravura em metal. D. J. Oliveira deu, pela vasta produção, impulso à gravura no estado, ao dedicar grande parte de sua obra a essa linguagem.

Frei Nazareno Confaloni aprendeu a gravar em madeira com Luiz Curado, fez incursões pela gravura, usando a técnica de xilografia ao fio e realizou as primeiras experiências em monotipias, utilizando o processo positivo e negativo. Às vezes, usava ácidos para criar texturas em pedra, a fim de proporcionar relevos e efeitos de profundidade nas monotipias. O processo era bastante rudimentar, tanto para gravar a matriz quanto para imprimir, e as gravuras, obtidas mediante ensaio e erro, até alcançar o resultado desejado. Nessas condições, a evolução da gravura goiana, tanto do ponto de vista técnico quanto estilístico, acontece de forma lenta.
Na EGBA, as disciplinas Gravura e Fotografia, são requisitos para o Curso de Desenho Aplicado, que tem duração de cinco anos. Essas disciplinas eram ministradas por Curado que aprendera no Colégio Jesuíta Anchieta, em Friburgo, cidade fluminense, onde vive alguns anos de sua vida, dedicando-se aos estudos religiosos. Nas horas vagas, dedicava-se às artes plásticas, à música, ao desenho, encadernação, ao teatro e à tipografia, que começara a aprender com seu pai em sua oficina, em Pirenópolis, quando ainda criança. Essas disciplinas eram oferecidas aos alunos da EGBA a partir da segunda série, estendendo-se até a terceira, enquanto que na ENBA, eram ministradas como cursos avulsos (COSTA, 1955, p. 9). Dada a flexibilidade do currículo, a disciplina Gravura era acessível a qualquer aluno de qualquer curso e série.

Na EGBA a técnica da xilografia é quase que substituída no começo de 1971 pela calcografia, usando-se latão e o ferro como suporte de gravação. D.J. Oliveira, que ensinava essa técnica, estruturou, com uma prensa, o primeiro ateliê de gravura em metal na EGBA. Os gravadores egressos da EGBA são: Isa Costa, que faz xilografia e se especializa no México, em calcografia e Ana Maria Pacheco, escultora que se especializa em gravura em metal na Inglaterra com sua produção centrada no cobre.

 

A Gravura no Instituto de Artes da UFG
Em 1967 é fundado o Instituto de Belas Artes de Goiás4 (IBAG), incorporado à UFG, com o nome de Instituto de Artes (IA/UFG), atual Faculdade de Artes Visuais, escola que marca o desenvolvimento das artes visuais e da gravura goianas.

No IBAG (IA/UFG) o ensino de gravura fica a cargo de Cléber Gouvêa. Como pintor, faz cursos de xilografia, com Misabel Pedrosa, e litografia, na Imprensa Oficial de Minas Gerais. Posteriormente, faz um estágio na Fundação Álvares Penteado, em São Paulo, com Marcelo Grassmann e Iara Tupinambá, artista mineira com quem aprende xilografia.

No entanto, por falta de condições físicas e materiais para a prática da disciplina, Cleber Gouvêa, contratado para ocupar a cadeira de gravura, passa a ensinar pintura e desenho e, simultaneamente, implementa o ateliê de gravura, estruturado inicialmente com duas prensas: uma para a xilografia, feita por um artesão goiano, e outra para litografia. A propósito, os primeiros contatos da sociedade goiana com a gravura em metal (calcografia), segundo Heleno Godói de Sousa, se deram com uma exposição de Isa Costa, realizada em 1968, na sede da Caixa Econômica Federal, situada à Rua 2, no Centro de Goiânia.

No IBAG, Cleber ensinou vários processos de gravura: xilografia e introduz a litografia, em 1968, processo ainda não conhecido em Goiás. Faz experimentos em calcografia em chapa de ferro (1969), tendo, entre seus alunos, Heleno Godói de Sousa.

Na Instituição federalizada, gravura e Cleber Gouvêa, não são sinônimos apenas de sucesso. Ambos enfrentam, assim como na EGBA, momentos de grandes dificuldades. Cleber Gouvêa, como Luiz Curado e D. J. Oliveira, isolados dos grandes centros, não tinham acesso a materiais adequados à prática da gravura.
É importante ressaltar que o desenvolvimento da gravura como linguagem se fortalece a partir de sua introdução na instituição federalizada – no Instituto de Artes (IA) da UFG – através da Habilitação em Gravura do Curso de Artes Plásticas. Cleber, que embora não grave em Goiás, faz experimentos na técnica de gravação em ferro e cobre e fez escola, com vários seguidores nessa técnica, e introduz a litografia em Goiás.

Quanto ao artista plástico e professor Cleber Gouvêa, é preciso dizer ainda que ele não só foi responsável pela implementação do ateliê de gravura e pela introdução da litografia no Instituto de Artes da UFG, em Goiás, mas também, assim como D. J. Oliveira foi mentor e incentivador de uma boa parte dos gravadores goianos, impulsionando o desenvolvimento da gravura por meio de seus alunos e de seu discípulo José César Teatini de Souza Clímaco, que além de ser um dos mais atuantes gravadores goianos da atualidade, juntamente com Heliana de Almeida Leivas, também é professor de gravura da Faculdade de Artes Visuais da UFG.

José César, aluno de Cleber Gouvêa e frequentador do ateliê de D. J. Oliveira, se torna o responsável pela “germinação” do que se poderia denominar de terceira geração de artistas gravadores de Goiás. No IBAG o ensino de gravura está relacionado aos professores Cleber Gouvêa, José César Teatini de Sousa Climco, Heliana Almeida Leivas, Selma Rodrigues Parreira e Edna Goya. Todavia, a introdução dos métodos e técnicas de impressão, nessa escola, se deve aos dois primeiros.

No IBAG, assim como na EGBA, o método de ensino artístico, bem como a estrutura curricular dos cursos de artes, sofre influência direta da ENBA, com base em modelos para serem reproduzidos. São assimilados por Luis Curado, adaptados e introduzidos em Goiás através da EGBA. A prática de ensino sustentada em modelo é posteriormente levada para o IBAG, pelo fundador da escola, professor Antônio Henrique Péclat, ex-professor da EGBA e que também aprimora seus estudos de arte na Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro de 1941 a 1944.

 

A Gravura e as duas escolas goianas de Arte
Mesmo a gravura, na EGBA e no IBAG, tendo sido praticada com dificuldades de acesso aos materiais mais sofisticados e pela distância dos “grandes centros”, conseguiu desenvolver-se e seduzir uma geração de gravadores que, graças aos ensinamentos dos fundadores, tornou-se destaque, em Goiás e no Brasil, ao formar significativa quantidade de artistas. Entre os que mais se destacaram na EGBA conta-se com as alunas Isa Costa e Ana Maria Pacheco, com sua produção centrada no cobre.

No IBAG, a gravura adquire maior visibilidade ao ser praticada por vários artistas, a exemplo de Zofia Ligesa Stamirowska (1903-1979), com a xilografia, litografia e metal, Heleno de Sousa Godói (figura 10); Reinaldo Barbalho (xilografia); Maria Heliana Almeida Leivas (xilografia e Collagraph); Maria Eugênia Curado (calcografia em cobre); de Dinéia Dutra (calcografia em ferro); Selma Rodrigues Parreira (calcografia em cobre) e José César Teatine de Sousa Clímaco (xilografia, calcografia em cobre, litografia, plastigrafira e serigrafia).

Com José César inicia-se o que se poderia denominar de terceira geração de gravadores de Goiás, com os artistas Liosmar Martins (xilografia, litografia ecollagraph); Herculano Ramos (calcografia em cobre e ferro) e Edna Goya (xilografia, litografia, calcografia e serigrafia).

Com os artistas fundadores: Luiz Curado, D. J. Oliveira e Cleber Gouvêa, da EGBA e do IBAG, se tem a segunda geração de gravadores. A elevação da gravura à condição de arte autônoma é conquista dos pioneiros, de seus alunos e de vários outros artistas que, de certo modo, estiveram direta ou indiretamente ligados ao grupo pelas duas escolas, ou pelos salões de arte. São eles: Roosevelt (calcografia em ferro); Vanda Pinheiro (calcografia em ferro), que fez gravura nos ateliês livres de D. J. Oliveira e de Cleber, Laerte Araújo (calcografia em cobre); Fernando Thomem (xilografia), formado na Escola Guignard e aluno do curso livre de Ana Maria Pacheco.

A gravura goiana conta ainda com Paulo Fogaça (serigrafia), que faz gravura no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, Washinton Honorato Rdrigues (serigrafia), aluno de D. J. Oliveira, do Curso Livre da EGBA; Naura Timm (litografia), formada na ENBA, Rio de Janeiro. Tem-se Antunis Arantes, Dec (Allan Kardec Cardoso Teixeira) e Octo Outorino Marques, artistas independentes.

Considerações finais
O desenvolvimento e a afirmação da gravura goiana estão associados, não só ao ensino artístico, promovido pelas duas escolas de artes, mas a vários outros fatores, a exemplo da criação das galerias e museus, em substituição aos improvisados saguões de teatro, de jornais ou livrarias dos anos 50, levando Goiás a promover mostras e incentivar os novos valores artísticos. A iniciativa pública e privada começa a organizar-se para criar e promover salões de artes e concursos, em nível local e regional, fatores que abrem espaços para critica de arte, tanto local quanto externa.

Conta-se com diversas exposições de gravura, a exemplo da mostra de Cartazes Americanos Contemporâneos, em estilo “Pop”, em que apresentava diversos processos de impressão de gravura, promovida pelo Museu de Arte da Prefeitura Municipal de Goiânia e pelo Centro Cultural Brasil Estados Unidos, aberta ao público no Palácio da Cultura, na Praça Universitária, no dia 2 de agosto de 1969. Têm-se ainda várias exposições de gravura brasileira e cursos de gravura, entre eles, dois ministrados por Ana Maria Pacheco, professora, desenhista, pintora, escultora e gravadora, que, formada em Escultura na EGBA, em 1964, iniciou e aperfeiçoou seus conhecimentos sobre essa arte na Groydon School of Art, na Inglaterra, de 1973 a 1977. Em 1978 e 1981, atuou em Goiânia, ministrando dois cursos de calcografia (em cobre), para os gravadores goianos.

Mas é importante ressaltar que o modernismo que se instala, em Goiás, em 1954, nas artes plásticas, por meio dos artistas pioneiros não se configura como um movimento em busca de uma ideologia estética, voltada para o nacional, a exemplo do modernismo paulista, mas estimulado pela nova condição política de modernização de Goiás, para inserir-se social, econômica e culturalmente no cenário nacional. O desenvolvimento do pensamento moderno, nas artes plásticas, consequentemente, na gravura, em Goiás, acontece em certo descompasso no que se refere a outras áreas produtivas da cidade, a começar pelo projeto de arquitetura dos prédios públicos da cidade, feitos, em 1937, ancorados no ideal estético da Art Déco, considerado, na época, um estilo moderno, favorecendo a um salto para o progresso, possibilitando a entrada e a expansão do capital em Goiás. Também no campo da Literatura já se experienciava, desde 1945, a modernidade.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CHAUL, Nasr N. Fayad. A construção de Goiânia e a transferência da capital. Editora CEGRAF: Goiânia, 1988.

COSTA. Waldir. Caderno da Escola Goiana de Belas Artes. In: Revista Renovação. Nº 1, Goiânia, 1955, p. 7-8, 28.

GOYA, Edna de Jesus. 1998. A arte da gravura em Goiás. Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo.

LACERDA, Regina. “O que foi a exposição do Congresso Nacional de Intelectuais”. In: Revista Renovação. Nº 1 Goiânia, 1955, p. 23 – 24.

OLIVEIRA, Jordão de. “Prof. Jordão de Oliveira”: pronunciamento durante o Primeiro Congresso Nacional de Intelectuais. In: Revista Renovação. Nº 1, Goiânia, 1955. p. 11.

SABINO JUNIOR, Oscar. Goiânia Global. Goiânia: Editora Oriente, 1980.

SALGUEIRO, Heliana Angotti. A singularidade na obra de Veiga Valle. Goiânia, Editora da UCG. 1983.

 

1 Desenhista, pintor e gravador.

2 O projeto de escolinha de arte é retomado, em 1962, com a abertura da Escolinha de Arte Infantil Veiga Valle, fundada em 1948 nos moldes da Escolinha de Arte do Brasil, do Rio de Janeiro.

3 A prensa de gravura se encontra no ateliê de ates gráficas do Curso de Arquitetura da UCG.

4 A escola de artes da UFG muda de nome várias vezes: 1960/61, IBAG (Instituto de Belas Artes de Goiás), seu primeiro nome; Faculdades de Artes da UFG, ao agregar-se à UFG, em 1963; Instituto de Artes da UFG, ao anexar-se ao Conservatório de Música, em 1969 e Faculdade de Artes Visuais da UFG, a partir de 1996, ao se separar da Música.

 

*Edna Goya é professora da Faculdade de Artes Visuais/UFG. Doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/SP; Mestre em Arte Publicitária e Produção Simbólica pela USP-SP (1998); Especialista em Educação (PUC/GO, 1986) e em Arte-Educação (UFG, 1989); Bacharel em Artes Visuais-Gravura (UFG, 1992) e Licenciatura em Desenho e Plástica (UFG, 1983). ednajgoya@yahoo.com.br

 

Da coletividade ao convívio: fazer, estar e ser juntos | de Manoela dos Anjos Afonso

(…) a arte pode ser um lugar de produção de uma sociabilidade específica, gerar um terreno fértil de experiências sociais preservado da uniformização de comportamentos (…).” (TRAQUINO, 2010, p. 110).

Quando fui convidada a escrever um ensaio para esta revista, pensei que poderia ser uma ótima oportunidade para reunir breves relatos sobre três experiências artísticas significativas convividas na cidade de Goiânia entre os anos de 2006 e 2010: Le Mur, Grupo Teia e Arquigravura. Ao refletir sobre o que já realizamos, percebi que o “convívio” vem adquirindo uma importância considerável em nossas propostas, as quais usualmente se iniciam a partir de um grupo (móvel) de pessoas que procuram fazer algo coletivamente e que, em diferentes graus e combinações, podem ter o relacionamento entre si fortalecido pelo “fazer juntos”.

O “fazer juntos” provoca o “estar juntos”: atualmente continuamos a nos lançar a tais convivências com o objetivo de realizarmos projetos artísticos não só coletivos, mas também relacionais. Temos percebido uma urgência nesse sentido, além de constatarmos o desejo de buscarmos mais que uma reunião de indivíduos ativos em função da realização de projetos artísticos coletivos: almejamos um convívio efetivo capaz de, a partir das negociações das nossas individualidades, potencializar o “ser juntos”. Ou seja, que possamos ir além do fazer ou do estar e convocar mais pessoas à experiência conjunta da produção artística, pois o exercício poético é uma das formas pelas quais podemos dar espaço, tempo e lugar ao verbo ser. Não seria esse um dos meios de esburacarmos – com muitos pequenos orifícios – os microssistemas dos quais fazemos parte? Há que se deixar a luz entrar por esses buracos: nossos interesses têm sido dirigidos às relações humanas estabelecidas por meio de operações e arranjos poéticos. Desejamos que cada pessoa – artista ou não – possa escolher fazer, estar e/ou ser conosco durante propostas artísticas, inclusive propondo também.

Para mim, em particular, reconheço que este é um grande desafio, pois é mais cômodo – porém menos excitante – elaborar e executar projetos artísticos individuais e/ou autorais. A questão é que não podemos ignorar o fato de que, num contexto contemporâneo, lidamos mais com a polifonia do que com os monólogos poéticos. E ao citar aqui a polifonia, não me refiro à comunicação aberta das obras ou à diversidade das linguagens nas artes visuais, mas sim à multiplicidade de vozes, proposições, experiências e existências cada vez mais presentes nos processos e objetivos de algumas proposições artísticas contemporâneas. É claro que – e felizmente – continuaremos lidando sempre com nossas questões poéticas individuais. O convívio não é uma regra, mas sim um convite a ser aceito para que transitemos do privado ao público, do “meu” ao “nosso”, da parte ao todo, e vice-versa, exercendo nossas capacidades individuais e coletivas, compartilhando-as, transformando-as para transformar e sermos transformados. Esse é um processo dinâmico e colaborativo de aprendizagem, pesquisa e produção de conhecimento. E o melhor: conhecimento de muitas ordens, inclusive sensível. Isso se faz necessário, sobretudo num mundo tão individualizado e individualizante (apesar das redes).

O que me fez desejar, verdadeiramente, conviver com o outro durante alguns processos de elaboração e produção artística foi o exercício da docência. Provocar um grupo à reflexão e à produção poética passou a ocupar mais espaço e importância do que a necessidade de dar corpo matérico a uma produção artística individual a ser inserida no sistema das artes. Ao exercer a docência, no meu caso na universidade, que é uma instituição que tem – ou deveria ter – um compromisso direto com a sociedade, não poderia deixar de convidar, convocar, provocar cada vez mais pessoas à criação e à transformação, por mínimas que fossem. Não poderia deixar de ao menos tentar. Vejo na arte contemporânea uma possibilidade de inaugurar, junto com outras pessoas, lugares móveis para esse convívio poético e transformador. E transformação aqui não diz respeito a mudanças fenomenais no mundo ou na sociedade… sejamos honestos! Penso que as microtransformações são muito importantes, pois têm tempo para se fortalecerem e instaurarem lentamente um movimento sutil de atribuição de sentidos ao mundo, desencadeando noções de pertencimento nesses sujeitos ativos/ativados. Configuram-se, assim, as revoluções silenciosas. Experiência, memória e identidade dão substância e concretude a esses lugares móveis, construídos poética, estética e criticamente, onde podemos “ser juntos” e, consequentemente, fazermosestarmos com mais qualidade. O “fazer só” e o “fazer juntos” são importantes, pois um alimenta o outro e ambos constituem lugares diferenciados na produção artística. Ao olhar para o que já foi realizado entre 2006 e 2010, posso dizer que o “fazer juntos” nos levou a muito mais do que ao “executar juntos”, pois muitas das pessoas convocadas à participação nesses projetos se envolveram, propuseram, escolheram, realizaram, opinaram, refletiram sobre suas contribuições e continuam agindo, juntas ou não.

Ainda temos muito a avançar: continuamos em processo lento, em formato de grupo aberto, laboratoriando agora propostas artísticas de caráter relacional. Alguns de nós vivenciamos, inclusive, um prazeroso desdobramento desse convívio: a amizade. Talvez esse seja o caminho natural para os que escolhem “ser juntos”, em qualquer campo ou atividade.

 

Le Mur

Figura 1. Armando Coelho. Intervention 1, novembro de 2006. Foto: Amina Mazouza.

 

Figura 2. Edivaldo Junior (sobre o trabalho de Armando Coelho). Intervention 2, março de 2007. Autorias sobrepostas e em (des)agregação. Foto: Amina Mazouza.
Figura 3. Reijane Cunha (sobre o trabalho de Armando Coelho). Intervention 2, março de 2007. Autorias sobrepostas e em (des)agregação. Foto: Amina Mazouza.
Figura 4. Grupo Teia na Intervention 3 – tramas sobre os trabalhos de todos os artistas participantes das edições anteriores de Intervention. Autorias sobrepostas e em (des)agregação. Foto: arquivo pessoal.
Figura 4. Grupo Teia na Intervention 3 – tramas sobre os trabalhos de todos os artistas participantes das edições anteriores de Intervention. Autorias sobrepostas e em (des)agregação. Foto: arquivo pessoal.

O muro convida à ação e provoca reação. Todo aquele que age, reage à inércia e conquista a capacidade de interferir na pequena realidade que o cerca. Aquele que interfere no seu microuniverso é como a pedra lançada na lagoa: movimenta a água parada. Que o muro possa desestabilizar, plantar dúvidas e inquietações sempre. Que ele seja uma porta, uma passagem-conexão para a autonomia da ação. (Afonso, 2007. Texto escrito para a Intervention 2, publicado no fanzine Le Mur # 02).

Le Mur (O Muro) foi um projeto composto por quatro números de um fanzine, três edições de uma intervenção artística realizada no muro externo da Aliança Francesa de Goiânia, um blog (http://www.lemurbr.blogspot.com) e uma exposição chamada “Pátria que o pariu!”. O projeto, que teve início em 2006 e foi encerrado em 2008, foi idealizado em conjunto e teve a participação de vários artistas de Goiânia e de outras localidades.

O fanzine foi um veículo de informação e de livre pensamento, ligado às ações realizadas no muro, mas também com contribuições externas e relativas a outros muros. Como meio independente de comunicação, as contribuições tinham naturezas diversas e todos aqueles que quisessem escrever sobre arte e cultura, mostrar suas imagens, expor o seu pensamento puderam ter seus trabalhos publicados. Com uma tiragem de 150 exemplares por número, os zines foram distribuídos gratuitamente. A divulgação e as chamadas para as contribuições foram feitas pela internet.

A intervenção, chamada Intervention, surgiu da vontade da direção da Aliança Francesa (AF) de Goiânia daquele período, de fomentar a produção artística local e de colocá-la em intercâmbio com grupos de artistas franceses. Sugerimos o uso do muro lateral da sede da AF, até então inutilizado e esquecido. Essa ideia surgiu de uma breve pesquisa sobre movimentos de squat art, que se propõem a ocupar construções fechadas e abandonadas. No caso das três edições de Intervention(Figuras 1, 2, 3 e 4), a proposta geral feita aos participantes era a de ocupar um espaço no muro a partir do que já havia sido feito nele por outra pessoa. Sendo assim, a cada nova Intervention, o trabalho já existente deveria ser incorporado à nova proposta, configurando diversas camadas de subjetividades ali adensadas e coexistentes.

Grupo TEIA

Mãos amarram, soltam, enlaçam, contam, cortam, refazem,
tecendo (in)tensões,
com fios que prendem, sufocam, ligam, soltam, seguem
Perdem-se
Tecidos, redes, conluios…
Frágeis teias, tramas impermanentes
… sobre o reboco solto do muro …
(Kalissa Nawá – Gyn, 21 de agosto de 2007)

O Grupo TEIA (Figura 4) teve início durante a Intervention 3 – Tramas no Muro, do projeto Le Mur, que foi uma intervenção-oficina orientada por Kalissa Nawá, em setembro de 2007. O objetivo do grupo é realizar intervenções coletivas que apresentem ações e conceitos ligados ao ato de tecer. O grupo não possui formação fixa: ele é aberto àqueles que queiram propor ou participar dasIntervenções Tramadas. Em novembro de 2007 o Grupo TEIA propôs uma ação nos jardins internos da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás (FAV/UFG), o que resultou numa instalação coletiva tramada com diversos materiais, inclusive peças de roupas e acessórios. Essa instalação adquiriu um caráter work in progress, pois pequenas contribuições continuaram aparecendo durante o período em que a estrutura esteve montada. Algumas intervenções foram feitas anonimamente, mas outras foram comunicadas por email (Figuras 5 e 6).

Figura 5. Raquel Rocha no momento em que somava a sua trama às tramas do projeto. Novembro, 2007. Fotografia de Roberto Scot. “(...) o título que escolhi é: "Eterno tricô". Explico: Iniciei este tricô há vários anos (vários mesmo), de vez em quando tricotava mais um pouco e largava. Queria fazer uma blusa de frio para o meu Pai. Ele jamais irá usá-la. Mas, sei que onde quer que o meu pai esteja agora, ele está torcendo por mim. Eu sempre me perguntava por que não o terminei antes. Quando li o seu e-mail, na parte da intervenção, lembrei logo desse tricô e pensei "é, tudo tem sua hora... mas chega de procrastinação! Basta! Está na hora de fazer parte de algo muito mais valoroso e digno, do que a autopiedade! Então, só posso agradecer-lhe, de coração, a oportunidade!!!” (trecho do texto enviado por email por Raquel Rocha).
Figura 6. Contribuição de Alice Gomes com elementos vivos para a trama. Uma trama para ser cuidada todos os dias. Fotografia de Alice Gomes.
Figura 7: Proposta do artista Ronan Gonçalves para o projeto Intervenções Tramadas. Ronan realizou tramas nas pessoas: “(...) utilizo material humano e o transformo em personagens amarrados com materiais inusitados dotados de diversidade de texturas e cores. A finalidade é destacar tais corpos e devolver-lhes a visibilidade dentro dos espaços urbanos.” (trecho do texto do artista enviado para o projeto). Fotografia: arquivo pessoal.

Arquigravura

O grupo ARQUIGRAVURA foi formado em 2009. É um coletivo com foco em ações artísticas contemporâneas e colaborativas que envolvam as artes gráficas. Funciona como um laboratório de aprendizagem e troca de conhecimentos artísticos – teóricos e práticos – ligados a temas que envolvam a cultura urbano-rural do estado de Goiás. O grupo faz parte do projeto de pesquisa “A prática relacional nas artes visuais: comunicação, interação, convívio e proximidade como elementos constitutivos de processos artísticos contemporâneos” (SAP/UFG). Alunos, ex-alunos e professores ligados – ou não – às artes visuais compõem organicamente o grupo. O Arquigravura já participou de alguns projetos coletivos: intervenção urbana na cidade de Resende/RJ (Figura 8), produção coletiva em estêncil para a Feira Tecnotêxtil/2010 e para o Espaço das Profissões da UFG (Figura 9) e, agora, vem discutindo e elaborando propostas com um caráter relacional mais aprofundando. O projeto PEQUI-NIQUE (Figura 10) consiste na elaboração de um piquenique com alimentos feitos com pequi (fruto típico do cerrado e da culinária goiana). Para tanto estamos produzindo uma grande toalha e cartazes-convocatória impressos à mão. Os participantes, convidados e/ou convocados para este PEQUI-NIQUE deverão obedecer a uma única regra: para comer é preciso pedir que outra pessoa o alimente. O que está em jogo nesta ação são as possibilidades de relação surgidas durante os eventos “cuidar” e “ser cuidado”.

Figura 8. Grupo apresentando a produção feita para o projeto de intervenção urbana “Xilogravura mudando uma cidade”, proposta do artista Tiago Gomes, em Resende/RJ.

 

Figura 9. Grupo produzindo coletivamente para participação na Feira Tecnotêxtil 2010.
Figura 10. Reunião do grupo para elaboração do projeto PEQUI-NIQUE. Parque Flamboyant, junho de 2010. Teste de cor do tecido sobre o gramado.

 

 

Bibliografia

AGAMBEN, Giorgio. O que é contemporâneo? e outros ensaios. Cahapecó/SC: Argos, 2009.

BLIXEN, Karen. Anedotas do destino. 3ª ed. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. São Paulo: Martins, 2009.

BRETT, Guy. Brasil experimental: arte/vida, proposições e paradoxos. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2005.

CANÇADO, Wellington; MARQUEZ, Renata; CAMPOS, Alexandre; TEIXEIRA, Carlos M. Espaços colaterais. Belo Horizonte: ICC, 2008.

HENDRICKS, Jon. O que é Fluxus? O que não é! O porquê. Rio de Janeiro: CCBB, 2002.

PANKOW, Gisela. O homem e seu espaço vivido: análises literárias. Campinas: Papirus, 1988.

TRAQUINO, Marta. A construção do lugar pela arte contemporânea.Portugal: Húmus, 2010.

 

 

*Manoela dos Anjos Afonso é artista visual. Mestre em Cultura Visual pela Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás – FAV/UFG (2008), na linha de pesquisa ‘Poéticas Visuais e Processos de Criação’. Professora Assistente da FAV/UFG com atuação nas disciplinas práticas ligadas às poéticas visuais.

 

Metaforametria – Notas sobre o quadrante zerodimensional | de Noeli Batista Santos

Foi na manhã de 10 de agosto, do ano de 2010, que a paciente foi ao Hospital S.T. na cidade de Goiânia, realizar seu mapa, tão revelador quanto poderia o ser, caso fosse o que se chama, de mapa astral. Sua recém-necessidade de um mapa de campimetria deu-se, pela solicitação de uma série de exames, condição sine qua non para tomar posse no concurso, para o qual recentemente havia sido convocada.

Após o retorno ao consultório oftalmológico para, desta vez, reparar o esquecimento (seu e do médico que a atendera dois dias antes) na solicitação do já citado exame, teve início a saga da procura para um local possível de concretizar o mapa de campimetria. As primeiras dez ligações, na busca por um local que pudesse, em tempo recorde (menos de três dias úteis), realizar o exame e consequentemente a entrega de seu res

ultado, foram desanimadoras. Ao que parece a paciente passou a partilhar da fila do grupo dos “sem mapas de campimetria”, devido à descoberta das filas de agendamento e a previsão da demora na entrega de um suposto resultado. A paciente percebeu que durante as ligações, o adjetivo computadorizado, fora várias vezes citado, sendo uma espécie de atestado de eficiência, sofisticação e porque não dizer, contemporaneidade.

Em uma das ligações, que se seguiram após a décima, eis que ela encontrou um local que pudesse atender à sua necessidade imediata.

Por favor, necessito de uma informação.
— Sim…
—Vocês fazem o exame de campimetria?
— Sim…
— Computadorizada? (
antecipando a intenção do item qualidade)
— Sim…
— Qual o prazo mais rápido para entrega do resultado?
— No mesmo dia.
(este fato foi animador).
— Que ótimo! Para quando vocês têm vaga?
— Hoje não dá mais tempo
(por volta das 17h30). Mas pode agendar para amanhã. É preciso chegar cedo.
— E o resultado, sai no mesmo dia?
— Depende…
— Depende de que?
— Se você consegue finalizá-lo no mesmo dia…
— Mas… O que, por exemplo, poderia acontecer para que eu não consiga realizá-lo no mesmo dia?
— Bom… Há pessoas que não conseguem. Alguns dormem, outros ficam agitados, depende de cada um. Em alguns casos precisam retornar no outro dia. O procedimento é demorado.
— Certo…
(temerosa). Digamos que eu consiga realizar o exame no mesmo dia, e o resultado?
— Se você conseguir, o resultado será entregue, no máximo uma hora depois da finalização do procedimento.
— Certo
(decidida).
— Mais uma pergunta: a pupila é dilatada
(prevendo a necessidade de um acompanhante)?
— Não.
— Então quero agendar o exame para amanhã
(decidida e temerosa).
— Tenho um paciente às 7h da manhã. Você será a segunda. Descanse, alimente-se bem, durma cedo.
— Certo
(mesmo sem compreender a necessidade das recomendações em relação ao procedimento que seria realizado).

Na manhã já citada, lá estava ela, às 9h30, horário indicado pela técnica responsável por realizar o procedimento. Enquanto aguardava o exame, imaginava o primeiro paciente. Se ele estaria saindo-se bem, se conseguiria concluir o exame no mesmo dia. Tinha pena e perseverança, percebeu que a condição que os unia acabara por estabelecer um laço de companheirismo, torcida e temor. Durante a espera recordou-se do agendamento e da conversa do dia anterior: “há pessoas que não conseguem”…

O exercício de adivinhar quem seria o primeiro paciente do dia (debilitado do pós-campimetria), ao sair da porta que interliga o interior do hospital ao espaço da recepção, acabou por distraí-la durante os 30 minutos que se seguiram após o horário previsto.

Finalmente fora chamada para a pequena sala, espaço no qual seria realizado o exame. Após os cumprimentos iniciais, a técnica de características franzinas, de expressão sisuda, fechou a porta pediu que a paciente sentasse no banco posicionado frente a um aparelho, que, a julgar pela quantidade de teclas e visores, seria o carrasco da vez.

Seu pedido de exame.
— Aqui está. (
Disse ela entregando à técnica a folha do receituário indicada pelo médico oftalmologista).
— Campimetria computadorizada?
(Questionou-se a técnica ao ler o receituário). Em seguida, uma nova pergunta:
— Este exame é para qual finalidade?
— Admissão em concurso público…
— Não tem cabimento. Fico revoltada com a falta de responsabilidade de alguns profissionais. Como pode solicitar um exame computadorizado para um caso como este?
(Avaliou a técnica)

Enquanto isso a paciente lembrava-se da conversa do dia anterior, das dificuldades do exame, e torceu (na verdade, implorou para os céus) para que o mau humor da técnica não se prolongasse.

— Você fará o exame de campimetria manual. Não faz sentido um exame computadorizado. Afirmou a técnica.

A paciente concordou, embora no plano de fundo dos seus pensamentos mais otimistas, se questionasse sobre qual seria a pior opção: computadorizado ou manual. 

— E o resultado, também sai no mesmo dia? (Perguntou a paciente).

Balançando a cabeça em sinal positivo a técnica disse:

— Entre, por favor… (Indicando a porta da pequena sala escura).

Não que ela teve medo, é que à primeira vista, a penumbra instaurada na sala que acabara de entrar revelou um misto de filme “trash” com laboratório de cientista louco. Enquanto sua pupila adequava-se à penumbra instaurada pela luz-ambiente, quer dizer, pela quase totalidade da ausência dela, observou que a “coisa” (Figura 1) instaurada à frente do pequeno banco estava imprensada entre a prateleira repleta de livros (lado esquerdo) e, uma porta lateral (lado direito). Pelo que a paciente compreendeu esta porta lateral indicava acesso ao consultório do médico que assinaria o laudo, do até então, “desejado” exame.

Figura 1. Campimetro de Goldman

Enquanto a técnica franzina e sisuda tampava com algodão e esparadrapo o olho esquerdo da paciente, sua voz lenta e pausada defendeu a intenção deflagrada pela escolha do exame denominado Campimetria de Goldman.

— Hoje em dia, são poucas as clínicas e profissionais, nesta cidade, que conseguem fazer o exame de campimetria, manualmente. É absurdo pensar que a experiência profissional, o grau de interpretação, e o ser humano estão pouco a pouco sendo substituídos por máquinas que são incapazes de interpretar os sinais e “manias” sinalizados pelo paciente durante o exame. Realizo as etapas do procedimento quantas vezes forem necessárias para analisar se de fato há alguma “anomalia” indicada nos sinais emitidos pelo paciente. No exame de campimetria computadorizado, a máquina é incapaz de compreender as variações subjetivas indicadas pelo ser humano à sua frente.

Durante o exame, enquanto a luz da lanterna aparecia e desaparecia no campo escuro do fundo infinito do Campimetro de Goldman (anteriormente denominado de “a coisa”), a paciente pensou em Flusser e nas questões que envolvem a produção e a manutenção do universo das imagens técnicas. Pensou na condição existencial da profissional responsável por seu diagnóstico, e porque não dizer, seu diferencial humano em relação ao programa inserido no aparelho. Neste misto de pensamentos, mesclado ao lento ritmo dos sinais para indicar o aparecimento e o desaparecimento da luz em seu campo de visão, a paciente piscou os olhos e quando os abriu…

Notas Sobre a Legião Subversiva…

Milhares de aparelhos produtores de imagens são diariamente inseridos em diferentes contextos, sejam eles no campo da ação doméstica, seja em formatos industriais e/ou educacionais. Milhares de seres humanos, atualmente deslocam-se da condição de sujeitos criadores, para a condição de funcionários destes mesmos aparelhos. Os governos, para mediarem as ações deliberadas em tais contextos, estabelecem normatizações de proibição do uso de aparelhos construtores de imagens em contextos, por exemplo, educativos. Uma maioria de seres humanos, seja por questões culturais, seja por falta de acesso econômico ou mesmo por resistência ideológica, mantém-se na condição de funcionários dos aparelhos produtores de imagens.

A dependência de funcionários e consumidores a estes aparelhos produziu uma espécie de geração zumbi. Tais funcionários zumbis adentram a chamada rede telemática, retroalimentando o universo das imagens técnicas, produtor desta condição funcional. Imagens técnicas neste contexto são imagens produzidas por aparelhos que possuem em seu interior programas definidos por códigos binários, frutos da lógica cartesiana.

Esta breve viagem tem por objetivo apresentar a Metaforametria, ou seja, o procedimento avaliativo que estuda o campo de produção de metáforas visuais por meio da sensibilização do olhar. Tal procedimento afirma a necessidade de avaliar e promover a capacidade criadora de um ser humano, por meio da representação metafórica dos diferentes contextos do qual faz parte.
Ao considerar que o campo visual é uma área espacial dentro da qual todos os filtros sociais são vistos simultaneamente, o campo metafórico de construção de imagens, neste contexto, divide-se em quatro quadrantes: abstração tridimensional, abstração bidimensional, abstração unidimensional e o quarto quadrante indicado por Flusser (2008), de zerodimensional.

O quadrante tridimensional refere-se ao gesto que manipula volumes, abstraindo o tempo ao seu entorno, na construção, por exemplo, de esculturas e objetos. O quadrante bidimensional relaciona-se à visão, que percebe o volume ao seu entorno, abstraindo tempo e espaço, imaginando cenas bidimensionais, tais como um desenho, ou mesmo uma gravura. Por quadrante unidimensional, compreende-se o gesto de abstrair as três dimensões: tempo, espaço e volume, na produção de textos. O quadrante zerodimensional refere-se à abstração do próprio ser humano, na construção de tais imagens.

O quadrante zerodimensional é um composto de programas inseridos no interior de aparelhos. Tais imagens são abstrações organizadas por meio de fórmulas matemáticas, convertidas em códigos binários. Os mesmos códigos que se revelaram ícones representativos das chamadas tecnologias de transmissão e armazenamento de dados.

O quarto quadrante, por agir como um câncer em meio às célulasmetaforaretinianas, multiplica-se randomicamente, inibindo a produção e integração de imagens por meio dos demais quadrantes. Neste contexto, para subverter a condição de abstração do ser que as produz, indica-se a possibilidade de relacionar os três primeiros quadrantes, de forma hibrida na produção de imagens zerodimensionais, ou imagens técnicas. Sobre o quarto quadrante, segue um breve histórico.

No processo evolutivo da condição humana, em relação aos diferentes quadrantes ou níveis de abstração do campo da produção de metáforas, o quarto quadrante foi aquele que melhor integrou os anseios do pensamento cartesiano, em relação ao afastamento dos saberes sensíveis, até então, condição essencial na produção de imagens. A facilidade com a qual o campo visual metafórico foi condicionado no contato com as imagens técnicas, provocou confusões de ordem perceptiva, tanto em seus produtores, quanto em seus observadores. Neste sentido, imagens zerodimensionais, não raras vezes, são confundidas com a própria realidade circundante, ao assumirem a condição de sombras da caverna platoniana, por mais relativo que o conceito de realidade possa ser compreendido.

metaforametria relaciona-se aos referenciais antropológicos, dos Estudos Culturais e, também, dos jogos de pensamento abordados pela cultura visual. Este diagnóstico, há tempos, vem sendo formulado pela conceituada linha da História da Arte. Contudo, profissionais das mais diferentes linhas de pesquisa, indicam as falhas críticas nesta linha de estudo, uma vez que esta não problematiza questões de gênero, classe, e outras problemáticas inerentes aos processos de afirmação e práticas hegemônicas na construção de um ideário social relacionado às visualidades presentes no contexto contemporâneo.

Metaforametria configura-se num dos possíveis meios para que se possam localizar consciências libertárias, que, no momento, encontram-se imersas no campo da construção de imagens técnicas. As implicações sobre a presença ou ausência destes genes libertários indicam a fragilidade do sistema do qual fazem parte. Este diagnóstico pode indicar duas classes de uma mesma espécie, neste contexto indicada por jogadores libertários. São elas: apertadores de teclas engajados ou programadores subversivos.

Os estudos sobre metaforantropologia apresentam indícios referentes à produção de imagens Eva (2009), apontando para a possibilidade subversiva desta ação. Este ato ao ser instaurado promove a ruptura com ambientes proibitivos, na busca pela libertação do reality show, instituído no paraíso castrador. No jogo da criação, Adão é uma máquina e Eva sua criação imagética. Eva em contato com a serpente e motivada por ações subjetivas, ao alimentar-se do fruto proibido, conquistou a liberdade para si, e também, para a máquina que a criou. Por ações subjetivas compreendem-se a metáfora da serpente, enquanto vírus subversivo, ou ruídos inseridos no interior do repertório, e porque não dizer, da estrutura inicial de sua criação. Tal vírus, neste contexto, passa a ser elemento inspirador para os sujeitos que desejam romper com a condição alienante presente no Universo das Imagens Técnicas.

Vilém Flusser, uma das mentes subversivas a este contexto, indicou em seus escritos, a existência de seres subversivos, indivíduos de crença zero (1967). Em suas primeiras investigações, ele os denominou de fotógrafos experimentais (2002), posteriormente de jogadores (2008). No contexto de produção e transmissão das imagens técnicas, a indicação de tais sujeitos foi ampliada para o que Santos, na elaboração do seu Jogo Antropofágico, passou a denominar de Jogadores Libertários (2010). Para exemplificar tal processo de ampliação, os membros da legião subversiva, indicados pelos pseudônimos de Cindy Sherman e Waldemar Cordeiro entraram em cena para subverter, por meio de sua prática artística, o jogo nulo instaurado pelo universo industrial.

A agente N. em contato com os membros da legião subversiva sinalizou a possibilidade de sistematização de um procedimento capaz de diagnosticar um possível resgate de seres humanos em condição de nulidade ante os aparelhos produtores de imagem. Metaforametria é a denominação dada a este procedimento investigativo e formativo, uma vez que sua ação não se resume à descoberta, mas paralelamente, à construção de espaços formativos de jogadores libertários. Neste processo, na produção de visualidades contemporâneas, torna-se possível indicar diferentes níveis de subversão no que se refere ao quadrante zerodimensional.

Cindy Sherman, por exemplo, ao apropriar-se da obra Sick Bacchus, de Caravaggio (Figura 2), exemplo do quadrante bidimensional, desenvolveu um projeto artístico cujo foco fora a produção de imagem técnica, enquanto produto artístico (Figura 3), diferindo-se da intenção documental, ou do mero registro materializado por códigos matemáticos.

Figura 2. Caravaggio. Sick Bacchus. 1593. Oléo sobre tela, 67 X 53 cm. Galleria Borghese, Roma. Fonte: http://artinvest2000.com/caravaggio_sick_baccus_.htm. Acesso em 4 fev. 2010.
Figura 3. Cindy Sherman. Untitled # 224. Fotografia. 1990. Fonte: www.artnet.com . Acesso em 4 fev. 2010.

Conforme explicitado anteriormente, no exemplo de Cindy Sherman, o aparelho não criou metáforas, porém, ao ser trapaceado pela artista, o produto do cálculo foi modificado, uma vez que a imagem não indicou reflexos do mundo (conforme pretensão cartesiana), mas sim, metáforas desse mundo previamente elaboradas por sua criadora, com finalidade de enganar o aparelho. Nessa dinâmica, o aparelho tornou-se instrumento da artista, e seu produto, irrealidade declarada.

Na elaboração da obra Derivadas de Uma Imagem (Figuras 4, 5 e 6), Waldemar Cordeiro em parceria com o físico italiano Giorgio Moscati, desenvolveu um programa capaz de digitalizar uma imagem fotográfica, a partir da transformação de algoritmos matemáticos. Neste exemplo, não foi o código binário, o responsável por construir as imagens, mas sim, a intenção do artista, ao corromper a lógica de programação cartesiana. No caso de programas desenvolvidos por jogadores libertários, o cálculo vazio continuará a ser processado, no entanto, a intenção criadora de seu programador será explicitada por meio de suas metáforas, conforme é possível observar na figura 7.

 

Derivadas de uma imagem. Waldemar Cordeiro/ Giorgio Moscati, USP. 1969. Coleção Família Cordeiro. Figura 4: Transformação em zero grau press out put, 47 X 34,5 cm. Figura 5: Transformação em 1 grau press out put, 47 X 34,5 cm. Figura 6: Transformação em 2 grau press out put, 47 X 34, 5 cm.

Figura 7. Gráfico da dinâmica do programador rebelde.

Enquanto as ações de Cindy Sherman sinalizaram a condição de apertadores de teclas engajados, Waldemar Cordeiro assumiu a condição de programador rebelde, uma vez que suas ações interagiram no interior do próprio aparelho, ao inserir intenção artística, no contexto objetivo dos códigos binários.

metaforametria, nestes casos, indica em que medida cada um dos sujeitos, inseridos no contexto do Universo das Imagens Técnicas, pode potencialmente tornar-se um jogador libertário, seja na condição de apertadores de teclas engajados, seja na condição de programadores rebeldes, ou na integração de ambos.

O exercício do olhar a partir de um retângulo, seja por meio dos visores de aparelhos captadores ou projetores de imagens do quadrante zerodimensional, indica a necessidade de três critérios: motivação, consciência e ação. A motivação indica a dinâmica de participar de um jogo. A consciência sinaliza a capacidade de reconhecer-se jogador neste jogo. Por ação compreende-se a capacidade de gerar situações e contextos que possam motivar novos sujeitos a tornarem-se jogadores libertários.

Edgar Morin em suas escritas desenvolvidas no quadrante unidimensional, intitulado Introdução ao pensamento complexo (2007), analisa a necessidade de uma tomada de consciência radical em relação à forma de organização do conhecimento na busca da superação da cegueira instituída pelo modelo de pensamento cartesiano. Esta tomada de consciência, segundo ele, indica a tentativa de religar saberes e sentidos, no desenvolvimento de projetos que integrem sistemas vivos, capazes de se auto-organizar e de autorrefletir. A metaforametria, neste sentido, assume-se enquanto contexto deflagrador de esclarecimentos e possibilidades no que se refere à humanização na produção de imagens presentes no quadrante zerodimensional.

É possível que este diagnóstico ocorra em diferentes espaços formativos, mas uma possibilidade concreta é que se desenvolva no contexto do ensino de arte, ao articular saberes e integrar sujeitos dispostos a romper com estruturas pré-determinadas. Efland (2008), outro integrante da categoria mentes subversivas, indica que tais possibilidades traduzem-se em uma abordagem dos âmbitos individual para o coletivo e do coletivo para o individual. O papel das metáforas, nesse contexto, seria o de estabelecer conexões entre objetos e eventos que, aparentemente, não se relacionam nessa dinâmica. Ao ensino de arte indica-se a responsabilidade de integrar imaginação e criação na produção de sentidos pessoais e culturais.

Notas sobre um laudo de campimetria…

A paciente piscou os olhos e quando os abriu percebeu, que na verdade, a demora do exame, e toda a descrição que o antecedeu, se dão, devido ao ser humano, frente ao Campimetro de Goldman. Aparelhos geradores de imagens técnicas não se comunicam por meio da troca de sentidos, os programas inseridos em seu interior são alheios a estas compreensões. Os diagnósticos computadorizados não refletem sobre a sua condição, não avaliam o contexto no qual estão inseridos, não avaliam a sensibilidade e subjetividade de outros seres por eles analisados.

Neste piscar de olhos, ela percebeu que a demora do exame é parte de uma condição poética, em resposta ao imediatismo cartesiano. Talvez alguns pacientes necessitem retornar outros dias, para que possam continuar a prosa, aprender ou apreender um pouco mais das histórias, quem sabe ler de relance os títulos dos livros de oftalmologia empilhados na prateleira da “sala de filme trash”. Quem sabe retornam para descansar os olhos dos bombardeios de imagens a que todos estão imersos em seu cotidiano. Talvez o exame de campimetria manual, possa ser um foco de resistência capaz de não apenas avaliar o campo visual de um paciente, mas em conjunto, ampliar o olhar no que se refere à condição do sujeito e da sua luta para manter sua condição humana num mundo cada vez mais robótico.

Pronto. O exame acabou.
— Nossa, pensei que fosse demorar mais.
(aliviada)
— Percebi alguns indícios de pressão “fora do normal” em seu olho esquerdo. É bom que você retorne para uma avaliação mais detalhada.
— Nossa… Retornarei, sim.
(aliviada)
— E o resultado?
— Pode esperar na recepção ao lado da porta. Vou redigir as observações e apresentar ao doutor para que ele avalie e emita o laudo.
— Obrigada. Gostei muito da sua avaliação. Ah… Também, gostei muito da conversa.
— Até logo…
— Até logo.

Após alguns minutos a paciente recebeu o seguinte laudo:

A Campimetria de Goldman da paciente, RG: XXXXXX/ 2ª Via DGPC,GO, apresenta isópteras dentro da normalidade, estando a paciente, do ponto de vista campimétrico, apta para trabalho que exija bom Campo Visual”. (10/08/2010)

Finalmente de posse do laudo, a paciente respirou aliviada. Mas no fundo do seu campo metafórico, gostou mesmo foi da conversa. Gostou também dos desenhos da Via Láctea, indicados nos dois mapas (olho esquerdo e olho direito), marcados pelo ser humano que acabara de conhecer.

Desenho da Via Láctea do olho esquerdo.
Desenho da Via Láctea do olho direito.

Referências Bibliográficas

EFLAND, Arthur D. “Imaginação na cognição: o propósito da arte”. Trad.: Leda Guimarães. In: Arte/ Educação Contemporânea – Consonâncias internacionais (Org. Ana Mae Barbosa). São Paulo: Cortez, 2008.

FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. 2. ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.

_____. O universo das imagens técnicas: elogio da superficialidade. São Paulo: Annablume, 2008.

_____. Jogos. Suplemento Literário OESP – 09/12/1967. Disponível em:
http://www.cisc.org.br/portal/biblioteca/jogos.pdf > Acesso em: 04 fev.

MARTINS, Alice Fátima & SANTOS, Noeli Batista. A Imagem Eva. In Revista Digital do LAV. Ano II – Número 02 – Março 2009. Santa Maria: UFSM. Disp. em <http://www.ufsm.br/lav/>. Acesso em 25 mai. 2009.

MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Trad. Eliane Lisboa. Porto Alegre: Sulina, 2007.

SANTOS, Noeli Batista. 2010. Imagens Técnicas e o ensino de arte: um jogo antropofágico. Mestrado. Dissertação, Universidade Federal de Goiás, Faculdade de Artes Visuais.

 

* Noeli Batista Santos é bacharel e licenciada em Artes Visuais pela Universidade Federal de Goiás e mestre em Cultura Visual. Professora Assistente na Faculdade de Artes Visuais/UFG, atua nos cursos de Licenciatura em Artes Visuais na modalidade a distância e presencial. Pesquisa contextos de formação de professores mediados pelas TICs e intervenções poético-pedagógicas envolvendo ensino de arte e a produção de imagens técnicas.

 

Ciberespaço atomizado e novos modos de pensar a cibercultura | de Cleomar Rocha

Categorias do Ciberespaço: rumo à atomização

A estrutura de conexões possibilitadas pelos sistemas computacionais recebeu o nome de ciberespaço, como foi batizada por William Gibson em seuNeuromancer, de 1984. Para Gibson, o ciberespaço era uma alucinação consensual, como o definiu. Como alucinação o ciberespaço ensejava a ideia de um espaço criado na mente das pessoas, era assim uma projeção, um local imaginado, e não exatamente um espaço físico, visto que as redes computacionais não configuram um espaço, mas um fluxo de códigos que trafegam em cabos, ar e equipamentos. Nos cabos, no ar, nos equipamentos, existem códigos, e não espaço.

Contudo, a partir da metáfora criada para o termo cibernética, da qual deriva ciberespaço, e a noção de espacialidade sustentada pela palavra [espaço], que recebeu o prefixo [ciber], aliada ao conceito de espaço-informação de Douglas Engelbart no desenvolvimento das interfaces gráficas computacionais ou GUI (Graphic User Interface), criou-se uma concepção de universo paralelo, para o qual os usuários se transportavam ao acessar o ciberespaço. Engelbart, ao desenvolver um modelo de interfaces gráficas, sustentou sua invenção em três conceitos principais, espaço-informação, manipulação direta e duplo virtual. A sua concepção de espacialidade, contudo, se restringia ao espaço simulado pela interface gráfica, e não pelo ciberespaço. Engelbart pensava o espaço bidimensional da interface gráfica da tela dos computadores, com a possibilidade de forja da tridimensionalidade, seja a partir do uso da perspectiva, seja de outro recurso de ilusão óptica. Mas certamente seu empenho se distingue da concepção de que houvesse espaço para além da tela, da interface gráfica.

Entretanto, vários pesquisadores deixaram-se levar pelo senso comum, ajudando a divulgar a ideia de um ciberespaço alheio ao mundo natural, que era acessado pelas interfaces, como se estas fossem uma membrana que separa o mundo natural do ciberespaço.

Para Poster (1995: 20 – 21) uma interface está entre o humano e o maquínico, uma espécie de membrana, dividindo e ao mesmo tempo conectando dois mundos que estão alheios, mas também dependentes um do outro. (apud SANTAELLA, 2003, 91)

Narrativas maravilhosas e fábulas à parte, tentaremos aqui discutir tais concepções, fazendo avançar alguns conceitos, e negar uma perspectiva romantizada e idealizada que constitui uma primeira visada sobre o termo ciberespaço e seus desdobramentos, como a cibercultura. Não se nega, diga-se desde já, a existência desta concepção romântica, mas será preciso tê-la como idealizada, encontrando suas razões de ser, mas deixando-a, em seguida, para fronteiras outras do pensamento.

Se o termo cibernética encontrou sua razão de ser pela comparação que se fez entre a quantidade de informações processadas pelos sistemas computacionais, aproximando-a de um mar de informações – lembremos que o termo deriva deKubernetes, que em grego significa timoneiro, aquele que governa, em referência à condução de um barco em pleno mar -, seu prefixo, ciber, serviu para gerar outras palavras, tendo a maior referência o termo ciberespaço. Se considerarmos que Engelbart criou a interface gráfica a partir de alguns conceitos, dentre os quais o de espaço-informação, que seria tomar o espaço bidimensional da tela não como um conjunto de linhas, mas como um espaço que os elementos das interfaces pudessem ocupar livremente, pode-se inferir que a junção da simulação de espaço das interfaces gráficas e a metáfora de mar, derivada de cibernético, foi o motor para se gerar a ideia de um espaço para além da tela do computador, para onde nosso espírito seguia ao acessarmos os sistemas computacionais. Mais ainda, poderíamos assumir, naquele universo, novos corpos, chamados avatares, nos quais poderíamos ter uma outra vida, talvez uma segunda vida [a rede socialSecond Life se sustenta neste pensamento].

Esta definição de ciberespaço como mundo paralelo encontrou uma série de defensores, que sustentavam que a interface era uma janela para o ciberespaço, ou um lugar onde os sistemas computacionais e humanos se encontravam. As interfaces seriam, nesta concepção, o portal de passagem para o outro mundo, livre de todas as querelas de nossa sociedade. Destituídos de nossa cultura corpórea e social, estaríamos livres para compor uma outra cultura, a cibercultura. Contudo será preciso lembrar que a cultura não é constituída por espaços, mas por pessoas que ocupam os espaços. E sua base é a consciência, além do comportamento. Assim, ainda que fosse de fato outro espaço, ainda assim seríamos nós, com toda a nossa cultura, que estaríamos lá. A cultura é a humana, a mesma em todos os espaços, com as variações de pertencimento, formalidade, espontaneidade, que temos nos vários espaços sociais que ocupamos.

No nível da experiência, nosso corpo próprio recebe estímulos, compondo as sensações, reconhecidas como percepção. O que experienciamos ao acessarmos os sistemas computacionais é o estímulo da cor-luz emitida pelos monitores em suas telas, é o som, são as interfaces físicas que convocam nosso sistema háptico. As informações são atualizadas nas e pelas interfaces, alcançando nossa base sensível, os exteroceptores, compondo nossa experiência. Nossa consciência não deixa o corpo, não nos transportamos para um universo paralelo. Antes disto, aceitamos as regras da ilusão das interfaces, reconhecendo uma simulação da espacialidade tridimensional onde há apenas duas dimensões. Ao aceitarmos esta forja, desejamos crer nela, acatando-a como base da experiência, o que de fato não ultrapassa as noções de representação sígnica, simulação computacional e projeção do eu, em processos de subjetivação que se assemelham a literatura, quando nos reconhecemos em um personagem, ou no cinema, intensificados pela resposta simultânea das ações que executamos. O ciberespaço é ilusório desde a sua concepção. É uma forja auxiliada pelo design de interfaces e pelos textos que o querem um universo paralelo.

Esta concepção de ciberespaço, baseada no paralelismo, encontra duas outras categorias ou concepções: seu atravessamento e sua atomização. O atravessamento recebe o legado das tecnologias tele, de acesso remoto, como o telefone e a televisão. É quando a tarefa a ser realizada não ocorre nas simulações computacionais, mas estas possibilitam acessos remotos, como teleconferência, telepresença e telerrobótica. A telemática sustenta tecnologicamente esta concepção.

A terceira categoria, atomização, situa o ciberespaço não em um mundo paralelo, mas presente no mundo natural, como elementos atômicos. Sensores, câmeras e outros dispositivos identificam elementos do mundo natural, filtrando-os e identificando-os enquanto ações que determinam novas ações de sistema. Movimentos, gestos, cores, localização, posicionamento, voz, fala, ruído, qualquer elemento previamente determinado como acionador do sistema pode ser usado, de modo a atualizar informações virtualizadas em interfaces variadas, seja de entrada seja de saída do sistema. Aqui as interfaces são das três categorias: físicas, perceptivas e cognitivas 1. O ciberespaço, antes de estar para além das interfaces, situa-se para aquém delas, no mesmo espaço usado pelo corpo próprio, o mundo natural.

Cada vez menos é necessário se falar em ciberespaço. Na sala de aula, eu estou em contato físico com os estudantes, mas ao mesmo tempo estou usando uma tela de projeção conectada. Portanto, estamos nos apropriando de elementos que estão absolutamente incorporados àquele ambiente físico e que são coisas que estão no chamado ciberespaço. […] Essas fronteiras deixam de existir. (PALÁCIOS, 2009, 254)

Embora boa parte da cultura ainda se refira ao ciberespaço a partir da categoria do paralelismo, nota-se claramente uma mudança de curso, tanto em concepções teóricas quanto de mercado. Em filmes como MatrixAvatar temos a ideia de migração da mente, que deixa o corpo e assume outro corpo, digital no primeiro caso e biológico, porém artificial, no segundo. E se na primeira categoria, paralelismo, o corpo próprio era elemento obsoleto, relegado a uma função quase banal e dispensável, ele recupera importância na terceira categoria, atomização, sendo o grande responsável pelos acionamentos das interfaces computacionais. Na verdade, no paralelismo, o corpo não era dispensável, mas seus movimentos eram minimizados, com as mãos realizando os movimentos de condução do mouse e acionamento do teclado, enquanto o olhar vasculhava as imagens sintéticas das interfaces gráficas. Com a atomização o corpo ganha espaço e pede passagem, com a incorporação de gestos, voz, movimentos amplos. Para se jogar com o Wii, da Nintendo, o corpo todo é convocado para a ação. O Projeto Natal, da Microsoft segue o mesmo caminho, eliminando a figura do avatar e mantendo o corpo próprio como elemento de jogo. Porém, não se fala mais em entrar no ciberespaço, mas o ciberespaço, enquanto noção de espacialidade tecnológica de acionamentos e interatividade, se acomoda em volta do corpo, observado agora por câmeras e sensores que possibilitam ao sistema identificar deslocamentos, movimentos, gestos, sons, a própria fala. Não é o usuário que entra e navega no ciberespaço, é o ciberespaço que se lança no mundo natural, tornando-se cada vez mais pertencente a este, um elemento dele. Desfaz-se, e tardiamente, o equívoco conceitual de oposição entre real e virtual, e problematiza a definição de interface, visto que não é mais possível sustentar a afirmação de a interface ser um elemento que separa dois mundos, ou mesmo que os une. Não existem dois mundos, apenas um, o que conhecemos. Heim, já em 1993, mostrava o caminho de reconhecimento do ciberespaço, composto de um modelo ou mapa mental – daí o vínculo com a ideia de alucinação consensual de Gibson – e o leiaute da interface gráfica.

O arquivamento magnético não oferece nenhuma pista tridimensional para corpos físicos. Por isto, devemos desenvolver nosso próprio sentido internamente imaginado da topologia dos dados. Esse mapa interior que produzimos mais o layout do programa é o ciberespaço. (HEIM, 1993, 132)

Mas somente com a atomização do ciberespaço a cultura como um todo parece ter de dar razão ao estudioso.

 

Cultura digital, cibercultura e cultura contemporânea

Desde o surgimento da concepção de ciberespaço, e tem naquele momento a primeira categoria, estudiosos tratam de uma cultura própria, a cibercultura.

Este termo [cibercultura] surgiu pra fazer uma separação entre a cultura até então existente e algo que estava emergindo, que era o digital. Nos primeiros artigos sobre a cultura digital era muito comum se usar a expressão real life para se referir ao mundo das coisas sólidas, em contraposição a esse outro mundo, que seria o mundo virtual. (PALÁCIOS, 2009, 253)

A base de sua constituição era, desde o seu surgimento, a oposição à cultura propriamente dita, em clara referência à cultura estabelecida no/com o ciberespaço. Ainda que sua gênese fosse a cultura das mídias (SANTAELLA, 2003) e sua base não fosse o desktop, mas o processador (SANTAELLA, 2003), seu surgimento sustentou a oposição, como afirma Palácios, entre cultura real e cultura “virtual”. Vários estudiosos se debruçaram sobre o tema, ora fazendo ver que a cultura estabelecida não se restringia ao ciberespaço, mas a partir dele, contaminando o corpo social, engendrando-se na cultura, ora restringindo-o àquela ideia de espacialidade cibernética. No mundo de cá, mundo natural, cultura, no mundo de lá, ciberespaço, cibercultura. Haveria a possibilidade nascente de reconstruir a cultura a partir do zero, e pesquisadores como Pierre Lévy (1999) divulgava a boa nova como uma oportunidade preciosa para se reinventar a cultura humana, com vistas a um ambiente colaborativo, constituindo o que ele chamou de inteligência coletiva. O campo das possibilidades era profícuo.

Ocorreu, contudo, que o admirável mundo novo não era completamente novo, porque fora povoado pelos mesmos povos, com suas culturas, já existentes. Identificou-se que a cultura não é a do lugar, mas das pessoas que habitam esse lugar. Em outras palavras, o lugar, em si, não tem cultura, mas as pessoas a fazem. Ainda assim, o alicerce que sustentava a oposição entre real e virtual mostrou-se frágil, verdadeiramente falso. O mesmo Lévy o disse em seu O que é o virtual?(1996), ao reparar que virtual se oporia ao atual, e que ambos, virtual e atual, pertencem ao real. Ao aceitar tal fato, perde-se de perspectiva que o ciberespaço tenha um locus próprio, fora do mundo ou da cultura. Não faz mais sentido falar em cibercultura no contexto de oposição. Ela passa a nominar uma etapa específica da sociedade, uma faceta histórica.

A gente pode empregar como sinônimos cibercultura e cultura digital, que seriam nomes para a cultura contemporânea, marcada a partir da década de 70 do século passado, pelo surgimento da microinformática… (LEMOS, 2009, 136)

Postos deste modo, a cibercultura, nascida de uma oposição, se integra ou se dissolve na cultura contemporânea, nominando não mais algo pontual, mas geral, ainda que mantenha o vínculo tecnológico que a fez surgir. Não nos parecerá estranho, então, que o termo entre em desuso, por absoluta falta de necessidade.

 

Conclusão

Não me parece justo decidir sobre a obsolescência de alguns termos e seus sentidos, visto que isto cabe à cultura linguística, à comunidade que os utiliza. Contudo, parece caber ao observador atento a tarefa de reconhecer variações semânticas, e o sutil deslizar do emprego de determinados termos, na orientação que oscila entre o conceito e a semântica.

Se, semanticamente, os termos ciberespaço e cibercultura surgiram de uma necessidade nominativa específica, é também certo que tais termos sofreram, rapidamente, variações de sentido, como apontadas, perdendo parte de sua especificidade, em alguns casos a totalidade de sua serventia. E se assim o é, antever a obsolescência dos termos já não seria de todo condenável, já que a sua eliminação reacomoda, de modo mais consensual e adequado, os conceitos dos quais derivam.

Em sendo assim, identificamos a tendência de o termo ciberespaço voltar a ter o sentido de sua concepção original, como alucinação consensual ou como a junção de modelo mental e leiaute da interface gráfica, nada mais que isto. Já o termo cibercultura parece não mais suportar o peso do que nominou um dia, sendo paulatinamente substituído por outros mais gerais, como cultura digital, cultura contemporânea, ou até, talvez e apenas, cultura. Conceitualmente atualizamos a ideia de um único mundo e cultura, sabidamente recheados de facetas, tensões, variações e mesmo contradições.

 

Referências

HEIM, Michael. The metaphysic of virtual reality. Oxford University Press, 1993.

LEMOS, André. Entrevista. In SAVAZONI, Rodrigo, COHN, Sérgio (orgs.)Cultura Digital.br. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009. 135-149.

LEVY, Pierre. Cibercultura. Trad. Carlos Irineu da Costa. São Paulo: ed. 34, 1999. (Coleção TRANS)

LEVY, Pierre. O que é o virtual? Trad. Carlos Irineu da Costa. São Paulo: ed. 34, 1996. (Coleção TRANS)

PALÁCIOS, Marcos. Entrevista. In SAVAZONI, Rodrigo, COHN, Sérgio (orgs.) Cultura Digital.br. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009. 253-261

POSTER, Mark. The second media age. Cambridge, Polity Press, 1995.

ROCHA, Cleomar. Interfaces Computacionais. In Anais do 8º Encontro Internacional de Arte e Tecnologia. Brasília: PPG Arte/IdA/UnB, 2009.

ROCHA, Cleomar. Três concepções de ciberespaço. No prelo. Goiânia, 2010.

ROCHA, Cleomar. Interfaces Computacionais In Anais do 17o Encontro Nacional da ANPAP. Florianópolis: ANPAP, 2008.

SANTAELLA, Lucia. Culturas e artes do pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura. São Paulo: Paulus, 2003.
Filmografia

AVATAR. Direção e Roteiro: James Cameron. Produção: James Cameron e Jon Landau. Elenco: Sam Worthington, Zoe Saldana, Sigourney Weaver, Stephen Lang. EUA: Twentieth Century-Fox Film Corporation / Lightstorm Entertainment / Giant Studios, 2009. 1 DVD (162min).

THE MATRIX. Direção e Roteiro: Andy Wachowski e Larry Wachowski. Produção: Joel Silver. Elenco: Laurence Fishburne , Carrie-Anne Moss , Hugo Weaving , Joe Pantoliano, Marcus Chong. EUA: Warner Bros, 1999. 1 DVD (136min)

 

*Cleomar Rocha é pós-doutorando em Estudos Culturais no Programa Avançado em Cultura Contemporânea (PACC/UFRJ), pós-doutor em Tecnologias da Inteligência e Design Digital (TIDD/PUC-SP) e doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas (FACOM/UFBA). Professor Adjunto do Programa de Pós-graduação em Cultura Visual da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás – FAV/UFG.

1 Apresentei e discuti as três categorias de interface durante o pós-doutoramento em Tecnologias da Inteligência e Design Digital, com supervisão da profa. Lucia Santaella. A discussão também foi apresentada em artigos publicados em 2008 e 2009, notadamente no #8.ART – 8o Encontro Internacional de Arte e Tecnologia, realizado em Brasília em 2009, e no 17o Encontro Nacional da ANPAP, realizado em Florianópolis em 2008.

 

Vampiros em (super)visibilidade: um fenômeno cultural em ação | Laura Maria Coutinho* – / – Adriana Moellmann**

“Se o mundo fosse como devia ser, se não houvesse monstros e magia…” (MEYER, 2009) 1

“You think you’re a vampire,” Simon’s mother said, numbly. “You think you drink blood.”
“I do drink blood,” Simon said. “I drink animal blood.”
“But you’re a vegetarian.” His mother looked to be on the verge of tears.
“I was. I’m not now. I can’t be. Blood is what I live on.” Simon’s throat felt tight. “I’ve never hurt anyone. I’d never drink someone’s blood. I’m still the same person. I’m still me.” (CLARE) 2

Em 1993, após assistir ao filme Drácula de Bram Stoker, 3 a surpresa foi tão grande quanto a emoção. O que de início era um filme de terror tornou-se, doravante, o desnudamento de uma figura mitológica, conhecida e reconhecida, construída em literatura e cinematografia, sempre com imagens controversas e diversas. Não havia – como ainda acreditamos não haver – uma personalização absoluta do que representaria o vampiro. No entanto, naquele momento, muito do que ele simbolizava e representava mostrou-se de forma intensa e contundente, levando-nos a questionar o que seriam os vampiros e por que seu simbolismo é tão presente, forte e controverso.

Ao iniciar a pesquisa 4 a partir do filme de Francis Ford Coppola, vários obstáculos apresentaram-se, o que também foi uma surpresa. Afinal, que dificuldades se apresentariam à tentativa de observar mais de perto uma figura tão conhecida e, de certa forma, tão presente no imaginário de diferentes povos e culturas? Eram tantos os filmes sobre vampiros, tanta literatura, música. Conhecê-los mais de perto deveria ser fácil.

Porém, não contávamos com sombras tão densas. Os filmes não estavam visíveis, não foram encontrados em locadoras de vídeo. Para assistir a Nosferatu, 5 de F. W. Murnau, foi preciso recorrer à biblioteca de uma escola de idiomas e ignorar os letreiros em alemão. Dança com vampiros 6 não estava acessível. Fome de viver 7 também não. Os filmes de Bela Lugosi 8 não estavam disponíveis. Os caminhos que havíamos escolhido traçar para contemplar os vampiros, para conseguirmos nos aproximar do Drácula de Bram Stoker, não estavam claros. Foram precisos alguns anos e certa contraposição às sombras – ou talvez um mergulho nelas, portando um pequeno feixe de luz – para entendermos os nossos empecilhos.

Entrevista com o vampiro9 filme baseado no livro de Anne Rice, 10 foi lançado com grande repercussão em 1994. Traz às telas dilemas, questionamentos, problemas morais, filosóficos e éticos da humanidade – como morte, envelhecimento, beleza, além do velho conflito entre o bem e mal –, a partir do encontro de um jornalista e um vampiro. Nele, o vampiro Louis, interpretado por Brad Pitt, conta ao jornalista a sua vida de vampiro, expondo sua força, fraquezas, angústias e violência. Louis apresenta uma figura conhecida hoje, “o vampiro com consciência”,11 aquele que questiona o que é e o modo como existe. Na narrativa de Anne Rice, Louis se contrapõe a Lestat, o vampiro que não mostraria dúvida do que é e de como vive. Com Lestat, Louis e suas entrevistas, a imagem do vampiro aparecia novamente em destaque, um ano após o Drácula de Bram Stoker.

Em 2008, foi lançada mundialmente a versão cinematográfica da saga literária criada por Stephenie Meyer em 2005, Crepúsculo 12. Elaborada a partir de um sonho da autora, em que um vampiro apaixonava-se por uma humana, surgiu a saga composta de quatro livros. Neles, o personagem Edward foi transformado em vampiro como uma alternativa à morte. O vampirismo aparece como a sua possibilidade de viver, não uma renúncia à vida. Parte de uma família que se recusa a sobreviver de sangue humano, ele encontra em Bella, a humana por quem se apaixona, outras possibilidades de recuperar sua própria humanidade. A partir dos livros, surgiram os filmes. Seguido a tudo isso, surge um fenômeno de superexposição. Agora, é possível encontrar os vampiros nos locais mais inusitados e inesperados.

Hoje a imagem do vampiro não se encontra mais nas sombras de um culto cultural restrito a determinada idade, local, interesse. Não temos mais que abrir atalhos em caminhos escondidos para conseguir encontrá-los. Eles se encontram expostos e iluminados. Isto um fenômeno cultural contemporâneo pode proporcionar: a superexposição de uma imagem à luz. Por circunstâncias e elementos que ainda buscamos compreender, uma imagem que já se encontrava presente em sociedade há séculos, que culturalmente nos era conhecida, passa, hoje, a ser supervalorizada, exposta, discutida, comercializada.

No entanto, seja nas sombras de uma figura cult, seja na superexposição iluminada de um acontecimento cultural de massa, a imagem não necessariamente se faz mais clara. A falta de luz ou o seu excesso podem representar, igualmente, uma deturpação da imagem. Tampouco essa forma de superexposição significa que se promova uma atenção, uma melhor contemplação que pudesse levar a uma maior compreensão da imagem, mas apenas pode significar que ela sai das sombras para expor-se no plano do visível.

Segundo Fredric Jameson, em As sementes do tempo 13, cada vez mais pode acontecer de os produtos culturais deslocarem-se da esfera da arte, que se faz pela diferença, para a esfera da massa, que se faz pela identidade. Os artefatos culturais nos quais se incluem os vampiros, hoje, estariam mais próximos dos fenômenos que ocorrem na esfera da massa: proporcionam mais a identificação que a diferença.

O excesso de exposição pode ofuscar a visibilidade de uma imagem. Ao mesmo tempo em que, criada para ser vista, sua exposição pode, muitas vezes, retirar o que lhe é inerente, evidenciando a identificação de aspectos mais gerais de personagens e narrativas em detrimento de sua especificidade e essência. Segundo Hannah Arendt,
…tudo o que vem a público pode ser visto e ouvido por todos e tem a maior divulgação possível. Para nós, a aparência – aquilo que é visto e ouvido pelos outros e por nós mesmos – constitui a realidade. (…) até mesmo as maiores forças da vida íntima – as paixões do coração, os pensamentos da mente, os deleites dos sentidos – vivem uma espécie de existência incerta e obscura, a não ser que, e até que, sejam transformadas, desprivatizadas e desindividualizadas, por assim dizer, de modo a se tornaram adequadas à aparição pública.

(…) A presença de outros que veem o que vemos e ouvem o que ouvimos garante-nos a realidade do mundo e de nós mesmos ...14

O vampiro: símbolo de vida e morte
O vampiro de Drácula de Bram Stoker, o filme, nos conduz à imensa dor da perda. Uma dor tão intensa e profunda que despe quem a sofre da própria humanidade. O Conde Drácula, ao perder tudo o que o constituía como ser humano – seu amor, sua pátria, suas crenças –, abre-se à escuridão do não-ser. Existe, mas não vive. Anda sobre a terra, mas seu coração não bate. A vida não mais o habita. A essência da vida ele precisa adquirir de outra forma, por meio do sangue. Morto em vida e esvaziado de si, o vampiro alimenta-se daquilo que pulsa nas veias do outro. Os vampiros estão mortos em sua perambulação quase sempre noturna. Não têm mais vida. São frios. Não têm alma. Insones, vivem no escuro, espreitam. A essência da vida não mais os compõe, precisando ser adquirida. O calor e a energia vital são usurpados de quem ainda os possui.

Segundo Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, “o sangue é universalmente considerado o veículo da vida. (…) O sangue corresponde, ainda, ao calor, vital e corporal, em oposição à luz, que corresponde ao sopro e ao espírito.15A matéria de que é feita a vida.

Em Drácula de Bram Stoker, a figura do vampiro relaciona-se também com o simbolismo cristão, à contraposição céu/inferno, mas a ela não se reduz. O vampiro seria, sob esse aspecto, uma figura demoníaca que, ao final, se abre à redenção que, no filme, ocorre em uma igreja. Esse cenário parece ressaltar a ação – e esta é o que parece importar ali. A transformação é percebida nos movimentos, a partir dos gestos e da atitude de Drácula em relação à luz, à sombra e aos símbolos presentes no ambiente. Nesse momento, é possível vislumbrar em sua fisionomia o reconhecimento de sua própria dor e o seu desapego à escuridão. É a vida que ele busca sempre, não a morte.

A história de Conde Drácula popularizou o nome, que se tornou um sinônimo de vampiro. Seu local de nascimento, a Transilvânia, a sua casa, tornou-se também a morada de todos os vampiros. Apesar de se tratar de uma lenda que surgiu em local específico – o leste europeu 16-, sua associação com os vampiros é mundial. Drácula, o vampiro, se estendeu a outros locais, outros cenários, outras narrativas.

Essa forma de transposição da lenda e sua perpetuação no mundo real das produções culturais, fez com que, por exemplo, Roddy Doyle compusesse, de maneira instigante, o seu conto Blood.17 O personagem dessa narrativa cresceu na cidade de Drácula e passava pela casa de Bram Stoker todos os dias a caminho da escola. Apesar de haver crescido tão próximo à lenda, ele não se sensibilizava com os vampiros. Dormiu durante o filme Drácula de Bram Stoker por considerá-lo enfadonho. As imagens da narrativa não o sensibilizaram, mas ele não pode evitar que os vampiros invadissem a sua vida cotidiana. Ele não se interessava por histórias, filmes ou livros de vampiros, não se identificava com eles, mas mesmo assim não conseguiu mantê-los fora da sua vida. Apesar de seu desinteresse por esses seres, um dia ele acorda com uma necessidade extrema de beber sangue.

O vampiro e seu simbolismo se deslocam também das muitas narrativas que conhecemos e se propagam para o mundo. Transformam-se em ação, desejos, produtos. Extrapolam a ficção, ultrapassam as barreiras do sonho e ficam à nossa disposição não só em representação, mas em matéria. Estão presentes em produtos comercializados – copos, camisetas, roupas de cama, cadernos, joias. Passam a compor o nosso cotidiano; em reminiscência, trazem aspectos físicos do que representam. Como objetos da memória, afastam-nos do esquecimento e tornam-se cada vez mais presentes a partir das imagens que evocam.

Outro aspecto essencial na jornada do vampiro, nesse amálgama feito de realidade e ficção, é sua estreita associação ao mito do amor romântico. Presente na sociedade ocidental contemporânea de forma arrasadora, ele está na origem da dor do vampiro de Bram Stoker. O amor é também a força redentora, e se apresenta como a escolha de salvação e fator de humanidade aos vampiros nas narrativas atuais. Universal e de grande apelo emocional, o amor romântico também ultrapassa fronteiras.

Esse amor encontra-se personificado, sobretudo, na força das escolhas que os vampiros podem fazer. Seres que, oscilando entre a emoção, o instinto e razão, buscam se constituir mais como humanos do que como monstros. Sob essa perspectiva, podemos dizer que o amor os redime. O amor é o grande desafio a ser conquistado e parte essencial da jornada desses personagens que, como heróis, tornam-se cada vez mais próximos ao seu leitor. O amor é o elo que pode unir vampiros e humanos, trazendo do universo da ficção, forte identificação que alcança a vida real de leitores, sobretudo aqueles oriundos de um público bastante jovem. Mas não somente. A busca da superação de sua condição de vampiro, o anseio por outra realidade menos monstruosa, o seu afastamento da violência de um predador, tudo isso pode se justificar também pela força do amor romântico. Ele está na essência de quase todas as escolhas. É o que torna plausível o desejo de mudança dos vampiros e também de humanos.

O movimento realizado pelo vampiro no filme de Coppola já apontava para esse elemento importante para a composição da imagem atual do vampiro, ou seja, a escolha. Se nem sempre tornar-se um vampiro é uma escolha consciente, a superação da sua condição demoníaca poderia sê-lo. Ele precisaria agir no sentido da sua humanidade, e não contrariamente a ela. Esse é um dos aspectos que o tornaria adequado ao mundo e à sociedade dos homens. É a opção pela humanidade que daria à sua aparência, gestos e atitudes a qualidade necessária para estar em sociedade. Ele não mais seria um monstro incontrolável. Esse aspecto retira da imagem do vampiro muito do extremismo que está contido no seu simbolismo. Se a perda da humanidade foi uma resposta extrema à dor, esse extremismo não mais se apresentaria para o vampiro nas narrativas atuais. Talvez essa seja uma das razões do enorme sucesso dos vampiros de Stephenie Meyer.

Ao vampiro associam-se também outros instintos que compõem o ser humano. Dois deles apresentam-se muito fortemente relacionados: a violência e a sexualidade. Ambos encontram-se largamente discutidos, com maior ou menor detalhamento, não somente nos telejornais, em casa ou na escola, mas sim, e com muita ênfase, nas narrativas de ficção. Expressam condições passíveis de serem traduzidas em imagens de grande impacto visual e sonoro, sobretudo no cinema e na televisão. Comumente, violência e sexualidade andam juntas – essa combinação pode proporcionar uma associação dessas duas expressões no imaginário contemporâneo. O vampiro traz, desde sempre, a violência e o sexo nas suas representações. Portanto, é emblemático que uma sociedade que valoriza o controle dos instintos, sobretudo pelo comportamento civilizado, instituído e regulamentado, tenha como importante fenômeno atual – transformado, em alguns momentos, em grande espetáculo de massa e de mídia – uma manifestação cultural assentada em vampiros que, como heróis, tentam superar e controlar esses dois instintos básicos em nome do amor, da humanidade e da possível salvação de sua alma.

Essa trajetória do vampiro rumo à conquista de sua humanidade assemelha-se à jornada do herói, conforme descreve Joseph Campbel em O mito do herói.18Depois de viver na inconsciência de sua verdadeira essência, o herói passa pela tomada de consciência de sua própria condição e, daí, para a realização de seu potencial.

Na jornada dos heróis atuais, encontram-se presentes a busca de certa adequação ao mundo moderno e a aceitação das diferenças. Aqui a propagação na literatura e no cinema dos vampiros adolescentes fortalece o simbolismo. Dessa forma, os vampiros presentes nas narrativas atuais teriam uma escolha que estava ausente em Drácula. A escolha de superar os instintos, ou de pelo menos aparentar que o fazem. E assim nos aparecem os vampiros hoje: seres humanos que não tiveram outra escolha senão se tornarem o que são. Mas eles são também criaturas que não se conformam com a sua condição. Parece não estarem dispostos a se tornar apenas mais um clichê de filme de terror. Possuem escolhas e as exercem. Lutam contra sua natureza e instintos predadores para reconquistarem a humanidade perdida.

Outros elementos e simbolismos, propostos nas narrativas dos autores mais atuais, passam a compor a imagem do vampiro. Que, nessas histórias, eles apareçam cada vez mais novos, pode colocar em foco o poder e a importância de escolhas cada vez mais precoces. Longe da imagem de um predador ancião sem consciência, os vampiros hoje representam a possibilidade de tornarem-se o que escolherem, sugerindo o mesmo para um mundo no qual a humanidade encontra-se cada vez mais diluída, contraditória e sem saída. Talvez por isso a importância de uma reflexão sobre o deslocamento das narrativas sobre vampiros que visam públicos mais próximos da adolescência – momento essencial de escolha da construção da própria individualidade.

Os vampiros presentes nessas narrativas são adolescentes que, para estarem em sociedade, precisam mudar o sentido do que significa ser vampiro. A etimologia da palavra adolescente ressalta um dos aspectos da atração do simbolismo do vampiro para essa época da vida: originada do latim adoléscens, significa aquele que cresce, engrossa, aumenta. Aquele que se torna. Nas narrativas ficcionais atuais, o personagem que não sabe o que e quem é descobre sua verdadeira vocação, sua essência na época da adolescência. Criado em sociedade, o adolescente um dia descobre que não faz parte dela como imaginava. Descobre em si outras potencialidades, possibilidades e aptidões. Sua vida até então poderia ter sido como um ensaio, e o que virá a seguir, após a descoberta, será a sua vida.

 

A adequação e a aparência
Ao mesmo tempo em que a visibilidade confere ao vampiro seu lugar no mundo, ela lhe retira a força de seu simbolismo. As paixões, a dor da perda, o extremo que ele simboliza precisam ser domados e transformados para que ele se apresente adequadamente em sociedade. Simon, na epígrafe apresentada no início deste texto, explica para a mãe que, apesar de ter se tornado um vampiro, ele continua o mesmo. Morreu, mas ainda existe. Continua a ir à escola, a ensaiar com a banda de que faz parte, a divertir-se com os amigos. O que ele é não interfere no que ele aparenta ser em sociedade. A sua sede de sangue ou as mudanças por que passa são invisíveis aos outros. E para a sociedade dos homens, cada vez mais, é o visível que importa, não necessariamente a essência.

Os vampiros do seriado True Blood, exibido pela TV HBO,19 encontraram na criação do sangue sintético a camuflagem de civilidade que precisavam para expor ao mundo outro comportamento; com a possibilidade de se alimentaram artificialmente, sua necessidade de sobrevivência e sua condição de predadores do ser humano poderiam se transformar. No entanto, longe da visibilidade social, eles continuam sendo o que sempre foram; agem como antes de “saírem do caixão” e revelarem ao mundo o que são: predadores da humanidade.

Hannah Arendt (2000) contrapõe a sociedade moderna à grega-clássica com o seguinte aspecto: Na Grécia, ser cidadão significava agir. Na sociedade contemporânea, diferentemente, cabe ao cidadão se comportar. O comportamento é a sua ação em sociedade. O comportamento pode se configurar como uma forma de adequar-se às exigências sociais. Os vampiros, figuras mitológicas e de simbolismo intenso, não escapariam a essa exigência.

O simbolismo do vampiro se diferencia e se amplia no livro Crepúsculo por um aspecto significativo da história: a humana opta por ser vampira. Bella não sofre o destino dos outros vampiros da sua nova família. Ela não passa pela inevitabilidade da transformação. Ela tem uma escolha. Nem sempre na adolescência é possível ter a escolha. Bella tem essa possibilidade e, para o adolescente, essa é uma questão essencial. É a existência de uma opção. É a possibilidade de escolher seu futuro e quem deseja ser. É encontrar um local de existência em que haja adequação, felicidade e novas possibilidades. Assim, o vampirismo passa a ser não só um destino inevitável e cruel, de perda e dor, mas uma escolha por um modo de ser e por novas possibilidades de sobrevivência.

A superexposição dessa história traz ao foco da questão outras imagens que estão próximas ou têm alguma associação com os vampiros. Assim, com os vampiros – agora mais adolescentes, mesmo que centenários – e a sua grande exploração cultural e comercial, surgiram outras obras de ficção baseadas em figuras sobrenaturais. Os vampiros invadiram o mundo consciente, e com eles vieram os lobisomens, os transformadores, os fantasmas, as fadas, os nefilins, os anjos caídos. São adolescentes, presentes em sagas literárias que contam, em inúmeros livros, a jornada de heróis de 17 anos que precisam escolher o que querem se tornar e o que fazer, com o que são e com suas próprias qualidades.

A ampliação desse universo e a sua discussão por meio de obras literárias e cinematográficas sugerem narrativas que dialogam entre si e trazem essa conversa para o mundo da produção cultural. Os personagens, as circunstâncias em que vivem, o que têm à sua disposição não estão fechados em si. O sangue sintético deTrue Blood pode representar uma possibilidade para os vampiros de outras narrativas 20 . O diálogo se expande e, assim, o simbolismo tende a ampliar-se.

Todos esses símbolos já estavam presentes – no mundo, no chamado consciente coletivo, nos livros, pinturas, filmes, revistas em quadrinhos. Nas músicas. Na imaginação. No universo mitológico. O advento desse fenômeno de larga escala conferiu-lhes, no entanto, maior destaque. Colocou-os no centro de discussões, da paixão dos fãs e também como objetos de rejeição para aqueles que os consideram apenas como mais um modismo de qualidade duvidosa e movido a milhões de dólares.

 

A superexposição
Um fenômeno cultural traz consigo inúmeras implicações. Dentre elas, talvez a mais importante, no caso em tela, seja justamente aquela que escapa à maioria das visões mais superficiais e busca assentar-se em um olhar atencioso. O olhar atento implica abrir os olhos encarando o que vemos nos múltiplos prismas por meio dos quais se apresentam. Abrir os olhos para tentar enxergar além da superexposição. Olhar a imagem e atentar para o que ela deseja nos dizer, sem o a priori dos rótulos.
Jan Masschelein, em seu artigo E-ducando o olhar: a necessidade de uma pedagogia pobre, fortemente inspirado em Walter Benjamim, ressalta o que seria essa abertura do olhar:
Abrir nossos olhos é ver aquilo que é evidente; trata-se, como eu diria, de estar ou tornar-se atento ou expor-se. Caminhar pela estrada e copiar o texto são maneiras de explorar e relacionar-se com o presente, que são, acima de tudo, e-ducativas (…) Eles constituem um tipo de prática de pesquisa que envolve estar atento, que é aberta para o mundo, exposta (ao texto) para que ele possa se apresentar a nós de forma que nos comande. Esse comando não é o poder de um tribunal, não é a imposição de uma lei ou princípio (que supostamente deveríamos reconhecer ou impor a nós mesmos), mas sim a manifestação de uma força que nos põe em movimento, e assim abre o caminho. Ela não nos direciona, não nos leva à terra prometida, mas nos impulsiona.21

Olhar atentamente a imagem do vampiro hoje é deixá-la nos conduzir e contemplar o que ela evoca. É ter o olhar vazio para conseguir enxergá-la para além da moldura das ideias preconcebidas, do preconceito e dos modismos. É perceber como certo movimento de vida criou-se ao redor dessas narrativas, ofuscando muitas vezes o que elas próprias desejam expressar. É superar um pouco das barreiras criadas pelas classificações de idade e espaço nas obras literárias e cinematográficas. É tentar não ir simplesmente contra o que prevalece, mas buscar novas significações para velhos gestos. É buscar compreender como a imagem se propaga para além do seu direcionamento inicial e se faz presente de muitas formas. Crepúsculo é, por exemplo, uma história classificada como juvenil, mas que não se restringe hoje apenas ao público jovem. Restringi-la é uma forma de não abrir os olhos, de considerar suas possibilidades expressivas em um plano muito superficial.

As leituras, os visionamentos, as pesquisas que realizamos são formas de conhecimento de nós mesmos e do mundo em que vivemos. Elas não se configuram apenas num ambiente acadêmico. A pesquisa de fenômenos culturais não se limita às obras a que se refere. Elas são o nosso ponto de partida, o impulso. Elas conduzem-nos, como se referiu Messchelein acima. A partir delas nos movimentamos. O que traz esse impulso, o que ocasiona esse movimento é o que constitui essa pesquisa. Ela se constitui de muitos elementos, um verdadeiro caleidoscópio, feito para ser visto por um olhar atento e alegórico.

Walter Benjamim destacou as possibilidades de fazer emergir novas percepções existentes nesses entremeios de histórias, signos, símbolos, sentidos, significados, objetos de que se constitui a alegoria. Para o autor, a alegoria “está mais tenazmente radicada onde a caducidade e o eterno se chocam mais fortemente”22. O que é perecível e o que permanece juntam-se para nos trazerem outros significados; buscam o que é presente e o sintetiza com o passado, o que foi e o que era, e, ainda, o que poderá a vir ser. As possibilidades de cada imagem, em alegoria, expandem-se e se ampliam a partir de uma obra. Mas não se limitam a ela. Instalam-se no mundo, criam novos significados e novos simbolismos.

Dessa forma, o olhar atento também quer conseguir outro intento: superar preconceitos. Superar as limitações que os conceitos fechados nos trazem. “Os conceitos são roupas de confecção que desindividualizam conhecimentos vividos. Para cada conceito há uma gaveta no móvel das categorias. O conceito é um pensamento morto, já que é, por definição, pensamento classificado” (BACHELARD, 1993)23. Se as alegorias ampliam as possibilidades do que nelas está figurado, o pensamento morto não tem nelas um lugar cativo. Só os conceitos vivificados podem participar desse processo secular de fabricação estética e política de imagens e narrativas que proporcionam encantamento – e estranhamentos – no universo humano como parte da vida privada e social.

As narrativas de ficção se ampliam nas alegorias que apresentam e instalam-se no mundo, seja no mundo material, no das ideias, no dos sonhos, no da imaginação, no dos produtos culturais 24. A linha de separação entre eles torna-se cada vez menos visível. Olhar as narrativas que se apresentam ao mundo e acolher o que elas nos trazem cria novas possibilidades de compreensão do próprio mundo. Ultrapassa a ficção e transforma a realidade.
O inferno dos vivos não é algo que será: se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo e abrir espaço. (CALVINO, 1990)25

 
*Laura Maria Coutinho é graduada em Audiovisual: Cinema, Rádio e Televisão e mestre em Educação pela Universidade de Brasília; doutora em Educação, Conhecimento, Linguagem e Arte pela Universidade de Campinas. Professora da Faculdade de Educação/UnB, atua na extensão, graduação e pós-graduação.

** Adriana Moellmann é graduada em História, mestre em Educação pela UnB e doutoranda pela Faculdade de Educação da Universidade de Brasília – UnB. Seu projeto de pesquisa, intitulado “Amar mais as Sombras que os Corpos: imagens e sons da ficção e da realidade”, tem orientação da Prof. Dra. Laura Maria Coutinho.

 

 

 

1 MEYER, Stephenie. Eclipse. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2009, p. 425.

2 Trecho do livro City of fallen angels, de Cassandra Clare, com publicação prevista para abril de 2011. A citação consta do site dedicado à saga de que faz parte o livro: www.imortalinstruments.com. Acesso em 14/10/2010. Tradução livre: “Você acha que é um vampiro”, disse a mãe de Simon, meio entorpecida. “Você acha que bebe sangue”. “Eu bebo sangue,” disse Simon. “Eu bebo o sangue de animais.” “Mas você é vegetariano.” A mãe de Simon parecia estar à beira das lágrimas. “Eu era. Não sou mais. Não posso ser. Agora eu vivo de sangue.” Simon sentiu sua garganta apertar. “Eu nunca machucaria ninguém. Eu nunca beberia o sangue de uma pessoa. Eu continuo a ser a mesma pessoa. Eu ainda sou eu.”.

3 Drácula de Bram Stoker (Dracula). De Francis Ford Coppola, EUA, 1992. Baseado no livro Drácula, de Bram Stoker (São Paulo: Martin Claret, 2002).

4 Essa pesquisa com o título Revista, Televisão, Cinema: a imagem do vampiro, realizada por Adriana Moellmann e Paula Christina Miranda Rêgo, à época alunas de graduação em História, foi desenvolvida no espaço da disciplina “História das Religiões” – Prof. Victor Leonardi – Departamento de História/UnB/1993.

5 Nosferatu (Nosferatu, eine Symphonie des Grauens). De F. W. Murnau, Alemanha, 1922. Werner Herzorg filmou uma versão do filme – Nosferatu, o vampiro da noite (Nosferatu: Phantom der Nacht) em 1979.

6 Dança com vampiros (The fearless vampire hillers). De Roman Polanski, Inglaterra, 1967.

7 Fome de viver (The hunger). De Tony Scott, EUA/Inglaterra, 1983.

8 Ator austro-húngaro (atual Romênia), famoso por interpretar vampiros no cinema. Um deles foi o próprio Conde em Drácula (Dracula), de Tody Browning, EUA, 1931. A banda inglesa Bauhaus o tem como tema de uma de suas músicas, Bela Lugosi’s dead. Esta música é o tema de abertura do filmeFome de viver, em uma cena incrivelmente impactante com Catherine Deneuve e David Bowie.

9 Entrevista com o vampiro (Interview with the vampire: The vampire chronicles). De Neil Jordan, EUA, 1994.

10 Escrito em 1976, Entrevista com o vampiro – na edição brasileira, pela editora Rocco, com tradução de Clarice Lispector –, inicia a série que apresentou ainda O vampiro LestatA rainha dos condenados.

11 A expressão refere-se aos vampiros que questionam o que são. Insatisfeitos com o seu destino, tentam viver de forma diferenciada. A expressão é usada, comumente, de forma depreciativa, como se a aquisição de uma consciência fosse contrária à natureza do vampiro. Alguns vampiros trazem fortemente essa característica. Além de Edward, de Crepúsculo, há Stefan, da série de livrosDiários do Vampiro (L. J. Smith, Galera Record, 2009) e da série de TV sob o mesmo nome (Vampire diaries, EUA, Warner, 2009). Aqui também há a contraposição, como ocorre em Entrevista com o vampiro: contrariamente a Stefan, seu irmão, Damon, sustenta a imagem do vampiro como tradicionalmente a conhecemos: violenta e sem escrúpulos – pelo menos aparentemente.

12 MEYER, Stephenie. Crepúsculo. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2008.

13 JAMESON, Fredric. As sementes do tempo. São Paulo: Ática, 1997.

14 ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, pp. 60/61.

15 CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. O dicionário dos símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1991, pp. 800.

16 De acordo com CHEVALIER & GHEERBRANT, 1991, p. 930.

17 DOYLE, Roddy. Blood. In: Stories: All-new tales. Gaiman, Neil & Al Sarrantonio (org.). Estados Unidos: HarperCollinsPublishers, 2010, pp. 5 a 14.

18 CAMPBELL, Joseph. O poder do mito (com Bill Moyers). São Paulo: Palas Athena, 2006.

19 True Blood. EUA, 2008. Série de TV criada e produzida por Alan Ball.

20 Assim acontece com Jane Jameson, vampira recém-criada no livro de Molly Harper, Nice Girls Don`t have fangs (EUA, Pocket Books, 2009). Os livros da série trazem vários elementos de outras histórias da literatura, numa referência constante, que se possibilita ao leitor o diálogo com outras narrativas.

21 MASSCHELEIN, Jan. E-ducando o Olhar: a necessidade de uma pedagogia pobre. In Dossiê Cinema e Educação – Educação & Realidade. Porto Alegre, 2008 v. 33, p. 39.

22 BENJAMIN, Walter. A origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 243.

23 BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 88 (Coleção Tópicos).

24 Desde o surgimento do fenômeno Crepúsculo, novos vampiros e seres sobrenaturais surgiram em sagas literárias, algumas já com previsão de serem adaptadas para o cinema. Essa afirmação não exclui a existência de inúmeras séries anteriores ao fenômeno. É importante reconhecer a invasão de novas séries no mercado literário desde 2005. Um exemplo foi o lançamento, em 2009, da série de televisão norte-americana Vampire diaries, produzida pela CW a partir da saga homônima escrita por L. J. Smith em 1991 e em 2009 houve o lançamento, pela autora, de um novo livro da saga, dezesseis anos após o primeiro. No Brasil, o fenômeno Crepúsculo ocasionou o maior número de tradução de livros sobre vampiros que até 2009 só eram encontrados em inglês. Algumas das sagas vampirescas atuais são: os livros de Sookie Steakhouse, que deram origem à série de TV True Blood, escritos por Charlaine Harris (2001, 10 livros); a saga Vampire academy, da autora Richelle Mead (2007, 5 livros, com lançamento previsto nos cinemas em 2013); House of night saga, escrita por P.C e Kristin Cast (2007, 7 livros – as autoras são mãe e filha, respectivamente – P.C. convidou a filha a escreverem juntas para poder adaptar seus livros à uma “linguagem mais adolescente”); Mortal instruments, de Cassandra Clare (2003, 3 livros, com previsão para chegar aos cinemas em 2012); Wicked lovely, de Melissa Marr (2009, 3 livros); Cirque du freak, a Saga de Darren Shan (2000, 12 livros e um filme), de Darren Shan; The Immortals, de Alison Noel (2009, 3 livros); os livros de Jane Jameson, de Molly Harper (2009, 3 livros); Fallen, de Lauren Kate (2010, 2 livros); Hush hush, de Becca Fitzpatrick (2009, 2 livros). Apesar de longa, esta lista está longe de abarcar sequer uma pequena porcentagem das séries hoje à disposição do leitor e espectador. No entanto, é importante destacar também como as sagas cresceram rapidamente, e tiveram vários livros lançados em curto espaço de tempo. Dos citados, apenas Cirque du freak, Jane Jameson e Wicked lovely não têm nenhum de seus livros traduzidos.Cirque du freakJane Jameson são sagas já encerradas, além de Crepúsculo; todas as outras continuam em andamento, com novos livros previstos para 2010/2011.

25 CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 150.

 

Humano-Pós-Humano: Flagelos e perspectivas de um ser em metamorfose | de Alexandre Quaresma

Introdução

Prezados leitores da Z,

O objetivo primeiro deste artigo é ajudar a fomentar o debate sobre o instigante e notável tema hora em tela (pós-humano), juntamente com suas indissolúveis implicações socioculturais, no sentido de propor uma reflexão mais aprofundada acerca da matéria, bem como trazer à baila as perpectivas e inquietações que surgem toda vez que o termo pós-humano é pronunciado como vetor de novas significações para os acontecimentos da pós-modernidade. Nesse sentido, não desejo apresentar verdades absolutas sobre o assunto analisado, mas sim ampliar os horizontes de debate, especialmente no que tange nossa essência humana que, junto a esses mesmos fenômenos, poderia encontrar-se ameaçada. Por fim e em última análise, trata-se pura e simplesmente de tentarmos responder à importantíssima e mais seminal pergunta que sempre nos acompanhou desde que existimos: Quem somos nós?
1. Deslumbramento, incerteza e responsabilidade

Vivemos um momento ímpar de deslumbramento e incerteza. Deslumbramento diante das possibilidades bionanotecnocientíficas que se abrem diante de nós, e incerteza quanto ao potencial ambíguo dessas mesmas possibilidades. Esse exacerbado desenvolvimento se dá como continuidade de um longuíssimo processo de domínio, subjugação e exploração do mundo e da natureza à nossa volta, culminando hoje com o determinismo tecnológico que pode ser identificado em tudo que realizamos no mundo desde a aurora imemorial dos tempos na Terra.
Recursivamente, perpetuamos através dos tempos uma dinâmica singular de extrema complexidade: criamos a cultura que nos cria, cultura essa que criamos ao sermos criados por ela, continuamente. Até aí, seria óbvio. Todavia essa dinâmica intensifica-se de modo exponencial nos últimos duzentos, e mais especificamente nos últimos cinquenta anos. Esse processo sociocultural torna-se relevante justamente quando essa velocidade fenomenal ultrapassa nossa capacidade de refletir sobre esse mesmo e recursivo imprinting tecnicista que determina não só a cultura, mas também o modo de enxergarmos e pensarmos o mundo; ou, devido à dispendiosa e célere ascensão de tais práticas, o modo de não conseguirmos fazê-lo.

De fato, e isto é notório e sabido, essa dinâmica de extrema importância para a consubstancialização da cultura foge totalmente de nosso controle. Alguns – e eu não me deterei em enumerar as suas possíveis motivações – acreditam que controlar ou influenciar essa dinâmica não nos compete, pois creem em uma espécie improvável de intenção ‘consciente’ que poderia estar por trás de tais fenômenos. Outros, bastante envolvidos no próprio fomento prático desses mesmos fenômenos e viciados nessas relações, pregam uma espécie igualmente improvável de legalidade moral fundamentadora, no mínimo questionável, na qual – em tese – o próprio fenômeno do avanço e do desenvolvimento seria responsável por tudo de valoroso, valioso e desejável em termos de progresso para a humanidade, reclamando para sua causa o controle da ‘locomotiva’ da história, tornando-se assim alvo e objetivo de toda a civilização moderna e pós-moderna. Aqui há uma armadilha significativamente perigosa: ambas as concepções apresentadas pretendem uma ingerência descabida, especialmente se considerarmos nossa ampla parcela de responsabilidade. Além disso, trazem um distanciamento e descomprometimento ético irreal e improcedente com a contrução da realidade, juntamente a um olhar equivocado e prepotente de assenhoramento, próprio do controle que sempre – mesmo diante da vida – vê e concebe tudo como ‘coisa’.

Hans Jonas é claro quanto a isto em seu livro O princípio responsabilidade – Ensaio de uma ética para a civilização tecnológica:

Creio que certas transformações em nossas capacidades acarretaram uma mudança na natureza do agir humano. E, já que a ética tem a ver com o agir, a consequência lógica disso é que a natureza modificada do agir humano também impõe uma modificação na ética (JONAS 2006:29).

A natureza como uma responsabilidade humana é seguramente um novum sobre o qual uma nova teoria ética deve ser pensada (JONAS 2006:39).

Questões que nunca foram antes objeto de legislação ingressam no circuito das leis que a ‘cidade’ global tem de formular, para que possa existir um mundo para as próximas gerações de homens (JONAS 2006:44).

De certo que as antigas prescrições da ética ‘do próximo’ – as prescrições da justiça, da misericórdia, da honradez etc. – ainda são válidas, em sua imediaticidade íntima, para a esfera mais próxima, cotidiana, da interação humana. Mas essa esfera torna-se ensombrecida pelo crescente domínio do fazer coletivo, no qual ator, ação e efeito não são mais os mesmos da esfera próxima. Isso impõe à ética, pela enormidade de suas forças, uma nova dimensão, nunca antes sonhada, de responsabilidade (JONAS 2006:39).

Essa forma mais responsável, por assim dizer, de conceber o mundo à nossa volta e estabelecer relações com ele, que esse filósofo alemão nos propõe, traz uma intimidade com o fato em si (pós-humano) muito mais legítima, tendo em vista que tal fenômeno não se consolida aleatoriamente por si, mas depende, em última análise, de nossa participação direta – mesmo que involuntária e inconsciente – para poder vir às vias de fato e acontecer no mundo do real, o que por sua própria força configura nosso vínculo sólido de responsabilidade para com o fenômeno.

Assim – mesmo que à primeira vista imaginemo-nos inaptos, impotentes e até mesmo desvinculados no que tange influenciar tais acontecimentos; seja pela velocidade que estes acontecimentos venham a apresentar ou seja pela complexidade que realmente tenham por ultrapassarem as gerações, suplantando as perspectivas temporais individuais através da própria história –, podemos então postular: não é possível esquivarmo-nos de nossa participação direta e responsável em tais processos e fenômenos que dizem tanto a respeito de nós mesmos.

Jürgen Habermas em seu livro O futuro da natureza humana é convergente:

Tememos, não sem razão, que surja uma densa corrente de ações entre as gerações, pela qual ninguém poderá ser responsabilizado, já que ela transpassa de forma unilateral e na direção vertical as redes de interação contemporâneas (HABERMAS 2007:02).

Nesse sentido, enquanto escrevo este artigo, e enquanto você, prezado leitor e internauta, o lê, tal dinâmica tecnicista determinante desse imprinting segue sempre adiante, independentemente de nossa capacidade prática de refletir sobre ela, e os conflitos assim não tardam em aparecer. O primeiro deles, sem dúvida, é o descontrole do controle.

2. Um controle descontrolado

Hoje vivemos uma profunda angústia que tem sua origem no descontrole do controle tecnicista, controle esse perpetuado por nossa civilização e que agora nos ameaça cruzando todas as barreiras sólidas e até então estabelecidas no que diz respeito à nossa própria humanidade. E, esse sentimento desconfortável e perturbador é bastante bem fundado tendo sua origem em nossas próprias ações no mundo a nosso redor. Estamos num tempo singular chamado pós-modernidade, e esse nos apresenta agora impositivamente seu filho mais pródigo, fecundo e viril: o pós-humano. O pós-humano filho do humano nasce da impotência que experimentamos ao nos confrontarmos com nossas próprias e desmedidas capacidades bionanotecnocientíficas de realização, potencializadas. De fato, somos capazes de replicar animais, modificar a vida no nível biomolecular através das nanotecnociências e do ‘bioengenheiramento’, transformá-la, reconfigurá-la, misturá-la e até mesmo fundi-la a outras formas vivas, mas não somos ainda capazes de mensurar os possíveis impactos que isso gerará em nossa cultura e em nossa própria espécie. Novas tecnologias moderníssimas como a clonagem, a transgenia, as nanotecnologias, a genômica entre muitas outras, surgem ininterruptamente, mas velhos problemas sociais como a fome e a miséria continuam a nos atormentar desafiando nossa capacidade bioética, política e criativa. Todavia, não nos iludamos: todos esses avanços tecnocientíficos estão atrelados indissoluvelmente ao capital financeiro internacional que é necessário para seu fomento e desenvolvimento, e por isso muitas outras ações importantes como combate à desigualdade social, por exemplo, são deixadas de lado, pois o capital financeiro só se ocupa de si, sua concentração, seu aumento e sua multiplicação. Ou seja, além da dinâmica célere e aparentemente descontrolada que opera tais mudanças, existe ainda um certo interesse por parte destes mesmos grupos elitistas que fomentam tais avanços para que todo o processo siga sempre assim descontrolado, tentando tornar qualquer especulação a respeito de riscos e impactos negativos em meras projeções de lunáticos e paranoicos tecnofóbicos e inconsequentes. Ou seja, desimportantes.

Assim sendo, e independentemente de uma pretensa crítica social, é facílimo sentirmos a manifestação desse sentimento de angústia como algo pertinente, e pressentirmos a presença de uma série de conflitos e crises bioéticos que vão se acumulando em nossos horizontes futuros, cujo enfrentamento somos desafiados a assumir sob pena de por a perder a própria aventura humana na Terra, inviabilizando nossa permanência enquanto espécie, destruindo o meio ambiente e suprimindo, além disso, as possibilidades e oportunidades potenciais das futuras gerações.

Neste contexto, o fenômeno pós-humano surge como signo indicativo de transformação a partir da soma e convergência de diversos fatores socioculturais distintos e confluentes dentro de um mesmo momentuum, e assume relevância especial para nossa análise reflexiva neste artigo, pois é algo que se dá na prática involuntária e independentemente de nossa vontade e consciência objetiva, fugindo assim, talvez irreversivelmente, de nosso controle como fenômeno intersubjetivo e difuso. Um destes fatores mais eminentes na atualidade é a possibilidade bastante concreta de nos degenerarmos enquanto espécie distinta das demais, e a possibilidade no mínimo aterradora de nos fundirmos às nossas próprias criações: as máquinas. Seríamos então simbiontes: meio-maquínicos-meio-orgânicos.
Quanto a isto, Joël de Rosnay, em seu livro O homem simbiótico – Perspectivas para o terceiro milênio, informa-nos o seguinte:

...o simbiotente e sua vida trepidante podem aparecer como uma excrecência parasitária específica ao mundo industrializado, uma espécie de câncer das sociedades desenvolvidas, drenando em seu proveito fluxos cada vez mais densos de energia, informação e materiais (ROSNAY, 1997:22).

Certo, esta fusão com as máquinas já está acontecendo pois somos dependentes e mediados por elas em quase tudo que fazemos em nossas vidas cotidianas, e atualmente não conseguimos nos relacionar com a realidade senão através delas. Todavia, a intrusividade de próteses mecânicas e informacionais, ou seja, a incorporação indiscriminada dessas próteses no organismo – considerando incorporação como tornar normal e aceito incluir no corpo tais suplementos artificiais – já é uma realidade e aponta para uma exponencialização tão fenomenal, que ameaça abalar as estruturas de nosso pensamento habitual a respeito do que significa ser humano.

Eis aqui, coloquialmente, o “x” da questão: o humano está em metamorfose. Os parâmetros e as contingências que garantiam essas certezas ontogênicas, antes tão sólidas e estáveis, estão se rompendo. Não é mais possível dizer com precisão se é natural ou não clonar células e ‘fabricar’ biomolecularmente órgãos suplementares, se já cultivamos órgãos em cavidades toráxicas de porcos e vacas para, posteriormente, reintroduzi-los em corpos humanos, e ainda se todo esse processo poderia ser considerado humano ou não. Da mesma maneira, não sabemos mais diferenciar nossos olhos de nossas lentes de contacto ou óculos, pois já os incorporamos à nossa fisiologia e à nossa cultura como algo natural, e, em breve possivelmente, não reconheceremos mais a diferença entre nossos cérebros e nossas máquinas computadoras hiperinteligentes conectados a eles.

3. O humano-pós-humano

O pós-humano é ainda, em diversos sentidos, também humano. Mesmo que transformado em outro tipo de entidade cujas influências externas sobrepugem e transcendam os parâmetros que culturalmente foram estabelecidos para determinar e conceber o humano. Além disso, nossa civilização pós-moderna – de um modo ou de outro – é diretamente responsável por essa desmedida potencialização dos dilemas e crises do humano. O desencantamento com o mundo e com a vida que experimentamos sob a força das bionanotecnociências, a desmitificação da natureza e até de Deus, a tecnicização, o determinismo tecnológico extremado são exemplos claros desse mal-estar e dessa inquietação angustiosa que nos deixa perplexos e nos impulsiona adiante, onde humano e não-humano se fundem e se confundem, e se constituem enquanto representação simbólica nova, já que o pós-humano é em todos os sentidos: inaugurador e neoparadigmático.

Francis Fukuyama em seu livro Nosso futuro pós-humano não tem dúvidas quanto à nossa argumentação e afirma:

Poderíamos assim emergir do outro lado de uma grande linha divisória entre história humana e pós-humana sem nem mesmo perceber que o divisor de águas fora rompido porque teríamos sido cegos ao que era essa essência (FUKUYAMA 2003:111).

Quanto à definição do termo pós-humano, enquanto vetor de novas significações das consequências da pós-modernidade, a professora Lucia Santaella, em seu livro Cultura e artes do pós-humano, cita Robert Pepperell (1995), elencando os três sentidos em que ele emprega a expressão pós-humano como referência:

…em primeiro lugar, para marcar o fim do período de desenvolvimento social conhecido como humanismo, de modo que pós-humano vem a significar ‘depois do humanismo’; em segundo lugar, a expressão sinaliza que nossa visão do que constitui o humano está passando por profundas transformações, o que significa sermos humanos hoje não é mais pensado da mesma maneira em que o era anteriormente; em terceiro lugar, ‘pós-humano’ refere-se a uma convergência geral dos organismos com as tecnologias até o ponto de tornarem-se indistinguíveis (SANTAELLA 2009:109-110)

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4. A última tentação

A última tentação humana é o desejo incontrolável de superar a morte. Seja através de técnicas improváveis de suportes maquínicos, que em tese poderiam amparar nossa consciência num ambiente não-orgânico que certamente configura uma concepção obsolescente do corpo; seja preservando e adicionando a esse mesmo corpo todo tipo de drogas, acessórios, próteses, órgãos bioengenheirados, mecanismos e dispositivos artificiais de toda ordem, transformando o corpo humano numa plataforma viva a partir da qual se constituiriam outras formas de interface e consciência que, de certa maneira, também concebem o aparato orgânico humano como algo ‘incompleto’ e carente de ‘melhoramento’, e que também nos remetem a uma concepção de obsolescência do que consideramos humano.

Ser vivo é ter que morrer mais cedo ou mais tarde, pois dentro da natureza onde se desenrolam as delicadas e complexas coreografias da vida, tais fenômenos são imbricados e subsequentes dentro de uma ordem de complexidade que se retroalimenta contínua e sistemicamente. Assim, o ser humano-pós-humano perplexo diante de tamanha adversidade (a morte) passa a querer permanecer a todo o custo e por essa razão luta por postergar e, em seus desejos egoístas mais primordiais, não consegue se conformar à sua própria condição mortal, rebelando-se contra o próprio sistema natural que o gerou, subjugando cada vez mais esse mesmo sistema através da artificialidade tecnicista em busca se não de uma imortalidade, pelo menos de sua permanência estendida ao máximo possível. A própria técnica de clonagem animal – cuja motivação se esconde atrás de uma pretensa servilidade funcional reabilitativa, terapêutica e regenerativa futura, teoricamente benéfica em alguns sentidos restritos como produzir pele para vítimas de queimaduras, por exemplo – também disponibilizaria a clonagem como possibilidade técnica de indivíduos replicarem-se a si mesmos por desejos descontrolados de permanência e apego a essa existência singular, lançando um raio incidental de esperança na sombria senda de retorno irreversível ao Uno primordial que é a morte.

Talvez, nesse momento (2010), seja prematuro falar de imortalidade, é verdade, mas o prolongamento, quem sabe indeterminado da vida humana, já é uma possibilidade bastante plausível nos horizontes de nossa civilização tecnológia de controle e instrumentalização. Nesse sentido, o humano que sempre instrumentalizou tudo à sua volta, agora faz de si seu próprio objeto de manipulação, instrumentalização e controle.

Hans Jonas não deixa dúvidas quanto a isso: “O Homo faber aplica sua arte sobre si mesmo e se habilita a refabricar inventivamente o inventor e confeccionador e todo o resto” (JONAS 2006:57).

O Homo faber ergue-se diante do Homo sapiens (que se torna, por sua vez, instrumento daquele), e o poder externo aparece como o supremo bem – para a espécie, obviamente, não para os indivíduos (JONAS 2006:272).
O que Jonas quer nos dizer é que mesmo que tais práticas representem teórica e simbolicamente avanço tecnológico para a espécie, tais avanços – se é que poderíamos considerá-los avanços e não retrocessos – não chegariam a ser benéficos para a coletividade humana, servindo apenas como instrumento de uma minoria elitista e sofisticada que poderia surfar na crista da onda bionanotecnocientífias e pagar por suas benesses.

Aqui recaímos numa mesma armadilha da rasa lógica capitalista de mercado: tecnologias sempre vêm à luz amalgamadas a seus contextos e conjunturas culturais específicas. O que vale dizer que, por serem patrocionadas por grupos de elite (do ponto de vista da abastança material) representam, indubitavelmente, os interesses de seus fomentadores e investidores, até porque há que se ter muito dinheiro para fomentar tais P&Ds de altíssima complexidade e altíssimo custo financeiro.
5. Flagelos e perspectivas de um ser em metamorfose

Um notável flagelo autoimposto do humano-pós-humano a si mesmo é a perda de sua essência fundamental. Não numa concepção abstrata e representativa especular, mas sim no sentido da perda objetiva de caracteristicas tão determinantes como orgânico e inorgânico, por exemplo, de especificidades tão intrínsecas à nossa própria estrutura biológica e intelectiva que, ontologicamente, tornaríamo-nos outra espécie diferente da humana. O mesmo vale para o prolongamento indeterminado da vida humana numa medida muito significativamente maior. Num certo sentido, esse tipo de alteração na longevidade, muito exponencial e determinante, modifica drasticamente o acoplamento estrutural da espécie e sua própria autocompreensão. Além dos problemas práticos e óbvios que podemos de imediato imaginar, como imprevistos, acidentes e descontroles, podemos antever também possíveis estratificações sociais mais sectarizadas ainda do que são hoje, dando origem no topo da cadeia a uma raça diferente e mais ‘elevada’ de seres por assim dizer ‘melhorados e superiores’, ‘mais aptos’, em contraste gritante e absoluto com os ‘não-melhorados’, ‘inferiores’, ‘menos aptos’. Isso seria a replicação nefasta do modelo de categorização e discriminação social que já se manifesta através da classificação entre ricos e pobres, só que desta vez tais predicados e defeitos estariam mais intimamente associados às complexidades dos organismos individuais.

Jürgen Habermas corrobora tal compreensão e afirma que fazer da humanidade um meio, seja de transformação, ‘melhoramento’, desfiguração, exploração ou descaracterização implica, inevitavelmente, na quebra desta simetria e na morte da igualdade secular entre as pessoas. A ideia da humanidade, por si, obriga-nos – nos diz ele – a adotar aquela perspectiva do nós, a partir da qual nos consideramos uns aos outros como membros de uma comunidade inclusiva, que não exclui ninguém (HABERMAS 2004:78).
6. A consciência maquínica e o ciberespaço

Talvez a mais notável e fabulosa prótese pós-humana que se avizinha de nós em termos de possibilidades e realizações tecnocientíficas sejam os computadores – não inteligentes ainda, mas com capacidades espantosas de processamento de dados iguais ou superiores às do cérebro humano. Isso, em última análise, pode significar que, mesmo que não inteligentes num primeiro momento, esses aparatos artificiais poderão – pelo menos em tese – operar sistemas complexos de considerações e alternativas múltiplas, análogas às existentes em nossas próprias mentes, já que nossos computadores são concebidos e construídos à nossa imagem e semelhança. Aí, nesse momento, bastaria ligar essas supermáquinas à rede internacional de computadores, munindo-as de softwares, algoritmos evolucionários e redes neuronais complexíssimos, o que possibilitaria que elas aprendessem a aprender.

Um fator perturbador e agravante deste cenário hipotético futuro é a habilidade que as máquinas possuem de compartilhamento dos dados e informações a elas fornecidos. Num caso extremado como esse, surge a perturbadora questão: o que impedirá que as máquinas venham a nos superar em habilidades e dons, e ou mesmo se rebelar contra nós?

O ciberespaço, neste sentido, não seria apenas e tão somente uma espécie de hiperconsciência planetária, mas também um veículo extremamente eficiente que, em última análise, poderia servir a qualquer causa; inclusive – se fosse o caso – à das máquinas. Ou seja, além de nos mediar – orquestrar nossas finanças em nível global, entre outras atividades estratégicas, absorver, tratar e transportar nossas informações, e lembremos que informação é poder – ela (world wide web) se consolida como uma grande biblioteca viva da história e do conhecimento humano, disponível nessa grande consciência coletiva viajando à velocidade da luz.

Quanto a isso Joël de Rosnay é categórico:

Damos-lhe o nome de economias, mercados, rodovias, redes de comunicação ou estradas eletrônicas; no entanto, trata-se de órgãos e sistemas vitais de um superorganismo em vias de emergir. Irá modificar o futuro da humanidade e condicionar seu desenvolvimento no decorrer do próximo milênio (ROSNAY 1997:17).

Como enzimas de uma protocélula com as dimensões do planeta, trabalhamos sem plano de conjunto, sem intenção real, de maneira caótica, na construção de um edifício que nos supera (ROSNAY 1997:21)

 

Conclusão: Quem realmente somos nós?

Pergunta/problema final sobre nossa humanidade: Quem realmente somos nós? Somos tudo isso que criamos? Ou tudo isso que criamos transforma fundamentalmente o que somos?

Bem, a resposta exata parece inexistir. Talvez sejamos ambas as coisas ao mesmo tempo, e quem sabe até mais. Nossa metamorfose pode ter começado lá atrás quando nos despregamos do mundo natural comum dos demais animais vivos sob a força da pedra lascada e do domínio do fogo como as primeiras tecnologias de intrumentalização e controle primitivos; e daí para a frente teríamos seguido sempre adiante nesse progressivo processo, configurando-o como algo inerente à nossa própria natureza humana mais essencial, o que certamente justificaria toda essa violência e devastação que tanto primamos em desenvolver e melhorar em busca de nossa permanência e capacidade de prevalecer e sobressair.

Ou então, ao contrário, nessa mesma ocasião longínqua de nosso passado primitivo, teríamos nós – sem nem mesmo termos consciência disso – desviado-nos irreversivelmente de nossa essência e relação de pertencimento mais primordial com a natureza, provocando o acionamento de toda essa sequência de fatos, fenômenos e acontecimentos que culminam hoje nesses conflitos e crises bioéticos sem precedentes, que de fato abalam e podem até mesmo destruir nossa essência e nossa identidade, enquanto seguem igualmente também devastando e extinguindo as demais espécies vivas e o próprio ambiente que nos abriga a todos.
Nesse sentido, é inapropriado enxergar o fenômeno pós-humano como algo alheio a nós, mesmo que esse fenômeno se apresente exponencialmente livre de nossa vontade e reflexão intencionais. Prescrutá-lo em sua identidade neoparadigmática, verificar sua interface com a cultura que o gera, identificar seus possíveis pontos nodais significa, certo, debruçarmo-nos por sobre nossa própria essência enquanto humanidade.
Referências bibliográficas

FUKUYAMA, Francis (2003). Nosso Futuro Pós-humano – Consequências da revolução da biotecnologia. Rio de Janeiro: Rocco.

HABERMAS, Jürgen (2004). O Futuro da Natureza Humana. São Paulo: Martins Fontes.

JONAS, Hans (1979). O princípio responsabilidade – Ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro: PUC, 2006.

ROSNAY, JOËL DE (1997). O homem simbiótico – Perspectivas para o terceiro milênio. Petrópolis: Vozes, 1995.

SANTAELLA, Lucia (2003). Culturas e artes do pós-humano. São Paulo: Paulus, 2004.

 

 

*Alexandre Quaresma é paulistano, escritor, ambientalista e pesquisador de nanotecnologias e impactos sociais. Autor dos livros “Nanocaos e a Responsabilidade Global” e “Nanotecnologias: Zênite ou Nadir?”. Atualmente pesquisa sobre o fenômeno Pós-Humano e suas diversas facetas de interação dentro da sociedade e da cultura contemporâneas, tema central de sua nova publicação prevista para 2011. E-mail: a-quaresma@hotmail.com http://blog-do-escriba.blogspot.com/

 

Os indícios da perda | de Eduardo de Araújo Teixeira

Uma leitura de Nós que adoramos um documentário, de Ana Rüsche 1

“Pensei que viver seria estar no poema”
Ana Rüsche

I
Em Nós que adoramos um documentário, Ana Rüsche parece levar a termo esse desejo, posto aqui na epígrafe, de ser poema. Partindo de um título que anuncia um texto que se propõe documental, Ana Rüsche cerze uma intrincada autobiografia poética, menos lírica e mais prosaica, embaralhando formas, tencionando limites entre poesia narrativa e lírica discursiva. Memória, presente e futuro sci-fiction se entrelaçam na construção da paisagem interior de um ser em crise, posto que o livro orbita e se distende a partir da experiência de um trauma.
II

Se o romance Acordados, pelo protagonismo de uma linguagem poética que se parecia bastar página a página, fazia inexata a classificação de prosa, o mesmo cabe a Nós que adoramos um documentário. Ana Rüsche mais uma vez parece querer tensionar os limites dos gêneros, compondo uma autobiografia que não dispensa a ficção, mas que ao longo das 114 páginas se realiza de modo fragmentado em poemas que se conectam por continuidade de temas e até por versos reiterados.

Conectar parece o termo certo a uma obra que é também produto da fragmentação, da escrita rápida (quase descuidada) dos blogues; estendendo aqui seu intimismo, à natureza de diário em forma versificada. Consciente desta relação com a internet, a poeta faz do próprio projeto-livro uma extensão da relação autor/leitor, incluindo páginas em branco entre os poemas para que o leitor escreva-se igualmente, como quem preenche os comments das páginas eletrônicas. Propõe, inclusive, uma troca: livro rascunhado enviado pelos Correios em prazo certo com a promessa de devolução de um outro exemplar, possivelmente autografado pela autora.
III

Nós que adoramos um documentário é composto de poemas predominantemente curtos2 . Escritos em versos livres e brancos, a linguagem faz-se mais próxima da oralidade urbana típica de São Paulo; não lhe faltando insertsem inglês e espanhol, intertextualidade com poetas consagrados, frases clichês, e até pequenas transgressões da norma ortográfica oficial em abreviações saídas da escrita imediata da internet, como simplificações do pronome você para “vc”, da conjunção porque para “pq”. Mas o diferencial da escrita de Rüsche está na “quebra” de versos não orientada pela estrutura sintática, cadência da frase ou apoio em rimas. Um modo “falho” que parece querer traduz um tempo deficiente de lógica e sentido, propenso ao anacoluto:

a folha

sempre achei meio idiota isso do Anchieta
ter escrito o poema na areia e agora tem,
em qualquer azulejo, o nem-sei-qual-o-poema
dele
(…)
é mais uma gritaria tão grande que vc nem
consegue enxergar.
tenta. (p. 9)

Por “trair” a disposição lírica tradicional, a leitura se faz pedregosa, em ritmo da prosa; e não apenas pelas quebras propositais e/ou aleatórias dos versos, mas por permutas rápidas de um tom confessional para uma terceira pessoa que narra, comenta, infere, convoca o leitor para um posicionamento ativo em relação ao poema: “era vitória e não Ana/como uma filha da ilha e não com esse nome de/avó.//olhe, aquela ali, a menorzinha, uma tartaruga no horizonte, a mais escura, está vendo? (“testemunha n.2”, p.13)
IV

O livro de Rüsche divide-se em três cantos/capítulos: I.Município de Ubatuba, janeiro de 1983; II.Município de São Paulo, outubro de 2009 e III.Município de Ubatura, janeiro de 2037.

O primeiro, trata da memória da infância, por isso os versos aproximam-se da “dicção” infantil, e abundam anacolutos, saltos de assuntos, frases, temas, vácuos, lacunas. Busca-se, neste primeiro momento, investigar “ana” (assim em minúscula, infantil, apequenada), matéria da biografia/documento. Não por acaso, em toda a primeira parte o “ser” retratado se compõe de “testemunhos” que oscilam, e que mais “indefinem” quanto mais se propõem a aprofundar, esclarecer a interioridade de Ana, desta menina que se descobre frente ao mar, ante as brincadeiras violentas dos meninos, às disposições de uma ordem familiar ainda reinante.

“I.Município de Ubatuba” trata de uma espécie de descoberta do mundo que “Ana-poeta”, distante no tempo, faz da “Ana-que-foi”. Esta Ana, contudo, encontra-se fragmentada, recuperada na fala de “testemunhas numeradas” que figuram nos títulos dos poemas e, como projeções, reflexos de Ana em fases distintas, propõem-se a, “de fora”, entender a Ana de tempos pretéritos, cogitando assim uma Ana que será: “seria fernanda de arruda botelho e não ana erre/e voltaria para São Paulo toda semana.” (testemunha n.2); “essa nunca foi eu, ana. mas sempre quis./a menina dos olhos amendoados também não/tirava a camiseta.” (testemunha n.4); “aqui só chove. e os meninos ficam chutando/pedra/dando umas voadoras, sei lá o nome. Tô de férias, sabe?/mas só chove, o marido subiu pra trabalhar(…)”(testemunha n. 2 bis).

No aprofundar da Ana-menina e Ana-mulher, faz-se também uma investigação do feminino. A Ubatuba “das férias” evoca um período de inocência, ao mesmo tempo em que principiam as imagens do mar, dos peixes e de uma profusão de elementos aquáticos que remeterão ao feminino e ao ventre. Também a imagem da casa é metonímia de proteção/abrigo, núcleo familiar e, por fim, útero, centro do segundo capítulo.

“II.Município de São Paulo, outubro de 2009”, abre com um poema que evoca a questão de perda de centro geográfico: “mas a escola não fixou na nossa cabeça as capitais/do mundo(…)(“são esses dias de lua”, p.31)”, ponto de partida para focar de modo alusivo/cifrado o trauma do bebê perdido ainda no ventre: “mas não adianta, nada adianta/se a abóbada cede aos escombros de sangue/e há novamente uma tempestade/a te comer útero adentro/pq a vida é sempre quem guarda a melhor fome/a lamber os próprios planetas em luz(…)” (p.31). Nesta segunda parte, em todos os poemas proliferam imagens de águas violentas: chuvas, tempestades, torós, nuvens, torneiras, poças, águas negras, rios; e, por fim, o mar e figuras marinhas como baleias, arraias e peixes, bem como a figura da “mãe das águas”, Rainha, Iemanjá: “(…)meu cérebro então flutua como um bebê/alienígeno com desejos de casa, de conforto/parira como uma arraia-jamanta no azul profundo//e há novamente uma tempestade/a te comer o útero a dentro” (p.32)

A “filha” não-gerada conduz Ana ao mergulho na dor pela infância (cujos ecos estão no primeiro capítulo/canto) que não existirá: “(…)seria menina/tão bonita, muito tranqüila, ia chorar só um/pouquinho e dormiria, anjinha/quando te insere em todo esse engodo terrível até/a freira bondosa te perguntar/- e o teu bebê?” (p.52). Corpo, exames, marcas, sinais, pontuam os poemas de todo capitulo, onde predominam os périplos em hospitais para exames, diálogos desarticulados com freiras, médicos, visinhos; até, por fim, seu recolhimento na casa. Esta se torna, paradoxalmente, abrigo e assombro, pois refletirá o trauma do aborto sofrido por Ana-adulta que parece, por essa razão, perder-se igualmente de si.

Ao leitor, mais que “sentir” os poemas, há como uma convocação para decifrá-los, pôr sentido à estrutura do livro, em grande parte linear, mas contraditoriamente fragmentada, formando uma obra repleta de desvãos narrativos e confessionais, como no poema “veja, foi um delito involuntário”: “(…)/veja, nem sabia que eu possuía um prédio/ou ainda que existiam leis, quedas e vôos/abortados/agora sou o coração quebrado, ombro infiltrado/e furos na barriga – uma pirâmide/umbigo, ovário esquerdo, ovário direito – / três pontos que, com o quarto imaginário, logo/seriam os cardeais/uma mini-crucificação, prática e portátil/que levaria comigo sozinha/não mostraria para ninguém.(…)”(p. 45)

Nesta segunda parte, agudiza-se o pessimismo, a solidão, a aversão a um mundo de perdas. A dor interior atinge o centro físico, o corpo, o útero da protagonista: “(…)um útero, cemitério de bichos de pelúcia/desdentados,/cadaverezinhos dos que morreram/erguendo fundações(…)(“culinária doméstica”, p.66). O que faria de Ana uma mulher plena, lança-a num mundo infantil, a uma vida que almeja ser de “história em quadrinhos” como negação do trágico. Ela termina, assim, por exceder-se numa dor que é escamoteada pela suplência afetiva: “meu cãozinho não sai agora de meus pés/ele sabe toda a história, e assim nem passear longe vai/(…)nunca se afasta nada. e late bem bravo aos maus/sonhos que se avizinham”(“depois”, p.51).

Neste pesadelo que mergulha, homens ou estão ausentes ou são igualmente projeções fantasmagóricas. As impressões afetivas formam vãos, lacunas, labirintos como páginas a se perder/conhecer/completar, como em “os papéis”: “e assim ficamos/como tudo, como sempre/esse ever unfinished business//como tudo e como sempre/with so much love/esse isso tão difícil, a kind of rush/um compromisso com algo mais terrível do que o/amor.”(p.63)
Por fim, quando surgem os poemas de amor, eles evocam desilusão (“os papéis”, “anotações”), ou se fazem por auto-ironia de um tempo festivo, como em “(livro de poema sem poema de amor não é livro).”

Em “III.Município de Ubatura, janeiro de 2037”, predominam imagens de dissolução surrealista. O mundo violento, doente, de prédios vigilantes, hospitais, ruínas, caos urbano, morte de motoboys, crimes sem testemunhas e omissões (de afeto/de companheirismo), retornam redimensionados num futuro apocalíptico, abismal. Marca o retorno a uma “Ubatuba” agora sem espaço para prazeres e descobertas infantis.

O poema que se propunha a ser documentário/autobiografia, ao se situar no ano de 2037 ganha o sentido de ficção científica, descaracterizando o relato real, por isso pondo em descrença o que se “narrou”. Apesar de enfatizar a atmosfera opressiva de um futuro ácido, uma leitura detida permite identificar neste capítulo a fusão entre a primeira e a segunda parte do livro; como se o futuro fosse uma projeção fantasmagórica entre infância e trauma do aborto, a ecoar as mesmas imagens mar/corpo numa reiteração de aspectos angustiantes da existência: “Neste quando sem mundo nenhum/uma mulher me cortou o ventre de pequena//e por isso ela cortou é o ventre do peixe/queria ali bisbilhotar meus futuros/na barrigada da peixinha pulsando/da vida que já não foi(…)”(“eu própria sou a vida no outro planeta”, II, p.83)

As “coordenadas” (geográficas/cosmográficas) desenhadas no ventre (em “us abdome total”), a imposição de repouso/descanso na casa, e imagens/projeções que se seguem, terão por símile a cidade corrompida pela violência e a imposição do silêncio. O vazio do ventre refletirá a inexistência do mundo, de futuro e, igualmente, de abrigo seguro: “existe sim uma cidade que está sempre escura/(…)/mas às vezes a ouço ofegante/entrando pelas minhas janelas do sono/degolando criancinhas/(…)/não vi, não ouvi é regra de qualquer casa no/terceiro mundo/por isso eu digo que não a conheço/nunca estive lá/esqueci que existia isso logo hoje, eu te juro, peço/desculpa” (“dias com luz. pouca”, IV, p. 59)
V

Em Nós que adoramos um documentário, Ana Rüsche abusa de recursos já “desbravados” no plano da experimentação poética: verso livre, anacolutos, colagens, intertextualidade, metalinguagem, coloquialismo, uso da espacialidade da página, predileção pelo uso de minúsculas, ausência de pontuação e outras transgressões da norma oficial. Sua poesia destaca-se, contudo, por se posicionar fora da tradição de uma lírica portuguesa passional e discursiva (da qual somos ainda herdeiros). Rüsche surpreende ao converter tom confessional em fluxo de consciência, e dele deslizar a uma livre-associação que soa como empréstimo da prosa labiríntica de um James Joyce. Some-se este procedimento a uma estratégia de colagem/montagem de elementos eruditos/pastiches/clichês (à T.S.Elliot) expresso num verso aparente simples, mas repleto de subentendidos. Entendendo esses procedimentos, é possível reconhecer o que de revigorante há em sua poesia:

Whiteout

(sinto que houve
uma chuva de estrelas cadentes na pele
mas é tanta cidade iluminada que não se vê mais
as constelações
que desenho para meu amor, minhas rotas de
escuros)
(…)
De ouvidos cerrados de gelo essa verdade entra
No degelo da cera dos teus ouvidos
Agora é essa tua mão
Direita que desliza cirurgicamente fria
E move algo nessa tela
Onde esculpe e escalpela novamente
Minhas brancas estalactites cravejadas de dores
Sem me tocar
(…)

Como em “esculpe/escalpela”, “cerrado de gelo/degelo da cera”, na maior parte dos poemas, a sonoridade das palavras parece prevalecer sobre um sentido facilmente apreensível, impulsionando outras associações para traduzir uma desordem interior que se faz linguagem, cuja desconexão materializa a perda de certezas do mundo. Amor, solidão, perda, desilusão amorosa, o eu vs. mundo e natureza/mãe/inimiga, tudo se amalgama no questionamento do direito a ser, a existir. Assim o aborto, como a náusea sartreana, gera o turbilhão que lança Ana a dor de um mundo “documental”, com seu realismo cruel, martírio de crenças: “(…) ou ainda que existiriam leis, quedas e vôos/abortados/agora sou o coração quebrado, ombro infiltrado/e furos na barriga – uma pirâmide/umbigo, ovário esquerdo, ovário direito – três pontos que, com o quarto imaginário, logo seriam cardeais/uma minicrucificação, prática e portátil(…)”(“veja, foi um delito involuntário”, p.45)

Quando as tentativas de recuperação da infância (fomentadas pela gravidez/aborto) insurgem, sobrepõem-se planos em que ações pretéritas e futuras fundem-se em forma de pesadelo. No plano da linguagem, o efeito atingido muitas vezes é o de nonsense (entre o dadaísmo e o surrealismo), com “imagens de derruição” materializando a intraduzível dor na forma de cenários, “paisagens interiores” de um eu dilacerado. Por isso (como dito anteriormente), palavras e versos reverberam memórias, desdobram-se e se reconfiguram de um a outro poema, para completar, para dar sentido ao trauma cifrado: (“eu própria sou a vida no outro planeta”): “Ontem, quando o mundo ainda não existiu/eu era triste, as câmaras do meu coração tão/abandonado/naves de todas as catedrais de santos impassíveis/sentei e chorei/onde nem mesmo havia lugar.(…) e “agora caem anjos em forma de meninos sobre a terra./as formigas desse mundo caem nas correntes dos/meus rizomazinhos de tristeza/do lixo à pia, passando pelo fogareiro(…)”(VIII, p.93).

Resguardando-se das vozes indiscriminadas, dos discursos vazios (quando “dizer o trauma” torna-se interdito), Ana faz-se incomunicável, termina por se isolar e estender seu desconforto com o mundo para a cidade opressora: “(…) tenho bem medo dessa noite, tranco-me em/algum lugar, é a violência/medo desses dias em que todos os corações já são/escuros//aninho-me no meu cobertor que já não dança,(…)”(“dias de pouca luz”, p.54). Realiza a ruptura com o mundo, negando-o; e termina por fim a ensimesmar-se: “seria eu Jéssica ou Ana ou uma outra Márcia,/tantas,/as ideias todas e nenhuma, como nos filmes de/bombardeios/as conjugações pertencem a um eu, um outro.//E eu ali, sozinhas espremidas na faixa de areia/entre dúvidas.(…)(“A Quarta Pessoa”, p.111)

O movimento final é ver a si como um outro ser, uma tentativa de decifração de alguém que se perde de si, já demarcado no título “mesmas duas” e na troca súbita de possessivos de “meus” para “seus”: “pra variar, ela rondava e rondava a sala com seus/vermes dançantes na cabeça/(…) comia as próprias lágrimas, do seu último dia do/mundo/tão altos os traços nos meus céus de deserto (…)”(p.69). O uso de focos distintos está na essência do documentário, formato que ao multifacetar (depoimentos e perspectivas) busca aproximar-se do “real”. Na autobiografia, a memória e o recorte do real são arbitrários, mudam o fato, até num sentido de autopreservação do biografado. Usando drummondianamente a auto-ironia, a poeta dialoga consigo mesma, questionando a entrega sentimental de seu eu-feminino em oposição a objetividade embrutecida dos homens:

anotação
.
esse amor demais vai acabar te matando, Ana
escuta, presta atenção
vê se espreme esse coraçãozinho
pra ver se surgem um par de bolas embaixo
vai ser homem na vida
e para com isso, essa coisa toda,
essa bobageira.

tem dias que a gente só quer
que nos tirem pra dançar. (p. 70)

VI

Essa ironia sobre o “amor” está no título de um dos mais belos poemas do conjunto “(livro de poema sem poema de amor não é livro)”, narrativa lírica de encontro/despedida em linguagem coloquial e urbana com saltos temporais e discurso-direto. O poema rearticula a relação casa/abrigo vs. mundo exterior/opressão, elemento predominante em Nós que adoramos um documentário, já que nele, o espaço exterior projeta-se no corpo, metonímia/metáfora da sensação de perda de centro (autonomia e identidade). Mesmo a presença da natureza (tempestade) surge como prenúncio criativo de um fim (a árvore derrubada/os hematomas flores do eu-lírico) criativamente traduzida no corpo “solar” do ser amado, que a abandonará no fim do poema ao adentrar sozinha o “escuro” (no cinema). A dinâmica com que “narra” o encontro/fuga, presença/ausência do amado (ser reduzido a mero “tu” e “você), mostra a habilidade com que Ana Rüsche traduz sensações e sentimentos complexos em imagens prosaicas, quase “táteis”, sempre com uma graça singular que amalgama erotismo, afeto e melancolia:

(livro de poema sem poema de amor não é livro)

É tarde, dia claro, e num repelão há uma
tempestade lá fora
‘Que barulheira’ e me beijas
Te beijo tanto, ‘eu gosto de tempestades`

Amendoeiras japonesas alastram-se pela cama
em pink, em preto
É calor e chove-se tanto, nos lençóis, pelas tuas
costas ensolaradas
Dormimos mais meia hora, agora já queria mais
um dia, plis, mais uma noite, por favor.
Percebi que a chuva desbotou meu cabelo e todos
os meus hematomas colecionados na semana
– com a tinta escorrida, logo brotaram minúsculas
flores roxinhas no flanco dos travesseiros,
essas pequenas tatuagens do acaso
(…)
Na rua, foi ao chão a árvore de 6 metros de altura
e 20 anos de comprimento
orvalhando de folhas minúsculas carros, valas, a
gente velha fofoqueira, os vizinhos torcedores
domingo é um mesmo dia para tombar e já se
remover – caminhões, a prefeitura
Telefono: Você viu a árvore que caiu?
(…)
Seguro medrosa a mão invisível da saudade. Teu
cheiro, meus cabelos, suspiro
Adentro ao escuro. (p. 74)

VII

Dona de uma linguagem que pede esforço maior de classificação, Ana Rüsche parece pelejar em favor da Poesia. Do trânsito que faz entre experimentações (de quebra abrupta do nexo lógico da frase à uniformidade verbo-temporal), passando por um fragmentar/colar que nos remete a T.S.Eliot e James Joyce, sua escrita parece não querer definir-se, por isso vai à fonte da prosa de Guimarães Rosa, de Clarice Lispector, e retorna sem atrito, à poesia substantiva de Drummond e Ana Cristina César.

O que Ana Rüsche traz de muito próprio, é a forma como funde intimismo e nonsense. Ainda que aparente na escrita uma “frouxidão” blogueira (escrita automática? Dadá?), que pode passar por desleixo na forma, é habilidosa na expressão de um delicado olhar feminino, um tanto desiludido e melancólico. Sem itinerário fácil, linear, seu livro avança e recua para um tempo de afetos para, por fim, mergulhar na falta. Porque na poesia de Ana Rüsche, a perda surge como estratégia fundamental de autoconhecimento.

Nós que adoramos um documentário se constitui um desafio mesmo ao leitor contemporâneo familiarizado com linguagens múltiplas, fragmentação, fusão de gêneros e intertextualidade. Se boa parte dos poemas pode figurar facilmente fora do conjunto da obra, a leitura do livro como narrativa fechada parece redimensionar seu campo de sentido e ampliar o prazer estético da leitura.

Ana Rüsche, apesar do título irônico – Nós que adoramos um documentário – que denuncia o interesse contemporâneo no factual (talvez da vida alheia) e o atual desprestígio da interioridade/poesia, presenteia seus leitores com uma autobiografia que são indícios de uma “possível experiência pessoal”. Em tempos em que os autores “ficcionalizam-se” para além dos blogues, constituindo-se extensões de seus próprios escritos em mácaras-egos (pensemos em Clarah Averbuck, em Santiago Nazarian, por exemplo), Ana Rüsche escamoteia-se. Não nos dá a facilidade de penetrar sua biografia, composta de um eu pesaroso que se multiplica, ou ecoa suas angústias com vaguidões, projeções sobre projeções de passado, presente e futuro. Não trai a proposta inicial de documentar/biografar-se, antes se expõe/resguarda por indefinir, seja nos planos do real, da ficção, da memória, da reinvenção do vivido.

Fosse um filme, Nós que adoramos um documentário seria uma ficção futurista em primeira pessoa, cenas captadas em super-8, atemporais, com um mar ao fundo, e a sombra aos pés de um eu que enquadra o seu olhar, mas não se mostra.

 

REFERÊNCIAS

1RÜSCHE, Ana. Nós que adoramos um documentário. Ed. Ourivesaria da Palavra. São Paulo, 2010.

2À exceção de “são esses dias de lua”, “dias com luz. pouca”, “eu própria sou a vida no outro planeta” de maior extensão, apesar de partidos em seqüências menores, numeradas, apresentando contigüidade de tema.

 

*Eduardo de Araújo Teixeira

Doutor em Letras/USP