Apresentação | por Marco Schneider

Como em um bom time de futebol, o grupo de articulistas que compõem o novo número da Z Cultural combina juventude e experiência acadêmica. Porém, embora esse tenha sido um dos critérios empregados para a seleção dos autores, não foi certamente o principal, e sim a aderência, direta ou indireta, de sua produção intelectual ao eixo temático central da presente edição: interfaces digitais entre cultura, cidadania e capitalismo.

Por essa razão, iniciamos esta Z com o artigo que mais diretamente se aproxima de seu eixo, no qual Ovidio Mota Peixoto problematiza o discurso “triunfalista” da inclusão digital, com ênfase na relação entre novas TICs, cidadania e educação, trazendo de volta ao debate um pensador e ativista brasileiro outrora muito influente, mas pouco discutido ultimamente entre nós: Darcy Ribeiro.

Patrícia Saldanha, em um movimento ousado, propõe a noção de (e a implementação da) publicidade comunitária como elemento fundamental para que se atinja uma efetiva viabilidade econômica das práticas de comunicação nas “comunidades” – noção que ela discute e fundamenta com o devido rigor teórico.

Ainda no âmbito da comunicação comunitária e da problemática da cidadania, Adilson Cabral explora o conceito de “emergência”, de Steven Johnson, que diz respeito a “processos organizados de baixo para cima e de forma adaptativa”, para pensar os “esforços da sociedade civil em relação à afirmação dos direitos humanos à comunicação e da apropriação social das tecnologias de informação e comunicação a partir de articulações que promovam comunidades de compartilhamento social com base em processos emergentes.”

Pablo Nabarrete Bastos, por sua vez, nos brinda com uma análise teoricamente refinada, inspirada principalmente em Bakhtin, Gramsci e Hall, da palavra como uma das arenas da luta de classes, tomando como objeto empírico o tratamento dado ao movimento Hip Hop e ao MST no discurso midiático hegemônico. O artigo ainda possui o mérito de enfatizar o profundo compromisso político-revolucionário de Gramsci, contribuindo assim para a necessária desconstrução de sua imagem corrente (e reduzida) de “teórico da cultura”.

Numa linha parecida, Marco Bonetti resgata um aspecto misteriosamente obliterado em boa parte da fortuna crítica sobre a obra de Walter Benjamin: a óbvia e profunda influência de Marx. Assim, em seu Karl Marx e Walter Benjamin, Bonetti denuncia o equívoco metodológico que consiste na construção de um Walter Benjamin “descafeinado”, isto é, “depurado” da presença central de Marx em seu pensamento, como se a opinião (conservadora) de Gershom Scholem sobre o valor da obra do amigo tivesse se tornado canônica.

Cabe aqui uma breve digressão, dado que Bastos e Bonneti tocaram um ponto fulcral do debate que nos foi ofertado promover: parafraseando o que Stuart Hall certa vez disse sobre a recepção da obra de Foucault na Inglaterra, a qual teria gozado, durante um determinado período, de um “apostolado acrítico”, parece-nos que algo similar ocorre com Benjamin e Gramsci entre nós: gozam de um “apostolado acrítico”, mas em uma versão “descafeinada”, caracterizada pela minimização ou descarte da influência de Marx, que seria não mais que um aspecto menor, datado, superado, descartável de seus pensamentos.

Ora, essa eloquente ocultação – na recepção de dois autores cuja contribuição menor certamente não foi o rico desenvolvimento que promoveram de elementos apenas indicados de modo assistemático na vasta obra de Marx (em especial as complexas relações entre economia, política, tecnologia e cultura), sem com isso, ao contrário do que muitos pensam, terem efetuado nenhuma ruptura fundamental com seu arcabouço teórico – seria epistemologicamente fundamentada com rigor ou ideologicamente contaminada?

Embora não toque diretamente na questão, o artigo de Ivan Capeller aponta para a segunda alternativa, em um esforço difícil e teoricamente audaz de (re?)aproximar Deleuze da crítica da economia política, analisando os fenômenos “recentes” do facebook e do youtube à luz da teoria e da história do cinema, ou melhor, dos dispositivos audiovisuais, entendidos como aparelhos de captura e máquinas de guerra.

Numa perspectiva menos convergente que a de Capeller, Ricardo Musse apresenta uma esclarecedora explanação do tenso diálogo entre marxismo e pós-modernidade, mediante uma análise crítica dos principais argumentos de alguns dos seus protagonistas. Entre outros efeitos salutares, o artigo de Musse nos ajuda a entender tanto as causas da mencionada ausência de Marx de locais onde esta ausência é sintomática, quanto parte das dificuldades que permeiam o debate entre marxismo e pós-modernidade, em meio ao qual se situa o pós-estruturalismo.

Por fim, Douglas Kellner, um dos pioneiros dos Estudos Culturais estadunidenses no início dos anos 70, e o entrevistado da presente edição da Z Cultural, além de refletir sobre o papel das novas tecnologias de comunicação na reconfiguração da esfera pública contemporânea, sem recusar a contribuição do pós-estruturalismo, argumenta em defesa da retomada do diálogo entre Estudos Culturais e marxismo, corroborando a posição deste que ora vos fala e contribuindo igualmente para entendermos melhor as causas do esvaziamento recente deste diálogo.

Encerrando essa apresentação, quero registrar meus agradecimentos à querida Heloísa Buarque de Hollanda, pelo convite para a curadoria deste número da Z Cultural. Agradeço, pois enxergo no gesto, além de uma demonstração de confiança, principalmente uma expressão de sua generosidade teórica, dado o fato (por ela  conhecido) de as posições que costumo defender não serem as mesmas do mainstream teórico, se assim se pode dizer, dos Estudos Culturais contemporâneos.

Agradeço também aos autores por seus artigos e a Douglas Kellner por nossa conversa.
Uma boa leitura.

 

Marco Schneider
GCO e PPGMC UFF / ESPM / Unisuam / PACC UFRJ

 

Publicidade comunitária: uma ferramenta atual de resgate e fortalecimento dos princípios comunitários | de Patrícia Gonçalves Saldanha

Introdução

O objetivo do presente texto é refletir teoricamente sobre a possibilidade que uma associação tem de resgatar o sentido de comunidade a partir da sua reconfiguração decorrente da apropriação da técnica, por seus membros, para benefício do próprio lugar.

Partindo do pressuposto de que uma associação tem sua formação estrutural compatível com as exigências de mercado e a comunidade não, põe-se a seguinte questão: de que maneira uma comunidade seria capaz de constatar a presença de formas de resistência à modelização societária que tenta, a todo tempo, sem limites de custo, normatizar, homogeneizar e individualizar o sujeito social, por intermédio da produção do consenso gerado pela mídia global, sustentada, por sua vez, pelo financiamento do mercado transnacional por meio das práticas publicitárias?

É necessário, portanto, delimitar alguns pontos basilares do texto. Primeiramente, a noção de lugar e local são absolutamente compatíveis. Já a de mídia não se limita aos meios de comunicação de massa, e sim abrange as formas de produção de sentido que se descolam dos meios comunicacionais (de massa ou não) e ganham vida própria em territórios diversos, conduzindo os hábitos e costumes, bem como os comportamentos e até mesmo os gostos de povos distintos para um interesse comum: o consumismo.

Outro ponto fundamental para essa reflexão é a diferenciação conceitual entre comunidade e associação que parte da concepção tönniesiana e chega à atualidade discutindo novas versões de comunidade. Para complementar o caminho proposto pela pergunta-eixo do texto, vale considerar o papel da comunicação comunitária evidenciando a publicidade, apesar de, num primeiro momento, a conjunção publicidade comunitária parecer antagônica.

As gerações de sentido que costumam agir na ordem da cultura são legitimadas por uma série de políticas supranacionais que, por sua vez, são viabilizadas pelas estruturas econômicas das corporações de comunicação financiadoras do todo-poderoso capital.

Na outra ponta do mesmo cenário, temos a esfera local que se subdivide em três tipos: um primeiro que acaba aderindo à lógica hegemônica, ainda que se empenhe em sustentar um discurso de resistência; outro que realmente resiste radicalmente às forças do mercado, fortificando o cisma entre incluídos e excluídos do sistema que baliza a sociedade civil; e, na contrapartida dos dois primeiros modelos, o terceiro, composto por comunidades representantes da esfera local que fazem questão de se incluir na sociedade civil, sem se desvincular, todavia, de seus princípios fundadores.

É com o terceiro viés que iremos dialogar. Com comunidades cuja postura contra-hegemônica é um alicerce, que lhes permite avaliar criticamente o cenário em que estão inseridas; ao mesmo tempo que lhes impulsiona para sair do discurso e partir para a ação prática, transformando positivamente seu próprio lugar. São comunidades locais que se empenham na apropriação das tecnologias de comunicação cuja finalidade é trazer benefícios para o próprio lugar.

Quando os moradores de um local, de fato, se apropriam das ferramentas comunicativas e as utilizam em benefício próprio, além de não valorizarem o aspecto técnico, costumam colocar essas ferramentas a seu serviço para ressaltar e reforçar as características identitárias de sua localidade em vez de sucumbir ao senso comum previamente produzido. Ao contrário, unem-se e pressionam tanto o poder público quanto o de mercado para reverter qualquer proposta de isolamento ou “guetificação” econômica, política ou sociocultural. Para Manuel Castells, o terceiro modelo se refere à construção de uma “identidade de projeto”, que se concretiza

quando os atores sociais, utilizando-se de qualquer tipo de material cultural ao seu alcance, constroem uma nova identidade capaz de redefinir sua posição na sociedade e, ao fazê-lo, de buscar a transformação de toda a estrutura social […] Obviamente, identidades que começam como resistência e podem acabar resultando em projetos.[1]

Na possibilidade da existência de “identidades de resistência” e “identidades de projeto” contemporâneas, percebe-se que não nos encontramos numa situação plenamente societária e que há chances de os indivíduos voltarem às suas condições de sujeitos sociais, cuja identidade consiste “em um projeto de uma vida diferente […] expandindo-se no sentido da transformação da sociedade”.[2]

Nesse diapasão, deparamo-nos com um grande desafio: tentar constatar de que formas o desenvolvimento das práticas comunicacionais, mais especificamente publicitárias, a partir da apropriação das TICs, pode atuar como dispositivo de incremento de sociabilidade vinculativa, característica da vida comunitária, e projetar realizações locais (sem abalar seu fortalecimento identitário) para a esfera globalizada da sociedade civil.

De volta às comunidades em plena sociedade global

A formação da sociedade civil atual já é uma das consequências da Revolução Industrial. Inicialmente houve uma mudança na estrutura social, na transição do final do século XIX para o século XX, ou seja, na passagem da sociedade moderna para a sociedade de massa. Exatamente nessa época e em dois momentos distintos, o sociólogo e filósofo alemão Ferdinand Tönnies[3] se debruçou sobre a diferenciação dos conceitos de comunidade e de associação. Em 1887, sua obra Gemeinschaft und Gesellschaft surgiu como um divisor de águas teórico, pois “circunscreveu os termos comunidade e sociedade (como a palavra Gesellschaft é em geral traduzida), colocando-os em contraste, atando-os pelo mútuo antagonismo de significados”.[4]

Além da atualização da obra, o contraste dos termos talvez tenha proporcionado a grande popularidade adquirida no lançamento de sua segunda edição, em 1912, pois, naquela época, já se percebia uma mudança no espírito das novas formas de organização dos agrupamentos humanos. Os grupos que se deslocavam dos centros rurais, onde a família solidificava o sentimento de comunidade, para os centros urbanos, onde as pessoas mal tinham tempo de se ver em função das longas horas dedicadas ao trabalho nas fábricas, demonstravam que as sociedades que emergiam, principalmente nos Estados Unidos e na Europa, decorriam das alterações econômicas provenientes do ímpeto arrebatador das novas concepções produtivas. A aglutinação populacional nas cidades se tornou visível e, a partir daí, surgiram novas formações de grupos, cujas características já se diferenciavam do perfil da Gemeinschaft rural. Surgiram as

organizações ditas de massa: partidos, associações, sindicatos […] com suas reivindicações coletivas. Isso sem falar em outras manifestações como o espetáculo e o esporte, que vão nesse mesmo sentido, como o cinema e o futebol. Nesses novos espaços as massas populacionais deixam de ser camponesas e passam a ser caracterizadas pelo novo trabalho. Karl Marx irá assentar sua reflexão sobre essas novas maneiras de produzir riquezas, ou modos de produção, tendo no centro o proletariado urbano, os trabalhadores da cidade.[5]

Acompanhando a demanda econômica que serviu de sustentáculo para a reorganização da sociedade, o destaque às questões políticas[6] também colaborou para que a segunda edição se tornasse “um best-seller na Alemanha, naquela época arrebatada pelas ideias nacionalistas”.[7]

Todavia, mais do que o aspecto histórico-político, a observação das mudanças nas aglomerações massivas da sociedade da época e de sua própria história de vida foi decisiva para que Tönnies pudesse perceber as diferenças estruturantes entre os conceitos em debate.

Ferdinand Tönnies nasceu em 1855 numa granja junto ao Mar do Norte, em Schlewig Holstein, e foi criado na vizinhança de Husum. A intimidade com as questões do campo, em função da sua origem e de sua experiência profissional (na fundação de duas importantes associações de sociologia), sensibilizou-o para perceber o contraponto dos dois conceitos: os laços vinculativos que fortalecem organicamente o espírito comunitário, bem como a superficialidade com que as alianças contratuais mantêm o mecanicismo das associações.

A verificação da transição das formações comunitárias às associativas se origina quando Tönnies se dá conta de que os valores instituídos nos bens são transferidos para a atividade da permuta. Fica claro que, em vez de se valorizarem os bens produzidos, o que vai adquirindo maior importância no processo é não só o intercâmbio, como também o documento que torna tal atividade legítima: o contrato. “Independentemente das esferas e dos campos de vontade separados, a garantia e a unificação são feitas pelo contrato, pelo documento que é reconhecido, legitimado e validado pela lei. E isso se encontra implícito no consenso geral das associações.”[8] Mais do que isso, o consenso referente à importância do contrato fica impregnado no próprio espírito da sociedade civil. A mudança sígnica real acontece quando “a diferença de tradição, a convenção, não se conserva como herança dos antepassados. Em consequência, as palavras, as palavras de tradição e costume se ajustam ao sentido de convenção”.[9]

Tal modificação se torna patente na sociedade civil e advém da alteração ocorrida no nexo que passou a direcionar o comportamento dos homens. Se antes ele era conduzido pela vinculação e pelo pertencimento ao grupo, quando se ligou às associações foi assumindo uma postura individualista em que cada um passou a cuidar de si e de seus interesses. Assim, o sujeito foi se metamorfoseando e passou a ser um indivíduo.

O indivíduo é, portanto, aquele que não se divide mais. Torna-se um corpúsculo com vida na medida certa para produzir e consumir, mas se conservando no estado de solidão suficiente, sem entrar em contato com o outro para que não contate outrem. Apático, por conta da falta de troca com o próximo, tem o pensamento enfraquecido no tocante a mudanças e preocupações com o coletivo. Quanto mais isolado, melhor.

Enfim, uma forma resumida de diferenciar a sociedade (Gesellschaft) da comunidade (Gemeinschaft) e de considerá-la um protótipo de comunidade, segundo o filósofo canadense Kenneth Schmitz, é entender a

Gemeinschaft como família, da qual surgiram formas comunais de associação que se estenderam, como a aldeia e a vizinhança, a fazenda familiar, o tipo antigo de paróquia e a guilda mais ou menos hereditária. A unidade de tais grupos existe anteriormente a seus membros atuais, que recebem a forma comunal e seus valores pela tradição como um modo de vida já dado. Em contraste com esses laços de parentesco e amizade, supõe-se a Gesellschaft como a construção artificial de um agregado de seres humanos […] [enquanto] na Gemeinschaft eles [os indivíduos] permanecem essencialmente unidos a despeito de todos os fatores que os separam […] [na] Gesellschaft […] é cada um por si e estão isolados, e há uma condição de tensão contra todos os outros.[10]

Dentre as diversas visões que partem do tratado de Ferdinand Tönnies para discutir o conceito de comunidade, Schmitz, em seu texto Comunidade, a unidade ilusória, nota que uma das possibilidades de reflexão sobre a comunidade é percebê-la como instituição. Isso porque a instituição é capaz de propiciar as identificações, representar as vontades coletivas e garantir a segurança para determinado grupo do tecido social, ainda que esse grupo não se refira apenas às formações camponesas tradicionais.

Há, portanto, uma inovação na leitura que o filósofo canadense faz da obra de Tönnies, pois propõe a possibilidade de manutenção do bem comum nas comunidades, mas também a considera possível nas associações. O que nos permite pensar que uma associação pode direcionar seus membros ao resgate do sentimento comunitário a partir do nexo que os vincula.

De toda forma, é absolutamente necessário atentar para as ponderações que o autor faz sem perder o senso crítico, uma vez que não se rende ao discurso das associações, ainda que denominadas de instituições. Para o autor, o ponto chave da institucionalização de uma associação é o princípio que a move e não o formato como ela se apresenta. Schmitz admite que hoje “desconfia-se muito das instituições, consideradas meros grupos de interesses privados, além de não conseguirem reter crédito social suficiente que justifique sua atuação. Nesse quadro está imerso inclusive o poder central, que não consegue possuir um mínimo de operacionalidade”.[11]

Percebe-se, que ele não se refere à associação de forma generalizante. Não se pode comparar uma associação de moradores com a Associação dos Banqueiros Suíços, por exemplo. As instituições efetivas são aquelas que podem incentivar seus membros à busca do sentido comunitário; são formas estáveis e relativamente definidas para caracterizar crenças e ideias, uma vez que exemplificam hábitos e costumes sociais estabelecidos enquanto reais, existentes e providos de um ideal em determinadas associações modernas.[12] Com efeito, os novos hábitos que começaram a se institucionalizar nas associações foram resultantes de uma mescla entre a conservação do ritmo dos costumes tradicionais e o novo compasso de vida que vinha se intensificando na sociedade.

 

Seria possível a publicidade, que ajudou a construir o processo globalizante, reconverter suas formas de atuação?

Na sociedade de massa, consolidaram-se novos propósitos nos agrupamentos humanos. A partir da entrada do Estado-nação como regulador da sociedade civil, o sujeito passou a estabelecer com o trabalho produtivo uma relação que não era mais em prol de garantir a sua subsistência, mas sim a da produção que objetivava a fortificação do Estado. Já se indiciava, portanto, um distanciamento do ideal de manutenção da continuidade de sua comunidade em prol do primeiro setor. O processo contínuo das transformações foi potencializado, na sociedade globalizada, desde a queda do muro de Berlim até os dias de hoje, com o auxílio de duas ferramentas fundamentais: os meios de transporte e os meios de comunicação. Os primeiros eram responsáveis pela distribuição de produtos, serviços e pela expansão da ideologia capitalista pelo globo, e os segundos, pela divulgação dos novos serviços/produtos e formas de comercialização, incluindo os de ordem imaterial, enfatizando, assim, a valoração das marcas pela mídia e com massificação garantida pelas práticas/negociações publicitárias. Influindo diretamente nos arranjos sociais, principalmente no que alerta ao sujeito sobre o reconhecimento dos direitos sociopolíticos.

Mais especificamente no cenário brasileiro contemporâneo, os arranjos sociais têm se apresentado de forma tão disparatada e com consequências tão desumanas, que a “simples” existência de um discurso do que vem a ser cidadão já se torna suficiente para suprir a falta momentânea ou mesmo a inexistência da prática do exercício civil e político do sujeito atual. O esvaziamento do sentido de cidadania dissipado pela proliferação da ordem de discursos, reverberado pela mídia, tem como consequência a expressão do perfil do que poderia vir a configurar um cidadão no gozo dos seus direitos perante a lei. Entretanto, a realidade dos discursos proferidos é incompatível com o que acontece na prática cotidiana do sujeito social. Fato que, consequentemente, afasta o cidadão da possibilidade de pensar em “conquistar definitivamente os seus direitos sociais”.[13]

A busca pela conquista do direito social tem sido desviada por algumas ideias que se autodivulgam democráticas e que, em geral, outorgam um novo sentido para este ser-cidadão, nivelando-o, habilmente, a um ser-consumidor. Conduzindo o indivíduo a lutar pelo direito de consumir.  Resultando, por conseguinte, na redução da questão da conquista pela igualdade e pela justiça social no contexto político à questão da possibilidade e do direito ao consumo, somados à disponibilidade do acesso à informação. Como se a inclusão via consumo fosse o fator principal ou, segundo alguns, o único caminho para a inserção dos excluídos na sociedade globalizada.

Nesse caso, o consumo passa a assumir contornos até então impensáveis, desvinculando-se de sua ordem originária: a necessidade. O consumo passa de consequência à causa, assumindo, inclusive, o estatuto de procedimento libertário por alguns teóricos (como o mexicano Néstor Canclini), que conseguem mesmo atrelá-lo ao exercício da cidadania.[14]

Logo, o discurso de democratização e de possibilidade de acesso tem caracterizado e viabilizado a agilização do fluxo de expansão capitalista da sociedade atual, dominando ideologicamente o mundo em suas ordens de organização: política, econômica e sociocultural.

Todavia, é necessário considerar que é possível localizar movimentos de resistência em algumas comunidades. Tanto comunidades do interior quanto favelas, entre outras, têm saído do estágio de letargia profunda que as tornava apáticas e vêm investindo na tentativa de dar visibilidade positiva a seu éthos. Além disso, pretendem também se projetar para níveis nacionais e internacionais, ocupando seu lugar no mundo de forma legítima, sem abalos identitários.

Para o economista Ladislau Dawbor, é na organização comunitária, como “espaço local” ou “espaço de vida”, que se torna possível a recuperação do “controle por parte do cidadão no seu bairro e na sua comunidade”.[15] Assim, a estrutura comunitária teria o propósito de resgate da cidadania com contornos políticos na esfera de Unidade de Gerência e Pressão, onde pensar em comunidade significa pensar o coletivo, politicamente, e lutar, de forma organizada, por melhorias concretas para o lugar em questão. E é nessa esfera que alguns moradores têm investido na prática da produção da comunicação comunitária, mais especificamente, nas etapas de criação, produção e veiculação da publicidade comunitária, a fim de movimentar e aquecer a economia local com a autonomia de produção.

No cenário da resistência, o papel da comunicação comunitária é imprescindível, pois, além de quebrar a homogeneização resultante da propagação do ideal midiático, pode alterar a lógica societal, incluindo o diálogo entre os membros das diversas comunidades, além de colaborar com a construção da produção de uma comunicação vinculada ao real histórico de seu espaço. Ao conectar o conceito de comunicação com o de comunidade, que tem se diluído no estado líquido das relações, pode-se perceber a existência de uma alternativa de reinserção no mundo ou mesmo de uma proposta precisa de recuperação da vivência comunitária. Então, para que a comunicação comunitária haja de fato, é imprescindível que seus veículos tenham adequação a um projeto mais amplo.

Esse entendimento é importante para a compreensão da mídia a ser escolhida, bem como a utilização de mais de um veículo, a linguagem a ser adotada e a programação. Além do assentimento por parte dos integrantes do grupo, já que o poder decisório […] abstrai o determinante técnico, que selecionava dentre os membros apenas aqueles com conhecimento para opinar.[16]

A comunitária é diferente da comunicação massiva divulgada pela mídia, que prioriza o capital, pois dentro

de um esquema de comunicação comunitária – aquela orientada não por uma lógica puramente empresarial, mas principalmente por determinações grupais e comunais – importam muito mais os objetivos e o comprometimento entre as partes, para se alcançar metas programadas, do que o uso de x ou y sistema de comunicação.[17]

A comunicação comunitária se concentra no resgate e na valorização do território e, por isso mesmo, precisa ser entendida “no contexto da sociedade de massa” globalizada. Se a comunicação acontece no momento em que a partilha de sentido se torna comum tanto para quem emite como para quem recebe – e um dos espaços para a concretização do ato comunicacional é a comunidade –, é possível reconhecer a ligação da comunidade no campo da comunicação social. Da mesma forma, a publicidade pode ser pensada no ambiente comunitário, mesmo que aparentemente tenham princípios contraditórios.

Geralmente, a primeira afirmação que se faz sobre “publicidade comunitária” é que ambos os termos estão em oposição. Talvez, se esse esforço estivesse direcionado para a propaganda, fosse mais fácil, principalmente porque a publicidade difere da propaganda exatamente por suas fundamentações. Apesar de ambas terem capacidade informativa e se fundarem na persuasão como estratégia de divulgação, a propaganda tem caráter ideológico e a publicidade, caráter comercial. Então, a propaganda de que a publicidade descaracteriza um meio comunitário foi executada com tanta eficiência, que os próprios meios comunitários e as pessoas que o fazem funcionar se impregnaram de tal ideia.

Assim, convencionou-se que um meio comunitário não pode ser regido nem por atividades comerciais nem por sua propagação, ainda que as atividades comerciais pertençam ao território em questão. Esse pensamento foi assimilado como verdade indiscutível tanto por quem trabalhou para seu alastramento quanto pelos próprios moradores dos lugares onde os meios comunitários foram iniciados, que, por conseguinte, passaram a ser os mais prejudicados com a absorção dessa verdade fabricada.  Em vista disso, aceitar uma publicidade, mesmo que local (desde a produção à veiculação), passou a ser o mesmo que trair um ideal, além de configurar crime, uma vez que inserção publicitária nas veiculações comunitárias viola a lei penal.

Contudo, é urgente que se pense que a questão da comunicação comunitária não se encerra na existência ou não de publicidade em seus meios (a não ser por questões legislativas, que podem ser alteradas), mas se inicia pela utilização da linguagem que viabiliza, de forma clara, o entendimento dos ouvintes locais em função de suas necessidades diárias, pela participação dos moradores locais, pelo desenvolvimento do conteúdo informativo de utilidade para a comunidade, que é desenvolvido a partir da leitura crítica da grande mídia, pela perspectiva educativa e, enfim, pela força de trabalho voluntário que deve acontecer para manter o veículo funcionando, uma vez que TV, rádio ou jornal não podem sequer constituir renda. Essa realidade resulta na dispersão de pessoas que poderiam dedicar seu tempo para consubstanciar os meios de comunicação tão importantes para avigorar vínculos da comunicação com as questões cotidianas do território, que mantêm os meios comunitários vivos.

Por exemplo, uma TV ou uma rádio comunitária só se configuram como meios comunitários se forem pensados, elaborados e tiverem seus conteúdos distribuídos pelos membros da comunidade na qual se inserem. No entanto, é preponderante que os meios sobrevivam diariamente às pressões econômicas. É habitual presenciar o fechamento de veículos comunitários,  após poucas semanas de existência, por  motivos como a falta de dinheiro, de autonomia sustentável, ou mesmo por força coercitiva da polícia, por desrespeitarem a lei e funcionarem sem licença ou, ainda, por veicularem publicidade.

Para robustecer o quadro de dificuldades para o funcionamento, as pessoas que se dedicam ao trabalho em veículos comunitários só podem fazê-lo parcialmente e por algum tempo, pois precisam manter seus empregos paralelos, por conta de sua subsistência e a de seus familiares. E, como a publicidade é proibida por lei, ativistas comunitários e pessoas de bem que poderiam se dedicar à manutenção desses meios tão importantes para suas comunidades não podem se arriscar e, por isso, não permitem a entrada da publicidade. Porém mais grave do que isso é não colocarem em discussão a lei que impõe essa proibição, porque sequer pararam para pensar nisso. Em consequência, por falta de fôlego econômico, os meios, na maioria das vezes, encerram suas atividades.

Então, como sustentar os meios? Outra questão é: qual é o limite ético para haver publicidade em meios comunitários? Por que não divulgar a “empadinha” fabricada na vizinhança, ou o mecânico, ou a costureira, já que são reconhecidos pelo nome? Talvez  os responsáveis pela elaboração e implementação dessas leis que têm, até então, segurado, pelo medo de punição legal, a vontade de exceder seus limites possam responder a essas questões. Os limites legislativos são firmados por membros do Senado Federal e pela Câmara dos Deputados, que, por sua vez, fazem  as regras que proíbem a publicidade em meios comunitários, pois não querem concorrentes que atuem diretamente, com os seus próprios meios de comunicação, nas pequenas localidades. No interior das grandes metrópoles ou em cidades cuja atividade econômica é basicamente agrícola, por exemplo, os meios de comunicação comunitários muitas vezes têm o mesmo tamanho de um meio de comunicação puramente comercial.  Mas essa discussão ficará para outro momento.

Considerações finais

É possível pensar, com algumas ressalvas, que a publicidade poder vir a resgatar laços e utilizar as ferramentas tecnológicas como dispositivos de incremento de sociabilidade vinculativa, quando é analisada na perspectiva da ordem técnica e trata de movimentar o sustento da comunidade que também depende do comércio tanto quanto as associações.  Para Tönnies,

existe a comunidade de idioma, de costumes, de  crenças; mas também, para que sirva de contraste, a sociedade financeira, científica […] As sociedades (Gesellschaft) comerciais têm especial importância, já que pode existir certa familiaridade entre os membros. Por isso, até poderá ser chamada, a duras penas, de comunidade (entre os membros). Propor a frase “Gemeinschaft de acionistas” será abominável. Por outra parte, existe a Gemeinschaft de propriedade de cultivos, bosques e pastos. A Gemeinschaft (comunidade) de bens que mantém marido e mulher não pode ser denominada Gesellschaft de bens. Desse modo se esclarecem muitas diferenças.[18]

Então, quando uma comunidade cuida de sua sobrevivência, não está corrompendo seus ideais, mas uma vez que ela entra no cenário da comunicação sob novas configurações paradigmáticas, em função dos movimentos populares e das novas formas de reconhecimento do que uma comunidade pode vir a ser, a discussão que começa a vir à tona com muita força se refere ao sustento dos projetos de comunicação comunitária, como as rádios. Dessa forma, reconhecer que há uma nova leitura para a publicidade que, auxiliada diretamente pelas NTIC, tem atuado no microâmbito comunitário como alternativa de sustentabilidade para projetos de várias ordens, inclusive os publicitários, que são pensados, organizados e conduzidos pela própria comunidade, não desconfigura os projetos comunitários e ainda pode servir como ferramenta de resgate do sentimento comunitário em determinadas associações, desde que sejam enraizadas no local.

 

Notas


[1] CASTELLS, 1999, p. 24.

[2] Ibid., p. 26.

[3] Ferdinand Tönnies fundou a Associação Alemã de Sociologia e, mais tarde, associações internacionais de outros países que o elegeram membro honorário. Foi também parte ativa e influente do círculo de intelectuais impulsionado por Weber. Em 1877 doutorou-se em filosofia clássica e ensinou na Universidade de Kiel por quatro anos. Porém, como não gostava muito de lecionar, dedicou-se a atividades políticas, principalmente apoiando o movimento proletário. De 1921 a 1933 voltou a lecionar, mas foi expulso pelos nazistas, já que tinha aderido ao Partido Social-Democrata alemão em 1932. Assumindo sua paixão pela teoria social e pelas ideias políticas e filosóficas, prosseguiu com os estudos sobre o campo, desfrutando de um grande prestígio científico até sua morte em 1936.

[4] SCHMITZ, 1995, p. 177-178.

[5] FERREIRA, 2001 ,p.101.

[6] “Com o advento do regime hitlerista, por motivos aparentemente óbvios, as ideias comunitaristas passaram a ser estigmatizadas pelo campo acadêmico, sendo deixadas de lado por um longo período.” (PAIVA, 2003, p. 9).

[7] PAIVA, 2003, p. 9.

[8] TÖNNIES, 1979, p. 79.

[9] Ibid., p. 80.

SCHMITZ, 1995, p. 177.

[11] PAIVA, 1998, p. 133.

[12] Aquelas que não se deslocaram de sua razão fundadora e não perderam a noção de que deveriam servir ao bem comum.

[13] Ibid., p.287.

[14] PAIVA,  1998, p. 31-32.

[15] DOWBOR, 1998, p. 370.

[16] Ibid., p.48.

[17] Ibid., p. 48.

[18] TÖNNIES, 1979.

 

Referências bibliográficas

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[R1]Nome do autor? Incluir também sua qualificação

[M2]retiramos a nota, ok?

[R3]Falta a página na referência.

 

A emergência nos processos comunicacionais: um paradigma entre a política e a expressão popular | Prof. Dr. Adilson Vaz Cabral Filho

Resumo: A proposta deste artigo é compreender as contribuições da emergência como paradigma aos processos comunicacionais, entendendo a emergência, nos dizeres de Steven Johnson, como “processos organizados de baixo para cima e de forma adaptativa”, que assumem características compatíveis com as demandas comunicacionais no cenário contemporâneo. A emergência será compreendida aqui à luz dos esforços da sociedade civil em relação à afirmação dos direitos humanos à comunicação e da apropriação social das tecnologias de informação e comunicação a partir de articulações que promovam comunidades de compartilhamento social com base em processos emergentes. Com base numa pesquisa descritiva, a partir de levantamento bibliográfico e documental, este trabalho evidencia iniciativas e experiências relevantes, demonstrando a sua atualidade e a necessidade de incorporar outras temáticas sociais.

Palavras-chave: emergência; políticas de comunicação; apropriação social das TICs; comunicação comunitária.

 

Até o momento os filósofos da emergência
lutaram para interpretar o mundo,
mas agora estão começando a modificá-lo.

Steven Johnson, 2003, p. 16

 

A ideia de emergência como paradigma foi trazida recentemente ao Brasil, por intermédio do livro homônimo de Steven Johnson, que estudou o fenômeno em organizações sociais aparentemente díspares, tratando de compreender e verificar um evento que se caracteriza por “processos organizados de baixo para cima e de forma adaptativa”,[1] relacionado à compreensão de mecanismos de complexidade observados em estruturas diferenciadas, mas que atuam de modo semelhante em relação ao aprendizado de experiências próximas e à escolha de melhores caminhos e alternativas para a execução de funções nos mais diferentes setores, transmitidas a seus pares de modo mais imediato.

Cabe analisar, diante do entendimento desse modelo organizativo, suas possibilidades de funcionamento em relação à comunicação, compreendendo-a em seus aspectos tecnológicos e políticos, bem como em seus aspectos socioculturais, no contexto da apropriação das tecnologias de informação e comunicação (TICs) por parte da sociedade. São consideradas nesse contexto as devidas imbricações que caracterizam a comunicação como atividade produtiva, constituída em escala global por mercados estruturados a partir de monopólios e oligopólios fundados na propriedade cruzada, e também como um bem público universal que vem recentemente sendo tratada à condição de direito humano fundamental.

1. Para compreender a emergência

Steven Johnson compreende as organizações baseadas no paradigma da emergência como um contraponto àquelas historicamente associadas a um modelo baseado em hierarquias de cima para baixo, nos quais o processo decisório se dá de modo centralizado e se desmembra para uma coletividade mais ampla a partir da assimilação dos comandos. Ele vai encontrar, a partir de pesquisadores que seguem trilhas comuns em ciências díspares como a biologia, a informática, a arquitetura e demais ciências, pistas para a compreensão do que o autor chama de mito da formiga-rainha, em torno do qual se acredita que trabalhariam as formigas operárias, constituindo uma forma de observação da realidade naturalmente compreendida e assimilada, mas dotada de uma ideologia inerente e cômoda para a explicação do funcionamento desses processos.

Alguns fatores apresentados por Johnson permitem a melhor identificação desses processos: somente pela observação de todo o sistema em ação é que o comportamento global se manifesta, não pelo estudo de elementos isolados de um grupo; “é melhor construir um sistema com elementos simples densamente interconectados e deixar que comportamentos mais sofisticados ocorram aos poucos”;[2] sistemas descentralizados se baseiam fortemente nas interações aleatórias de indivíduos explorando determinado espaço sem qualquer ordem predefinida; identificar padrões nos sinais fornece informação significativa sobre o estado global de determinado conjunto e, por fim, informação local pode levar à sabedoria global, gerando maior interação entre vizinhos e permitindo a resolução de problemas e o ajuste com mais eficiência.

Ao longo de seu trabalho, esses processos foram observados em formigas, cérebros, cidades e softwares, possibilitando a compreensão desse comportamento em diferentes situações e contextos: nas colônias de formigas, seus integrantes se desenvolviam não a partir da orientação de formigas-rainha, mas da constante observação e seleção de padrões eficientes por parte de membros de determinado coletivo, organizado de baixo para cima e de forma adaptativa. Neurônios assimilam funções corporais visando certas tarefas dentro do organismo, cidadãos definem lugares nas cidades a partir de padrões socioculturais que facilitam sua ambientação numa localidade. Softwares que se alimentam do reconhecimento de inputs por parte de seus usuários qualificam a informação que fornecem e, em comum, todos os “agentes que residem em uma escala começam a produzir comportamento que reside em uma escala acima deles”. É o que Johnson chama de emergência, definindo-a como o “movimento das regras de nível baixo para a sofisticação do nível mais alto”.[3]

O autor não afirma categoricamente que esse é o modelo ideal de organização, mas busca reconfigurar o modo de observar esses fenômenos, contribuindo com a síntese de uma nova perspectiva e uma aposta numa maneira mais eficiente de alcançar resultados. Dessa forma, oscila entre a observação dos fenômenos que estuda e a própria confiança no comportamento que observa. Sua intenção é identificar comportamentos emergentes em organizações que vinham sendo identificadas como hierarquizadas, tentando evidenciar a emergência como um modo mais eficiente de organização, já que baseada na descentralização, na horizontalidade e em outras características aqui abordadas. Em certos momentos, sua postura se carrega de cores fortes, limitando a compreensão dos fatos e a capacidade de identificar quando sistemas centralizam seu funcionamento.

Se se trata de reconhecer a importância de uma reflexão que parte de uma perspectiva ideológica, tendo como base a crença na emergência como conduta coletiva, cabe também analisar a complexidade inerente a um organismo, no contexto de determinado setor, para identificar em quais contextos a emergência se aplica e para quais situações ela contribuiria de modo contundente. Ou, ainda, trata-se, portanto, de buscar saber como politizar a emergência, compreendendo estratégias de baixo para cima como a construção política capaz de colocar em evidência a expressão popular nas coletividades.

Cabe diferenciar a complexidade tal como historicamente compreendida – um tecido de constituintes heterogêneas inseparavelmente associadas, no qual o conhecimento atua para rechaçar a desordem e afastar o incerto, selecionando os elementos da ordem e da certeza[4] – da prática da emergência propriamente dita, que pode ser assimilada como forma de gerar organicidade para o fenômeno capaz de ser observado e replicável em diferentes situações. Além disso, é importante compreender se o caminho da emergência é inevitavelmente mais funcional em qualquer situação, já que resulta numa característica aleatória em relação à complexidade da comunicação, seja como atividade produtiva, seja como direito humano fundamental.

Ao assumir a emergência como estratégia organizativa a ser afirmada e observada, não se faz necessariamente a apologia da ideia tradicional de que o pequeno é bonito, numa linhagem schumacheriana. No que se refere a meios, processos e sistemas comunicacionais, seria equivalente a afirmar as experiências populares e comunitárias de comunicação em detrimento da abrangência e da penetração dos meios e sistemas de comunicação de massa.

Uma das premissas que fundamenta a emergência se baseia na capacidade de gerar comportamentos complexos em escalas maiores a partir da integração de escalas menores. Trata-se, portanto, de um modelo que consolidaria meios e processos massivos de comunicação a partir de estruturas comunitárias e populares alternativas às práticas de concentração da propriedade atualmente observadas no setor de comunicação.

O fortalecimento de organizações a partir do local, bem como a aprendizagem com boas experiências e a capacidade de replicá-las em ambientes próximos e em maior escala fazem da emergência uma referência em termos de metodologia e estratégia, com características assimiláveis aos processos democráticos de comunicação, que a reivindicam como direito humano em diversos aspectos que abrangem desde o envolvimento da sociedade em sua pluralidade e diversidade de culturas, como a apropriação das tecnologias de informação e comunicação, até a necessidade de marcos regulatórios e legislações que estimulem não só o acesso e a produção, mas também a posse e o controle, gerando, inclusive, alternativas de renda para comunidades e produtores de pequeno porte.

Para Johnson,[5] vivemos atualmente um terceiro momento da história da emergência: a princípio buscou-se compreender o fenômeno como um todo, distinto da compreensão tradicional dos sistemas de cima para baixo, em seguida a emergência passou a ser vista como um problema a ser investigado em áreas distintas de conhecimento e hoje ela é criada, seja através de softwares baseados em sistemas de auto-organização com várias aplicações (como a recomendação de livros ou o encontro de parceiros), seja por meio de jogos como o SimCity, baseados em algoritmos de inteligência artificial, a partir dos quais se organizam suas próprias estruturas.

Mais recentemente, a Web 2.0 vem concebendo – e transformando – a internet não mais como uma rede de redes, mas como uma plataforma de plataformas,[6] a partir das quais diversos programas são gerados, disponibilizados e podem ser utilizados em tempo real. Seus usuários se apropriam de seus recursos, gerando informações que podem ou não ser compartilhadas pela coletividade – no caso, usuários da internet em geral ou de programas em particular –, possibilitando caminhos para novas criações e, consequentemente, aprendizado coletivo em estruturas horizontalizadas de rede.

Partindo de comunidades e tecnologias que se redefinem e se reorganizam diante de novas demandas e tendências, a comunicação torna-se uma atividade passível de ser retrabalhada diante de uma estrutura que se organiza, do ponto de vista econômico, de modo extremamente centralizado, apesar de contar com aberturas, brechas e contrafluxos dos mais diversos, no tocante às relações que se estabelecem entre produtores e receptores, estudadas há algumas décadas, em torno do binômio recepção-mediação.

No entanto, para compreender a comunicação numa perspectiva de radicalização de sua democracia e de efetivação de seu entendimento como direito humano fundamental, cabe compreender outras estruturas capazes de descentralizar processos de produção ou de se apropriar deles, em escalas mais restritas, e crescer a partir de suas redes. A emergência oferece pistas para a efetivação de tais estruturas de modo mais seguro e consolidado, bem como a identificação de processos de apropriação das tecnologias para o fortalecimento de comunidades e a consolidação de indicadores de efetivação de outros direitos humanos, como educação e saúde, entre outros.

2. Comunicação em processos de emergência

Para pensar a comunicação a partir da emergência, é preciso compreender como se dá o envolvimento de pessoas, grupos e organizações em seus processos constitutivos, como as diversas vertentes de reivindicação dos direitos humanos à comunicação, de apropriação social das TICs e da consolidação de comunidades de compartilhamento social.

A ideia de lutar pelo direito humano à comunicação está diretamente relacionada à mobilização tanto daqueles que buscam exercê-la mais diretamente na prática – ativistas e jornalistas, por exemplo – como daqueles que têm competência para tanto, ou seja, a sociedade como um todo.

Nos debates internacionais, mesmo no campo da sociedade civil, a conceituação do direito humano à comunicação provoca entendimentos diversos: pode se referir à reivindicação dos meios de comunicação não disponíveis – como se se restringisse apenas a ampliar sua dimensão – ou, ainda, como a amplitude do direito à comunicação tal como é atualmente disponibilizada, com foco na dimensão do consumo de produtos e veículos por parte da população em geral. Entretanto, esse conceito diz respeito ao direito à comunicação em sua essência, tal como ela nunca deveria ter deixado de se afirmar e disseminar.

Sua origem se dá a partir do artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que afirma: “Todo homem tem direito à liberdade de opinião e expressão; esse direito inclui a liberdade de, sem interferências, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios, independentemente de fronteiras.”[7]

Comentando a afirmação de Jean d’Arcy, para quem o direito do homem a comunicar deveria ser contemplado na própria Declaração Universal dos Direitos Humanos, Cees Hamelink mostra que, desde sua introdução pela Unesco, em 1994, “o direito a comunicar é percebido por seus protagonistas como mais fundamental do que o direito à informação, como atualmente disposto pelas leis internacionais”.[8] O redimensionamento do artigo 19, a partir dos diversos debates que se seguiram, proporcionou o surgimento da Plataforma para os Direitos da Comunicação, um agrupamento de ONGs formado em 1996, em Londres, que, por sua vez, em 2001 fundou a Campanha Cris, sigla que significa, em português, Direitos à Comunicação na Sociedade da Informação.

O amadurecimento das articulações promovidas levou à necessidade de entender o próprio direito à comunicação como um direito humano, atualmente reivindicado por organizações como a Amarc e que se manifesta na Carta de Princípios da Campanha Cris como suporte aos direitos humanos: “Nossa visão de Sociedade da Informação se fundamenta no Direito a Comunicar como um meio de enfatizar os direitos humanos e fortalecer a vida social, econômica e cultural das pessoas e das comunidades.”[9] Também o texto de apresentação da Plataforma busca assegurar a concordância em

trabalhar para que o direito à comunicação seja reconhecido e garantido como fundamental para assegurar os direitos humanos, com base nos princípios de participação genuína, justiça social, pluralidade e diversidade e que reflita perspectivas de gênero, culturais e regionais.[10]

Já na Carta de las Radios Comunitarias y Ciudadanas, deliberada pela Amarc em 1998, durante a VII Assembleia Regional da Amarc 7 – europeia –, seus signatários afirmam que a “comunicação é um direito humano universal e fundamental” em todas as suas implicações, que são mais bem explicitadas em outros documentos disponibilizados pela seção latino-americana da Amarc, em especial a Carta de Comunicação dos Povos.

De modo geral, o desenvolvimento da percepção da importância da comunicação para a transformação social contribuiu para o resgate do direito à comunicação de todos, para todos e por todos, nas dimensões de conceber, produzir, veicular, disseminar e incrementar a participação de mais atores. Tal sentido é traduzido de maneira mais forte nesse contexto do que simplesmente na ideia de democratizar a atividade, englobando outras noções como a liberdade de expressão e de imprensa, o direito à informação, o direito de se comunicar, bem como também a própria democratização da comunicação, a diversidade cultural e as questões relacionadas à propriedade do conhecimento.

A formulação atual do direito à comunicação está, portanto, relacionada à definição de políticas públicas e marcos regulatórios, na forma de princípios a serem estabelecidos e reivindicados pelas diversas organizações participantes da Campanha Cris, bem como de outras iniciativas mais recentes, mais do que de leis democratizantes a serem efetivadas nos diversos países. Ou seja, a mobilização pela democratização da comunicação, que se processava de outras formas em outros países, agora se torna globalizada, buscando uma agenda comum a partir de realidades que cada vez mais se entendem como semelhantes.

No entanto, não é por ser globalizada que ela se torna consensual. A proximidade com aspectos relacionados à emergência diz respeito, nesse contexto, à constante troca de informações entre os participantes desses processos, que atuam em conjunto nas situações em que há acordo comum, mas guardam suas particularidades no desenvolvimento de ações específicas. Dessa forma, movimentos de rádios comunitárias e rádios livres estão juntos em questões gerais, embora tenham fóruns específicos em relação a seus projetos de rádio.

Do mesmo modo, não é por ser globalizada que a mobilização desses atores não se deixa determinar, também, por aspectos locais. Ao contrário, é o local que reconfigura o global, por meio das articulações de diversas redes que buscam soluções a partir de seus países e regiões, para se encontrar em fóruns mais amplos e compartilhar melhores práticas. A solidez da organização das estruturas locais é que determina um melhor envolvimento em escalas superiores. Assim é que a participação da sociedade civil em processos como o das cúpulas e conferências multilaterais da ONU se consolida e gera frutos na formulação de propostas, reivindicações e protestos, bem como no monitoramento de políticas públicas.

Se a partir dos anos 1970, com o desenvolvimento do movimento ambientalista, seus militantes começaram a tecer a ideia de pensar globalmente e agir localmente, ao final dos anos 1990, com o fortalecimento das organizações da sociedade civil em redes globais, essa perspectiva veio se construindo com base no ideário do pensamento e da ação globais. No entanto, o crescimento das articulações nos mais diferentes níveis e a necessidade de contar com pessoas das mais diversas comunidades, dos níveis mais simples aos mais complexos, a partir de consensos em torno de melhores práticas e estratégias, reforçou demandas relacionadas ao pensar e agir globais, mas com os pés no local. Um local que gera movimentos em escala nacional e que recebe de volta os frutos das articulações regionais e globais geradas a partir daí, tal como nos debates em torno da comunicação como interesse público.

 

3. A apropriação social das TICs

Por ser uma atividade de grupo ou mesmo coletiva, a apropriação social das TICs não se relaciona à propriedade ou à ideia de sua apropriação em benefício próprio, para levar vantagem ou se diferenciar do restante do coletivo, tornando-se especial ou mais capaz, mas sim para não ser dominado ou explorado – política ou economicamente – e compartilhar com seus iguais.

Esse entendimento autorreferente do processo de aprendizagem, bem como do acesso ao conhecimento necessário para um melhor aproveitamento das tecnologias disponibilizadas, se contrapõe à própria ideia de um trabalho não alienado e colaborativo que, nos dizeres de Holloway,[11] exprime nossa capacidade de fazer como um entrelaçamento de nossa atividade com a atividade anterior ou atual de outros, ou ainda como resultado do fazer dos outros, numa prática que, apesar de se associar à ação direta dos anarquistas tradicionais, não dispensa o entendimento do campo institucional como espaço de luta, ainda que não necessariamente com fins partidários.

Tal iniciativa tem origem nas próprias experiências de comunicação popular dos anos 1970 e 1980, e também na comunicação comunitária dos anos 1990, responsáveis por originar diversos grupos que proporcionaram olhares sobre um Brasil que se rearticulava e se repensava na descoberta do uso dos meios e no desenvolvimento de histórias de sua própria gente, cujos enredos não tinham espaço para exibição na mídia corporativa, revelando o que para Barbero representa “o mundo da cotidianidade, da subjetividade, da sexualidade, (…) o mundo das práticas culturais do povo: narrativas, religiosas ou de conhecimento”,[12] manifestado por iniciativas que, ao longo desse tempo, giravam em torno da Associação Brasileira de Vídeo Popular (ABVP) e das primeiras associações municipais de rádios livres ou comunitárias, em especial no Rio de Janeiro e em São Paulo.

Outro aspecto relevante da apropriação social é vital para esclarecer esse contexto: a efetiva apropriação social dos meios, veículos e produtos de comunicação comunitária é inversamente proporcional à capacidade de serem desenvolvidas novas concentrações no âmbito da sociedade civil. Para Holloway, que conduz sua obra como denúncia de uma prática equivocada ou mesmo oportunista por parte das forças de esquerda (no sentido de perpetuar ou ter acesso ao poder tal como ele se configura) ao longo da história, a luta a ser travada não é “para fazer nossa a propriedade dos meios de produção, mas para dissolver tanto a propriedade como os meios de produção: recuperar ou, melhor ainda, criar a sociabilidade consciente e segura do fluxo social do fazer”.[13]

Para além do conhecimento produzido, sedimentado e que necessita também ser compartilhado, outros campos do conhecimento relacionados às TICs podem ser tomados como possíveis desdobramentos, contemplando atores dos mais diversos: o recente processo de digitalização de rádio e TV no Brasil, visando o acesso e o controle democráticos; a adoção do software livre em larga escala, como garantia de socialização do conhecimento; e o desenvolvimento de experiências em telecentros e pontos públicos de acesso, em conexão com rádios e canais comunitários de TV a cabo, além dos pontos de cultura e de mídia livre, a partir das iniciativas de cultura digital no âmbito das gestões de Gilberto Gil e Juca Ferreira no Ministério da Cultura ao longo do governo Lula.

Apropriar-se socialmente das possibilidades de uso das TICs representa também, portanto, assumir outras dimensões que não apenas aquelas relacionadas à assimilação de funções e aplicações de programas de computador, a saber: a disponibilidade de infraestrutura (hardware, software e serviços de energia e telecomunicações); a capacitação para utilização de recursos (formação de monitores/facilitadores e pessoas das comunidades em geral); e as soluções a partir do aproveitamento de recursos (produção de conteúdos próprios e utilização de conteúdos já existentes e disponíveis).

As experiências de rádios comunitárias, canais comunitários de TV a cabo, os mais recentes telecentros e pontos de cultura e mídia livre são espaços fundamentais de articulação de setores da sociedade, nos quais o debate sobre aspectos relacionados à lei de comunicação social precisa circular, para que surjam propostas e manifestações a partir do encontro desses atores. A sociedade civil organizada assume, nesse processo, um papel determinante na formulação de suas políticas públicas, a serem tanto reivindicadas quanto afirmadas em seu fazer cotidiano. Seu lugar é muito menos o de afirmar a composição de uma estrutura tripartite, na qual ela se identifica a partir da restritiva concepção de terceiro setor, mas o de, não ignorando a existência de momentos de necessárias concertações junto com o Estado e o mercado, tecer sua autonomia a partir de atividades distintas, capazes de atribuir-lhe identidade junto à população em geral.

Há de se compreender também a complexidade desses papéis, uma vez que o Estado também é composto por atores hegemônicos oriundos da sociedade civil e de suas forças de sustentação, afirmando e se prevalecendo do poder regulador, que cria, julga e executa regulações diversas. A apropriação social aparece não só como estratégia de uso das TICs disponíveis ou a se reivindicar, mas como eixo central de articulação dos atores, no contexto das organizações da sociedade civil, para a elaboração de novas regulações.

No campo da comunicação, cabe compreender de quais formas se torna possível a promoção do interesse público a partir da perspectiva da emergência, bem como relacionar essa comunicação com o sistema vigente. Iniciativas que fomentam a articulação em rede e a aprendizagem de forma compartilhada contribuem para constituir modelos de referência para uma democratização da comunicação que a afirme como direito humano a partir do próprio poder-fazer comunicacional, ou ainda, conforme Holloway, da capacidade de mudar o mundo sem mudar o poder.

 

4. Para uma comunicação emergente

O ideário da emergência nos fenômenos culturais, nos quais o aprendizado coletivo a partir de escalas locais permite o desenvolvimento de processos sociais amplos e consolidados, reivindica os discursos de autonomia relacionados às propostas autogestionárias anarquistas, incrementando valores que afirmam a emergência para consolidar forças e consciências coletivas, determinantes nos processos comunicacionais.

A comunicação neste início de século passa a ser incorporada como componente central dos movimentos sociais, constituída a partir de valores como a pluralidade no cotidiano das ações dos movimentos, a participação na capacidade real de envolvimento das pessoas no processo de produção, a horizontalidade, visando a eliminação de níveis hierárquicos, de concentração de poder ou mesmo de conhecimento, a dialogicidade, pela promoção do conhecimento a partir da informação compartilhada, a que todos têm acesso e, por fim, a interatividade, na preocupação com o nivelamento de informações e capacidades de atuação, compreendendo a capacidade de sustentação de bandeiras de luta a se reivindicar e de novas e diferentes experiências a serem implementadas, dada a plena consciência do papel dos atores sociais nesse contexto. A emergência se apresenta aqui como condição de visibilidade de suas próprias conquistas, bem como estratégia para voos futuros, até porque a contribuição de seus preceitos às formas de organização complexas se dá justamente devido aos processos comunicacionais estabelecidos pelos elementos de seus coletivos, na consolidação de suas ações.

* Professor do curso de Comunicação Social e do Programa de Estudos Pós-graduados em Política Social da Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutor e mestre em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São Paulo (Umesp). E-mail: acabral@comunicacao.pro.br.

 


[1] JOHNSON, 2003, p. 54.

[2] Ibid., p. 56-58.

[3] Ibid., p. 14.

[4] MORIN, 2005, p. 13.

[5] JOHNSON, 2003, p. 16.

[6] ALVES JR., 2006.

[7] DECLARAÇÃO UNIVERSAL…, 2004.

[8] HAMELINK apud MELO; SATHLER, 2005, p. 144.

[9] LA CARTA…, 2005.

[10] PLATFORM…, 2005.

[11] HOLLOWAY, 2003, p. 48.

[12] BARBERO, 1997, p. 244.

[13] HOLLOWAY, op. cit., p. 307.

 

 

 

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Cabo de guerra – A disputa por sentido na comunicação | de Pablo Nabarrete Bastos

Resumo

A comunicação e a cultura, tendo a linguagem, a palavra, como elemento de interseção e face sensível, exercem papéis estratégicos nas disputas por sentido entre interlocutores – a ênfase recai nos movimentos sociais, os meios de comunicação de massa e o poder público –  e seus discursos, os quais compõem a complexa trama da dialética cultural contemporânea. O processo intelectual de construção de mediações e diálogos entre/nos movimentos, nos processos de lutas simbólicas por atribuição de sentido às palavras e aos fenômenos sociais e culturais, bem como as condições estruturais para tessitura desses discursos e dessas identidades, são questões centrais na composição de forças dos  movimentos e agentes sociais, nas suas relações com os meios de comunicação de massa e o poder público, nos jogos de poder e linguagem que medeiam a construção dos aparatos hegemônicos e contra-hegemônicos.

Palavras-chave: comunicação; cultura; linguagem; hegemonia; movimentos sociais.

 

O jogo

Esse cabo de guerra é diferente. De imediato, não é possível reconhecer os oponentes, tampouco as regras do jogo, visto que tanto as composições de forças entre os jogadores quanto os fatores determinantes para vitória ou derrota são circunstanciais, já que dialética e historicamente constituídos. O material externo da corda, sua parte visível, é composto por linguagem, que se modifica conforme o contexto do jogo e o cenário correspondente. A camada interna, o cerne da corda, sua força motriz, é composta pelas ideologias, que tanto equilibram o jogo em benefício dos dominantes, como podem mudar o rumo da partida em favor das classes populares. Os elementos centrais que permitem aos jogadores se locomoverem, se reconhecerem e mudarem os rumos da partida são a história e a estrutura social, correspondentes à força da gravidade e ao atrito do chão, o que em última instância determina o continuum histórico. O olhar para a história e a consciência do seu papel e espaço ocupados no chão são estratégicos para operar mudanças na partida.

Indiscutivelmente, a comunicação e a cultura, e também as denominadas tecnologias da informação e da comunicação – TICs – possuem papel estratégico na contemporaneidade, sendo utilizadas para finalidades distintas, costumeiramente antagônicas, mediando construções e disputas materiais e simbólicas. Pretendo aqui mostrar o papel e o espaço da linguagem, da comunicação, no processo de construção de um aparato hegemônico e possivelmente contra-hegemônico, compreendendo que a palavra, mesmo com o crescente avanço técnico e tecnológico digitais, ocupa papel central na formulação e na compreensão dos discursos que constituem parte importante das disputas por poder; reconhecer a produção, a reprodução e os usos da comunicação como fatores estratégicos na construção das identidades culturais contemporâneas, sem, contudo, perder de vista o determinismo, em última instância, da estrutura social, da base econômica que fornece os elementos concretos para mobilidade dos atores sociais e consolidação do bloco de poder – classes dominantes, instituições e mecanismos de reprodução social. Estrutura social utilizada pragmaticamente para composição de artifícios dos jogos de linguagem com o intuito de aproximar/afastar, mostrar/esconder, apropriar/expropriar, reproduzir/transformar, conforme a intenção e a finalidade sociais, quer perpetuem, quer combatam o bloco de poder estabelecido.

 

A base e a superestrutura

As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, a sua força espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios da produção material dispõe também dos meios da produção espiritual, de modo que a ela estão submetidos aproximadamente ao mesmo tempo os pensamentos daqueles aos quais faltam os meios da produção espiritual. As ideias dominantes não são nada mais do que a expressão ideal das relações materiais dominantes, são as relações materiais dominantes apreendidas como ideias; portanto, são a expressão das relações que fazem de uma classe a classe dominante, são as ideias de sua dominação.[2]

O que se pretende aqui não é uma análise exaustiva acerca do debate existente na teoria cultural marxista e nos estudos de comunicação acerca da relação entre estrutura e superestrutura. Historicamente, no marxismo dito ortodoxo, a ênfase recai nos aspectos econômicos. No campo da comunicação, os objetos, métodos e teorias são epistemologicamente desenvolvidos visando principalmente o entendimento dos processos simbólicos, comunicacionais, culturais, ideológicos, havendo, em diferentes períodos históricos e teóricos, maior ou menor ênfase à economia política da comunicação e às estruturas interpretativas. Busco expor os contornos gerais de um debate histórico, para mostrar dialeticamente as múltiplas determinações, materiais e simbólicas, que estruturam a construção hegemônica da realidade.

A autorrevolução e a reprodução social incessantes e permanentes do sistema capitalista são expressas no modo como o capital avança sobre todas as áreas da vida e todos os setores de produção; e na efemeridade de suas fórmulas, seus produtos e processos que substanciam desejos e necessidades, características acentuadas na contemporaneidade, denotando a lógica cultural do capitalismo avançado, chamada por alguns autores de pós-modernidade. Conquanto reconheça a relevância de formulações marxistas ortodoxas, a questão do determinismo econômico não pode ser confundida com reducionismo econômico, pois há múltiplas determinações – culturais, comunicacionais, ideológicas e políticas – que confluem e operam na construção e na interpretação da realidade.

Na história da teoria da comunicação, percebemos a mudança, que aqui exponho de forma bastante sucinta, de enfoque teórico: do marxismo ortodoxo para uma perspectiva gramsciana. Sobretudo durante a década de 1970, o embasamento das pesquisas recaía na chamada “teoria da dependência”, na qual a situação de subordinação na economia política global teria como “reflexo” a dependência no desenvolvimento cultural, o que é sintomático de uma abordagem marxista ortodoxa. Enquanto na virada para os anos 1980, devido a fatores endógenos como o processo de redemocratização do país, o surgimento de novos atores sociais e a reorganização e a maior valorização do papel da sociedade civil, como efeito retardado da descrença no “Estado como lugar e instrumento privilegiados das mudanças sociais”,[3] e mudanças globais, como a intensificação do processo de globalização, com os vertiginosos avanços dos meios de comunicação de massa e das novas TICs, há uma valorização, por vezes exagerada, do papel ativo do receptor na decodificação das mensagens, na constituição de sentidos.

A questão do determinismo econômico é cara ao marxismo e aos seminais estudos de comunicação. Quando Marx afirma que “não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência”,[4] marca uma posição filosófica e política diametralmente oposta à filosofia idealista, mostrando que é nas práticas sociais, no trabalho, na posição ocupada na estrutura social e nas relações sociais advindas dessa posição na estrutura, que a consciência é forjada.

O chamado marxismo vulgar, com seu famigerado apelo economicista, é obra de leitores de Marx que se vinculam à tendência comumente chamada ortodoxa. Gramsci, que desenvolveu suas formulações a partir de sua vinculação marxista-leninista, sem, contudo, compactuar dessa ortodoxia, afirma que:

A pretensão (apresentada como postulado essencial do materialismo histórico) de apresentar e expor qualquer flutuação da política e da ideologia como uma expressão imediata da infraestrutura deve ser combatida, teoricamente, como um infantilismo primitivo, devendo ser combatida praticamente com o testemunho autêntico de Marx, escritor de obras políticas e históricas concretas.[5]

Gramsci possui um papel destacado na história do marxismo e do pensamento ocidental, entre outros aspectos por ter conferido centralidade à comunicação e à cultura no processo de luta política, buscando conciliar, tal qual Lênin, teoria e prática revolucionária. O que se torna evidente na seguinte passagem:

A identificação de teoria e prática é um ato crítico, pelo qual se demonstra que a prática é racional e necessária ou que a teoria é realista e racional. Daí porque o problema da identidade de teoria e prática se coloque especialmente em determinados momentos históricos, os quais se chamam “de transição”, isto é, de mais rápido movimento de transformação, quando realmente as forças práticas desencadeadas demandam a sua justificação a fim de serem mais eficientes e expansivas, ou então se multiplicam os programas teóricos que demandam, também eles, a sua justificação realista, o que ocorre na medida em que demonstram a sua possibilidade de assimilação por movimentos práticos, que só assim se tornam práticos e reais.[6]

É pertinente abordar, ao menos em linhas gerais, alguns delineamentos históricos da construção do pensamento de Antonio Gramsci, visto que nos estudos de comunicação o autor costuma aparecer ora como força oculta, ora como um culturalista, o que é ainda mais preocupante, acadêmica e intelectualmente, pois em seu trabalho não há uma sobrevalorização do aspecto cultural nem tampouco do papel ativo do sujeito ou da sociedade civil nas possíveis transformações históricas, e sim um grande esforço intelectual e político para pensar as relações entre cultura, comunicação, política, Estado, estrutura social e papel da sociedade civil para sedimentar a revolução. Os conceitos de hegemonia, de bloco histórico, de cultura popular, de ideologia, as questões das relações entre estrutura e superestrutura foram desenvolvidos para conciliar teoria e prática com vistas à revolução comunista na Itália do início do século XX.

O conceito de bloco histórico de Gramsci enseja uma reflexão sobre a complexidade das relações entre estrutura e superestrutura, das relações entre os elementos superestruturais, a cultura, a ideologia, a comunicação, e da ardilosa constituição de um aparato hegemônico, estruturado por operações simbólicas que objetivam o equilíbrio/consenso entre dominantes e dominados. Ao refletir sobre a afirmação de Marx acerca da solidez das crenças populares e da força de uma persuasão popular ter a mesma energia de uma força material, Gramsci atesta que:

A análise dessas afirmações, creio, conduz ao fortalecimento da concepção de “bloco histórico”, no qual, justamente, as forças materiais são o conteúdo e as ideologias são a forma – sendo que essa distinção de forma e conteúdo é puramente didática, já que as forças materiais não seriam historicamente concebíveis sem forma e as ideologias seriam fantasias individuais sem as forças materiais.[7]

 

Como o bloco histórico se mantém por meio de uma relação hegemônica, que é estruturada pela cultura, comunicação e ideologia, por sua vez mantidas e perpetuadas por instituições e práticas sociais e culturais, a relação entre classe dominante e classes populares é problematizada. Já que não há uma correspondência direta entre posição na estrutura e as ideias, a forma de lidar com os meios de comunicação, as instituições culturais, sobretudo com o Estado, é determinante na constituição da força política dos agentes sociais no processo histórico. E a forma de compreender essas relações, o sentido do posicionamento político do sujeito coletivo, é estratégica na elaboração de uma identidade cultural e de um aparato ideológico, pois é por esse prisma que se identificam os aliados, os inimigos e as formas de luta.

De acordo com Raymond Williams, um dos principais nomes dos estudos culturais, cujos textos constituíram a base desse projeto intelectual, acadêmico e político, inicialmente em solo britânico, fundamental para o pensamento que credita papel central à cultura nas práticas e processos sociais:

Nós temos que reavaliar “determinação” como o estabelecimento de limites e o exercício de pressões, e não como a fixação de um conteúdo previsto, prefigurado e controlado. Nós temos que reavaliar “superestrutura” em relação a um determinado escopo de práticas culturais relacionadas, e não como um conteúdo refletido, reproduzido ou especialmente dependente. E, principalmente, nós temos que reavaliar “base” não como uma abstração econômica ou tecnológica fixa, mas como as atividades específicas de homens em relações sociais e econômicas reais, que contêm tradições e variações fundamentais, e por isso estão sempre em estado de processo dinâmico.[8]

Hegemonia e linguagem

O termo hegemonia foi criado por Lênin para “se referir à liderança que o proletariado russo deveria estabelecer sobre os camponeses nas lutas pela fundação de um Estado socialista”.[9] O conceito de hegemonia é posteriormente desenvolvido por Gramsci para pensar, dentro do contexto italiano, como as culturas populares, a filosofia do povo ou do “senso comum”[10] das classes populares eram heterogeneamente estruturadas a partir de elementos progressistas e da filosofia das classes dominantes, historicamente sedimentada.

[…] nela se encontram elementos dos homens das cavernas e princípios da ciência mais moderna e progressista; preconceitos de todas as fases históricas passadas, grosseiramente localistas, e intuições de uma futura filosofia que será própria do gênero humano mundialmente unificado.[11]

 

Gramsci buscava entender de que forma essa visão de mundo estava atrelada ao bloco de poder, e como o povo poderia, cultural e ideologicamente, se tornar a classe dirigente. “Na medida em que são historicamente necessárias, as ideologias têm uma validade que é ‘psicológica’: elas ‘organizam’ as massas humanas, formam o terreno sobre o qual os homens se movimentam, adquirem consciência de sua posição, lutam, etc.”[12] Stuart Hall afirma que “ele tinha plena consciência do quanto as linhas divisórias ditadas pelos relacionamentos de classe eram perpassadas pelas diferenças regionais, culturais e nacionais; também pelas diferenças nos compassos do desenvolvimento histórico regional ou nacional”.[13]

E, como na guerra de posições[14] as superestruturas são as “trincheiras”,[15] a função dos intelectuais e a formação de novos intelectuais orgânicos são fundamentais na luta pela hegemonia política, pela conquista do dirigismo político-ideológico, para a formação de novos blocos de poder, para a transformação histórica.

A relação entre os intelectuais e o mundo da produção não é imediata, como é o caso nos grupos sociais fundamentais, mas é “mediatizada”, em diversos graus, por todo o contexto social, pelo conjunto das superestruturas, do qual os intelectuais são precisamente os “funcionários”.[16]

As negociações entre os conteúdos ideológicos se expressam em processos comunicativos, por intermédio dos agentes sociais e sua relação com os distintos processos culturais e sociais de mediação, sobretudo nas relações com os meios de comunicação de massa e o Estado, compondo a complexa trama da dialética cultural contemporânea. Nesse ínterim, o popular, numa acepção sociológica, que associa cultura popular com a cultura feita pelo povo, pelas classes populares, é um campo privilegiado para pensar as disputas simbólicas por poder que estruturam os processos de comunicação – produção, circulação, troca, apropriação, expropriação –, visto que são forças com potencial antagonismo ao poder estabelecido, sobretudo quando organizadas em movimentos.

As culturas de classe tendem a se entrecruzar e a se sobrepor num mesmo campo de luta. O termo “popular” indica esse relacionamento um tanto deslocado entre a cultura e as classes. Mais precisamente, refere-se à aliança de classes e forças que constituem as “classes populares”. A cultura dos oprimidos, das classes excluídas: esta é a área à qual o termo “popular” nos remete. E ao lado oposto a isso – o lado do poder cultural de decidir o que pertence e o que não pertence – não é, por definição, outra classe “inteira”, mas aquela outra aliança de classes, estratos e forças sociais que constituem o que não é o “povo” ou as “classes populares”: a cultura do bloco de poder. O povo versus o bloco de poder: isso, em vez de classe contra classe, é a linha central da contradição que polariza o terreno da cultura. A cultura popular, especialmente, é organizada em torno da contradição: as forças populares versus o bloco de poder. Isso confere ao terreno da luta cultural sua própria especificidade.[17]

 

Assim, não é possível uma associação imediata entre as construções simbólicas desenvolvidas ou apropriadas pelas classes populares com sua relação com os discursos oficiais e seu posicionamento diante deles, do bloco de poder, das forças sociais em jogo e disputa. A consciência de fazer parte de um grupo cultural e social popular, de constituir a força simbólica e política do povo não é imediata, implica o desenvolvimento de um conjunto de mediações frente aos processos perpetuados pelas instituições culturais, políticas e pelos aparatos comunicacionais do bloco de poder estabelecido.

Em suas inflexões de cunho epistemológico, Bakhtin (1895-1975) buscou preencher uma lacuna existente no campo do marxismo acerca das relações entre linguagem, ideologia e estruturas sociais, e sua validade histórica persiste, criticando com peculiar perspicácia tanto acepções de caráter subjetivista e idealista quanto as de cunho mecanicista, estas no âmbito do marxismo. Ao afirmar que “tudo que é ideológico é um signo”,[18] mostra-nos que a reprodução social e a reificação são substanciadas por operações linguísticas, compreendendo aqui ideologia no sentido primário marxista, como engodo, máscara que oculta os processos de expropriação e lutas de classe. A própria consciência é formada pela materialidade dos signos e se expressa também por mecanismos linguísticos, pela palavra, prenhe de sentido e cuja fecundidade está diretamente ligada ao grau de orientação social, ao horizonte social dos interlocutores, que podemos também compreender como consciência de classe. Nisso consiste a maleabilidade da palavra, que pode adquirir formas e sentidos diversos conforme seu conteúdo e sua intenção ideológicos, bem como sua função: estética, científica, política, social etc. De acordo com o autor,

classe social e comunidade semiótica não se confundem. Pelo segundo termo entendemos a comunidade que utiliza um único e mesmo código ideológico de comunicação. Assim, classes sociais diferentes servem-se de uma só e mesma língua. Consequentemente, em todo signo ideológico confrontam-se índices de valor contraditórios. O signo se torna a arena onde se desenvolve a luta de classes.[19]

Não obstante, esse caráter multifacetado do signo ideológico, que permite adequações conforme os interesses de classe e a orientação social dos coenunciadores, é obstruído pelas classes dominantes, pelo bloco de poder e seus mecanismos de reprodução social, pois essa dialética interna do signo faculta às classes populares materiais simbólicos para construção de um discurso contra-hegemônico. Dessa forma, as palavras que expressam a ideologia dominante são mostradas com unicidade, legitimando a face que lhe corresponde e ocultando outras possibilidades.

Fragmentações do horizonte social

O econômico fornece o repertório de categorias que serão utilizadas no pensamento. O que o econômico não pode fazer é (a) fornecer os conteúdos particulares dos pensamentos das classes ou grupos sociais em qualquer tempo específico; ou (b) fixar ou garantir para sempre quais ideias serão utilizadas por quais classes. A determinação do econômico sobre o ideológico pode, portanto, acontecer apenas em termos do estabelecimento anterior de limites que definam o terreno das operações, estabelecendo a “matéria-prima” do pensamento.[20]

Embora refutemos abordagens mecanicistas que expressem reducionismo econômico, é inegável, ao menos em última instância, as determinações de ordem econômica, mas essa característica estrutural, ao contrário de estancar possibilidades de compreensão e transformação da realidade, nos impele a desenvolver inflexões tensionadas a abarcar a totalidade dos processos. É certo que os desafios para compreender a complexidade da realidade e suas possibilidades de transformação são cada vez maiores, e as brechas para construção de outro horizonte social, cada vez menores.

Nesse período histórico, apresentam-se fenômenos socioculturais, como fragmentação das identidades, dos conceitos, maleabilidade dos processos, efervescência de imagens, que expressam a lógica cultural do capitalismo avançado. Essa efervescência e essa fragmentação são corolários de mudanças estruturais, do processo destrutivo do capital cada vez mais veloz e avassalador, e são a face aparente, a imagem que perpetua essa mesma estrutura social, o que só interessa ao bloco de poder estabelecido.

David Harvey contribui bastante para esse debate.[21] O autor analisa a pós-modernidade como situação histórico-geográfica. Mostra-nos que na pós-modernidade são intensificadas características fundamentais da modernidade e da própria lógica capitalista de produção, como a efemeridade de produtos, ideias e processos históricos.

A burguesia só pode existir com a condição de revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, por conseguinte, as relações de produção e, com isso, todas as relações sociais. […] Dissolvem-se todas as relações sociais antigas e cristalizadas, com seu cortejo de concepções e de ideias secularmente veneradas; as relações que a substituem tornam-se antiquadas antes de terem um esqueleto que a sustente. Tudo o que era sólido e estável evapora-se, tudo o que era sagrado é profanado e os homens são, finalmente, obrigados a encarar com serenidade suas condições de existência e suas relações recíprocas.[22]

Para David Harvey, o que gera a multiplicidade e a fragmentação de imagens, conceitos e identidades, sintomas característicos da pós-modernidade, é a alteração das forças produtivas e das relações de produção. O que ocorre, de acordo com as análises do autor, com a mudança do modelo de acumulação fordista para o de acumulação flexível. Com o processo de compressão do espaço-tempo, ou “destruição do espaço através do tempo”, provocado pela interconexão global em redes de comunicação, são exacerbadas a fugacidade das construções materiais e simbólicas, o fetichismo da mercadoria, a necessidade do mercado de se apropriar incessantemente de símbolos, imagens e discursos construídos por diferentes grupos étnicos, sociais e culturais para criação de desejos e necessidades de consumo.[23] Multiplicam-se as linguagens e os discursos, os referenciais de identidade e de luta política, as formas de opressão e propostas alternativas de construção de outra realidade. O autor sugere que “a ideia de que todos os grupos têm o direito de falar por si mesmos, com sua própria voz, e de ter essa voz aceita como autêntica e legítima, é essencial para o pluralismo pós-moderno”.[24]

Obviamente que a pós-modernidade trouxe à tona alteridades regionais, de gênero, de raça e de geração, identidades culturais historicamente oprimidas que tiveram possibilidade de inserir e modular suas vozes na agência histórica. Entretanto, há uma reação perversa no processo do capital a essa proliferação de novas identidades e sua sobrevalorização, que é a acentuada ocultação de processos estruturais, haja vista que a marcha do capitalismo global possui mecanismos de poder para obstruir outras – de gênero, de raça, comportamentais etc. – que muitas vezes não criam seus aparatos conceituais e linguísticos com possibilidade de conter ou reverter sua lógica estrutural. Essa fragmentação tem como corolário também um horizonte social deveras fragmentado, bem como orientações sociais distintas. E os meios de comunicação de massa e as novas TICs atuam como grande espelho, provocando, por seus reflexos, deslocamentos, descentramentos, desterritorializações, mediando a visão dos atores sociais acerca da realidade, possibilitando a construção de novas identidades culturais, movimentos sociais, concomitantemente ao distanciamento cada vez maior de uma unidade política, de uma consciência de classe que possibilite transformações históricas profundas.

As disputas hegemônicas e seus jogos de linguagem, tendo a palavra como construtora e mediadora simbólica, ocorrem em diferentes instâncias e dimensões. Dentro dos movimentos sociais, culturais, em virtude das matizações ideológicas distintas, e também nas relações com os meios de comunicação de massa, o Estado, o bloco de poder.

A disputa do/no hip-hop

As relações no movimento hip-hop expressam bem esse jogo de poder.[25] No processo histórico e cotidiano de constituição do movimento, há distintas dimensões de lutas simbólicas para atribuir sentido ao hip-hop: disputas internas, entre as principais vertentes do movimento hip-hop, e externas, na relação com os meios de comunicação de massa, a indústria cultural e o poder público.

Há uma grande diversidade no posicionamento político, nas formas de se trabalharem as matrizes sociais, étnico-raciais, de gênero e geração, de acordo com as referências históricas e culturais de cada cidade e dos integrantes das organizações de hip-hop: as posses. Posse é o nome criado para as organizações em que trabalham os elementos artísticos – MC, DJ, breaking (a dança de rua mais praticada) e graffiti – em torno de uma visão de mundo e um projeto político, que eles entendem e denominam como o quinto elemento. Atualmente há grandes organizações de hip-hop atuando em projetos políticos mais amplos, em nível nacional e internacional, desenvolvendo alianças com outras entidades, principalmente movimentos negros e partidos políticos de esquerda. Há, inclusive, na tendência classista de hip-hop, que possui como um de seus principais representantes políticos a organização nacional Nação Hip-Hop Brasil, um diálogo com o MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra.[26]

Em síntese, há uma disputa interna, na qual se apresentam três grandes tendências: uma que trabalha com centralidade na questão de raça, outra com ênfase na luta de classes, e uma terceira tendência que podemos chamar de culturalista, que entende que as transformações sociais são resultado do trabalho de formação cultural e cidadã. O trabalho de formação artística, cultural e política desempenhado por essas organizações, constituindo um processo de comunicação e educação, possibilitando a construção de uma consciência crítica, é desenvolvido numa tensão constante, tal qual um cabo de guerra, para atribuir sentido ao movimento hip-hop.  Há tensões internas e uma disputa incessante com os meios de comunicação de massa e o poder público. A visão do Estado é predominantemente a da educação bancária, sem margem para o diálogo, nos dizeres freirianos, com políticas em grande parte com intentos domesticadores.

Os meios de comunicação de massa desenvolvem recortes que privilegiam o bem de consumo simbólico, rentável para a indústria cultural, expropriando seu caráter ideológico, as palavras com potencial para combater, sinalizar e talvez operar mudanças na estrutura social. No caso do hip-hop, associando-o ao rap, reduzindo o conjunto de expressões de um movimento complexo a mais um produto cultural, criando um discurso metonímico, extremamente prejudicial para o caráter político do movimento.

No dia 27/6/2011, uma segunda-feira, quando circula na Folha de S.Paulo um suplemento com matérias selecionadas do New York Times , saiu, na seção Arte & Estilo, uma matéria intitulada “Conhecido por fundar o reggae dancehall” – o que mostra que a estratégia não é uma particularidade nacional. Escrita por Rob Kenner, é uma clara alusão ao hip-hop como gênero musical. A matéria apresenta a seguinte frase logo no lide: “Durante um concerto de reggae e hip-hop em Miami, o DJ Nuffy começou a apresentar o artista de reggae dancehall Vybz Kartel.”

Já no caderno Ilustrada, que apresenta notícias de arte, cultura e entretenimento, do dia 22/6/2011, há matéria sobre lançamento do álbum Doggumentary, do rapper multimilionário e presença constante na mídia, Snoop Dogg. No sétimo parágrafo está a seguinte frase: “Snoop descobriu seu talento para o rap aos 15 anos, quando participava de disputas de hip-hop no colégio.”

Mais uma vez, claramente, a palavra hip-hop é exposta como gênero musical. Nesses casos, sobrepõe-se o valor de troca sobre o valor de uso da palavra. Palavra que, velada, violada e expropriada, vende um bem de consumo aparentemente asséptico, porque travestido de roupagem mercadológica. Assim, isso significa “afirmar que o exercício da língua só parece importar enquanto valor de troca e não de uso mostra o sentimento redutor que acompanha as operações com muitas das palavras em circulação nos media”.[27]

O combate e o exemplo do MST

Na relação com o MST, essa postura dos media é ainda mais agressiva. Isso se explica pelo posicionamento radical do movimento, que faz estremecer o bloco de poder ao construir e mostrar outra lógica de organização e domínio do espaço e do tempo – que se contrapõe enfaticamente à lógica do capital, representado pelo agronegócio, por amplos setores do Estado e pelas multinacionais da comunicação – demonstrando possuir voz própria, que pode e quer ser protagonista da sua história, agente principal das grandes transformações históricas. Pelos impactos simbólicos de suas ações, tendências de movimentos populares urbanos veem no MST um importante espelho para construírem sua identidade de classe e seus projetos de luta pela soberania popular.

Esse movimento incomoda não somente porque traz de volta ao cenário político a questão agrária, que é problema secular no Brasil. A impressão é de que o seu próprio jeito de ser é o que incomoda mais: suas ações, mas, principalmente os personagens que faz entrar em cena, e os valores que esses personagens encarnam e expressam em suas ações, sua postura e sua identidade, que podem, aos poucos, espalhar-se e constituir outros sujeitos, sustentar outras lutas.[28]

O que já era visível empiricamente e também por intermédio de algumas pesquisas sobre o tema, ao menos para os que militam, pesquisam ou se sensibilizam com as disputas por sentido nas formas de representações de movimentos sociais, que é a intensa criminalização por parte da grande mídia, ficou ainda mais evidente a partir de pesquisa desenvolvida pelo Intervozes, coletivo de comunicação social que luta pela democratização dos meios de comunicação. O Intervozes realizou uma pesquisa sobre a cobertura feita pela mídia impressa e televisiva sobre o MST no período da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito, realizada em 2010, para investigar o movimento. O corpus da pesquisa é formado por três jornais de circulação nacional (Folha de S.Paulo, O Estado de S. Paulo e O Globo); três revistas também de circulação nacional (Veja, Época e Carta Capital); e os dois telejornais de maior audiência no Brasil: Jornal Nacional, da Rede Globo, e Jornal da Record. Das 301 matérias pesquisadas, são consideradas apenas matérias que citam explicitamente o MST. O período pesquisado foi de 10/2/2010, data da primeira reunião da CPMI, até 17/7/2010, dia da votação do relatório final da referida Comissão. Alguns dados importantes da pesquisa: em apenas 18,9% das matérias o MST é ouvido, ou seja, raramente o MST é fonte; há uma clara predominância de abordagem pejorativa, foram encontrados termos negativos em 59,1% das matérias; o tema da reforma agrária, principal bandeira de luta do movimento, aparece em apenas 14,6% delas; em apenas 13% das matérias são citados dados estatísticos e em 13,6% são citadas legislações, o que revela, ao menos, jornalismo leviano. No caso dos telejornais, não há qualquer menção à legislação. A pesquisa atesta o caráter panfletário, faccioso e editorializado por parte das matérias construídas pela grande mídia.[29] Obviamente, o MST também possui forte aparato de comunicação que combate ideologicamente o viés da mídia corporativa, entretanto este não tem alcance de massa, o que impossibilita grandes repercussões, inclusive nas novas TICs.

O jogo continua

Pensemos no diálogo freiriano, no humanismo científico e radical, como norte para a mobilização popular, como caminho para encontrar a unidade na diversidade. Conforme o autor, “o diálogo é o encontro amoroso dos homens que, mediatizados pelo mundo, o ‘pronunciam’, isto é, o transformam, e, transformando-o, o humanizam para a humanização de todos”.[30] Mais adiante, Paulo Freire explica o caráter desse humanismo, que define como científico. “Humanismo, que vendo os homens no mundo, no tempo, ‘mergulhados’ na realidade, só é verdadeiro enquanto se dá na ação transformadora das estruturas em que eles se encontram ‘coisificados’, ou quase ‘coisificados’.”[31] Assim como as práticas sociais e a estrutura social constituem o aporte primário para a consciência, a palavra é a base estruturante e o caminho pelo qual o pensamento e a consciência são erigidos, conceitual e simbolicamente. O sentido não está guardado, enclausurado no significado, mas é algo maleável, errático, que se encontra no processo de interação social, nos jogos de linguagem, na busca pela significação, que pressupõe coenunciadores e mediação da história e da palavra – significante e significado – moldados ideologicamente conforme o contexto, a orientação e o horizonte social dos interlocutores. Dispomos, a princípio, de um mesmo campo sígnico, maleável e neutro a princípio, para a construção das pontes da significação, erigidas no diálogo. O jogo de poder, da dialética cultural e da luta pela hegemonia na contemporaneidade tem na linguagem, na palavra e em sua ideologia correspondente, a sua face sensível, moldando e sendo modelada conforme as disputas colocadas pela agenda histórica. O jogo continua.

 

Pablo Nabarrete Bastos é professor, mestre em Comunicação Social na Uninove. Doutorando em Ciências da Comunicação do PPGCOM da ECA-USP, linha de pesquisa de Comunicação, Cultura e Cidadania, sob a orientação do Prof. Dr. Celso Frederico. Apresentou artigos em congressos e encontros de comunicação, cultura, cidadania, culturas populares e política. Autor do artigo “Jogo de espelhos”, publicado no livro Comunicação para a cidadania, caminhos e impasses, editado pela E-Papers, compilação de trabalhos publicados no VII Encontro dos Núcleos de Pesquisa da Intercom, em 2007 na cidade de Santos. E-mail: pablobastos@hotmail.com; pablonabarrete@usp.br.


Notas

 

 

[1] Trabalho apresentado inicialmente ao GP Comunicação para a Cidadania, do XI Encontro dos Grupos de Pesquisa em Comunicação da Intercom, evento componente do XXXIV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Publicado aqui com alterações.

[2] MARX, 2007, p. 47.

[3] SADER, 1995, p. 33.

[4] MARX, 2007.

[5] GRAMSCI, 1966, p. 117.

[6] Ibid., p. 51.

[7] Ibid., p. 63.

[8] WILLIAMS, 2005, p. 214.

[9] HALL, 2003, p. 294.

[10] Gramsci considera que todos somos filósofos e que no senso comum está implícita uma visão de mundo. “Deve-se, portanto, demonstrar, preliminarmente, que todos os homens são “filósofos”, definindo os limites e características dessa “filosofia espontânea”, peculiar a “todo mundo”, isto é, da filosofia que está contida: 1) na própria linguagem, que é um conjunto de noções e de conceitos determinados e não, simplesmente, de palavras gramaticalmente vazias de conteúdo; 2) no senso comum e no bom senso; 3) na religião popular e, consequentemente, em todo o sistema de crenças, superstições, opiniões, modos de ver e de agir que se manifestam naquilo que se conhece geralmente por “folclore”. (GRAMSCI, 1966, p. 11).

[11] GRAMSCI, 1966, p. 12.

[12] Ibid., p. 62.

[13] HALL, 2003, p. 283.

[14] O conceito de “guerra de posição” faz parte da teoria da hegemonia e responde à exigência de definição das características históricas novas da luta política no mundo depois da Grande Guerra e da Revolução de Outubro. (…) A importância do conceito de “guerra de posição” se afirma, então, como o ponto de chegada e de máxima generalização do raciocínio. Esse modo de desmontar teoricamente o economicismo pode ser considerado o aspecto de maior originalidade da tradição comunista italiana e também a diferença mais evidente em relação às outras correntes do movimento comunista e socialista internacional. (VACCA, 2006).

[15] HALL, 2003.

[16] GRAMSCI, 1968, p. 10.

[17] HALL, op. cit., p. 245.

[18] BAKHTIN, 2010, p. 31.

[19] Ibid., p. 47.

[20] HALL, op. cit., p. 272

[21] HARVEY, 1993.

[22] MARX; ENGELS, 1987, p. 79.

[23] HARVEY, op. cit.

[24] Ibid., p. 52.

[25] Ver mais sobre as tendências e processos de construção de sentido sobre o movimento hip-hop em BASTOS (2008).

[26] No projeto de doutorado que desenvolvo junto à ECA, na linha de pesquisa de Comunicação, Cultura e Cidadania, sob orientação do Prof. Dr. Celso Frederico, pesquiso os impactos da comunicação, da cultura e da ideologia do MST nos movimentos populares urbanos.

[27] CITELLI, 2006, p. 60-61.

[28] CALDART, 2004, p. 27.

[29] O estudo se chama Vozes silenciadas e está disponível em http://www.intervozes.org.br/publicacoes/livros/copy_of_vozes-silenciadas/.

[30] FREIRE, 1977, p. 43.

[31] Ibid., p. 74.

 

Referências bibliográficas

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WILLIAMS, Raymond. Base e estrutura na teoria cultural marxista. São Paulo: Revista USP, n. 65, mar.-maio 2005.

 

 

 

 

 

Karl Marx e Walter Benjamin | de Marco Antonio Bonetti

Introdução

A valorização do otimismo presente nas dimensões teológica e tecnológica da obra de Walter Benjamin tem desembocado, por vezes, em menosprezo da sua faceta marxista, o que resulta, na perspectiva do presente artigo, num claro desvio de rota em relação às intenções do autor. Apesar de vasta fortuna crítica filiar o autor da Escola de Frankfurt ao marxismo, ou de ele mesmo citar Karl Marx com frequência em seus escritos, tratar uma obra filosófica complexa como a dele tal qual um bloco concreto que pudesse ser dissecado em partes menores independentes e, o que é pior, possibilitar que tudo o que se refere ao marxismo possa ser posto de lado, sem que se coloque em xeque o alto grau de deturpação do pensamento de Benjamin que tal atitude significa, devem ser consideradas atitudes, no mínimo, resultantes de deficiência metodológica grave.

A presença de um estilo de escrita em fragmentos em alguns de seus compêndios, como Rua de mão única e Passagens, pode ter dado margem a esse tipo de deslize metodológico, mas não seria por isso que ele deixaria de ser um equívoco, mesmo se explicado por essa razão, um violento desvio teórico. O que pretendemos destacar no presente artigo é, em primeiro lugar, a filiação clara do pensamento de Benjamin em relação a Marx, utilizando como objeto dessa análise o texto sobre Charles Baudelaire. Depois, apresentamos como Benjamin analisa o estilo de produção teórica por meio de fragmentos, recurso que terá por objetivo explicitar como e por que o próprio autor aderiu a esse gênero de produção. Sua reflexão sobre esse tema encontra-se na tese de doutoramento em que analisa o fragmento e o conceito de crítica de arte do romantismo alemão.

 

A metodologia de análise aplicada a Baudelaire

O ensaio de Walter Benjamin “Paris do Segundo Império” principia com uma citação de Karl Marx: a sua ideia de que a boêmia do século XIX era uma espécie de esfera pública onde se encontravam os conspiradores profissionais. Eles são divididos por Marx em conspiradores casuais – operários com outras ocupações além da política e que só compareciam quando convocados pelos chefes – e em profissionais – os líderes que viviam da militância. A estação fixa desses últimos eram as tavernas dos distribuidores de vinho.

Benjamin destaca que a ascensão de Napoleão III deu-se num meio boêmio desse gênero e que seu governo incorporou toda ordem de práticas comuns ao submundo: as conspirações, o tráfico de segredos e as ironias impenetráveis – marcas também presentes na obra de Baudelaire. A ação e o discurso, nos campos respectivos da revolução política e da literatura, interpenetram-se um pouco pelo sentimento do nacionalismo e muito pelo efeito final das

maravilhas revolucionárias: bombas incendiárias, máquinas destrutivas de efeito mágico, motins que deverão resultar tanto mais miraculosos quanto menos bases racionais tiverem. Ocupados com esse frenesi de projetos, não têm outra meta senão a mais próxima – ou seja, a derrubada do governo existente – e desdenham profundamente o esclarecimento mais teórico dos trabalhadores sobre seus interesses de classe. Daí sua raiva, não proletária, mas plebeia, contra os habits noirs (capas-pretas), as pessoas mais ou menos cultas que representam esse lado do movimento.[1]

Para explicitar melhor o tipo de gente que se reúne ali, Benjamin cita uma frase com a qual o escritor Flaubert resumiria esse espírito de época: “De toda a política só entendo uma coisa: a revolta.”[2]

Para Benjamin, Baudelaire representa uma metafísica do provocador no grau mais elevado e mais irresponsável: “Digo ‘viva a Revolução’ como diria ‘viva a destruição! Viva a expiação! Viva o castigo! Viva a morte!’ Seria feliz não só como vítima; tampouco me desagradaria representar o carrasco, a fim de sentir a revolução pelos dois lados!”[3]

Benjamin percebe, nesse frenesi de pulsão de morte, a energia do fascismo, que se deixa entrever como uma espécie de transe de guerra. Cita mais uma vez Baudelaire: “Podia-se organizar uma bela conspiração com o intuito de exterminar a raça judaica.”[4] O que Baudelaire representa é o delírio da guerra, uma espécie de meia-luz do transe, da droga e do sangue. Conforme Paul Virilio, é nessa loucura que “se produz uma unidade que identifica em seu corpo a corpo aliados e inimigos, vítimas e algozes”.[5] Virilio percebe que

o homem só é capaz de suportar uma determinada quantidade de terror… [a partir daí,] a primeira vítima da guerra é o conceito de realidade […] ainda que, em 1942, mais de dois milhões de judeus já tivessem sido assassinados, a imprensa judaica na Palestina ainda encontrava motivos para estar tranquila em relação aos centros de educação agrícola na Polônia e em outros países, interpretando signos que já não tinham mais sentido; rejeitando as informações exatas por serem por demais aterrorizantes.[6]

Baudelaire representa esse extremo, já colocado além do bom senso, no lugar da pura revolta. Mas Benjamin percebe como a produção de Baudelaire pode ser útil, já que representa justamente o estado de embriaguez cega. Marx denuncia essa cegueira irracionalista que se pauta na própria energia destrutiva do sujeito numa verdadeira guerra pura contra tudo e contra todos. Uma cólera de dimensão quase demoníaca. Baudelaire diz: “Se alguma vez recuperar o vigor e a energia que já possuí, então desabafarei minha cólera através de livros horripilantes […] Quero incitar toda a raça humana contra mim.”[7] Essa fúria alimentou os conspiradores profissionais em Paris, que erguiam barricadas. “Eles – escreve Marx a respeito desses conspiradores  – são os alquimistas da revolução e partilham inteiramente a desordem mental e a estreiteza das ideias fixas dos antigos alquimistas”.[8]

Esquematicamente, percebemos que Marx critica os vapores das tavernas porque eles desviam as energias primitivas do sujeito de uma perspectiva revolucionária para a alienação etílica. Baudelaire é o alienado típico. Embriaga-se e louva o vinho dos trapeiros – lançando-se vorazmente na direção desses catadores de retalhos do século XIX, uma das classes mais miseráveis do período. Enquanto isso, Benjamin percebe o quão bem Baudelaire impregna, na forma artística de sua literatura, aquela mesma energia analisada por Marx, que poderia desembocar numa ação racional revolucionária, mas, na forma do torpor poético, gera somente uma pura e cega vontade de destruição. Com base nessa forma, o salto dado por Benjamin  é descobrir, no mecanismo do vinho, um prelúdio da alienação dos meios de comunicação. O vinho já é uma primeira manifestação muito primitiva de tecnologias de alienação, poupava ao governo muitos conflitos. “O vinho transmite aos deserdados sonhos de desforra e de glórias futuras”.[9] Esse torpor vai se materializar na sociedade de mercado na figura da indústria cultural. É possível antever ali o prenúncio do papel dos meios de comunicação de massa, que assumirão essa função narcótica a partir do século XX. E a própria intelectualidade se familiarizará com o mercado ao assumir esse novo papel de produtor de vinho, ou melhor, de mídia.

 

Alienação e tecnologia vistas da perspectiva econômica

A ponte entre esses três posicionamentos é, portanto, uma relação dialética. Do ponto de vista metodológico, percebe-se ali uma construção polifônica promovida por Benjamin, nos moldes dos trabalhos em fragmentos, que só se constituem numa unidade atualizada na síntese benjaminiana. Essa mesma estrutura pode ser identificada em relação ao conceito marxista de alienação. Marx tece sua análise sobre a alienação a partir de uma perspectiva econômica. Há uma presença desse caráter inebriante no capitalismo, desde seu elemento mais básico:

a mercadoria é misteriosa simplesmente por encobrir as características sociais do próprio trabalho dos homens, apresentando-as como características materiais e propriedades sociais inerentes aos produtos do trabalho; por ocultar, portanto, a relação social entre os trabalhos individuais dos produtores e o trabalho total […] os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas sociais, com propriedades perceptíveis e imperceptíveis aos sentidos […] chamo a isso fetichismo, que está sempre grudado aos produtos do trabalho, quando são gerados como mercadorias.[10]

O fetichismo – termo que guarda relação com os mistérios e o animismo dos povos primitivos, e não com seu sentido no campo da sexualidade – é esse passe de mágica com o qual o capitalismo faz desaparecer dos produtos as marcas de quem os produziu, os trabalhadores.

O capitalismo esconde que

ouro e prata já saem das entranhas da terra como encarnação direta de todo trabalho humano […] Daí a magia do dinheiro. Os homens procedem de maneira atomística no processo de produção social e suas relações de produção assumem uma configuração material que não depende de seu controle nem de sua ação consciente individual.[11]

Essa ausência de consciência do processo de geração de riqueza resulta na alienação que colabora com a manutenção da exploração capitalista.

O processo dinheiro-mercadoria-dinheiro [o investidor compra matéria-prima e mão de obra por 10 e vende a mercadoria a 15] não deve seu conteúdo a nenhuma diferença qualitativa entre seus extremos [Dinheiro – 10 – e Dinheiro – 15], pois ambos são dinheiro, mas há diferença quantitativa entre esses extremos […] Esse acréscimo sobre o valor primitivo chamo de mais-valia.[12]

Marx percebe que o nascedouro desse “lucro” é a exploração da mão de obra. O capitalista coloca 10 em circulação e retira 15 do mercado, ou seja, alguém perdeu 5 e vai ter de pagar por isso. Como? Vendendo sua força de trabalho. O proletariado não tem consciência desse processo. Ele é totalmente alienado. Para Benjamin, Baudelaire representa a energia do trabalho em sua feição destrutiva, individualista e irresponsável, que pode ser caracterizada como a completa alienação, tanto no sentido da perda da razão quanto no do desconhecimento de seu próprio lugar e força históricos.

O passo decisivo de Baudelaire nesse sentido seria sua submissão como força de trabalho à própria indústria do folhetim, por mais raivoso que fosse seu próprio discurso. Benjamin descreve o surgimento e o papel da mídia a partir dos anos 1830, mostrando que ela passa a basear-se em notícias curtas, reclames que geravam os fluxos financeiros e de interesses, e em folhetins, que atraíam públicos imensos. “Dificilmente a história da informação pode ser escrita separando-a da história da corrupção da imprensa”.[13] Anúncios eram colocados ao lado de notícias que falavam bem do produto. Autores recebiam até 600 mil francos por uma única obra de sucesso. Outros, como Alexandre Dumas, só assinavam obras prontas, escritas por tacanhos funcionários públicos malvestidos. Baudelaire também teve de se submeter a esse emprego, embora preservasse um senso crítico dos mais mordazes, que o fazia se comparar diversas vezes a uma prostituta. Não faturou mais do que 15 mil francos ao longo de toda a sua vida com esse trabalho. E percebeu que seu objetivo, ao se aproximar desse mercado dos folhetins, não era olhar, mas se vender. “Dificilmente alguém possuía olhar mais penetrante que Baudelaire para os aspectos problemáticos desse fenômeno brilhante.”[14]

Outro aspecto sobre o qual Benjamin dialogou com Marx dizia respeito à sua visão da técnica. Marx não tinha uma visão negativa da tecnologia, não importando a forma sob a qual ela se apresentasse, desde um pequeno utensílio até uma linha de montagem fabril. “Surge em lugar da máquina isolada um monstro mecânico que enche edifícios inteiros e cuja força demoníaca se disfarça nos movimentos ritmados quase solenes de seus membros gigantescos e irrompe no turbilhão febril de seus inumeráveis órgãos de trabalho.”[15]

É incontestável que a maquinaria em si mesma não é responsável de serem os trabalhadores despojados dos meios de subsistência. A maquinaria, como instrumental que é, encurta o tempo de trabalho, facilita o trabalho, é uma vitória do homem sobre as forças naturais, aumenta a riqueza dos que realmente produzem, mas, com sua aplicação capitalista, gera resultados opostos: prolonga o tempo de trabalho, aumenta sua intensidade, escraviza o homem por meio das forças naturais, pauperiza os verdadeiros produtores”.[16]

 

Da economia para a comunicação

A transposição do pensamento de Marx para Benjamim e Theodor Adorno tem como principal marca o abandono do subterrâneo no qual Marx centrou sua análise, ou seja, o “local reservado da produção, em cuja entrada está escrito ‘No admittance except on business’”,[17] para chegar a esse outro lugar misterioso que é o campo da cultura, entendida num sentido mais amplo, envolvendo a esfera da comunicação social. Os dois autores frankfurtianos partem também da base econômica.

O aumento da produtividade econômica, que, por um lado, produz as condições para um mundo mais justo, confere, por outro lado, ao aparelho técnico e aos grupos sociais que o controlam uma superioridade imensa sobre o resto da população. O indivíduo se vê completamente anulado em face dos poderes econômicos.[18]

A guerra e somente a guerra permite dar um objetivo aos grandes movimentos de massa preservando as relações de produção existentes […] Em seus traços mais cruéis, a guerra imperialista é determinada pela discrepância entre os poderosos meios de produção e sua utilização insuficiente no processo produtivo, ou seja, pelo desemprego e pela falta de mercados.[19]

Adorno e Benjamin, todavia, fazem avançar a posição marxista, lançando, a partir dela, uma ponte em direção à análise do papel dos meios de comunicação de massa. No que diz respeito especificamente ao papel de instrumento de alienação, que os meios de massa representam, os dois autores também se posicionam em sintonia com o marxismo. Retomando o que já foi exposto, a mídia cumpre o papel do vinho do trapeiro. Adorno diz que

a enxurrada de informações precisas e diversões assépticas desperta e idiotiza as pessoas, ao mesmo tempo […], [os programas de comunicação de massa] se tornam, no interior do todo social, a metafísica, a cortina ideológica atrás da qual se concentra a desgraça real […].[20]

Na mesma linha, para Benjamin:[21] “Cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de explicações.”[22]

O termo indústria cultural, cunhado por Adorno em 1946, dá conta dessa dimensão da alienação em massa propagada pelos meios de comunicação, daquilo que tem por função manter aceso o caráter de fetiche da mercadoria, esconder o lugar do trabalho no processo de produção da riqueza econômica, despotencializando a força transformadora da cultura, ao mesmo tempo que baixa seu nível a tal ponto que seu produto serve somente para o dispêndio de um tempo morto tão infecundo quanto o bêbado do vinho de barreira, que era vendido mais barato por não ter impostos, artimanha para a qual o governo fechava os olhos. Benjamin cita Marx: “No imposto do vinho, o camponês prova o bouquet do governo.”[23] No deslocamento a pé que famílias inteiras faziam até a fronteira, onde se encharcavam de bebida e, depois, voltavam cambaleando a pé para suas casas desfilando orgulhosos, eram queimadas as energias que, em outras condições, seriam direcionadas para erguer barricadas e questionar o poder dominante.

Para Adorno, a cultura já havia denunciado, desde seus primórdios, a figura do dominador, ilusionista, como no exemplo da personagem de Ulisses, em Odisseia, de Homero. Numa das passagens do livro, para escapar das sereias, o herói tapa os ouvidos dos seus soldados com cera e os obriga a remar, sem ver ou ouvir nada, dias a fio com toda a força. Diz Adorno:

Disso, a civilização sempre cuidou. Alertas e concentrados, os trabalhadores têm de olhar para a frente, esquecer o que foi posto de lado. A outra possibilidade é a escolhida pelo próprio Ulisses, o senhor de terras que faz os outros trabalharem para ele.[24]

A indústria cultural é um dispositivo que impede o ser humano de ver e ouvir com seus próprios olhos e ouvidos. Aliena a sensibilidade. Ilude as grandes massas humanas com a mesma artimanha com que Ulisses ludibriou o ciclope Polifemo. Nessa passagem de Odisseia, Ulisses diz que se chama “Ninguém” a fim de que o gigante ferido no único olho avise a todo seu povo que “Ninguém feriu seu olho”, para poder escapar da vingança dos ciclopes. Da mesma maneira como há quem diga que “Ninguém explora o trabalhador”.

O que Benjamin adiciona de potencialmente positivo nesse contexto é a constatação de que a máquina que reproduz cultura pode ser aliada do trabalhador. É o que destaca Benjamin, de modo muito original, no ensaio  “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. Se, no capitalismo, um truque fundamental da mercadoria é que ela esconde o produtor, no caso do cinema, ocorre uma subversão. Não vemos o rosto de um operário quando olhamos uma escova de dentes ou um automóvel. Mas vemos seu rosto estampado quando olhamos para a tela de cinema. Assim:

O intérprete do filme […] conserva sua dignidade humana diante do aparelho. O interesse desse desempenho é imenso, porque é diante de um aparelho que a maioria dos citadinos precisa alienar-se de sua humanidade, nos balcões e nas fábricas, durante o dia de trabalho. À noite, as mesmas massas enchem o cinema para assistirem à vingança que o intérprete executa em nome delas, na medida em que o ator não somente afirma diante do aparelho sua humanidade como coloca esse aparelho a serviço de seu próprio triunfo.[25]

A tela ideológica do cinema russo de Dziga Vertov, Sergei Eisenstein e Vsevolod Pudovkin pode ser mais bem entendida nesse sentido. Retoma-se assim a proposta marxista na qual a maquinaria serve ao agravamento da exploração capitalista por potencializar o trabalho de poucos. Porém a industrialização, tanto da economia quanto da cultura, não é ruim. Ela pode servir ao desenvolvimento do socialismo. Só é preciso reverter seu uso perverso por parte do capital.

 

Fragmento perdido

Acreditamos, a partir desses exemplos, ter reiterado a ideia de que o marxismo está presente na obra de Benjamin de inúmeras formas, seja por meio da apropriação de conceitos – meios de produção, alienação da força de trabalho, fetichização da mercadoria, potencialidades sociais da maquinaria –, seja pela farta citação de passagens e ideias de Marx, apresentadas como base de sua reflexão. Passamos a explorar agora o conceito de fragmento em Benjamim, o que parece ser um dos elementos da sua obra que facilitou uma leitura recortada do autor, excluindo toda a dimensão marxista de seu pensamento.

O lugar em que Benjamin refletiu mais sistematicamente a respeito do fragmento foi sua tese de doutoramento, O conceito de crítica de arte no romantismo alemão. Na apresentação da tradução para o português, o pesquisador Márcio Seligmann-Silva diz que

Benjamin foi o primeiro a valorizar a teoria romântica da “Reflexão”. Esse conceito está no centro dessa sua tese. Benjamin define a crítica como um “médium de reflexão”. Na medida em que ele pôs esse conceito no núcleo de sua tese, com todas as suas implicações de crítica ao modelo de teoria do conhecimento monológico, baseado na simples cadeia de causas e efeitos, e, portanto, de crítica também a uma concepção linear, tanto do desenvolvimento do conhecimento como também do desenrolar da própria história, ele trouxe à tona um debate – a crítica de um determinado modelo de razão e racionalidade – que está particularmente aceso na pós-modernidade .[26]

Percebemos que a escrita em fragmentos, na forma de aforismos, coloca-se em sintonia com o próprio conceito de “reflexão” no sentido explorado por Benjamin no texto sobre o romantismo alemão. O pensamento consegue pensar sobre si mesmo. O sujeito pensa a si mesmo como eu em algum momento. A análise dessa situação serve como garantia de ser possível ao pensamento gerar uma intuição intelectual no sentido proposto por Kant, ou seja, de que um conceito pensado crie um objeto no mundo. O modo dessa geração é que, quando o pensamento reflete, ele assume a forma de algo que lhe é preexistente, mas que não lhe é dado conhecer por meio de uma intuição sensível – simples presença no tempo e no espaço da intuição. Para desenvolver esse conceito, Benjamin se apoia na doutrina da ciência de Fichte, que foi quem percebeu essa abertura no pensamento kantiano, de desdobrar um reflexo da forma do conhecimento num pensamento que, ao ser pensado, adquire nova forma. A reflexão transforma.

Benjamin explica, com base em Fichte, que esse jogo da reflexão parte de uma base, que é a percepção de qualquer coisa dada no espaço e no tempo. “Vejo um livro”. Mas, então, a razão é capaz de elevar essa percepção primeira, fenomenológica, a um segundo grau, mais elevado, no qual compara o título do livro com outras obras que já estudei, e ainda a outro, em que percebe que há uma discordância entre o título e aquilo que o autor falou em textos anteriores etc. O jogo da reflexão vai elevando o pensamento numa escala que, na perspectiva romântica, o ligaria, elevada essa projeção até o infinito, ao absoluto.

É nessa escalada ideal do pensamento reflexivo rumo ao absoluto que surge outro conceito importante de Fichte, o conceito de “pôr”. Numa certa altura da reflexão é possível “pôr” algo e, a partir de então, esse algo que foi posto torna-se representação do pensamento. Ele representa aquela determinada altura do pensamento. Isso que é “posto” é a linguagem, é a representação. O signo põe um termo de estabilidade na escalada infinita da reflexão, dando representação ao estágio em que ela se encontra e que o signo é capaz de representar. A grande diferença, que vai separar o pensamento de Fichte do dos românticos, é que estes optam por um culto quase messiânico do infinito e do absoluto, dando margem à abertura de um misticismo que já vinha de longa data na literatura alemã. E é justamente nesse ponto que Benjamin vai se distanciar do pensamento romântico na sua própria práxis reflexiva. Seus fragmentos abrem mão do messianismo para dar voz ao tino do pensamento racional. Só que a maneira como a razão constrói conhecimento, em Benjamin, é a de uma razão que pensa de modo fragmentário, não linear, a partir de pequenas pílulas de saber que, como Benjamin destaca no texto “O narrador”, conservam, como germens de trigo armazenados por centenas de anos nas tumbas dos faraós, sua potencialidade germinativa. As ideias nunca morrem. A forma mais condensada, e portanto mais intensa, do pensamento é o fragmento.

Benjamin percebe a potencialidade do fragmento como forma de saber e o adota como uma metodologia sem ter de explicitá-la a todo momento. Com base nos românticos, Benjamin teve de deduzir essa metodologia a partir da análise dos textos, por isso será justamente em sua tese sobre o romantismo alemão que essa metodologia adotada pelo autor estará também explicitada. Ali, Benjamin diz que Schlegel não explicitou um sistema filosófico em sua produção teórica. Mas percebe que ele está subjacente ao pensamento do filósofo como um sistema coerente, claramente perceptível, que perpassa a produção fragmentária de Benjamin também. Trata-se do que Fichte chamou de filosofia cíclica. Ela se baseia em provas alternantes confrontadas com conceitos alternantes. Daí a filosofia ter de começar pelo meio. O caminho para conhecer a filosofia seria o círculo. Trata-se de um sistema dinâmico, cuja forma de entendimento é construída a partir da experiência do percurso, do caminho, o que Benjamin chamava de Erlebnis. Daí a impossibilidade de explicitação ou estabilização desse sistema num texto linear. Daí a necessidade da escrita em fragmentos.

Benjamin credita a dificuldade de Schlegel em explicitar seu sistema ao fato de ele ser também um artista, o que dificultou ao filósofo produzir um discurso totalmente sistemático. O meio privilegiado para ocupar o lugar da estabilidade central da reflexão foi, prioritariamente, e não só nesse filósofo, o da arte. Mas esse papel é ocupado em certos momentos pela cultura, pelo gênio, pela ironia, pela religião e até pela história. O trunfo positivo da arte que a faz figurar como objeto privilegiado da reflexão é a fecundidade da análise da arte, da reflexão sobre arte, ou seja, da própria crítica, que é o conceito fundamental que Benjamin quer esclarecer.

A produção da obra fragmentária de Benjamin não deixa de ser um processo crítico também. E crítica aí tem o valor que tinha já desde a perspectiva de Kant, quando escreveu as críticas, ou seja, textos que refletem até a exaustão as limitações e perspectivas do objeto de reflexão, a começar pela reflexão a respeito da própria razão.

Crítica, segundo Benjamin, é um dos termos mais recorrentes nos românticos. Serve até mesmo como elogio quando se queria falar muito bem de determinado trabalho. Em Kant, é a busca da verdade, mas tem um caráter quase mágico. Não é uma análise normativa, mas sim produtiva. É a elevação da reflexão às maiores alturas possíveis, um exercício extremo de reflexão. É o que ele, Benjamin, tenta fazer.

 

Conclusão

Feita essa apresentação dos pontos principais da análise de Benjamin a respeito do conceito de reflexão e crítica do romantismo, percebemos que foi com base também nesse mesmo pano de fundo filosófico que Benjamin passou a expor seu pensamento quando adotou, em seu trabalho, um estilo de escrita em fragmentos. O problema metodológico que nos dispusemos a debater neste artigo pode ser colocado agora em novas bases. Se o marxismo é tão nitidamente uma fonte básica do processo reflexivo de Walter Benjamin para alcançar as alturas a que seu pensamento conseguiu se elevar na reflexão a respeito da comunicação, das artes, das tecnologias, da religião e da história, a produção de signos postos como candidatos à representação de seu pensamento, mas que reneguem de algum modo a dimensão marxista, assim como qualquer outra de suas dimensões constituintes (influência do judaísmo, das relações pessoais, da peculiar leitura dos meios técnicos), constitui violenta deturpação ideológica do seu próprio processo de pensar.

Usando da figura benjaminiana do poder germinativo das sementes, o objetivo deste trabalho foi apontar para o risco de o estilo de Benjamin, de uma escrita em fragmentos, dar margem a interpretações que levam a desvios em relação à rota original do autor. E a posição que buscamos justificar foi a de que leituras antimarxistas de Benjamin constituem um desvio metodológico absurdo, que entra em conflito direto com o pensamento do próprio autor.

Na figura do flâneur a intelectualidade familiariza-se com o mercado. Para lá encaminha-se o flâneur, pensando dar apenas uma volta; mas, na verdade, é para encontrar um comprador. Nessa etapa intermediária, quando a intelectualidade tem ainda mecenas, mas já começa a se curvar às exigências do mercado (na forma do folhetim), ele constitui a bohéme. À indeterminação de sua posição econômica corresponde a ambiguidade de sua função política. Esta se manifesta com muita evidência nas figuras dos conspiradores profissionais que se recrutam na bohéme.[27]

O que garante o distanciamento crítico de Benjamin em relação a esse lugar do intelectual familiarizado com o mercado capitalista, evidentemente, é a permanente presença do aparato crítico marxista como tábua teórica de problematização dessa  questão. Sua supressão tira o pensamento de Benjamin do próprio eixo em que gravita e suprime até mesmo sua mais poderosa força analítica.

 

* Doutor em Semiótica e professor de Teoria da Imagem na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e de Teoria da Comunicação na Escola Superior de Propaganda e Marketing do Rio de Janeiro (ESPM).

 


[1] MARX apud BENJAMIN, 1994c, p. 11.

[2] FLAUBERT apud BENJAMIN, 1994c, p. 11.

[3] BAUDELAIRE apud BENJAMIN, 1994c, p. 11.

[4] Ibid., p. 12.

[5] VIRILIO, 1993, p. 12.

[6] Ibid., p. 61.

[7] BAUDELAIRE apud BENJAMIN, 1994c, p. 12.

[8] MARX apud BENJAMIN, 1994c, p. 15.

[9] BENJAMIN, 1994c, p. 16.

[10] MARX, 1968, p. 81.

[11] Ibid., p. 103.

[12] Ibid., p. 103.

[13] BENJAMIN, 1994c, p. 29.

[14] Ibid., p. 29.

[15] MARX, 1968, p. 435.

[16] Ibid., p. 506.

[17] Ibid., p. 196.

[18] ADORNO, 1985, p. 14.

[19] BENJAMIN, 1994c, p. 196.

[20] ADORNO, op. cit., p. 15.

[21] BENJAMIN, 1994a, p. 203.

[22] Passagem do texto “O narrador”. A abordagem de Benjamin é um pouco mais complexa por entrar até mesmo na especificidade do gênero textual. Benjamin contrapõe a narração, gênero textual que instiga o leitor a tecer sua análise a respeito da situação, à informação, gênero jornalístico por natureza que entorpece a mente do leitor ao se colocar como explicação extensiva do fato em todas as suas dimensões e em todos os seus porquês, sem que sobre para o leitor nenhum outro trabalho além de simplesmente ler e se ver informado. Nessa ramificação sutil surge um hiato no qual a própria informação pode ser alienante. Ou seja, na contraposição de um gênero que cobra a iniciativa do sujeito leitor, e outro, característico da indústria cultural que o entorpece tanto quanto uma bebida alcoólica, a própria informação se torna alienação, por mais paradoxal que essa afirmativa soe à primeira vista.

[23] BENJAMIN, 1994c, p. 15.

[24] ADORNO, 1985, p. 45.

[25] BENJAMIN, 1994a, p. 179.

[26] SELIGMANN-SILVA, In: BENJAMIN, 1973, p. 11.

[27] BENJAMIN: 1994c, p. 61.

 

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VIRILIO, Paul. Guerra e cinema. São Paulo: Página Aberta, 1993.

 

Youtube your Facebook! A reconfiguração dos dispositivos audiovisuais na internet e as novas plataformas digitais entendidas como aparelhos de captura e/ou como máquinas de guerra | Ivan Capeller

These are the days of miracle and wonder
Stacatto signals of constant information
This is the long-distance call
The way the camera follows us in slow-mo’
The way we look to us all

(Paul Simon, “The Boy in the Bubble”)

 

Smash the radio
No outside voices here
Smash the watch
Cannot tear the day to shreds
Smash the camera
Cannot steal away the spirits

(Peter Gabriel, “The Rythm of the Heat”)

 

O presente texto procura pensar o papel e a função das plataformas de comunicação digitais na reconfiguração técnica e estética dos dispositivos audiovisuais analógicos que precederam a internet 2.0 na história da indústria cultural dos meios de comunicação de massa modernos (telefonia e fonografia, fotografia e cinema, no século XIX; rádio, cinema sonoro e televisão, no século XX). Pretende-se verificar, sobretudo, se ainda é possível sustentar a pertinência das teorias da comunicação e da cultura de massa baseadas na possibilidade de se opor antiteticamente uma função apocalíptica dos meios de comunicação, considerados como dispositivos ou aparelhos de controle e direcionamento vertical e hierarquizado dos fluxos de informação, à sua função integrada de livre intermediação horizontal e aberta desses mesmos fluxos.

Nesta análise, serão aplicados os conceitos de aparelho de captura e de máquina de guerra à teoria da comunicação.[1] Embora esses conceitos não tenham surgido no âmbito de uma teoria específica da comunicação, sua aplicação em diversas áreas do conhecimento já recebe seus primeiros esboços no último capítulo de Mille Plateaux,[2] e é desenvolvida por Deleuze, no que diz respeito ao campo dos dispositivos audiovisuais, nos seus dois volumes posteriores sobre o cinema.[3] Porém, o nexo entre os estudos, de caráter mais amplo, que marcam os volumes escritos em parceria com Guattari, de um lado, e os volumes específicos sobre o cinema, de outro, só pode ser adequadamente estabelecido a partir da releitura que ambos fizeram da pragmática de Charles S. Peirce.[4] Assim, aplicaremos essa pragmática inicialmente ao cinema, entendido como um dispositivo audiovisual modelar e paradigmático dentre as plataformas analógicas de comunicação características do século XX. Passaremos então aos dispositivos audiovisuais digitais, tentando repensar a dicotomia entre apocalípticos e integrados[5] em suas novas configurações contemporâneas – desde os reality shows do gênero Big Brother (e sua incessante autopromoção dos meios de comunicação de massa entendidos como aparelhos e/ou instrumentos de captura e de controle da informação), até as mais recentes plataformas de comunicação acessíveis pela internet, como o Facebook e oYoutube.

Quando aplicada ao cinema, a pragmática de Peirce possibilita a articulação dos quatro componentes comuns a qualquer dispositivo audiovisual (gerativo, transformacional, diagramático e maquínico).[6] No caso da experiência cinematográfica, seu componente gerativo articula a disjunção assíncrona de imagens e sons, no plano material, à disjunção sincronizada do olhar à escuta, dos rostos e das vozes, no plano audiovisual da expressão. Essa cinemática da mímesis se articula, por sua vez, à práxis cinematográfica por meio da disjunção entre a reprodução do real e a representação do imaginário, a função documental e a função discursiva, o filme como produto e como obra, disjunção essa que perpassa toda a história do cinema, configurando seu componente transformacional. Quanto ao componente diagramático do cinema, revela a sua dupla articulação como a resultante da disjunção entre o plano material do seu conteúdo (técnico) e o plano mental de sua expressão (estética). Ao mesmo tempo, aponta para a complexa questão das relações entre o cinema e a história, isto é, para o seu componente maquínico – articulado simultaneamente nos níveis mecânico e anímico da experiência cinematográfica, o que nos permite pensar o sentido histórico de sua práxis articulado ao problema político do estatuto da técnica nas sociedades modernas.

O dispositivo cinematográfico se conecta historicamente à emergência de diversos aparelhos de captura desenvolvidos no âmbito da ciência e da técnica industriais. Entendido como um aparelho de captura de imagens e, depois, também de sons, o cinema se submeteu aos diversos modelos miméticos de representação gerados no âmbito da história da arte e do espetáculo. O dispositivo cinematográfico é um dispositivo mimético que pode ser, a princípio, pensado como um acoplamento técnico de múltiplos aparelhos de registro (de luz, movimento, som, cor, relevo, etc.). Essa operação assume as funções características de um aparelho de captura: a dupla acoplagem lentes/câmera, microfones/gravador (bem como as técnicas de filmagem com controle da continuidade espaço-temporal e sonora do discurso cinematográfico) organiza a práxis cinematográfica como um trabalho em torno do quadro visual entendido como o centro de gravidade de um processo mimético de captura e apreensão das imagens e dos sons.

Como dispositivo técnico-industrial, o cinema é um aparelho de captura complexo, capaz de conjugar, em seu componente gerativo, o domínio técnico sobre a realidade física das vibrações óticas e acústicas com a maestria estética sobre os modos sonoros, visuais e literários da representação artística. Seu componente transformacional combina estrategicamente a disputa econômica pela conquista de mercados com a tendência à hegemonia ideológica e cultural intrínseca à indústria do entretenimento. Engenheiros do movimento, da luz e do som (fotógrafos, maquinistas e técnicos de som), maestros e condutores do fluxo audiovisual e da narrativa (roteiristas e diretores), empresários e capitães de indústria (produtores e associados): todos são personagens de uma potencial empresa global de captura que constitui, em grande medida, a própria história do cinema como dispositivo audiovisual.

Por outro lado, pensar o dispositivo cinematográfico como máquina de guerra implica a distinção, no interior da dimensão técnica da práxis, entre arma e instrumento.[7] Enquanto aparelho de captura, o dispositivo cinematográfico é um instrumento de apreensão da experiência humana em sua totalidade, tanto em sua dimensão material (trabalho), como em sua dimensão cultural (expressão). Como tal, tende necessariamente a gravitar em torno de certos modelos de representação que possibilitem o sentimento de identificação imaginária entre o espectador e a instância narrativa que organiza o fluxo audiovisual como espetáculo, estriando a superfície da película por meio da codificação significante das imagens e dos sons. Já como máquina de guerra, o dispositivo cinematográfico deve ser pensado como arma de projeção – de imagens e de sons –, sobre o espaço-tempo da tela lisa, regulada pela velocidade do dispositivo. Como arma (e não como instrumento ou aparelho), afeta o espectador por meio da modulação variável de eventos óticos e acústicos.

A máquina de guerra do cinema não obedece a modelos preestabelecidos de procedimento técnico ou de codificação estética, pois se reconfigura incessantemente em seu próprio plano de projeção. Se o momento da filmagem consagra o dispositivo cinematográfico como aparelho de captura (enquanto o momento da montagem, geralmente, corrobora e reforça esse aparelho), o momento da projeção cinematográfica é aquele que pode colocar em risco, no nível estratégico de difusão e propagação dos efeitos possivelmente provocados por um filme, tal operação de captura, provocando uma série de consequências inesperadas. Assim, enquanto estudar o cinema como um aparelho de captura é estudá-lo do ponto de vista de sua produção – seja no sentido industrial ou artístico, técnico ou estético –, estudá-lo como máquina de guerra exige uma teoria da recepção do filme que se situe além da narratologia e do cognitivismo, pensando a triangulação entre projetor, tela e espectador, como um espaço liso de reconfiguração do discurso cinematográfico em que a mímesis cinematográfica é posta à prova.

Em termos autorreflexivos, o cinema contemporâneo demonstra uma aguda autoconsciência do seu componente maquínico enquanto dupla articulação entre aparelho de captura e máquina de guerra, tanto em sua faceta mais artística e intelectualizada como em sua vertente mais comercial, voltada ao entretenimento. No nível estratégico, um filme pode ser utilizado como arma, não necessária ou diretamente de guerra, mas articulada a uma máquina de guerra específica, a determinado fluxo de ideias, desejos e conflitos, que nunca são exclusivamente cinematográficos ou estéticos, pois podem ser de toda ordem, atravessando e perpassando o filme em todos os seus níveis e componentes – como bem o intuiu Sigfried Kracauer em seu ainda hoje essencial De Caligari a Hitler.[8] No filme Vincere, de Marco Bellochio (2009), por exemplo, há uma sequência que se passa em uma sessão de cinema, em 1914, na qual os espectadores se engalfinham em verdadeira batalha campal diante de uma tela de cinema em que um cinejornal anuncia a entrada da Itália na Primeira Guerra Mundial. A projeção cinematográfica figura, aqui, como o estopim da crise social e política que dividiu o país naquele momento, em um recurso sistematicamente utilizado por Bellochio nesse filme. John Carpenter, por sua vez, imagina, em Cigarette Burns[9] (telefilme de 2005), a existência de um filme experimental que estaria terminantemente proibido, devido aos massacres que sua projeção invariavelmente provocava entre aqueles que o assistiam. Tal filme, cujo título seria La fin absolue du monde, representa o próprio componente maquínico do dispositivo cinematográfico como um dispositivo de propagação mimética da ação, livre de amarras representacionais e mediações significantes, e, portanto, como um dispositivo apto à produção social de pânico. Assim, para o espetáculo cinematográfico hodierno, a utopia avant-gardista do específico fílmico se converte em pesadelo distópico, reforçando a necessidade do primado representacional de modelos narrativos, ao mesmo tempo que pretende contestá-los.

Tal impasse é a expressão definitiva de uma tensão constitutiva do dispositivo cinematográfico, em seu componente gerativo, entre o nível especificamente simbólico da representação cinematográfica e o propriamente técnico da reprodução cinemática; essa tensão se traduz, em seu componente maquínico, como a tensão entre a pressão centrípeta dos aparelhos de captura conjugados pelo dispositivo audiovisual (câmera e gravador, roteiro e montagem, trilha sonora e quadro visual) – aparelhos esses que estriam o espaço-tempo da experiência cinematográfica, reterritorializando-a (em cinemas nacionais, por exemplo) e recodificando-a (em gêneros e estilos) – e a tensão inversa, centrífuga, exercida pela máquina de guerra do cinema como projeção de imagens e sons no espaço-tempo liso potencialmente infinito de sua recepção histórica.

A máquina de guerra que subjaz como potência implícita a qualquer dispositivo audiovisual costuma ser encoberta por sua função histórica de aparelho simultaneamente técnico e ideológico de captura. No caso da televisão convencional, aberta e analógica, esse fenômeno aparece de forma ainda mais clara: reality shows, como o Big Brother, são o epítome do dispositivo audiovisual como aparelho de captura total. Todo o tempo de transmissão da TV, com toda a sua audiência, poderia ser capturado por esse virtual aspirador da experiência humana em sua totalidade, projetando a ficção da realidade televisiva sobre a realidade audiovisual do telejornal em um empreendimento de colonização da vida real que apenas reforça o potencial poder direto de captura da experiência já anunciado pelo cinema. Nesse caso, a criação de uma plataforma digital como a internet possibilita apenas a inserção programada e regulada do espectador na programação, por meio de um jogo de estímulos e respostas que os teóricos da comunicação costumam denominar, de maneira algo pomposa, interatividade, restringindo ao máximo o avassalador potencial mimético que uma verdadeira máquina de guerra poderia extrair de tal dispositivo.

O estudo do componente maquínico também nos possibilita pensar, no entanto, como o desenvolvimento tecnológico do rádio, da televisão e de todas as modalidades de vídeo e áudio, ainda que obedeça aos ditames ideológicos e de controle que os organizam em sistemas de comunicação molares, permite aos dispositivos audiovisuais “reconstituir uma imensa máquina de guerra da qual se tornam apenas pequenas partes, apostas ou opostas”.[10] É assim que a vídeoarte, no último quartel do século XX, pôde se apresentar como uma máquina de guerra alternativa aos grandes aparelhos de captura da indústria cinematográfica e da televisão: comparada à tecnologia complexa e “pesada” da impressão em película, o vídeo analógico já apresentava um tipo de agenciamento maquínico mais fluido que o do cinema – o que pode ser amplamente demonstrado pelo uso entusiasmado que o então chamado cinema marginal fazia de janelas (Super-8, 16mm) e texturas alternativas.

Em termos maquínicos, porém, a reconfiguração mais importante dos dispositivos audiovisuais não é ainda a que separa as tecnologias analógicas lisas (fita magnética) das estriadas (película ótica), ou a “linguagem cinematográfica” da “linguagem televisiva”, pois a dicotomia entre cinema e vídeo apenas acentua, quando articulada às tradicionais plataformas analógicas de difusão do seu conteúdo, a disjunção constitutiva de todo e qualquer dispositivo audiovisual enquanto aparelho de captura e/ou máquina de guerra. À possibilidade técnica de difusão de imagens e sons no espaço-tempo liso das ondas de transmissão da TV entendida como uma máquina de guerra, por exemplo, correspondeu a possibilidade técnica da gravação de áudio e vídeo em tapes, ou seja, de aparelhos de captura destinados ao incremento da capacidade de controle de um determinado sistema de comunicação a partir de dispositivos cada vez mais móveis e velozes.

A cada incremento técnico da mobilidade e da ubiquidade desses novos dispositivos audiovisuais, não só novas estéticas e linguagens se apresentam como possibilidades até então inéditas para os dispositivos precedentes, mas, sobretudo, novas plataformas de registro e transmissão de informação se configuram, potencializando novas máquinas de guerra. Se a estética mais característica do cinema contemporâneo, por exemplo, está indubitavelmente ligada aos novos suportes digitais de captação e reprodução de imagens e sons naquilo que estes apresentam de mais próximo às necessidades de uma máquina de guerra, já que são portáteis e fáceis de manusear, leves e velozes, aderindo ao espaço-tempo liso da duração do evento muito mais facilmente que os seus congêneres analógicos, é apenas com a chegada dos dispositivos digitais de alta definição (HD) que se realiza a convergência maquínica do cinema e do vídeo em seus devires entrecruzados como dispositivos audiovisuais, aparelhos de captura e/ou máquinas de guerra desse novo campo de batalhas conhecido como internet. E, assim como o dispositivo cinematográfico mimetizou de maneira canibalesca os dispositivos técnicos e estéticos que lhe precederam (fotográficos, literários, pictóricos, musicais e/ou teatrais), assim como o dispositivo televisivo fez o mesmo com os dispositivos de comunicação de massa anteriores (cinema, rádio e jornal), também a internet funciona como pantagruélica plataforma digital de captura e integração de todos os dispositivos audiovisuais e textuais de que se tem notícia, reconfigurando incessantemente as condições de sua difusão e circulação e também do seu controle e de sua recepção, ou seja, do seu maior ou menor grau de adesão a determinados aparelhos de captura e, portanto, de sua maior ou menor mobilidade em relação a determinadas máquinas de guerra.

O Facebook e o Youtube serão tomados aqui como os dois polos extremos dessa última reconfiguração maquínica dos dispositivos audiovisuais na era da internet 2.0, embora a principal característica dessa nova reconfiguração seja, precisamente, a de uma maior indistinção e ambiguidade entre aparelhos de captura e máquinas de guerra.

O Facebook é um dispositivo que se apresenta, a princípio, como a própria concretização utópica do meio de comunicação de massas perfeitamente integrado, em que a radical horizontalidade dos circuitos de informação não só não impede como pretende até mesmo estimular o compartilhamento personalizado, autônomo e voluntário, de toda sorte de informações. Seu caráter inapelavelmente narcísico, baseado na exposição de perfis pessoais arquivados como fichas em que a banalidade da informação rivaliza com a sua abundância, revela, porém, o modo como novos aparelhos de captura se constituem com base em plataformas digitais presentes na internet. Os dispositivos conhecidos como redes sociais realizam a vigilância integrada da sociedade sobre si mesma, anunciada pelo dispositivo do Big Brother, em um nível de adesão “interativa” inédito em termos tanto de escala como de fluxo de informações. Não por acaso, dentro do novo quadro horizontalizado e multitudinário da internet, dispositivos como o Facebook tendem a reproduzir o padrão quase autista de muitas emissoras tradicionais de TV aberta, comportando-se como se a totalidade do que realmente interessa acessar na rede estivesse inteiramente presente em suas páginas, agregando e assimilando outras áreas e dispositivos da internet ao seu conteúdo próprio, e procurando canalizar e controlar a maior parte do fluxo de informações a partir de comunidades baseadas em todo tipo de identificação imaginária, que configuram, assim, grupos de discussão tendencialmente seletivos e excludentes. Dessa forma, o Facebook acaba reproduzindo, em filigrana e a partir de uma escala maior e mais vasta de abrangência, os processos, que a televisão a cabo dos anos 1980 já havia iniciado, de esquadrinhamento e balcanização do público, por intermédio de suas preferências e hábitos culturais.

O Youtube, por outro lado, demonstra como a internet, como um amplo e disseminado aparelho audiovisual de captura, permite a recomposição estratégica de uma ou mais máquinas de guerra em seus agenciamentos históricos concretos. O Youtube possibilita que pensemos as novas condições de produção e recepção do audiovisual, pois seus agenciamentos ainda escapam, em certo grau, aos grandes aparelhos de captura midiáticos estabelecidos, inclusive na internet, e seu acervo começa a se constituir como uma babélica enciclopédia audiovisual, realizando “postumamente” o fantasma cinematográfico de um dispositivo capaz de abarcar, em todo o conteúdo de sua matéria, a totalidade das formas de expressão. Reconstituindo um espaço liso e veloz de circulação de imagens e sons a partir do espaço previamente estriado pela rede mundial de computadores, sites de compartilhamento de arquivos audiovisuais como o Youtube se contrapõem à lógica de captura da indústria do entretenimento, uma vez que não mais centralizam o espectador em torno do espetáculo e da narrativa, fragmentando a experiência do audiovisual em seus diversos níveis constitutivos e permitindo sua livre recombinação posterior em novas montagens.

Embora a lógica identitário-narcísica que preside as redes sociais também esteja presente aqui, a começar pelo próprio nome do dispositivo, seu efeito específico é bem menos concentracionário e centrípeto: o Youtube é um dispositivo mais propenso ao dissenso e ao desencontro entendidos como modos frutíferos de reconfiguração dos meios de comunicação de massa.[11] Se nem sempre a informação que acompanha o arquivo é confiável ou se o seu conteúdo não corresponde ao nome do arquivo, se a pista de som não corresponde ao som original do filme de origem ou está claramente fora de sincronismo, e, se nem sempre o acesso a um fragmento qualquer garante o acesso posterior a todo um filme ou conjunto de filmes, vídeos e áudios, mesmo assim, ou exatamente por isso, o Youtube exerce sobre os demais dispositivos audiovisuais o mesmo efeito que a internet sobre os outros meios de comunicação – o de uma verdadeira apocatástase de todo o passado audiovisual da humanidade, simultaneamente projetado sobre o nosso instante atual de vigília. Evidentemente, também será possível verificar, dentro do Youtube, áreas mais ou menos fechadas ou exclusivas, controladas por determinadas marcas ou companhias comerciais que padronizam e formatam todo o conteúdo veiculado, seguindo estratégias que configuram o surgimento de ainda outros aparelhos de captura. No entanto, o mesmo argumento pode ser apresentado sob a forma inversa, já que o Facebook, considerado em sua potencialidade ainda não explorada, pode muito bem vir a abrigar, abertamente ou não, certas máquinas de guerra, de letalidade maior ou menor, que eventualmente podem escapar do controle social espontâneo que todos exercem sobre todos nesse verdadeiro sonho orwelliano de consumo.

Essas maiores labilidade e ambiguidade que as noções de aparelho de captura e de máquina de guerra apresentam para o componente maquínico dos atuais dispositivos audiovisuais de comunicação torna possível repensar, com base nas atuais plataformas digitais de transmissão de dados, a maior ou menor pertinência da já clássica distinção entre apocalípticos e integrados para uma teoria contemporânea da comunicação. Se a posição apocalíptica se define, de um lado, como a denúncia generalizada da indústria cultural como um gigantesco empreendimento de captura socioeconômica e político-ideológica da sociedade, são esses mesmos aparelhos de captura desenvolvidos no âmbito dos sistemas e dispositivos de comunicação que permitem a atual integração da sociedade mundial em uma escala sem precedentes históricos; por outro lado, se a posição integrada se define como o elogio inconsequente e acrítico das possibilidades oferecidas à sociedade pelos meios de comunicação de massa, não há dúvidas de que a recepção dessa mesma sociedade à internet se caracterizou, desde o início, pela percepção de que esta última representava uma espécie de apocalipse ou estágio final das formas consagradas de reprodução e transmissão da cultura, notadamente no ramo da indústria fonográfica.

Nesse suposto apocalipse integral, a própria crítica da cultura se vê levada a seus limites constitutivos. Isso porque a integração “total” da sociedade pela internet se realiza idealmente como o apocalipse de todas as formas tradicionais de produção e de transmissão da cultura, levando à superação, no sentido hegeliano do termo, das contradições anteriormente utilizadas na elaboração da sua crítica: categorias e conceitos como os de cultura erudita e cultura popular, saber científico ou saber tradicional, sociedade da vigilância versus sociedade do espetáculo ou alienação ideológica e consciência política, não permitem mais qualquer ilusão teórica acerca de uma possível kulturkritik da era digital que seja capaz de esboçar a paideia do novo século. Emblemática dessa nova situação é a superação da dicotomia entre apocalípticos e integrados nos termos em que foi pensada e aplicada pela teoria da comunicação no século passado: a maior ou menor recusa ou aceitação da indústria cultural pressupõe a maior ou menor adesão simbólica de sujeitos mais (ou menos) integrados à dialética de sua própria sujeição social, enquanto as novas plataformas digitais parecem se basear, cada vez mais, no anonimato e no automatismo das novas formas de servidão maquínica que caracterizam as relações sociais na internet.[12] Assim, da mesma forma que, do ponto de vista da crítica da cultura, as novas plataformas digitais incrementam exponencialmente o nível de integração social e cultural para, com isso, conferir a todos um grau supostamente maior de liberdade subjetiva, são essas mesmas plataformas que, do ponto de vista da crítica da economia política, facilitam de forma igualmente exponencial o incremento do nível mundial de integração do capital e, com isso, supostamente diminuem o grau de liberdade objetiva de que dispomos no controle de nossos próprios fluxos de informação.

Apenas uma análise do componente maquínico dos dispositivos audiovisuais contemporâneos, isto é, das intricadas relações sociais, econômicas e políticas de controle e resistência que perpassam atualmente a esfera da troca de informações digitais, possibilita a compreensão de como – nessa zona de combate que é a internet – tanto as teorias que se inspiram em algum tipo de sociologia da cultura quanto aquelas que pretendem basear-se em uma crítica da economia política do signo não mais se constituem em paradigmas suficientes para a elaboração de uma teoria da comunicação que se torna cada vez mais indiscernível da crítica da economia política tout court.

Nessa análise, o cinema considerado como dispositivo voltado ao registro documental e à memória coletiva (mesmo, e sobretudo, quando a intenção original de um filme ou cineasta não for esta) pode nos fornecer uma série de índices inestimáveis acerca das transformações por que passa o componente maquínico dos dispositivos audiovisuais. Em seu belíssimo filme Sans soleil, de 1982, por exemplo, o cineasta francês Chris Marker consegue nos dar um eloquente testemunho do lugar e do momento histórico em que o dispositivo cinematográfico se deparou, pela primeira vez, com o ainda então inexplorado potencial dos novos dispositivos audiovisuais eletrônicos, analógicos ou digitais.

Nesse filme declaradamente autorreflexivo, narrado/comentado por uma voz em off feminina que afirma ler uma carta escrita pelo cinegrafista autor das imagens que vemos (isto é, o próprio Chris Marker), a paisagem visual e sonora da Tóquio de inícios da década de 1980 é expressa pela alternância entre imagens que apresentam a tradicional textura ótica da película fotográfica e imagens de conteúdo semelhante, porém de textura eletrônica, seja porque vistas através das onipresentes telas de TV e monitores de vídeo da cidade, seja porque já diretamente produzidas como imagens de síntese. Em dado momento, a voz em off que permeia o filme nos introduz a um jovem criador de videogames, Hayao Yamaneko, e às suas imagens de síntese, obtidas a partir de distúrbios e conflitos de rua gravados da TV e posteriormente digitalizados para realçar ao máximo o seu contraste e suas cores, ressaltando o seu aspecto mais gráfico e abstrato de artefato.

Yamaneko, segundo Marker,

(…) tratou as imagens dos tumultos dos anos 1960 no sintetizador. Imagens menos enganosas, diz com a convicção dos fanáticos, do que as que vemos na televisão. Ao menos elas se mostram como são, imagens, e não na forma portátil e compacta de uma realidade já inacessível. Ele chama o mundo de sua máquina, a Zona, em homenagem a Tarkovsky. (…) No fundo, sua linguagem me toca, porque é dirigida àquela parte de nós que insiste em desenhar nas paredes das prisões – um giz a seguir os contornos do que não existe, não existe mais ou ainda não existe. Uma escrita com a qual cada um fará sua lista das coisas que fazem o coração bater, para ofertá-la ou apagá-la; nesse momento, a poesia será feita por todos e haverá tumultos na zona.[13]

Uma “lista das coisas que fazem o coração bater”, de um lado, e “a poesia feita por todos”, de outro: em sua reflexão acerca dessas imagens e sons eletrônicos de trinta anos atrás, pioneiros em relação às atuais plataformas audiovisuais digitais, Marker anteviu poética e profeticamente a internet como uma nova zona ou máquina de guerra, antecipando as novas possibilidades de articulação política e cultural das grandes lutas sociais de que é feita a história da humanidade.

 

* Ivan Capeller é doutor em comunicação pela UFF e professor adjunto da ECO/UFRJ.

 

Notas


[1] Ver, a esse respeito, DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Capitalisme et schizophrénie 2 – Mille plateaux. Paris: Les Éditions de Minuit, 1980. p. 434-591.

[2] Ibid., p. 592-625.

[3] DELEUZE, Gilles. L’Image-mouvement. Paris: Les Éditions de Minuit, 1983; L’Image-temps. Paris: Les Éditions de Minuit, 1985.

[4] Ver DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix: Capitalisme et schizophrénie 2 – Mille plateaux. Paris: Les Éditions de Minuit, 1980. p. 140-184.

[5] A formulação tradicional dessa dicotomia encontra-se em ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva, 1993. p. 33-67.

[6] Ver CAPELLER, Ivan. Pragmática da experiência cinematográfica. Cadernos da 14ª Jornada Peirceana: os objetos do signo. São Paulo: PUC-SP, 2011. p. 17-22.

[7] DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Capitalisme et schizophrénie 2 – Mille plateaux. Paris: Les Éditions de Minuit, 1980. p. 491-502.

[8] KRACAUER, Sigfried. De Caligari a Hitler, uma história psicológica do cinema alemão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988.

[9] Referência autorreflexiva às marcas redondas, parecidas com queimaduras de cigarro, que sinalizam a mudança próxima do rolo de projeção das projeções cinematográficas convencionais.

[10] DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Capitalisme et schizophrénie 2Mille plateaux. Paris: Les Éditions de Minuit, 1980. p. 525.

[11] Exemplar, nesse sentido é o episódio ocorrido no Brasil por ocasião do Ano-novo de 2010, quando o “jornalista” Boris Casoy emitiu frases ofensivas contra os trabalhadores do país durante uma transmissão ao vivo de um telejornal que, além de “vazar para o ar” em cobertura nacional de rádio e de TV, foi registrada e, quase imediatamente, postada no Youtube, impedindo assim o abafamento do caso e possibilitando a sua divulgação massiva para mais pessoas durante muito mais tempo. O episódio ainda está disponível em www.youtube.com/watch?v=wOzCMZrWH5w.

[12] Acerca da diferença entre sujeição social e servidão maquínica, ver DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Capitalisme et schizophrénie 2 – Mille plateaux. Paris: Les Éditions de Minuit, 1980. p. 570-573.

[13] SANS soleil. Direção: Chris Marker.  Aurora DVD. Coleção cinema essencial v. 4. A tradução do off é minha.

 

 

 

O debate marxista sobre a pós-modernidade | de Ricardo Musse

Desde o Manifesto do partido comunista (1848), o marxismo sempre se posicionou simultaneamente como crítico e defensor da modernidade. A determinação do caráter contraditório do capitalismo – a combinação de aspectos positivos, como a urbanização e a industrialização, com traços negativos: a exploração, a reificação etc. – tornou-se uma de suas principais marcas distintivas. Essa associação fez com que os marxistas rejeitassem peremptoriamente as recorrentes tentativas teóricas de caracterizar o mundo atual como uma superação do capitalismo, da “sociedade pós-industrial” de Daniel Bell ao “fim da história” de Fukuyama. No entanto, o mesmo não ocorreu, como seria de se esperar, com o conceito de “pós-modernismo”.

A controvérsia sobre a pós-modernidade acabou se convertendo em um tópico essencial do debate marxista, sobretudo nos anos 1980, no bojo de uma discussão acalorada sobre o sentido e o significado da modernidade. A retomada dessa controvérsia explica-se em parte pelo próprio modo como o marxismo se constituiu com uma tradição comum, cumprindo a exigência de uma atualização constante do diagnóstico do presente histórico. Mas os próprios termos pelos quais essa avaliação passou a ser referida indica o impacto de determinadas dimensões que foram trazidas ao primeiro plano pela polêmica sobre o conceito de pós-modernismo.

Em geral, ao longo de sua trajetória, as descrições de época ensejadas pela linhagem marxista combinavam análises dos ritmos de desenvolvimento econômico do capitalismo e da conjuntura política com certa dose de “filosofia da história”. A polêmica sobre a pós-modernidade, no entanto, desde suas origens, se caracterizou por associar a configuração do presente histórico com a discussão sobre tendências estéticas e culturais.

 

1. Jürgen Habermas

Herdeiro da Teoria Crítica, Jürgen Habermas foi um dos primeiros marxistas a tratar a questão da pós-modernidade nesses termos, numa série de intervenções – cujo marco inicial foi o discurso por ocasião do recebimento do prêmio Theodor Adorno em Frankfurt, em setembro de 1980 – que adquiriram ressonância mundial. Nesse texto, denominado “Modernidade versus pós-modernidade”, Habermas ressalta tanto a dimensão sociológica como a estética da discussão.

Ele enfatiza que o neoconservadorismo americano, no qual Daniel Bell destaca-se como um expoente, não pode ser compreendido adequadamente quando se desconsidera que se trata, sobretudo, de um antimodernismo cultural, uma espécie de esquizofrenia que louva o progresso econômico mas rejeita suas consequências culturais, repelidas como regressivas. O centro do artigo de Habermas, no entanto, consiste em um posicionamento próprio em relação à discussão estética vigente no momento acerca da autonomia da arte, o legado das vanguardas e o declínio do modernismo.

Sua compreensão do presente histórico, no entanto, assenta-se sobre dois pressupostos não consensuais no campo do marxismo: (1) a hipótese de um desenvolvimento próprio, autônomo e independente da esfera cultural em relação às esferas econômica e política, proposta por Weber e predominante na sociologia do século XX; (2) a determinação do marxismo como um desdobramento do projeto iluminista, postura que não apenas considera a vertente social-democrata como a mais legítima na bifurcação dessa linhagem entre reformistas e revolucionários, como também ignora aspectos decisivos da crítica do Iluminismo presentes em Marx e destacados por Walter Benjamin, Max Horkheimer e Theodor Adorno.

Habermas retomou e desenvolveu essa análise de forma breve no opúsculo A nova intransparência e de maneira mais extensa no livro O discurso filosófico da modernidade, ambos de 1985. Sua defesa do projeto moderno como inacabado, um conjunto de potencialidades ainda não efetivadas, viga mestra de seu combate simultâneo ao antimoderno e ao pós-modernismo, não deixa de configurar, no entanto, um desvio em relação à avaliação prevalecente no marxismo, que já no Manifesto comunista destaca o caráter contraditório do capitalismo, apreensão que muitos denominaram de “dialética da modernidade”.

Apesar de seu diagnóstico dispensar uma elaboração mais detalhada dos desdobramentos do capitalismo, muitas vezes compreendido como um sistema uniforme e homogêneo, sua interpretação – sobretudo depois do impacto que adquiriu sua polêmica com François Lyotard e com o pós-estruturalismo francês – orientou majoritariamente o campo dos marxistas que rejeitaram, quase em bloco, a tese da emergência da pós-modernidade.

 

2. Fredric Jameson

Uma das poucas vozes marxistas discordantes                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           foi Fredric Jameson. Ele começou a escrever sobre o assunto em 1982, mas sua posição só adquiriu ressonância com a publicação em 1984, na New Left Review, do artigo “A lógica cultural do capitalismo tardio”, que veio a se tornar o primeiro capítulo de seu livro Pós-modernismo (1991), no qual procura detectar uma dialética da pós-modernidade.

O uso do termo parece-lhe irrecusável não só pelas contingências intelectuais norte-americanas, mas principalmente por lhe parecer a descrição mais adequada de uma situação em que a modernização, totalmente implantada, não se defronta mais com obstáculos (leiam-se natureza e formas sociais pré-capitalistas) a serem superados. A realidade desse novo mundo – ao qual não caberia, como ao capitalismo descrito no Manifesto, fazer apologia ou condenar –, designa, por oposição à “modernização incompleta” da modernidade, uma versão mais pura e mais homogênea do capitalismo clássico, ou melhor, um terceiro estágio, o capitalismo multinacional, sucessor do capitalismo monopolista (o estágio do imperialismo) e do primevo capitalismo de mercado.

Jameson confere ao termo “pós-moderno”, para além de seu estatuto cultural, dimensões socioeconômicas e geopolíticas. Diferentemente do neoestruturalismo francês, congrega nesse conceito não apenas uma teoria epistemológica ou uma nova tendência estética, mas o concebe como um fenômeno social.

A nova divisão internacional do trabalho, a dinâmica vertiginosa das transações bancárias mundializadas, as novas formas de inter-relacionamento das mídias, tudo isso que hoje identificamos como sintomas da globalização seria, para Jameson, apenas as manifestações mais visíveis do capitalismo tardio, um estágio fundamentalmente distinto do antigo imperialismo (que ele define como pouco mais que a rivalidade entre várias potências coloniais).

Assim, a transformação cultural é adotada como signo e sintoma de uma metamorfose no interior do próprio modo de produção capitalista. Além de recortar esses três momentos da história do capitalismo, Jameson se propõe a determinar e desenvolver os demais aspectos da terceira fase do capitalismo, em especial a dimensão cultural, exposta por Ernest Mandel em O capitalismo tardio, levando em conta apenas os fatores econômicos.

Para estabelecer a topografia desse mundo onde a própria palavra modernização é prescindível, já que nele tudo é por definição “moderno”, Jameson toma como régua e compasso a determinação da lógica específica da cultura “pós-moderna”.

O primeiro passo consiste na delimitação dos traços recorrentes na produção – mas também nas teorias explicativas – do pós-modernismo, isto é, do período que se estende desde a institucionalização acadêmica do modernismo em meados dos anos 1960 até os anos 1990: a canibalização aleatória de todos os estilos do passado, ou melhor, a predominância estilística de pastiches (distintos das paródias valorizadas pelo modernismo); a criação de um hiperespaço muito além da capacidade humana de se localizar, seja pela percepção ou mesmo pela cognição, no meio circundante; a transferência da ênfase no objeto para a primazia da representação; a lógica espacial do simulacro etc. Em seguida, Jameson estende as características dessas linguagens culturais à esfera da vida cotidiana, às nossas experiências psíquicas e, por que não, ao “espírito do tempo”.

Essa abordagem totalizante passa – numa retomada do elã enciclopedista do Iluminismo – pelo mapeamento intelectual de uma multiplicidade impressionante de áreas do saber ou da arte. Evitando ao máximo os tiques classificatórios inerentes aos grandes panoramas, Jameson debruça-se sobre casos exemplares dessa nova sensibilidade, procurando – nem sempre de maneira feliz – conciliar análise formal e histórica. Para tanto, examina, entre outros, um leque que vai desde a teoria do pós-modernismo de Lyotard, o vídeo AlienNATION, a casa de Frank Gehry em Santa Monica, um livro nouveau roman de Claude Simon, instalações de Robert Gober e Nam June Paik, o novo historicismo de Walter Benn Michaels e Greenblatt, a análise de Rousseau por DeMan, o neoliberalismo econômico de Gary Becker, até filmes como Totalmente selvagem e Veludo azul.

Desse itinerário se depreende que o esmaecimento do sentido histórico, a substituição, como dominante, da categoria “tempo” pela categoria “espaço” ou a transmutação das coisas em imagens no processo de reificação, mais do que características de uma dominante cultural, constituem traços estruturais do capitalismo tardio.

Esse procedimento – o estabelecimento de conexões, a descoberta de afinidades entre fenômenos e esferas aparentemente distintos e autônomos –, um anátema para Max Weber e a modernidade, legitima-se, no pós-modernismo jamesoniano, pela dissolução explosiva da autonomia da esfera cultural, descrita por ele como uma prodigiosa expansão da cultura até o ponto em que tudo em nossa vida social – do valor econômico e do poder do Estado às práticas individuais e à estrutura da psique – deve ser considerado cultural.

Da mesma forma que os principais teóricos da modernidade – em especial Charles Baudelaire e Georg Simmel –, Jameson localiza no pós-modernismo uma alteração profunda das experiências da vida cotidiana, que afetam substancialmente a própria percepção e a vivência psíquica dos indivíduos. Modificações que derivam não apenas do esmaecimento do sentido histórico, com a substituição do predomínio da categoria tempo pela noção de espaço, mas sobretudo da transmutação, no bojo do processo de reificação das coisas em imagens.

Nesse modelo, a colonização do real pela cultura surge como uma atualização, ou melhor, uma amplificação telescópica do conceito de Theodor Adorno e Max Horkheimer de “indústria cultural”. Perdem-se, porém, as diferenciações internas – seja com o fim da autonomia das esferas normativa, cognitiva, cultural; seja pela aniquilação e descentramento do sujeito; seja pela dissolução da “alta cultura” – que possibilitaram tanto ao modernismo quanto ao marxismo ocidental (daí talvez a sua afinidade) se autorrepresentarem, na esteira de Marx, como expressões da dialética da modernidade.

Uma vez que a produção cultural hoje estaria totalmente integrada e, portanto, subordinada à lógica da mercadoria – o que não deixa de ser saudado por Jameson em nome da “democratização da informação” –, nada parece restar como apoio para sua acalentada intenção de estabelecer uma dialética da pós-modernidade. A sua empatia com os objetos que analisa, a evidente satisfação provinciana com o deslocamento do “espírito do mundo” para os Estados Unidos, a surpreendente simpatia pelo mundo “pós-moderno” transformam em mera retórica o seu projeto de “pensar dialeticamente a evolução do capitalismo tardio como um progresso e uma catástrofe ao mesmo tempo”.

A satisfação de Jameson no pós-modernismo marca, ela sim, uma ruptura com o mal-estar na modernidade, com a postura, incessantemente crítica frente a seu tempo, tanto dos marxistas ocidentais quanto da maioria dos artistas modernistas.

Apesar desses equívocos, os trabalhos de Jameson sobre o pós-modernismo outorgaram legitimidade intelectual e despertaram interesse por uma série de sintomas que pareciam apenas características de uma moda efêmera. Ao contrário de seus predecessores, entre os quais se destacam Lyotard e Habermas, ele procurou compreender o pós-modernismo não apenas como teoria epistemológica ou estética, mas também como fenômeno social. Abordando a pós-modernidade como signo cultural de um novo estágio na história do capitalismo, consumou uma inflexão de esquerda num conceito e numa discussão cujas origens remetiam à manutenção da ordem existente, como mostrou com propriedade Perry Anderson, em As origens da pós-modernidade.

Mas, a despeito de seu afã totalizante – de inspiração hegeliana – de estabelecer a topografia dessa nova sensibilidade, havia algo de insatisfatório em Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. Primeiro, nota-se certa dificuldade em seguir o preceito marxista, reiterado por ele próprio, de apontar a investigação para as contradições da nova ordem social. Depois, uma insuficiente utilização, na determinação específica do funcionamento em ato dessa nova lógica cultural, de seu principal achado teórico: a tese de que a estrutura do capitalismo tardio promove uma dissolução da autonomia da esfera cultural, gerando uma prodigiosa expansão até o ponto em que tudo na vida social – do valor econômico e do poder do Estado às práticas individuais e à estrutura da psique – passa a ser considerado como cultural. Tudo isso assoma ao primeiro plano do livro, num visível descompasso entre análise formal e histórica.

Para superar esses impasses, Jameson seguiu a pista – aberta mas não desenvolvida naquela obra –, segundo a qual a descrição e a decodificação de uma época pós-moderna nada mais foi que uma precoce e insuficiente tentativa de compreender a nova fase do capitalismo. A virada de Jameson pode ser documentada em um artigo seu publicado no número especial da revista Monthly Review, dedicado ao pós-modernismo, coletado no livro Em defesa da história. Enquanto todos os participantes seguiam a vereda aberta por ele, procurando identificar a lógica cultural da sociedade atual, Jameson, por sua vez, procurava compreender – na mesma chave, tomando-o como um fenômeno cultural sintomático da nova fase do capitalismo – a moda intelectual subsequente: o conceito de “globalização”.

Essa inflexão culmina no livro A virada cultural (1998). Nesse movimento em que desloca a ênfase do pós-modernismo para a globalização, da cultura para a economia, Jameson encontrou o que faltava em seu livro de 1991, uma adequada descrição daquilo que nomeia como terceiro estágio do capitalismo. As análises de Ernest Mandel, em O capitalismo tardio – um livro de 1972, redigido no momento da inflexão que conduziu o capitalismo a uma nova fase – cedem lugar à recente teoria de Giovanni Arrighi, exposta principalmente em O longo século XX.

Na versão de Arrighi, os movimentos do capitalismo, descontínuos e em perpétua expansão, cristalizam-se em um esquema cíclico que se desloca ao longo de nações e espaços geográficos distintos: a hegemonia migrou das cidades italianas para a Holanda, daí para a Inglaterra e, no século XX, para os Estados Unidos. Mas o que interessou a Jameson, em especial, foi a descrição do movimento interno de cada ciclo, uma tríade em que primeiro ocorre “a implantação de capital que busca investimentos numa região nova; em seguida, o desenvolvimento produtivo da região em termos de indústrias e manufaturas; e, finalmente, uma desterritorialização do capital na indústria pesada para possibilitar sua reprodução e multiplicação na especulação financeira”. Assim, o que em geral se denomina globalização seria apenas um aspecto de um processo mais profundo, o ingresso do capitalismo no terceiro estágio, de expansão financeira.

Com esse diagnóstico do presente histórico, Jameson recompõe alguns fios que pareciam soltos em suas análises. A abstração inerente ao capitalismo financeiro possibilita uma equalização entre análise histórica e formal. A lógica cultural do presente não se apresenta mais como um fechado universo foucaultiano, mas como expressão, na esteira da tradição marxista, da dialética da modernidade. Por fim, a tese da colonização do real pela cultura, simultânea à subordinação da produção cultural à lógica da mercadoria, pode ser desdobrada em todas as suas implicações.

Não se trata apenas de restabelecer, em outro patamar, a conexão entre economia e cultura, desplugada desde o declínio do marxismo ocidental em meados dos anos 1970, mas também de precisar, à luz de um novo contexto, a função da crítica. O predomínio do capital financeiro intensificou a dissolução da autonomia do estético, já prevista por Adorno e Horkheimer no conceito de indústria cultural, a tal ponto que inviabilizou o projeto comum de artistas modernistas e marxistas ocidentais de expressarem as contradições inerentes à modernidade. No momento atual, a associação, a reciprocidade entre crítica cultural e crítica social, a possibilidade de “pensar dialeticamente a evolução do capitalismo como um progresso e uma catástrofe ao mesmo tempo”, parece ter se tornado uma tarefa solitária da crítica.

 

3. David Harvey

Com a publicação, em 1989, de Condição pós-moderna, David Harvey se tornou uma das vozes mais influentes nesse debate. Seu livro associa a mudança nas práticas culturais, subjacentes ao termo “pós-modernismo”, com alterações político-econômicas que teriam se iniciado em 1972. Mais especificamente, relaciona as novas experiências frente ao tempo e ao espaço (o engendramento de uma nova sensibilidade ou o sentimento qualificado de pós-moderno) com a emergência de modalidades diferentes, mais flexíveis de acumulação do capital, isto é, ao início de um novo ciclo de “compressão do tempo-espaço na organização do capitalismo”. Isso não significa, no entanto, que ele endosse a tese do surgimento de uma sociedade pós-capitalista ou mesmo pós-industrial, ao contrário.

Um dos pontos fortes do livro de Harvey assenta-se na atenção que dedica à experiência urbana nas grandes cidades – um tópico essencial das teorias sobre a modernidade e também sobre a pós-modernidade. Ele, de certo modo, atualiza as considerações de Georg Simmel, na passagem do século XIX para o XX, nas quais se ressalta o processo de abstração patente nos novos estilos de vida, na experiência do choque, na atitude de reserva, na disseminação da relação monetária etc. Para Harvey, o pós-modernismo não significa apenas uma mudança no estatuto da produção cultural, sinaliza também uma modificação no próprio modo de vida com a generalização de novas práticas, experiências e formas de vida.

Em sua obra anterior, Limits of capital, Harvey examina a teoria marxista das crises econômicas. Nesse diapasão, compreende o pós-modernismo como uma ruptura com o modelo de desenvolvimento do capitalismo prevalecente no pós-guerra. Desde a recessão de 1973, a forma de acumulação predominante, o fordismo, é minada pela crescente competição internacional, por baixas taxas de lucro corporativo e por um processo inflacionário em aceleração, o que mergulhou a economia capitalista numa crise de superacumulação.

A resposta da classe capitalista e dos governos dos países centrais a essa situação desdobrou-se como um novo regime de acumulação “flexível”, no qual o capital ampliava sua margem de manobra intensificando a flexibilidade dos mercados de trabalho – privilegiando contratos temporários, a incorporação de força de trabalho imigrante etc. –, dos processos de fabricação – pela via da transposição de unidades fabris para outros países ou regiões –, da produção de mercadorias – por processos just in time, por lotes de encomendas etc. –, nos mercados financeiros – desregulamentados nas transações atinentes ao câmbio, ao crédito e aos investimentos.

Essa nova forma de acumulação fornece a base para a cultura pós-moderna, para uma sensibilidade ligada à desmaterialização do dinheiro, ao caráter efêmero das moedas, à instabilidade da nova economia.

Em 2003, Harvey reformula seu diagnóstico do presente histórico, levando em consideração a nova ordem engendrada pela reação do Estado norte-americano aos atentados de 11 de setembro de 2001, sobretudo as invasões sucessivas do Afeganistão e do Iraque. Esses desdobramentos causaram perplexidade geral. Afinal, a disposição de ocupar esses países não estaria na contramão de uma política cuja hegemonia se firmara ao longo do século XX graças ao discurso e à prática em favor da autonomia nacional? Além disso, como entender a legitimidade obtida pelo governo Bush – uma singular coalizão de militaristas, neoconservadores e cristãos fundamentalistas, acusada de fraude eleitoral –, confirmada com sua escolha para exercer um segundo mandato?

As mudanças na ação externa e no cenário interno suscitaram a onda de explicações que colocou na boca de liberais e conservadores um termo que a esquerda utiliza há muito para caracterizar o Estado norte-americano: imperialismo. A ocupação neocolonial de territórios, seu denodo em determinar os rumos do capitalismo, o estado de guerra permanente (41% dos gastos do governo são destinados a atividades militares) e até mesmo o revezamento de poucas famílias no comando da nação, tudo isso aponta para o ressurgimento de um poder imperial.

Essa inusitada convergência disseminou e banalizou ao extremo a palavra “imperialismo”. Quando se debruçou sobre o tema, David Harvey, para qualificar o debate, procurou restabelecer as determinações conceituais e históricas da teoria marxista do imperialismo. Mas, paradoxalmente, poucos anos depois, a atualidade de O novo imperialismo reporta-se menos às análises de conjuntura – em geral brilhantes e muitas vezes proféticas – do que ao arcabouço teórico que o livro desenvolve.

Ao contrário do que se crê, a discussão sobre o imperialismo não é episódica no corpus marxista, resquício da “era dos impérios” e do leninismo. Quando bem dimensionada, ocupa um lugar central na compreensão teórica e histórica do capitalismo. Se Marx, por um lado, caracteriza a dinâmica desse modo de produção como o desdobramento da acumulação de capitais (numa lógica estritamente econômica), por outro lado, em um capítulo crucial de O Capital (“A assim chamada acumulação primitiva”) mapeia, uma a uma, as práticas extraeconômicas que favorecem a acumulação capitalista.

O debate polarizou-se entre os que consideram a “acumulação primitiva” como mera etapa necessária à emergência do capitalismo e os que a situam como momento estrutural de seu dinamismo histórico. A questão, no fundo, remete às relações entre economia e política, um dos muitos pontos que Marx apenas esboçou e não teve tempo de desenvolver em sua obra.

Harvey é partidário decidido da segunda alternativa. Para ele, o processo de “acumulação interminável de capital”, que configura histórica e geograficamente o capitalismo, combina, de forma contraditória, a lógica econômica, os processos moleculares de acumulação e as estratégias políticas, diplomáticas e militares que denomina “acumulação por espoliação”, renomeando o arsenal de práticas que Marx chamava de acumulação primitiva.

A predecessora mais ilustre dessa posição foi Rosa Luxemburg. Harvey compartilha com ela a tese de que a acumulação capitalista não prescinde de alguma espécie de ambiente externo. Discorda, no entanto, de que esse “outro” seja sempre uma forma de produção pré-capitalista. O próprio capitalismo, em sua geografia e história, pode produzir esse “exterior”, como no caso do desemprego em massa que amplia o exército industrial de reserva. Tampouco concorda que a sucessão de crises que perpassa o capitalismo seja explicável pelo “subconsumo”. Para Harvey, as crises advêm da dificuldade em absorver de forma lucrativa os excedentes de capital e são, portanto, “crises de sobreacumulação”. Sua resolução acarreta tanto a desvalorização de ativos e a destruição de regiões como configura uma nova paisagem espaço-temporal para acomodar a perpétua acumulação de capital e sua companheira inseparável, a acumulação interminável de poder.

Harvey não despreza os ensinamentos de Lênin sobre o imperialismo, em especial a denúncia da assimetria entre Estados no interior de um sistema global de acumulação de capital. Mas, em vez de descrevê-lo como uma fase “última” do capitalismo, prefere vê-lo, na fórmula de Hannah Arendt, como “o primeiro estágio do domínio político da burguesia”. A partir dessa premissa reconstitui, com alguns deslocamentos decisivos, a hipótese de uma sucessão de Estados hegemônicos desenvolvida por Giovanni Arrighi.

Entre 1870 e 1945, imperialismos rivais assentados no nacionalismo e no racismo conduziram as nações a uma série de crises e guerras. A hegemonia norte-americana após 1945 se torna incontestável, dissimulando seu domínio sob a capa de um universalismo abstrato: a defesa das classes proprietárias de todo o mundo em sua luta contra o comunismo. A partir de 1973, o modelo de acumulação altera-se completamente com a criação de um sistema monetário desmaterializado.

Nesses três períodos convivem, com pesos diferenciados, a acumulação molecular de capital e a acumulação por espoliação. Esta vigorou no período 1870-1945 e voltou a prevalecer a partir de 1973, após o interregno dos “trinta anos dourados”. A face imperialista do capitalismo torna-se ostensiva nos momentos em que predomina o acúmulo por espoliação, mas nunca deixa de atuar, sobretudo porque também deriva, de forma complexa, da reprodução expandida do capital.

Essa teoria permite a Harvey explicar de forma convincente os principais fenômenos político-econômicos dos últimos 35 anos, apresentando a financeirização, a globalização e a política neoliberal como estratégias da “acumulação por espoliação”. Seu predomínio manifesta-se na vida política por meio da cisão dos movimentos antiglobalização, divididos entre a esquerda socialista – cuja ênfase na reprodução ampliada coloca como central a luta anticapitalista – e os novos movimentos sociais, que tendem a assumir formas difusas, fragmentárias e avessas ao controle do aparelho de Estado, posto que lutem prioritariamente contra a espoliação.

 

4. Balanço e perspectivas

A especificidade da discussão marxista sobre a pós-modernidade deriva em grande medida do fato de que a inserção na linhagem do marxismo demanda dos autores, junto com uma atualização da obra de Marx e de seu legado, um diagnóstico do presente histórico que não se confunde com os relatos convencionais que, em geral, se limitam a listar as modificações sociais, econômicas, políticas e culturais.

Para determinar a configuração histórica de seu tempo, Habermas mirou simultaneamente três âmbitos distintos, o neoconservadorismo anglo-saxão (que tinha em Daniel Bell um de seus expoentes), o pós-estruturalismo francês e o debate estético nas artes plásticas e na arquitetura. Ao se restringir a esses aspectos do problema, ele não fornece uma resposta convincente a uma questão que ele próprio cobra de Daniel Bell – falta-lhe uma explicação das causas econômicas e sociais da mudança cultural. Sua apreciação da modernidade como um projeto inacabado, além de configurar uma interpretação que pouco salienta a contradição inerente ao capitalismo, não constitui propriamente uma teoria histórica do capitalismo.

A ressonância mundial de seus textos, no entanto, tornou a questão estética uma espécie de campo de prova da existência ou não de uma pós-modernidade. O debate sociológico, antes concentrado na controvérsia acerca do surgimento ou não de uma sociedade pós-industrial, foi assim deslocado para uma controvérsia que, como mostrou Perry Anderson, emergiu já na primeira metade do século XX.

O êxito de Jameson em tornar a discussão sobre a pós-modernidade um debate aceitável e até mesmo decisivo no interior do marxismo vincula-se ao alcance de dois procedimentos que ele operou com maestria. Primeiro, ele forneceu o quadro teórico – ao mesmo tempo abrangente e refinado – do que seria a estética pós-moderna, valendo-se de sua familiaridade com a teoria estética desenvolvida pelos marxistas ocidentais, objeto de seu estudo no livro Marxismo e forma. Além disso, Jameson concebeu a “cultura” pós-moderna como uma delimitação mais ampla do que as meramente estéticas. Determinou-a no sentido desenvolvido pelos estudos culturais e, em especial, por Raymond Williams, como uma “sensibilidade” ou “sentimento”, isto é, um conjunto de prática, motivações da ação e de atribuição de sentido ao mundo e à existência (vinculado, em certa medida, a uma determinada estrutura psíquica).

Assim, Jameson não só marcou de forma nítida a ruptura entre a estética da modernidade e a da pós-modernidade – ancorada na primazia da imagem sobre os objetos, sustentada pela disseminação da televisão e do computador pessoal –, mas também estabeleceu um terreno, a cultura, que possibilita o confronto e a comparação com as diversas teorias da modernidade. Argumenta em favor da ruptura entre nossa época e o passado imediato, ressaltando a transmutação da reificação – o fetiche não deriva mais apenas da autonomia ilusória das coisas, mas sobretudo das imagens –, e uma mudança significativa na estrutura da subjetividade – a individualidade não se constitui mais por meio de uma relação temporal que incorpora passado, presente e futuro, mas se encontra submersa numa “presentificação” em que o tempo é substituído por relações espaciais – pela hegemonia a-histórica do aqui e agora.

O calcanhar de aquiles da teoria de Jameson – apontado já em 1991 por Mike Davis e retomado por Perry Anderson – localiza-se em sua tentativa de explicar essa mudança histórica a partir da teoria desenvolvida por Mandel em 1972. Não só pelo fato de O capitalismo tardio ter sido escrito antes do desabrochar pleno das teorias e das práticas que moldaram a cultura pós-moderna, mas sobretudo porque Mandel data a eclosão dessa terceira fase do capitalismo de 1945.

Jameson procurou, em seus escritos posteriores ao livro Pós-modernismo, sanar essa incoerência caracterizando esse terceiro período da história do capitalismo como o da hegemonia norte-americana – retomando a periodização de Giovanni Arrighi em O longo século XX, mas também promovendo uma espécie de simbiose entre as teorias de Mandel e de Arrighi.

David Harvey, em A condição pós-moderna, ainda se encontra, em grande medida, preso a esses esquemas conceituais, seja o de Habermas ou o de Jameson. Até mesmo a maior novidade de seu livro – a percepção de que se trata de uma mudança estrutural (ou de fase) do capitalismo – ainda é apreendida por meio de um diálogo com Jameson. Sua reconstituição do período anterior a partir do conceito de “fordismo”, formulado por Antonio Gramsci e retomado pela escola francesa da regulação, permitiu-lhe, no entanto, apresentar, sob o termo “acumulação flexível”, uma teoria própria que indica transformações decisivas no mercado de trabalho, nas formas e métodos de organização da produção e, sobretudo, na esfera financeira, no mercado de capitais e crédito. Apesar desse avanço para determinar com mais precisão as causas econômicas, políticas e sociais da mudança cultural, só em sua obra posterior ele logrou desenvolver de forma plena e consistente uma teoria da acumulação capitalista, que permitiu compreender a distinção entre modernidade e pós-modernidade como nada mais que a emergência de uma fase da história, ainda aberta, do capitalismo.

 

* Ricardo Musse, professor no departamento de sociologia da USP, é livre-docente e doutor em filosofia pela USP e mestre em filosofia pela UFRRS. Organizou, entre outros, os livros Capítulos do marxismo ocidental (Editora Unesp) e Émile Durkheim: fato social e divisão do trabalho (Ática).

 

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Novas TICs, cidadania e educação | de Ovidio Mota Peixoto

RESUMO

Desde que a chamada Sociedade da Informação começou a se consolidar, não faltam vozes triunfalistas saudando o avanço social supostamente tornado possível pelas novas Tecnologias da Informação e da Comunicação, as TICs. Mais do que melhorias efetivas, o advento da sociedade em rede traz incertezas e talvez exageros. Ao mesmo tempo que facilita, amplia e promove o consumo, a internet cria expectativas otimistas quanto ao potencial que teria para reforçar e amplificar a cidadania e melhorar os processos educativos. No entanto, um exame mais rigoroso revela que, ao contrário do que seria esperado, cidadania e educação estão longe de ser consideradas satisfatórias, especialmente no Brasil. A primeira questão investigada aqui é até que ponto a popularização do uso das novas TICs contribui para a melhoria da educação de seus usuários? A outra questão relevante é por que as facilidades e possibilidades de comunicação hoje disponíveis não permitiram até agora um exercício mais consistente da cidadania?

Palavras-chave: cidadania; educação; novas TICs.

 

A universalização do acesso

Na constante histórica da desigualdade social brasileira, há duas bases de sustentação solidamente construídas: a concentração da propriedade da terra e o acesso desigual à educação. Darcy Ribeiro dizia com refinada ironia que a elite brasileira foi muito competente ao implantar o ensino universalizante no Brasil, pois garantiu que a educação ficaria restrita à própria elite e jamais seria de fato estendida a toda a população. Enquanto a educação superior ficou a cargo do governo federal, a educação fundamental e média foi entregue a estados e municípios e, portanto, ficou sujeita à subordinação dos interesses das elites locais. Sobre o Mobral, programa de alfabetização de adultos posto em prática durante os governos militares, Darcy dizia que sem ele a classe dominante estaria perdida, pois o analfabetismo poderia terminar no ano 2000. Nas palavras dele:

Imagine-se o ano 2000 sem analfabetos no Brasil! Seria um absurdo! Não, graças à providência de criar para alfabetizar um órgão que não alfabetiza, de não gastar os escassos recursos destinados à educação onde se deveria gastar, de não investir onde se deveria investir – se o propósito fosse generalizar a educação primária – podemos contar com a garantia plena de que manteremos crescente o número absoluto de analfabetos de nosso país.1

A advertência contida nas palavras de Darcy Ribeiro pode ser dirigida à pretendida universalização do acesso ao mundo dos computadores. A ideia dominante na contemporaneidade é a de que a inclusão digital é uma forma de realização da justiça social. Conforme Cazeloto,2 o acesso às máquinas informáticas é visto como sinônimo de participação sociopolítica, em vez de mera submissão às exigências do próprio capitalismo, em vias de expansão promovida por setores internacionais dominantes, incluídas em tais setores a “elite mundial da megainfoburocracia” e as elites locais, afinadas com as “formas de produção da cibercultura”. O central na ideia de cibercultura, segundo Cazeloto, é a imbricação entre economia, cultura e tecnologia. Doravante, a estratificação social irá depender não apenas do acesso às novas tecnologias, mas principalmente da capacidade de substituir, de atualizar, ou seja, de acompanhar a velocidade das inovações constantes.

Mas não basta se informatizar, isto é, ter e saber usar um computador. É preciso também estar conectado à internet. O Programa Nacional de Banda Larga, criado em 2010, começa com a seguinte afirmação: “A construção do caminho para superar o abismo social que divide a sociedade brasileira é o grande objetivo do Programa Nacional de Banda Larga”. O documento informa que a inclusão digital representa garantia de que os cidadãos e instituições disponham de meios e capacitação para acessar, utilizar, produzir e distribuir informações e conhecimento, por meio das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs), de forma que possam participar de maneira efetiva e crítica da sociedade da informação. Ainda segundo o texto, é preciso criar uma infraestrutura de banda larga para permitir acesso à internet em alta velocidade, pois “a massificação da banda larga deve ser vista como um instrumento de efetivação de direitos dos cidadãos da era digital”.

O documento reconhece, no entanto, que há ressalvas importantes, como quando observa que “a inclusão digital apenas servirá ao país se for pensada, planejada e executada como meio de inclusão social, e não apenas como um fim em si mesma”.3 Pois é justamente da relevância de ressalvas como essa que este artigo trata. Especialmente das ressalvas ofuscadas e suavizadas pela mistificação do discurso triunfalista que apresenta as novas TICs como panaceia para os problemas sociais brasileiros. De tal modo que, em nome de uma suposta inclusão urgente e indispensável, para a qual deveriam ser direcionados todos os recursos e esforços possíveis, pode-se estar contribuindo, na verdade, para a perpetuação da desigualdade, dos desequilíbrios e da concentração de renda que fundam e marcam a história da sociedade brasileira.

Nossa intenção é contribuir para um conjunto de reflexões, associadas à afirmação de Edilson Cazeloto, para quem, atualmente, “a proliferação dos programas de inclusão digital pode ser interpretada como uma forma de intervenção imperial destinada a criar o ambiente necessário à elite cibercultural pela saturação midiática e pela informatização do cotidiano”.4 O mesmo autor observa que as novas tecnologias digitais atuam sobre todas as classes de cima para baixo, com intensidade semelhante. Assim, elas tendem a consolidar ou ampliar fossos sociais e desigualdades, reforçando exclusões preexistentes, muito mais do que oferecendo chances de ascensão ou de inclusão social.

 

Reflexões necessárias

Segundo José Eisenberg e Marco Cepik, as iniciativas governamentais voltadas para a implantação das novas TICs têm crescido rapidamente, sem ser acompanhadas de uma reflexão mais sistemática acerca dos possíveis impactos e consequências de tais iniciativas, ou dos resultados obtidos em outros contextos.5 O mesmo pode ser dito da maneira como a mídia tem tratado do assunto e como o senso comum tende a reproduzir a pregação triunfalista.

O intento aqui é chamar atenção para a falta de crítica ou para a passividade com que se tem aceitado a repetição de discursos que pretendem glamorizar o potencial democratizante das novas TICs e da internet, mesmo que a realidade continue fornecendo sistematicamente evidências de que os avanços na área da cidadania e da educação estão longe do que seria possível ou esperado com o advento das novas tecnologias.

O eixo transversal, a questão que estrutura essa reflexão, diz respeito a quais são os limites, as distorções e equívocos que impedem que as novas mídias e linguagens produzam novas práticas sociais capazes de reforçar, ampliar e garantir a cidadania democrática, ou seja, permitir que os direitos de cidadania sejam alcançados por todos os cidadãos. O discurso mercadológico solicita políticas públicas e investimento estatal com base em alegações nem sempre garantidamente verdadeiras. E deixa sem resposta questões como:

a) As novas Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs) contribuem para o fortalecimento da cidadania, aqui entendida como igualdade de oportunidades?

b) Ou, ao contrário, tendem a cristalizar desequilíbrios e iniquidades e ampliar o fosso que separa as classes sociais?

c) Modificam a configuração das relações sociais sem alterar estruturalmente a realidade, embora façam parecer que sim?

d) Quem ganha e a quem interessa o clima festivo e triunfalista a respeito do potencial das novas tecnologias?

e) O que fazer – e como fazer – para garantir que as TICs sirvam à causa da cidadania?

f) Como a educação (a escola) pode interferir nisso?

g) As redes sociais são evidência de maior participação ou apenas espaço experimental para coleta de informações e monitoramento do comportamento de consumidores, visando melhorar a eficiência das estratégias de vendas?

 

Números que impressionam

Em geral, quando se trata de novas tecnologias e internet, os números costumam causar impacto. Pela velocidade, pela quantidade de usuários e principalmente pelos valores mobilizados. A seguir, algumas dessas cifras que frequentam os meios de comunicação e slides de palestras sobre a internet.

O número de usuários de computador ultrapassou a marca de 2 bilhões de pessoas em 2011, segundo a Internet World Stats.6 No Brasil, de acordo com o Ibope, o acesso à internet em qualquer ambiente (domicílios, trabalho, escolas, lan houses ou outros locais) atingiu 77,8 milhões de pessoas no segundo trimestre de 2011.7

O Programa Nacional de Banda Larga menciona um estudo elaborado pelo Banco Mundial, segundo o qual, para um investimento de 5 bilhões de dólares em infraestrutura de telecomunicações, são criados de 100 mil a 250 mil empregos diretos e algo em torno de 2,5 milhões de empregos indiretos.8

De acordo com o jornal Meio e Mensagem, o crescimento da internet na América Latina foi de mais de mil por cento na última década. Dados do Ibope Nielsen Online colocam o Brasil na terceira posição mundial em número de usuários ativos na internet, com uma média de acesso de 47 horas mensais.9

 

Limites

Em contrapartida, vale observar que, pelo menos até cinco anos atrás, a conexão discada era mais difundida que a banda larga, segundo o Pnad do IBGE. A melhora da inclusão digital está ocorrendo vagarosamente. Até 2005, ainda segundo o IBGE, 79% dos brasileiros nunca tinham acessado a internet.10 Há limites ligados ao acesso, como o acesso aos meios, à linguagem, às possibilidades, e outros ligados ao uso. Daí existirem pessoas que não têm nem podem usar as TICs; outras que têm mas não sabem usar; as que sabem mas não usam; e as que usam e abusam.

Dados do Cetic.br apontam que 85% dos lares urbanos brasileiros não possuem acesso à internet em banda larga. A diferença entre o número de domicílios com computador e acesso à internet e aqueles com computador, mas sem acesso à internet, é cada vez maior.11

Segundo dados do Ipea, o custo do uso da banda larga no Brasil é alto para a realidade socioeconômica brasileira. O gasto com banda larga representa 4,5% da renda mensal per capita brasileira. Na Rússia, ele representa 1,68% e, nos países desenvolvidos, 0,5%.12

Muito mais evidente que qualquer iniciativa de fortalecimento da esfera pública ou da participação política é o bom desempenho do comércio eletrônico. Os buscadores, portais e comunidades virtuais atraem 94% dos internautas para os sites de comércio eletrônico, alcançando 70% dos usuários, segundo dados de outubro de 2011 do Ibope Nielsen Online.13

 

O comércio eletrônico aprimora seus instrumentos e amplia a eficácia de suas estratégias, comparecendo e marcando presença ao lado de seus consumidores, isto é, participando das redes sociais. Por outro lado, intensifica e sofistica seus mecanismos de coleta de informações sobre o que esse consumidor vê, busca, compra e onde ele realiza todas essas ações. O sistema há muito já percebeu que a compreensão dessas informações sobre o comportamento do consumidor será o passo mais importante para o crescimento do comércio eletrônico no Brasil e no mundo.

 

Redes sociais e democracia virtual

Sobre webdemocracia, democracia virtual, esfera pública virtual e outras formas de denominar o exercício político mediado pela internet, vejamos estas chamadas jornalísticas:

“Webcidadania” avança no Brasil e muda o foco da participação política.
Ferramentas induzem o cidadão a assumir papel ativo na vida pública.
Redes sociais e banco de dados ajudam a cobrar e fiscalizar políticos.
No momento em que as campanhas eleitorais no Brasil parecem acordar para o potencial da internet, montando estratégias e equipes para fisgar o voto na rede, iniciativas na web sem vínculo partidário ajudam o cidadão a participar da vida pública e fiscalizar a classe política.
São ferramentas digitais que invertem o eixo da participação na vida pública: de simples receptores das mensagens de políticos e partidos, os cidadãos passam a ter voz ativa na organização de suas demandas.
O que antes tomava papel, telefone, carros de som e horas de reuniões hoje pode ser feito em poucos cliques – de listar problemas do bairro a monitorar o trabalho de deputados e senadores em Brasília.
Sites e movimentos que promovem a chamada cidadania na web avançam no país e mostram resultados.14

As afirmações, publicadas no famoso portal de notícias G1 (um dos mais acessados do país), estão carregadas de entusiasmo e expectativas sobre as vantagens e possibilidades trazidas pela web. Ao abordar a internet como esfera pública virtual, Rousiley Maia afirma que não há dúvida de que as comunidades virtuais estão criando plataformas importantes para a participação política. A autora, no entanto, adverte para o fato de que boa parte da literatura vinculada à ciberdemocracia ou à democracia digital costuma exagerar sobre o potencial que as novas tecnologias teriam de revitalizar as instituições e práticas democráticas. Segundo Maia, estruturas comunicacionais eficientes podem ajudar a fortalecer a democracia, mas não bastam. É preciso também haver motivação correta, interesse e disponibilidade dos próprios cidadãos para se engajar em debates.15

Ao refletir sobre as interações entre política e cibercultura, Cazeloto16 observa que existe uma percepção do senso comum, normalmente incentivada pela elite e pela própria mídia, segundo a qual “o acesso às ferramentas informáticas tornou-se uma questão-chave para o processo de participação nas sociedades contemporâneas e para a atualização das garantias democráticas”.

Embora tenham sido incensadas como novos instrumentos de exercício da vontade e da democracia dos cidadãos, sobretudo pelo que a mídia enxergou nas mudanças políticas ocorridas no mundo árabe recentemente, não é possível afirmar com certeza que o potencial emancipador das redes sociais verificou-se também no Brasil. Não obstante algumas campanhas, como a do “ficha limpa” e a campanha contra a corrupção, o desinteresse da população pela política – partidária, vista como degradante, alvo de programas humorísticos e desprezo aparente da opinião pública – permanece alto.

Segundo Marcos Coimbra, as evidências mostram que a maioria das pessoas não costuma dedicar ao tema atenção constante, não se envolve emocionalmente com ele e só o acompanha de vez em quando. Para elas, política é uma coisa chata e aborrecida, da qual, simplesmente, não gostam. Não percebem sua relevância e não entendem aqueles para quem ela é uma preocupação importante.17

Sobre as redes sociais, o que se pode dizer é que, assim como a inclusão vem acompanhada de aceitação, elas são decantadas como revolucionárias, mas pouco analisadas criticamente. A subcategoria comunidades, que é como o Ibope classifica os sites de redes sociais, fóruns, blogs, microblogs e outras páginas de relacionamento, chegou a 39,3 milhões de pessoas, equivalente a um alcance de 87% dos internautas brasileiros em 2011. Em média, cada usuário brasileiro de redes sociais conecta-se a esses sites por um tempo de 7 horas e 14 minutos mensais.18

Nos Estados Unidos, segundo Malcolm Gladwell, as redes sociais têm sido tratadas indevidamente como exemplos de ativismo social. Gladwell cita dois exemplos recentes.  Em 2009, quando 10 mil pessoas saíram às ruas em protesto contra o governo comunista, em Moldova, no Leste Europeu, a ação foi chamada de revolução via Twitter, porque supostamente os manifestantes teriam sido mobilizados por aquela rede social. Meses depois, protestos estudantis abalaram Teerã, capital do Irã e o ex-assessor de segurança nacional, Mark Pfeifle, sugeriu que o Twitter ganhasse o Prêmio Nobel da Paz porque, segundo ele, “sem o Twitter, o povo do Irã não se teria sentido capaz e confiante o bastante para sair em defesa da liberdade e da democracia”. Os dois episódios, no entanto, foram postos em dúvida. Segundo Evgeny Morozov, pesquisador da Universidade de Stanford, a importância do Twitter é quase nula na Moldova, onde existem pouquíssimas contas do serviço. Já no caso do Irã, informa Gladwell, as pessoas que usaram o Twitter viviam quase todas fora do país. Ele conclui seu artigo afirmando que “os instrumentos de redes sociais estão aptos a tornar a ordem social existente mais eficiente”, mas “não são inimigos naturais do status quo”.19

Cazeloto20 adverte para o fato de que a informatização da sociedade termina por reforçar a própria necessidade do computador. Isto é, quanto mais os serviços estatais, as formas de diálogo democráticas, a atividade política e as práticas culturais em geral migram para o ciberespaço, maior é, naturalmente, o apelo para que o cidadão seja convertido em usuário da tecnologia informática. E, quanto mais cidadãos atendem a esse apelo, maior é a legitimação obtida, fazendo com que, cada vez mais, a cidadania mediada pelo computador ou pela internet se torne a forma hegemônica da participação civil, excluindo um persistente “resto”, que vê sua condição marginalizada cada vez mais radicalizada.

Aqui, vale atentar para o que diz Dênis de Moraes21 ao analisar a inovação e a saturação na mídia. Diante da celebração de que “a humanidade nunca dispôs de tanta informação e entretenimento”, o autor lembra que é preciso avaliar “quem controla essa variedade de ofertas, qual é a sua natureza ideológico-cultural, quais são as linhas dos conteúdos e das programações”. Em contraponto à multiplicação da oferta de informação e diversão, há um processo perverso de centralização das fontes emissoras dos conteúdos multimídias e de geração de valor mercantil ampliado, para alimentar os padrões de acumulação e de rentabilidade das grandes empresas do setor. O usufruto de dados, sonhos e imagens depende de acessos e capacidades cognitivas frequentemente desiguais.

 

Cidadania e educação mediadas pelo computador

Os benefícios à democracia comumente alardeados como próprios das novas TICs costumam também ser sugeridos para a educação. De tal modo que, cada vez mais, as escolas passam a ser vistas como lugares estratégicos, essenciais para a implantação de computadores, à custa do Estado.

Para refletir um pouco mais sobre as vantagens que as novas tecnologias podem trazer à cidadania e à educação, ou à cidadania pela educação, vale a pena atentar para algumas das considerações que Magda Soares22 faz a respeito da relação umbilical entre educação e cidadania, ou mais especificamente entre alfabetização e cidadania. A autora explica que tal vinculação faz parte do senso comum, já que “só quem sabe ler e escrever é capaz de agir politicamente, de participar, de ser livre, responsável, consciente – de ser homem histórico e político: de ser cidadão”.

A comparação já aqui começa a fazer sentido. Pois também consta no senso comum que para ser cidadão é preciso estar incluído digitalmente. Mas continuemos com Soares. Ela afirma que não é o simples acesso à leitura e à escrita – nem mesmo a educação ou a escola – que conduzirá o povo à conquista da cidadania. Em vez disso, a construção da cidadania depende da prática social e política, dos movimentos de reivindicação das organizações populares, ou seja, do povo “participando, lutando por seus direitos sociais, civis, políticos, agindo como sujeito histórico, fazendo-se cidadão”.

A educadora lembra ainda que as sociedades modernas são grafocêntricas e, nelas, a escrita não apenas é muito valorizada como também é mitificada, a ponto, por exemplo, de ser frequente a suposição de que na escrita é que estaria o discurso da verdade e que só a escrita seria o repositório do saber legítimo. Nesse contexto, diz Soares: “A alfabetização é um instrumento necessário à vivência e até mesmo à sobrevivência política, econômica, social, e é também um bem simbólico, um bem cultural, instância privilegiada e valorizada de prestígio e de poder”.

Aqui cabem duas linhas de comparação. A inclusão digital também tem sido valorizada como instância de sobrevivência e de prestígio e poder, ainda que de maneira aparentemente exagerada ou equivocada, quando se supõe que prestígio e poder estejam ao alcance de todos. Mas há outra comparação relevante a ser feita entre a mitificação da escrita e a louvação da internet como repositório de quantidades infinitas e generosas de conhecimento. A preocupação no que diz respeito à educação repousa nos possíveis usos dessa abundância de informações. Cada vez parece mais fácil e prático copiar e colar, consultar sem confrontar e acessar sem precisar produzir conhecimento para ser encaminhado à rede mundial. No caso dos trabalhos escolares de pesquisa, na produção de monografias, por exemplo, a possibilidade facilitada de encontrar textos prontos parece criar outra cultura, na qual, talvez, a produção autoral seja cada vez menos incentivada, em nome de um consumo puro e simples, isto é, o uso e a repetição do que está pronto.

Magda Soares afirma que, embora se tenha permitido ao povo que aprendesse a ler e a escrever, “não se lhe tem permitido que se torne leitor e produtor de textos”. Assim, segundo ela, a posse e o uso plenos da leitura e da escrita permanecem privilégio de determinadas classes,  assumindo o papel de arma para o exercício do poder, para a legitimação da dominação econômica, social, cultural e se tornando instrumento de discriminação e exclusão.

Do mesmo modo, por mais que se incluam digitalmente todas as pessoas, isso por si não poderá garantir que todos irão se expressar; assim como a produção de aplicativos, periféricos, softwares e hardwares permanece nas mãos de algumas corporações, os conteúdos consumidos via internet também parecem ainda concentrados em monopólios.

Finalmente, a autora observa que a introdução tanto da criança quanto do adulto no mundo da escrita – e, diríamos nós, no mundo da informática e da internet – vem-se fazendo, quase sempre, mais para controlar, regular o exercício da cidadania que para liberar para esse exercício. Alfabetiza-se, diz ela, “para que o indivíduo seja mais produtivo ao sistema, não para que se aproprie de um bem cultural fundamental à conquista da cidadania”. O mesmo poderia ser dito da inclusão digital.

Considerações finais

Para continuar existindo, o sistema capitalista precisa se renovar ou modificar suas características. É o que está acontecendo em relação às novas tecnologias da informação e da comunicação. Ocorre que para realizar sua estratégia com êxito, o sistema tem que contar com a cooperação da sociedade e do próprio Estado. A fim de persuadir e convencer, ele tenta apresentar um discurso, uma pregação publicitária, que apregoe os benefícios e vantagens: por um lado, é preciso apresentar a nova ordem como um desígnio natural do avanço e da evolução humana; por outro, é necessário convencer o senso comum de que todos poderão ser beneficiados e, por isso mesmo, é natural que todos aceitem, compactuem e se submetam às novas regras, já que não podem nem devem ser detidas ou postas em dúvida. A postura em relação às novas TICs tem sido a de uma inevitável subordinação, como se a única maneira de não ficar de fora, de não ser excluído, fosse fazer o que o próprio sistema demandasse.

Como recomenda Brittos (2011),23 não se trata de propor uma atitude antitecnológica. O que se sugere aqui é a expansão do olhar na hora de se analisarem os reflexos e implicações sociais, econômicas e culturais da nova ordem tecnológica que se tenta impor sem questionamentos. Como diz o autor, aceitar as determinações do sistema capitalista é como “esperar que o mercado aja como filtro, para avaliar as reais necessidades da coletividade”. Seria como aceitar um cenário no qual “a oferta e a demanda serão o termômetro para definir o que é importante ou não à sociedade, o que pode pôr em risco as liberdades individuais, em vez de ampliá-las”.

Cidadania, participação política e educação costumam andar muito próximas. Tanto quanto é possível apontar limitações das novas TICs na área de cidadania, é igualmente possível questionar sua colaboração para a educação. A internet e as redes sociais, em princípio, seriam instrumentos poderosos para se ampliarem as reflexões, os debates, o compartilhamento de conhecimentos. No entanto, a presença de tais tecnologias na escola não tem se mostrado capaz de acelerar processos de aprendizado ou de torná-los mais eficientes, pelo menos não de modo definitivo. O Programa Um Computador por Aluno – Prouca, cujo objetivo era ser “um projeto educacional utilizando tecnologia, inclusão digital e adensamento da cadeia produtiva comercial no Brasil”,24 tem quatro anos de existência e, embora tenha acertado em algumas coisas, registra erros como a falta de treinamento de professores e a compra de equipamentos inadequados. Segundo artigo de Elio Gaspari,25 150 mil máquinas foram entregues e outras 450 mil encomendadas. Em 2012, surgem notícias de que o governo federal pretende abrir licitação para a compra de mais 300 mil tablets. Segundo Gaspari, a cidade de Nova York, com 1,1 milhão de estudantes na rede pública, comprou apenas 2 mil iPads para professores e alunos. O articulista arremata com a observação de que 300 mil é exatamente o número de professores que faltam nas escolas do Brasil.26

Durante o acompanhamento de uma experiência de utilização de um blog como instrumento educativo por estudantes de comunicação no Rio de Janeiro, foi possível constatar que há, pela ordem, as seguintes dificuldades ou limitações:27

– Falta de autonomia. Boa parte dos alunos não está acostumada a cuidar de um espaço como o que o blog oferece.

– Falta de equipamento. Às vezes o aluno tem computador em casa, mas não tem como arcar com o custo da conexão discada. Outras vezes, mora em lugares onde não existe a opção de banda larga ou ela é também muito cara. No caso da conexão discada, a perda de qualidade, em geral, compromete as possibilidades de utilização de um blog. A saída é a lan house, mas essa também é paga.

– Falta de hábito. Embora esteja associado aos mais jovens, às novas gerações, é preciso considerar as restrições de classe social, não apenas pela limitação financeira, mas também pelos hábitos culturais, pelo repertório, ou pelos próprios valores estimulados pelas famílias. Isto é, nem todo mundo convive com pessoas – amigos, parentes, vizinhos – que lidem ou falem sobre internet.

– Falta de habilidade. Nem sempre o aluno terá tido uma escolarização ou aprendido a lidar com as possibilidades tecnológicas de que dispõe o blog. Isto é, embora seja muito comum alunos com perfil no Orkut, no caso do blog a expectativa é que esse internauta leia mais, conheça mais sobre a rede e saiba utilizar minimamente os recursos disponíveis para fotos, vídeos, áudio e texto.

Para finalizar, vale a pena contar uma pequena história, ocorrida há alguns anos, em Miguel Pereira. No centro cultural da cidade havia uma videoteca e, no acervo, estava O encouraçado Potemkin, de Sergei Einsenstein. O visitante pediu para assistir ao filme, mas havia na sala de vídeo um adolescente com a TV ligada num daqueles programas da tarde que tratam de celebridades. Ele costumava ir ao lugar porque em casa sua família, por motivos religiosos, não permitia televisão. Com gentileza, a funcionária do centro cultural explicou ao menino que a preferência era para quem iria assistir a vídeo. O menino não apenas consentiu como quis ver o filme e acabou conhecendo, por acaso, uma obra  do cinema russo de importância mundialmente reconhecida. Ou seja, entre a disponibilidade dos recursos e o bom aproveitamento de seu potencial, é preciso uma bem-pensada mediação ou boa sorte.

 

Ovidio Mota Peixoto é Doutor em Comunicação Social pela UFRJ. Coordenador e professor do curso de Comunicação Social da Unisuam. E-mail: ovidiomota@gmail.com.

 

Notas

1. RIBEIRO, Darcy. Introdução. In: CANELA, Guilherme (org.) Políticas públicas sociais e os desafios para o jornalismo. ANDI – Agência de Notícias dos Direitos da Infância. São Paulo: Cortez, 2008. p. 32-45.

2. CAZELOTO, Edilson. Inclusão digital, uma visão crítica. São Paulo: Senac, 2008.  p. 197-199.

3. Comitê Gestor do Programa de Inclusão Digital (CGPID) – Secretaria-Executiva

Programa Nacional de Banda Larga, 2010. p. 6-7. Versão eletrônica:

www.planalto.gov.br/brasilconectado.  Arquivo:

http://www4.planalto.gov.br/brasilconectado/forum-brasil-conectado/documentos/3o-fbc/documento-base-do-programa-nacional-de-banda-larga[R2] .

4. CAZELOTO, op. cit., p. 120-121.

5. José Eisenberg e Marco Cepik (org.). Internet e política. Teoria e prática da democracia eletrônica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.  p. 12.

6. Eram 2.095.006.005 pessoas, segundo dados de março de 2011, disponíveis em http://www.internetworldstats.com/stats.htm. Acesso em:26 dez. 2011.

7. Ibope Nielsen Online. Disponível em: http://www.ibope.com.br/calandraWeb/servlet/CalandraRedirect?temp=5&proj=PortalIBOPE&pub=T&db=caldb&comp=Not%EDcias&docid=C2A2CAE41B62E75E83257907000EC04F[R3] .

8. Comitê Gestor do Programa de Inclusão Digital (CGPID) – Secretaria-Executiva

Programa Nacional de Banda Larga, 2010. p. 9.

9. Fonte: Comércio eletrônico – avaliação 360º. Meio e Mensagem,19 dez. 2011. Disponível em:

http://www.ibope.com.br/calandraWeb/servlet/CalandraRedirect?temp=6&proj=PortalIBOPE&pub=T&nome=home_materia&db=caldb&docid=0AADE4C29DC53A458325796D0050A2DD[R4] .

10. Pnad, 2005. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=846[R5]

11.  Centro de Estudos sobre as Tecnologias da Informação e da Comunicação (Cetic). Pesquisa sobre o uso das Tecnologias da Informação e da Comunicação no Brasil 2009. Disponível em: <http://www.cetic.br/>

12 e 13. Programa Nacional de Banda Larga, 2010, p. 12 e 13, respectivamente.13. Ibope Nielsen Online.  Disponível em: http://www.ibope.com.br/calandraWeb/servlet/CalandraRedirect?temp=5&proj=PortalIBOPE&pub=T&db=caldb&comp=Not%EDcias&docid=C2A2CAE41B62E75E83257907000EC04F[R6] .

14. Thiago Guimarães. Portal G1. Disponível em:

http://g1.globo.com/especiais/eleicoes-2010/noticia/2010/06/webcidadania-avanca-no-brasil-e-muda-o-foco-da-participacao-politica.html[R7] .

15. MAIA, Rousiley C. M. Democracia e a internet como esfera pública virtual: aproximando as condições do discurso e da deliberação. Em MOTTA, Luiz Gonzaga et al. Estratégias e culturas da comunicação. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2002. p. 108-109.

16. CAZELOTO, op. cit., p. 169.

17. COIMBRA, Marcos. O (des)interesse dos eleitores. Deu no Correio Braziliense. Disponível em: <http://www.oglobo.globo.com/pais/noblat>. Acesso em: 2 maio 2010.

18. Ibope Nielsen Online.  Disponível em: <http://www.ibope.com.br/calandraWeb/servlet/CalandraRedirect?temp=5&proj=PortalIBOPE&pub=T&db=caldb&comp=Not%EDcias&docid=C2A2CAE41B62E75E83257907000EC04F[R8] >.

19. GLADWELL, Malcolm. A revolução não será tuitada:  os limites do ativismo político nas redes sociais. Trad. de Paulo Migliacci. Folha de S.Paulo, São Paulo, 12 dez. 2010. Ilustríssima, p. 3-5.

20. CAZELOTO, op. cit., p. 166.

21. MORAES, Dênis. A batalha da mídia: governos progressistas e políticas de comunicação na América Latina e outros ensaios. Rio de Janeiro: Pão e Rosas, 2009. p. 87.

22. SOARES, Magda. Alfabetização e letramento. São Paulo: Contexto, 2011. p. 54-60.

23. BRITTOS, Valério Cruz. Para entender a TV digital: tecnologia, economia e sociedade no século XXI. São Paulo: Intercom, 2011. p. 58.

24. Fonte: MEC. Disponível em: <http://www.uca.gov.br/institucional/projeto.jsp>. Acesso em: 2 jan. 2012.

25. Artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, em 28 dez. 2011. Também disponível no clipping Secom Mídia, Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República. Acesso em: 28 dez. 2011, no endereço: <http://www.secom.gov.br/sobre-a-secom/imprensa/clipping>.

26. GASPARI, Elio. Coluna do Elio Gaspari. Folha de S.Paulo. São Paulo, 1 jan. 2012.  Poder, p. A8.

27. Experiência iniciada em agosto de 2009 que permanece em funcionamento, com o blog da comunicação: http://comunicacaounisuam.com/.

 

 

 


[M1]Não seria “web democracia” (palavras separadas)?

[R2]Falta a data do acesso.

[R3]Falta a data de acesso.

[R4]Falta a data de acesso.

[R5]Data de acesso.

[R6]Falta a data de acesso.

[R7]Falta a data de acesso.

[R8]Falta a data de acesso.

 

A Conversation Between Marco Schneider and Douglas Kellner

1. M.S. It is well known that, in its beginnings, in the 60’s, Cultural Studieshad an intense dialog with Marxism. Nowadays this dialog seems emptied. Inyour opinion, what is the reason for that?

DK: With the collapse of the Soviet Union and Soviet empire in the late1980s, Marxism was discredited. At the same time, apostmodern/poststructuralist turn in theory opened the door to newdiscourses, many of which were hostile to Marxism and which were broughtinto cultural studies.

With the global crisis of capitalism, Marxism is once again a relevant andrespectable discourse and it’s focus on class and class difference iscertainty relevant for cultural studies, as well as social theory thatstudies class inequalities and social injustice.

2. M.S. Since the 60’s, the researches about and the struggles against racism,sexism, homophobia and so on, emphasizing its cultural expressions andmediations, were a central part in Cultural Studies agenda, together withclass struggle as a practical and theoretical issue. Nevertheless, the lastone, during the last decades, ceased to be as much present in this agendaas the other ones. Do you see any relation between this fact and the deepsocial changes around the globe, that began in early 90’s, such as the endof Soviet Union and the growing hegemony of neoliberalism throughout theworld, in the midst of which everything can be discussed, except capitalismas a dated problem, and a problem that could be solved?

DK: As I noted above, the global hegemony of neoliberalism and crisis ofcapitalism brings back Marxism as a critical theory which again can andshould be seriously discussed. Many forms of contemporary cultural studies, such as the one I represent, stresses the intersectionality of race, gender, class, sexuality and other key forms of representation and identity and the interconnectedness of struggle around these arenas. Hence, rather than focalizing race, gender, or class, the emphasis is on how they are co-constructed and interconnected and how forms of oppression intersect between these dimensions requiring multi-dimensional struggle.

3. M.S. In your opinion, in face of recent (and linked) events, such as theactual crisis of capitalism in US and Europe, the growing of left winggovernments in South America, the increasing mass revolts in the middleeast, north of Africa, south of Europe and even inside the US, the victoryof neoliberal “solutions” in Euro zone etc., all these things could suggestthat cultural studies should reinforce its dialog with marxism, consideringthat it can, maybe better than any other theoretical frame, articulatecultural issues with political and economic ones?

DK: I exactly agree with you. Marxism is a dialectical theory that makesconnections, articulates culture and politics with economy and is thusextremely relevant and useful to explain contemporary developments inculture, politics, society and economy and how they are interconnected, or to put things as I do in the last question, how intersectionality takes place.

4. M.S. How do you think the new digital environment is changing (or could do itin a better way) the traditional relations between culture, citizenship andcapitalism in the peripheries of the world and of each country?
DK  A new digitial environment is expanding the public sphere and producingnew fields for political intervention. I’ve written extensively on thistheme and append a couple of articles rather than try to summarize.Both of these articles are accessible on my website and can be accessed at:”Habermas, the Public Sphere, and Democracy: A Critical Intervention,” in Perspectives on Habermas, edited by Lewis Hahn (Open Court Press, 2000). At http://pages.gseis.ucla.edu/faculty/kellner/essays/habermaspublicspheredemocracy.pdfand “Internet Subcultures and Political Activism” (with Richard Kahn) at http://pages.gseis.ucla.edu/faculty/kellner/essays/internetsubculturesoppositionalpolitics.pdf

M.S. We stopped when I asked you “how do you think that the new digitalenvironment is changing the traditional relations between culture,citizenship and capitalism in the peripheries of the world and of eachcountry”, and you did send to me two papers – “Habermas, the public sphereand democracy” and *“*Internet Subcultures and Political Activism*” *–,saying that you’ve developed some ideas about this subject there.

I appreciated both and from its reading I would like to propose a fewquestions for us to reflect about.
Before that, however, please tell me if it would be correct if I summarizeboth of your papers – in so far as they could be taken as your answer to myquestion quoted above, and apart the reflection on Habermas work from theformer (I think it’s not the case here to deepen your enlighteningcriticism on Habermas’ oeuvre) – saying that, in your opinion, the newdigital environment contribute to shift the features of the public sphere,even to create new public spheres, opening alternative forms of strugglesamidst it. And that radical theorists and activists must not neglect it. Isthat ok for you?

DK: Yes.

M.S. Well, after having read the papers, I remembered Perry Anderson, who once wrote that the sphinx of western marxism is not a misery of theory, but amisery of strategy (probably thinking about Edward P. Thompson’s criticismon Althusser…). Let’s talk about that “sphinx”? In a lighter way, I guessyou said something similar about Habermas’ general position, didn’t you?Well, and I hope this question won’t bother you, don’t you think that thesame criticism could be directed to these two papers of yours (and, as faras I know, to the whole of contemporary intellectual production on thefield of radical social theory, despite the efforts of Hardt and Negritowards this direction)? Yes, the later, actually, lists indeed a large setof concrete anti-hegemonic actions in the field of internet etc., but in amore descriptive rather than theoretical way. The former, for its turn,which deepens the theoretical reflection, doesn’t properly discussstrategy, except when it criticizes Habermas’ lack of concretepropositions, isn’t it?  Actually, in the conclusion of your “Habermas…”,when you mention the necessity of this or that action to be performed(“the need for public intervention in debates over the future of media culture andcommunications in the information highways and entertainment […] thecreation of new public spheres and the need for democratic strategies topromote the project of democratization and to provide access to more peopleto get involved in more political issues and struggles”), that was when Iremembered Perry Andersons’ sphinx for the first time:  I do agree with youabout what should be done, but my main question is how it can be done,considering  the unequal relation of forces, the silent majority, thecomplex moment of class struggle, in each country and around the wholeworld. It’s not a rhetoric question – me neither, of course, I don’t havethe answer. But don´t you think that media radical thinkers and activistsneed to face seriously this “sphinx” mentioned by Perry Anderson, beingaware that maybe their central challenge today is to develop newtheoretical reflections on strategy and organization? Do you know somerelevant contemporary intellectual production of this kind?In “Internet, Subcultures and Political Activism”, besides a good set ofexamples, you developed a more empirically based reflection about howcyber-activism is changing the public sphere, and, as in the former paper,you also finishes it with a good appeal: “Those interested in the politicsand culture of the future should therefore be clear on the important roleof the new public spheres and intervene accordingly, while criticalcultural theorists have the responsibility of educating students around thecultural and subcultural literacies that ultimately amount to the skillsthat will enable them to participate in the ongoing struggle inherent incultural politics.” Once again, I agree with you. Yet, let’s push ourreflection on strategy further: you suggest that there is a kind ofcrossroad for all the activists that discuss or fight against neo-liberalglobalization, in face of which some assume a global strategy and othersprefer to act locally; you also identify the later way with post-modernpositions and defends the need of overcoming this dichotomy. All right, butI see a second crossroad, when you specifically mention that to “thecapitalist international of transnational corporate-led globalization, aFifth International […] of computer-mediated activism is emerging, […]qualitatively different from the party-based socialist and communistInternationals”.

Well, despite the fact that this cyber-horizontalitysounds very promising, and its appearance of novelty (of course,computer-mediated activism is, indeed, a novelty), isn’t this anarchist way of thought and decentralized organization even older then “party-based socialist and communist Internationals”? So, shouldn’t we wander if it is not preciselythis anarchist way of refusing “party-based socialist and communistInternationals” as an organizational alternative, not necessarilyanti-democratic and that could perhaps be renewed as an effectiveanti-hegemonic force in the new internet era, what reveals more clearly the(relative) weakness of all anti-capitalist movements quoted in your essay?Or is the old anarchist decentralized way of making politics –  togetherwith its criticism, first against Marx “authoritarian centralism”, duringthe First International, then against Lenin bolshevist party model, and soon – proving itself to be more useful for nowadays political struggles thanits Marxian inspired rivals within the left? Or, perhaps, decentralizedextreme left cyber-groups, of anarchist or post-modern inspiration, aregrowing in cyberspace and elsewhere, instead of Marxian ones, preciselybecause, as Brizola (an old Brazilian left wing politician) said about anopponent leftist party, “it is the left that the right love best”?

DK: Actually, I think your questions cannot be answered theoretically but only practically. The article with Richard Kahn “Internet, Subcultures and Political Activism” described the use of the Internet by the anti-globalization movement, the Zapitistas, and a variety of other social movements in the late 1990s and early 2000s. The answer to your questions today, however, would be clarified by description of the use of new media and social networking in the North African Arab Uprisings and the Occupy movements, exactly the topic of my forthcoming book= Media Spectacle 2011: From the Arab Uprisings to Occupy Everywhere! That is, the actual activist practice defines the way that the Internet and new media can be used for activism, but theoretical reflections, although theorists can, as Kahn and I and Hardt and Negri attempted in different ways, can provide categories that describe and even anticipate new forms of revolutionary practice that might not fit into traditional categories such as Marxism or anarchism.M.S. Back to your “Habermas”, and still thinking about strategy (both in apractical and theoretical way): you said that  “Habermas […] often arguedhimself that the expanding functions of science and technology in theproduction process undermined the Marxian labor theory of value […]Expanding this argument, I contend that increased intensification oftechnological revolution in our era undermines Habermas’s own fundamentaldistinction between production and interaction, since production obviouslyis structured by increased information and communication networks, whilethe latter are increasingly generated and structured by technology.”

I agree with your criticism about Habermas, but as you seem to accept hisargument according to which the growing role of science and technologyamong production processes undermined Marxian labor theory of value, I haveto ask you how is it actually possible, if we take into account that Marxhad,  indeed, in his labor theory of value, considered science as aproductive force, and had also conceived intellectual labor as complex labor(remember the idea of the general intellect, in the *Grundrisse*), whosevalue could be measured taking simple labor as its unity of measurement, ina given economic universe etc. Besides, in the second book of Capital, hewrote specifically about communications, the term involving the press andthe mail, but also steamships and railways (as was usual at his time),focusing its common importance towards accelerating the circulation ofcapital. So how can the new role of science and information in contemporarycapitalism “undermine” Marxian labor theory of value? Isn’t it thecontrary, i.e., doesn’t it proves its correctness, as far as it pushescapitalism to its radical conclusion – the impossibility of the continuingprocess of expanded reproduction of capital, without the “aid”, suicidal inthe long term, of a casino way of financial speculations, with all kinds ofdestructions related to this? I think the answer is yes, mainly if weremember the tendency within the organic composition of capital towards thegrowing of its constant part (dead labor, technology) in place of thevariable one (living labor, simple or complex), and the subordination ofthe later to the former, including *intelligence and *information, not tomention the descending tendency of profit rate etc. So, as Mészáros pointsit in his “Beyond Capital”, Habermas was wrong when he saw in latecapitalism a subordination of economy to scientific determinations (or to“instrumental reason”, to remember the weberian idealistic inspiration ofthe reasoning), while what was (is) really as stake was (is) anincreasing  subordination of science and information (of “reason”) to capitalist disruptive economicdeterminations. If it is true, even agreeing with you, when you  say that your “perspectives, by contrast [with Haberma’s dicotomies betweenproduction and interactions, system and lifeworld etc.], open the entiresocial field to transformation and reconstruction, ranging from the economyand technology to media and education”, don’t you think that the centralrole of economy (and by this word I mean now the social planning andcontrol over production and consumption, what necessarily implies therelations of production, the problem of property, political forms etc.)among this process couldn’t be strategically neglected, as its yet theübergreifendes moment of the whole process?
DK: Actually, Marco I agree with you completely here in positing Marx vs. Habermas. Marx is surely right concerning the central role of economy, of  therelations of production, including the state and other political, legal, and cultural forms, and capital is still  the übergreifendes moment of the whole process. Interestingly, Egypt was a “laboratory for neo-liberalism” which created tremendous divisions between the rich and the poor (as in the U.S.) but had the more visible form of oppression in an authoritarian state that was the target of the Egypt Uprising. Interestingly, Occupy Wall Street articulates that Wall Street and finance capital in the U.S. is a major problem that has led to a division between the 1% and the 99% and is trying to figure out how to publicize and attack this division. At least they have publicized the issue and for the first time we can discuss seriously in the public sphere in the U.S. today redistribution of wealth, more progressive tax policy, regulation of Wall Street and finance capital, and even target it as the enemy of the people. Previously, the U.S. hegemonic neo-liberal and conservative discourses made this impossible. What the future of the Occupy movements will be we do not know, but they create openings for more radical political change, and right now 2011 is looking like a year of new political upheavals, as was 1968 during my student days.