Antropologia em tempos digitais

Desafio. Essa palavra e o sentimento que ela agrega foram recorrentes durante a feitura desta edição da revista. Tratava-se de mapear o estado da arte dos estudos sobre o digital a partir do viés da Antropologia. Não sendo esse meu campo de estudos par excellence, estava instigada a delimitar o mapa enquanto conhecia mais desse território recentemente “descoberto”, porém já bastante povoado por indagações, vertentes e abordagens. Sem dúvida, nesse sentido, “desafio” era ao mesmo tempo um aviso – eu teria que sair de terrenos mais confortáveis e conhecidos – e um estímulo.

Esta edição é o resultado disso e é a partir daí que pode ser pensada e lida: um aviso de que temos mais a conhecer a respeito e um estímulo à produção e ao pensamento sobre os impactos e relações do digital sobre e com as Ciências Sociais e a Antropologia, de forma mais restrita, e sobre – e com – os mais diversos segmentos sociais.

Sem pretender esgotar o assunto, então, mas com a ambição de traçar um pequeno panorama que aponte para buscas mais aprofundadas, a edição apresenta o esforço de percorrer alguns dos caminhos já trilhados nesse campo. Assim, dois olhares principais e complementares serão reconhecíveis ao longo dos trabalhos aqui expostos.

O primeiro privilegia a análise dos sentidos atribuídos pelos grupos sociais às suas práticas digitais, e as conexões destas com suas vidas cotidianas. Nessa direção, por exemplo, podemos considerar o conceito de polymedia, proposto e explicado pelo antropólogo inglês Daniel Miller (coordenador do Instituto de Pesquisas Digitais da Universidade de Londres) em sua entrevista, como uma forma de dar conta dos diversos usos e tipos de meios de comunicação e de seu entrecruzamento nas práticas sociais. Suas próprias pesquisas sobre a relação entre os contextos culturais e os modos de pensar e agir sobre o digital são mostras do rendimento do conceito. Também os artigos sobre o Museu da Favela, de Monica Machado (ECO-UFRJ), e sobre o consumo de smartphones por jovens da periferia de Santa Maria (RS), de Sandra Rúbia da Silva e Camila Rodrigues Pereira (UFSM), indagam sobre tais sentidos e conexões.

Uma segunda trilha de aproximação ao universo virtual enfatiza as possibilidades teórico-metodológicas abertas pelos novos meios e seus usos. Para dar conta desta perspectiva, uma boa ferramenta conceitual é a teoria do ator-rede, sugerida, entre outros, por Bruno Latour. Nessa teoria, os pressupostos da própria pesquisa científica – e, no caso presente, antropológica – se encontram em foco e os estudos se concentram em rastrear as maneiras pelas quais os desempenhos dos atores repercutem e são delineados a partir da interação em rede. Essa é a proposta desenvolvida, por exemplo, no artigo de Jean Segata (UFRN) sobre as novas configurações que pode assumir a etnografia a partir de suas pesquisas efetuadas online.

A partir de indagações teórico-metodológicas também se pode entender melhor as contribuições do artigo de Myriam Sepúlveda dos Santos (PPCIS-UERJ) sobre os limites e fascinações da criação de um museu virtual (o Museu Afrodigital) e as questões que suscita para a elaboração da memória coletiva de um grupo social. Ainda com o mesmo impulso se pode entender melhor o artigo sobre as relações entre o uso do virtual e o espaço público como vértice de uma nova discussão sobre a esfera pública e a atuação política, de Patrícia Silveira de Farias (ESS-UFRJ) e Margarida Mussa Tavares Gomes (IFF-Campos/PROURB- UFRJ). Também as possibilidades de novos caminhos de expressão e divulgação das pesquisas, como as revistas científicas virtuais, são exploradas nesta edição por meio da entrevista com o editor da Virtual Brazilian Anthropology (Vibrant), o antropólogo Peter Fry (UFRJ).

Enfim, compartilhamos da afirmação de Miller de que a Antropologia é um ótimo caminho para se entender o que representa o novo contexto do expressivo uso do virtual, no que ele tem de desafio, de aviso e de estímulo para a vida nas sociedades complexas. Assim, resta-me fazer um convite para um mergulho nesse campo do conhecimento que, espero, seja prazeroso, tanto quanto produtivo.

Patrícia Silveira de Farias
Organizadora desta edição

A Etnografia, o ciberespaço e algumas caixas pretas

Há um conhecido dispositivo que equipa aviões e locomotivas no auxílio à determinação de causas de acidentes, é a chamada caixa preta. Na verdade, trata-se de dois sistemas independentes: um gravador de voz que registra as conversas da tripulação e o som ambiente das cabinas e um outro, de dados, que registra a aceleração, a velocidade, a altitude, os ajustes de potência e outras tantas performances desses aparelhos. Em si, tanto a voz como os dados de performance não fornecem garantias causais, mas como ambos os dispositivos operam com uma inscrição eletrônica de tempo, é possível sincronizar os dois conjuntos de informação, de modo que eles passem então a produzir alguma explicação a posteriori.

Há também outra caixa preta, que como se sabe, é uma metáfora para o que se conhece nas ciências sociais como teoria dos sistemas. Trata-se de uma estratégia teórico-metodológica utilizada na análise de ditos sistemas fechados, complexos, com estruturas internas desconhecidas. Nesse modelo, o que se tem à mão são os dados de entrada e de saída – os ditos input e output. Impossibilitados de uma descrição do processo de transformações nos dados de entrada, resta, nesse caso, por comparação àqueles de saída, a proposição de algumas hipóteses, que na maior parte das vezes, toma o próprio sistema como a explicação da mudança.

Certo é que ambas as caixas pretas têm o objetivo de explicar um fenômeno ou evento a partir da determinação de causas. O que as diferencia, além da literalidade de uma e da metáfora da outra, é o tipo de privilégio de acesso às informações que nelas passam. A caixa preta de aviões e locomotivas pode ser aberta e dispõe ao investigador os registros dos seus dispositivos. Já aquela da teoria dos sistemas não; o processo interno é misterioso – podemos observar o que entra, e como sai, mas a sua aparente vantagem está na entrega de dados prontos, cabendo ao pesquisador apenas o atestado do fato, enquanto a outra exige um longo trabalho de produção a partir da descrição minuciosa das inscrições humanas gravadas num dispositivo e daquela do equipamento, gravadas em outro, cujo dado se forja, apenas a partir do encontro de ambas.

Ao longo deste trabalho, farei uso dessas caixas pretas na forma de um recurso ilustrativo sobre modos de se fazer etnografias, em especial, no ciberespaço. Quero, com isso, mostrar que existe um modelo de operação etnográfica, cujo lastro é vasto na disciplina, que funciona à maneira de uma caixa preta da teoria dos sistemas, e que se estendeu aos estudos sobre ciberespaço. Ao passo disso, quero situar um posicionamento particular em relação a essa atividade, com forte inspiração na Teoria Ator-Rede, que se compara às caixas pretas de aviões e locomotivas, e que aqui se inscreve na forma de uma crítica.

Faz quase um ano, recebi um e-mail de um velho conhecido. Nunca fomos propriamente amigos, mas estudamos na mesma turma em algum dos anos do ensino fundamental, participamos em corais de igreja e, anos depois, nos encontramos no Orkut. Lá, eu, ele e mais algumas dezenas de pessoas, constituímos duas comunidades: Lontras e Estudei no Regente Feijó. Para quem conheceu o Orkut, a participação em comunidades não é algo estranho. Tratava-se de um tipo de espaço que se criava com o intuito de congregar pessoas em torno dos mais diversos temas: música, cidades, comidas, roupas e qualquer esquisitice que fosse. Aquelas duas, em particular, respondiam diretamente por Lontras, um pequeno município de menos de dez mil habitantes, localizado no Alto Vale do Itajaí, a meio caminho do litoral e da serra, no Estado de Santa Catarina.

Como muito do que se viveu nessa época de Orkut, essas comunidades começaram pequenas e pouco movimentadas, foram atraindo participantes, tiveram seus “dias de glória”, foram se apagando, até caírem no esquecimento, como aquela própria rede social que as suportava. Mais precisamente, no caso de Lontras e Estudei no Regente Feijó, isso se deu entre o início de 2005 e se estendeu até o fim de 2007. E foi nesse intervalo que eu fiz o meu trabalho de campo a partir delas, que resultou na minha etnografia de mestrado. No meu ponto de vista, o Orkut oferecia importantes novidades em termos de comunicação e relação a partir do ciberespaço e era isso que eu desejava explorar. Enquanto a voz corrente das discussões sobre internet/ciberespaço/cibercultura era carregada de expressões como “comunicação global”, “desterritorialização”, “novos lugares”, “novos amigos”, “novas experiências”, o Orkut me remetia a uma experiência de localidade, de território, de velhos lugares, velhos amigos, antigas experiências e, contra o “novo” da moda, esse foi um dos elementos centrais que procurei sustentar com o meu trabalho naquela época (Segata, 2008).

Página inicial da rede social Orkut (2008)

Lontras foi o lugar onde cresci e passei a maior parte de minha vida. A composição do lugar é típica dos interiores brasileiros: uma praça central, a “matriz” da Igreja Católica, “o colégio”, “o mercado”, alguns bares e um pequeno comércio que não faz muita história. A pequena população, aglutinada, em sua maioria na região central da cidade, permitia, facilmente, uma familiaridade entre todos. Assim, a minha decisão em fazer uma etnografia a partir daquelas comunidades era fortemente inspirada na maneira como Gilberto Velho conduziu e problematizou os seus primeiros trabalhos em Copacabana (Velho, 1980). Ali, eu, o remetente daquele e-mail daquele outro dia e mais uma dúzia e meia de pessoas, nos envolvemos numa série de conflitos, motivados em torno da figura de um dito fake – Penisvaldo – que era motriz de um conjunto de relações que iam do riso ao ódio, das lembranças de nossas infâncias na cidade ao levantamento de hipóteses sobre a sua verdadeira identidade – o que, no melhor dos casos, levou a uma imensa crise nas comunidades, com as mútuas acusações e xingamentos, que culminaram na revelação do fake e consequente dispersão do grupo.

Em linhas gerais, foi esse conjunto de relações que formou a minha etnografia. Ali, com alguma inspiração na figura do estrangeiro e no papel sociativo do conflito em Georg Simmel (1968, 1983, 2004a, 2004b), discuti formas de sociabilidade a partir da produção de espaços online e offline, como também a produção de memória e identidade. Visto de hoje, o trabalhou incidiu com a ideia de cidade amplamente refletida por Michel Agier (2011), como algo produzido pelo antropólogo a partir de práticas, relações e representações situacionais negociadas nas práticas dos sujeitos. E isso incluiu, e muito, o que se produziu online.

Mas não foram essas boas lembranças que motivaram o e-mail do velho conhecido. Ao contrário. Alguma coisa já não fazia mais sentido nisso tudo. Para ser mais direto, ele me exigia, sem muitos rodeios, que tirasse do site da Biblioteca da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) a minha dissertação e que não viesse a reimprimir alguma nova edição do livro que ela deu origem. Além disso, eu deveria encontrar alguma maneira de fazer desaparecer dos mecanismos de busca do Google, resultados de pesquisa que relacionassem o seu nome aos conflitos nas comunidades do Orkut. Deu-me prazo e encerrou com a mensagem, copiada ao seu advogado, que se levasse a processo, caso houvesse alguma objeção minha.

02ComunidadeLontras

Página da comunidade Lontras, do Orkut (2007)

O incômodo que levou àquela situação tão final se dava pelo fato de que, segundo ele, era possível identificá-lo no meu texto, por conta de descrições e usos de print screen como forma de registro, tratado, assim, como recurso metodológico. De fato, “bichinha”, “padreco”, “encrenqueiro”, “mimadinho da mamãe” eram algumas das formas insultantes dirigidas a ele por algumas pessoas da comunidade. E isso se visualizava facilmente nos resultados de pesquisa do Google. Mas, havia os poréns. Não era eu quem fazia os insultos e o meu texto não fazia menção a isso, e, no mais das vezes, eu era o alvo preferido dos xingamentos naquele espaço. Isso porque, no desenrolar dos conflitos e à falta de se saber quem era Penisvaldo, passei a ser acusado de sê-lo, já que segundo muitos, eu me beneficiaria, em termos de material a ser pesquisado, com a provocação de tantas situações conflituosas. Além de tudo, o próprio reclamante, naqueles idos de 2005, havia permitido sua inclusão na pesquisa, inclusive, solicitando-me que não fizesse a substituição do seu nome. Mas, agora, o cenário era outro. Ele veio a se tornar um bem-sucedido empresário, cujos funcionários passaram a fazer circular alguns desses registros. E se no mundo da internet o tempo parece mais acelerado, o passado também chega mais rápido, no duplo sentido que isso possa ter.

Afetado com aquela situação, solicitei à biblioteca que se fizesse a retirada temporária do trabalho até que eu pudesse fazer alguma revisão, como também entrei no Orkut por meio de meu usuário do Google, para extinguir de vez aquelas contas. Dei um retorno a ele sobre minhas ações e sugeri que, no caso do Orkut, para que os instrumentos de pesquisa não o detectassem mais, que ele fizesse o mesmo. A solução foi dada, mas certo é que não se trata de uma questão resolvida, já que as discussões que envolvem a ética na pesquisa antropológica não se encerram com esse desfecho provisório, tampouco no fôlego pequeno que desejo dar a esse tema aqui, neste trabalho. O ponto sobre o qual dirijo minha atenção diz mais respeito a outra situação que esse episódio fez aparecer: as sobras de nossas etnografias.

O episódio do e-mail me fez voltar ao Orkut oito anos depois de minha etnografia. Vez ou outra, logo depois de terminar meu trabalho, eu ainda entrava lá, falava sobre o trabalho, sabia das “novidades de Lontras” e coisas desse gênero, com os poucos que ainda frequentavam aqueles, até que cessei por completo minhas participações, quando praticamente todos já estavam no Twitter e no Facebook. O curioso dessa experiência foi encontrar lá, registrado publicamente, um conjunto de textos e fotografias postadas num espaço praticado por um conjunto de pessoas por algum tempo. Não eram os dados do meu trabalho de campo, não eram as relações das quais participei. Eram registros, rastros, sinais, evidências – quase fósseis – de que algo aconteceu. Diferentemente de plataformas que sustentam redes sociais como o Facebook, que eliminam os registros de quem cancela (temporariamente ou definitivamente) a sua conta, o Orkut preserva o que foi publicado, apenas descaracterizando o registrador, tornando aquilo produção de um “anônimo”. E lá estavam as conversas, agora, todas anônimas.

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Página da comunidade Estudei no Colégio Regente Feijó, do Orkut (2005)

Isso me fez pensar no modelo de etnografia que tradicionalmente praticamos, pelo menos, desde Malinowski. O aparato e o método são bastante conhecidos e repetidos por antropólogos até hoje. Ele consiste, basicamente, no desenvolvimento da habilidade de tornar “a ordem cultural das coisas” irrefutável, a partir da distinção clara entre “os resultados da observação direta e das declarações e interpretações nativas e, de outro, as inferências do autor, baseadas em seu próprio bom senso e intuição psicológica” (Malinowski, 1978, p. 20). Para isso, é preciso contar com boas condições de trabalho, especialmente, o longo tempo de convivência entre os nativos, sem a necessidade de depender de “outros brancos”, como ele já ensina n’Os Argonautas. Esse livro, aliás, não traz apenas um estudo etnográfico, mas viria a se tornar a própria referência sobre como fazer algum. E desde ele, já fica bastante assinalada a agência do antropólogo na produção dos fatos e resultados, já que ele é o observador privilegiado, e sua perspicácia, a medida de correção.

É claro que eu não me renderia à infelicidade de reduzir a Etnografia a duas ou três fórmulas celebradas por Malinowski. Mas há, ali, uma essência naturalizada dessa prática, que vai ganhar, além de críticas, alguns incrementos com a popularização da obra de Clifford Geertz, desde os anos de 1970, em especial, o seu acento na descrição densa e no valor metodológico do relativismo: desde eles, todos os antropólogos sabemos o que é uma etnografia, até termos de explicá-la (Geertz, 2013). E não é incomum completarmos essa tarefa infortuna com algum desfecho do tipo “mas não é só isso”, como que havendo algum mistério para iniciados. Mais que isso, a nós é dada a épochè de uma visão suspensa, que consegue ver em perspectivas ou mesmo, nas profundidades e entrelinhas, onde se escondem os sentidos, que fazem com que nativos não saibam muito de si, senão, por meio de nós. Aqui, vem a primeira caixa preta: o antropólogo, como um sistema[1].

O ponto que gostaria de destacar aqui é o forte acento na ideia de experiência vivida e problematizada pelo antropólogo, como sendo ela a maneira privilegiada de se fazer etnografias. Ainda como um vasto campo de extração de consequências, essa ideia poderia ser bem resumida nos dizeres de Goldman, para quem,

os antropólogos são um tipo de cientista social para quem a socialidade não é apenas o objeto ou o objetivo da investigação, mas o principal, se não o único, meio de pesquisa. O cerne da questão é a disposição para viver uma experiência pessoal junto a um grupo humano com o fim de transformar essa experiência pessoal em tema de pesquisa que assume a forma de um texto etnográfico. Nesse sentido, a característica fundamental da antropologia seria o estudo das experiências humanas a partir de uma experiência pessoal (2006, p. 167).

Esse tipo de postura começa a ter seus problemas exorcizados em um trabalho bastante difundido de Bruno Latour: Jamais fomos modernos. O livro está organizado a partir da descrição das disputas entre Hobbes e Boyle. Hobbes com a sua predileção por tornar a política matematicamente demonstrável, enquanto Boyle queria reproduzir, sob condições controláveis, a natureza em laboratório. No que Latour (2009) chama de “guerra das ciências”, vence Boyle, logo ele que abdica da razão matemática em favor da doxa. Essa doxa em questão, é claro, não é uma crença comum de massas crédulas, mas um novo modelo de estudo da natureza, sob às condições controláveis de um laboratório, às vistas de testemunhas confiáveis, bem aventuradas e sinceras, que se reúnem em torno da cena da ação e atestam a existência de um fato. Essa invenção, de estilo empirista, sustenta a realidade muito mais pela adesão dos pares que testemunham o evento transformado em fato, do que pelo esforço em conhecer a sua verdadeira natureza.

A questão é que, na antropologia, a situação parece um pouco mais complicada, pois no exercício da etnografia, o etnográfo (digamos assim, “o cientista”) acumula também a função de “testemunha confiável”: ele é, em razão das condições de pesquisa, o experimentador e o observador da experiência. Os seus campos ou objetos de estudo, na maioria das vezes, são uma escala controlada de um conjunto muito mais amplo de pensamentos e práticas; os seus dados, ou seja, aquilo que as pessoas dizem ou fazem nas suas associações com outras entidades, são transformados em fatos pelo antropólogo quando ele as seleciona em detrimento de suas razões de pesquisa, e são, assim, atestadas como existentes para os seus pares, por meio do seu testemunho confiável, registrado no seu texto – inscritor de uma realidade. O resto, varre-se para debaixo do tapete.

Não quero, com isso, invocar algum fantasma cartesiano, legislador de uma tradição científica impiedosa quanto à impossibilidade de análise do que é do universo do privado, como é o caso da experiência. Mas certo é que fontes de erro a essa postura já foram amplamente deflagradas, como é o caso da notória precariedade da ideia de objetividade, tanto do observador como do seu relato e a tensão que se põe em seu oposto, àquela de uma acusação subjetivista, alegórica e autoritária da representação (Clifford, 1986, 2002) ou o problema da projeção de conceitos antropológicos às realidades estudadas (Strathern, 2006; Viveiros de Castro, 2009). Aqui, quero dizer que o antropólogo se torna uma caixa preta. É ele o ponto de intersecção entre input e output. Ele seleciona, teoriza e inscreve uma realidade a partir de uma perspectiva privilegiada: a de sua experiência vivida – ela não é uma totalidade, não é a realidade, mas uma produzida sob condições especiais de seleção (Clifford, 1986). De modo mais amplo, é nele que se opera uma tradução metafísica, já que não é difícil se encontrar alguma etnografia que trate de violência, gênero ou sociedade e seus problemas, em outros contextos, que talvez não tenham violência, gênero ou sociedade, mas cujos arranjos são relativizados para se conformarem a uma espécie de “forma diferente de”.

Nisso, o meu pressuposto aqui é o de que a Etnografia no ciberespaço naturalizou os artefatos e as formas de acesso criando, assim, uma espécie de terreno paradoxal que, ao mesmo tempo, é neutro e autoexplicativo. Neutro, porque, no mais das vezes o artefato parece cumprir o papel de “novo cenário” para um conjunto de fenômenos já bastante familiares para a maior parte dos antropólogos. Nisso, ele também se torna autoexplicativo porque serve de adjetivo desse fenômeno nesse novo cenário. Não é estranho então que se anunciem etnografias sobre novas formas de sociabilidade no ciberespaço, sobre a produção artística digital ou sobre o ativismo político ou movimentos sociais nas redes, sem se dar conta de que se trata aqui de uma conjunção entre a velha metafísica da disciplina, que orienta o entendimento desses fenômenos em outros contextos e uma nova embalagem, forjada com a adjetivação do ciberespaço, do digital ou da rede.

Cabe situar, é claro, que a rede que veio com o advento da cibernética, no contexto da cibercultura, virou uma espécie de sinônimo da world wide web. Acontece que, essas redes da cibernética, se referem àquilo que transporta informações de conexão em conexão, por longas distâncias, em especial, mantendo essas informações intactas. Importa, nesse caminho, a relação entre a entrada e a saída de dados: ela é, nesse caso, um sistema fechado, complexo, com estruturas interiores desconhecidas, que no mais das vezes nem vale a pena conhecer, já que ele, na qualidade de sistema fechado, é por si só o elemento explicativo de qualquer modificação entre o que entrou e o que saiu, independentemente do que acontece lá dentro. Esse também parece ser o problema com a ideia de história e, principalmente, de contexto, para não citar também, de sociedade, cultura, sistema, conjuntura etc. Essas palavras funcionam também como uma espécie de sistema fechado: não sabemos o que acontece lá dentro, mas comparamos algo a partir de um ou outro momento da história ou entre um e outro contexto, suas modificações são autoexplicativas por esses aparentes sistemas, sem nos atentarmos, mais detalhadamente, para o que acontece dentro deles.

Faz tempo que falamos em Cibercultura e que dizemos fazer etnografia no ciberespaço. Aqui, os problemas têm derivações, pois no ciberespaço, aparentemente, conseguimos identificar redes. Sim, por que não?: veja-se as chamadas redes sociais, com seus programas e gentes e interações de múltiplas formas. Parecem todos objetos plenamente passíveis de descrição e, assim, certos comportamentos são X porque acontecem no Facebook, diferentemente de certas relações que são Y porque acontecem no Twitter, e assim por diante. Isso tudo, sem contar que o próprio ciberespaço é uma ideia desgraçada, que vira e mexe nos faz pensar num lugar especial da realidade, com propriedades especiais de explicação sobre o que entra e o que sai dele. E aí aparecem as novas formas de comunicação, novas comunidades, novas identidades, até uma cultura nova: a Cibercultura. Assim, o ciberespaço se torna uma caixa preta: basta comparar sociabilidade, arte ou ativismo, antes e depois dele, ou seja, como eles entram nele por um lado, na formas produzidas pela antropologia tradicional, e como saem por outro, a partir das ditas etnografias no ciberespaço. Se houver diferenças, a explicação está na caixa: caixa ciberespaço, caixa antropólogo.

Mas convenhamos, tudo isso funciona muito bem na disciplina, desde que não deixemos rastros. Mas eu os havia deixado. Eles estavam lá, escritos naquelas comunidades onde fiz meu trabalho de campo, e isso é grave, já que entre nós, como já bem criticou Clifford (1986), a escrita é nossa textualização por excelência: quando é pior, é evidência ou prova. Assim, é no descentramento disso que vem a minha insistência na abertura dessa caixa preta da etnografia, como um sistema fechado que produz, misteriosamente, algum resultado. Vamos então, àquela outra, a caixa preta que funciona como aquelas de aviões ou locomotivas.

Para antropólogos como eu, que se interessam por ciência e tecnologia, a publicação de A vida de laboratório, de Bruno Latour e Steve Woolgar (1988, publicação original de 1979), é um mito de origem. A partir dele, a Antropologia passou a se inscrever nos Science Studies, já que os autores quiseram compreender como a ciência é construída, por meio do estudo de um laboratório de Endocrinologia, aos mesmos moldes de uma Antropologia feita em seus tradicionais campos de estudo. O trabalho foi originalmente publicado no final dos anos de 1970 e, para a época, o seu diferencial em comparação com a filosofia da ciência, que se popularizava com Thomas Kuhn, Karl Popper ou Paul Feyeraband, era a suspensão de questões como realidade ou verdade dos resultados. De modo etnográfico, interessava a descrição de rotinas, como a manipulação de animais, equipamentos, gráficos, as políticas de publicação, as tabelas ou mais precisamente, a maneira como informações dispersas forjavam dados arranjados numa folha de papel que passavam à qualidade de fatos, utilizados por algum pesquisador, como demonstração científica. A tese central de A vida de laboratório é a de que “o fato científico, estável e estabelecido como ‘natural’ é o resultado de um processo de construção” que apenas se completaria na medida em que é capaz de apagar todo e qualquer traço de si próprio (Kropf; Ferreira, 1998, p. 592). Ou seja, produzir um fato requer estratégias eficazes para a eliminação dos vestígios de como ele foi produzido. Assim, os cientistas não seriam os descobridores de fatos ou verdades, mas inscritores deles[2].

Quando eu escrevi Lontras e a construção de laços no Orkut eu inscrevi uma realidade. Há um enredo que conduz o leitor a pensar no modo como foram timidamente se constituindo aquelas comunidades no Orkut, e como elas vão ganhando densidade, especialmente a partir dos conflitos em torno de Penisvaldo, e como elas vão se desfazendo com a revelação de seu segredo. Para isso, eu precisei suspender o tempo, não pensá-lo cronologicamente, mas em densidades. E são essas densidades, algum tipo de explosão, que só ganham forma como que acelerando os frames, ou seja, organizando situações que, em si não formam um conjunto, um todo, um momento. São dispersões editadas e causalidades construídas.

A receita para isso é conhecida: comecei lendo Simmel, para aprender a ver o tipo forma e sociação que eu queria encontrar. Em seguida, as etapas do que eu imaginava ser um estudo sociotécnico. Separei o técnico do sócio e passei a analisar os registros do dispositivo: o que é a plataforma, como ele nomeia certos elementos, como se faz para acessar e registrar ações nela. Depois, fui para o sócio, que eu entendia serem as relações entre os humanos: então passei à análise das falas, em forma escrita nas comunidades, como também as outras, que eu coletava por meio de um gravador de voz, em conversas que eu tinha em Lontras, com alguns dos mesmos participantes das comunidades do Orkut. Enfim, eu pensava o “programa Orkut”, com os seus bits, bytes ou pixels, como uma rede – um lugar especial onde humanos poderiam se associar – uma espécie de cenário ou contexto tecnológico. E novas associações se faziam conforme novas possibilidades técnicas iam aparecendo naquele programa. E como o Orkut, outros programas faziam isso, como o e-mail, as listas de discussão, as salas de bate-papo ou os blogs; e outras ainda, como o Twitter, por exemplo, com seus 140 caracteres. Enfim, eu pensava em um humano protagonista que criava novas técnicas e que permitia se recriar nelas, num jogo assimétrico de regras “humano-agente e técnico-agido”. O sociotécnico seria então um rótulo dessa síntese que entendia o sócio como conjunto humano e o técnico como o conjunto das demais coisas, não humanas. Em outros termos, eu tinha dois dispositivos: um de registro da máquina, outro de registro dos humanos, como nas caixas pretas de aviões. O problema era que eu pensava que por si só, em justaposição, eles produziriam algum resultado. Eu desconsiderava a associação e ficava com as partes.

Nesse aspecto, tornou-se fundamental avaliar o estatuto da ação. Latour (2012), já bem nos provocou com a ideia de que um ator não é uma peça que já está no tabuleiro e que depois age – e mais que isso, que não se refere exclusivamente aos humanos. Um ator é um ente provisório que se constitui na ação. Ele não existe como repertório, pronto e definido. Por conseguinte, a ação também é eventual; não se trata de um ato que localiza e distribui sujeitos e objetos em algum tabuleiro. Daí o propósito de sua tão discutível expressão ator-rede: com ela, o que se pretende, apesar das leituras equivocadas, é justamente apagar os vestígios de origem da ação. Talvez faça uns quinze anos ou mais, eu ouvia e lia alguns colegas desse campo de estudos, da cibercultura, cogitando qualquer coisa como substituir diários de campo e outras formas de registro tipicamente utilizadas por antropólogos em campo, por logs de arquivos ou  print screens de telas. Ali, estaria tudo. Um retrato completo e fiel de alguma realidade em estudo. O que é um grande equívoco, pois se trataria de se tomar, em separado, os diferentes registros do dispositivo. Quando eu voltei ao Orkut recentemente, e encontrei as evidências que mencionei, isso se tornou mais claro. Eu não reconheci aquela Lontras com os seus laços. Tinha algumas gravações dispersas, que não formavam um ator-rede. Estava lá todo o percurso, que deveria ter sido apagado, depois do resultado produzido.

A consideração dessa agência distribuída é que me fez aproximar o tipo de etnografia que eu gostaria de praticar a partir do ciberespaço, com o modo de funcionamento das caixas pretas de aviões e locomotivas. As vozes gravadas, certamente, são de humanos. Os dados de performances desses veículos são, certamente, de não humanos. Mas isso não implica, de modo algum, uma relação de sujeito-objeto ou causa e efeito, e o que mais me agrada é que, por si só, eles são elementos que pouco ou nada ajudam a compreender um evento, como um acidente, por exemplo. É apenas com a associação de dados e vozes por meio da inscrição eletrônica de tempo que emerge algo. As pontas – o humano e o não humano – se perdem. Fica o efeito, a associação, a rede. Isso, é assim que eu estou pensando a rede. Há elementos humanos e não humanos que por si só não me dizem nada; eles não estão em posição de sujeito e objeto e o que se produz com eles, em geral, não é uma relação de causa e efeito. Agora, associados, eles constituem um ator-rede. Ela não é um dado, mas o resultado sempre provisório de associações. A provocação que vem com isso reside no desafio de fazer recuperar aqui a nossa capacidade de dar um passo a mais nas descrições, atentando-nos, até o esgotamento, aos muitos atores constituintes desses eventos. Nisso, na perspectiva que passei a adotar, a rede já não estava mais lá – não era um objeto, como na cibernética – não era o que estava em descrição, mas o método para descrever algo. A rede, desde essa perspectiva latouriana é um modo pelo qual podemos ordenar certas experiências (e experimentos), em nossos textos. Ela é um resultado e não um dado: a descrição de uma rede é uma maneira de dispor os rastros deixados por atores no curso de suas ações (Venturini, 2008; 2010; Segata, 2009; 2013; Rifiotis, 2012; Máximo et al, 2012).

A Etnografia, da perspectiva defendida aqui, não toma como diferença essencial o ciberespaço de qualquer outro contexto em que se realize. No mais das vezes, ela se volta contra a produção dessas externalidades ou casos especiais, e ainda assume algumas características peculiares: ela não retrata uma realidade, mas produz uma espécie de imagem de uma associação – não a imagem de indivíduos ou partes que se associem, menos ainda, na busca de causas ou sentidos ocultos dessa associação ou a partir da perspectiva deles ou de seus pontos de origem ou dos contextos que os agregam. Falo da captura de efeitos, do evento, do contingente, o que não tira o antropólogo da cena, já que ele é parte do efeito produzido, especialmente porque todo esse processo se dá sob a forma de tradução. As supostas essências, as purezas, os cálculos, os registros, são transformados na ação. A própria metafísica que dá algum entendimento a tudo isso não permanece intacta, e isso faz a coisa se tornar realmente complicada[3].

Ao antropólogo, nessa via, resta a tarefa de manipular ideias, conceitos familiares, registros, que sejam reconhecidos entre seus pares, de modo a poder exprimir os alheios. A Etnografia é, assim, uma legítima produção laboratorial: ela vem com camadas de estratégias, que fazem aparecer esses efeitos. Conforme bem provoca Strathern:

Nós pensamos nos antropólogos como os típicos criadores de dispositivos por meio dos quais é possível compreender o que outras pessoas acham e em que acreditam. E, claro, como simultaneamente empenhados em construir dispositivos através dos quais se pode afetar aquilo que seu público acha e acredita. Preparar uma descrição requer estratégias literárias específicas, a construção de uma ficção persuasiva: uma monografia precisa estar arranjada de tal maneira que possa expressar novas composições de ideias. Essa se torna uma questão sobre sua própria composição interna, a organização da análise, a sequência pela qual o leitor é introduzido a conceitos, o modo como as categorias são justapostas ou os dualismos são invertidos. Confrontar o problema é confrontar o arranjo do texto. Dessa forma, quando o escritor escolhe (digamos) estilo “científico” ou “literário”, ele assinala o tipo de ficção que faz; não se pode fazer a escolha de evitar completamente a ficção (2013, p. 43-44).

Seja nas Ciências Naturais, seja na Antropologia, a experimentação é um ato de criação: ela produz fenômenos, os estabiliza e com eles refina suas próprias teorias. Seguindo Hacking (2012), o êxito das Ciências Naturais está em controlar fenômenos que na natureza se encontram instáveis, por meio das técnicas e instrumentos disponíveis no laboratório. No mesmo caminho, talvez o êxito da Antropologia seja o de colocar alguma ordem na bagunçada “vida social”, por meio do texto etnográfico. No entanto, cientistas da natureza e antropólogos não são variáveis descartáveis das suas próprias elaborações. A Etnografia, assim, é um evento, um efeito de relações. Trata-se, assim, muito menos de uma experiência do que de uma experimentação, um ato de criação. Nesse caso, a virtude de um pesquisador não repousa na sua capacidade de se colocar distante da sua produção, de se apagar do processo de criação. Ele deve avaliar a sua capacidade de exorcizar a sua presença, e torná-la consciente e explícita no resultado do seu trabalho[4]. A questão é saber até onde estamos dispostos a abrir essa caixa preta e mostrar toda a maquinaria de nossas produções.

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* Jean Segata é professor do Departamento de Antropologia e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Tem mestrado e doutorado em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), onde também realizou pós-doutorado. Atualmente é pesquisador da Équipe de Recherche “Hommes/Animaux: questions contemporaines” do LAS/EHESS, do Grupo de Pesquisas “Espelho Animal: antropologia das relações entre humanos e animais” do PPGAS/UFRGS e do “Grupo de Pesquisas em Ciberantropologia” – GrupCiber do PPGAS/UFSC. E-mail: jeansegata@gmail.com.


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Notas

[1] Para ilustrar essa questão, destaco aqui uma sugestão de Malinowski (1978, p. 36) para a prática da etnografia. Segundo ele, “nesse tipo de pesquisa, recomenda-se ao etnógrafo que de vez em quando deixe de lado máquina fotográfica, lápis e caderno, e participe pessoalmente do que está acontecendo. Ele pode tomar parte nos jogos dos nativos, acompanhá-los em suas visitas e passeios, ou sentar-se com eles, ouvindo e participando das conversas […]. Esses mergulhos na vida nativa – que pratiquei frequentemente não apenas por amor à minha profissão, mas também porque precisava, como homem, da companhia de seres humanos – sempre me deram a impressão de permitir uma compreensão mais fácil e transparente do comportamento nativo e de sua maneira de ser em todos os tipos de transações sociais”.

[2] Trata-se daquilo que Latour e Woolgar (1988) chamam de inscrição literária. Em outros termos, o procedimento de registro da descoberta de um hormônio seria uma espécie de conto, fabricado dentro de um quadro de interesses, que inclui as crenças, os hábitos, os saberes, a tradição dos heróis fundadores e das revoluções. O investimento etnográfico do livro de Latour e Woolgar (1988) trouxe para os Science Studies, uma diferenciação entre “ciência” e “pesquisa”, justificando o uso da palavra francesa faire (faz), em oposição a palavra fait (feito ou fato). Anos mais tarde, em Le métier de chercheur, regard dun anthropologue (2001), Latour insiste no acompanhamento da pesquisa que, segundo ele, é o momento onde a ciência está em ação, ou seja, onde ela está em produção de dados, que combinados às teorias vigentes, podem chegar a algum novo fato, que pode se constituir em um novo paradigma. Entre algumas diferenciações entre ciência (science) e pesquisa (recherche), para ele, a ciência é “certa”, “fria”, “sem ligação com política ou sociedade”, onde o “fato é aquilo que não se pode discutir” pois já está feito. Enquanto isso, a pesquisa é “incerta, arriscada, quente”, “numerosamente ligada à política e à sociedade”, onde o “fato é aquilo que é construído” ou que está sendo feito. “Os fatos são feitos”. Essa é uma velha provocação de Gaston Bachelard, ligada a uma ambiguidade etimológica da palavra francesa fait: ela tanto pode designar fato como feito. Ou seja, ela serve para descrever “algo que se fabrica” (que pode ser feito), como algo que “não pode ser fabricado, pois já está dado (que está feito, pronto, acabado)”, ou seja, um fato ou uma realidade que se impõe a nós, pois já está feito, é independente e externo à nossa análise. A questão que é interessante é a de que o fato pode ser aquilo sobre o que a ciência “se fabrica”, pois estuda o fato, como aquilo que é fabricado pela ciência, pois ela pode fazer o fato enquanto lugar de pesquisa e descoberta.Trata-se daquilo que Latour e Woolgar (1988) chamam de inscrição literária. Em outros termos, o procedimento de registro da descoberta de um hormônio seria uma espécie de conto, fabricado dentro de um quadro de interesses, que inclui as crenças, os hábitos, os saberes, a tradição dos heróis fundadores e das revoluções. O investimento etnográfico do livro de Latour e Woolgar (1988) trouxe para os Science Studies, uma diferenciação entre “ciência” e “pesquisa”, justificando o uso da palavra francesa faire (faz), em oposição a palavra fait (feito ou fato). Anos mais tarde, em Le métier de chercheur, regard dun anthropologue (segundo ele, é o momento onde a ciência está em ação, ou seja, onde ela está em produção de dados, que combinados às teorias vigentes, podem chegar a algum novo fato, que pode se constituir em um novo paradigma. Entre algumas diferenciações entre ciência (science) e pesquisa (recherche), para ele, a ciência é “certa”, “fria”, “sem ligação com política ou sociedade”, onde o “fato é aquilo que não se pode discutir” pois já está feito. Enquanto isso, a pesquisa é “incerta, arriscada, quente”, “numerosamente ligada à política e à sociedade”, onde o “fato é aquilo que é construído” ou que está sendo feito. “Os fatos são feitos”. Essa é uma velha provocação de Gaston Bachelard, ligada a uma ambiguidade etimológica da palavra francesa fait: ela tanto pode designar fato como feito. Ou seja, ela serve para descrever “algo que se fabrica” (que pode ser feito), como algo que “não pode ser fabricado, pois já está dado (que está feito, pronto, acabado)”, ou seja, um fato ou uma realidade que se impõe a nós, pois já está feito, é independente e externo à nossa análise. A questão que é interessante é a de que o fato pode ser aquilo sobre o que a ciência “se fabrica”, pois estuda o fato, como aquilo que é fabricado pela ciência, pois ela pode fazer o fato enquanto lugar de pesquisa e descoberta.

[3] Nesse caso em particular, Marilyn Strathern (2006, p. 27, 43-44), já levantou esses problemas, que em suma, dizem respeito a fugir do recalcitrante investimento de procurar nos outros os nossos problemas metafísicos. Nas suas palavras, “o problema é de tipo técnico: como criar uma consciência de mundos sociais diferentes quando tudo o que se tem à disposição são termos próprios. […] Quando se coloca em face de ideias e conceitos de uma cultura concebida como outra, o antropólogo está diante da tarefa de adaptá-lo a um universo conceitual onde haja espaço para elas e, portanto, de criar esse universo”.

[4] Parafraseando Wagner (2010) “o futuro da Antropologia está em sua capacidade de exorcizar a diferença e torná-la consciente e explícita”. Igualmente, como bem assinalou Feynman (2010, p. 342): “o primeiro princípio é que você não deve enganar a si mesmo – e você é a pessoa mais fácil de enganar. Então você tem que ter muito cuidado com isso. Depois de não ter enganado a si mesmo, não é fácil de enganar outros cientistas. Você apenas tem que ser honesto de uma maneira convencional depois disso”.

O consumo de smartphone entre jovens de camadas populares

O pensamento que sempre existiu em relação às camadas populares é que elas consumiam somente para sobreviver. Para os estudos de consumo, até as últimas décadas, essa classe era invisível; bem como para o próprio mercado e para a academia no geral, a classe popular não era considerada um mercado consumidor de produtos e serviços (Rocha, 2009). Todavia o poder de consumo das classes populares vem aumentando consideravelmente nos últimos anos. O aumento da oferta do crédito, as facilidades nas condições de pagamento, cartões de crédito, entre outros, fizeram com que muitas pessoas que viviam à margem da miséria, pudessem ir às compras.

Essa transformação processada no mercado brasileiro fez com que uma vasta parcela da população do nosso país entrasse no mercado de consumo (Rocha; Silva, 2009). Com o aumento do consumo, cresceu também o aumento da oferta de novos produtos. Os smartphones – telefones inteligentes – surgiram há poucos anos no mercado e no ano de 2013 tiveram suas vendas mais que dobradas. Hoje o Brasil é o quarto maior consumidor de smartphones, ficando atrás apenas da China, dos Estados Unidos e da Índia[1].

O que se pretende com este artigo é apresentar os resultados de um estudo realizado com adolescentes de camadas populares da cidade de Santa Maria e refletir sobre a relevância que os smartphones têm na vida desses jovens, bem como pensar em como se dá a conexão dos adolescentes em seus dispositivos móveis.

A amostra da pesquisa é composta por dezesseis jovens com idades entre doze e quinze anos pertencentes à classe popular. Conversamos com esses dezesseis adolescentes, realizamos entrevistas, e alguns ainda tornaram-se nossos amigos nas redes sociais. Porém o total de jovens observados foi de 137, número de alunos matriculados na sétima e na oitava séries na escola na qual realizamos a pesquisa – uma escola estadual de ensino fundamental da cidade de Santa Maria (RS). Preservamos a identidade dos adolescentes; os nomes que aparecem neste artigo são fictícios. O nome que usamos para representar a instituição de ensino é Vila Real. A coordenação da escola pesquisada pediu anonimato, visto que o uso de celulares na escola é um assunto delicado – é proibido por lei no Rio Grande do Sul o uso de celulares em sala de aula nas escolas públicas.

Juventude e culturas digitais

Definir o significado do termo juventude é uma tarefa difícil, principalmente na contemporaneidade. Rocha e Pereira (2009, p. 15) entendem que a ideia de juventude e a experiência de ser jovem podem ser traduzidas por um processo constante de mediação entre valores, hábitos, gostos, atitudes, estéticas e práticas sociais. Afinal, os autores lembram que a ideia de jovem foi criada como um espaço intermediário, “que faz a transição entre uma maturidade adiada e uma infância espremida”.

Podemos dizer que as relações sociais e os sistemas sociais estão em constante mudança. Essas mudanças implicam o aparecimento de novos padrões estruturais. Segundo Recuero (2011) a mediação pelo computador, por exemplo, gerou outras formas de estabelecimento de relações sociais. A sociedade está se adaptando aos novos tempos e passando a utilizar a rede para formar novos padrões de interação, criando formas novas de sociabilidade e novas organizações sociais.

Para caracterizar o jovem da atualidade, que já utiliza essas novas formas de interação e sociabilidade, citamos um termo utilizado por Castro (2012): os screenagers. A autora utiliza essa denominação para caracterizar o adolescente que se divide em ser receptor, produtor, fã e consumidor em uma interação com múltiplas telas. Quando Jenkins escreve sobre a cultura da convergência, ele utiliza os adolescentes como exemplo:

Um adolescente fazendo a lição de casa pode trabalhar ao mesmo tempo em quatro ou cinco janelas no computador: navegar na internet, ouvir e baixar arquivos mp3, bater papo com amigos, digitar um trabalho e responder e-mails, alternando rapidamente as tarefas (Jenkins, 2008, p. 44).

O cotidiano de muitos adolescentes hoje é permeado por longas horas de interação com conteúdo advindo de uma ou mais telas, e esses sujeitos geralmente estão em contato com outros por meio da internet e de outras telas. Na análise de Castro (2012) é destacado o embaralhamento de fronteiras entre trabalho e lazer, ócio e tempo produtivo; pois o jovem é privilegiado por poder acessar diversos sites e fazer múltiplas conexões ao mesmo tempo. Para a autora há tempos o consumo e a tecnologia convivem em uma espécie de pacto de cumplicidade e retroalimentação. A tecnologia também está tão rápida, que hoje podemos comprar um smartphone de última geração e no próximo mês ele já se tornou obsoleto; o descarte rápido de peças e equipamentos hoje é estimulado com o lançamento contínuo de novas versões de um mesmo produto.

A questão do pertencimento e da sociabilidade nos dias de hoje para os jovens é de muita importância. O uso do celular se transformou drasticamente, e ele não é usado mais somente para realizar chamadas por voz (Lemos, 2007; Ling, 2004); ele é um artefato que possibilita que o indivíduo esteja sempre conectado, atualizado, dentro das redes sociais e interagindo tanto com a pessoa da sua turma quanto com uma pessoa que está do outro lado do mundo.

A adolescência é uma fase em que os indivíduos desenvolvem a sua identidade e senso de autoestima e os dispositivos móveis se tornaram uma parte da vida cotidiana dos adolescentes e do seu processo de emancipação; a partir dessa informação é possível sugerir que a adoção dos telefones celulares pelos jovens não é simplesmente a ação de um indivíduo, mas sim de um grupo de indivíduos alinhando-se com a cultura de pares (Ling, 2004).

Smartphones e o estar conectado

O smartphone é definido como um telefone inteligente – um telefone celular que possui um sistema operacional e funções mais complexas do que o do aparelho celular simples (Teleco, 2013). Segundo Teleco os principais sistemas operacionais hoje são: Android (Google), Symbiam (Nokia), iPhone OS (Apple), BlackBerry (RIM), Bada (Samsung) e Windows Phone (Microsoft). Além das variadas funcionalidades que o smartphone já possui por si só, ele ainda permite que o usuário acesse a internet, acesse lojas online e que também instale aplicativos no aparelho; o número de aplicativos existentes e as funções que eles exercem são praticamente incontáveis.

Jenkins em 2008 já afirmava que os telefones celulares não eram apenas aparelhos de telecomunicações. Além de nossos telefones nos permitirem jogar, fazer download de informações da internet, tirar e enviar fotos ou mensagens de texto, cada vez mais eles estão nos permitindo assistir a filmes, baixar capítulos de romances, comparecer a shows musicais em lugares remotos (Jenkins, 2008) e ainda criar e compartilhar conteúdos.

Os telefones celulares hoje apresentam, ao mesmo tempo, “funções de conversação, convergência, portabilidade, personalização, conexão através de múltiplas redes, produção de informação (texto, imagens, sons), localização” (Lemos, 2007, p. 23). Para cada função que o usuário deseja exercer, existe um aplicativo[2] diferente. Uma pesquisa de 2013 revelou os dez aplicativos mais usados no mundo inteiro[3]. Em primeiro lugar, o aplicativo mais utilizado atualmente é de geolocalização, o Google Maps, que fornece mapas do mundo inteiro, trajetos e fotos dos lugares; entre os dez apps[4] mais usados encontramos também o Facebook, o Twitter, o WhatsApp e o Instagram.

Alguns dos fatores que tornam os telefones inteligentes e os seus estudos tão relevantes são a mobilidade, a portabilidade, a capacidade de produzir conteúdo imediato, a conexão e a difusão em rede, e acima de tudo o fator da disseminação massiva desse artefato, que segundo Lemos (2007) faz de qualquer indivíduo um produtor, distribuidor e consumidor de imagens, mesmo que virtualmente. O autor também disserta que imagens e vídeos feitos por pessoas comuns através de seus dispositivos realizam a tarefa de registrar eventos cotidianos, desde amigos conversando até usos mais importantes em momentos de guerrilhas urbanas, acidentes, catástrofes, entre outros.

O modo como os jovens tem utilizado a internet e o telefone celular em suas vidas hoje, entrando e saindo simultaneamente dos âmbitos offline e online, nos indica que a participação nesses dois mundos está integrada a uma experiência cotidiana, que circula constantemente entre o interior e o exterior de nossas casas, nas diversas formas de ser e habitar os distintos campos do público e do privado (Winocur, 2009). Para Winocur, a intensa experiência de socialização digital não substituiu o mundo real, e sim está ligada a ele.

Os smartphones no cotidiano dos adolescentes

Para pensarmos a relevância que os smartphones têm na vida dos adolescentes de classe popular, analisamos os usos que eles fazem do dispositivo móvel em seu cotidiano. Os jovens que participaram desta pesquisa foram observados e questionados sobre fatores como: frequência do uso do dispositivo móvel, utilização na escola e fora da escola, hábitos cotidianos que envolvem o celular, funções mais utilizadas, entre outros.

Ling (2004) acredita que a possibilidade de ter um telefone disponível, sempre à mão, alterou os hábitos existentes anteriormente, quando somente existia o telefone fixo. O telefone agora é individual; cada indivíduo possui o seu número, de uso pessoal, e pode usá-lo para entretenimento, comunicação, trabalho, enfim, para o que achar mais conveniente, a qualquer momento e em qualquer lugar.

No cotidiano dos adolescentes entrevistados o que mais se vê presente é o uso das redes sociais. Para a maioria, o consumo de smartphone no dia a dia está ligado à comunicação e ao bate-papo. Observamos que a presença diária e constante do telefone celular na vida dos jovens é essencial. Todos relataram que se sentiriam perdidos se ficassem sem o celular por um dia e que cultivam sentimentos como amor e carinho pelo aparelho. Além disso, quase todos os entrevistados utilizam seu smartphone para funções básicas como relógio, despertador, calculadora e agenda.

 Os dispositivos móveis atualmente são de uso pessoal e são portáteis. De acordo com Ling (2004) eles foram adotados rapidamente e ligados ao nosso corpo para uma ampla variedade de práticas sociais, que ultrapassam as funções primárias de comunicação; assim como os elementos do cotidiano, as tecnologias sem fio, e principalmente o celular, são percebidas como instrumentos essenciais da vida contemporânea. Quando elas falham, os usuários tendem a se sentir perdidos porque desenvolveram uma relação de dependência com as tecnologias (Ling, 2004).

Acho que os jovens tão usando muito o celular hoje pelo fato de ser fácil de levar pra vários lugares, de carregar e porque nele tem tudo. Tem câmera, relógio, internet, GPS; eles podem fazer todas as coisas que necessitam sem o computador por exemplo (Manuela – 14 anos – 8ª série).

O pensamento de Manuela vai ao encontro da teoria de Ling (2004) e Lemos (2007). A jovem acredita que os principais motivos para a ascensão do consumo de celular entre os adolescentes são os fatores híbridos, de mobilidade e de portabilidade. Para Lemos, o telefone celular hoje é um dispositivo híbrido, porque carrega funções de telefone, computador, máquina fotográfica, câmera de vídeo, processador de texto, GPS, entre outras; é móvel pois é portátil e conectado em mobilidade funcionando por redes sem fio digitais, ou seja, de conexão; e é multirredes, já que pode empregar diversas redes.

Outro ponto interessante comentado nas entrevistas com os jovens é o fato de o smartphone representar uma forma de segurança e de maior independência no dia a dia dos adolescentes. Quase todos os informantes relataram que seus pais pedem para que eles levem o celular para a escola caso aconteça alguma coisa inesperada, para alguma emergência.

Tenho celular desde os oito anos. É que a minha mãe trabalhava no Centro, então desde pequeno eu tinha que ir pegar ônibus sozinho, aí eu tinha que ter celular pra falar com ela. Sem o celular eu não poderia falar com a minha mãe, não poderia fazer minhas coisas. Eu acho que o celular é uma forma de segurança, porque se eu estiver tipo perdido, me machucar e essas coisas assim eu posso avisar (Gustavo – 12 anos – 7ª série).

Os jovens não relataram nenhum tipo de incômodo causado pelo rastreamento, pelo contrário, acham importante estar sempre com o celular para quando precisarem recorrer a alguém e consideram fundamental avisar aos pais onde estão e com quem estão.

As formas de apropriação de mensagens de texto e ligações

As mensagens de texto e as ligações por muito tempo foram as principais funções utilizadas em um telefone celular. Hoje, com a possibilidade de uso de internet e aplicativos no smartphone, muitos dos serviços de SMS e chamadas foram substituídos. Existem aplicativos que, conectados à internet, nos possibilitam fazer chamadas gratuitas e enviar mensagens para todos os nossos amigos sem pagar um centavo. Porém ao notar essa mudança de cenário na telefonia, empresas como Claro, Vivo e TIM[5] criaram novos planos, dando ênfase ao baixo custo para ligações e valores mínimos por pacotes de mensagens.

Em relação ao uso de mensagens de texto e ligações, alguns jovens entrevistados relataram possuir planos para ligações e mensagens. Bárbara utiliza um plano da Claro, no qual a chamada custa R$ 0,21 e paga-se R$ 0,50 por dia para enviar mensagens à vontade; ela diz que chega a enviar 50 torpedos por dia. Melinda tem um plano da TIM, e o utiliza mais para ligações, pois seu pai mora em outro estado com sua irmã mais velha, em Recife, e a chamada custa apenas R$ 0,25. A jovem conta que chega a ficar de meia hora a quarenta minutos no celular conversando com seu pai. Luís não possui internet em casa e nem 3G no smartphone, por esse motivo, é um dos informantes que mais utiliza o serviço de SMS. Ele paga R$ 5,00 por um pacote de 100 mensagens e chega a enviar mensagens de dois em dois minutos.

Castells et al. (2007) nos recordam que o SMS é o meio de comunicação que emergiu como o mais importante entre os jovens. O SMS, assim como as chamadas de voz, cumpre funções de comunicação instrumental e expressiva. Para os autores, graças ao SMS os jovens criaram também suas próprias linguagens. O curto espaço para escrever mensagens nos celulares, 160 caracteres, fez com que os adolescentes inventassem novas e exclusivas maneiras para se comunicar.

Os adolescentes e sua ligação com a música

Para compreendermos um pouco a importância da música na vida dos jovens pesquisados primeiramente vamos falar de Janaína. Janaína, que tem 15 anos e está na 7ª série, vive com dois tios emprestados e não chegou a conhecer seus pais. Os tios são bem mais velhos que ela (uma tem 82 e o outro 65 anos), são muito rígidos e não entendem as novas tecnologias e tendências do momento; talvez seja por esse motivo, pela educação dos tios, que a jovem não confia no uso da internet pelo smartphone. A relação de Janaína com os tios é complicada, e a música para ela é uma forma de fugir, é um escape. Ela gosta de escutar rock e escuta muita, mas muita música. No intervalo da escola Janaína quase nunca está sem seus fones de ouvido. Além de ouvir as músicas, ela ainda faz uma coisa diferente com seu smartphone: canta e grava com o gravador de voz, aí depois escuta algumas vezes e apaga.

Janaína se considera viciada em celular, muito em razão da música, pois não consegue sair de perto do telefone e ficar muito tempo sem escutar suas bandas favoritas. A jovem acredita que muitas vezes o smartphone atrapalha, pois ela deixa de estudar e de prestar atenção em algumas coisas em casa para ficar escutando música. Por causa dos fones de ouvido a menina também deixa de ouvir muitas pessoas falando com ela, até mesmo as ordens de seus tios. Podemos perceber que a música para um jovem que possui problemas com a família, além dos financeiros, é uma maneira de esquecer suas dificuldades, sua vida real, e entrar em um refúgio.

Nesses meses de observação pudemos notar também que no intervalo da escola muitos alunos escutam música sozinhos, com seus fones de ouvido, fazendo o seu lanche. Para esses o intervalo parece ser solitário, mas eles aparentam estar felizes, relaxados e aproveitando o recreio do seu melhor jeito. Todavia há jovens que escutam música juntos, em duplas, dividindo os fones de ouvido, conversando e interagindo. O uso do celular nesses casos passa de individual para uso coletivo, ele vira uma ferramenta de sociabilidade, onde a tecnologia pode ser compartilhada. E ainda há aqueles que não utilizam os fones de ouvido, os funkeiros, que gostam de escutar e colocar suas canções favoritas para todos ouvirem.

Existe também uma espécie de rixa entre os jovens da escola pesquisada, na qual os funkeiros sofrem preconceito por escutar as canções sem fone de ouvido. Pelos depoimentos notamos que os alunos que gostam de rock e de outros estilos musicais, não gostam das atitudes dos funkeiros. Eles são julgados “bagaceiros” e vulgares por escutarem canções com letras apelativas e ainda sem fones, para todos perceberem.

Funkeiro não sabe usar fone de ouvido. E eu falo mesmo. Funkeiro não usa fone, só rockeiro. Porque o funkeiro quer se mostrar, quer mostrar aquelas músicas que falam nada a ver. O rock não precisa mostrar. O funkeiro tem que descer até o chão e tem aquelas músicas que falam “ai encosta aqui, vai lá, põe a mão lá e não sei o quê”, e essas músicas não são legais (Janaína – 15 anos – 7ª série).

Os outros não gostam de nós porque dizem que funkeiro não usa fone de ouvido, mas eu não uso mesmo. É só pra escutar alto mesmo, eu não gosto de escutar tipo no fone. Eu gosto de escutar pra todo mundo ouvir. Rockeiro e funkeiro não se dão, não adianta (Pablo – 14 anos – 7ª série).

 A música, no entendimento de Castells et al. (2007), é uma importante forma de autoexpressão para os jovens. E as tecnologias de comunicação sem fio hoje, como os smartphones e outros telefones celulares, permitem que os adolescentes expressem a sua identidade de maneira mais visível, em sintonia com as modas e tendências atuais (Castells et al, 2007). Para o autor, hoje o telefone móvel por si só já se tornou um símbolo da identidade dos jovens em muitos países; e não só dos jovens, mas de crianças e adultos também.

O uso de redes sociais e de aplicativos

Nesta seção buscamos entender algumas das razões para as redes sociais e os aplicativos hoje serem as principais funções utilizadas nos smartphones no dia a dia dos adolescentes. Dos dezesseis entrevistados, apenas dois não utilizam as redes sociais pelo dispositivo móvel, mas se conectam às mesmas através de seus computadores. Todos os informantes possuem aplicativos, seja de redes sociais seja de jogos, de calendário, de fotos, entre outros. Todos os usuários de smartphone têm o Facebook como seu aplicativo/rede social favorito.

Depois do Facebook a rede mais usada é o Twitter, e em seguida o Instagram. Relembrando brevemente as funções de cada uma, o Facebook permite ao usuário ter uma conta, um perfil pessoal, adicionar fotos e vídeos, criar conteúdo e compartilhar, assim como adicionar amigos, conversar com eles através de um bate-papo, criar comunidades, eventos e páginas; o Twitter tem como proposta o compartilhamento de mensagens curtas, de no máximo 140 caracteres e o Instagram é utilizado para a postagem de fotos, com suas respectivas legendas e filtros.

Percebemos ainda que as redes sociais são usadas pelos adolescentes para entretenimento. Jonas e Bárbara contam que ficam felizes quando estão online no Facebook e que dão muitas risadas quando estão escrevendo e lendo mensagens no Twitter. Além disso, muitos mencionam se sentir estranhos e até mesmo desesperados se ficam muito tempo sem entrar nas redes sociais. Eles precisam saber o que está acontecendo, quem está conversando com eles e o que as outras pessoas estão fazendo.

Na opinião de Janaína, seus amigos estão tão felizes conectados, se divertindo e conversando, que se esquecem de algumas coisas importantes como realizar os deveres de casa e de estudar.  Lemos (2007) disserta que o uso de smartphones e de outras tecnologias móveis interfere, como toda mídia, na gestão do espaço e do tempo. Como os celulares estão sempre em nossas mãos, quase 24 horas por dia junto a nossos corpos, muitos adolescentes realmente perdem a noção de tempo. O que é hora de lazer, diversão e entretenimento se confunde, ou até mesmo oculta, a hora de estudos e de trabalhos escolares dos jovens.

Ricardo e Alice acham que a vantagem de se estar conectado nas redes sociais é poder estar perto de outras pessoas, sem estar próximo fisicamente.

Quando eu tô conectado eu sinto que eu posso falar com quem eu quiser, entendeu? Em qualquer lugar e que essa pessoa não precisa tá perto de mim pra conversar (Ricardo – 15 anos – 8ª série).

Quando tô conectada sinto que posso ver os outros, às vezes alguém que tá longe eu vejo. O Facebook eu uso pra conversar com as minhas amigas, eu tenho uma prima que mora bem longe também, daí eu converso bastante com ela (Alice – 15 anos – 7ª série).

Recuero (2011) pensa que o que diferencia as relações hoje é o advento dos laços sociais mantidos a distância. A autora acredita que a tecnologia proporcionou uma certa flexibilidade na manutenção e criação de laços sociais, uma vez que permitiu que eles fossem dispersos espacialmente. Para Recuero “a comunicação mediada por computador apresentou às pessoas formas de manter laços sociais fortes mesmo separadas a grandes distâncias […] Essa desterritorialização dos laços é consequência direta da criação de novos espaços de interação” (Recuero, 2011, p. 44).

Podemos dizer que o pensamento de Lemos (2007) conversa com as ideias de Recuero, pois em seu entendimento a diferença das relações atualmente é a circulação imediata de conteúdos, a conexão planetária, fazendo de todos nós partícipes da experiência, de tudo e de qualquer coisa. As redes sociais e as novas tecnologias são capazes de manter amizades a longas distâncias, relacionamentos entre namorados que vivem em diferentes cidades, e possibilita que famílias amenizem a saudade que sentem de um filho que está em outro país.

Smartphones e sociabilidade

Desde nossas primeiras entrevistas no campo de pesquisa, interessou-nos o fato de que, para os alunos da escola Vila Real, ter um smartphone significa sentir-se incluído. Incluído na modernidade, incluído nos grupos de jovens e na escola. Os celulares passaram a ser um artefato importante que marca a aparência dos indivíduos, tornando-se não somente objetos de desejo, mas sim símbolos de pertencimento de diferentes grupos sociais (Ling, 2004; Horst; Miller, 2006; Silva, 2008).

Possuir um smartphone para nossos informantes significa “ser visto normal, que não tá nem por baixo, nem por cima, mas que nem os outros”. Os jovens entrevistados em nenhum momento se referiram aos smartphones para falar de mais ou menos status. Quase todos comentaram possuir um celular moderno para estarem iguais aos colegas. Eles não querem o smartphone mais caro, nem o “tijolão” (celular antigo), eles precisam ter os smartphones que todos têm, para estar na moda.

Ter um dispositivo móvel moderno, com acesso a internet e aplicativos, expressa pertencimento, porque para nossos interlocutores “quem é conectado é na moda. Os que estão por fora, estão desatualizados”. Assim, consideramos que os smartphones atuam diretamente na inclusão simbólica dos jovens, em uma lógica que hoje é marcada pela conectividade e pela modernidade. Na realização das entrevistas e na observação em campo, sempre que perguntávamos como alguém usava as funcionalidades e aplicativos do celular, a resposta grande parte das vezes era: “Tudo que eu faço no celular eu acho que os outros jovens fazem também”.

Mesmo possuindo um smartphone com variadas funções e com capacidade de armazenamento para muitos aplicativos, os adolescentes contaram que utilizam apenas as redes sociais e aplicativos que os colegas utilizam. Eles possuem o smartphone justamente para se incluir, para pertencer e estar onde os outros jovens estão. O pensamento de Bourdieu (2007) complementa nossa reflexão dizendo que os objetos nunca são consumidos de forma neutra. No caso dos jovens da escola Vila Real, os objetos, os smartphones, são consumidos com o objetivo de pertencer e se igualar.

Bourdieu (2007) entende que pessoas pertencentes às mesmas classes e frações de classes tendem a comportar-se e usufruir dos bens de maneira semelhante. O fato de nossos informantes quererem ser vistos normalmente pelos outros jovens, significa poder ter e desfrutar igualmente dos bens que os colegas têm. Eles utilizam o celular de maneira parecida ou idêntica para sentirem que pertencem ao universo dos adolescentes.

Perguntamos aos dezesseis entrevistados se alguma vez eles já foram vistos ou tratados de maneira diferente por causa do modelo de seu celular. Muitos comentaram que já presenciaram pessoas sendo tratadas como diferentes, tanto por terem um celular antigo – um “tijolão” – quanto por possuirem um smartphone de muita qualidade – os “playboyzinhos”.

Eu já vi pessoas serem tratadas diferente por causa do celular, mas só algumas vezes. É que é assim, quando tu tem tipo um celular mais velho ficam chamando de tijolão, e quando alguém tem um celular mais moderno daí chamam de rico né, de playboyzinho. Tem que ser meio termo (Alice – 15 anos – 7ª série).

 No entendimento de Slater (2002) é através das mercadorias e dos bens que a vida cotidiana, assim como as nossas identidades e relações sociais são sustentadas e reproduzidas. Para o autor o que consumimos determina a imagem que queremos passar e serve para identificar nós próprios e uns aos outros. O consumo de smartphones pelos jovens é uma maneira de expor suas identidades por meio de bens materiais que simbolizam um estilo de vida, um gosto. Na escola Vila Real, o adolescente que consome smartphone faz parte de um grupo que está na moda, está atualizado. Eles não são diferentes dos outros economicamente, mas usam o consumo como estratégia para construir determinada imagem de si.

Considerações finais

O nosso objeto de estudo, o smartphone, ganhou muito destaque no ano de 2013, foi bastante evidenciado pela mídia e nunca teve modelos de entrada tão acessíveis no mercado. Os dados de Teleco (2013) afirmam que o preço dos smartphones em 2012 caiu cerca de 25%, o que explica em parte a explosão de vendas desses aparelhos. Pudemos notar através da observação em campo e das entrevistas a relevância que esses aparelhos têm na vida dos jovens.

Esse dispositivo móvel é um objeto importante para a cultura material contemporânea, e estudar a sua significância e o modo como é consumido é de grande contribuição para as pesquisas de consumo. Outro fator importante para a pesquisa é o fato de o trabalho envolver o uso de smartphones nas camadas populares, pois esses tipos de bens são considerados supérfluos e são vistos com preconceito pelas camadas altas quando se encontram nas mãos de pessoas com menos poder econômico.

Hoje o jovem encontra conectado o seu lugar de pertencimento. Sim, as formas de consumir, de interagir e de socializar se modificaram. Mas essas relações mudaram basicamente de território. O que antes era feito face a face, somente agora e ao vivo, hoje pode ser feito a milhares de quilômetros. As novas tecnologias romperam as barreiras físicas e geográficas que nos eram impostas e nos apresentaram um lugar onde as relações à distância, entre diferentes cidades e países se tornam simples.

Mais do que a exposição de nossas imagens nas redes sociais, hoje se busca o que é vivido junto, a cumplicidade (Lemos, 2007), o compartilhamento do dia a dia. Os telefones celulares se tornaram uma parte muito importante da vida cotidiana das pessoas, principalmente dos adolescentes (Ling, 2004). O telefone móvel não é mais usado apenas para comunicação; ele é usado para a coordenação funcional do cotidiano e para a interação de um grupo.

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* Sandra Rubia da Silva é mestre em Comunicação e Informação (UFRGS) e doutora em Antropologia Social (UFSC). Docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e líder do grupo de pesquisa “Consumo, Culturas Digitais e Materialidades da Comunicação”. E-mail: sandraxrubia@gmail.com

** Camila Rodrigues Pereira é bacharel em Comunicação Social – Publicidade e Propaganda. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: rp_camila@hotmail.com

Referências

BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto Alegre, RS: Zouk, 2007.

CASTELLS, Manuel; FERNÁNDEZ-ARDÈVOL, Mireia; QIU, Jack Linchuan; SEY, Araba. Mobile Communication and Society: a global perspective. Cambridge: MIT Press, 2007.

CASTRO, Gisela. Screenagers: entretenimento, comunicação e consumo na cultura digital. In: BARBOSA, Lívia (org.). Juventudes e gerações no Brasil contemporâneo. Porto Alegre: Sulina, 2012.

HORST, Heather; MILLER, Daniel. The cell phone: an anthropology of communication. Oxford; Berg, 2006.

JENKINS, Henry. A cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2008.

 LEMOS, André. Comunicação e práticas sociais no espaço urbano: as características dos Dispositivos Híbridos Móveis de Conexão Multirredes (DHMCM). Comunicação, mídia e consumo. São Paulo, Escola Superior de Propaganda e Marketing, vol. 4, nº 10, 2007.

LING, Rich. The mobile connection: the cell phones impact on society. New York: Morgan Kaufman, 2004.

 RECUERO, Raquel. Redes sociais na internet. Porto Alegre: Sulina, 2011.

ROCHA, Angela; SILVA, Jorge Ferreira. Consumo na base da pirâmide: um desafio para a pesquisa. In: ROCHA, Angela; SILVA, Jorge Ferreira. Consumo na base da pirâmide: estudos brasileiros. Rio de Janeiro: Mauad X, 2009.

ROCHA, Everardo. Invisibilidade e revelação: camadas populares, cultura e práticas de consumo – apresentação. In: ROCHA, Angela; SILVA, Jorge Ferreira. Consumo na base da pirâmide: estudos brasileiros. Rio de Janeiro: Mauad X, 2009.

ROCHA, Everardo; PEREIRA, Cláudia. Juventude e consumo: um estudo sobre a comunicação na cultura contemporânea. Rio de Janeiro: Mauad X, 2009.

SILVA, Sandra Rubia. Vivendo com celulares: identidade, corpo e sociabilidade nas culturas urbanas. In: Culturas juvenis no século XXI. BORELLI, Silvia H. S.; FILHO, João Freire. São Paulo: EDUC, 2008.

SLATER, Don. Cultura de consumo & modernidade. São Paulo: Nobel, 2002.

TELECO. Inteligência em telecomunicações, 2013. Disponível em: <http://www.teleco.com.br/> Acesso em: junho 2013.

WINOCUR, Rosalía. Robinson Crusoé ya tiene celular: la conexión como espacio de control de la incertidumbre. México: Sigla XXI: Universidad Autónoma Metropolitana, Unidad Iztapalapa, 2009.

Notas

[1] Disponível em: < http://info.abril.com.br/noticias/mercado/2014/04/vendas-de-smartphones-no-brasil-mais-que-dobram-em-2013.shtml> Acesso em: 6 mai. 2014.

[2] Aplicativos ou aplicativos móveis são softwares desenvolvidos para rodar em dispositivos móveis como smartphones, telefones celulares e tablets. Disponível em: <http://www.alldreams.com.br/artigos/44-o-que-sao-aplicativos-mobile.html> Acesso em: 15 out. 2013.

[3] Pesquisa: Top 10 aplicativos mais usados no mundo. Disponível em: <http://top10mais.org/top-10-aplicativos-mais-usados-em-smartphones/> Acesso em: 16 out. 2013.

[4] Abreviação da palavra aplicativo que é muito utilizada pelos usuários de smartphone.

[5] As três empresas são operadoras de telefonia no Brasil. A Vivo é uma empresa do Grupo Telefônica, que adquiriu a participação da Portugal Telecom na operadora em 2010. A empresa de telefonia Claro é uma subsidiária da América Móvil para o Brasil e a empresa TIM é controlada pela Telecom Italia. Disponível em <http://teleco.com.br/> Acesso em: 29 nov. 2013.

Museu Afrodigital: desafios na representação do passado

Nas últimas décadas observamos uma obsessão do público por temas relacionados à memória, bem como por museus e arquivos. Estes últimos têm se multiplicado com uma velocidade assustadora, adaptam-se facilmente às novas demandas e incorporam novas tecnologias em suas atividades. Autores como o filósofo francês Jean-François Lyotard (1989), ou o historiador Reinhard Koselleck (1985), identificaram uma aceleração do tempo concomitantemente à homogeneização de distâncias espaciais e temporais, à percepção linear do tempo e à procura incessante do novo. Podemos compreender a obsessão por museus e arquivos, instituições que teoricamente seriam capazes de preservar e ordenar o tempo, como inerente à insegurança do indivíduo contemporâneo frente à velocidade de comunicações, simultaneidade de lugares e aceleração do tempo.

Alguns artigos e livros já foram escritos sobre a experiência do Museu Afrodigital (Santos, 2010, 2012a, 2012b; Ferretti, 2012; Sansone, 2013). O projeto faz parte de uma iniciativa nacional, coordenada pelo antropólogo Livio Sansone, da Universidade Federal da Bahia (UFBA). A partir de uma colaboração inicial com uma instituição africana de preservação do patrimônio, o Arquivo Histórico de Moçambique (AHM), estabeleceram-se os objetivos de digitalizar e divulgar arquivos não acessíveis à comunidade acadêmica e ao público de países africanos e latino-americanos e criar museus ou exposições digitais. Além disso, estavam entre os propósitos a serem alcançados a formação de cursos internacionais à distância e a edição de livros virtuais, a serem impressos em diferentes línguas e formatos. Foram realizados contatos com instituições nacionais e estrangeiras como Biblioteca Nacional, Arquivo Nacional, Smithsonian, Unesco e Melville Herskovits Library para que documentos fossem digitalizados e disponibilizados ao público. Nesse mesmo ano de 2009, foram consolidadas participações de outros grupos universitários (UERJ, UFPE, UFMA), que se organizaram de forma relativamente autônoma e independente.

O termo “digital” precisa de alguns esclarecimentos. Não utilizamos a denominação “virtual” porque consideramos que a página da web conta com uma base física responsável pelo armazenamento de dados. Outra questão foi a escolha entre museu e arquivo, pois as atividades desenvolvidas se confundem uma vez que as novas tecnologias permitem simultaneamente a preservação e a exposição da totalidade das informações que foram selecionadas.

Após essas primeiras explicações podemos seguir em frente e investigar quais seriam os aspectos que trazem alguma especificidade aos museus digitais e em que medida eles podem ser associados à preservação da memória. Para isso, vamos analisar três aspectos comumente associados aos hipertextos, ou seja, aos textos que são veiculados nas páginas da web: interatividade, fragmentação e cópia.

Interatividade: quem tem o poder de falar sobre o “outro”?

Os grandes museus da modernidade foram criados no século XIX, paralelamente aos Estados Nacionais e à abertura das coleções particulares ao grande público. Esses museus foram construídos como lugares da objetividade e da certeza sobre a ciência e sobre lugares distantes no tempo e no espaço. A partir dos anos 1980, os mecanismos de poder presentes nas narrativas expositivas dessas instituições foram amplamente denunciados por pensadores de diversas correntes teóricas que partiam da crítica à invenção das tradições (Hobsbawm & Ranger, 1983), à sociedade disciplinar (Bennett, 1995), ou mesmo às políticas colonialistas (Stocking, 1985; Appadurai, 1999; Sansone, 2013). Intelectuais de várias correntes disciplinares, entre eles historiadores e antropólogos, afastaram-se dos museus à medida que os identificaram com comemorações cívicas e manifestações de encontros coloniais. Os museus foram associados ao esquecimento e não à memória.

O termo “memória coletiva”, cunhado por Maurice Halbwachs (1925; 1968) nas primeiras décadas do século passado, tem orientado grande parte das pesquisas relacionadas à reconstrução do passado. Segundo Halbwachs, o passado é sempre reconstruído no presente e, nessa construção, precisamos compreender as relações sociais que entrelaçam aqueles que rememoram. Poderíamos dizer, portanto, que o passado é sempre reconstruído de acordo com os interesses e conflitos do presente. Halbwachs estava preocupado com a construção do passado que ocorria a partir do que denominou de quadros sociais da memória. Seu trabalho nos ajuda a compreender que o passado não é recuperado, resgatado em forma pura, mas sim reconstruído no presente. Perde-se com isso a ilusão na memória pura. Muito embora Halbwachs não estivesse preocupado com o esquecimento ou com as implicações das relações de poder sobre o que fora lembrado, ele nos deixou uma enorme contribuição ao afirmar que as construções coletivas sobre o passado têm autoria.

A partir do movimento teórico conhecido como Nova Museologia, muitos museus distanciaram-se dos antigos discursos oficiais e da sacralização dos objetos. As propostas radicais de integração dos museus a seu meio, idealizadas no início dos anos 1970, foram expandidas e tornadas mais flexíveis. Como em outras áreas do conhecimento, foram questionadas as implicações de poder inerentes à definição do “outro” distante no tempo e no espaço. Pesquisadores, formadores de opinião, educadores, e gestores de instituições culturais passaram a problematizar a autoria das narrativas construídas.

No Brasil surgiram diversas iniciativas no campo da Museologia associadas a núcleos comunitários voltados para o fortalecimento de suas identidades, para a valorização de seus lugares de moradia e para demandas relacionadas à inclusão social. A partir do ano 2000, políticas públicas fortalecem essas iniciativas. Embora o tema da política cultural no novo milênio tenha sido objeto de diversas análises (Rubim, 2010; Santos, 2011), destaca-se a intervenção sistemática do Ministério da Cultura na arena cultural. Foram criados, nesse período, o Sistema Nacional de Cultura (SNC) e o Plano Nacional de Cultura (PNC) com o intuito de potencializar a ação governamental. Além da manutenção da defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro, meta já presente nos governos anteriores aos anos 2000, foram eleitas como questões prioritárias a valorização da diversidade étnica e regional e a democratização do acesso aos bens culturais. A partir da premissa de que todo cidadão tem direito à cultura, surgiram os programas de inclusão social, dos quais se destacou o Ponto de Cultura, que deu suporte a um grande número de projetos locais, promovendo não só o acesso às novas tecnologias por populações de baixo poder aquisitivo, mas o protagonismo cultural e o acesso à cultura por parte daqueles que se situavam à margem das atividades culturais. No campo da Museologia, foi criado o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), que tem atuado na distribuição de recursos e incentivo de novas iniciativas, bem como o programa “Pontos de Memória”, voltado para iniciativas comunitárias.

O uso de novas tecnologias permite alcançar um público imensamente maior do que aquele que frequenta museus e arquivos oficiais. Mas, certamente a distribuição de recursos acompanha a desigualdade social existente no país. Enquanto entre os 10% mais ricos, 56,3% têm acesso à internet, entre os 10% mais pobres, o percentual cai para 0,6%. A maior parte dos usuários da rede é constituída pelos mais ricos, brancos e moradores da região sudeste. Ainda assim há uma inclusão crescente de todos os segmentos. O Brasil é o 5º país mais conectado do planeta e conta com mais de 100 milhões de internautas[1]. No caso do Museu Afrodigital, conforme tabelas abaixo, observamos o crescimento contínuo de usuários desde a sua fundação, o que pode ser associado não só à expansão da internet no país, como também ao interesse específico pelo tema tratado.

 

2012

Usuários Visitas Páginas Hits Bytes
Mar 39 91 4,046 20,446 196.92 MB
Apr 71 214 1,315 6,694 146.58 MB
Mai 273 776 3,725 20,142 323.34 MB
Jun 260 499 5,089 28,044 459.79 MB
Jul 278 880 7,648 35,394 2.14 GB
Aug 273 770 3,825 28,572 985.55 MB
Sep 321 755 2,954 26,202 1.39 GB
Oct 384 933 2,908 24,654 2.38 GB
Nov 491 1,105 6,138 37,894 9.35 GB
Dec 370 934 3,307 19,840 2.02 GB
Total 2,760 6,957 40,955 247,882 19.33 GB

 

2014

Usuários Visitas Páginas Hits Bytes
Jan 5,389 13,086 44,032 149,823 71.66 GB
Feb 5,207 14,236 37,722 98,341 149.62 GB
Mar 4,103 11,573 39,520 150,397 113.44 GB
Apr 2,936 8,794 22,156 92,807 60.57 GB
Mai 4,577 10,978 20,577 75,808 85.23 GB
Jun 5,314 12,388 22,572 77,782 102.26 GB
Jul 6,340 15,114 27,349 86,953 119.95 GB
Ago 6,227 15,156 49,393 131,122 124.75 GB
Set 6,319 14,844 28,296 147,681 167.38 GB
Out 5,970 13,870 27,331 158,672 116.89 GB
Nov 6,771 14,065 28,176 237,384 96.51 GB
Dez 6,478 12,917 21,807 99,663 98.97 GB
Total 65,631 157,021 368,931 1,506,433 1382.90 GB

 

O programa do blog em que o Museu Afrodigital Rio se hospeda, oferece estatísticas sobre usuários, número de visitas, hits, ou seja, número de pedidos feitos ao servidor, e bytes, que corresponde à quantidade de arquivos que foram copiados.

A pesquisa acadêmica, que se afastara dos museus desde meados do século passado, voltou a se interessar pelos diversos significados atribuídos aos objetos, pelo seu potencial de desconstrução de narrativas constituídas, e pela possibilidade de maior divulgação de seu trabalho. No caso do Museu Afrodigital, seu suporte é dado por universidades e não por instituições de cultura. Entre os principais objetivos delineados pelo Museu Afrodigital estavam a reconstrução da memória de grupos historicamente subalternizados, através da divulgação de documentos e objetos não valorizados por instituições tradicionais, e o rompimento com a divisão entre países que produzem a cultura e aqueles que a preservam (Sansone, 2013). Por intermédio de acordos institucionais, gravações, fotografias, cadernos de pesquisa e materiais diversos foram reproduzidos de prestigiosas instituições nacionais e internacionais e divulgados pela internet. O preço a pagar pelos direitos de reprodução foi muito menor do que teria sido a construção de um arquivo ou museu nos moldes tradicionais. Os museus digitais operam segundo as leis da doação e da repatriação digital.

No caso do Rio de Janeiro, embora na página da web que foi criada haja espaços para comentários e a página seja acoplada ao Facebook, o grau de interatividade é limitado, pois o internauta não tem o poder de modificar o conteúdo do que foi construído, acrescentando imagens, textos e links. Diferentemente de iniciativas mais recentes, como museus de nações indígenas, museus de favelas, e museus de periferias, entre outros, em que os gestores fazem parte do grupo comunitário retratado, o Museu Afrodigital se volta para os diversos movimentos que lutam contra o racismo, mas não é gerido por eles. A seleção de temas e documentos a serem preservados e a escolha de expor alguns deles por meio de imagens mais elaboradas é feita por um grupo de professores e estudantes universitários. O pertencimento ao mundo acadêmico possibilita a seus organizadores a manutenção e o suporte financeiro.

Os museus digitais vinculam-se à reescrita da história e à redefinição da relação entre povos e culturas. O Museu Afrodigital divulga cópias de documentos, imagens e gravações relacionados ao passado de afrodescendentes que estavam relegadas a segundo plano em instituições oficiais e estrangeiras. Se essas narrativas são importantes para movimentos e comunidades que se identificam aos afrodescendentes, é interessante destacar que elas também encontram apoio em agências governamentais que defendem a identidade multicultural da nação. Assim, no que diz respeito ao acesso, podemos dizer que embora um número bem maior de pessoas tenha acesso aos dados divulgados pela internet do que aquele que se dirige a uma instituição com localização fixa, este acesso responde às disputas e distribuições de poder em uma sociedade.

Cópia e fragmentação: limites e possibilidades do hipertexto

Os museus e arquivos digitais têm a possibilidade de divulgar um conteúdo bem maior para um público crescente, muitas vezes sem acesso a instituições oficiais de cultura. Podem representar a democratização de um capital cultural, no sentido dado por Pierre Bourdieu (2007). Além disso, a construção desse conteúdo é dinâmica e tem graus de participação variados dos usuários. Mas o que dizer sobre o conteúdo que é veiculado?

Um aspecto central dos museus e de arquivos tradicionais é a autenticidade dos objetos colecionados. Ela dá suporte às grandes narrativas, as quais surgem como verdades sobre o passado, sobre a cultura do outro, ou mesmo sobre a ciência, sem que os critérios de seleção e exclusão se tornem aparentes. Apesar das diferentes razões pelas quais objetos tenham sido escolhidos e selecionados, eles têm poder e autoridade, devido à singularidade atribuída a eles.

Diferentemente, nas páginas da web e nos blogs, o aspecto aurático de objetos “autênticos”, situados no tempo e no espaço, é substituído pelo direito legal de reprodução. As imagens codificadas, fixas ou móveis, não podem ser tocadas, não têm o mesmo tipo de materialidade. Como ressaltado por Walter Benjamin, ao analisar o impacto de novas técnicas de reprodução sobre a obra de arte (1968a), até a mais perfeita reprodução carece de um elemento: sua presença no tempo de espaço.

Há uma percepção muito clara, por parte dos usuários, de que toda a informação que é transmitida pela internet é construída. As novas tecnologias permitem que o apagar contínuo do que foi escrito se torne um de seus aspectos centrais. Não há prova material possível do que se afirma. Importa, portanto, tal como entre historiadores da antiguidade, a confiança naquele que é o autor do texto. No caso do Museu Afrodigital, por exemplo, os textos e imagens estão sendo sempre sendo modificados, aprimorados, de acordo com as demandas existentes e novas reflexões realizadas.  As formas de apresentação e até mesmo os títulos não são mantidos, conforme exemplificado abaixo a partir do lançamento do Museu em 2011 e sua aparência atual.

Página inicial do Museu Afrodigital em 2011 quando foi inaugurado

Página inicial do Museu Afrodigital em 2011 quando foi inaugurado

Página inicial do Museu Afrodigital em 2015

Página inicial do Museu Afrodigital em 2015

 Os usuários do Museu Afrodigital em sua grande maioria são simpáticos às causas dos movimentos que lutam contra o racismo e buscam temas que atendam seus interesses específicos, que estejam de acordo com suas crenças políticas e religiosas. Eles estão bem distantes, portanto, daqueles que procuravam pelo permanente e contínuo. Como sabemos, as narrativas sobre o passado que são construídas no presente não são livres dos conflitos e disputas pelo poder. No caso da memória da população afro-brasileira, podemos afirmar que iniciativas digitais se tornam ferramentas mais abertas aos conflitos tanto do presente como do passado e são capazes de veicular informações sobre práticas como capoeira, quilombos e outras formas de resistência à escravidão, que deixaram poucos registros.

Outro aspecto a ser observado diz respeito à fragmentação contínua do texto na experiência de “navegar”. Há uma distância muito grande entre a intenção daqueles que escrevem seus textos e divulgam imagens nas páginas da web e o conteúdo aproveitado pelo usuário, que não só utiliza fragmentos do que está presente, como também acrescenta comentários. O usuário edita o texto encontrado no que se denomina “hipertexto”, ressaltando elementos que lhe são caros, criticando outros, ou mesmo dando novo sentido ao que foi copiado. Também no que diz respeito à construção da memória, tem se tornado comum a criação de blogs em que a proposta de registrar um determinado passado logo adquire um número grande de seguidores, que lá coloca suas impressões, emoções, bem como documentos e fotografias. Na construção do passado, o usuário adiciona texto e informação ao que se denomina de hipertexto.

Devido às novas características dos novos meios de comunicação, arquivos e museus digitais proporcionam novos questionamentos sobre temas como autoria, conhecimento, passado, preservação e ética (Taylor, 2010). O hipertexto atinge um público amplo e distante, mas diferentemente do texto escrito, que é fixo e adquire autonomia, ele é fluido, está sempre sendo elaborado, e permite o diálogo entre autor e receptor. Esse diálogo, contudo, acontece entre pessoas que não se conhecem e tem um produto que não pode mais ser associado a nenhum dos dois polos da comunicação.

Em Archive fever, o filósofo Jacques Derrida (1996) trouxe algumas questões provocativas ao afirmar que o conteúdo de um arquivo é determinado pela maneira pela qual este arquivo é organizado. Segundo ele, o conhecimento transmitido está intimamente associado à forma pela qual é transmitido. O conteúdo da informação vincula-se tanto ao que está escrito no documento quanto à técnica que lhe é inerente. Derrida afirma ainda que embora os arquivos obedeçam a relações de poder e à técnica utilizada na construção do passado, eles não podem ser reduzidos a esta construção, pois sua autoridade está associada à sua localização no tempo e no espaço. Próximo ao conceito de aura estabelecido por Walter Benjamin, o filósofo francês argumenta que embora os arquivos contenham apenas traços do passado, eles têm o poder de manter em aberto o desejo de conhecimento do que foi destruído e esquecido.

Nem sempre os critérios de verdade estiveram apoiados em documentos, objetos ou em sua autenticidade. Walter Benjamin (1968a), ao analisar o surgimento dos romances modernos e o impacto do texto impresso sobre antigas comunidades que tinham por base a oralidade, destacou a autonomia do texto em relação a seus autores. Nas sociedades em que predominava a oralidade, o autor mantinha o controle sobre seu texto. A invenção da imprensa alterou a noção de subjetividade e a maneira pela qual o conhecimento passou a ser produzido.

Podemos dizer que os arquivos e também os museus digitais não guardam mais nenhum traço ou testemunho do passado, e que estão sempre produzindo ativamente uma determinada memória. Nesse sentido, o desafio que enfrentamos ainda é aquele levantado por Walter Benjamin (1968b), quando afirma que “não há documento da civilização que não seja ao mesmo tempo documento da barbárie”.

A ausência do autêntico, da aura, e da localização do objeto material no tempo e no espaço, contudo, não nos impede de procurar o que chamamos hoje de memórias subterrâneas (Pollak, 1992; Portelli, 1996). Mais uma vez, é importante nos lembrarmos dos escritos de Walter Benjamin, autor que nos mostrou que, embora a reprodução das obras de arte significasse a emancipação dos objetos artísticos de sua dependência dos rituais tradicionais, apontava para novos desdobramentos políticos. Volta à cena o grande poder de comunicação e politização das novas mídias. Museus e arquivos digitais são instituições que lidam com símbolos do passado que podem ser acessados e reformulados de forma muito rápida e para uma audiência muito ampla. Eles abrem espaço para uma nova agenda de temas e responsabilidades nas disputas pelo poder. Os conteúdos das narrativas expostas podem ser acessados e reformulados em qualquer lugar do globo. O reconhecimento de que o controle de imagens e narrativas sobre o passado faz parte da construção da cidadania apenas começou.

Embora as novas tecnologias possam ser instrumentos de resistência para populações subalternas, elas se inserem no mundo que as criou e não fogem às hierarquias e desigualdades existentes. Além disso, elas estão associadas às novas formas de subjetividade, em que corpos, habilidades e modos de pensar adquirem configurações particulares. Apesar de elementos comuns no que diz respeito a controle e poder, é preciso compreender que os novos meios de comunicação não substituem os antecedentes de forma totalizante e que irão coexistir com formas orais de transmissão do passado, bem como com narrativas institucionalizadas (Taylor, 2003). Apesar das tentativas de domesticação do humano, é justamente a coexistência entre diferentes modos de pensar, ser e agir que permitem a explosão de sentidos e sua crítica.

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* Myrian Sepúlveda dos Santos é professora associada da UERJ e coordenadora do grupo de pesquisa Arte, Cultura e Poder. Seus temas de pesquisa são: memória coletiva, teoria social, estudos culturais, relações raciais, cultura popular, patrimônio cultural e, mais recentemente, violência e trauma.

 

Referências

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Nota

[1] Para dados, estatísticas e projeções sobre a internet no Brasil, ver o Ibope Media, http://www.ibope.com/pt-br/noticias/paginas/numero-de-pessoas-com-acesso-a-internet-no-brasil-chega-a-105-milhoes.aspx, acessado em 10 mar. 2015.

Polymedia e culturas juvenis: estudo de caso em uma favela carioca

Este artigo apresenta as reflexões centrais de minha pesquisa de pós-doutorado no Departamento de Antropologia Digital da University College London (UCL)[1] e converge com a linha de pesquisa que venho trabalhando ao longo dos últimos anos e que é objeto de discussão do livro que publiquei em 2011: Consumo e politização: discursos publicitários e novos engajamentos juvenis, assim como mantém forte conexão com a linha de investigação adotada no Laboratório Universitário de Publicidade Aplicada (LUPA), onde sou uma das coordenadoras, na Escola de Comunicação da UFRJ.

Na proposição central desses estudos dialogamos sobre os usos sociais da publicidade e das novas tecnologias e suas relações com as culturas juvenis. E também em 2012, durante dez meses, como docente do projeto de extensão da UFRJ, Rio Geração Consciente, nas favelas da Maré, Cantagalo e Manguinhos trabalhei com os temas sobre sociedade de consumo e direitos e acessos.  A proposta envolveu a coordenação geral da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social no Rio de Janeiro (Sedes), em parceira com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci), o Ministério da Justiça e o Governo Federal. O projeto também teve apoio institucional da Escola de Comunicação da UFRJ, formalizado como um projeto de extensão da escola. Em função dessa parceria, lecionei durante esses meses, no ano de 2012, nos núcleos: Rede CCAP, em Manguinhos, no Imagens do Povo, do Observatório de Favelas da Maré e no Museu de Favela do Cantagalo. O compromisso assumido para minha disciplina foi o de sensibilizar os discentes nesses territórios para os diálogos acadêmicos em mídia, consumo e mediações socioculturais, bem como atuar na concepção e no planejamento de uma campanha institucional sobre o tema da sociedade de direitos, incluindo, nesse debate, o tema do direito ao consumo.

O conteúdo pedagógico do curso objetivava refletir sobre a emergência da sociedade de consumo e seus pressupostos socioculturais, percorrendo as diferentes tradições teóricas que tratam o tema, mas com ênfase em discutir consumo a partir do viés antropológico: como um modo de manifestação de linguagem e um sistema de representação sociocultural ativo.

Nos primeiros registros dos trabalhos de campo, contudo, pude observar de imediato que para a maioria dos discentes prevalecia a visão da sociedade de consumo em um única tradição: como signo do declínio contemporâneo. Esse modo de compreensão da alta modernidade aparecia bem ao estilo da releitura do “fetichismo da mercadoria” na proposição da Escola de Frankfurt: as representações da sociedade de consumo, assim como as produções publicitárias, eram frequentemente narradas como símbolos do desencantamento e estandardização do mundo. Nos discursos dos estudantes do projeto, a sociedade de consumo aparecia como reprodutora do território da exclusão, da representação simbólica da desigualdade e produtora de regimes de visibilidade e hierarquização social. As leituras dos jovens sobre consumo reduziam a expressão à ideia de sociedade consumista onde o princípio da racionalidade e da lógica científica produziria a sociedade da alienação. Por muitas vezes os (as) estudantes me solicitavam leituras de textos que se referiam à tradição crítica. A valorização dessa perspectiva estava fortemente associada à ideia de que, em um contexto de baixa escolaridade, o investimento na formação crítica é o caminho para a compreensão do mundo contemporâneo e seus impasses.

O desafio, portanto, no quadro da minha proposta, configurou-se como de dupla ordem: contextualizar e refletir sobre a ideologia fundante da sociedade de consumo, bem como promover outras possíveis leituras: o entendimento do campo do consumo – sem necessariamente associar o conceito à emergência de um modo de condição social contemporâneo do consumismo – mas como signo sensível de todo o processo comunicativo, ou como sugere Douglas (2004) como modo de “dar visibilidade e estabilidade às categorias da cultura”. Ou ainda a visão predominante nas teses de Canclini (2007) de que as experiências do campo do consumo são agentes de uma racionalidade sociopolítica interativa.

A partir dessa experiência prévia, a pesquisa se desdobrou para o exercício de refletir sobre as formas de relacionamento de jovens residentes na favela do Cantagalo, Pavão e Pavãozinho com a comunicação digital do Museu de Favela (MUF) da comunidade. Compreendendo o digital como uma experiência sociocultural, passamos a estudar como revelar os modos de interação, os sistemas de mediação dos jovens da comunidade e o fortalecimento de seus vínculos com a proposta museológica do território.

Importante salientar que, no decorrer do ano de 2013, os bolsistas do nosso projeto de extensão LUPA-ECO-UFRJ desenvolveram diversas plataformas digitais para o Museu de Favela como a revista digital[2], a criação de um hotsite e a revitalização da fanpage no Facebook.

01

Segunda edição da Revista Digital do Museu de Favela
(Fonte: http://issuu.com/museudefavela/docs/revista_4_final_issuu)

Reconhecendo, portanto, o universo digital como uma possibilidade de articulação e diálogo com os jovens moradores do Cantagalo, Pavão, Pavãozinho, e ainda, compreendendo o repertório da memória como uma ação ativa, que pode encontrar no campo das mediações digitais espaços para o exercício de suas práticas, esse estudo visa:

i)Investigar o conceito de cultura material como representação antropológica, portanto, como mediador de significação pública em representações rituais para ampliar o debate sobre os modos de consumo de meios digitais no espaço da favela. Cabe investigar a experiência digital tanto como prática de empoderamento quanto como forma de exclusão.

ii) Explorar o conceito teórico de polymedia – como uma proposição teórica para o campo da comunicação – produzido por Daniel Miller e Mirca Mandinou (2013). Polymedia é uma categoria teórica que aborda o processo de escolha na ambiência dos usos de meios digitais. Cabe, portanto, investigar como tais escolhas de mídias digitais se exercitam no espaço de relacionamento de jovens com o Museu de Favela do Cantagalo, Pavão, Pavãozinho.

Contribuições da Antropologia para o estudo do digital e dos processos comunicativos

O olhar da antropologia do consumo para os modos de mediação sociocultural na contemporaneidade abre uma perspectiva de análise com foco nos usos sociais que os sujeitos fazem da cultura material. Nesse sentido, a tese de Douglas é referencial quando propõe pensar o consumo “como a ponta do iceberg que revela toda a dinâmica sociocultural em curso” (2004, p.41).

Desse modo, essa perspectiva contribui para relativização da tese de que a fragmentação dos vínculos sociais na ambiência contemporânea é decorrência da cultura de consumo. A leitura de Miller (2010, 2011, 2012) é referencial para essa visão ao sugerir, no espírito da tradição antropológica, que as práticas do consumo são sistemas comunicativos que falam de dinâmicas socioculturais mais amplas. Suas teses contribuem para afinar o olhar para os bens de consumo como categorias socioculturais, como espaços de produção de sentido, como ancoragens sociais.

Nos meus primeiros trabalhos de campo em 2012 com os discentes nos três Núcleos – Cantagalo, Pavão, Pavãozinho; Maré e Manguinhos – embora o registro dominante das representações da sociedade de consumo como símbolo do desencantamento e da estandardização do mundo tenha prevalecido, é possível sugerir que, ao longo das aulas, os estudantes afinaram o olhar para uma nova leitura simbólica. Aos poucos, as visões dos jovens sobre consumo, que reduziam a expressão à ideia de sociedade consumista, onde o princípio da racionalidade e lógica científica produziria a sociedade da alienação, foram dando lugar a um novo olhar mais antropológico. A cultura material pode, por fim, ser observada como linguagem e dinâmica que fala em rica sintonia sobre os dramas mais expressivos da vida social. Paradoxos revelados, tanto pelas contribuições positivas como pelos riscos da cultura de consumo.

O conceito de cultura digital na abordagem antropológica também se mostra como uma fértil contribuição teórica. No livro Digital Anthropology, editado por Horst e Miller (2012), o conceito do digital é traduzido como tudo que tem sido desenvolvido ou pode ser reduzido à lógica binária, aos bits constituídos de 0 e 1. Desse modo, os autores argumentam que pensando o digital como binário é possível delinear seus precedentes históricos. Afirmam, portanto, que o sistema monetário moderno e suas consequências para a humanidade são análogos às questões da cultura digital. Assim como o dinheiro, o digital representou uma nova fase da abstração humana: produziu, paradoxalmente, a comoditização, mas também a pluralidade de culturas e a diferença. Nesse sentido, ambos os processos se fundam na dialética: o virtual e as trocas simbólicas ampliam e democratizam as relações sociais, bem como produzem reflexos negativos. No clássico estudo de Simmel (1978), o dinheiro é a base para a mercantilização das culturas e a vasta produção de bens materiais. Esse aumento quantitativo é também uma potente fonte de alienação, pois ultrapassa nossa capacidade de apropriação cultural. Em certa medida, o debate entre o digital e o humano coloca em perspectiva a profusão de abstração virtual que nos invade e supõe algum nível de superficialidade e dispersão. Assim, a expansão do ambiente digital vai produzindo efeitos positivos e negativos. A pesquisa de Karanovic (2008) sobre os softwares livres relaciona tanto os efeitos positivos das novas formas de ativismo político juvenis pelas redes sociais, como salienta os conflitos institucionais que se agravam com a política de gratuidade no ambiente da internet. Na discussão entre políticas de gênero e ativação digital, Kelty (2008) documenta que a participação feminina em processos de open source é de apenas 1,5%. Verifica-se também que somente 13% dos autores que postam informações na Wikipedia são mulheres. Assim, a cultura digital reproduz desigualdades entre gêneros.

Um outro princípio relacionado à cultura digital refere-se ao debate sobre a autenticidade. A tese, por exemplo, de Turkle (2011) trabalha no sentido de revelar que a socialidade contemporânea gerou a perda do humano e como resultante, o processo tecnológico digital cria uma sociedade robotizada. Em contrapartida, Mandianou e Miller (2011) demonstram que a narração sobre a maternidade das mães filipinas que migraram para Londres e estabelecem relações transnacionais com os filhos é construída na mediação digital. Assim, a autenticidade das relações de parentesco, nesse contexto, pressupõe uma arena de mediação com as novas tecnologias. O mundo online é simplesmente outra arena ao lado do mundo offline para a prática expressiva da maternidade e não há nenhuma razão para privilegiar um em detrimento do outro.

O debate da cultura digital a partir do viés antropológico refere-se também à experiência etnográfica e o quanto é possível traduzir suas interpretações de modo holístico. Embora possamos considerar toda etnografia como uma descrição densa de uma cultura local, como já afirmava Geertz (1997), há três dimensões do processo antropológico: os registros da análise do indivíduo na cultura, as questões que dizem respeito à própria etnografia e as questões que traduzem visões globais. Na discussão entre o local e o global, o debate antropológico sobre o relativismo cultural se insere na análise sobre o digital. Miller (2011) ao analisar os modos de interação social de moradores de Trinidad com o Facebook, afirma que internet é sempre uma invenção local de seus usuários. Mas esses modos de apropriação devem ser depois relacionados com experiências correlatas de outras culturas para visões mais holísticas.

Por fim, ainda um ponto de reflexão sobre o discurso antropológico no ambiente digital é a ambivalência entre a abertura e o fechamento da visão de mundo. A teorização do dilema aparece na análise de Slater e Miller (2007) sobre o uso da internet em Trinidad. Os autores afirmam que a internet promove novas formas de aberturas, mas em seguida sofre novos constrangimentos e controles que geram ambivalência quando se pensa nas liberdades. O trabalho de Livingstone (2009) sobre crianças e os riscos da internet revela que, associados aos benefícios dos novos usos sociais da cultura digital, nota-se o crescimento do bullying virtual, da pornografia na rede, da profusão de sites pró-anorexia e imagens violentas que são compartilhadas por menores. Tais riscos são cada vez mais monitorados por pais, instituições escolares e governos. Morozov (2011) também observa que, assim como o Twitter, o Facebook e o Wikileaks ajudaram a facilitar os movimentos da Primavera Árabe, os regimes opressivos do Irã e da Síria usaram as tecnologias digitais para identificar ativistas e puni-los.

Todos os conceitos aqui alinhavados são fundamentais para a compreensão das narrativas digitais, em especial, o conceito de polymedia (Mandinou; Miller, 2011) que se apresenta como uma categoria teórica que compreende o processo de mediatização como uma questão que envolve escolhas dos sujeitos sociais. Como vimos, pesquisando sobre as relações de parentesco de famílias nas Filipinas em um contexto transnacional – as mães migraram para Londres a fim de buscar inserção no mercado de trabalho – Mandinou e Miller (2011) observam, por intermédio de um estudo etnográfico, como as famílias se relacionam por meios digitais: e-mail, SMS, voice, mensagens audiovisuais por Skype ou Facetime. Em seus relatos dessa experiência observam que, embora uma multiplicidade de meios esteja disponível para interação social, as escolhas para o uso são marcadas pelos vínculos socioculturais mais amplos, por questões afetivas e simbólicas. E é exatamente a compreensão desses relatos que interessa à narrativa antropológica.

Portanto, a partir do quadro teórico acima desenhado, cabe refletir agora sobre as formas de articulação da comunicação digital no Museu de Favela do Cantagalo, Pavão, Pavãozinho. Nesse sentido, investigo como os jovens se comportam socialmente ao interagir com as plataformas digitais.

Primeiras impressões do trabalho de campo no Museu de Favela – Cantagalo, Pavão, Pavãozinho

O Museu de Favela é uma associação de interesse comunitário, sem fins lucrativos, fundada em novembro de 2008 por moradores das favelas de Cantagalo, Pavão e Pavãozinho, entre Ipanema e Copacabana. O projeto nasceu como um plano museológico experimentalista, sem modelos nos quais se inspirar. O conceito: um museu a céu aberto com ênfase na libertação e afirmação cultural comunitária.

O museu territorial integral de cultura de favela, talvez o primeiro no mundo, tem dois modelos de acervos: exposições permanentes instaladas nas galerias, casas ou circuitos de visitação do museu a céu aberto (como na proposta do Circuito Casas Tela) e exposições temporárias (oficinas, festivais, intercâmbios em modo de eventos). Trabalha com a ideia de um museu vivo. Os circuitos também têm importante viés político porque dinamizam a região da favela com visitação, e a agência de negócios turístico-culturais do Museu de Favela (MUFTUR) colabora para que a comunidade produza ações de gastronomia, oficinas culturais, performances musicais e dança no contexto dos circuitos. Assim dinamizam também os fluxos de recursos financeiros na comunidade.

O primeiro circuito de exposições permanente do MUF são as Casas Tela. O projeto pinta a fachada de casas com temas ou narrativas de memória escolhidas pelos moradores. A ideia é que a experiência que conjuga memórias dos moradores e arte se expresse como um novo sentido de cidadania.

02. Casas Tela

Grafite das Casas Tela, a exposição permanente do Museu de Favela

A missão institucional do MUF é realizar a visão de futuro de transformar o Morro do Pavão, Pavãozinho e Cantagalo em Monumento Turístico Carioca da História de Formação das Favelas, das origens culturais do samba, da cultura do migrante nordestino, da cultura negra, de artes visuais e danças[3].

Exatamente no espírito dessa proposta, o curso Rio Geração Consciente foi oferecido. Nesse território me cabia discutir o tema da sociedade de consumo associado às práticas de preservação cultural da memória e de experiências culturais sócio-históricas que se revelassem nos registros simbólicos de linguagens contemporâneas do consumo.

Outro tema mobilizador no debate é a referência às novas tecnologias e aos projetos de afirmação cultural. Começamos investigando as redes sociais e seus modos de representação do mundo. Em debate, levei para o diálogo um capítulo do livro de Miller em Tales from Facebook, que reflete sobre todas as mudanças que as tecnologias digitais vêm produzindo na vida social: o direito à privacidade versus o excesso de exposição. Também a supervalorização do culto ao hedonismo, as práticas e regimes de visibilidades, bem como as novas formas de conexões, os novos acessos à informação e a possibilidade de atualização de vínculos. A ambiguidade do tema da inclusão e exclusão digital sempre norteou nossas conversas: a percepção dominante é a de que todos os atores sociais na favela desejam inclusão digital. A afirmação hegemônica dos discentes em 2012 era de que todos os amigos e parentes dos estudantes do curso, moradores de favela, eram usuários regulares das redes sociais, especialmente do Facebook, mas ainda alguns adeptos do Orkut. O ponto sensível ainda estava circunscrito na qualidade da conexão, na lentidão para downloads de produtos audiovisuais. E também na questão do tempo de dedicação, na medida em que computadores eram compartilhados ou usados em lan houses. Vale observar que, ao longo do ano de 2012, pudemos observar o fechamento de diversas lan houses no território do Cantagalo, Pavão e Pavãozinho. De acordo com os jovens da comunidade, a facilidade de conexão via celulares (smartphones), que passaram a ser mais acessíveis financeiramente para as classes populares, está progressivamente concentrando o acesso à internet e retirando o interesse de plataformas mais fixas, como computadores de mesa. Esse novo comportamento pode ser curiosamente observado em áreas de convivências na favela onde existem pontos de conexão wifi: jovens passam horas animadamente sentados nas áreas de influência da rede, produzindo novos ambientes híbridos: tanto físicos, de sociabilidade, onde a interação ocorre no espaço da comunidade, como também pelas redes sociais.

03. Facebook MUF

Cover da página do Facebook do Museu de Favela produzida pelo LUPA – ECO/UFRJ

Como já abordei, durante todo o ano de 2013 produzimos no Laboratório Universitário de Publicidade Aplicada (LUPA) ECO-UFRJ, uma parceria com o Museu de Favela para a criação colaborativa de uma revista digital, do hotsite do Favela Tour Cultural e da ativação da página do Facebook. Para o desenvolvimento desses materiais institucionais de comunicação, realizamos diversas investigações qualitativas sobre os hábitos de consumo de mídia digital na favela.

Estamos nesse momento realizando as primeiras reflexões sobre um survey com quatrocentas entrevistas desenvolvidas nas comunidades de Cantagalo, Pavão e Pavãozinho, com a população de ambos os sexos, de 18 a 30 anos, classe socioeconômica C1 e C2, público que é o mais expressivo em termos demográficos na favela, como relatam os documentos de pesquisa do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (IETS) e os dados da UPP-Social, com base no censo demográfico do IBGE de 2010. O tema central do estudo é investigar hábitos de mídia dos jovens moradores da favela, além de a imagem do Museu de Favela, e captar sugestões para ampliar o relacionamento da comunidade com o museu por meio da ativação digital.

Após o survey, selecionamos desse universo uma amostra não intencional qualitativa para produção de investigação antropológica sobre os modos de uso das redes sociais, sites, blogs e aplicativos para smartphones. O objetivo foi, por intermédio da observação participante, acompanhar os processos de escolha de mídias digitais, as formas de postagens, as narrativas preferidas, os gostos compartilhados socialmente de ambientes digitais na favela, assim como investigar os caminhos para potencializar as relações dos jovens com o Museu de Favela. Foi também realizado o acompanhamento de vinte jovens da comunidade, distribuídos em função da faixa etária, do local de moradia, bem como do grau de familiaridade com o projeto do Museu de Favela.

Todo esse material empírico coletado está sendo analisado e compartilhado com o grupo de pesquisa de Digital Anthropology coordenado por Daniel Miller, propiciando, assim, uma análise comparativa dos usos sociais que jovens moradores de uma favela no Rio de Janeiro fazem da tecnologia digital com aqueles efetuados por outros atores em países como Inglaterra, Trinidad, Indonésia, China, entre outros, frutos dos estudos de outros pesquisadores do grupo da University College London. Ao fim desse artigo apresentaremos os primeiros insights dos resultados desse estudo.

Afinando o olhar para investigar hábitos de consumo de mídia digital na favela

De acordo com pesquisa divulgada em fevereiro de 2014 pela Secretaria de Comunicação do governo federal, sob o título Pesquisa Brasileira de Mídia, a internet é o meio que mais cresce em todos os segmentos sociais no país. Embora o resultado ainda revele que um pouco mais da metade, (53%) da população brasileira não tem acesso à internet, outros (47%) são usuários frequentes, sendo que 26% acessam todos os dias da semana. Importante salientar também que entre os jovens brasileiros, apenas 21% não acessam, enquanto 48% usam a internet todos os dias.

Entre os 47% de usuários do ambiente digital, a média de horas gasta em um dia no computador é de 3h39. No Rio de Janeiro a média aumenta para 3h56. Quando se avalia qual (is) os meios digitais mais utilizados, 64% dos que usam a internet acessam o Facebook, com maior destaque para o público feminino (68%) e os de 15 a 25 anos (72%). Os demais sites, blogs ou redes sociais têm baixa adesão. Os mais citados: Globo.com (7%); G1 (5,8%), Yahoo (5%); Youtube (4,9%) e UOL (4,8%). Na avaliação nacional, 84% dos 47% que usam internet acessam do computador. Já do celular são 40%, contra 8% que usam tablets.

Em pesquisa realizada em 2010 pela Firjan discutindo posse de bens e acesso às tecnologias de informação e comunicação em favelas ditas pacificadas no Rio de Janeiro, observou-se que 70% dos moradores do Cantagalo possuem celulares, contra 79% do Pavão Pavãozinho. São 45% os que possuem computador no Cantagalo, mas apenas 16% com acesso à internet. Já no Pavão- Pavãozinho, 31% possuíam computador e apenas 11% com acesso à internet.

Outro estudo realizado pelo IETS, também em 2010, revela que 60% dos moradores do Cantagalo têm contratos de celular pré-pago em 2010, contra 54% que usam telefonia fixa. Observa-se que a inclusão digital é crescente no morro, uma vez que mais de 50% dos domicílios possuem computadores, sejam eles com ou sem acesso à internet. No Pavão-Pavãozinho, 71,5% possuem contratos de celular pré-pagos contra 35,7% que preferem telefonia fixa. Em 2010, 7% da população tinha preferência por celular pós-pago. Quase a metade dos domicílios possui computadores (49%), com ou sem acesso à internet.

Em ensaio exploratório que fizemos no Cantagalo, Pavão, Pavãozinho em 2013, identificamos que entre os jovens de 20 a 34 anos, de ambos os sexos, as atividades mais realizadas na internet são:  acessar sites em comunidades virtuais como Facebook, Orkut e Myspace (34%); atualizar/publicar em comunidades virtuais (29,5%); enviar/receber e-mails (21%); enviar/receber mensagens instantâneas como MSN ou Facebook Messenger (19%); ler notícias nacionais (17%); consultar mapas, rotas, endereços tais como Google Maps (15%); assistir ou baixar fotos e vídeos (15%); fazer upload de fotos ou vídeos em sites de compartilhamento (13%); consultar guias de informações locais (12%). As mulheres gostam também de consultar sites de astrologia/horóscopo (22%); consultar a previsão do tempo (23%); procurar parceiros online/namoro (23%). Já homens estão mais inclinados a jogar games virtuais online (21%) e visitar sites esportivos (20%).

As informações levantadas nos sugerem que o crescimento da ativação digital no complexo do Cantagalo, Pavão e Pavãozinho já é uma realidade, assim como em outras favelas. Um fato relevante do comportamento de uso dos meios digitais é a profusão de interesses por redes interativas. A cultura colaborativa de enviar e receber fotos, vídeos, trocar mensagens por SMS ou Facebook Messenger é recorrente. Assim como a vivência lúdica de jogar games interativos. Tais experiências nos levam a crer que os laços de sociabilidade e a cultura interativa entre os moradores da favela se desdobram para o mundo digital.

Nesse sentido, propomos para o Museu de Favela a ampliação de suas ferramentas interativas digitais como página no Twitter, maior ativação do Facebook, a criação das hashtags (#museudefavela; #cinemufcaixadagua; #casastela; #mulheresguerreiras) para compartilhar vivências que os moradores experimentaram no MUF; assim como o Instagram para produção em rede de olhares fotográficos da própria comunidade sobre o Museu ou sobre as cenas que os moderadores desejarem documentar do seu dia a dia. Nosso estímulo se deu na direção de imaginar que o processo de memória do território pode ocorrer em um ambiente colaborativo com os próprios moradores sendo atores e autores de seus registros (fotos, vídeos, produções artísticas, textos) de suas experiências, não só com o Museu de Favela, mas com a narração da vida e dilemas da juventude que reafirma seu papel social em um território que ainda vive da dualidade da inclusão e da exclusão.

Achados preliminares sobre ativação digital no Cantagalo, Pavão, Pavãozinho

Para ampliar o nosso conhecimento sobre os usos sociais das mídias digitais no morro e tornar a ativação digital do Museu de Favela mais integrada à comunidade, iniciamos nosso trabalho de campo com um survey que buscou identificar o tempo dedicado às redes sociais, as plataformas preferidas, hábitos de usos e motivações. A intenção de iniciar nosso projeto com uma amostra quantitativa vai de encontro à problemática da escassez de dados secundários quando se estuda um tema de vanguarda como mídia social, especialmente no espaço político da favela, que sofre historicamente com essa falta de informação. Portanto, de acordo com a nossa amostra[4] de 400 entrevistas com jovens moradores de 18 a 25 anos e adultos de 26 a 45 anos, verificamos que 76% dos residentes vivem com uma média de um salário-mínimo como renda familiar mensal. Embora a taxa de desemprego seja pequena, o grau de informalidade com o mercado de trabalho é alta: 59% são registrados como trabalhadores formais; 18% são trabalhadores informais; 4 % são servidores públicos ou militares; 13% trabalham por conta própria e 7% não sabem definir em que categoria trabalham. Se a taxa de desemprego é baixa, a informalidade gera muita insegurança. Quando apresentamos esses dados para as lideranças locais do Museu de Favela, debatemos sobre a correlação entre a instabilidade da relação com o mercado de trabalho e o hábito de consumo de celulares e a viabilidade econômica de acesso à internet. Um representante local do Museu de Favela argumentou que os moradores de favela sempre desejaram os objetos de consumo da classe média. Lembramos do desejo de consumo de jovens das classes populares por tênis de marca e compreendemos esse processo menos como tradução de símbolo de status e muito mais como signo de acesso e inclusão social nos espaços públicos frequentados por jovens de classe média, como shoppings, por exemplo. Assim, podemos concluir que, atualmente, o desejo de consumo de aparelhos celulares aparece como oportunidade de inclusão no ambiente sociocultural da internet. Mais do que aparentar poder com um celular moderno no bolso, para o jovem da favela, usar uma tecnologia como 3G viabiliza navegar na internet com velocidade, já que os sistemas operacionais de internet discada são muito precários em rapidez para downloads. Os dados da pesquisa revelam que 76% dos moradores da favela entrevistados têm acesso à internet, comparados com os 24% que ainda são digitalmente excluídos. Dos que têm acesso ao mundo digital, 42% usam computadores pessoais; 32% têm telefones celulares; 4% acessam de lan houses; 4% da escola/trabalho; 1% de tablets e 1% da casa de amigos. Nossos achados também endossam que o movimento de ativação digital só vem crescendo na comunidade. São 25% os que ficam conectados o dia todo; 35% dedicam a noite para acesso à internet; 19% as tardes e 4% as manhãs. O número de horas de acesso também é bem expressivo: 15% ficam conectados o dia todo, enquanto 27% passam em média três horas por dia na internet; 25% em média duas horas; 15% até cinco horas; 7% mais de uma hora; 6% em média quatro horas e 4% em média oito horas. As plataformas preferidas na comunidade são: Facebook (99%), Whatsapp (85%) e Instagram (62%). Também investigamos as motivações centrais para o uso das redes sociais: 98% usam para enviar e receber mensagens de texto e fotos; 75% usam o chat ou inbox, especialmente do Facebook; 60% costumam falar por mensagens de voz no celular; 50% enviam áudio e vídeo pela webcam; 30% usam e-mail para trocar mensagens e 25% têm o hábito de enviar mensagens via SMS. O uso do telefone celular vem crescendo muito também: 91% dos respondentes têm acesso à telefonia móvel; destes, 54% já usam celulares smartphones. E o sistema operacional dominante é o Android / Google com 85% contra 8% que usam Apple / IOS e 7% que usam Windows / Microsoft.

Miller (2011), quando analisou os modos de interação social dos residentes em Trinidad com o Facebook, concluiu que os usos sociais da internet são essencialmente locais. Por exemplo, eles chamam o Facebook de “fasbook” ou “macbook”, pois “fas” ou “maco” na cultura de Trinidad remetem à noção de afetividade, vínculo social. Esse caso revela a importância do relativismo cultural no mundo digital. Em nossas etnografias com jovens da comunidade pudemos observar que os residentes do Cantagalo, Pavão e Pavãozinho sempre chamam o Facebook “face” como um carinhoso apelido, revelando a boa relação que mantêm com a interface. Enquanto isso, Whatsapp é jocosamente nomeado de “zap, zap”. A expressão se popularizou na comunidade através de um vídeo viral na internet de uma senhora de classe popular que, em um depoimento autoral, reclama da dispersão das filhas adolescentes depois que passaram a usar o Whatsapp. Ela sugere que suas filhas não se engajam em mais nenhuma atividade que não seja “falar no zap, zap”. O tom da sua fala é muito engraçado e reflete as concepções que nós propomos aqui. É interessante extrair um trecho de seu depoimento: “… antes minhas filhas chegavam em casa e varriam a casa, tiravam pó do chão, arrumavam as camas, mas agora acordam e de camisola mesmo começam no zap, zap, nem escovam mais o dente… mesmo que eu grite, é só no zap, zap… por Deus, quem inventou esse tal de zap, zap? Se alguém está me ouvindo, se alguém souber alguma reza pra livrar minhas filhas do zap, zap, alguma autoridade… é só zap, zap, meu Deus!”. Depois que esse vídeo se espalhou pelas redes sociais, uma vasta produção digital foi criada no Youtube com a paródia do zap, zap. O clipe mais popular na rede é do Mr.Galiza com mais de um milhão de visualizações e trata-se de uma dança com a coreografia do zap, zap. Um pedaço da letra é sugestivo do imaginário social sobre a plataforma: “Oh meu Deus… é na escola ou no trabalho / todo mundo viciado no zap, zap / Quem tem zap, zap levanta a mão?”. Há ainda outro vídeo de Mark Ball que sugere: “Ela não anda, ela desfila / Ela é fashion, capa de revista / Tira foto no espelho para postar no Facebook”.

Toda a produção cultural salientada reflete como, no imaginário social das classes populares, as plataformas digitais já estão incluídas nas retóricas sobre a vida cotidiana. As preocupações dos pais são com a intensidade de uso social da internet pelos filhos: a dispersão, os riscos, o desejo de controle. Os dados apontam também para a reflexão sobre a afetividade com as plataformas pela forma carinhosa como tratam Facebook e Whatsapp. E ainda a temática da produção de subjetividade via selfies, assim como evidencia o cruzamento dos discursos religiosos e políticos de acesso à inclusão digital.

Todas essas expressões, em suma, nos ajudam a delinear os aspectos culturais associados à dimensão da democratização do acesso digital em contextos populares de usos de tecnologia com baixo custo. Assim, como primeiros achados de nossas investigações sobre usos sociais da internet no Cantagalo, Pavão e Pavãozinho, podemos inferir que a qualidade da ativação digital na favela mantém profunda correlação com a dinâmica do território. O forte senso de sociabilidade, as representações da espiritualidade, o tom do humor e o clima jocoso do estilo de vida, bem como o desejo de reafirmação da favela como um espaço criativo e socialmente relevante e em interação constante com a cidade são os temas predominantes nos usos sociais do Facebook e do Whatsapp.  Assim, convergimos com a percepção de Miller (2014) de que as mídias sociais são espaços culturais privilegiados para compreensão antropológica das dinâmicas sociais e que refletem profundamente as contradições contemporâneas de cada localidade em sua especificidade.

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* Monica Machado é professora adjunta da Escola de Comunicação da UFRJ. E-mail: monica@insider.com.br

 

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Notas

[1] Este estudo de pós-doutorado também faz parte do grupo de pesquisa “Imaginários Urbanos”, do Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC), vinculado ao Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Letras da UFRJ. O projeto também pertence ao núcleo de pesquisa de Coordenação Interdisciplinar de Estudos Contemporâneo (CIEC) vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da Escola de Comunicação da UFRJ.

[2] As duas primeiras edições da revista digital do Museu de Favela (MUF) produzidas por nosso núcleo LUPA ECO/ UFRJ podem ser consultadas em:  http://issuu.com/bernardoremus/docs/muf_revistadigital_n1. Acesso em 17 dez. 2013.

[3] Mais detalhes sobre o Museu de Favela podem ser obtidos no site: www.museudefavela.org. Acesso em 10 abr. 2014.

[4] A amostra foi quantitativa e estratificada por cotas, com base nos dados estatísticos do Censo de 2010 e nos relatórios da UPP-Social Cantagalo, Pavão, Pavãozinho também de 2010.

Virtual e urbano: espaço e esfera pública em contexto digital

O objetivo geral deste texto é investigar dois eixos de questões – o primeiro, ligado à área de estudos urbanos, sobre a conexão entre as noções de espaço público e esfera pública, no contexto sócio-histórico do Rio de Janeiro das primeiras décadas do século XXI. O segundo eixo, vinculado às análises sobre o digital, se detém sobre as relações entre o ciberativismo e a atuação política no espaço público urbano. Em última instância, trata-se de refletir sobre o impacto do virtual sobre as práticas políticas contemporâneas.

Começando com o primeiro eixo de questões, é preciso esclarecer que tomo aqui a definição de espaço público tal como é colocada por Goffman (2010), como “territórios não privativos”, ou seja, como determinados locais de uma comunidade em que, segundo ele, o acesso é franqueado a todos. Desta forma, neste conceito não está envolvida a centralidade da ação política; dito de outra forma, estes locais podem ou não estar permeados por discussões, manifestações ou negociações de direitos, deveres e consensos.

Já a noção de esfera pública, lembrando Habermas (2014), deve ser situada dentro do campo do debate sobre representações e práticas políticas coletivas, da construção de consensos a respeito de ações que afetem a vida dos grupos em sociedade. Nesta direção, a esfera pública se coloca como dimensão de mediação entre a vontade de um Estado-nação e daquilo que constituiria a “sociedade civil”, uma ponte entre Estado e comunidade que se caracterizaria pela apresentação e discussão dos desejos e ações dos diversos grupos sociais vis-à-vis seus representantes no aparelho de Estado.

Na área dos estudos urbanísticos, estas duas noções parecem quase se confundir, a ponto de Abrahão (2008), por exemplo, sugerir que as intervenções urbanísticas ao longo do século XX tinham como uma questão central responder a demandas de cidadania, democracia e participação social. Assim, deste ponto de vista, intervir na arquitetura da cidade era não apenas garantir a possibilidade de uma “ordem democrática”, mas construí-la.

Assim, deste ponto de vista, as ações sobre as cidades se alicerçam em um modelo de espaço público que se conjuga ao de esfera pública; desta forma, quando se ordena o espaço, pensa-se em ordenar opiniões, atitudes e movimentos coletivos.

Nos primeiros anos do século XXI, o panorama das discussões acadêmicas sobre a cidade – meu primeiro eixo – dava conta do declínio do espaço público. Desta forma, a ocupação de praças e ruas e na mesma direção a expressão da vontade coletiva através desta ocupação, era considerada “coisa do passado”. Impulsionada basicamente por crises econômicas, altos índices de criminalidade e violência urbana, pela desconfiança na ação política tradicional e principalmente pelo lazer proporcionado pela nova onda tecnológica, a assim chamada “nova cultura indoors” se definia pela comunicação online, pela permanência dos “cidadãos” em casa e pela rejeição da circulação e uso político das ruas. De nosso canto do mundo, me parecia que havia algum sentido nisso. O aumento vertiginoso do uso das redes sociais, dos games, da insegurança e da violência urbana também era sentido no Brasil; o refluxo da movimentação política – comícios, showmícios, passeatas – nas ruas e praças igualmente fazia parte do cenário brasileiro.

Entretanto, em 2011, com a chamada Primavera Árabe, os movimentos dos indignados espanhóis, as manifestações na Grécia contra a política econômica de seu governo, e os diversos Occupy espraiados pelo mundo, também em 2011, foi possível indicar que a decretação de morte do espaço público e de sua conjugação à ideia de esfera pública era prematura.

Nacionalmente, vimos crescer a volta às ruas a partir das manifestações que se iniciaram com protestos contra o aumento da tarifa no transporte público e se tornaram massivas expressões populares, as conhecidas “jornadas de junho” de 2013. Para além destes movimentos mais gerais, verificamos também a construção de ações periféricas, como o Ocupe Estelita, Ocupa Alemão e o Ocupa Maré, entre outras, que tentam canalizar as reivindicações de seus moradores para sua expressão em cenário público, em seus próprios locais de moradia. Enfim, temos, do ponto de vista dos estudos urbanos, um recrudescimento da conexão entre espaço público e esfera pública, através do aumento da participação política nestes espaços.


Arte urbana no Beco do Batman, SP
(Fonte: Instagram – Fotografia de Ivan Mussa)

Curiosamente, na virada do século e nos primeiros anos do século XXI, no campo dos estudos socioantropológicos sobre o novo ambiente digital, igualmente duas posições magnetizavam e polarizavam aqueles que refletiam as novas tecnologias da comunicação. Sem dúvida, o grande avanço tecnológico dos últimos anos, associado ao surgimento das novas mídias eletrônicas, tem produzido mudanças substanciais na sociedade, influenciando padrões de consumo, processos de produção material, de conhecimento e comunicação. Há muito estamos envolvidos na rotina dos caixas eletrônicos, cartões magnéticos, telefonia celular e outras utilidades que trazem uma nova lógica e uma nova maneira de organização social.

A chamada revolução informacional se intensificou nos anos 1990 com a propagação da internet, permitindo o rompimento de barreiras geográficas e facilitando a livre circulação de informação e conhecimento. Nos dias atuais,

[…] Os locais são completamente penetrados e moldados em termos de influências sociais bem distantes deles. O que estrutura o local não é simplesmente o que está presente na cena; a “forma visível” do local oculta as relações distantes que determinam sua natureza. (Giddens, 1991, p. 27)

Muitos são os debates e poucos os consensos sobre as consequências e implicações do acesso e uso das novas tecnologias, em especial a internet, na sociedade. Duas vertentes teóricas polarizaram desde o início o debate. Os apologistas, como o filósofo francês Pierre Lévy e o sociólogo espanhol Manuel Castells, percebem a internet como um veículo libertário. Enquanto isso, os críticos, representados principalmente pelo sociólogo francês Jean Baudrillard e pelo arquiteto, urbanista e filósofo francês Paul Virilio, a veem “como um veículo de destruição do espaço público e de controle dos cidadãos pelo estado e pelas empresas” (Sorj, 2003. p. 57). É curioso notar que, nos anos 1960/1970, outro meio de comunicação, quando de seu surgimento, também foi alvo de intenso debate; dois polos estabeleceram seus argumentos e contra-argumentos contra a televisão, num cenário muito bem descrito por Eco (1987) como um embate entre “apocalípticos” e “integrados”.

Por nossa vez, em relação às Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs), e na tentativa de aprofundar a discussão, propomos um pequeno mapeamento teórico a respeito deste debate. Pierre Lévy e Manuel Castells, apologistas, e Paul Virilio e Jean Baudrillard, críticos, foram escolhidos entre tantos outros pelo fato de que suas análises e teorias sobre os efeitos das tecnologias digitais no mundo contemporâneo apresentam as principais abordagens que se tornaram rapidamente clássicas, e vêm sendo citadas por diversos outros pesquisadores mais recentes do tema.

Manuel Castells (1999) analisa minuciosamente as transformações sociais e econômicas que ocorrem na era da informação examinando o ritmo acelerado das descobertas e aplicações da tecnologia e suas implicações. A sociedade em rede, segundo ele, seria, assim, a nova forma de relacionamento entre as elites e as empresas, determinando uma revolução nos negócios e na forma de se viver. Para Castells, os processos dominantes na era da informação estão cada vez mais organizados em torno de redes, e

[…] a presença na rede ou a ausência dela e a dinâmica de cada rede em relação às outras são fontes cruciais de dominação e transformação de nossa sociedade: uma sociedade que, portanto, podemos apropriadamente chamar de sociedade em rede, caracterizada pela primazia da morfologia social sobre a ação social (Castells, 1999, p. 497).

No entanto, faz a ressalva de que a influência tecnológica será tanto maior quanto melhor forem as condições sociais e econômicas. Assim, chega a mostrar-se pessimista quanto ao processo de difusão tecnológica entre os mais pobres, quando afirma que a comunicação mediada por computadores “excluirá a maior parte da humanidade por um longo tempo” e, como tal, “ficará sob o domínio de um segmento populacional instruído nos países mais desenvolvidos” (Castells, 1999, p. 382).

Considerado um dos maiores especialistas em cibercultura e autor de diversos livros sobre o assunto, Pierre Lévy compreende o espaço virtual como sendo o terreno onde a humanidade vive e interage nos dias atuais. Considera que esse novo espaço de interação é extremamente importante nos planos econômico e científico, e que essa importância atinge vários outros campos da vida humana.

Para Lévy, a metáfora do impacto é inadequada quando se quer referir-se aos reflexos das novas tecnologias da informação sobre a sociedade ou a cultura, pois neste contexto, a tecnologia seria algo comparável a um projétil e a cultura ou a sociedade a um alvo vivo:

As técnicas viriam de outro planeta, do mundo das máquinas, frio, sem emoção, estranho a toda significação e qualquer valor humano, como uma certa tradição de pensamento tende a sugerir? Parece-me pelo contrário, que não somente as técnicas são imaginadas, fabricadas e reinterpretadas durante seu uso pelos homens, como também é o próprio uso intensivo de ferramentas que constitui a humanidade enquanto tal (junto com a linguagem e as instituições sociais complexas) (Lévy, 1999, p. 21).

Assim, ao invés de avaliar seus “impactos”, deve-se formular projetos capazes de explorar a virtualidade que ela transporta e decidir o que fazer dela. A rede, para Lévy, é universal sem totalidade, ou seja, a rede de computadores permite às pessoas conectadas construir e partilhar a inteligência coletiva sem se submeter a qualquer tipo de restrição político-ideológica. Partindo deste princípio, Lévy encara a internet como um agente humanizador (porque democratiza a informação) e humanitário (porque permite a valorização das competências individuais e a defesa dos interesses das minorias).

O autor cunhou a expressão “inteligência coletiva” para indicar que a internet possibilita a troca de ideias, torna possível compartilhar informações e interesses comuns, e estimula a criação de comunidades e conexões[1]. Para ele, a revolução informacional constitui, portanto, a surpreendente realização do objetivo marxista de apropriação dos meios de produção pelos próprios produtores. Ainda assim, pondera que nem a informática nem o ciberespaço resolvem, com sua existência, os principais problemas da vida em sociedade. De certa forma, ao romperem com os antigos, participam da criação de novos, menos visíveis e mais instáveis poderes.

Jean Baudrillard, pensador francês que decidiu não utilizar novas tecnologias como celular e computador, afirma que, na era da “chantagem da comunicação”, a internet, mais que qualquer outro meio de comunicação, nos torna escravos da comunicação forçada, a que chama de “êxtase da comunicação” (Baudrillard, 1998, p.12).

Toda essa interrogação sobre o virtual torna-se hoje ainda mais delicada e mais complexa por causa do extraordinário blefe que a cerca. O excesso de informação, o forcing publicitário e tecnológico; a mídia, o deslumbramento ou o pânico – tudo concorre para uma espécie de alucinação coletiva do virtual e de seus efeitos (Baudrillard, 1998, p. 12).

Para Baudrillard, a comunicação não passa de um grande fenômeno consumista, e que a massa avassaladora de informações torna tudo disperso, volatilizado. Numa perspectiva niilista, acredita que as gerações nascidas na era da internet não terão ideia do que possa existir fora do mundo virtual.

Arquiteto, urbanista e filósofo,  Paul Virilio é pessimista e vê na nossa sociedade um alto risco, que ele costuma chamar de “ditadura da velocidade”. Sua inquietação diz respeito ao fato de acreditar que, nos dias atuais, o “tempo real” depende cada vez menos do espaço.

Com esse FALSO DIA produzido pela iluminação das telecomunicações, levanta-se um sol artificial, uma iluminação de emergência que inaugura um novo tempo: TEMPO MUNDIAL em que a simultaneidade das ações logo supera seu caráter sucessório (Virilio, 1999, p. 20).

A reflexão inconformista de Virilio e o tom dramático de suas palavras refletem sua preocupação com a instantaneidade e a imediatez do mundo atual. O filósofo francês acredita que, com o desenvolvimento dos transportes e da tecnologia de comunicação instantânea, o mundo de hoje convive com uma poluição dromosférica, de dromos, corrida.

Em seu livro O espaço crítico, escrito em 1993, Virilio faz um tratado radical contra as novas tecnologias que, segundo ele, tornam os homens – antes “nômades” e eternos buscadores de novos terrenos – “sedentários”, cujo espaço é a cadeira em frente ao computador. Essa é uma de suas principais críticas ao mundo informatizado: a de que o espaço humano se reduziu, restringindo a mobilidade das pessoas.

Para Virilio, com a invenção da internet, as pessoas se comunicam à distância e em breve não haverá mais relevo, não haverá mais toque. Todos nós estamos fadados, segundo ele, à inércia da comunicação televisionada. Dessa forma, o que temos é que o debate em torno das potencialidades da internet é caracterizado pela polarização entre os que a veem como um “instrumento de libertação e aqueles que a percebem como um mecanismo de destruição do espaço público e de controle dos cidadãos pelo Estado e pelas empresas” (Sorj, 2003, p. 57).

São olhares diferentes e, na maior parte das vezes, antagônicos. As posições que se confrontam, na verdade, percorrem as limitações e possibilidades, ameaças e promessas das novas tecnologias. No esforço de compreender as complexas imbricações entre os limites e as potencialidades da internet, pode-se argumentar que as diferentes posições em torno de seus efeitos estão presentes na sociedade e que, dependendo do resultado dos confrontos sociais, podem tornar-se dominantes. Para Sorj (2003, p. 57), é possível encontrar, na atualidade, tanto o efeito de potencialização da vida democrática quanto a fragilização da privacidade e da liberdade pelo controle da informação.

Em suma, de modo geral, a perspectiva otimista reúne argumentos que afirmam que a partir da internet:

i) a informação não se encontra mais restrita aos grupos econômicos que tradicionalmente centralizavam os veículos de comunicação;

ii) é possível aumentar e modificar a participação dos cidadãos na gestão e nas decisões governamentais através de consulta permanente sobre os mais variados temas;

iii) O indivíduo passa a ter direito a voz, à informação e à discussão de sua realidade de maneira irrestrita e sem intermediários;

iv) o intercâmbio cultural pode acontecer com mais facilidade, propiciando o enriquecimento da experiência coletiva;

v) o trabalho de monitoramento e controle de epidemias tem se tornado mais fácil;

vi) tornou-se fácil o acesso a banco de dados, bibliotecas e todo tipo de informação.

Numa perspectiva pessimista, alinham-se os que consideram que:

i) apesar do potencial para explicitar a diversidade cultural, a massa de informações que circula na internet representa um reflexo da dominação cultural exercida pelos que detêm o poder econômico;

ii) a rede se expande velozmente nos países centrais, mas nos países periféricos, a participação ainda é pequena;

iii) Não há como esperar pluralidade se apenas uma parte da população participa desse processo – notadamente a parcela da população que está à frente dos processos de produção e difusão da informação;

iv) a internet destrói as relações face a face, único meio capaz de gerar grupos com memória histórica e base de sustentação de uma vida pública e de ação política constante;

v) o mundo virtual facilita o controle do Estado e das empresas sobre o cidadão e leva à destruição da liberdade e da privacidade.

Avançando um pouco mais na análise, observa-se em comum, nas duas vertentes, o reconhecimento de que os avanços tecnológicos estão empreendendo inéditas e profundas transformações em todas as dimensões da vida social. Entretanto, observa-se diferenças cruciais na forma de encarar tais transformações, particularmente no que diz respeito às suas implicações políticas e, portanto, às reverberações que provocam nas relações sociais de poder e dominação.

Política.com

Centrando sua análise justamente nos desdobramentos políticos do uso das novas tecnologias, Moraes (2001), de forma otimista, irá apontar a formação de um novo tipo de ativismo, o ativismo digital, que contemporaneamente galvaniza o esforço de criação de uma “contra-hegemonia”. Assim, utilizando o ferramental teórico de Gramsci, advoga que a internet e as redes sociais têm servido cada vez mais para a formatação, divulgação e expansão de demandas dos mais variados grupos sociais, à revelia do pensamento conservador, produzindo alternativas de futuro em relação aos segmentos sociais no poder em diversos países no mundo.

Nesse sentido, segundo esse autor, as TICs teriam uma potencialidade revolucionária, do ponto de vista político, o que poderia ser visualizado em sites mantidos por algumas organizações e movimentos – entre eles, os feministas. Assim, cita o coletivo feminista Penélopes, cuja líder Joëlle Palmieri, é incisiva em afirmar que é preciso deixar o campo do simples esforço de combater a desinformação ou a informação tendenciosa, para investir em novas formas de trocar e produzir novas ações comunicacionais e políticas.

O uso político das redes por parte de organizações dos mais diferentes tipos vem sendo apontado e reconhecido por vários estudos mais recentes. Assim, a internet vem servindo de base de comunicação mais rápida, de mobilização e de ampliação de visibilidade de movimentos sociais, tanto progressistas quanto conservadores. Nesse sentido, é um uso já comum das novas tecnologias tornar visível e atuante na rede uma presença pré-existente no “mundo real”, ou, através do meio digital, expandir o alcance de organizações sociais como partidos, sindicatos, movimentos sociais organizados com as mais diversas demandas.

Nesse caso, a aceleração do tempo de recepção da mensagem é o grande ganho. Desta perspectiva, a utilização da internet segue a tradição instrumental da busca de rapidez na propagação de conteúdos através de inovações tecnológicas, algo que na modernidade se constata desde Gutenberg e a possibilidade de impressão de textos, por exemplo. Agora, a rede é mais um meio a ser usado.

Porém, os desdobramentos do uso do digital vêm apontando para outras direções e outras formas de relação política com estes meios. Volta-se aqui aos acontecimentos de 2011 nas ruas de várias partes do mundo. Sim, desde então, é possível falar não numa morte do espaço público em favor da vida doméstica, ou de uma rede particular e individual, mas numa revitalização da conexão entre esfera pública e espaço público. Sem dúvida, isso reflete, em alguma medida, o uso da rede tal como acima descrito: manifestações convocadas por movimentos sociais organizados que enchem praças, ruas, avenidas.

Todavia é possível perceber também que as redes sociais cumprem o papel de convocar e compartilhar não apenas a partir de grupos, mas também – e em boa medida – a partir de indivíduos. A ideia de “comunidades com o mesmo interesse” nos faz lembrar das regiões morais da cidade de que nos falou Park (1967); nelas, se uniam indivíduos para exercitarem seus interesses em comum. Para além de organizações e coletivos, serão então neste caso as relações interpessoais que farão o papel de criar demandas, bandeiras, movimentos e manifestações. Nesta direção, passa-se a valorizar justamente a ausência de lideranças, de partidos ou grupos de suporte e apoio, e o uso dos meios digitais passa a espelhar o que muitos autores já analisaram como sendo a “crise da política institucional”: a desconfiança em relação a modelos tradicionais de se fazer política, como partidos, o sistema representativo, sindicatos e movimentos organizados. Neste caso, o meio não propaga o que já existe; cria uma outra forma, por vezes contrária, em outras complementar, em relação ao pré-existente. De toda forma, nestes dois casos, esta “ágora”, ou “esfera pública”, conformada digitalmente, se conecta ao espaço público, é a ele endereçada e nele se atualiza.

Outra forma de considerar a relação entre a política e o meio digital, porém, não tem a ver com esta conexão, mas sim com a configuração individual da política em nossos tempos. O tuitaço – uso do Twitter por militantes, no mesmo horário e durante determinado tempo, em favor de uma causa – tem como meta colocar determinado assunto entre os mais comentados do Twitter. Para isso, gira em torno de uma palavra ou expressão – as hashtags.  Essas palavras de ordem, criadas individual ou coletivamente, vão “tomando a rede” a partir da ação de cada internauta que a ela adere, comenta e compartilha.

A “invasão” de sites, páginas, perfis, blogs de organismos sociais, instituições governamentais e grandes corporações privadas também comunicam uma intenção muitas vezes não de coletivos, mas de indivíduos insatisfeitos. Isto pode se dar através de uma ação “hacker”[2], como a invasão pura e simples de páginas e compartilhamento/modificação de informações ali postadas, ou “derrubando” a página em questão a partir de uma sobrecarga forçada; ou também através do que se chama de “trollar”, ou seja, fazer piada ou ridicularizar alguém através de comentários na sua própria página ou em algum fórum. Dessas formas, desestabiliza-se direta e imediatamente a entidade que se quer atacar politicamente.

Investigando ainda o comportamento político na internet, pode-se citar o agenciamento “contratado” de indivíduos ou equipes por partidos, grupos, empresas e movimentos que se expressa através da constituição de perfis falsos nas redes sociais, que divulgam as ideias, campanhas, candidatos e produtos promovidos por seus financiadores.

Nesses sentidos, a “política na rede” não se destina a ocupar fisicamente o espaço público; descolam-se, nesse nível, a esfera pública e o espaço público, um amálgama, como vimos antes neste texto, bastante consolidado ao longo da história das sociedades complexas. Nesse amálgama, o papel dos meios de comunicação seria justamente este: ser o meio, não o motor ou o cenário da política.

Isso não significa, porém, separação total. Nem, ao contrário dos maus augúrios profetizados pelos apocalípticos digitais, o “fim do espaço público” e/ou da “esfera pública”. Mas é preciso pensar em novas configurações.

Nessa pista, é necessário também examinar algumas novidades nas próprias manifestações de rua. Em primeiro lugar, o caráter espetacular se expande, superenfatizado. São “selfies de manifestação” que inundam as redes sociais a cada novo ato público; são as fantasias, os cartazes feitos individualmente, os vídeos. Os indivíduos que aceitam ir às ruas não (apenas) seguem carros de som, palavras de ordem alheias ou faixas coletivas. Clamam por atenção “personalizada”. Também neste quadro de produção da manifestação “customizada”, fotos de amigos que se encontram nos atos também vão para a rede, e fortalecem as conexões entre as relações interpessoais e as manifestações políticas.

Selfie de manifestação
Selfie
de manifestação
(Fonte: http://farofafa.cartacapital.com.br/2015/03/16/15-de-marco-de-2015-dia-da-mentira)

A chamada “sociedade da informação” tem sido objeto de importantes investigações no mundo acadêmico e é caracterizada, por diversos autores, como a nova “ágora”, a ágora digital, onde a informação flui e está universalmente disponível. Mais recentemente, tentando pensar a conexão entre esfera e espaço públicos em tempos digitais, Castells (2013) indica a criação de um novo espaço público, um “espaço em rede, situado entre o digital e o urbano”, ou de um “espaço híbrido”, que se caracterizaria por uma comunicação autônoma entre os agentes sociais (p. 21). E sinaliza ainda a importância de situar o debate/disputa/conflito entre redes de poder e de contrapoder, sendo estes últimos responsáveis por agenciamentos e manifestações neste espaço híbrido. Sem dúvida, estas importantes observações precisam ser levadas em conta – tanto quanto seu contexto de produção, ou seja, o auge do movimento anticapitalista Indignados, na Espanha nativa do autor, e o viés entusiasta, estratégico e político que se reflete no próprio título de seu estudo – Redes de indignação e esperança.

Na Av. Rio Branco, Rio de Janeiro, faixa de manifestantes evidenciando a imbricação entre os espaços físico e digital.
Na Av. Rio Branco, Rio de Janeiro, faixa de manifestantes evidenciando a imbrica
ção entre os espaços físico e digital.

(Fonte: www.istoe.com.br)

Num pequeno texto de 2012, refletindo sobre a presença de mulheres nas manifestações de rua por todo o mundo a partir de 2011, Judith Butler acrescenta novos ingredientes ao debate, indicando a necessidade de se pensar os significados do “espaço público” e do político, não como algo já dado, mas antes como algo em construção e mais que isso, em disputa:

En los últimos meses, se han producido, una y otra vez, manifestaciones de masas en la calle, en la plaza, y aunque estas están, muy a menudo, motivadas por diferentes razones políticas, sucede algo que las hace parecerse; los cuerpos se juntan, se mueven y comunican, y reclaman un determinado espacio como espacio público. Ahora, sería más sencillo decir que estas manifestaciones o, de hecho, estos movimientos, se caracterizan por los cuerpos que se reúnen para hacer un reclamo en un espacio público, pero esa formulación supone que el espacio público está dado, que ya es y se reconoce como tal. Pasamos por alto un punto importante de las manifestaciones si no somos capaces de ver que el mismo carácter público del espacio está en disputa, e incluso que ese espacio es peleado cuando estas multitudes se reúnen (Butler, 2012, s/p.).

Um olhar mais distanciado no tempo, e pensando no contexto recente brasileiro das manifestações de 13 e de 15 de março – a favor e contra o governo atual do país – permite supor que tanto as redes de poder quanto as de contrapoder são menos uniformes e unívocas do que se poderia imaginar. Sim, o desenvolvimento dos meios de comunicação instituiu novas formas de ação, onde a interação se dissocia do ambiente físico, permitindo que os indivíduos dirijam suas ações para outros, dispersos no espaço e no tempo. O conjunto de atividades que acontece por intermédio da rede mundial de computadores, a internet aponta para novas formas de atividades econômicas, novos espaços sociais, novas solidariedades, mas também novas desigualdades e novos excluídos.

Retomando a questão inicial, pode-se dizer que o espaço público segue forte cenário de expressão – inclusive política – das cidades. Na mesma direção, portanto, é também possível afirmar que a conexão entre esfera pública e espaço público segue também constante e bastante presente no mundo inteiro. Entretanto, a esfera pública parece ter alcançado maior autonomia em relação ao seu desdobramento num espaço físico, através do uso dos meios digitais para sua manifestação. Outras formas de ação, e a ênfase em agentes individuais parecem caminhar também para o reconhecimento de alterações nesta esfera.

Quanto ao espaço público, este não parece ter sido tão afetado assim por essas transformações; suas mudanças parecem dizer mais respeito às formas de vigilância e segurança que perpassam cada vez mais o cotidiano das ruas – satélites, tecnologias de geolocalização como o GPS, câmeras, monitoramento por vídeo e outros meios, em tempo real – que, conectados ao aparato de segurança estatal, sinalizam o uso do digital como controle dos governos sobre o espaço a partir do uso disseminado de dispositivos de visibilidade (Bruno; Kanashiro; Firmino, 2010).

Muito mais que conclusões peremptórias, isto nos serve de estímulo para pensar em novas investigações. Citaremos apenas cinco questões que nos parecem fulcrais como novas pistas de análise de nossas inquietações iniciais. Primeira: em que medida se pode falar de espaço público e de esfera pública com o mesmo significado de antes. Segunda: quais as formas de pensar e agir politicamente em tempos digitais? Terceira: como pensar sobre a constituição de agentes coletivos a partir deste cenário tão propenso ao agente individual? Quarta: qual o novo papel reservado ao Estado em relação ao uso do espaço público nesta nova configuração “vigilante”? E quinta: que impactos podemos assinalar a partir daí tanto para a ação política coletiva quanto para os espaços onde vivem e transitam os diversos segmentos sociais que compõem as sociedades complexas contemporâneas?

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* Patrícia Silveira de Farias é antropóloga e professora adjunta da Escola de Serviço Social/UFRJ.

** Margarida Mussa Tavares Gomes é arquiteta, professora do curso de Arquitetura e Urbanismo do IFF/Campos e doutoranda em Urbanismo no PROURB/UFRJ.

 Referências

ABRAHÃO, Sérgio L. Espaço público: do urbano ao político. São Paulo: Fapesp/Annablume, 2008.

BAUDRILLARD, Jean. Internet ruma para seu fim. In: Folha de S. Paulo. São Paulo, 19 de fevereiro de 1998. Caderno Especial, p. Especial – 12 2/8398.

BRUNO, Fernanda; KANASHIRO, Marta; FIRMINO, Rodrigo (orgs.). Vigilância e visibilidade. Espaço, tecnologia e identificação. Porto Alegre (RS): Sulina, 2010.

BUTLER, Judith. La aliança de los cuerpos e la politica de la calle. Disponível em: http://www.debatefeminista.com/articulos.php?id_articulo=1408&id_volumen=111. Acesso em mar. 2015.

CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. Vol. I. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

CASTELLS, Manuel. Redes de indignação e de esperança. Movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2013.

ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva, 1987.

GIDDENS, Anthony. As consequências da Modernidade. 2ª ed. São Paulo: Unesp, 1991.

GOFFMAN, Erving. Comportamento em lugares públicos. Petrópolis: Vozes, 2010.

HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural na esfera pública. Investigações sobre uma categoria da sociedade burguesa. São Paulo: Unesp, 2014.

HIMANEN, Pekka. The hacker ethic and the spirit of the information age. New York: Random House, 2001.

LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999.

MORAES, Dênis de. O ativismo digital. Disponível em: <http://www.bocc.ubi.pt/pag/moraes-denis-ativismo-digital.html>. 2001.

PARK, Robert. A cidade: sugestões para a investigação do comportamento humano no meio urbano.  In: Velho, Otávio (org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1967, p. 29-72.

SORJ, B. Brasil@povo.com A luta contra a desigualdade na Sociedade da Informação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

VIRILIO, Paul. A bomba informática. São Paulo: Estação Liberdade. 1999.

Notas

[1] Segundo Lévy, se nosso cérebro faz infinitas conexões que se intensificam à medida que envelhecemos, graças ao computador é possível integrar essa “constelação de neurônios” com a de milhões de outras pessoas, permitindo a criação de uma superinteligência coletiva.

[2] Compartilhamos da distinção entre hacker e cracker proposta pelo filósofo Pekka Himanen (2001). De modo sintético, pode-se dizer que o termo hacker diz respeito aos que possuem habilidades técnicas e disposição para a busca do livre conhecimento, enquanto o cracker faz uso de seus conhecimentos de informática para cometer delitos.

Daniel Miller: "A Antropologia Digital é o melhor caminho para entender a sociedade moderna"

Pauta e edição: Patrícia Farias, Ilana Strozenberg e Monica Machado
Entrevista: Monica Machado
Tradução: Pérola F. Pedro
Revisão da tradução: Patrícia Farias

Das diferenças entre a selfie em Trinidad e na Inglaterra à importância da Antropologia contemporânea para pensar um mundo crescentemente mediado por tecnologias digitais, o antropólogo Daniel Miller, professor da Universidade College London (UCL), no Reino Unido, condensa suas ideias e explica seu trabalho nesta entrevista. Referência obrigatória para qualquer pesquisa ou pesquisador de cultura material e Antropologia do Consumo, Miller participa da ideia de que as sociedades podem ser mais bem compreendidas a partir da análise de seus aspectos materiais, suas materialidades. Mais recentemente, incluiu em suas preocupações e pesquisas nessa área os significados e práticas dos diversos grupos sociais sobre os meios de comunicação digitais, dedicando-se aos estudos em Antropologia Digital. O criador do conceito de polymedia coordena hoje um ambicioso projeto de pesquisa sobre as tecnologias digitais e seus significados culturais em vários países do mundo, de Trinidad e Singapura ao Brasil. Aliás, Miller tem interesse especial no Brasil, que já visitou em algumas ocasiões, a trabalho, e onde tem um público crescentemente estimulado por seus estudos. Já publicou 38 livros, sendo suas mais recentes publicações Tales from Facebook (2011), Digital Anthropology (editado com Heather Horst, 2012) e Webcam (em parceria com Jolynna Sinanan, 2013). No Brasil, contamos apenas, por enquanto, com dois de seus livros disponíveis em português: Teoria das compras (2002) e Trecos, troços e coisas (2012). Mas esse quadro deve mudar, e rápido. Em conversa com a pesquisadora Monica Machado, Miller reafirma seu interesse em estreitar os laços com colaboradores brasileiros. Promete também um ano de muito trabalho com o projeto What they post (O que eles postam) que inclui a confecção de filmes curtas, plataformas interativas, cursos e atividades online, tudo sobre os usos dos meios digitais em vários lugares do mundo.

Daniel Miller

 Daniel Miller (Foto: divulgação)

 O que levou você e Heather A. Horst a propor o conceito de Antropologia Digital como uma nova subdisciplina e quais são as principais características dessa perspectiva, comparada a outras abordagens teóricas sobre as tecnologias digitais no campo de ciências sociais?

Daniel Miller Há dois elementos nessa questão. O primeiro é o que difere Antropologia Digital de outros estudos do digital e, o segundo, o que difere a Antropologia Digital de outros estudos na Antropologia. Eu, pessoalmente, fico um tanto ou quanto chocado do quão nossos estudos são diferentes da vasta maioria de outros estudos sobre a cultura digital. Recentemente li uma coletânea editada por uma das grandes instituições que se dedicam a estudos sobre a internet no Reino Unido, uma instituição que realmente respeito e considero academicamente séria e importante. Porém achei difícil fazer quaisquer anotações naquele livro que pudessem me ser úteis. A razão é que o livro consistia de muitas afirmações sobre “a internet” ou “o Twitter”,  ou então questões sobre orçamentos ou dados quantitativos. Mas toda vez que lia algo, ficava pensando: mas isso se mantém igual tanto para chineses quanto para brasileiros? Essa “internet” é a mesma para mulheres e homens, pessoas mais velhas e mais novas? Basicamente, quase toda afirmação do livro era uma generalização que eu não podia imaginar que fosse verdadeira. Esses estudos tendem a emular as pesquisas feitas pelas ciências naturais, como, por exemplo, em estudos da internet que procuram observar quantos amigos uma pessoa tem que ter numa rede social para ser considerada muito popular pelos outros. E, então, eles extrapolam disso para uma declaração geral sobre a amizade no Facebook. Mas eu sei que esse experimento daria um resultado diferente para qualquer outra população. Então, quase todos os estudos recorrentes sobre o uso de tecnologias digitais falham em mostrar o que nós sabemos sobre o uso da internet.

Por outro lado, há também diferenças entre nossos estudos em relação aos estudos antropológicos tradicionais. Uma das mais importantes é ideológica. Na Antropologia, frequentemente encontramos pesquisas onde há a romantização do “outro”, passando a vê-lo, assim como a suas sociedades, como mais autênticas, como comunidades, enquanto que há a caracterização de sociedades como aquela em que vivo como uma perda. Então o mundo online é visto como virtual, e o amigo do Facebook  não é visto como um amigo de verdade. Para mim é muito importante que a Antropologia trate  todas as sociedades como iguais. Para mim, Londres é tão autêntica quanto a Amazônia, e seus relacionamentos sociais tão significativos quanto. Fazer coisas online é parte e parcela do dia a dia. Nós não consideramos uma ligação telefônica como “virtual” só porque acontece por telefone. Em segundo lugar, os estudos tradicionais são frequentemente fixados em uma população particular e local. Mas quando estudei, por exemplo, a relação entre mães e filhos filipinos, uma das unidades de análise foram as conexões digitais transnacionais entre eles.

Porém esses são os pontos negativos. A força de nosso livro Antropologia Digital é que ele não duela com essas diferenças e sim se concentra em pensar adiante sobre elas, em como podemos teorizar esses novos ambientes digitais. Propomos seis perspectivas teóricas em nossa introdução para esse volume. Por exemplo, o jeito que o digital abrange tanto o particularismo quanto a universalidade da vida moderna; o modo com que definimos o digital usando o reducionismo do código binário; e como podemos refutar esta ideia de separação entre esses dois polos, mantendo nosso holismo metodológico.

Seu campo de estudo está cada vez mais voltado para os ambientes digitais. Quais são as maiores contribuições da pesquisa antropológica para entender a significação cultural desse comportamento e seus impactos individuais e sociais?

Daniel Miller O sexto conceito de nossos quadros teóricos na introdução de Antropologia Digital ocupa-se da materialidade de ambientes digitais. Insistindo que o digital é material, e não imaterial, podemos ver continuidades com os estudos da cultura material, que eram o foco anterior de meu trabalho, e cujo resumo pode ser encontrado no livro recentemente traduzido e agora publicado no Brasil, Trecos, troços e coisas (Zahar, 2014). Dentro desses estudos de cultura material, exploramos as muitas formas pelas quais a Antropologia pode ser positivamente empregada para o estudo do nosso mundo contemporâneo, incluindo ideias teóricas como a objetificação, mas também contendo as qualidades de nossa tradição etnográfica, e equilibrando o trabalho teórico com o humanismo de relatos etnográficos, descritos de forma suficientemente clara para nos ajudar a ver como a tecnologia digital está integrada no dia a dia de pessoas comuns, com as quais nos relacionamos e temos empatia em nosso trabalho.

Agora voltemos aos três termos a que você se referiu em sua primeira pergunta e ao triângulo dentro do qual a Antropologia funciona: o relacionamento entre o individual e o social, e a contínua importância da norma cultural. Nossos estudos sugerem que as características tradicionais do trabalho antropológico mantêm sua importância no estudo do digital. Por exemplo, estudos sociológicos implicam que o uso da internet tem levado a uma abordagem da rede mais focada no ego, e, ao mesmo tempo, com forças de estado e superestado cada vez mais poderosas, que constituem a nova infraestrutura digital. Essas questões são encontradas na escrita de pessoas como Castells e Wellman. Mas, em nossos estudos, descobrimos que a comunicação digital frequentemente ainda tem base nas unidades dos estudos da Antropologia mais tradicional. Assim, em nosso estudo na Índia, mostramos que a casta é central na forma como a rede social é usada, enquanto nos estudos na Turquia ela é mais tribal e, em outros estudos, tem mais base na família. Todos esses estudos antropológicos ligam o individual ao social em vez de vê-los como duas categorias opostas na vida.

O mesmo ocorre com a questão do significado cultural dos comportamentos. As tradições antropológicas sugerem que essa vida cultural é considerada como normativa, querendo dizer que as pessoas julgam umas às outras o tempo inteiro, sobre se um comportamento é adequado ou inadequado socialmente. Levando as pessoas a prestarem atenção ao fato de que seu comportamento será julgado socialmente, mantemos nossas próprias especificidades culturais; assim, algo que pode ser totalmente aceitável para uma família brasileira pode ser inaceitável para uma família turca. Os novos meios digitais não fazem nada para atenuar essa ênfase na norma. Na verdade, em alguns aspectos acentua esse processo. Nesse sentido, algo que notamos é que, nas redes sociais, muito de nosso comportamento fica mais visível e registrável, e é mais fácil fazer comentários explícitos sobre isso. Então, antes de qualquer coisa, as pessoas estão mais atentas do que nunca a respeito de suas ações e se são aceitáveis ou não, podendo isso ser julgado pela família, casta e comunidade.

No momento, você está trabalhando com um grupo de pesquisadores em Antropologia Digital que está fazendo etnografias em países diferentes como Índia, China, Brasil, Turquia, Trinidad, Filipinas e Inglaterra. Você percebe diferenças expressivas no trabalho de campo de tais pesquisadores referindo-se ao uso das redes sociais e ao modo com que as pessoas se engajam nessas redes? E similaridades? Você pode dizer, nesse ponto de sua pesquisa, que há um jeitinho brasileiro de lidar com as redes sociais?

Daniel Miller O argumento central do livro Tales from Facebook (Contos do Facebook) foi realmente demonstrar que não há uma coisa chamada “o” Facebook, assim como não há uma coisa como “a” internet. O Facebook tornou-se diferente em cada lugar que foi usado. Nesse livro, eu, na maior parte, usei histórias para demonstrar uma teoria. Mas, atualmente, estou finalizando com Jolyanna Sinanan um novo livro chamado What they post (O que eles postam). Enquanto Tales from Facebook não possuía nenhuma ilustração visual, esse livro tem foco na apresentação direta da iconografia, do componente visual do Facebook, em geral fotos e memes. Então podemos comparar diretamente o que as pessoas de fato postam, de tópicos que variam de cachorros e gatos a religião e festas. Também fizemos contas sistemáticas sobre quantas fotos de diferentes tópicos são achados em uma amostra de 50 perfis de Facebook de cada site. Isso nos permite mostrar muito claramente que o Facebook é de fato extremamente diferente, em se tratando, por exemplo, de posts ingleses e posts trinidadianos. E essas diferenças chegam muito perto do que se poderia considerar uma etnografia tradicional. Assim, os posts em inglês se alinham ao meio termo discreto, e evitam os extremos tanto em assuntos sérios como religião e política quanto nos transgressores, como o sexual. Em contraste, o foco dos Trinidadianos é um pouco como o retrato de Jorge Amado em Dona Flor e seus dois maridos, com muitos posts relacionados à sexualidade e ao carnaval, e muitos que são relacionados à política e à religião, mas muito pouco no meio termo. Então, sim, pode-se dizer que há diversos “jeitinhos brasileiros”, que mostram que a Bahia é muito mais como Trinidad do que como os posts ingleses.

O conceito de polymedia é uma importante contribuição teórica para o estudo de comunicação e mídias sociais. Você poderia, por favor, explicar o significado desse conceito e em quais contextos pode ser aplicado?

Daniel Miller Muitos dos meus estudos anteriores eram apenas sobre um novo meio, como o Facebook e a webcam. Mas cada vez mais eu percebi que isso falhava em se envolver com o núcleo abrangente da mídia digital moderna, o que nos traz de volta a nossas tradições holistas e estruturais. O uso e o significado de qualquer mídia tende a ser definido pelos contrastes e complementaridades com outras mídias. Então o Twitter torna-se classificado como informacional e associado com homens, enquanto o Instagram torna-se dominado por questões de visual e estilo, mais associadas com mulheres. O Snapchat é transitório, em oposição ao uso de longo termo do Facebook.

A chave para se pensar isso são as mudanças nas sociedades mais influentes. Antes, a razão das pessoas usarem essa ou outra mídia poderia ser traduzida por questões tais como custo ou acesso. Mas com pacotes de internet e smartphone, o custo foi relegado à infraestrutura. Assim, a decisão de qual mídia usar, se uma mensagem do Facebook, uma chamada pela webcam, um e-mail ou uma chamada de voz agora representa uma razão pessoal, algo que deve ser pensado e decidido. Então a escolha de mídia tornou-se parte da interação social em si mesma. Por conseguinte, isso implica uma ressocialização da própria mídia, já que agora a escolha da mídia é vista como uma ação social e moral. Eu acho que isso é verdade em todo lugar onde o custo é relegado à infraestrutura. No presente, isso não é verdade para a classe trabalhadora do Brasil, mas é para a classe média.

Em Tales from Facebook, você argumenta que o desempenho dos habitantes de Trinidad na mídia social revela muitos dos aspectos do seu contexto social e cultural. Em que medida, em seu ponto de vista, o uso da tecnologia digital contribuiu para as tensões entre culturas global e local?

Daniel Miller Deixe-me responder isso com apenas um exemplo fundamental. Eu acho que, de todos os novos gêneros digitais, o que as pessoas mais consideram como sinal de globalização instantânea talvez seja a selfie. Porque a selfie parece, a princípio, ser um exemplo extremamente claro de homogeneização global rápida. Em pouco espaço de tempo seguindo a expansão do smartphone, a selfie transformou-se numa imagem instantaneamente reconhecida pelo mundo. Eu não vejo razão para contrariar isso, no nível de que um objeto genérico chamado selfie mostra como quase instantaneamente um novo gênero pode ser global. Mas a Antropologia deve também sempre notar que o mesmo fenômeno geralmente fala ao outro lado dessa equação.  Voltando ao contraste entre a Inglaterra e Trinidad. A selfie mostra-se extremamente diferente em ambos os contextos. Por exemplo, a maior parte das selfies em nosso site britânico é de grupos de pessoas, enquanto em Trinidad são individuais. Em nossa amostra sistemática, 557 das amostras de Trinidad são individuais, enquanto apenas 138 das amostras inglesas apresentam o mesmo formato. Em contrapartida, 474 das amostras inglesas são de várias pessoas juntas, enquanto o mesmo acontece apenas com 116 das amostras de Trinidad. Na verdade, gêneros inteiros de selfie, como as selfie-sem-maquiagem e selfie-falsa-lésbica, são importantes na Inglaterra, mas inexistentes em Trinidad. Então não é realmente uma questão de mais global ou mais local, mas, como observei acima, nosso ponto teórico sobre tecnologias digitais é de que elas simultaneamente ampliam a possibilidade não só da universalidade como da particularidade.

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Página do grupo Global Social Media Impact Study no site da UCL

 Por fim, você poderia nos dizer algo sobre seus novos projetos de pesquisa?

Daniel Miller Temos planos bem ambiciosos para nossa pesquisa atual em Mídia Social. Graças ao financiamento do Conselho Europeu de Pesquisa, tivemos financiamento para oito etnografias simultâneas, enquanto a Pontificia Universidad Catolica de Chile adicionou uma nona. Todas as pesquisas durarão 15 meses. Percebemos que o tema “Rede social” é potencialmente de grande interesse popular e poderia desempenhar um papel importante também em popularizar a disciplina de Antropologia social. Já estamos coordenando um blog no  http://blogs.ucl.ac.uk/global-social-media/ que tem vários seguidores e até, num determinado caso, tornou-se parte das notícias internacionais (em uma matéria sobre como os jovens não estão usando mais o Facebook).

Então queremos tentar criar um novo exemplo de Antropologia popular. Vemos isso como um site de três camadas, ou níveis. A camada de baixo é constituída de onze livros que já estamos escrevendo e que mostra nossos achados de pesquisa. A camada do meio será um curso universitário online. Pretendemos que tudo isso tenha acesso aberto e online, com avaliação grátis para todos. A camada de cima será aquela dirigida a um público maior, incluindo mais de cem curta-metragens que já fizemos, e um resumo de muitas das percepções e achados de nossos estudos que esperamos apresentar de forma infográfica e em animação, se conseguirmos arrecadar dinheiro. Haverá também outras formas dirigidas ao púbico em geral e possivelmente interativas. A intenção é que todo o material dessa camada seja traduzido para todas as línguas de nosso projeto, incluindo português, para o público brasileiro. Na verdade, estamos procurando por pessoas interessadas em nos ajudar com essas traduções e visualizações. Esperamos que tudo esteja preparado para ser ativado em um novo site chamado “Why they post” (Por que eles postam) em janeiro de 2016.

Sua primeiríssima pergunta foi sobre o que faz a Antropologia Digital diferente. Mas meu ponto central é que ela não só é diferente como também importante. Que ela é um caminho melhor do que os outros para entender a sociedade moderna. E se esse é o caso, e se isso é uma demonstração da força e significância da Antropologia por si só, então nós queremos proclamar isso alto o suficiente pelo mundo inteiro, tanto para a audiência não acadêmica quando para a acadêmica. Sentimos que não há razão que impeça a Antropologia de ser vista como instrumento chave em nossa autoeducação. Isso é o que esperamos realizar com nosso site. Mas há muito trabalho que precisará ser feito ao longo do ano para poder corresponder a tais expectativas.

 

Os 10 anos da revista Vibrant por seu editor, Peter Fry

Entrevistadora: Patrícia Silveira de Farias*

Em 2004, quando as tecnologias digitais apenas começavam a virar febre no Brasil, a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) fez uma aposta ousada: lançou uma revista exclusivamente virtual. Era um outro caminho; na época, as revistas científicas seguiam a trilha mais confortável de criar uma versão digital para periódicos que seguiam sendo impressos. A ideia da então diretoria da ABA era fazer o conhecimento circular mais rápida e amplamente. Por isso mesmo, os editores optaram também por uma revista “poliglota”: artigos em português, inglês e francês de e sobre o Brasil. Hoje, com recém-completados 10 anos, a Vibrant (Virtual Brazilian Anthropology) acaba de lançar na rede mais um número, tem a mais alta avaliação dos periódicos da área e segue divulgando ensaios e estudos com temática brasileira – mas seus organizadores querem mais. Um de seus idealizadores e atual editor, o antropólogo Peter Fry, professor emérito da UFRJ, afirma que quer expandi-la ainda mais. Em conversa, Fry, autor de vários livros sobre sexualidade, relações raciais e estudos africanos, conta um pouco da trajetória da Vibrant e de suas conexões com o mundo digital, desde a importância do financiamento estatal para os periódicos brasileiros até o desafio que o excesso de informações acessíveis na rede apresenta para a investigação e disseminação do saber científico: “Em última instância, a confiança em relação a essas informações vai depender de fatores sociais”.

Peter Fry

Selfie de Peter Fry

A Vibrant comemorou 10 anos em 2014. Como foi a construção dessa iniciativa? Por que a aposta numa revista totalmente virtual?

Peter Fry Na verdade quem começou tudo foi Gustavo Lins Ribeiro, então presidente da ABA, especialista nos meandros da globalização e militante na concatenação das diversas antropologias nacionais. Não me lembro quem criou o nome, mas a ideia principal era poder compartilhar com o mundo não falante de português as pesquisas e o estado da arte da Antropologia brasileira, através de uma revista poliglota. E que isso fosse possível de ser desenvolvido e mantido dentro de uma realidade de poucos recursos. Não haveria como manter uma revista que fosse muito cara! Enfim, conversamos sobre essa ideia, e chegamos à conclusão de que uma revista virtual facilitaria o acesso e ao mesmo tempo baratearia os custos.

A Vibrant depende de financiamento do CNPq e eventuais contribuições da ABA, mas também conta com a ajuda de muitos sócios da Associação, sobretudo aqueles que assumem o papel de editores dos dossiês.  Nos primeiros números da revista, que foram editados por Omar Ribeiro Thomaz, dependemos de artigos de colegas convidados. Em seguida, publicamos textos recebidos em fluxo contínuo. Mas mesmo assim recebemos menos submissões do que imaginávamos. Além disso, eram sobre assuntos muito díspares. A partir do número 3, então, publicamos, além de textos recebidos em fluxo contínuo, dossiês aprovados pelo Conselho Editorial da revista.

Sendo uma revista da ABA, ela tem que necessariamente abraçar a diversidade de perspectivas e campos de estudos inerentes à Antropologia. As pessoas em geral me falam que estão satisfeitas com a revista do jeito que ela é, mas….eu não. Nem tanto. Eu queria que ela circulasse ainda mais internacionalmente. Ela precisa se inserir em mais redes, precisamos ir ainda mais longe. Torná-la mais conhecida, mais lida.

As novas tecnologias lançaram desafios para a Antropologia, assim como para todos os campos e pessoas, grupos. Uma das formas de lidar com elas é realmente usá-las para ampliar o acesso à informação, claro. Mas, na verdade, há uma série de meios envolvidos nisso, desde a webcam às redes sociais. Pensando em todo esse universo, o antropólogo Daniel Miller propõe o conceito de polymedia, para indicar a forma como estamos imersos e usamos vários meios de comunicação, ao mesmo tempo. E como eles participam da nossa vida diária. Então, não se trataria de como usamos a rede social, a internet, a webcam, mas como isso tudo faz parte do cenário. Como você lida com isso, pessoal e profissionalmente?

Peter Fry As redes sociais… eu tive muito pé atrás. Por exemplo, entrei, participei, depois me retirei… daí me coloquei de novo. Particularmente não gosto; acho muita exposição, estranho muito.

Sim, exposição e privacidade são um duo que estão em questão nas redes sociais. Fico pensando bastante no que falava Goffman sobre o gerenciamento da própria imagem; ao mesmo tempo em que você pode manipular esse self, controlá-lo mais que em outras formas de interação no tal tempo real, por exemplo, ao telefone, editando conversas e mostrando só o que deseja, você também está exposto a muito mais gente, formas de pensar etc.

Peter Fry Mas, profissionalmente, tenho grande curiosidade; examinei uma tese, na área da sexualidade, sobre o universo virtual gay. Foi um trabalho de Gilbran Teixeira, chamado Não sou nem curto prazer e conflito no universo do homoerotismo virtual. Claro, é um exemplo entre vários outros. Mas é muito interessante observar como um meio como esse, dos chamados “sites de relacionamentos”, tem um impacto na sociabilidade dos grupos – ou não. É preciso estudar mais por aí. Porque estamos habituados a pesquisar do ponto de vista dos grupos, mas é possível também investigar mais essas outras formas de interação, se e como elas mudam essas sociabilidades. Temos ainda muito o que saber por aí.

Em relação à Vibrant, novamente, como você a analisa dentro desse novo contexto da aposta na virtualidade como forma de interação entre pares?

Peter Fry A Vibrant ainda é “careta” em termos do mundo digital. Ela tem links, por exemplo, mas não permite comentários, o que não a torna muito interativa, pelo menos não em tempo real. Mas, enfim, isso também é um limite que é dado pelos próprios órgãos financiadores brasileiros. Você não pode fazer uma revista com comentários, que permita “interferências” por parte de seus leitores. E sua avaliação?

Bom, na verdade, também, ela não tem esse formato. Não é uma revista de comentários, não é um blog. Mas podemos explorar outras possibilidades de virtualidade. Tivemos um número, por exemplo, em que a “capa” era um vídeo etnográfico – muito bonito, por sinal. Também publicamos material audiovisual. Todos esses materiais, bem como os textos, são avaliados por pareceristas – enfim, nesse sentido é uma revista bem tradicional.

E ela não está mais só na virtualidade. Temos outras revistas de Antropologia, seguindo esse mesmo caminho. Ainda bem, eu acho.

O que imagina para o futuro da Vibrant e da Antropologia, a partir dessa inserção crescente do virtual nas nossas vidas?

Peter Fry Quando cheguei aqui, nos anos 1970, as bibliotecas eram poucas e fracas; apenas as pessoas mais abastadas tinham acesso aos livros e periódicos recentes. A informação circulava muito, muito pouco. Isto é, havia uma concentração do conhecimento. E isso muda muito nesse novo contexto. Já mudou. Foi uma revolução democrática, acho.

O futuro da comunicação acadêmica é virtual. Já é, de fato, mesmo se as grandes revistas estrangeiras ainda cobrem caro para o acesso. A política brasileira de apoiar revistas de acesso livre e aberto (Creative Commons) é da maior importância nesse sentido, pois aqui não se paga nada para ler toda a produção acadêmica em revistas nacionais. Tanto é que os produtores de revistas em papel acumulam estoques imensos que atraem poeira e estantes cada vez mais abarrotadas, inclusive.

Agora, claro, você tem acesso rápido à informação, o que não quer dizer necessariamente à informação útil; você na verdade tem acesso a todo tipo de informação. É realmente uma tabula rasa. Como selecionar?

Muito antes da popularização da internet, em 1965, Ely Devons e Max Gluckman organizaram uma genial coletânea, Closed systems and open minds: the limits of naïvety in Social Anthropology, na qual vários autores debateram sobre como lidar com as informações a que se tem acesso, principalmente em relação aos seus campos de pesquisa. Qual o limite entre o que você pode verificar, fazer, conhecer, por si mesmo, pelo trabalho de campo, por exemplo. E o que você vai ter de incorporar dessas novas informações que chegam de todo lado, realmente.

A confiança em relação a esse volume de informações vai depender de uma série de fatores sociais, que conferem autoridade de uma forma não randômica. E, em última instância, escapará da impessoalidade da internet, e até dos sofisticados sistemas de avaliação quantitativos, recaindo sobre as recomendações interpessoais. Talvez seja por isso que todas as revistas fazem questão de recrutar as personalidades mais reconhecidas em seu campo para compor os seus conselhos. A Vibrant não é exceção.

Mas, no fundo, somos apenas peças num mercado acadêmico cada vez maior e mais disperso.  Sobreviveremos se conseguirmos criar o que os marqueteiros chamam de fidelidade! A Vibrant escolheu como “nicho” a Antropologia brasileira em inglês e francês, sobretudo, na vã esperança de atingir os professores, alunos e pesquisadores interessados no Brasil que se encontram espalhados por todo o mundo; assim, ela está também criando e fomentando a nossa própria razão de existir. Mas não é assim com todas as mercadorias?

A diferença agora é que há um sistema centralizado de aferição das revistas onde a qualidade é medida quantitativamente através da computação do número de acessos e downloads, a frequência de citações etc. Além disso, grupos de sábios classificam as revistas (o sistema Qualis) que vai determinar o peso atribuído às publicações na hora de avaliar os programas de pós-graduação. Atualmente, a Vibrant é muito bem avaliada, com Qualis A internacional, é uma das mais lidas nacional e internacionalmente, em se tratando dessa área de conhecimento. Mas isso me preocupa bastante, porque o sistema centralizado adotado tende a criar uma hierarquia conservadora e permanente. Você vai me perdoar mais uma referência a um trabalho pioneiro publicado bem antes da invenção da internet. É um exemplo muito claro do “efeito de São Mateus”, identificado, descrito e analisado por Robert King Merton tantos anos atrás (no artigo “The Matthew effect in science”, publicado na edição 159 da revista Science, em 1968). Em Mateus 13: 12, lemos que Jesus falou as seguintes palavras: “Porque àquele que tem, se dará, e terá em abundância; mas àquele que não tem, até aquilo que tem lhe será tirado”.

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*Patrícia Silveira de Farias é antropóloga e professora adjunta da Escola de Serviço Social da UFRJ.