Arte(s) Multifária(s): proposta temática de uma curadoria | de Rosza W. Vel Zoladz

A afirmação contundente de Ernest Fischer “A arte é necessária” poderia parecer datada e hoje não teria, diriam alguns, o mesmo vigor que teve quando o seu autor publicou o livro A Necessidade da Arte. A expressão, que é datada de 1973, mostra-se, no entanto, atualíssima, tendo em vista as formas afirmativas que a arte suscita entre nós, por meio de projetos econômicos, sociais, culturais, profissionalização desafiadora, enfim, por todas as formas com que ela, a arte, hoje se apresenta. É preciso acrescentar à afirmação uma outra resposta mais atualizada, bem menos enigmática que a que foi dada por Fischer ao que se indagava. Ou seja, “ao menos se soubesse para que?”

Curiosamente é um poeta como Ferreira Gullar que, numa linguagem simples, nos diz que a arte continua indispensável. Mas faz uma advertência: “porque a vida não basta”. Eu acrescentaria que é assim, diante de tudo, que a arte se impõe e se coloca ante toda a complexidade que a vida comporta. De fato, ao dizer que a arte funda realidades, Marcel Mauss, em sua genialidade, quer nos ajudar a entender que não é mais possível considerar a arte no singular, mas sim, no plural nas suas manifestações multifárias que se dão juntas, separadas, isoladas, misturadas ou cada uma em todas as expressões. Elas buscam dizer o que o homem que as cria, pensa, sente e elabora. Daí a afirmativa de Pierre Francastel de que arte engloba formas de conhecimento, portanto formas criativas do mundo em que os homens vivem e, nelas se inventam. Dá consequentemente para alcançar o que Beuyus diz que todos os homens são criativos – artistas – porque para todos eles os desafios da existência provocam o desejo incontido de entender o que vivem, experimentam, amam e sofrem, no dizer de Jean Duvignaud. O poeta tem então razão de dizer que a arte é mais que a própria vida. É o que os colaboradores do atual número da Revista Z Cultural nos apontam, cada um a seu modo, no seu jeito. Eles nos mostram em que o lixo extraordinário de Vik Muniz e seus catadores de Gramacho (RJ) querem fazer valer o seu status de arte, no sangue das veias que tingem tecnologias avassaladoras de arte digital, impregnando suas artes multifárias.

É o que a coordenadora do PACC (Programa Avançado de Cultura Contemporânea) do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ, Profa. Dra. Heloisa Buarque de Hollanda, tem como anelo ao me confiar a honrosa curadoria. A Revista Z Cultural é a revista virtual desse Programa.

 

Algumas observações edificantes e curiosas para aqueles que querem pensar o mundo tal qual ele é | de Michel Maffesoli – Tradução de Rosza W. Vel Zoladz

Vem-me ao espírito esta constante que se pode observar em numerosos domínios e ela nasce após uma longa maturação, uma lenta sedimentação. É preciso, então, que ela tenha sido contida em si para que se possa trazer a luz. Quero dizer com isso que uma obra digna desse nome é um advento de qualquer coisa que a transcende. E transcende, a fortiori, por meio do qual ela se exprime. Digo bem “através de” no que é o que se diz e se vive à boca pequena, na banalidade de um quotidiano do qual não se acabou de explorar os mistérios. Em outras palavras, trata-se de deixar imergir o que é. Que venha ai o que é. Eis qual é a ambição, a pretensão de um enfoque compreensivo: não reduzir a coisa a um sistema pré-estabelecido (lembremo-nos do famoso leito de Procusto), mas a deixar ser. Contentar-se, o mais belamente possível, com lhe apresentar os contornos e os entornos. Assim, para além ou por causa da representação, a “presentação”.

Heidegger, contemplando uma rosa, sugere que existe um pensamento que de nenhum modo objetiva nem traz a representação. Eco, bem entendido o do “peregrino querubínico”, Angelus Silesius: “A rosa não tem porque”. Extrapolando a proposta, se pode dizer que um tal “ohne warum” esse sem porque do essencial, é da vida em sua totalidade. O que não impede que o “como” das coisas, a “presentação” não necessita a elaboração não menos rigorosa que o “porquê”. Eterno problema, bem formulado por Archimede. Encontrar a alavanca epistemológica e metodológica, possibilitando levantar as sempre eternas questões com que todos são confrontados. Daí a exigência de um pensamento meditativo, pensamento ruminante, somente capaz de localizar as veias profundas que percorrem toda socialidade. E, de encontro do que nos queriam fazer acreditar as doutrinas de todos matizes, é preciso saber fazer uma real resistência do pensamento para “presentar” adequadamente os problemas sociais. Em uma fórmula incisiva e que não pode ser mais pertinente, Adorno faz uso de uma tal “exigência de rigor destituída de sistema”. Exatidão nesses passos não tolerando nenhum afrouxamento, lassidão intelectual sem, por isso, ceder aos charmes enganosos dos dogmas salvadores.

Ora, essa tal hidra com cem cabeças ressurge constantemente ao longo da história das ideias. Dogmatismo que sem golpes mortais, engendram as diversas inquisições, cuja história é costumeira desses procedimentos. Tanto isso é verdadeiro que a petrificação do que foi, num tempo, inovador, engendra mecanismo de defesa, agressividades que não conduzem mais, em nossos dias, aos que trabalham arduamente, mas são empregados para desconsiderar, para deslegitimar aqueles que não querem caminhar na cadência do passo ou se recusando ao que Durkheim nomeava, justamente, o “conformismo lógico”.

E é preciso bem assinalar que se sente o gosto amargo quando se recusa a fazer livros laudatórios, quando se subtrai ao engajamento, quando se evita a “lógica do dever ser” (Max Weber). Mas se pode igualmente dizer que, quando há um acordo geral sobre uma obra, um homem, uma ideia, isso é coisa suspeita. Isso porque, em geral, os homens não entram em acordo a não ser sobre coisas um pouco bobas. Em poucas palavras, para lhes dizer de uma maneira um pouco familiar, sobre “o que não come do pão”.

Assim, em oposição às ideias deterioradas, que continuam a atiçar os espíritos, ideias presentes no bom-pensamento moderno, pois eu dei duas chaves para bem entender o que conduziu o meu encaminhamento intelectual.

Dois pressupostos que pouco a pouco se impuseram ao meu espírito. Assim que eu os indiquei, por ruminação, por sedimentação. Pressupostos “ditados” de alguma forma pela “força das coisas” por aquilo que se dá a ver. Em princípio, a coisa é, em particular, evidente na análise do tribalismo pós-moderno eu continuo a insistir sobre um conceito místico do social. Eis o que parece curioso! E, portanto, a partir das raízes cartesianas, com a filosofia das luzes, no XVIIIº Século, vê-se efetuar o escorregamento da mística em direção à política. “Racionalização generalizada de existência, desencantamento do mundo” dirá Max Weber, características essenciais da modernidade. Ora, são numerosos os índices (índex) pontuando a mutação profunda que está em curso. Ponto de inversão, deslocamento de eixos, saturação (Sorokin)? Pouco importam os termos utilizados. É suficiente que se reconheça que o sentimento de pertencimento tende a prevalecer, que a autonomia individualista, eixo essencial do contrato social, deixa lugar à pessoa plural florescendo no pacto social. É esta primeira obsessão teórica, que tal como um fio vermelho, percorre tudo o que escrevi após os anos setenta. É a isso que denomino de “mística”: um laço social concebido a partir dos mitos que partilham entre si, alguns iniciados. Retomando a expressão “ordo amoris” do sociólogo Max Scheler, eu espero, no futuro, levar mais adiante a análise de uma tal erótica societal.

Outro pressuposto “ditado” pelos fatos, eu o concebo um pouco irritado, é o acento colocado sobre o “dado”. Isso está aí, irrefutável, irrecusável, que não se pode reprimir ante toda a ação humana. E isso não faz mudar o caminho do cacarejo de nossa pretensão de dominar, em uma palavra, a construir. O dado contra o construído!

Lembro-me do meu amigo inesquecível Pierre Sansot que no começo da carreira universitária, em Grenoble, achava minhas análises sociológicas bem “quietistas”. Isso era bem visto. Já nos meus anos de aprendizagem, eu preferia Fénélon a Bossuet, o cisne de Cambrai à águia de Meaux. A doçura da noção à brutalidade do conceito. E se pode dizer que um tal “quietismo” que vem à ordem do dia nas práticas quotidianas atuais. Menos agir sobre o mundo social ou natural que se ajustar a ele. Uma forma de não aniquilamento da natureza dionisíaca do mundo, a fusão da “orgia”, isto é, o partilhar as paixões (“orgé”), uma espécie de sujeição ao mimetismo tribal. Todas as coisas particularmente evidentes por aqueles que aceitam tudo simplesmente, ver e compreender as diversas manifestações de multidões contemporâneas, esportivas, musicais, religiosas, consumistas.

Quietismo “redução a nada”, kénose: o nada dá vida, o recolhimento de onde ela surge. Ali, ainda, a inversão de polaridade, podendo nos desgastar, mas estando ali indubitavelmente; a importância da sombra sucede prevalência das luzes. Convém orientar-se às descobertas que se pode fazer a partir dessa sombra. Dionysios estendendo sua sombra sobre as megalópoles pós-modernas, “parte do diabo” da qual se pode estender as manifestações múltiplas e contrastivas, retorno do sentimental trágico da existência, eis quais são os principais componentes do “dado societal”. Em poucas palavras, para além ou para aquém das simpáticas e integradoras teorias da emancipação advindas das Luzes, o reconhecimento de um mundo como lugar de exílio, e de plenitude, lugar de horrores e de maravilhas. O claro escuro da existência. Posso lembrar aquilo que é uma figura, traduzindo bem a retórica social pós-moderna, este é o Oscymore como expressão da harmonia conflitual de todas as coisas.

Eis o “quomodo”, esse como em ação nos diversos livros pontuando minha trajetória. Estas são as pedras angulares de uma obra em curso, tendo por ambição de dar conta, ao menos da arquitetônica social. Pedras de ângulos podendo se tornar pedras de obstáculos imprevistos para alguns, que, eu já indiquei, criam o escândalo desde que, stricto sensu, se põem em questão o que deve ser. Esqueci que eles são o que é a questão, justamente, porque é a essencial garantia de procedimento científico.

Certo, aí pode, deve acontecer a polêmica teórica. Num tempo onde a universitas se constituía enquanto tal, se denominava a “disputatio”. E o suculento da atividade intelectual era tudo de uma vez, uma boa maneira de rivalizar os talentos e um bom meio de fazer avançar o conhecimento comum. No melhor dos casos, a verdadeira “disputatio” pode evitar a guerra ideológica onde os clérigos raivosos gastam toda a sua energia numa detestação sem horizonte. Eu me contento, aqui, em retomar o velho adágio dos humanistas, “sine ira et ódio”, sem cólera nem ódio, de dizer o mais serenamente possível quais são os elementos essenciais da vida quotidiana pós-modernas. Não a partir de um a priori teórico, leia-se dogmático, satisfaça ou não, está ali. O dado sendo desde já, o fundamento do construído. É bem assim que da minha parte eu compreendo, em boa parte, o “positivismo” de Augusto Comte: “induzir para deduzir a fim de construir”.

Daí a necessidade de se dedicar, portanto, a um trabalho artesanal do pensamento. Fazer algo como feito à mão. Trabalho solitário se ele o é, e ao mesmo tempo, nada menos que isolado. O solitário estando religado à alteridade. Não é desse ponto também que o monge na Idade Média concebia sua situação: monos, só, mas em ligação com seu deus e com a comunidade. O dogma da comunhão dos santos faz sentido. A multiplicidade e a diversidade das pesquisas encontrando sua fonte a partir das temáticas do imaginário e do quotidiano testemunham, igualmente um tal processo de religação.

Darei duas chaves abrindo as portas para o que está em jogo nos meus diversos trabalhos. E isto, tendo no espírito que a história é feita de desnudamentos, de palimpsestos. Por vezes é preciso saber arranhar o palimpsesto para reencontrar o texto original e isso permite reencontrar o que é original. Reencontrar, encontrar, enquanto termos que chamam a atenção ao fato que a verdade não seria abstrata, desligada do “dado”, simples adequação a uma representação do mundo, mas que ela é sempre e novamente desvelamento: isto torna presente o que está aí. Daí a importância da sombra da qual já falei; não simples acréscimo, mas a sombra como elemento central da verdade das coisas.

Portanto: arranhar o palimpsesto a fim de fazer aparecer esses dois sinais distintivos essenciais, que são o prazer ou o desejo de ser e a profundidade da superfície.

Assim, indiferente à raiva, mais das vezes na origem das pesquisas sobre o social, trata-se de elaborar uma sociologia, sabendo estar atento à cor do mundo, a seus aromas e a seus diversos humores. Dionysios é bem entendido, a figura emblemática de uma tal sensibilidade teórica. Divindade arbustiva, diz-se, símbolo de uma ligação com esse mundo e com seus prazeres. Anamnese do animal humano, ou do “zoon politicon”. Há aí a animalidade e é melhor integrá-la, se não se quer que ela se inverta em bestialidade. Enquanto figura emblemática, Dionysios é o índice da inteiridade do ser individual e coletivo.

Um tal dionisíaco está presente, empiricamente, na vida corrente. Os índices semânticos provam isso, tais como as pequenas pedras do Petit Poucet, vão pontuar conversações quotidianas e práticas de todos os dias. Assim as palavras festiva, lúdica, onírica, criativa enquanto termos pouco burilados, significam bem que o ar do tempo é um hedonismo partilhado. Isso é, se esquece muito seguidamente de burilá-los e isso é peculiar aos grandes momentos culturais, às épocas fundantes. Assim, um bom conhecedor que era do grande século francês, Nietzche dizia “que havia nele um ruço”.

E uma tal selvageria escapando, tanto o bem como o mal, às regras, leis e outras codificações, é próprio mesmo do vitalismo cultural. Mas, face a esse último, e como para se proteger, são também épocas nas quais há a proliferação das leis, por assim dizer, protetoras. São momentos enfim, durante os quais, como para legitimar esta comichão legislativa, as elites intelectuais se empenham à predica moral, fundando ali seu pontificado artístico ou teórico. Em uma palavra, sua razão de ser.

Daí se justifica a multiplicação de livros e programas, tipo de “talk show”, repousando essencialmente sobre a edificação. Lendas douradas da modernidade, se empregando a consolar, a tranquilizar o bom povo, cujo ideal seria segurança, o famoso risco zero. Daí eclodem esses dilúvios de baboseiras bem-pensantes, ameaçando fazer tudo submergir. Daí se coloca como questão midiática, certos créditos célebres, expectorando banalidades moralizantes e moralizadoras, do alto de suas diversas bancas. Leiam o irônico livro de Vilfredo Pareto: “Le Mythe Vertuiste”, para compreender qual ar empestado é esse, dessas oficinas onde se praticam tais “ideais”, de onde é fácil avistar a mentira que repugne! Para lhe dizer em termos mais sofisticados, tudo isso se aparenta a esses textos “protépticos”, textos conversores, empregados no inicio do cristianismo, para edificar e converter.

Não há nada de novo sob o sol. E não se repetirá demais que, quando uma concepção do mundo se acaba, na matéria a ideologia moderna comumente lhe acrescenta. A isso é o que se denomina um combate de guarda da retaguarda: por mais que seja ofensiva, se pressente, inconscientemente, que a guerra está perdida. Daí esse moralismo ambiental. Uma palavra para qualificar tal atitude: bovarysmo. Quer dizer, crer em outra coisa do que ela é. Bovarysmo sendo, de uma maneira recorrente, o fato de uma elite distanciada da realidade social. Outra coisa, se compreendeu, é o espírito que anima meus livros. Contra os dogmas um pouco pesando os notórios do saber, eles agregam a ironia de antiga memória. E isso que é o mais próximo de sua etimologia: “eironia”, interrogação.

Se interrogar, com efeito, sobre esse retorno do “puer aeternus” esta criança eterna no qual Dionysios é a figura emblemática e que toca o coração alegre nas diversas tribos dos quais ele participa. Criança eterna, presente nas peregrinações religiosas, nos múltiplos encontros musicais, nas corridas mundanas e outras baladas. Quanto a todas essas festas, pontuando a vida de nossas sociedades, como se pode as interpretar a partir da “retidão” peculiar aos doadores de lições? Não seria melhor se lembrar das advertências do sábio Platão: philopaismoves gar kai oi theoi, os deuses também gostam dos divertimentos das crianças (Cratyles, 40,6).

Ora, há aí do divino na atmosfera pós-moderna. Reencantamento, eu disse no que a eternidade não é mais esperada nos hipotéticos mundos, religiosos ou políticos, a vir, mas se vive no instante: o instante eterno, tudo do trágico petrificado, mas de eternidade igualmente, pois o que conta é viver, aqui e agora, uma alegoria que não se transfere para amanhã. Eis o que induz a temática dionisíaca de uma maneira teimosa, se capilarizando, no conjunto do corpo social. Uma curiosa observação que Heidegger consagra a meu pequeno deus querido resume bem uma tal sensibilidade teórica: “É este Dionysios o deus do vinho que, no meio da noite, deixa para os mortais saqueados pelos deuses, um tal vestígio. Porque o deus de cepa salvaguardora, em si e no que dele frutifica, o originário pertencimento recíproco do céu e da terra, enquanto lugar ferial, de união dos deuses e dos homens.”

O co-pertencimento do céu e da terra, da vegetação e do homem, não é o que celebram as festas pagãs cuja atualidade não é avarenta. É, no entanto, instrutivo repetir que mesmo as tribos de musica tecno ou gótica sem conhecimento especifico do gesto dionisíaco, vão, frequentemente, e com ostentação, se abrigar por detrás do nome epônimo de Dionysios. Epônimo? Eles não sabem nem mesmo o que isso significa. Pouco importa porque ao adotá-lo, eles pressentem bem que esse deus “carrega” o nome da coisa que eles vivem: a exuberância, a abundância da alegria do aqui e o agora. Sim, há nos cultos extáticos das multidões musicais, essa celebração sem freios de uma plenitude vital. Essa se reencontra, do meu ponto de vista, nas histerias religiosas e no transbordamento de alegria nas noites em que são anunciadas as vitórias eleitorais. Isso se dá, igualmente, por ocasião das celebrações funerárias de um tal star musical, religioso ou político. Resumindo, o emocional está no ar.

Lembro que, utilizando um tal neologismo, não é questão de fazer referência a uma característica psicológica, como numerosos observadores sociais mais elementares ou muito apressados creem seguidamente. Não, o emocional remete a uma ambiência coletiva, tribal, na qual o indivíduo se perde num conjunto mais amplo. Ora, há aí, de um ponto de vista metafórico, uma copulação coletiva. Onde o orgasmo se junta a uma forma que é, se cremos como sabedoria popular, uma espécie de “pequena morte”.

Morte de um pequeno si para nascer um Si mais vasto, esse da terra e do céu, da fauna e da flora, eis o que são as efervescências societais, de diversas ordens, pontuando a vida quotidiana das nossas sociedades. “Pequenas mortes” orgiásticas que procuram, antes de mais nada, celebrar um irrepreensível elan vital. Aqui, também, retornemos a Heidegger: “Pode-se dizer que morrer seja o ato supremo de viver”.

Para além da ideologia oficial do “risco zero”, sem estar comprometido por uma suposta morosidade ou digamos, medo do futuro, pode-se dizer que essas intensidades traduzem um inegável prazer ou desejo de ser. Em termos mais familiares, a vida não vale nada, mas nada vale a vida. E é num tal lugar, que se pode assinalar o laço social contemporâneo. Em maior ou menor tom, o que importa são as vibrações comuns. “Sintonias” das quais o fenomenólogo Alfred Schutz soube mostrar a importância para a compreensão da vida social.

Emocional, afetivo e outras expressões da mesma fonte, traduzindo o retorno vigoroso dos afetos na vida social. Não mais acantonados, seguindo a expressão consagrada, por detrás da vida privada, mas contaminando o essencial da vida pública. As paixões têm os seus papéis desempenhados na teatralidade contemporânea, e é em vão e naïf não levá-las em conta, não saber medir seus efeitos. Não se pode nada compreender de geopolítica, de política, da publicidade, da simples vida social, do espetáculo midiático (eu deixo amigo você completar esta lista) se não se considerar a importância dos afetos. Em seu sentido simples tudo que trata do ventre, do útero, da histeria, tudo como foi o caso na modernidade tem o seu retorno vigoroso na pós-modernidade. Ela é um elemento essencial do viver junto contemporâneo, e não dá mais para economizá-lo. É pois, cientificamente, pertinente integrá-lo nas análises pragmáticas que se pode fazer da vida social. Saber mostrar o que se dá a ver. É uma tal mostração que constitui o segundo questionamento à obra na minha trajetória.

Mostração. Se utilizo esta palavra do antigo francês é para evidenciar que pode existir do monstruoso, da monstruosidade na natureza das coisas. Trata-se aí de uma dessas banalidades de base que é, sempre, importante de lembrar ainda mais quando se tem a tendência, no moralismo ambiente, de esquecer sua presença. Banalidade conservadora da vitalidade popular. E isso, na imagem desses dias do “forno banal” na Idade Média, onde se celebrava a festa do fabrico do pão comum. O “forno banal” meio de escapar, ainda que provisoriamente, ao Poder do senhor, representa bem a metáfora do Poder do povo. Banalidade soberana que, contra as evidências sábias, essas essencialmente do “correctness”, reafirma força e vigor ao que é evidente.

Em primeiro lugar para o bem e o mal, o verdadeiro e o falso, não são assim radicalmente separados como se eles os estivessem. Donde a necessidade, na mostração, de integrar o que, enquanto sejam “monstruosos e humanos”. O que induz um pensamento da ressonância. Por vezes da redundância. Questionamento que vem em espiral sendo encontrado na técnica dos mantras extremos orientais, na repetição continuada da “lectio divins” monástico, na repetição dos temas musicais, do samba ou dos “samples” peculiares à musica “techno”.

A lógica pré-moderna, ou aquela da pós-modernidade, não são dedutivas, mas indutivas. Partindo do que é, elas fazem comparações, analogias. Mas numa tal perspectiva “tudo é bom”, não há aí nada a lançar da surrealidade societal. É a isso que intitulei “No fundo das Aparências”. O que aparece é o cadinho da maneira de ser e de viver junto. O barroquismo sendo a forma artística que mais bem dá conta de uma tal coincidência dos opostos. Barroquismo como dinamismo da vida das formas, como exacerbação do sentimento da vida.

Donde a acentuação sobre a experiência podendo se exprimir no vivido quotidiano, nos rituais anódinos do trabalho, dos lazeres, dos afetos amorosos ou amicais, ou exagerando, em maior grau, na moda, nos paroxismos musicais (gótico por exemplo), nos desejos intuitivos pelos mitos satanistas ou as formas provocantes encenadas, durante as diversas “paradas” ou “marchas” tecno, gay, “drag queen” aparecendo em evidência nas teatralidades urbanas.

Nesse jogo das aparências, se acelerando graças ao desenvolvimento tecnológico, é uma ordem que se coloca. Ordo amoris, tal como o denomina Max Scheler, onde Eros e Thanatos, a criação e a destruição, se ajustam num mixto completo, onde tudo tem seu lugar e pode desempenhar seu papel. Trata-se, no seu sentido primeiro, de uma simpatia universal, fundada sobre as afinidades eletivas ligando cada um e os seres. Jogo das aparências, jogo das imagens, quer sejam aquelas da publicidade, dos “vídeo-games” dos “logos” de diversas ordens e, em geral, das imagens midiáticas, onde se efetuam, para retornar uma bela metáfora Kabbalistica de Leon o Hebreu, uma “copulação visual”. Expressão um tanto mística, não podendo rebater os apriorismos teóricos, mas em que a experiência quotidiana colabora com vantagem. É suficiente desse ponto de vista, permanecer alguns instantes nos “cyber cafés” ou operando jogos online, e em seguida discutir com os protagonistas desses jogos, para se dar conta que uma tal “copulação” tem uma eficácia inegável.

É certo que as elites extenuadas continuam a colocar, fortíssimo, seus diagnósticos apocalípticos, sem outros julgamentos que não os agressivos e que envolvem ameaças sobre a própria decadência a essa rebelião do imaginário. E elas verão unicamente patologias (praticas adictivas, dizem – elas) nas fantasias, fantasmagorias, visão de fantasmas se exprimindo nos fãs dos jogos online. Vejamos, aí mais para o melhor como para o pior uma espécie de serenidade característica da “eterna criança”, vivendo na harmonia conflitual dos afetos contraditórios que os constituem. Serenidade quase animal se adequando aos seres e ao meio, em breves palavras, ao biótopo no qual se vive. Lembremo-nos aqui das palavras proféticas de Gurnemanz à Parcifal, encontradas em Wagner: “Aqui, meu filho, o tempo torna-se espaço”. Espaço semântico, espaço pathico, onde o que importa, são as paixões, as emoções vividas, com os outros, num dado lugar. O laço faz o laço, é isso mesmo que caracteriza o “eterno instante”, do qual eu tentei, em diversos dos meus livros, mostrar a atualização. Em oposição a uma eternidade longínqua e futura caracterizando a modernidade (e a tradição ocidental), a eternidade, se cristaliza agora no momento, o “Kairos”. Ela se espacializa. Donde a importância do corpo, do localismo, do tribal. Espaço que pode ser simbólico, que pode ser movente elemento da “circumnavegação” pós-moderna. O tribalismo e o nomadismo como características essenciais da época.

Ali é, certamente, a mutação mais importante, a mudança de paradigma que apenas se começa a reconhecer, a compreender e analisar. Em breve, o que era transcendência, e de um Deus Uno, de merecer um Céu, de um Futuro que se deveria estender, torna-se imanência. Imanentismo de uma divindade difusa, de que sincretismo e a religiosidade são testemunhas. De uma Terra a proteger, o que faz tornar-se atento à sensibilidade ecológica, de um Presente, símbolo de uma presença a um outro e a esse mundo aqui. É isso a ecosofia.

É um tal de Imanentismo que caracteriza a criatividade posmoderna. A vida como “arte total” onde se podem estabelecer correspondências, de ressonâncias de tons diversos, de musicalidades múltiplas, gostos, odores, toques, todas as coisas constituindo a vida, individual ou tribal, como obra essencialmente experimental. Eis o que é, em oposição à representação moderna, a presentação pós-moderna. A presentação não passa de superfície. E como o diz, com uma dose de maledicência, Andy Warhol: “não há nada por detrás”. Eis o que é difícil de admitir quando se sabe que a intelligentsia moderna se deu como vocação de pesquisar, ainda e sempre, a profundidade. A vida por detrás da vida. A perfeição para além da imperfeição presente. Como diz, ironicamente, Paul Valéry, “o intelectual é estruturalmente um profundista”!

Mas eis que, a experiência de todos os dias nos remete à superfície das coisas. A pele, os pelos, os humores não se escondem mais. Bem ao contrário, eles se exibem. Isso não é a primeira vez que acontece nas histórias humanas. Numerosos são os bons espíritos, nos quais eu me inspiro (F. Nietzsche, G. Simmel, M Weber), que bem mostraram como em certos momentos, a profundidade se esconde na superfície das coisas. É preciso estar atento a esse fenômeno.

Desde já, é preciso dizer que para além dos dogmatismos mais ou menos ridículos, mais ou menos perigosos, para além dos oportunistas intelectuais, e olha que eles são uma legião, para além dos plagiadores de toda ordem, regateadores vendendo produtos de segunda mão, é conveniente elaborar uma série de aproximações teóricas. Quer dizer, encontrar palavras pertinentes que, pouco a pouco se tornam adequadas ao que é vivido, na experiência societal. Palavras de imemoriável sabedoria, que, sem rigidificar o que elas designam, sem conceituar a priori, conduzem a uma relação conveniente e justa com a alteridade. Alteridade do grupo, alteridade da natureza, alteridade dos misteriosos numinosos.

Eis aí o que me foi “ditado” por uma observação atenta da experiência quotidiana. Eis aí o que proponho à meditação de alguns “happy few”.

 

Michel Maffesoli

Membro do Institut Universitáire da France
http://www.michelmaffesoli.org/

 

Tradução de Rosza W. Vel Zoladz

Socióloga. Pós-Doutora em Estudos Culturais pelo PACC-FCC/UFRJ
Professora colaboradora da EBA/UFRJ
Pesquisadora convidada do PACC-FCC/UFRJ

 

Avatar, o filme. Do “objeto inanimado” ao objeto animado | de Juremir Machado da Silva

Resumo:este artigo examina uma hipótese literária, construída pelo escritor Paul Auster, como probabilidade de explicação para o impacto ou a consistência narrativa de certos filmes à luz da necessidade contemporânea de respeito às diferenças culturais e de compreensão da diversidade existencial e interpretativa. Tomando como exemplo o filme Avatar, busca refletir sobre o papel de uma “teoria”, como simulação de verdade dentro de uma obra e de uma cultura, na relação do produto simbólico como o imaginário do público e com expectativas sociais.

Palavras-chave:imaginário; cinema; cultura; tecnologia; mídia; comunicação

 

1. Teoria do “objeto inanimado”

A literatura dita pós-moderna misturou definitivamente os gêneros. Os romances podem ser ensaios. A ficção pode assumir um papel teórico. Paul Auster, em Homem no escuro (2008), criou um personagem bastante curioso: um crítico literário aposentado, com os movimentos limitados por causa de um acidente de carro, que passa boa parte do seu tempo vendo filmes em companhia da neta, Katya, cujos movimentos estão bastante reduzidos depois que o namorado foi morto na guerra. Vivem com eles também a filha do critico, Miriam, sozinha há cinco anos. Katya abandonou a escola de cinema em Nova York. O pai dela está com uma perna atrofiada. O quadro é desolador. Para passar o tempo e driblar a falta de sono, o crítico inventa história que não saem da sua cabeça.

Cria um personagem que se descobre dentro de um buraco, de onde é tirado para se descobrir numa guerra. Essa parte do livro de Auster é quase uma isca para pegar o leitor. Logo no começo do romance, o crítico literário apresenta o que parece ser a diferença radical entre ler e ver um filme: “Fugir para dentro de um filme não é como fugir para dentro de um livro. Os livros nos obrigam a lhes dar algo em troca, ao passo que podemos ver um filme – e até gostar dele – num estado de passividade mecânica” (AUSTER, 2008, p. 19). Vale lembrar que Paul Auster não é um estranho ao mundo cinema. A fala é do seu personagem.

Katya expõe ao pai sua “teoria dos objetos inanimados”. Segundo ela, são eles que definem a grandeza do cinema: “Objetos inanimados como forma de expressar emoções humanas. Essa é a linguagem do cinema. Só bons diretores entendem como fazer isso (2008, p. 20). Então ela dá três exemplos tirados de filmes de Vittorio de Sica, Ladrões de bicicleta, Jean Renoir, A Grande ilusão, e Nicholas Ray, O Mundo de Apu. A moça descreve a abertura de Ladrões de bicicleta. Um marido chega em casa, mergulhado em seus problemas – precisa tirar a bicicleta do penhor para poder trabalhar no emprego que arranjou – e nem nota que a mulher se esfalfa carregando dois baldes de água. No apartamento, a mulher sugere que penhorem as roupas de cama e chuta o balde de raiva.

Katya resume sua teoria: “Objetos inanimados, emoções humanas” (p. 21). A mulher vende a trouxa de roupas de cama. A cena acontece numa loja de penhores, “uma espécie de armazém para objetos abandonados”, onde a teoria de Katya encontrará o seu ponto máximo: “No início, as prateleiras não parecem muito altas, mas a câmera recua e, à medida que o homem começa a subir, vemos que as prateleiras continuam sem parar até o teto, e todas as prateleiras e todos os cantinhos estão entupidos de trouxas idênticas àquela que o homem está guardando agora, e de uma hora para outra parece que todas as famílias de Roma venderam suas roupas de cama, que a cidade inteira está na mesma condição miserável que o herói e sua esposa” (AUSTER, 2008, p. 21).

As trouxas de roupa penhoradas como metáfora de uma sociedade arruinada. No segundo exemplo, extraído de Renoir, o personagem de Jean Gabin despede-se da mulher alemã que ama e prepara-se para atravessar a fronteira da Suíça junto com o parceiro Dalio. Os homens partem e a mulher fica com a filha pequena e a louça suja do jantar. Aqueles pratos se “transformaram no sinal da sua ausência, no sofrimento solitário das mulheres quando os homens partem para a guerra, e, um por um, sem dizer palavra, ela recolhe os pratos e limpa a mesa” (AUSTER, 2008, p. 22). A cena dura, no máximo, 15 segundos. Mas para Katya todo o filme está concentrado nessa imagem.

O terceiro exemplo parece mais sutil. O indiano Apu casa praticamente por acaso com uma moça que mal conhece. O noivo escolhido para a jovem era um estúpido. Desesperada, a família, na busca de uma solução, convence Apu a substituí-lo. As cenas que interessam se passam em Calcutá, para onde, contra sua vontade, Apu levou a esposa. A primeira imagem é simplesmente devastadora: o homem mora num lugar pobre e sujo. A janela do quarto é coberta com um pedaço de estopa. Na cena seguinte, uma manhã, a estopa já foi trocada por um tecido xadrez limpo (objeto 1). Em seguida, a câmera mostra um jarro de flores (objeto 2). Em seguida, quando a mulher se levanta, não consegue andar e percebe que seu sári (objeto 3) está amarrado às roupas por marido. Por fim, enquanto ela prepara o café, Apu rola preguiçosamente na cama, como um marido satisfeito, e depara-se com um grampo de cabelos entre os dois travesseiros” (objeto 4).

Katya conclui: “Esse é o ponto culminante. Ele segura o grampo de cabelos e o examina, e, quando a gente observa os olhos de Apu, a ternura e a adoração naqueles olhos, a gente fica sabendo, fora de qualquer dúvida, que ele está loucamente apaixonado por ela, que ela é a mulher da sua vida. E Ray faz isso acontecer sem usar uma única palavra de diálogo” (AUSTER, 2008, p. 25).

O que há por trás dos objetos inanimados de Kátia?

Uma teoria.

 

2. Efeito de embalagem

Há obras que mudam tudo. Mas como se muda tudo?

a) Pode-se contar uma nova história com uma nova

forma (é o sonho de todo artistas ambicioso).

Pode-se contar uma velha história com uma nova forma (é o sonho de quase todo artista moderno).

c) Pode-se contar uma nova história com uma velha forma (é o projeto de quem ainda tem esperanças).

Pode-se alterar o ponto de vista.

Pode-se contar, no caso de um filme, um conjunto de velhas histórias com uma nova embalagem graças ao avanço das tecnologias e aos efeitos especiais.

Avatar, filme em 3D, do canadense James Cameron. Pode ser visto como, ao mesmo tempo, o filme mais idiota e o mais extraordinário dos últimos anos. Sem dúvida, do ponto de vista tecnológico, é uma revolução no cinema. Os efeitos especiais são fantásticos. A história pode ser considerada medíocre. Uma imensa Sessão da Tarde com todos os clichês dos filmes americanos. Uma mistura de Tarzan com Rambo, Rei Leão e faroeste. Uma nova embalagem para velhas histórias. Um resumo cru e impreciso do enredo seria este: homem branco parte em missão junto aos “índios” em nome da sua civilização, apaixona-se por uma “índia”, passa por todos os rituais de iniciação imagináveis e muda de lado. Já viram esse filme? Já leram essa história? Conhecem a lenda? É John Wayne no futuro.

Em termos simbólicos, o filme pode ser considerado de um oportunismo imbatível: se o mundo quer comprar um imaginário anti-americano, Hollywood vende. E vende bem. O faturamento justifica tudo. O final do filme é feliz: o exército americano, pois isso está mais do que implícito, sendo massacrado pelo povo que tentou conquistar para se apoderar do seu território rico num minério cobiçado. Avatar é um filme infantil. Uma espécie de faroeste tecnológico numa Amazônia hiper-real. É infantil por ser feito para crianças, mas também pode ser considerado infantiloide. Explora o mercado da ecologia.

O cinismo de Hollywood pode ser rotulado assim e ser classificado de genial. Hollywood já faturou muito com filmes sobre o cinismo de Hollywood. Tudo é mercadoria. Nada de novo na frente de batalha do entretenimento. Não deixa de ser irônico que o mais anti-americano dos filmes atuais não seja francês, mas americano. Avatar prova que sempre é possível e desejável inventar novas embalagens e novos efeitos especiais para velhas e boas (ou nem tanto) histórias de sucesso. Difícil mesmo é inventar um novo conteúdo. Guy Debord, cineasta menor e maior crítico da sociedade do espetáculo, não tinha dúvidas quanto a isso: “O espetáculo como organização social da paralisia da história e da memória, do abandono da história que se erige sobre a base do tempo histórico, é falsa consciência do tempo (1997, 108). Tempo paralisado.

O senso de marketing de James Cameron parece insuperável. O herói é um cadeirante. Um fuzileiro que, limitado a uma cadeira de rodas, supera sua condição graças à tecnologia e, corajoso e aventureiro, defende o planeta, a floresta, uma cultura autóctone e as diferenças. O poderoso exército americano, comandado por um sósia de Bush e dotado das tecnologias mais avançadas, acaba derrotado por uma tribo armada de arco e flecha, mas cheia de sentimentos telúricos. Místico, “bicho-grilo” e politicamente correto, Avatar opõe cientistas idealistas a militares obtusos treinados para defender interesses econômicos insaciáveis. Poderia ter sido feito para fazer sucesso no Iraque e no Afeganistão. Não é de duvidar que se torne também o filme de cabeceira de muito terrorista cinéfilo e sensível aos novos valores globais.

James Cameron sabe o essencial sobre a indústria cultural: o público quer diferença. É preciso criar um choque na percepção do espectador. Isso pode acontecer com uma nova embalagem ou com um novo ponto de vista. Não precisa ser com uma nova história. Os “índios” de Cameron são macacos humanóides azuis que se pintam para a guerra como os navajos e defendem a natureza como o Greenpeace. O impacto era certo. Avatar funciona como mais uma demonstração de que tudo se copia e recicla. Na verdade, Avatar é uma fábula (de dinheiro): feito para ser a maior bilheteria de todos os tempos. Cameron pôs a fantasia a serviço de uma ideia. E tudo isso a serviço de uma ideia maior: ganhar muito dinheiro satisfazendo seu público.

 

3. Paralisa e animação

Pode-se aplicar a “teoria dos objetos inanimados” de Katya (Paul Auster) a Avatar? Não seria difícil mostrar que a noção de “paralisia” referida por Debord aparece tanto nos exemplos dados por Katya/Auster quanto no filme de Cameron. Essa paralisia tem relação com a memória individual e afetiva e com essa perda do tempo histórico. O personagem inventado por Auster para povoar a solidão e a insônia do seu protagonista, esse crítico literário aposentado, desperta num buraco e numa guerra sem a menor noção do que lhe ocorre. O personagem que o imagina tem uma perna esfacelada e quase não pode se mover. A sua filha e a sua neta movem-se cada vez menos por causa de perdas afetivas irreparáveis. O tempo paralisa.

O herói de Avatar é um cadeirante vivendo outros tempos. Mas a paralisia da suas pernas não bloqueia o movimento da sua imaginação. O mesmo ocorre com o personagem de Auster. Parece que esses “paralisados” precisam recuperar o tempo perdido correndo atrás do futuro em nome de um passado qualquer. Seria possível mostrar inúmeras cenas em que objetos inanimados plasmam algo muito forte em Avatar. Num filme que tem muito de desenho animado, todos os objetos são inicialmente inanimados. Cameron exibe uma profusão de animais criados em computador. A chamada “Árvore das Almas”, parte da mitologia do povo Na’vi, poderia ser apresentada como o ponto culminante desses objetos inanimados. Uma árvore, no entanto, é um ser vivo. Um ser vivo paralisado. Seria possível explorar a ideia de que uma sociedade obrigada a se defender de arco e flecha é uma cultura paralisada.

No livro de Paul Auster, contudo, é bastante possível que os verdadeiros objetos inanimados não sejam as trouxas de roupa de cama penhoradas nem os pratos sujos e o grampo de cabelo da mulher de Apu, mas pai, filha e neta paralisados em casa pelas duras batalhas da vida. Pessoas convertidas em objetos sem vida. Ou simplesmente o avô e a neta imobilizados no sofá, vendo filmes para esquecer o tempo das tragédias pessoais. A “teoria dos objetos inanimados” de Auster é como uma boneca russa: esconde outras dentro dela. Em primeiro lugar, exprime a ideia de que cinema é imagem e deve dizer com imagens todo um imaginário. Um grande cineasta deve ter “sacadas” capazes de mostrar o todo numa parte.

Em segundo lugar, a teoria de Auster sobre os filmes esconde possivelmente uma teoria sobre os personagens do seu livros. Em terceiro lugar, esconde talvez uma teoria sobre o papel da teoria. Esse é o ponto que interessa aqui tanto para pensar o filme Avatar quanto para pensar a importância da teoria numa obra de ficção. É importante destacar que a teoria da personagem Katya não tem pretensões científicas, embora faça uma “demonstração” consistente. A função dela no livro não é de mostrar o autor do livro defendendo uma tese e fazendo do seu romance um romance de tese, mas fazer os personagens terem uma leitura do mundo, uma visão de mundo, um olhar diferenciado sobre o exterior. Se a teoria de Auster mostra-se verossímil, outras, em outras obras, são mais facilmente refutáveis, mas cumprem o mesmo papel: dar a pensar, dar a ver, produzir interpretação e leitura.

O que faz a força de uma obra de ficção é a teoria que ele contém e à qual tenta dar verossimilhança? O escritor francês Michel Houellebecq parece ser um exemplo dessa teoria. No romance Extensão do domínio da luta (2002), faz o leitor avaliar uma hipótese desconcertante: o sexo como sistema de hierarquia social. A qualidade do livro está no fato de que a “tese” não se apresenta como do autor nem o romance como uma demonstração da sua validade. É uma “tese” da história, uma teoria do personagem, uma leitura que não está ali para convencer, mas para desconcertar e estruturar um mundo fictício.

Avatar tem uma teoria. Tem a sua teoria. É verdade que ela aparece de modo um tanto rápido na trama exposta. Não é colocada de modo demonstrativo. Auster explicita a sua “teoria dos objetos inanimados” para melhor dissimular a sua “teoria da teoria”. Inventa uma história de entretenimento típica da indústria cultural para fisgar o leitor enquanto lhe inocula uma ideia sofisticada e sinuosa. Cameron faz um blockbuster. E, como Auster, parece contrabandear uma teoria sob o nariz dos espectadores. Talvez ela nem seja percebida por boa parte do público. É uma teoria holística. Sustenta que as partes do todo estão interligadas numa vibração comum e direta. Em certo momento, a cientista especula sobre a hipótese de as árvores da floresta estarem todas em conexão umas com as outras através das suas raízes numa imensa teia análoga à rede neuronal com suas sinapses. A natureza seria um sistema de comunicação interativo.

Alguém poderá dizer que a grandeza dos livros de Paul Auster e de Michel Houellebecq não se encontra nesses esboços teóricos. Ou até mesmo que esses exercícios cumprem uma função bem menos nobre, aquilo que os franceses chamam de “remplissage” e nós, brasileiros, rotulamos popularmente de “encher linguiça”. O mesmo valeria para Cameron. A força de Avatar estaria na tecnologia e não numa duvidosa teoria do tipo “o bater de asas de uma borboleta na China provoca um terremoto no Haiti”. Pode ser. É sempre uma hipótese a ser considerada. A “tese de Katya”, no entanto, agarra o leitor logo no começo da história. A de Michel Houellebecq sobressai ao final da narrativa como uma revelação. A de Cameron eleva-se como uma mensagem.

Gilles Lipovetsky e Jean Serroy, em A Tela global: mídias culturais e cinema na era hipermoderna, defendem uma ideia que parece dar apoio à hipótese defendida aqui: “Se o cinema cumpre uma função narrativa-expressiva-onírica maior, essa dimensão, porém, não é única. Há uma outra função, insuficientemente destacada e no entanto crucial, que se abre a uma perspectiva muito diferente: o cinema é o que constrói uma percepção do mundo. Não apenas segundo o papel clássico que se atribui à arte, cuja função estética é fazer ver, através da obra, o que a princípio não se vê na realidade, mas, de maneira mais radical, produzindo realidade” (2009, p. 304).

O cinema é uma tecnologia do imaginário, uma lente que forma, deforma e transforma. A longa oposição às obras explicativas e demonstrativas, os chamados “romances de tese”, acabou por hiperdimensionar o papel narrativo-expressivo-onírico dos romances e dos filmes, escamoteando as ideias contidas neles ou esvaziando-os de substância. A descrição passou a ser o valor máximo. Levada ao extremo como fator de higienização, essa proposta estética ganhou ares de etnografia sem a riqueza barroca dos diários de campo dos antropólogos. Era preciso resgatar as ideias sem lhes dar o papel de antes. A genialidade de Vittorio de Sica, Jean Renoir e Nicholas Ray estaria em ter transformado ideias em imagens. Avatar embute uma teoria numa narrativa de potencial expressivo e onírico muito acima da média. Assim como a publicidade vende conceitos junto com os seus produtos, o cinema vende “percepções de mundo” junto com as suas imagens.

Os “objetos inanimados” de Katya são as “teorias animadas” de Paul Auster, de Michel Houellebecq e possivelmente de James Cameron: ideias que dão vida sutilmente às histórias contadas. Auster, num romance, tirou sua teoria de imagens de filmes que dispensam palavras. A genialidade de Houellebecq faz sua imagem do sexo como hierarquia social brotar em palavras emanadas das experiências dos personagens. Cameron, num filme, coloca na boca de uma personagem as palavras que costuram seu delírio imagético e onírico. Há uma espécie de deliciosa e paradoxal inversão: os escritores cristalizam suas teorias em imagens. O cineasta fecha o círculo das imagens em profusão com algumas palavras salpicadas.

A demonstração está ausente. Nisso reside a diferença entre o uso das ideias na modernidade e na pós ou na hipermodernidade. Lipovetsky e Serroy complementam: “O que o cinema mostra não é somente um outro mundo, o do sonho e do irreal, mas nosso mundo mesmo transformado num misto de real e imagem-cinema, um real fora-do-cinema submetido ao molde do imaginário-cinema. Ele produz sonho e realidade, uma realidade remodelada pelo espírito cinema, mas de maneira nenhuma irreal. Se permite a evasão, ela também convida a refazer os contornos do mundo. Oferece uma visão de mundo: o que chamamos de cinevisão” (2009, p. 304). Essa “cinevisão” é o equivalente da “tese de Katya”, a “teoria dos objetos inanimados” de Auster, a ideia que quebra a paralisia dos corpos e das mentes e veicula pensamentos em imagens.

Assim, num tempo de eliminação das fronteiras entre os gêneros, Paul Auster vira referência teórica para uma análise de sociologia do imaginário. Avatar, de James Cameron, apresenta-se como um tratado holístico e ecológico de interpretação da hipermodernidade. Ou como uma hábil, cínica e pragmática megaprodução de Hollywood para vender uma percepção de mundo a quem já a possui.

Tudo está ali: nas pernas imóveis do fuzileiro.

Tudo está ali: nas máquinas vencidas pelos ideais.

Tudo está ali: nas sinapses das árvores em rede.

 

Referências

AUSTER, Paul. Homem no escuro. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

Baudrillard, Jean. Tela total – mito-ironias da era do virtual e da imagem. Porto Alegre: Sulina, 1999.

Borges, Jorge Luis. Obras completas. Buenos Aires: Emecê, 1974.

Bourdieu, Pierre. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

Debord, Guy. A Sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

Dantec, Maurice. As Raízes do mal. Porto Alegre: Sulina, 2009.

Derrida, Jacques. Margens da filosofia. Campinas: Papirus, 1991.

Durand, Gilbert. Les Structures anthropologiques de l’imaginaire. Paris: Dunod, 1992.

Feyerabend, Paul. Contra o método. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977.

HOUELLEBECQ, Michel. Extensão do domínio da luta. Porto Alegre: Sulina, 2002.

Lyotard, Jean-François. O Pós-moderno. Rio de Janeiro: José Olympio, 1986.

LIPOVETSKY, Gilles e SERROY, Jean. A Tela Global: midias culturais e cinena na era hipermoderna. Porto Alegre: Sulina, 2009.

Maffesoli, Michel. O Conhecimento comum. Porto Alegre: Sulina, 2008.

Morin, Edgar. O Método 3: o conhecimento do conhecimento. Porto Alegre: Sulina, 1999.

Silva, Juremir Machado (da). As Tecnologias do imaginário. Porto Alegre: Sulina, 2003.

Wolfe, Tom. A Palavra pintada. Rio de Janeiro: Rocco, 2009.

* Juremir Machado da Silva, doutor em Sociologia pela Sorbonne, Paris V, escritor, jornalista e tradutor, é pesquisador 1B do CNPq, coordenador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da PUCRS e autor, entre outros livros, de A miséria do jornalismo brasileiro (Petrópolis, Vozes, 2000), As Tecnologias do imaginário (Porto Alegre, Sulina, 2003) e dos romances Getúlio (Rio de Janeiro, Record, 2004) e Solo (Record, 2008).

 

Máquinas Poéticas | de Angela Mascelani*

Nos meus primeiros trabalhos procuro os princípios que geram informações, ou seja, o princípio da ordem e o da essência. As informações no universo estão geralmente ocultas, disfarçadas em meio à desordem. É necessário o mecanismo da percepção e da intuição para que estas se manifestem “de repente”. É a esta “surpresa” que tenho o maior interesse e fascínio.

Abraham Palatnik

Este artigo foi escrito a propósito da exposição Máquinas Poéticas[1], que tratou da arte que se realiza pelo e a partir do movimento e foi realizada no Museu de Arte Popular Brasileira Casa do Pontal, no Rio de Janeiro[2]. Esta mostra também concretizou a intenção curatorial da nova área expositiva do Museu – a GVB Galeria de Arte – criada justamente para ser um espaço de questionamento das classificações duras, que podem conduzir às guetizações, sobretudo quando se tratam das produções artísticas que têm origem nas camadas populares. A ideia norteadora deste novo espaço ancorou-se no desejo de abrir possibilidades para as trocas, confrontos e aproximações entre diferentes propostas de artes e autores. E que, por esta via, o público pudesse experimentar a quebra de fronteiras formais, muitas vezes artificiais, que servem apenas para criar distâncias, impedindo que se reconheçam as sutilezas que podem unir propostas e expressões artísticas muito diferentes, assinalando a riqueza da diversidade cultural na arte.

Com este intuito, e tendo por ponto de partida o uso do movimento mecânico, eólico ou elétrico nas obras, reuniram-se algumas delas dos artistas Adalton Lopes, Laurentino Rosa, Nhô Caboclo e Saúba, todas integrantes do acervo do Museu Casa do Pontal, às do pioneiro da arte cinética no Brasil, Abraham Palatnik. Algumas obras deste artista vieram de sua própria coleção e, outras, do acervo de Gilberto Chateaubriand, atualmente em comodato no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.

Trata-se de artistas inventores, com diferentes trajetórias de vida, motivações e maneiras de realizar suas obras e nelas expressarem sua visão de mundo. A despeito das incontestes diferenças, vários pontos os aproximam: a atração pelo lúdico, o gosto pela invenção, um genuíno espanto pela automação e a entrega ao paciente trabalho investigativo. A tecnologia exerce papel singular nessa produção que, de alguma forma, conjuga arte e ciência. Esses artistas compartilham ainda de um mesmo período histórico em que ocorreram e ocorrem intensas mudanças tecnológicas no Brasil e no mundo.

Lembrando que não existe “o” artista popular como sujeito coletivo, sublinhamos que as noções de popular e erudito como definidoras de identidades orientadas interessam menos aos artistas do que aos críticos. Podemos perceber, nas histórias de vida desse conjunto de artistas, que cada qual se apropria de seu mundo cultural, de suas bagagens e acúmulos e, a partir daí, promove sínteses, sem medo de se lançar no desconhecido, seguindo as trilhas da intuição.

Abraham Palatnik teve formação em artes e em engenharia de motores. Embora nascido no Rio Grande do Norte, em 1928, viveu dos quatro aos 19 anos na Palestina, onde teve sua iniciação profissional, retornando ao Brasil em 1948.

 

Adalton, Nhô Caboclo, Laurentino e Saúba são artistas das regiões Sudeste e Nordeste, oriundos das camadas populares, o que significa, neste caso, que construíram seus conhecimentos por processos informais e não nos bancos escolares. Eles introduziram o movimento em suas produções a partir do desejo de dar vida a objetos e personagens, de criar “peça que bula com a imaginação”, “que não se sabe se é deste mundo, ou do outro, criador” como disse Nhô Caboclo, ou porque sofistica “o pulo do gato”, como afirmou Adalton Fernandes Lopes, referindo-se a seu próprio trabalho.

Cada um dos artistas que expomos chegou às suas criações cinéticas de modo bem particular. O pintor e desenhista Palatnik, por exemplo, abriu essa nova vertente em seu trabalho plástico a partir de uma vivência que interrompeu seu fluxo criativo. Amigo do artista Almir Mavignier, por intermédio de quem veio a conhecer o crítico Mário Pedrosa e o trabalho da doutora Nise da Silveira, no Hospital Psiquiátrico do Engenho de Dentro (RJ), ficou extremamente impactado ao visitar os ateliês de terapêutica ocupacional dessa instituição, onde viu os internos se expressando com contundência por meio da pintura. Esse impacto é assim descrito por Palatnik:

O que vi era extraordinário, de uma densidade fabulosa… e comecei a me sentir desorientado. Abandonei as pinturas, os pincéis, as tintas…[3]

Diante da força presente naqueles trabalhos, ele perdeu a vontade de prosseguir na arte. E foi, justamente, essa radical perda de esperança em sua capacidade expressiva que possibilitou o nascimento de uma nova realidade para a cor e as formas: os cinecromáticos. Deixando-se tocar pelo vazio, e ficar ativamente neste ponto zero, não só aprofundou sua reflexão sobre a questão da cor, como também abriu espaços internos para o surgimento de uma criação inteiramente original. Inspirado no princípio do caleidoscópio, um dos primeiros cinecromáticos foi exibido na I Bienal de São Paulo, em 1951. O artista deixa clara a importância conferida à intuição no texto abaixo:

Um problema complexo funde nossa cabeça, mas a solução salta inesperadamente, e de repente vemos ordem e lógica em diversos fatos irregulares e no meio da desordem. Fatos científicos importantes têm sido previstos por uma percepção intuitiva. Sem a intuição, enfim, não seríamos artistas, pois ela nos proporciona essencialmente o contato com o inesperado.

Conversas e leituras sugeridas pelo crítico Mário Pedrosa ajudaram Palatnik a criar o campo propício para essa mudança. Pesquisando as teorias da forma e as possibilidades da luz e do movimento, ele não abandonou a pintura, mas encontrou outros caminhos para expressar as questões suscitadas por ela. O crítico de arte Luiz Camillo Osório expõe o forte impacto produzido pelos cinecromáticos:

Quem depara com um aparelho cinecromático é imediatamente enfeitiçado. Os olhos ficam paralisados pelo movimento de luzes e cores, pelo ritmo luminoso que invade o espaço. É como se uma pintura abstrata repentinamente ficasse animada, produzindo efeitos de cor variados e sincronizados. As questões do artista são oriundas da pintura, mas transformadas pelo uso da tecnologia, do motor que dá movimento a um circuito elétrico, que vai acendendo um conjunto variado de luzes coloridas. (…) A cor-luz pondo-se em movimento diferencia-se da cor-pigmento das pinturas e se expande no espaço incluindo o próprio expectador. É uma experiência de absorção e sedução (…).

Essas obras foram descritas pelo poeta Murilo Mendes no catálogo da Bienal de Veneza de 1964 como “tangentes à pintura e ao cinema”. Surpreendendo o meio artístico internacional, Palatnik deu prosseguimento a seu trabalho criando as progressões, pinturas que usam a madeira como suporte, e os objetos cinéticos, nos quais pequenas formas geométricas planas e coloridas, sustentadas por varetas e conectadas a um motor oculto, se movem lentamente, produzindo efeitos rítmicos delicados.

Ao longo de sua trajetória, o artista percorreu vários caminhos, dialogando sempre com as principais questões que marcam a arte de meados do século XX aos nossos dias. Em depoimento ao Museu Casa do Pontal[4] o artista disse:

Devo o interesse na arte popular à minha esposa Lea. Ela que descobria as coisas e eu vi que tem realmente uma vida aquilo, que não é só a arte abstrata, e eu acabei adquirindo algumas coisas. Porque eu vi naquilo uma coisa espontânea, do mesmo jeito que eu também me senti espontâneo nas coisas que fazia. Quando eu pegava os instrumentos e tentava compor alguma coisa, eu estava praticamente me equiparando a eles. É uma atividade um pouco cerebral, mas também é muito espontânea. Eu acho que na arte popular o que existe é muita invenção também, porque eles abordam muitos problemas, e isso se justifica porque eles estão cercados de informações e as informações são traduzidas, na habilidade deles, em realidade. Para eles a realidade é o que eles estão fazendo.

Para aprofundar o entendimento da história e dos rumos tomados por este artista, o livro Palatnik, com texto e organização de Luiz Camillo Osório, citado na nota acima, é leitura indispensável.

Obras animadas – como as feitas por Adalton, Laurentino, Nhô Caboclo e Saúba – não são raras na arte popular. Os nomes pelos quais são referidas variam, mas o encantamento que o público demonstra por elas é sempre o mesmo.  Todas fascinam. No Museu Casa do Pontal elas foram catalogadas como engenhocas ou geringonças, mas são conhecidas também por diversos outros nomes. Laurentino chamava suas esculturas móveis de papa-ventos. Nhô Caboclo referiu-se aos seus trabalhos como equilibristas, toré, balsa e engenhoca. Saúba dá a conhecer suas criações pelos nomes de mesa ou engenharias. Comentando o trabalho cinético dos artistas populares Antônio de Oliveira e Manuel Molina, a crítica Lélia Frota[5] usou as expressões universos moventes e engrenagem/bricolagem elétrica.

Se há inequívocas distinções em seus processos de feitura, em todos a ousadia é inegável e está associada à invenção de mecanismos capazes de fazer mexer e animar personagens e objetos. No geral, esses processos envolvem a fabricação caseira de mecanismos que utilizam na sua composição partes de outros aparelhos e materiais reciclados. Muitas vezes é o artista quem cria as peças, engrenagens e sistemas necessários para movimentar as figuras. Em outras, ele adapta pequenos motores, como os de eletrodomésticos descartados. Essas ações resultam sempre numa estrutura rústica e única, que poucos, além do próprio autor, sabem mexer ou consertar.

Adalton Fernandes Lopes tornou-se um especialista neste gênero. Nasceu em 1938, em Niterói, no estado do Rio de Janeiro, onde viveu até sua morte, em fins de 2005. De família simples, cursou até o segundo ano do primeiro grau e logo teve que começar a ganhar o sustento. Enfrentou grandes dificuldades, teve vários empregos que lhe garantiam apenas o básico. Depois de passar de uma ocupação para outra, conseguiu certa estabilidade na Companhia Nacional de Navegação Costeira, onde ficou por cerca de sete anos. Ao ser demitido deste emprego, enfrentou sérios apertos financeiros, mas encontrou nos bonecos o que chamou de válvula de escape. Leitor da Bíblia, moldou suas primeiras imagens inspirado na temática religiosa. Encontrando interesse pelo que fazia, soltou-se no mundo e deu asas à imaginação. É notável a forma pela qual abordou a vida nos bairros periféricos de Niterói, abrindo espaço para o protagonismo do homem comum. Seus fascinantes recortes do cotidiano urbano registram a argúcia de seu pensamento e a complexidade da vida social que lhe coube experimentar e transmitir com grande talento. O prazer de Adalton com seu trabalho

fica patente nesse depoimento:

Eu gosto de todos eles, sabe? Eu gosto de fazer isso. Da coisa mesmo e de fazer. Não tem dinheiro, tempo, não tem nada disso! Eu quero que o trabalho fique bonito. Legal, sabe? (…) Depois que eu acabo os trabalhos, pra mim acabou. Eu quero mais outro. Uma coisa diferente. Eu quero fazer uma coisa nova. Sempre a coisa nova.

Segundo o artista, sua chegada ao mundo da arte se deu por inspiração das notícias que ouvia sobre o ceramista Mestre Vitalino, recebido com honras por toda parte – inclusive pelo presidente Jânio Quadros, em 1961. Adalton, então com 23 anos, percebeu que as modelagens que fazia por prazer e diversão poderiam ter valor como um tipo de trabalho, ao qual decidiu se lançar com muito empenho.

Esse fato nos ajuda a entender a dimensão sociológica presente no que tem sido chamado de “arte popular brasileira”. Adalton – que já criava seus bonecos, a exemplo de muitos outros artesãos que vieram a desenvolver um trabalho autoral – inspirou-se na figura de Mestre Vitalino para dar plena vazão à sua própria imaginação.

Ou seja, um determinado tipo de produção, que provavelmente já existia em muitas partes do país, encontrou acolhimento no mercado cultural a partir do momento em que passou a ser valorizado como bem simbólico, como “trabalho”, que demarca um ethos e remete a valores identitários reconhecidos como brasileiros. No caso de Adalton, essa legitimidade permitiu também que ele se situasse socialmente como participante de uma tradição coletiva, sem, contudo, abrir mão da sua própria singularidade.

Sabemos que a emergência de novas realidades culturais faz parte de uma intrincada rede, que articula fatores históricos, econômicos e sociais. Está ligada, portanto, às mudanças que vêm ocorrendo no país e no mundo, tais como a valorização da diversidade cultural, o incentivo aos estudos sobre as tradições populares e o folclore, a ampliação do debate sobre a alteridade, os movimentos de resistência de povos locais ao colonialismo, as mudanças de patamar tecnológico, além do alargamento das fronteiras do que pode ser considerado como arte e de quem pode ser reconhecido como artista.

Para os estudos do folclore, que tradicionalmente acolhem este tipo de produção, o reconhecimento das artes do povo implica muitas vezes no entendimento de que a autoria é coletiva ou anônima. Entretanto, pelo viés da arte, em que vigora a ideia renascentista de gênio autoral, os integrantes das camadas populares podem também ser vistos como autores, indivíduos com características próprias e pensamento original.

Adalton criou imensas máquinas poéticas, nas quais os personagens ganham animação a partir de um sofisticado sistema de cordas e polias, que, acionado pelo público, conjuga música e movimento. Tanto no mecanismo de suas engenhocas quanto na criação de materiais alternativos ao barro (como misturas de outros insumos ao papel machê), fica evidente a importância das técnicas desenvolvidas por ele para que os seus personagens possam suportar o movimento, ganhando leveza e maleabilidade. Essas características são assim destacadas pelos antropólogos Guacira Waldeck e Ricardo Lima:

Seguramente o que mais marcou a produção plástica do artista foi o percurso que trilhou em busca do movimento. Desde as primeiras peças em que retratou a figura humana, isolada ou em grupos, pelos contornos dados aos corpos modelados em barro, se percebe que o artista evitava as posições estáticas. (…) As cenas indicam movimento e imprimem ritmo à ação. Ao artista, porém, não bastou sugerir ao expectador o movimento que a cena propõe. Ele quis mais: que, literalmente, o barro se movesse e que, como num sopro, seus bonecos se fizessem vivos.[6]

Adalton Lopes toma o mundo vivido como inspiração. Suas obras alargam a noção de experiência, incluindo, sem hierarquias, o vivido e o imaginado.

Nhô Caboclo [Manoel Fontoura], falecido em 1976, nasceu em data incerta na aldeia de Águas Belas, interior de Pernambuco. Filho de mãe indígena, da etnia Funiô, e de pai provavelmente negro, viveu e realizou expressiva parte de sua obra em Olinda, PE.

Sua memória do passado começou em Garanhuns, onde sabe que se criou. Emigrante da zona rural, ele costumava contar que nunca gostou de trabalhar na diária, na lavoura, mas que sempre inventou peças fortes como, por exemplo, um objeto para prevenir o mau olhado, para ser usado no alto das casas. Chegou às obras articuladas por não se satisfazer mais com as peças mortas, que não se movimentam. Seu desejo de entender e interferir no mundo, ao menos no seu mundo imaginário, levou-o a criar personagens em permanente estado de alerta. Em seu linguajar original, compartilha sua trajetória:

Antigamente eu prinspiei a fazer um piscui de acubagem: uma pecinha morta, que não tinha graça. Depois eu peguei de fazer peça manual para trabalhar no vento, com um corta-vento, ligado a um vaivém, do jeito da máquina do trem que locomove uma elce. Aí a elce trabalha e em tudo o que o vaivém tiver enganchado tem de bulir: todo mundo trabalhando. Depois disso principiei a fazer a roda-dágua: a caçamba enchia de água, ficava pesada, aí as máquinas tinham força pra puxar um dínamo e moer a cana.[7]

Fascinado pelo trem, pelos processos de automação trazidos pela industrialização, mas enfrentando grandes dificuldades no viver, ele olhava a vida como uma guerra sem fim. “E o derradeiro a ficar vivo sou eu mesmo”, dizia.

Para as autoras de O reinado da lua,

Caboclo desafia os artifícios do poder, inventa uma linguagem própria, inacessível aos eruditos, e de forma muito especial inverte a hierarquia. (…) Para ele sua arte encontra-se intimamente associada à ideia de movimento – movimento que remete à própria dinâmica da sociedade moderna, da força da máquina, da guerra. Presentes em suas esculturas, engrenagens se articulam, figuras se equilibram, pássaros rodam – traduzindo seu entendimento do mecanismo da sociedade, ao qual caboclamente impõe seu ritmo.[8]

Laurentino Rosa dos Santos, nascido em 1938 e falecido em 2009, tornou-se conhecido pelos sinaleiros dos ventos, por ele denominados de índios do futuro. Seus personagens, munidos de facões – que parecem pás ou hélices – apontam a trajetória mutante dos ventos. O artista chegou aos sinaleiros de maneira casual, pensando em chamar a atenção dos transeuntes para seu carrinho de pipocas. Empregando ferramentas simples, escolheu inicialmente os pequenos formatos. Embora este tipo de objeto seja bastante comum, a maneira como ele os realizou foi altamente personalizada.

Logo que se mudou da zona rural para a periferia de Curitiba, fez gaiolas, pequenos animais e cata-ventos. Conseguindo compradores interessados nas formas e na originalidade de seus traços, passou, mais tarde, a se dedicar inteiramente à feitura dessas obras/brinquedos, conferindo maior ênfase à figura humana e aos pássaros. A introdução de sinais e simbolismos judaicos em suas criações parece ter se dado de maneira similar[9]. Como fazia ponto diante do cemitério israelita de Curitiba, foi pouco a pouco absorvendo e integrando essas imagens em seus personagens. Depois de ter sua obra aceita em circuitos da arte popular, Laurentino passou a se dedicar com mais ênfase aos sinaleiros em grandes formatos.

Homem de vida simples, analfabeto, teve muitos filhos, e nunca pôde dedicar-se exclusivamente ao artesanato por ele inventado. Ao final da vida, trabalhava como jardineiro, aparando gramados, podando árvores, cuidando de flores. Seu filho Francisco seguiu-lhe na profissão e tem feito exposições individuais.

Já o pernambucano de Carpina, Saúba [Antonio Elias da Silva], parece ter um projeto mais consciente de seu trabalho como artista. Para esse mamulengueiro, ator e autor, que vive de sua arte e anda de um lado para o outro realizando suas performances, a experimentação aparece como condição mesma de seu trabalho artístico. Vindo da tradição do teatro de mamulengo – teatro de bonecos da zona da mata pernambucana, cada apresentação lhe pede improvisos. Buscando o riso e o envolvimento da plateia, o artista treina a cada dia, aprende e transforma seu trabalho a cada instante.

A ideia do movimento está no cerne do teatro de bonecos. O ator manipula os personagens e os faz andar, falar, sorrir, brigar e namorar. Apresenta histórias curtas, conhecidas como passagens, encarregando-se não apenas da feitura dos bonecos, mas também do seu manejo, da adaptação e mesmo da invenção de novas histórias e ainda da contratação de um grupo musical para acompanhar seus espetáculos.

Atualmente suas exibições públicas incluem também a dança com a boneca Dona Lindalva, de tamanho natural. Grande dançarino de forró, o artista desenvolveu uma técnica que faz com que a boneca pareça viva.  Ao final das apresentações, exibe as engenhocas criadas por ele, hoje chamadas de mesas ou engenharia do Mestre Saúba.

Suas engenhocas potencializam a cena teatral, dando suporte às performances do ator. Diferentemente dos bonecos manipulados à mão, as engenharias permitem a criação de uma cena complexa e dinâmica, em que personagens, fixos numa base, articulam imagem, cor, som e movimento. Em suas apresentações, o artista dialoga com a cena exibida. É inevitável perceber que nestas cenas seus personagens protagonizam por si, liberando-se dos manipuladores, dos brincantes.

Na obra Volta do Cangaço é impressionante como o artista concretiza a presença do mal, elencando uma sequência de situações dramáticas e explorando o imaginário acerca das perversidades de Lampião e seu bando. Surpreende também a sofisticada associação que promove entre imagem e som: o barulho das engrenagens em ação remete ao tropel dos cavalos. Esse recurso fascina duplamente as plateias, sobretudo se lembrarmos que no momento em que essa e outras obras foram produzidas, não havia tanta familiaridade com os equipamentos elétricos em muitas partes do sertão nordestino, por onde o artista costumava se exibir, com seus bonecos e máquinas. Assim o artista se autodefine[10]:

Eu não tenho leitura. Tenho inteligência. Quando me apresento junta uma multidão de gente. Conto o que vi e ouvi. Quando chego digo: ‘sou o Mestre Saúba, trago novidades que vocês nunca viram na vida!!!’ Gosto de boneco bem malcriado, gosto de provocar: ‘solteiro ou casado?’ Agora estou fazendo uns bonecos tocados pelo vento. Correndo no vento. Os bonecos de bicicleta correndo no vento…

O artista fala rapidamente, animadíssimo. Mistura os assuntos, transborda:

Sou viajado no mundo. Não tenho parada. Eu queria andar o Brasil inteiro. Eu queria ir a Aparecida do Norte…

Embora dê continuidade a uma antiga tradição nordestina, Saúba traz a marca do artista absolutamente original, traço destacado pelo músico e dançarino Antônio Nóbrega:

Ele é um magistral criador de bonecos. Tem uma genial inteligência mecânica, pois faz os bonecos se movimentarem espetacularmente. Pois bem, Mestre Saúba, para mim, é uma dessas figuras nas quais vida e arte se confundem milagrosamente.[11]

Saúba entalha, pinta, canta, improvisa versos, dança, inventa histórias, vive a arte em suas múltiplas dimensões. Sua maestria é reconhecida, embora nem sempre tenha encontrado oportunidades financeiras à altura de sua criação. Ele e os demais artistas que integram esta exposição são homens que se lançaram sem receios na experiência revigorante do fazer, inventando o inexistente e ultrapassando antigos limites.

Abraham Palatnik, decada de 1960, Rio de Janeiro, coleção Gilberto Chateaubriand, Museu de Arte Moderna, RJ. Exposição Máquinas Poéticas, Museu Casa do Pontal, RJ.

Nhô Caboclo, década de 1960, Recife, PE. Acervo Museu Casa do Pontal. Exposição Máquinas Poéticas, Museu Casa do Pontal, RJ.

Adalton Fernandes Lopes, década de 1980, Niterói, Rio de Janeiro, RJ. Acervo Museu Casa do Pontal. Exposição Máquinas Poéticas, Museu Casa do Pontal, RJ.

 

Adalton Fernandes Lopes, década de 1980, Niterói, Rio de Janeiro, RJ. Acervo Museu Casa do Pontal. Exposição Máquinas Poéticas, Museu Casa do Pontal, RJ.

 

Saúba, década de 1970, Niterói, Rio de Janeiro, RJ. Acervo Museu Casa do Pontal. Exposição Máquinas Poéticas, Museu Casa do Pontal, RJ.

*Angela Mascelani é doutora em Antropologia Cultural pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro e mestre em Antropologia Visual pela Escola de Belas Artes da mesma universidade. Autora dos livros “O mundo da Arte Popular Brasileira”, editora Mauad, 2002 e “Caminhos da Arte Popular: o Vale do Jequitinhonha”, Museu Casa do Pontal, 2008.

 

[1] Exposição – Máquinas Poéticas. Abraham Palatnik e os Artistas Populares Adalton Lopes, Laurentino, Nhô Caboclo e Saúba. Curadoria de Ângela Mascelani e Afonso Henrique Costa. De 5 de fevereiro a 5 de maio de 2011, no Museu Casa do Pontal, no Rio de Janeiro.

[2] O Museu Casa do Pontal, no Rio de Janeiro, é considerado o maior e mais significativo museu de arte popular do país. Seu acervo – resultado de quarenta anos de pesquisas e viagens por todo o Brasil do designer francês Jacques Van de Beuque – é composto por cerca de 8.000 peças de 200 artistas brasileiros e recobre a produção feita a partir do século XX. A exposição permanente do Museu reúne obras representativas das variadas culturas rurais e urbanas do país. Mostradas tematicamente, abrangem as atividades cotidianas, festivas, imaginárias e religiosas. O Museu está instalado no Recreio dos Bandeirantes, próximo à Barra da Tijuca. Tombado em 1991, recebeu, em 1996, o prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade, concedido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e, em 2005, a Ordem do Mérito Cultural. www.popular.arte.br

[3] Enciclopédia Itaú Cultural (www.itaucultural.org.br). Acesso em 12/01/2011.

[4] Entrevista gravada em 21 de dezembro de 2010, na casa de Abraham Palatnik, com a participação de Lucas Van de Beuque.

[5] Frota, Lélia Coelho. Pequeno dicionário da arte do povo brasileiro, século XX. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2005.

[6] No artigo “Adalton: o senhor do barro”, publicado pelos dois autores no catálogo da exposição de mesmo nome: Mascelani, Angela; Waldeck, Guacira & Lima, Ricardo Gomes. Adalton: o senhor do barro. Rio de Janeiro: IPHAN, CNFCP, 2007, p.13.

[7] Coimbra, Silvia; Martins,Flávia & Duarte, Letícia. O reinado da lua. Rio de Janeiro: Salamandra, 1980, p. 275.

[8] Idem, ibidem, p. 271.

[9] Contudo, no Pequeno dicionário da arte do povo brasileiro, Lélia Frota associa a disseminação desta imagem à religiosidade católica popular portuguesa.

[10] Em entrevista à autora, concedida em janeiro de 2011.

[11] Coelho, Marco Antônio & Falcão, Aluísio. Antônio Nóbrega: Um Artista Multidisciplinar. In: Estudos Avançados. Volume 9. Número 23. São Paulo. Janeiro/Abril. 1995 (Dossiê Cultura Popular; Print Version Issn 0103-4014.

 

“A inventividade da tradição”. Cultura popular e suas transformações. | Daniel Reis entrevista Daniel Bitter

Daniel Reis* entrevista Daniel Bitter **

 

DR: O livro que acaba de lançar é resultado de sua tese de doutoramento em Antropologia, agraciada com um prêmio importante na área de estudos sobre cultura popular. Gostaria que começasse falando sobre sua trajetória profissional e seu envolvimento com as folias de reis e outros campos da cultura popular.

DB: Talvez eu deva começar dizendo que minha trajetória foi muito tortuosa e olhando-a à distância, tenho a impressão que isso me trouxe mais vantagens do que desvantagens. Uma forte curiosidade me levou a diversificados caminhos que me permitem hoje transitar, com certa desenvoltura, por fronteiras entre algumas áreas. Estive desde muito cedo ligado às artes. Por muito pouco, não me profissionalizei em música erudita ou em artes plásticas e, então, quando ingressei no curso de Comunicação Visual da PUC-Rio, no final dos anos 80, me aproximei de um carismático professor e artista plástico chamado Urian Agria de Souza. Suas preocupações políticas, aguçadas pela experiência do movimento estudantil e dos acalorados debates dos anos 60, e, sobretudo, sua visão poética do mundo, me influenciaram muito, reorientando meu caminho profissional e pessoal. Ao lado de Urian e dos muitos outros alunos que se juntavam ao seu redor, quase sempre na mesa de um bar, descobri meu interesse pela cultura brasileira e pela cultura popular. Para mim que vinha de um referencial erudito, era um mundo que se abria. Numa tentativa de realizar uma síntese entre o que eu entendia como o “erudito” e “popular”, submeti ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da EBA/UFRJ, um projeto de pesquisa sobre Ariano Suassuna e o Movimento Armorial. Uma importante interlocutora nesse momento, foi minha orientadora, a profa. Rosza W. Vel Zoladz, que me apontou caminhos conceituais, fomentando meu interesse pela teoria social e pela etnografia. Defendi a dissertação em 2000 e àquela altura, já estava claro para mim que a compartimentação do mundo da cultura em níveis ou esferas era um produto historicamente situado. Tudo isso acabou por me levar a interessar-me cada vez mais pelas práticas e saberes populares, de modo que, como desdobramento das discussões desenvolvidas no mestrado, criei, juntamente com amigos com quem compartilhava gostos semelhantes, o grupo Gesta, um grupo instrumental dedicado à pesquisa e recriação de música tradicional brasileira, ainda nos anos 90. Nessa época havia descoberto a “rabeca”, um instrumento de arco semelhante ao violino, mas de artesania popular. Esse artefato sonoro tornou-se meu instrumento e assim dediquei-me a descobrir também suas sonoridades e seus múltiplos contextos de uso.

Trabalhando no magistério superior, já há alguns anos, resolvi, então, continuar minha progressão acadêmica, decidindo-me pela Antropologia. Minha aproximação às folias de reis foi um movimento quase circunstancial, mas a proposta de abordar objetos rituais como a “bandeira” e a “máscara” num projeto de pesquisa em nível de doutorado, já se encontrava bem nítida no meu horizonte e foi recepcionada com interesse por meu orientador, o prof. José Reginaldo S. Gonçalves. Acho que o que me levou a este tema foi, principalmente, a atração estética que as folias de reis produzem e sua ligação com a arte popular brasileira.

Tenho me envolvido com outros temas relacionados à cultura popular, por meio de minha participação nos trabalhos desenvolvidos pela Associação Cultural Caburé, da qual sou membro fundador. A Caburé tem implementado projetos de pesquisa e difusão de práticas culturais com uma preocupação acentuada em engajar efetivamente pessoas, grupos e comunidades. São projetos que se alinham com uma preocupação ética, política e social. Temos, muito modestamente, procurado contribuir para a valorização dos saberes e modos de vida populares e para o desenvolvimento social dessas coletividades.

DR: Sua pesquisa tem como norte dois elementos significativos no universo das folias de reis: a bandeira e a máscara. Poderia falar sobre a escolha deste recorte, bem como da importância dos objetos em contextos rituais e suas ressonâncias na vida cotidiana?

DB: Há nas últimas décadas um renovado interesse da teoria social pelos objetos materiais. A Antropologia teve sua gênese fortemente ligada aos artefatos e aos museus, onde esses objetos eram depositados, ainda no século XIX. No início do século XX houve um gradual afastamento desse tema em favor de estudos sobre sistemas de pensamento e relações sociais, mas os objetos sempre estiveram de algum modo presentes nas etnografias clássicas e chegaram a ser pensados a partir da perspectiva funcionalista ou estruturalista. A escolha do recorte que conduzi na pesquisa converge com as preocupações que tem norteado o campo da Antropologia dos objetos partindo de perspectivas atualizadas que gostaria de comentar.

Quando falamos de objetos, tais como a bandeira e a máscara, estamos, na verdade, falando sobre as pessoas que os produzem e os manipulam coletivamente. Isso é verdadeiro tanto para os objetos cerimoniais, dos quais eu trato, quanto dos objetos de uso cotidiano. Sem os objetos, a vida social seria simplesmente impossível. Não podemos falar sobre a pesca sem mencionarmos a rede, os anzóis, os molinetes. Há todo um conhecimento envolvendo o uso desses objetos, bem como, sistemas de valores que os resignificam permanentemente. Os objetos podem ser vendidos, trocados, destruídos, idolatrados, restaurados, alcançarem valores incomensuráveis no mercado, serem destinados a um museu ou tornarem-se bens inalienáveis, adquirindo uma história, uma biografia. Nessa direção, procuro incorporar na pesquisa a instigante sugestão de A. Appadurai, organizador de The social life of things (1986), de seguir os objetos para chegar às pessoas.

Folia de reis Sagrada Família. Morro da Candelária, Mangueira-RJ. Foto: Daniel Bitter

Em meu trabalho exploro precisamente os usos sociais e simbólicos de certos objetos e procuro mostrar como eles realizam medições entre diversos domínios da ordem cosmológica entre foliões de reis. A bandeira, por exemplo, é um artefato que ostenta imagens relacionadas a certas divindades. Ela também cumpre a função de identificar o grupo de cantores e instrumentistas que a conduz, de modo similar às antigas corporações de ofício medievais que levavam seus estandartes com suas insígnias. Durante os cortejos realizados pelas folias, a bandeira é transportada pelo bandeireiro,o que exige conhecimentos específicos. Um dos argumentos importantes que apresento no livro é que quando uma folia adentra a casa de devotos, naquele momento ritual, a bandeira, não é propriamente uma representação da divindade, mas sua própria presença. Além de mediar a relação com as divindades, a bandeira também relaciona os vivos e os mortos, trazendo, ocasionalmente, um antepassado à presença dos vivos. A bandeira se insere, portanto, num contexto de relações generalizadas de trocas permanentes entre os homens, deuses e antepassados. Por meio dela circulam dádivas, contra-dádivas, bênçãos, graças, promessas e sacrifícios. Tudo isso ganha uma visibilidade particularmente dramática e eficaz, uma vez que, na cosmologia de foliões, o mundo dos vivos, dos antepassados e dos deuses mantém forte e contínua relação entre si. Foliões e devotos ordenam o mundo e lidam com os acontecimentos imprevisíveis, articulando esses múltiplos agenciamentos.

Visita da folia à casa de uma devota. Morro da Candelária, Mangueira-RJ. Foto: Daniel Bitter

A máscara, por outro lado, é um artefato usado por um personagem das folias, conhecido como palhaço ou bastião. Trata-se de um tipo caracterizado pela ambiguidade e sua máscara, de aparência grotesca, opera importantes transformações na convergência entre mito e rito. Partindo da ideia de que os objetos são categorias materializadas, percebi que a “máscara” opera sistemicamente em relação à bandeira. Se por um lado a bandeira é alvo de intensos contatos corporais (as pessoas conversam com ela, a beijam e a tocam), por outro, a máscara usada pelo palhaço é, de modo geral, evitada, por estar associada a significados negativos, ou melhor dizendo, ambíguos. Há uma relação

hierárquica entre a bandeira e a máscara, que se configura menos como uma relação entre o sagrado e o profano, e mais como uma relação entre o “sagrado puro” e o “sagrado impuro”. É preciso, entretanto,enfatizar que quando trato dos objetos, não estou lidando simplesmente com um sistema de representações, partindo de uma concepção estritamente idealista de cultura. A bandeira e a máscara operam num campo de ação e transformação extremamente dinâmico, onde os significados estão em processo e sujeitos, inclusive, a mudanças. Como bem sugeriu C. Geertz, em seu já clássico Interpretação das Culturas (1973), culturas são sistemas simbólicos que fornecem modelos de e para a realidade. Em outras palavras, os símbolos não apenas representam, mas transformam o mundo.

Uma outra ideia importante é a noção de que os objetos produzem efeitos sobre as pessoas e sobre suas relações. Essa perspectiva é fundamental, pois permite deslocar o foco da funcionalidade prática ou utilitária na direção de uma razão simbólica ou cultural, para usar uma expressão de M. Sahlins desenvolvida em seu Culture and pratical reason (1976). É, aliás, o próprio Sahlins que sustentou que as necessidades são culturalmente constituídas e que o que as pessoas consomem não são propriamente objetos úteis, mas símbolos, imagens de identidades.

Esses, eu diria, são os pressupostos básicos, a partir dos quais formulei o recorte desenvolvido no livro.

DR: Recentemente pude acompanhar o Encontro de Folias de Reis de Duas Barras no interior do estado do Rio de Janeiro. Ao apresentar um dos grupos, o locutor ressaltou o fato de que aquele era o mais “autêntico” do estado, uma vez que era o único que ainda utilizava pele de couro animal em seus instrumentos percussivos. De que modo os grupos de folia vêm incorporando elementos contemporâneos e quais as receptividades e/ou eventuais tensões que desencadeiam?

DB: Uma modalidade importante de participação das folias de reis são os encontros e festivais que ocorrem com alguma regularidade e grande vitalidade em muitas regiões do Brasil. São práticas que se desenvolvem complementarmente às ações rituais mais restritas ao ciclo festivo natalino. Normalmente organizados por instâncias de poder público ou mesmo por associações de folias de reis, esses eventos têm sua dimensão espetacular muito acentuada. Realizam-se geralmente em praças centrais de cidades interioranas. Numerosos grupos chegam das mais diversas localidades para se apresentarem num palco por um tempo estabelecido previamente, usualmente em torno de 20 a 30 minutos. O sucesso do evento depende em grande medida da habilidade do locutor, pois, como num grande espetáculo de auditório, espera-se que ele faça comentários sobre as folias, sua história ou estilo, enaltecendo suas qualidades, comparando-as etc. O público interage animadamente com os grupos e as manifestações de devoção costumam ser frequentes.

Apresentação de uma folia no Encontro de folias de reis de Duas Barras-RJ. Foto: Daniel Bitter

As festividades de reis são práticas cíclicas que guardam um sentido de renovação do mundo, das relações sociais e cósmicas e das benesses da natureza. Por essa razão, as folias de reis tendem a se manter de forma mais ou menos estável por longos períodos. Sua temporalidade pode, inclusive, assumir um caráter mítico, como na comum expressão de foliões de que a sua folia “vem do princípio do mundo”. Os grupos se estendem ao longo do tempo, e evidentemente se modificam, mesmo que a percepção de foliões seja, muitas vezes, contrária a esse fato. De modo geral, os foliões criam a imagem de que o que eles fazem é uma reprodução do que aprenderam dos mais velhos e dos antepassados e essa concepção parece ser internalizada na forma de uma consciência moral. Isso não significa que não haja espaço para as recriações e devo ressaltar que, muitos foliões expressam concretamente seu interesse em inovar, como uma forma de se diferenciar. Não penso que haja aqui uma contradição. O que acontece é que na práxis as coisas não se reproduzem exatamente de acordo com as prescrições do roteiro e certamente há um largo espaço para a invenção. Por essa razão, inclusive, as folias de reis diferem umas das outras, em estilo, música, indumentária, embora seu “fundamento” seja supostamente o mesmo. As inovações e incorporações de elementos contemporâneos se dão numa diversidade de direções. Os instrumentos de couro têm sido substituídos pelos industriais, muitas vezes, em razão da maior facilidade de sua obtenção. A bandeira, embora seja considerada um objeto de culto, é alvo de inúmeras modificações. Um dos artifícios atualmente mais procurados no comércio, para este fim, são as lâmpadas coloridas tipo pisca-pisca de fabricação chinesa que são anexadas à bandeira. Hermano Vianna notou que entre palhaços de Valença-RJ é comum a incorporação de signos da cultura de massa em suas vestimentas. Os versos improvisados dos palhaços atualizam as práticas de foliões permanentemente e assim por diante.

Registro da Folia dos Carneiros. São João de Sapucaia, Laranjal–MG. Foto: Daniel Bitter

Dentro desse contexto, o caso que você menciona é muito interessante para pensarmos a ideia de “tradição”. Herdamos uma concepção reificada da noção de “tradição” como alguma coisa que se encontra orgânica e genuinamente ligada ao passado e que deve permanecer como sempre foi na origem. Como bem mostrou J. R. Gonçalves em seu livro A retórica da perda (1996), a categoria da “autenticidade” é uma noção que ocupa um lugar central no pensamento moderno ocidental, cujos reflexos ainda podem ser sentidos hoje, em uma diversidade de situações Diante desse referencial, as práticas culturais são classificadas como autênticas ou inautênticas, sem que se perceba que há um sistema de valores operando nos bastidores.

Certamente, o locutor mencionado atribuiu uma autenticidade a um determinado grupo, como forma de enaltecer suas qualidades, baseando-se numa representação talvez um pouco “romântica” e mesmo primitivista. Os encontros de folias de reis são contextos de aproximação e colaboração entre os grupos, mas são também lugares onde as rivalidades costumam emergir com grande força. Ocasionalmente, os próprios grupos podem reivindicar o status de “tradicional” ou “autêntico”, de forma a impor uma superioridade em relação a outros grupos. Outros, ao contrário, classificam-se como inovadores e pensam que dessa forma conseguem projetar uma determinada imagem, ganhando com isso algum prestígio. Há, portanto, muitas formas de apropriação da ideia de autenticidade e de seu uso e aqui chamo a atenção para a dimensão política das diferenciações num contexto de interação.

Posso dizer, inclusive, que meu interesse em estudar um grupo de foliões de reis no Complexo da Mangueira, na cidade do Rio de Janeiro, converge exatamente para essas questões. Desejava entender como uma prática originalmente associada a contextos rurais, interioranos é resignificada em contextos metropolitanos. Interessava-me entender as mudanças e a ideia de tradição formulada por homens mulheres, crianças e idosos enredados em teias de reciprocidade. Essa foi a minha aventura. O grupo veio para a Mangueira, da zona da mata mineira, nos anos 40 e haja mudanças de lá para cá. Hoje, o mestre da folia se comunica com foliões de outros grupos através das redes sociais virtuais e esse é apenas um pequeno indício de mudanças e incorporações futuras, que talvez nem possamos imaginar.


DR: A figura do palhaço aparece na folia de reis ocupando uma posição liminar, ora associado a elementos negativos, ora positivos. Gostaria que falasse sobre essa ambiguidade e os aspectos performativos dos palhaços nos giros de folia.

DB: O palhaço, com sua máscara assustadora e seus gestos irreverentes, é um personagem fascinante e não há quem permaneça indiferente a sua presença. Conforme testemunhei inúmeras vezes, sua performance se desenrola da seguinte forma: uma extensa roda de espectadores se forma e ao sinal do toque acelerado da sanfona e dos instrumentos de percussão, o palhaço pede licença ao dono da casa para iniciar sua apresentação, na qual realiza acrobacias virtuosísticas e declama versos memorizados ou improvisados de acentuado caráter cômico. Há uma forte interação entre o público e o palhaço e seu jogo está em tirar proveito do dinheiro ofertado pela assistência em troca de entretenimento. A chamada “brincadeira” do palhaço é, entretanto, apenas uma parte das ações das folias de reis, que se mostra bastante contrastante com a atitude dos demais foliões, por sua vez marcada pelo caráter solene.

Palhaço Trinca-ferro. Mangueira-RJ. Foto: Daniel Bitter

Os significados do palhaço podem variar dependendo da localidade em que se manifesta, mas um aspecto que lhe é inerente é sua forte ambiguidade. Penso que o palhaço retira sua força exatamente de sua ambivalência e que o que o torna atraente é o fato de ser simultaneamente perigoso e criativo. O antropólogo V. Turner (1920-1983) explorou a ideia de liminaridade, que caracteriza os ritos de passagem, como, por exemplo, os de mudança de status. Turner sugeriu que o indivíduo que experiencia esse rito é investido de características ambíguas, tornando-se perigosamente antissocial. Por essa razão, frequentemente usa algum tipo de máscara e é isolado do grupo.

O palhaço é muitas vezes alvo de tabu, e por isso, é cercado de obrigações e restrições. Quando mascarado, é impedido de entrar em igrejas ou outros lugares de culto, de se aproximar da bandeira ou mesmo de comer junto aos demais foliões. No estado do Rio de Janeiro, o palhaço é reconhecido como a encarnação da figura mítica de Herodes ou de seus soldados que teriam perseguido o menino Jesus, com o propósito de matá-lo. Nessa perspectiva, o palhaço é associado a significados negativos, mas isso não é tudo. Argumento no livro que o palhaço é um importante operador ritual, permitindo uma reflexão do grupo sobre a ordem cósmica, perpetuando-a e atualizando-a, uma vez que ele tem o poder de transitar por diferentes domínios e de estar sujeito a uma reversibilidade simbólica. No conjunto das atividades de foliões e devotos, há um momento particularmente relevante no qual se despede da bandeira e do ciclo festivo anual. Na ocasião, os palhaços são solenemente chamados pelo mestre da folia para retirarem suas máscaras e se aproximarem de joelhos da bandeira, quando então são benzidos. Diz-se que os palhaços estão pedindo perdão pela perseguição ao menino Jesus, declarando-se arrependidos. Trata-se, efetivamente, de uma conversão simbólica, que vem reforçar valores associados à coesão do grupo.

Turner foi o grande teórico da ambiguidade e sua sugestão de que a liminaridade é particularmente propícia à emergência de novos padrões, modelos e paradigmas, tem aqui uma ressonância realmente notável.
DR: Em seu livro as imagens são um elemento de destacada importância. Qual a sua relação com o universo visual e qual o espaço da fotografia na construção etnográfica de sua tese?

 

DB: Como disse anteriormente, sempre estive ligado às artes visuais e musicais. Uma aproximação minha a qualquer objeto de estudo vem inevitavelmente acompanhada de uma aguçada sensibilidade estética e creio que isso revela como os aspectos biográficos influem no modo como conduzimos o trabalho de pesquisa. Procuro, contudo, ter o cuidado de não me levar ingenuamente a enfatizar essa dimensão, quando ela realmente não é proeminente no contexto estudado. As imagens, a fotografia e também a teoria estão a serviço do trabalho de campo e não o contrário. É o campo quem aponta as direções. O caso aqui em particular é que entre folias de reis, a dimensão estética é, de fato, muito pronunciada e isso potencializa a produção de imagens e os sentidos que elas ganham no conjunto da pesquisa. Em suma, é um assunto que pede imagens.

O lugar das imagens na produção etnográfica não é o de ilustrar um determinado evento, mas o de precipitar dados para a análise. No meu caso, penso que as imagens me auxiliaram muito no estudo dos rituais, permitindo fixar enquadramentos, sequências etc. Um outro aspecto importante sobre o lugar da fotografia na produção etnográfica diz respeito à mediação que ela exerce na construção das relações do pesquisador em campo. Isso me ajudou muito a fortalecer laços de confiança e reciprocidade. Forneço sempre toda a produção imagética, sonora e textual para os meus interlocutores e me coloco sempre à disposição para ouvi-los.

Penso que ainda não nos demos conta do potencial que as imagens contêm para a análise social e cultural de contextos diversos em função da supremacia histórica da escrita. Isso é um paradoxo diante de um mundo que se tornou, sobremaneira, imagem. A antropologia visual está em franca expansão, fornecendo instrumentos analíticos e metodológicos relevantes e propondo novos paradigmas para a teoria social. O uso que faço de imagens no trabalho de pesquisa é uma modesta aproximação a esse campo.
DR: Logo na introdução de seu livro, você ressalta a dificuldade de realização de pesquisa de campo em grandes centros urbanos, dada a crescente violência. Como essa questão perpassou sua pesquisa e de que modo se faz presente no cotidiano dos grupos de folias de reis?

 

Não dá para tratar esse assunto com romantismo. As favelas são cenários de profunda desigualdade social, duplamente marcadas pela segregação da sociedade abrangente e pela opressão de traficantes e policiais. Mas as favelas também são lugares onde se desenvolvem expressões culturais singulares e teias poderosas de solidariedade, e esse foi o assunto sobre o qual me detive. Não obstante, não pude simplesmente fechar os olhos para o problema da violência e de sua influência na vida das pessoas com quem me relacionei ao longo do trabalho de campo. Cruzar o caminho de soldados do tráfico pesadamente armados, não foi uma experiência agradável, nem se apresentou sem algum risco. Adentrar um complexo como o da Mangueira, implica em transitar por territórios delimitados por regras e códigos onde se desenvolve uma atividade que, como bem sinalizou A. Zaluar, envolve diversos setores da sociedade, atravessando fronteiras transnacionais. A favela é a ponta de um iceberg, a sua parte visível, a qual se atribuiu uma imagem negativa.

No livro, inicio um dos capítulos narrando o episódio em que os “soldados” do tráfico apontam suas armas para os foliões, tendo como alvo, em particular, os palhaços. Na sequência deste evento, uma saraivada de tiros é disparada para o alto O fato, em questão, me levou a discutir a liminaridade, que caracterizaria ambas as partes. Os palhaços tornaram-se alvo da mira dos soldados, precisamente por sua ambiguidade. Abordo também a ideia de “enquadramento” interativo, na forma de um “jogo” envolvendo foliões e traficantes. Evidentemente, tudo não passou de uma “brincadeira”, mas o meu argumento é que nem todos os foliões compartilharam os códigos dessa moldura e muitos a interpretaram como um desrespeito à prática devocional da folia. A notícia desse episódio acabou por chegar ao chefe do tráfico que teria efetivamente afastado os envolvidos, num gesto de reprovação de suas ações.

O que gostaria de chamar atenção é para a imbricação desses mundos. Foliões e traficantes não vivem em universos completamente apartados. Está tudo muito misturado. Sabemos que muitos dos que estão envolvidos no tráfico mantém relações de parentesco com foliões e que traficantes podem, inclusive, receber a visita da folia em sua residência. Há casos de foliões que migraram para o tráfico e vice-versa. Entretanto, a natureza das relações que fundamentam essas atividades, parece ser bem distinta. Entre foliões, predomina a relação de troca, de solidariedade, de parentesco e vizinhança, assentada numa forte moral. Já as relações de consanguinidade ou de compadrio não necessariamente são importantes no fortalecimento de laços de confiança entre agentes do tráfico.

De modo geral, percebe-se que a violência influi decididamente na vida cotidiana das pessoas que ali vivem e para isso basta constatar as histórias dramáticas nas quais parentes, amigos e vizinhos estão envolvidos. Creio que as práticas de foliões de reis são uma forma de as pessoas suportarem essa situação e de verem o mundo de um modo menos brutal.

DR: Ao lermos a publicação ficamos sabendo que você integrou, por certo período, o grupo de foliões da Mangueira. Como se deu essa sua entrada e que repercussão isso tem para as observações etnográficas que você faz?

DB: Minha entrada no grupo se deu de forma bastante tranquila, sem mediações. Fui convidado pelo mestre a assumir uma posição ritual e isso só se tornou possível, em função dos conhecimentos musicais que detenho. A música foi, portanto, um instrumento fundamental de interação, uma língua, por assim dizer, comum. Por meio dela, compartilhei sensibilidades, emoções e saberes.

Assumir uma função dentro do grupo teve consequências importantes para o trabalho. A primeira delas é que o grupo foi encontrando um lugar para mim, um sentido para a minha presença. Primeiro, fui classificado como jornalista, depois como professor. Tenho a impressão que até certo ponto, tornei-me invisível, misturando-me aos demais, embora uma ambiguidade de fundo sempre tenha permanecido.

Em segundo lugar, julguei que entrar para o grupo e realizar efetivamente uma observação participante, me renderia boas informações para uma etnografia cuidadosa. Na condição que assumi, tive a oportunidade de aprender as regras de conduta, os cantos e toques e mais do que isso, de vivenciar uma experiência particularmente intensa e profunda. Evidentemente, passei muitos momentos agradáveis na Mangueira, mas ao lado disso, tive de passar noites em claro, participar de caminhadas intermináveis sob o sol escaldante dos verões cariocas, cumprir regras rígidas, levar broncas e tudo o mais. Todas essas penosas experiências me ajudaram a compreender melhor uma noção que, para foliões, guarda um sentido profundo: “sacrifício”. No livro, esclareço que para mim a experiência também foi vivida como um tipo de sacrifício, com um sentido particularizado. Na perspectiva de foliões, o significado parece estar associado às obrigações e ao compromisso estabelecido com as divindades, um compromisso que tende a se perpetuar, em função de graças alcançadas, para as quais, muitas vezes, não há pagamento que baste. Nessa direção, o sacrifício corporal (e sua dramatização pública) juntamente com o sentimento de cumprimento da obrigação têm uma centralidade notável nas práticas de foliões. É preciso ainda dizer que, na visão de mundo de foliões e devotos, as divindades são vistas também como sendo vingativas diante do descumprimento de certas obrigações. Tenho pensado que no fundo, essas pessoas se embrenham num empreendimento muito perigoso.

Finalmente, penso que ter participado das atividades, ajudou-me a tornar a famigerada relação pesquisador/pesquisado; eu/eles, talvez um pouco menos assimétrica. Foi uma tentativa de deslocar o olhar sobre a diferença, a descontinuidade para a continuidade, a interlocução, abrindo espaço para a troca de perspectivas. Uma consequência importante disso é que me vi enredado na teia de reciprocidades e afetividades juntamente com os demais. Todos os meus gestos foram, todo o tempo, enquadrados nessa trama interativa. Minha maior dificuldade, em tudo isso, foi sair do campo. Não participo mais das atividades do grupo, mas, de certo modo, até hoje continuo atrelado a esta rede onde fiz amigos duradouros. De resto, foi um encontro com pessoas verdadeiras, dotadas de um senso de humanidade muito aguçado. Agradeço pela oportunidade de ter vivido essa experiência e pelo cuidado a mim dispensado.

Palhaços. Duas Barras-RJ. Foto: Daniel Bitter

** Daniel Bitter é mestre em História da Arte pela EBA/UFRJ, doutor em Antropologia pelo IFCS/UFRJ e professor adjunto do departamento de Antropologia da UFF. Sua tese de doutorado recebeu o primeiro lugar no prêmio Sílvio Romero, CNFCP-Iphan, 2008 e foi publicada sob o título A bandeira e a máscara. A circulação de objetos rituais nas folias de reis, pela 7 Letras/CNFCP-Iphan, 2010. É membro fundador da Associação Cultural Caburé.

* Daniel Reis é doutorando em Antropologia pelo IFCS/UFRJ e antropólogo do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular-Iphan. Tem realizado pesquisas sobre patrimônio, museus, objetos e coleções e cultura popular.

 

 

História do Futuro | de Milton Machado*

…le transitoire, le fugitif, le contingent, la moitié de l’art, don’t l’autre moitié est l’éternel et l’immuable…” (Baudelaire)

 

Prólogoi

Teoria e prática

 

Fragmentação, os leitores poderão pensar, seria uma imperfeição deste texto. E argumentar que História do Futuro – trabalho ao qual o texto e seu título se referem – é sobre a fragmentação seria uma justificativa imperfeita. O trabalho História do Futuro não é apenas sobre a fragmentação, e fragmentação não é a única imperfeição deste texto. História do Futuro é também sobre as imperfeições, mas todas as imperfeições deste texto são (d)este texto. Para além das justificativas, História do Futuro tem se desenvolvido, de fato, por meio de fragmentos; e entre outras coisas trata-se, afinal, de um trabalho sobre a fragmentação. Este texto é um fragmento daquele trabalho-em-progresso.

Iniciei História do Futuro (HF) em 1978, com duas séries de desenhos a lápis sobre papel e um Texto Descritivo. Em 1985, História do Futuro foi tema de minha dissertação de mestrado em planejamento urbano (MSc., IPPUR/UFRJ 1985), escrita bem mais elaborada do que minhas descrições preliminares, em que tive que acomodar, não sem dificuldades, as fictícias Cidades-Mais-que-Perfeitas, o imenso cubo Módulo de Destruição, os diminutos e esféricos Nômades e outros elementos e personagens imaginários de HF com cidades reais, edifícios reais, habitantes reais e problemas reais do planejamento urbano.

Em 1991, mais uma vez precisei submeter as ficções de HF a testes de produtividade nos laboratórios do real, quando o trabalho ganhou a forma de uma instalação, com desenhos, esculturas e fotografias, todos relacionados a HF, em Interventi, exposição individual no Museo Civico Gibellina, na Sicília, Itália. História do Futuro parte de narrativas sobre cataclismos, desta vez reais, que a ciência indica terem de fato ocorrido, mas tanto tempo atrás – no período Cambriano – que os vestígios de sua história chegam a nós, neste presente, inevitavelmente borrados pelos informes contornos de nossa imaginação. E HF também fala da destruição de cidades – desta vez imaginárias – e de sua reconstrução. Pois a pequena nova cidade real de Gibellina, onde a exposição e meu trabalho partindo de narrativas sobre cataclismos vieram a ocorrer, é justamente uma cidade reconstruída: em 1968, a pequena velha cidade real de Gibellina foi totalmente destruída por um terremoto. Se minhas ficções passarem no teste, e se minhas analogias provarem ser produtivas, os bravos habitantes da grande Cidade-Mais-que-Perfeita de Gibellina poderão muito bem exemplificar os meus Nômades.

Pois eis aí uma fragmentária cronologia de HF: 1978-1985-1991… E aqui e agora, em Londres, 1999ii, eis a tese “After History of the Future“. “After History of the Future” é este texto. Complementa-o, correspondendo a demandas acadêmicas, uma apresentação de desenhos e fotografias a ele relacionadosiii. Este texto, estes desenhos e fotografias e esta tese são fragmentos do trabalho História do Futuro. Em plena continuidade.

História do Futuro é um trabalho sobre muitas coisas. É sobre terremotos, entre outros cataclismos, reais e imaginários. É um trabalho sobre as crises. Sobre fissuras, sobre rupturas. É sobre terras, campos, territórios, sobre a separação de campos e de territórios. É sobre o anseio pela unidade e sobre projetos de reunificação. É sobre desterritorializações e reterritorializações. É sobre as pontes, sobre a constituição de conexões [throwing brigdes], sobre a efemeridade e a permanência das pontes e das conexões. É sobre as imperfeições e incompletudes de nossos projetos e sobre nosso anseio pelas completudes e pelas perfeições. É sobre construção, destruição e reconstrução. É sobre margens, fronteiras e limites, sobre advertências de que “os limites não devem ser ultrapassados” (“… as margens estritas de meus papéis de desenho”) e sobre a exigência de que “todos os limites devem ser ultrapassados”, quando nos for exigido conhecer os limites e conhecer aquilo que delimitam. É sobre a lei e a relatividade das leis. É sobre a norma, as proibições e as transgressões. É sobre o movimento e sobre a diferença, sobre a diferença como causa do movimento. É sobre cavernas, sobre habitações e desabitações. É sobre o sedentarismo e o nomadismo. Sobre a atividade e a passividade, sobre ação e reação, vida e morte. É sobre as trajetórias, sobre não saber para onde ir e seguir sempre seguindo. É sobre a mobilidade e a velocidade. Sobre as perseguições, as escapadas, sobre brincar de gato e rato, de esconder e de pegar. É sobre os jogos, e poderia muito bem ser sobre computer games. É sobre as redes, os sistemas, os complexos. É sobre geometria e perspectiva. Sobre esferas e cubos, sobre esferas que atravessam cubos, sobre bolas de pingue-pongue que atravessam paredes de concreto. É sobre planejamentos e sobre colocar os planos em perspectiva. Sobre arquitetura e sobre “arquitetos sem medidas”. Sobre cidades, sobre a fundação de cidades. É sobre migrar de uma cidade para outra. É sobre lugares, sobre perder o lugar, sobre encontrar e reencontrar lugares, sobre eventos fundadores de lugares. É sobre o tempo, sobre a passagem do tempo, sobre perder-se tempo. É sobre o espaço, sobre “o liso e o estriado” (Deleuze e Guattari). É sobre encontros, reuniões e intercursos, sobre desencontros e conflitos. É sobre as exemplificações, as ilustrações, as representações. Sobre metáforas e metafísicas. Sobre modelos e sobre a insuficiência dos modelos. É sobre cifras e números. Sobre a contagem e o dar-se conta, sobre a promessa e o débito. É sobre a continuidade e a interrupção, sobre corrimentos e escorrimentos, fluxos e refluxos. É sobre os começos, sobre os fins, sobre os intervalos, sobre as modulações. Sobre os adiamentos, as transferências, as demoras. É sobre os tiques, sobre os tique-taques. É sobre analogias. Sobre as analogias e as conexões entre começos e fins. É sobre as origens. Sobre as narrativas. Sobre a criatividade. Sobre o excesso. É sobre o personagem conceitual Nômade como “figura emblemática do homem como criador”. É sobre artistas, e é sobre arte. É sobre a fragmentação e a imperfeição. E, naturalmente, é sobre as histórias e sobre os futuros.

História do Futuro é um trabalho sobre muitas coisas e sobre trabalhos que pretendem ser sobre muitas coisas. História do Futuro é sobre aquilo que é, assim como é. História do Futuro é sobre sua exterioridade. Assim como este texto, que é sobre muitas coisas, além de ser sobre o que não é. Este texto é sobre, é exterior a, e depois é, ou terá sido História do Futuro. Este texto fragmentário pretende registrar uma trajetória essencialmente pessoal de um leitor/pesquisador buscando/rebuscando, movendo-se de um texto a outro. Esse mover-se de-a, esse to-and-fro, é uma lógica deste trabalho em progresso.

Jacques Derrida diz que “a leitura é transformadora”. Se as analogias de HF mais uma vez provarem ser produtivas, cada um desses textos terá sido como uma Cidade Mais-que-Perfeita. E se minha escritura provar ser transformadora, terei viajado através desses textos como os Nômades. No entanto, a única garantia imperfeita é de que se trata, este, de um texto de artista – o que garante muito pouco.

Abaixo, forneço uma descrição dos elementos, mecanismos, funcionamentos e personagens de HF. Os textos descritivos são ilustrados com reproduções reduzidas dos desenhos originais, a lápis sobre papel, de 1978. Os desenhos originais jamais foram expostos.iv v

 

História do Futuro

Notas do Texto Descritivo de 1978, com expansões.

Essa seção é ilustrada com reproduções de 11 dos 14 desenhos originais de HF, também de 1978.

 

Introdução

História do Futuro (HF) é um trabalho em progresso, iniciado em 1978 com uma série de 14 desenhos a lápis sobre papel. Os três primeiros desenhos são, mais precisamente, um texto manuscrito ilustrado com diagramas, nos quais os elementos de representação, suas configurações e organização espacial, os movimentos e mecanismos que ativam esse universo ficcional são devidamente nomeados e descritos. Em 1985, o trabalho foi objeto – e forneceu o título – de uma dissertação de mestrado em planejamento urbano (MSc., IPPUR-UFRJ, 1985). Entre dezembro de 1990 e janeiro de 1991, uma série de esculturas, painéis fotográficos e desenhos, além de textos incluídos no catálogo (de minha autoria e do crítico Achille Bonito Oliva), todos relacionados com o trabalho, foram produzidos para a exposição individual Interventi, no Museo Civico Gibellina, Sicília, Itália.

Origens

As primeiras ideias, fundadoras do trabalho, vieram com a leitura do livro “A Escripta Pré-histórica no Brazilvi, do paleontólogo Alfredo Brandão, do qual encontrei um desgastado exemplar em um sebo do Rio de Janeiro. A partir da observação e comparação entre desenhos rupestres encontrados no Brasil e na África e brindando o leitor com fascinantes narrativas, propunha-se o autor a fornecer provas da existência do Pangea, o continente único cercado por oceanos que teria constituído a superfície da Terra no período cambriano: uma proposição que, na época – o livro é de 1937 – era ainda hipotética e especulativa. Depois de sucessivas divisões e separações de territórios, resultantes de cataclismos naturais causados por fissuras da crosta terrestre (que o autor refere, em francês, como os plissements), a configuração geral do planeta se modificou, “fazendo surgir mares de onde era terra, e terra emergir de onde eram mares”.

Meus planos iniciais, projetos de um “arquiteto sem medidasvii, eram de conceber e desenhar um sistema de pontes gigantescas, artefatos humanos destinados a re-unir os continentes atualmente separados, de modo a restabelecer, gradual, progressiva e artificialmente, a primitiva unidade natural do Pangea.

Nos desenhos de 1 a 5 da série I, um modelo arquetípico de ponte – uma simples estrutura de pilares, vigas e lajes – é representado, servindo de ligação entre duas porções de terra. Essa Ponte Simbólica foi mantida nas representações de HF como uma espécie de marco arquitetônico, mas também como memória de minhas primeiras ideias – marco conceitual inaugural – antes mesmo da existência concreta do trabalho.

A ideia de um projeto de restituição da unidade física entre continentes, que inicialmente gerou e justificou as representações gráficas do universo de três mundos superpostos de HF e seus personagens fictícios, expandiu-se significativamente: da mera descrição da mecânica, ou melhor da dinâmica dos movimentos descritos, para reflexões críticas sobre a ideia de unidade como enunciado geral – portanto com caráter de idealidade, de grande narrativa – subjacente ao projeto de afirmação da própria condição humana (idealidade já contida no tratamento dessa mesma condição, necessariamente fragmentária, recorrentemente “como um todo”), e sobre a ideia de progresso – em que a persecução de ideais de perfeição fornece paradigma e método – que empresta ao processo cognitivo (“como um todo”, por assim dizer) um caráter, também, de idealidade.

Assim, aos já pouco modestos desígnios de um “arquiteto sem medidas” incorporaram-se as pretensões de um “filósofo do desmesurado”; mais do que isso, dando lugar a projetos de um filósofo-amador (embora PhD) que é artista-de-ofício (embora auto-didata), às voltas com complexas investigações multidisciplinares. Seria acurado dizer, por exemplo, que foi o rigor necessário ao empreendimento o que me levou (de 1978 a 1980) a frequentar um curso de especialização em urbanismo; depois (de 1980 a 1985) um programa de mestrado em planejamento urbano. Da mesma forma quando, procurando tomar emprestado ao Nômade um pouco de sua redonda mobilidade, transferi-me para a Inglaterra, onde passei 7 anos (de 1994 a 2001) dedicado a meu doutoramento em Artes Visuais.

 

Notas sobre o Mundo Mais-que-Perfeito, o Mundo Perfeito e o Mundo Imperfeitoviii (do Texto Descritivo de 1978)

 

Mundo Mais-que-Perfeito

O Mundo Mais-que-Perfeito é formado pelas Cidades-Mais-que-Perfeitas e pelos Módulos de Destruição. As representações das Cidades Mais-que-Perfeitas (no Mundo Mais-que-Perfeito) não diferem muito das representações de cidades reais. Isso se justifica pelo fato de as Cidades Mais-que-Perfeitas serem desconhecidas (pois não existem), não podendo ser devidamente representadas, como em um retrato. Toda tentativa de representação desse mundo será necessariamente imperfeita e imprecisa. No Texto Descritivo de 1978, diz-se desse mundo que ele mimetiza as configurações do Mundo Imperfeito e do Mundo Perfeito, aos quais se superpõe.

O Mundo Mais-que-Perfeito é um mundo que escapa das categorizações, exceto que é um mundo imaginário. O Mundo Mais-que-Perfeito é uma necessária invenção. Foi necessário inventá-lo para que eu pudesse falar do Mundo Imperfeito e do Mundo Perfeito. E para poder olhar tais mundos em perspectiva, como que à distância. Todos os mundos de HF são metafóricos; mas sem o Mundo Imperfeito e o Mundo Perfeito como metáforas, não seria possível dizer de quê o Mundo Mais-que-Perfeito é uma metáfora.

Mundo Perfeito

Metáfora: Nos textos descritivos de 1978, diz-se do Mundo Perfeito (formado por Pilares do Novo Mundo, Pontes Efêmeras e Plano Ideal) que este é o mundo do Estado.

Tudo nesse mundo é superlativo. Entre o imperfeito e o mais-que-perfeito, esse mundo é o perfeito intermediário. Tudo muda constantemente nos outros dois. Aqui, sempre é o Mesmo. O Mundo Perfeito é idêntico a si mesmo.

Mundo Imperfeito

O Mundo Imperfeito é constituído por continentes, oceanos e pela Ponte Simbólica.

Nos textos descritivos de 1978, diz-se deste mundo que seus habitantes compartilham um projeto comum, dedicando-se a uma busca permanente da perfeição.

A Ponte Simbólica é um símbolo dessa necessidade e dessa causa.

Metáfora: O Mundo Imperfeito é um mundo de produções e trabalhos.

Cavernas

As Cavernas conectam o Mundo Mais-que-Perfeito ao Mundo Imperfeito, atravessando os três elementos constituintes do Mundo Perfeito. As entradas das Cavernas podem ser encontradas no Mundo Mais-que-Perfeito. Suas saídas podem ser encontradas no Mundo Imperfeito. O Mundo Imperfeito é a saída [way-out]. Não há retorno possível – não através das Cavernas – do Mundo Imperfeito para o Mundo Mais-que-Perfeito. Se houver a possibilidade de retornos, estes serão de outro tipo, e por outros meios.

Outros elementos de História do Futuro. Personagens, habitantes, ocupantes

A data: agosto de 2126. Dia do Juízo Final. O lugar: a Terra. Por todo o planeta, uma população angustiada busca esconderijos. Para bilhões, não há para onde ir. Alguns escapam para as profundezas, desesperadamente à procura de cavernas e minas desativadas, ou lançam-se ao mar em submarinos. Outros, descontrolados e às cegas, agem como assassinos. Muitos simplesmente sentam-se, imóveis, esperando pelo fim.” (Paul Davies, Countdown to Doomsday, jornal The Independent (suplemento Science), Londres, 25 de setembro de 1994).ix

 

A citação é de uma história de um futuro bastante diferente de HF (é pouco provável que minha História do Futuro venha a ser publicada no suplemento científico de um jornal; e, apesar das aparências, HF é também sobre o otimismo, em sua produtiva forma de pessimismo). Mas a passagem fornece descrições que podem ser incorporadas – metaforicamente – pelas ficções de HF.

Diz-se, nos textos descritivos de 1978, que as Cidades Mais-que-Perfeitas são habitadas. Os personagens imaginários de HF são nomeados de acordo com as três diferentes ações (ou reações) que possam ter, diante do processo de destruição ativado pela passagem do Módulo de Destruição, durante um Ciclo de Destruição. Tais habitantes são de três tipos:

1. O sujeito da Morte Vulgar

Poderia ser dito deste personagem que ele “simplesmente se senta, imóvel, esperando pelo fim”. Em HF, o sujeito da Morte Vulgar morre com a Cidade Mais-que-Perfeita. Em HF, as ações deste personagem são do tipo passivo.

2. O Sedentário

Poderia ser dito do Sedentário que este personagem “escapa para as profundezas, à procura de cavernas e minas desativadas, ou lança-se ao mar em submarinos”.

O Sedentário busca as entradas das Cavernas, onde encontra refúgio. Através das Cavernas, o Sedentário deixa o Mundo Mais-que-Perfeito, cruza o Mundo Perfeito, para daí chegar ao Mundo Imperfeito. Chegando ao Mundo Imperfeito, o Sedentário se une a outros habitantes desse mundo em sua permanente busca pela perfeição (Texto Descritivo, 1978).

Em HF, as ações do Sedentário são do tipo reativo.

3. O Nômade

O Nômade se move. Em HF, as ações do Nômade são do tipo ativo.

(em diferentes histórias de diferentes futuros, os Nômades poderiam ser descritos como “outros [que], descontrolados e às cegas, agem como assassinos”. Mas esta seria uma descrição imperfeita – e injusta – dos Nômades de HF).

O Nômade se transfere de uma Cidade-Mais-que-Perfeita que acabou de passar por seu Ciclo de Vida e cujo Ciclo de Destruição está para começar. O Nômade se move de um Ciclo de Vida para um outro, próximo, Ciclo de Vida. O Nômade vive em, e vive com as Cidades-Mais-que-Perfeitas.

Se o Nômade conseguir manter sua mobilidade e sua trajetória de uma a outra Cidade-Mais-que-Perfeita, este [it]x conquistará para si mesmo uma forma de eternidade (analogia: no sentido, talvez, da “forma móvel de eternidade” referida por Platão. Uma condição que as criaturas humanas – os personagens de Platão são seres humanos, não diminutas esferas – conquistam através da produção de filhos, dos discursos, dos trabalhos, da política).xi

A existência do Nômade é de um tipo mais-que-perfeito. Nômades são, em princípio, desconhecidos (pois não existem), e não podem ser adequadamente representados, como em um retrato.

Mais será dito sobre o Nômade, abaixo.

Representação dos personagens

O sujeito da Morte Vulgar é representado por vazios, lacunas, vãos, páginas em branco. Isso equivale a dizer que esse personagem é desprovido de representação (ou que suas representações são simplesmente omitidas).

O Sedentário é representado pelo contorno de uma figura antropomórfica (mas não pretende, em princípio, representar uma mulher ou um homem).

O Nômade é representado por uma pequena esfera.

Mais a respeito do Nômade e do Módulo de Destruição

O Nômade se move, transfere-se de uma Cidade-Mais-que-Perfeita para outra, de um para outro Ciclo de Vida. Mas essa ação não pode ser consumada antes de o Ciclo de Construção da Cidade-Mais-que-Perfeita para a qual o Nômade está se transferindo ter sido completado; isto é, quando os três ciclos simultâneos – Construção, Vida e Destruição – estiverem completos. Esta é a situação-limite representada nos desenhos 7 e 11 da Série II: quando os três ciclos simultâneos chegam ao fim, os Módulos de Destruição encontram-se na Posição Alfa de suas respectivas cidades.

Se a Posição Alfa é onde o Módulo de Destruição se encontra imobilizado – por um período infinitesimal de tempo, antes que se inicie a próxima sequência de ciclos simultâneos – o Nômade terá que “negociar” a Posição Alfa com o Módulo de Destruição.

“Negociar uma posição” são termos simplificados para se referir ao encontro entre Módulos de Destruição e Nômades. Outros termos poderiam ser:

Afetar e ser afetado. Atravessar e ser atravessado. Penetrar e ser penetrado. Possuir e ser possuído. Experimentar todo tipo de intercurso. Combater e ser combatido. Confrontar e ser confrontado. Mudar [change] e trocar [exchange]. Provocar. Desafiar. Conflitar-se com. Fazer acordos com. Trair. Trapacear. Romper, romper com. Rebelar-se contra. Diferir. Identificar-se com. Fazer-se um com. Jogar com. Ativar… [etc.com]

O Módulo de Destruição é um imenso cubo.

O Nômade é uma esfera diminuta.

Nômades e Módulos de Destruição se relacionam na base de suas diferenças.

O Nômade desliza quando o Módulo de Destruição estaciona.

O Nômade é o rato, o Módulo de Destruição é o gato.

O Nômade põe o Módulo de Destruição para correr.

O Módulo de Destruição põe o Nômade para correr.

As ações do Módulo de Destruição são ativas em relação às Cidades-Mais-que-Perfeitas, que o Módulo destrói, constrói ou deixa viver. Mas são reativas em relação às ações do Nômade.

Penetrando (etc. etc.) o Módulo de Destruição, o Nômade coloca o universo inteiro (i.e., o universo fragmentário de HF) em movimento (põe o universo para correr), transformando-o. Causa ativa: em História do Futuro, O Nômade é o verdadeiro motor e a causa de todos os movimentos.

 

Fast forward

O Nômade se move.
A motivação do Nômade é a motividade.
O Nômade é uma invenção.
O Nômade é um fundador de cidades.
O Nômade é um iniciador.
O futuro do Nômade é iniciar o presente de uma cidade.
O Nômade é um tradutor [translator].
Os movimentos do Nômade são vetoriais, não direcionais.
O Nômade age por meio de permanentes desterritorializações.
O Nômade age por meio de permanentes reterritorializações.
O Nômade age por meio de permanentes transgressões.
O Nômade age por meio de permanentes incorporações.
O Nômade age por meio de negações e excessos.
O Nômade age por meio de variações, expansões, conquistas, capturas, ramificações.
O Nômade coleciona, mas não constitui álbuns.
O Nômade não é particularmente chegado às generalidades.
O Nômade não é particularmente chegado a generais.
O Nômade é um produtor de mapas dos quais ele constantemente se desprende.
O Nômade age por meio da repetição e da afirmação da diferença (mais de um milhão de vezes).
O Nômade está sempre no meio (“dans le milieu“), mesmo quando está no início ou no fim.
O Nômade está sempre nos espaços-entre.
O Nômade está sempre in-between.
O Nômade vê as coisas como pela primeira vez.

 

“Onde você vai? De onde você vem? O que espera encontrar mais além?” Para o Nômade, “essas perguntas são totalmente inúteis.xii

 

O Nômade é um passante [passer-by].

 

Uma coisa é a geografia do habitante. Outra é a geografia do passante. Um passante faz com que as distâncias se aproximem. Mas logo ali, e outra vez, eis a Distância.

Um passante exercita uma espécie de maestria sobre as dimensões. Dimensões tornam-se perspectiva, geometria. Mas logo ali, e outra vez, eis o Horizonte. Nem sempre pode um passante ter alguma coisa à mão. Mas ele/a sempre tem alguma coisa em vista. Para que um passante possa ter algo em vista, escalar montanhas ou subir em árvores (como o grego Theoros, que escalava montanhas e subia em árvores para liderar o exército para mais além da geografia) pode constituir uma medida lucrativa.

Para um passante, “uma medida lucrativa” é uma noção totalmente diferente da noção que um proprietário de terras tem de “uma medida lucrativa”. Passantes não pertencem a lugar nenhum. As etiquetas do passante relativas à propriedade [propriety] e à posse [property] são reguladas por uma economia própria do próprio. Passar por um campo de flores e subir em árvores podem ser razões suficientes para o passante ser alvejado por tiros. A passagem pode ser facilmente confundida com a invasão.

Um passante tem dificuldades de imediatamente reconhecer os limites e os intervalos (ainda que ele/a imediatamente reconheça quando está sendo alvejado/a!); mas isso não impede que ele/a articule teorias sobre os limites e os intervalos (geo-metria, perspectiva…).

Nos dramas de HF, o Nômade é o protagonista.

 

Analogias. Margens e molduras

Diz-se no Texto Descritivo de 1978 que este universo só faz sentido dentro das margens estritas de meus papéis de desenho.

O Nômade, o Sedentário e o sujeito da Morte Vulgar são personagens conceituais (Deleuze e Guattari) de HF. No entanto, pode vir a ser necessário fazer analogias entre os personagens de HF e o mundo real de pessoas reais, nossas cidades, nossos trabalhos, movimentos, projetos, sonhos e desejos. Com nossas histórias e nossos futuros. Margens devem então ser abertas, e os enquadramentos [frames] expandidos. Toda nova ocorrência do trabalho é uma tentativa de articular novas analogias, de romper os limites da margem, de expandir o alcance dos enquadramentos. As analogias abrem o trabalho para sua exterioridade.

Em uma analogia proposta pelo trabalho História do Futuro, o Nômade é identificado como a “figura emblemática do homem como criador”. Um artista, mas no sentido de que “todo homem é artista” (como desejado por Joseph Beuys).

Mas, se o Nômade fosse humano, da mesma maneira o seriam o Sedentário e o sujeito da Morte Vulgar. Se analogias vierem a ser feitas, todos os três identificariam um mesmo homem, ou uma mesma mulher. Apenas nesse caso poderiam ser referidos como “ele”, ou “ela”. Eles e elas, como nós.

 

 

Milton Machado é artista plástico. Arquiteto pela FAU / UFRJ (1970), mestre em Planejamento Urbano pelo IPPUR / UFRJ (1985) e doutor em Artes Visuais pelo Goldsmiths College University of London (2000). Desde 1970, tem participado de diversas exposições individuais e coletivas no Brasil e no exterior. Possui textos publicados em livros, revistas, jornais e websites. É professor associado do Departamento de História e Teoria da Arte e do PPGAV-Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Escola de Belas Artes EBA / UFRJ. É pesquisador do CNPq.

Informações curriculares mais detalhadas podem ser encontradas em:

http://www.iniva.org/library/archive/people/m/machado_milton
http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=artistas_biografia&cd_verbete=2810&cd_idioma=28555&cd_item=1
http://www.nararoesler.com.br/artistas/milton-machado

 

 

i Este texto foi traduzido de uma seção da tese After History of the Future: (art) and its exteriority, PhD Fine Arts, Goldsmiths College University of London, 2000. Aparece aqui com algumas modificações.

ii Londres e 1999 fazem parte de histórias do futuro.

iii O programa de doutorado que cursei (PhD Fine Arts, Goldsmiths College University of London) conjugava produções de estúdio e produções teóricas.

iv Os desenhos incluídos em Interventi eram novos originais, produzidos em Gibellina, portanto datados de 1990, numa tentativa de reproduzir os originais de 1978, inevitavelmente incorporando novas imperfeições.

v Os 14 desenhos originais, assim como diversos outros itens do trabalho, foram finalmente expostos no Brasil em 2010, na 29ª Bienal de São Paulo, da qual o artista participou como convidado.

vi Alfredo Brandão, A Escripta Pré-histórica no Brazil, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro 1937.

vii Nessa época eu estava especialmente interessado e atento às propostas de arquitetura conceitual de grupos como Archigram, Superstudio, de Yona Friedman, entre outros que me influenciaram.

viii A dissertação História do Futuro, de 1985, desenvolve e expande, com maior rigor, o que no Texto Descritivo de 1978 vem proposto como enunciações meramente mecânicas. São descrições, propriamente, de um universo inventado, e como tal serão aqui reproduzidas.

ix “The date: August 2126, Doomsday. The place: Earth. Across the Earth a despairing population attempts to hide. For billions there is nowhere to go. Some people flee deep underground, desperately seeking out caves and disused mine shafts, or take to the sea in submarines. Others go on the rampage, murderous and uncaring. Most just sit, waiting for the end.”

x No original em inglês, os personagens de HF são referidos pelo pronome de terceira pessoa do singular “it“. Tratamento adequado, por exemplo, quando se trata de diminutas esferas, como é o caso do Nômade.

xi É sempre com especial cautela que faço notar que o Nômade de História do Futuro (assim como o Sedentário), cuja “tarefa” principal seria a afirmação da diferença, de modo a conquistar e garantir a continuidade do (seu) movimento, antecede em 2 anos o lançamento editorial de Mille Plateaux, obra essencial de Gilles Deleuze e Felix Guattari (Les Éditions de Minuit, Paris 1980). Qualquer leitor familiarizado com este livro lembrará a atenção que os autores dão ao nômade, importante personagem conceitual de suas reflexões, e à afirmação da diferença como condição fundamental para o devir, o movimento e a transformação. Para além da necessária cautela, assinalo a honrosa sintonia com especial regozijo.

xii Tais perguntas são de Deleuze e Guattari. A passagem de onde provêm – um trecho mais longo em que os autores procuram “sintetizar as principais características do rizoma” – é a seguinte: “Onde você vai? De onde você vem? O que espera encontrar mais além? Estas são perguntas totalmente inúteis. Fazer tábula-rasa, iniciar ou começar de novo do grau-zero, buscar uma origem ou um fundamento – tudo isso implica uma falsa concepção da viagem e do movimento (uma concepção metodológica, pedagógica, iniciatória, simbólica…). Mas Kleist, Lenz e Büchner vislumbram uma outra modalidade de viagem e de movimento: prosseguindo do meio, através do meio, ir e vir ao invés de começar e terminar… O meio não é, de modo algum, uma média; ao contrário, é onde as coisas adquirem velocidade.” Gilles DELEUZE e Felix GUATTARI, “One Thousand Plateaus”, tr. Brian MASSUMI, Athlone Press, 1988, p22-25.

 

“Iracema” de José Maria de Medeiros – entre pintura histórica e pintura de paisagem | de Ana Maria Tavares Cavalcanti

Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema.

Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna e mais longos que seu talhe de palmeira.

O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado.

[José de Alencar, 1865]

O jovem açoriano José Maria de Medeiros (1849-1925 ou 26)1 chegou ao Brasil em 1865, ano em que José de Alencar publicou Iracema. Quase vinte anos mais tarde, já então professor de Desenho Figurado da Academia Imperial das Belas Artes, Medeiros escolheu um trecho do romance de Alencar para tema da pintura que apresentou na Exposição Geral de 1884 (fig.1).

Os professores da Academia, Mafra, Victor Meirelles e Pedro Américo, elogiaram a tela:

Sem que seja movida pela natural simpatia entre colegas que se estimam, não pode a Comissão deixar de assinalar o quadro do Sr. professor José Maria de Medeiros, intitulado = Iracema = , como um dos melhores da atual exposição, não tanto pela protagonista do drama, como principalmente pelo teatro em que se passa aquela cena que com tanto talento descreveu José de Alencar. É uma paisagem pintada por mão de mestre: desenho correto, colorido brilhante e harmonioso, perfeita observação dos efeitos de perspectiva aérea dão a essa paisagem, verdadeiramente tropical, um céu luminoso e profundo, uma vegetação luxuriosa e cheia de vida, e águas da mais límpida transparência, especialmente naquela onda que arrebenta no primeiro plano do quadro.1

Com o aval do corpo acadêmico, o quadro foi adquirido pelo governo para figurar na Pinacoteca da Academia e hoje integra o acervo do Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro.

Se proponho algumas reflexões a partir dessa tela é porque, de modo inesperado e nada intencional, ela sinaliza uma mudança no meio artístico carioca em meados da década de 1880: a perda de prestígio da pintura histórica e sua substituição, na preferência do público e da crítica, pela pintura de paisagem, cada vez mais valorizada como signo de modernidade e brasilidade.

Porém, antes de discutir a recepção crítica do quadro de José Maria de Medeiros, procuremos distinguir as escolhas do pintor e compreender o projeto artístico que fundamenta sua Iracema. Sem dúvida, o quadro foi pensado para a Exposição Geral, de modo que, uma das preocupações do artista era não passar despercebido em meio a tantas outras pinturas. Nota-se o cuidado de Medeiros ao pintar com minúcias as pequenas pedrinhas na areia da praia, o brilho da onda do mar, as gaivotas voando ao longe, a vegetação abundante, criando um efeito de realidade para satisfazer o espectador, envolvendo-o nas dimensões da tela como num cenário.

A figura da índia demonstra outra preocupação do artista: manter-se fiel à sua formação acadêmica, aos ensinamentos do mestre Victor Meirelles. A pose de Iracema – com a mão sobre o peito e uma das pernas levemente dobrada – nos faz pensar na estatuária clássica (fig.2) e mantém o decoro de um nu oficial, mesmo que adaptado ao realismo vigente. Se estivesse pintada em tamanho natural, Iracema pareceria muito próxima de nós, mas assim como se apresenta sugere uma distância respeitosa e adequada.

Esse mesmo decoro se percebe na escolha do tema retirado do romance de José de Alencar, consenso nacional que pode ser resumido como uma alegoria do processo de colonização. O nome de Iracema é um anagrama de “América”, e Martim, nome do personagem português pelo qual a índia se apaixona, uma referência a Marte, o deus grego da guerra. O encontro entre os dois traz desordem e sofrimento. Mas o triste fim de Iracema é também o início da formação do povo brasileiro, simbolizado em Moacir, seu filho com Martim.

Da narrativa do romance, Medeiros só podia pintar um pequeno instante. O catálogo da Exposição traz uma descrição do momento escolhido:

Inquieta Iracema pela ausência do esposo, sai em busca dele e chega à beira do lago, já quando as doces sombras da tarde vestiam os campos. Encontrando ali fincada, na areia da praia, a flecha do guerreiro transpassando um guaiamum, e de que pende um ramo de maracujá, enchem-se-lhe os olhos de lágrimas, interpretando as ordens que aquele símbolo lhe revela – como o guaiamum deve ela andar para trás, e como o maracujá, que guarda a flor até morrer, conservar a lembrança do esposo.

Sem volver o corpo nem desviar os olhos da simbólica flecha, a filha dos Tabajaras retrai lentamente os passos.3

As palavras são bem próximas das escritas por Alencar4. Nessa passagem está sintetizada a impossibilidade de um encontro feliz entre índios e portugueses. Iracema compreende a mensagem codificada na flecha fincada na areia, deve respeitar a vontade de Martim e deixá-lo partir. Há um aspecto muito significativo na escolha de José Maria de Medeiros: ele expõe uma mensagem cifrada, usa a imagem já pronta deixada pelo escritor, e faz a alegoria de uma alegoria. Se levarmos adiante esse pensamento, podemos afirmar que Iracema, ao retrair os passos no quadro de Medeiros, além de retirar-se da vida de Martim, está também “deixando a cena” para que reste apenas a paisagem, o que de fato estava ocorrendo na pintura brasileira naquele ano de 1884. Mas afinal, como começou essa história? Que papel coube à pintura de paisagem na produção artística brasileira no século XIX?

Ao ler os catálogos das Exposições Gerais da Academia, constatamos que as paisagens estiveram presentes em todas elas. Para sermos mais exatos, é necessário dizer que mesmo antes da instituição das Exposições Gerais, já na primeira exposição de alunos e professores organizada por Debret em 1829, o público viu paisagens.5

Nas mostras oitocentistas nacionais, figuraram diversos tipos de pintura de paisagem. Grande parte era composta por paisagens brasileiras, especialmente vistas do Rio de Janeiro, realizadas por pintores nacionais ou estrangeiros. Também eram apresentadas paisagens produzidas por alunos da Academia como trabalhos de curso. Os catálogos especificam que muitos desses estudos eram feitos “do natural”, ou indicam o local de onde a vista foi “tomada”. Por exemplo, em 1866, consta que o aluno Antônio Araújo de Souza Lobo expôs uma “Paisagem: vista de uma parte da cidade no Rio de Janeiro, tomada da Praia Vermelha, ao pôr-do-sol”, conforme texto do catálogo.6

Outra fonte importante para a pesquisa são os jornais cariocas do período, pois ajudam a compreender a relação do público com as exposições de belas artes. Embora o maior destaque coubesse aos eventos teatrais e musicais da cidade, as artes plásticas não deixaram de ser assunto de cronistas e cartunistas. Nas crônicas do dia a dia, grande parte das obras comentadas eram paisagens. Uma charge de Ângelo Agostini sobre a exposição de trabalhos dos alunos da Academia em 1883 (Fig.3) demonstra a acolhida que o público em geral, e os jornalistas em particular, davam aos paisagistas. Na legenda do desenho, após ironizar os quadros do concurso de pintura histórica dos alunos de Zeferino da Costa (representando São Jerônimo), Agostini afirma:

Os únicos trabalhos dignos de serem vistos e admirados, foram os dos alunos Vasquez e Caron, discípulos de Grimm, e que hoje acham-se expostos à rua Sete de Setembro, casa De Wilde.

Mestre Grimm entendeu e muito bem que a verdadeira escola de paisagem é a natureza, e não as paredes da Academia, como julgaram até hoje os professores que lá ensinavam.7

Esse comentário é representativo da opinião da crítica – a pintura de paisagem ao ar livre era elogiada e contraposta aos princípios acadêmicos que davam preferência aos assuntos históricos, religiosos ou mitológicos.

Essa oposição entre paisagistas e pintores de história foi assunto repetido em inúmeros artigos jornalísticos, e acentuou-se no final do século, após a Proclamação da República. Vejamos, por exemplo, alguns trechos de um artigo sobre a Exposição Geral de 1890, a última organizada pelos antigos mestres e inaugurada em março daquele ano:

Quem visita a nossa Academia de Belas Artes não sente a impressão agradável do viajante que volta à sua terra, do homem que entra em sua casa. O ar que ali se respira não é o nosso ar, aqueles não são os nossos costumes, não é aquela a nossa gente, não é assim a nossa paisagem, e portanto, aquela não é a nossa arte, não é a arte nacional, não é a fixação na tela e no mármore da vida, da alma brasileira.

Na galeria em que estão expostos os quadros novos, em cuja honra foram abertas as portas do velho edifício, que ali vive esquecido em um beco, há aqui e acolá umas abertas para esse céu; (…) é preciso procurar a nossa natureza numa pequena paisagem que Hypolito Caron pintou em Juiz de Fora, em uma outra de Pombal, de Rodolpho Amoedo, e em outras de França Junior, de Visconti, de Baptista da Costa, e de poucos mais.

(…), vê-se que os nossos artistas vão fugindo à inspiração que dominava a geração a que sucedem e que está representada nos quadros da galeria n.2, em tempo classificados na Academia como constituindo a arte nacional. O que é que inspirava então os nossos artistas, e lá está representado? Era a Morte de Sócrates, S. João Baptista no cárcere, a degolação do referido S. João, a flagelação de Cristo (que ainda há pouco mais de um ano serviu de tema para concurso), Eliezer e Rebeca, um lavrador dos campos… de Farsália, Sócrates afastando Alcebíades do vício (esta questão palpitante de interesse inspirou nada menos que dois artistas), Caim amaldiçoado, Moisés recebendo as tábuas da lei, Jugurta, Telêmaco, toda a mitologia, todo o catecismo, toda a história de Roma.

E o público não ia ver as galerias, dizia-se. Para que? Que se importa o público com Sócrates, e com Moisés, e com Telêmaco?8

O mesmo autor continua o comentário na semana seguinte:

O que consola, na atual exposição de pintura, à falta de cor local, é a independência que vão revelando os pintores. O confronto dela com a galeria da chamada escola nacional dá esperanças de futuro lisonjeiro, e demonstra a reação espontânea dos moços contra a rotina que sempre predominou na Academia.

Basta ver os paisagistas. O bom Grimm arrancou-os das salas sem luz, onde eles copiavam paisagens de litografias baratas e levou-os para o campo, pô-los na escola da natureza; aí eles aprenderam a pintar por si, como Vasquez, como Caron, como Ribeiro, como França Junior, como Parreiras, e a princípio todos eles tinham mais ou menos a maneira do mestre; mas, ao fim de algum tempo, até dessa influência se libertaram, e hoje cada um deles tem a sua individualidade.9

O articulista da Gazeta de Notícias associa a pintura de paisagem à originalidade e à expressão nacional. Na verdade, essas ideias começaram a ganhar força na década de 1850, quando Manuel de Araújo Porto Alegre, então diretor da Academia (1854-57), se esforçava para «despertar nos estudantes a consciência de que uma ‘pintura nacional’ floresceria mediante a observação sistemática da natureza brasileira. (…), a substituição de modelos europeus pela contemplação da natureza viva [seria uma forma] de fomentar a ‘arte nacional’».10

Essa função atribuída à pintura de paisagem – representar a nação brasileira – propiciou uma diferença em relação ao contexto europeu. Na hierarquia acadêmica engendrada na Europa, vinham em ordem decrescente de valor a pintura histórica, a pintura de paisagens e as naturezas-mortas. No decorrer do século XIX, nota-se um desinteresse progressivo do público dos Salões parisienses pela pintura histórica e uma valorização da pintura de paisagem.

Essa valorização foi compreendida como um prenúncio da pintura moderna, já que indicaria a conquista de uma autonomia da arte. Ao pintar paisagens, o artista já não estaria preocupado em divulgar ideias ou contar histórias, mas em transmitir suas impressões estéticas, sensações visuais e sentimentos diante da natureza.

Procurando refrear essa tendência, que levaria ao fim da pintura histórica, as Academias de Belas Artes em todo o mundo reafirmaram a hierarquia neoclássica dos gêneros, baseando-se na convicção de que o essencial da arte da pintura era a representação das nobres ações humanas. Essa mesma concepção estava presente na Academia Imperial de Belas Artes, no Brasil. No entanto, já em 1816, ano da chegada ao Rio de Janeiro dos artistas que compunham a Missão Artística Francesa, seu chefe, Lebreton, reconhecia a importância que a pintura de paisagem teria em nosso país. Em carta ao Conde da Barca, após definir o gênero histórico como o “grande gênero”, diferenciando-o da simplesmente denominada “pintura de gênero” que abarcaria “a paisagem, as cenas familiares e até os mínimos pormenores da natureza”, Lebreton afirmava:

É fora de dúvida que a pintura de gênero é útil e agradável: penso ainda que em país como este, ao qual a natureza prodigalizou todas as riquezas, os Pintores de gênero terão uma mina inesgotável de assuntos de quadros, e que o gosto dos particulares sentirá e encorajará de preferência a pintura de gênero, em vez da outra.11

Embora quase deplorando o fato, já que defendia a superioridade da pintura histórica, Lebreton percebia a inevitável preferência que os particulares iriam dedicar à pintura de paisagem no Brasil.

Entre os brasileiros, os próprios mestres acadêmicos tomaram atitudes contraditórias, mesmo que em teoria considerassem menor a pintura de paisagem.

Ora, no caso do Brasil, uma particularidade interferiu na doutrina acadêmica. O nacionalismo típico do neoclassicismo, que em cada país estimulou a glorificação de heróis e cenas históricas, aqui fomentou o enaltecimento da natureza. Não foi apenas a pintura histórica a encarregada de retratar o país e exaltar a brasilidade, esse papel também coube à pintura de paisagem. Havia uma relação estreita entre os dois gêneros, pois um dos orgulhos nacionais sempre foi a exuberância e beleza das paisagens naturais. É inegável que grande parte de nossas pinturas históricas situa-se ao ar livre e a natureza é “personagem” que participa da composição.

Esse é o caso da tela de José Maria de Medeiros, ora analisada. Vejamos o que sobre ela escreveram alguns críticos seus contemporâneos: Oscar Guanabarino, Angelo Agostini e Gonzaga Duque.

No Jornal do Commercio de 28 de agosto de 1884, Guanabarino informa que no salão principal da Exposição vemos, “em primeiro lugar, a tela do Sr. José Maria de Medeiros, professor de desenho figurado na Academia”12. Agostini, escrevendo em 26 de outubro na Revista Illustrada, também menciona o cargo de professor de Medeiros que, “como tal, tem obrigação de fazer os maiores esforços para apresentar quadros dignos da sua posição”13. Gonzaga Duque, em seu livro A Arte Brasileira, cuja primeira edição é de 1888, logo antes de tratar da Iracema de Medeiros, afirma que o “professor de desenho figurado na Academia (…) tem-se mostrado um artista modesto e tímido”14. O fato dos três mencionarem a ligação de Medeiros com a Academia indica o quanto essa informação era considerada importante. Num ambiente marcado pela presença da instituição que era palco de disputas e polêmicas, a posição de um artista não era indiferente. Mas continuemos a ler os críticos.

Quanto à figura de Iracema, Oscar Guanabarino se mostra insatisfeito e aponta inúmeros defeitos:

Iracema está completamente deslocada do seu centro de gravidade. Fazendo um movimento lento de recuar, acha-se com a perna direita fora da perpendicular devendo atuar o peso do corpo e forçosamente sobre o pé esquerdo que no entanto não se apóia no chão. Notamos também ausência de expressão fisionômica.15

Angelo Agostini é mais generoso, apesar do humor ferino quando se refere a outra tela do mesmo pintor:

O Sr. Medeiros expôs só um quadro, Iracema, e, lá para que digamos, não se saiu muito mal. Se bem que a figura não seja capaz de inspirar-nos uma paixão, todavia reconhecemos na sua execução bastante progresso e uma diferença enorme de uma célebre Lindóia ou Pinóia que o mesmo expôs no Liceu de Artes e Ofícios.16

Dos três, o mais lacônico e contundente é Gonzaga Duque:

Esta figura de forma alguma satisfaz ao espectador. É roliça e inútil.17

Percebe-se nas críticas dos dois últimos (Agostini e Gonzaga Duque) o desencanto com a figura feminina que nada tem de sedutora. Lembremo-nos que também os professores da Academia se abstiveram de elogiar “a protagonista do drama”, conforme citado anteriormente. Não esqueçamos que na exposição de 1884, outros nus femininos, expressivos e sensuais, foram muito admirados. Estudo de mulher de Rodolpho Amoedo, e O Descanso do Modelo de Almeida Junior, para mencionar os mais conhecidos, foram expostos pela primeira vez e receberam muitos aplausos. Em comparação, a índia de Medeiros aparecia sem graça e insatisfatória.

Mas se a figura de Iracema não agradou, os críticos elogiaram a paisagem, “o palco em que se passa a cena”, para usar as palavras dos mestres encarregados do parecer sobre a Exposição.18 Vejamos os comentários de Guanabarino:

O fundo em compensação tem uma vegetação bem tratada, a areia da praia é muito boa e o mar, soprado por viração fresca, encrespa-se com bastante naturalidade e forma uma onda, quebrada em parte, que se move bem.

O esforço de Medeiros foi bem sucedido, os detalhes que reproduzem a textura da areia, os efeitos do vento no mar, foram percebidos e admirados. No mesmo tom, escreve Angelo Agostini:

Não sendo obrigado a ficar em êxtase diante da Iracema, os nossos olhos percorreram o resto do quadro e admiraram o vasto horizonte, o céu, o mar, a vegetação, a praia, e, digamo-lo em honra do Sr. Medeiros: ficamos muito satisfeitos; nem esperávamos tanto.20

Também Gonzaga Duque reconhece o valor da paisagem, pois “o fundo, e o primeiro plano, em que há uma onda que se afasta da praia, são perfeitamente pintados, magistralmente pintados”xxi, diz ele.

Em janeiro de 1888, José Maria de Medeiros pediu transferência da cadeira de Desenho Figurado para a de Paisagem, Flores e Animais alegando que a última “está mais de acordo com a vocação do suplicante, (…) na qual poderá prestar maior serviço ao estudo da arte”21. Num primeiro momento, o Diretor Antonio Nicolau Tolentino manifestou-se a favor da transferência, escrevendo em ofício ao Conselheiro Barão de Cotegipe, Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Império:

O serviço público nada perderá com a requerida transferência do professor, persuado-me que pelo contrário poderá ganhar, em conseqüência da natural disposição e gosto do peticionário para a pintura de paisagem manifestados no quadro denominado “Iracema”, de propriedade desta Academia, e que lhe mereceu do Governo Imperial ser promovido a Oficial da Ordem da Rosa.22

Através desses documentos, ficamos sabendo que Iracema foi considerada uma prova do talento de Medeiros para a pintura de paisagem, vocação declarada pelo próprio pintor. Assim, embora se classifique como pintura histórica, Iracema é, de fato, um compromisso entre a pintura de história e a paisagem.

Essa tela é também o marco da passagem do tempo. Quando foi exposta, já parecia antiquada em seu propósito. Se Gonzaga Duque escreveu que era “uma obra concluída com cuidado, mas infeliz”23, é porque Iracema cumpriu, na tela de Medeiros, o destino escrito por José de Alencar:

Era sempre com emoção que o esposo de Iracema revia as plagas onde fora tão feliz, e as verdes folhas a cuja sombra dormia a formosa tabajara.

Muitas vezes ia sentarse naquelas doces areias, para cismar e acalentar no peito a agra saudade.

A jandaia cantava ainda no olho do coqueiro; mas não repetia já o mavioso nome de Iracema.

Tudo passa sobre a terra.24

O mesmo destino teve a Iracema na pintura. Foi-se a personagem, ficou a paisagem.

Numa charge publicada na Revista Illustrada em 31 de agosto de 1884 (fig.4), Agostini brinca com a situação da personagem:

Iracema vendo uma flecha fincada na areia procura imitar-lhe a posição vertical. Porém, à vista da flor de maracujá e da ginástica inesperada de um caranguejo trepado na flecha, a índia admirada recua pé atrás pé, para não perturbar o crustáceo nos seus exercícios acrobáticos.25

A alegoria que no romance de José de Alencar fora aceita com tranquilidade, na pintura se tornara motivo de riso, por ser artificial. Nada além da natureza, sem construções intelectuais, seria apropriado para expressar o caráter nacional e moderno desejado para a arte brasileira no final do século XIX.

 

Figura 1 - José Maria de Medeiros – Iracema, 1884 óleo s/tela – 167,5 x 250,2 cm Rio de Janeiro, Museu Nacional de Belas Artes
Figura 2 - Vênus de Médicis
Figura 3 - Angelo AGOSTINI. Revista Illustrada, ano 8, n.365. Rio de Janeiro, 27 de dezembro de 1883.
Figura 4 - Angelo Agostini. Revista Illustrada, ano 9, n.389. Rio de Janeiro, 31 de agosto de 1884, p.5 (detalhe)

 

* Ana Maria Tavares Cavalcanti, professora de História da Arte da Escola de Belas Artes da UFRJ, é doutora em História da Arte pela Université de Paris 1 Panthéon-Sorbonne.

Texto apresentado originalmente no Simpósio Internacional “Paisagem e iconografia nacional na América Latina”. FAU-USP, novembro de 2007.

NOTAS

[1]  Não há consenso entre os autores quanto ao ano de morte de Medeiros. Alguns mencionam 1925, outros 1926.

[2]   Ata da Sessão em 17 de Dezembro de 1884. Atas das Sessões do Corpo Docente da Academia Imperial das Belas Artes – 1882 – 1890, p.14. Arquivo do Museu D. João VI da EBA/UFRJ. [transcrição disponível em http://www.dezenovevinte.net/documentos/Atas_de_1883_a_1885.pdf contribuição de Ana M. T. Cavalcanti]

[3]  LEVY, C.R. Exposições Gerais da Academia Imperial e da Escola Nacional de Belas Artes. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1990, p .271.

[4]  Iracema de José de Alencar está disponível em  <http://www.bibvirt.futuro.usp.br>

[5]   Os dados coletados em catálogos e jornais e analisados pela autora são resultado da pesquisa intitulada Pintura de paisagem, modernidade e o meio artístico carioca no final do século XIX financiada pela FAPERJ e realizada entre 2002 e 2003. Ver também o artigo: CAVALCANTI, A. M. T. A pintura de paisagem ao ar livre e o anseio por modernidade no meio artístico carioca no final do século XIX. Cadernos de Pós-Graduação (IAR/UNICAMP), v.6, p.28 – 34, 2002.

[6]  LEVY, C.R. Exposições Gerais da Academia Imperial e da Escola Nacional de Belas Artes. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1990, p.169.

[7]  AGOSTINI, Ângelo. Charge na  Revista Illustrada. Rio de Janeiro, 27 de dezembro de 1883. Coleção Biblioteca Nacional.

[8]  Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro, 31 de março de 1890, p.1. Autor anônimo. [Acervo da Biblioteca Nacional, Microfilme PR-SPR 00061].

[9] Gazeta de Notícias. 7 de Abril de 1890, p.1.

[10]  SQUEFF, Letícia Coelho. Entre o urbano e o selvagem : a paisagem brasileira no pensamento de Araújo Porto Alegre. Comunicação no I Colóquio Internacional de História da Arte – CBHA / CIHA, São Paulo, 5 – 10 de setembro de 1999.

[11]  Carta de Lebreton, datada de 12 de junho de 1816 e endereçada ao Conde da Barca. In: BARATA, Mário. “Um manuscrito inédito de Lebreton”. In: Revista do SPHAN, n.14, 1959, p. 287.

[12] GUANABARINO, Oscar. A Exposição de Bellas-Artes. FOLHETIM DO JORNAL DO COMMERCIO de 28 de agosto de 1884. Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, 1 de setembro de 1884 – Ano 63 – N. 240, p. 1. [transcrição por Fabiana Guerra Granjeia disponível em http://www.dezenovevinte.net/artigos_imprensa/guanabarino_1884.htm]

[13]  AGOSTINI, Angelo. Salão de 1884 – IV. Revista Illustrada. Rio de Janeiro, 26 de outubro de 1884 – Ano 9, n. 393, p.3. [Biblioteca Nacional (RJ) Seção de Obras Raras, Microfilme – PR – SOR 00167 (5)]

[14]  GONZAGA DUQUE. A Arte Brasileira. Introdução e notas de Tadeu Chiarelli. Campinas: Mercado das Letras, 1995, p. 205.

[15]  GUANABARINO, p.1.

[16]  AGOSTINI, p.3.

[17]  GONZAGA DUQUE, p.205-206.

[18] Ata da Sessão em 17 de Dezembro de 1884. Ver nota 3 desse texto.

[19] AGOSTINI, p.3.

[20] GONZAGA DUQUE, p.206.

[21] Carta de Medeiros à Princesa Isabel, reproduzida em ofício dirigido pelo Ministro do Império ao Diretor da  Academia, em 14 de janeiro de 1888. Acervo do Museu D. João VI da EBA/UFRJ.

[22] Carta de Tolentino ao Barão de Cotegipe, datada de 17 de janeiro de 1888. Acervo do Museu D. João VI da EBA/UFRJ.

[23] GONZAGA DUQUE, p.206.

[24] ALENCAR, José de. Iracema. São Paulo: Ática, 2002, p.82.

[25] AGOSTINI, Angelo. « O Salão de 1884 – 1o». Revista Illustrada – Ano 9 – n.389. Rio de Janeiro, 31 de agosto de  1884, p.4-5.

 

Direito e arte: considerações sobre cultura material e imaterial | de Catherine A. E. Fleury

INTRODUÇÃO

A arte é “um universo de discurso” e o trabalho do artista não segue regras fixas. O Direito é a “técnica da coexistência humana”, impondo normas de conduta e organização. A Propriedade Intelectual, um direito imaterial que abarca os direitos relativos às obras literárias, artísticas e científicas, divide-se em dois ramos distintos: o de Direito de Autor e o de Propriedade Industrial. Ao primeiro, cabe o ordenamento relativo aos direitos autorais das obras intelectuais estéticas fundamentado nos direitos da personalidade, nos seus aspectos morais, mas inserindo-se também na questão patrimonial; o segundo abrange a obra intelectual de cunho utilitário, em todos os seus direitos, mas vinculado a interesses técnicos e científicos.

Considerando que a arte tem um caráter social, assim como o conhecimento e os produtos culturais são de caráter social ou têm uma base social, percebe-se uma diversidade de linguagens utilizadas para descrever as relações entre as obras de arte e seu contexto social1. A atividade artística sempre esteve inserida no mundo do trabalho e a definição de suas atribuições e prerrogativas sempre foi questionada e reivindicada. O artista lutou pelo uso da assinatura e hoje seus direitos autorais são assegurados por lei.

A Declaração dos Direitos Humanosii, promulgada pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1948, preceitua que toda pessoa tem o direito à proteção dos interesses morais e materiais quando for produtora de suas obras científicas, literárias ou artísticas. A Constituição Federal de 1988, no seu artigo 5o, inciso XXVII, confere e explicita dos direitos aos criadores intelectuais ao afirmar que “aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar”. A Lei no 9610 de 19 de fevereiro de 1998 é a que regula o Direito de Autor e Conexos no país. Segundo Carlos Alberto Bittar,

… pode-se assentar que o Direito de Autor ou Direito Autoral é o ramo do Direito Privado que regula as relações jurídicas, advindas da criação e da utilização econômica de obras intelectuais estéticas e compreendidas na literatura, nas artes e nas ciências. Como direito subjetivista e privatista, recebeu consagração legislativa em função da doutrina dos direitos individuais, no século XVIII3.

Bittar considera ainda que

… o objetivo do Direito de Autor é a disciplinação das relações jurídicas entre o criador e sua obra, desde que de caráter estético, em função, seja da criação (direitos morais), seja da respectiva inserção em circulação (direitos patrimoniais), e frente a todos os que, no circuito correspondente, vierem a ingressar (o Estado, a coletividade como um todo, o explorador econômico, o usuário, o adquirente de exemplar)iv.

Assim, os direitos morais se relacionam à defesa da autoria da obra, enquanto os direitos de ordem patrimonial se referem à sua utilização econômica. Estes últimos estão, por sua natureza, relacionados com os meios de comunicação com os quais a criação intelectual se concretiza na prática (publicações, exposições, transmissões etc.).
Os direitos da personalidade, para Bittar, são “aqueles que se referem a relação da pessoa consigo mesma, quanto a características extrínsecas do ser e a suas qualificações psíquicas e moraisv”. Abarcam, portanto, o homem em si e em suas projeções para o exterior, como os direitos à vida, à honra, à imagem, à intimidade e outros. Por direitos intelectuais, entende-se que são aqueles referentes a relações entre a pessoa e as coisas (bens) imateriais que cria e traz à luz os produtos de seu intelecto, expressos sob determinadas formas dos quais detêm monopólio. Esses direitos, entretanto, incidem sobre as criações humanas que se manifestam em formas sensíveis, estéticas ou utilitárias, voltando-se à sensibilização e à transmissão de conhecimentos, como também à satisfação de interesses materiais do homem na sua vida cotidiana.

No mundo do Direito, de acordo com essa diferenciação, estipulam-se dois sistemas jurídicos especiais: o do Direito de Autor e Conexos, reservado às obras que por si realizam finalidades estéticas e de conhecimento, e o do Direito de Propriedade Industrial, destinado às obras de cunho utilitário.
No mundo da Arte existe uma distinção (tema bastante controverso) entre o que se considera Arte (arte pura, autônoma) e Artes Aplicadas, nas quais se inserem o Design e o Desenho Industrial. A diferenciação entre Design e Desenho Industrial é bem complexa e envolve discussões contraditórias, a partir mesmo de suas definições.

CONSIDERAÇÕES SOBRE A PROPRIEDADE INTELECTUAL

O Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), criado pela Lei 5.648 de 11 de dezembro de 1970, é o órgão brasileiro responsável pelas marcas, patentes, desenho industrial, transferência de tecnologia, indicação geográfica, ferramental relacionado à Tecnologia da Informação e da Comunicação (hardware e redes) e topografia de circuito integrado. A proteção das cultivares pode ser obtida por meio da concessão de Certificado de Proteção de Cultivar concedido pelo Serviço Nacional de Proteção de Cultivares (SNPC), vinculado ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA).

A Biblioteca Nacional, localizada no estado do Rio de Janeiro e os seus postos estaduais de Escritórios de Direitos Autorais são responsáveis pelo registro e averbação das obras artísticas e intelectuais. As obras de artes visuais podem ser registradas na Escola de Belas Artesvi, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
No que tange aos chamados “conhecimentos tradicionais”, existem várias discussões entre juristas, comunidades locais e organizações mundiais de proteção da Propriedade Intelectual acerca da adequação dos direitos autorais. A Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI)vii trata conhecimentos tradicionais como um novo tema a se definir, instituindo o “Comitê Intergovernamental sobre Propriedade Intelectual, Recursos Genéticos, Conhecimento Tradicional e Folclore”, para estudar formas de regulamentar o assuntoviii.

A Propriedade Intelectual, no Brasil, está disciplinada principalmente pelas leis de Propriedade Industrial (Lei no 9.279/96ix), 9.456/97 (Cultivares), 9.609/98 (Software) e 9.610/98 (Direitos Autorais), além de tratados internacionais, como as Convenções de Bernax (Decreto no 75.699de 06/05/75, sobre Direitos Autorais) e de Paris, sobre Propriedade Industrial (Decreto no 1.263 de 10/10/94), e outros acordos como o Trade Related Intelectual Property Rights – TRIPs (Decreto no 1.355 de 39/12/1994). É também preceito Constitucional, estando arrolado entre os Direitos e Garantias Fundamentais, com previsão nos incisos XXVII, XXVIII e XXIX, em consonância aos incisos XXII e XXIII, do artigo 5º da Constituição Federal.

A divisão da Propriedade Intelectual entre direitos do Autor e Propriedade Industrial nos remete a uma questão filosófica recorrente no pensamento ocidental: a distinção entre seres e coisas, onde as grandes dicotomias – natureza/cultura, corpo/espírito, objeto/sujeito – estão sedimentadas. Esta última, a distinção entre objeto e sujeito, cujas premissas se reportam não à Grécia, mas sim à Roma Antiga (persona/res), é relativamente tardia e desenvolveu-se com o pensamento cartesianoxi.

Mas o homem faz parte da natureza e o que o distingue dos outros animais é o fato de que ele almeja transformá-la. E isso ele faz pela cultura. O pensamento antropológico xiiconsidera que os fenômenos culturais apresentam-se na forma de ideias, comportamentos e objetos físicos. Este último constitui aquilo que se denomina cultura material que, contudo, não está separada de ideias e do comportamento humano. A cultura material é tratada, geralmente, como uma contraposição dos objetos materiais às idéias e instituições, mas constitui-se, na realidade, em um fenômeno culturalxiii, expressando-se em todas as formas de conhecimento do homem: mito e religião, linguagem, arte, ciência e história. O conceito de culturaxiv, para os arqueólogos, se amalgama com o de cultura material, esta última entendida como uma das atividades do homem representada por um objeto, utensílio ou artefatoxv.

Seguindo essa concepção, podemos considerar que, na transformação da natureza, o homem inicia seu trabalho idealizando na mente a forma do objeto, projetando-o em seguida para finalmente dar-lhe a forma concreta. Assim, a cultura material engloba a imaterial.
Para o economista Antonio Luiz F. Barbosaxvi

… todo trabalho foi e é útil, mas nem todo o trabalho é necessariamente produtivo. Assim, o trabalho artístico é útil por atender às necessidades lúdicas, porém pode não ser economicamente produtivo, enquanto o trabalho do operário é útil e produtivo, criando bens necessários e destinados à troca. Nas etapas pré-capitalistas, a produção não pressupunha a troca; hoje, a troca é a finalidade da produção. O capitalismo se caracteriza por dissociar produção e consumo. Repensando o trabalho artístico, o processo pode ser compreendido. À medida que as novas tecnologias possibilitaram a reprodutibilidade da obra de arte, foi transformado não só o processo de trabalho, mas a própria utilidade de seu resultado. O artista deixa de trabalhar para o mecenas e é substituída a exponibilidade da obra única, limitada a uns poucos consumidores; agora, seu trabalho é destinado a uma extensa reprodutibilidade para o consumo de massa. A obra não perde a sua individualidade, mesmo quando realizada por uma equipe – como no caso do cinema, por exemplo –, e a produção adquire um caráter individualista.

Essas considerações nos reportam à obra de Walter Benjamimxvii e aos teóricos da Escola de Frankfurt, na discussão sobre a chamada Indústria Cultural (ou do entretenimento, como a chamam os americanos), onde estão inseridas as atividades e expressões artísticas como: teatro, filmes, vídeos, fotografias, cartazes, gravuras e suas diferentes técnicas, discos, desenho animado, história em quadrinhos e a publicidade, que trata da divulgação de todos. Todas essas atividades são protegidas pela Lei de Direitos de Autor e Conexos, ou pela Propriedade Industrial.

Assim, nos deparamos com as questões problemáticas que se apresentam nas relações existentes entre criação com dependência econômica. A obra do artista plástico se processa na relação com a necessidade desta ser comunicada e, consequentemente, “ser vista, sensibilizar e capaz de tocar” xviiiaos que a contemplam e com o mercado de arte.

 

Catherine Arruda Ellwanger Fleury é doutora em Artes Visuais e mestre em História da Arte pela UFRJ (Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro – PPGAV/EBA/UFRJ), e artista plástica. É também graduada em Arqueologia pela Universidade Estácio de Sá onde, atualmente, está cursando o segundo período de Direito (Campus Tom Jobim). O presente texto é parte de trabalho escrito – O Direito e a Obra de Arte – para o livro Direito Civil – Constitucional: Direitos da Personalidade Dignidade da Pessoa Humana / Uma Leitura Constitucional do Direito, organizado por Cleyson de Moraes Mello e Guilherme Sandoval.

 

1. Trato desse assunto em texto publicado em livro organizado por Rosza vel Zoladz. FLEURY, Catherine Arruda Ellwanger. “Refexões sobre Arte e Artistas”. In: Imaginário Brasileiro e Zonas Periféricas: algumas proposições da Sociologia da Arte. ZOLADZ, Rosza vel. Rio de Janeiro: 7Letras/FAPERJ, 2005, p. 188-206s

2. Declaração Universal dos Direitos Humanos, Artigo XXVII. 1. Todo ser humano tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir das artes e de participar do progresso científico e de seus benefícios. 2. Todo ser humano tem direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica literária ou artística da qual seja autor. http://www.onu-brasil.org.br/documentos_direitoshumanos.php – acesso em 15/03/2011.

3. BITTAR, Carlos Alberto. Direito de Autor. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1992, p. 8.

4. BITTAR, Ibid., p. 17.

5. BITTAR, Ibid., p. 2 e 3.

6. No site da Escola de Belas Artes (UFRJ), na página referente aos Direitos Autorais, encontram-se as instruções para que se possa efetuar o registro de obras de arte (artes visuais). No final, vem escrito: “não registramos músicas, partituras musicais, mapas, símbolos nacionais, livros ou textos”.

7. A Organização Mundial da Propriedade Intelectual – OMPI, criada em 1967, é um dos dezesseis organismos especializados do sistema das Nações Unidas, de caráter intergovernamental, com sede em Genebra, Suíça. Informações sobre a OMPI encontram-se disponíveis em: www.inpi.gov.br/menu-esquerdo/patente/pasta_acordos/ompi_html. A OMPI define Propriedade Intelectual, um monopólio concedido pelo Estado, como “ a soma dos direitos relativos às obras literárias, artísticas e científicas, às interpretações dos artistas intérpretes e às execuções dos artistas executantes, aos fonogramas e às emissões de radiodifusão, às invenções em todos os domínios da atividade humana, às descobertas científicas, aos desenhos e modelos industriais, às marcas industriais, comerciais e de serviço, bem como às firmas comerciais e denominações comerciais, à proteção contra a concorrência desleal e todos os outros direitos inerentes à atividade intelectual nos domínios industrial, científico, literário e artístico”.

8. O INBRAPI, Comitê Intergovernamental sobre Propriedade Intelectual, Recursos Genéticos, Conhecimento Tradicional e Folclore é uma organização não-governamental sem fins lucrativos cuja origem se reporta ao Encontro de Pajés ocorrido em 2001, em São Luís do Maranhão. Em 2002, foi criada a Comissão Indígena da Propriedade Intelectual (Cipi). Disponível em: http://www.inbrapi.org.br (Acesso em 28/03/2011).

9. Alterada e acrescida pela Lei no 10.196, de 14 de fevereiro de 2001.

10. Decreto n° 75.699, de 06 de maio De 1975 promulga a Convenção de Berna para a Proteção das Obras Literárias e Artísticas de 9 de setembro de 1886, que foi completada em Paris a 4 de julho de 1896, revista em Berlim a 13 de novembro de 1908, completada em Berna a 20 de março de 1914 e revista em Roma a 2 de 1928, em Bruxelas a 26 de junho de 1948, em Estocolmo em 14 de julho de 1967 e em Paris em 24 de julho de 1971 e modificada em 28 de setembro de 1979.

11. POIRIER, Jean. História dos Costumes: O Homem e o Objeto. Lisboa: Editorial Estampa, Ltda., 1999.

12. NEWTON, Dolores. “Cultura Material e História Cultural”. In RIBEIRO, Berta (org.). Suma Etnológica Brasileira – 2 Tecnologia Indígena.. Edição atualizada do Handbook of South American Indians. Petrópolis: Vozes, 1986.

13. Reporto-me a Ernest Cassirer, que define o homem como um ser cultural, interpretando o empreendimento humano em suas principais formas simbólicas: a linguagem, a arte, a religião, a história e a ciência (CASSIRER, Ernest. Ensaio sobre o Homem. São Paulo: Martins fontes, 1997).

14. Em arqueologia, o termo cultura é visto como “uma associação de objetos de diferentes tipos, que se repete com certa freqüência no espaço e no tempo” (SOUZA, Alfredo Mendonça de. Dicionário de Arqueologia. Rio de Janeiro: ADESA, 1997, p. 41). Esse conceito se aproxima do que chamamos, na Arte, de estilo. Meyer Schapiro (SCHAPIRO, Meyer. Theory and Philosophy of Art: Style, Artist, and Society. New York: George Braziller, 1994, p. 51) afirma que estilo é geralmente entendido como uma forma constante e, às vezes, como elementos, qualidades ou expressões constantes na arte de um indivíduo ou de um grupo. O estilo reflete ou projeta a “forma interior” do pensamento e do sentimento coletivos. O que importa não é o estilo de um indivíduo ou de uma arte única, mas as formas e qualidades compartilhadas por todas as artes de uma cultura num período significativo de tempo.

15. Trato desse tema no primeiro capítulo de minha Dissertação de Mestrado, Renda de Bilros, Renda da Terra, Renda do Ceará: a expressão artística de um povo, obra essa que foi selecionada entre outras dissertações e teses para publicação, pela Secretaria de Cultura do Estado do Ceará. FLEURY, Catherine Arruda Ellwanger. Renda de Bilros, Renda da Terra, Renda do Ceará: a expressão artística de um povo São Paulo: AnnaBlume; Fortaleza: SECULT, 2002.

16. BARBOSA, Antonio Luis Figueira. Sobre a propriedade do trabalho intelectual: uma perspectiva crítica. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1999, p. 21, 22.

17. BENJAMIM,Walter. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. In: Magia e Técnica: arte e política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.

18. DUVIGNAUD, Jean. O Artista, A Arte e a Identidade. Palestra proferida com apoio do Fórum de Ciência e Cultura. Tradução de Rosza Vel Zoladz. Escola de Belas Artes /UFRJ, 1994. P. 7.