ESCRAVIDÃO: MÚLTIPLOS ASPECTOS E REFLEXÕES

A Revista Z Cultural propõe, nesta edição especial, uma reflexão sobre múltiplos aspectos do cativeiro. A partir do século XVI até a primeira metade oitocentista, milhares de africanos foram arrebatados violentamente de suas famílias e terras, desembarcados no litoral brasileiro e escravizados. Homens e mulheres, de diferentes etnias e territórios africanos, tiveram que se reconstruir e se reinventar diante da truculência do sistema escravocrata. Diferentes estudos e abordagens destacam como os cativos e seus descendentes brasileiros ressignificaram suas trajetórias de vida sob a escravidão e no pós-abolição. Desse modo, iniciamos com a entrevista de Lilia Schwarcz e Flavio dos Santos Gomes que organizaram o Dicionário da escravidão e liberdade: 50 textos críticos.

Apresentamos artigos inéditos que discutem, por meio de diferentes aspectos, as vivências dos escravizados. O texto de Marcus J. M. de Carvalho é uma análise inovadora sobre um aspecto crucial do sistema escravocrata: o tráfico atlântico. O estudo destaca como, anos mais tarde, os cativos desembarcados ilegalmente evocaram a lei de 1831 para pleitearem suas liberdades.

Lucimar Felisberto dos Santos evidencia, em texto embasado em análise documental, o ativismo de mulheres negras escravizadas e o feminismo negro, no Município Neutro, entre 1871 e 1888. Marcelo Mac Cord, através da observação dos Censos de 1872 e 1890 e outras fontes documentais, analisa o recorte étnico-social que perpassou a escolarização básica pernambucana.

Luiz Alberto Couceiro investiga – por intermédio do processo criminal contra a Escola de Feitiçaria Coroa da Salvação – o contexto, a ação e os atores envolvidos em processo de  acusação de feitiçaria, em 1870, em Cunha, São Paulo. A questão da feitiçaria também é analisada por Valéria Costa, que revela como, na Recife oitocentista, as ações de livres e libertos e a prática de suas religiosidades foram mecanismos de resistência ao cativeiro. Marc Hertzman, com Fake news, fake history?, traz a discussão, sob perspectiva bastante atual, dos mitos construídos sobre Zumbi dos Palmares.

O conjunto de textos  segue com as  análise de José Ricardo da Costa, que investiga a influência mítica na narrativa de Antônio Olinto e problematiza a reterritorialização de uma família que tenta se estabelecer em solo africano após a abolição da escravatura no Brasil. Marcelo da Rocha Silveira investiga a presença negra na Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro, então centro de atividades artísticas do Império, e destaca as  dificuldades de afirmação do artista negro na instituição. O texto de Rosilma Diniz Araújo Bühler objetiva estabelecer interlocuções com base nas inquietações levantadas por intelectuais negras e negros em seus escritos, no tocante às diversas expressões identitárias.

Lucio Valentim, em seu estudo, busca os resquícios de escravidão em cenas do cotidiano: um comercial de perfume, um comercial de Natal, um patrão que dá bananas aos empregados no Dia da Consciência Negra. Vincenzo Cammarata traz a discussão sobre o papel da língua na definição das desigualdades sociais e raciais, dentro e fora do ambiente escolar de Luanda. Vanessa Maria Poteriko da Silva aborda a relação entre a ideologia escravocrata de depreciação do negro e a trajetória dos negros que nasceram pós-abolição, por meio dos relatos de Carolina Maria de Jesus em seu livro Diário de Bitita (1986). A reflexão sobre a questão do cabelo crespo, para negros e negras, como um legado histórico e político é feita por Anita Pequeno. Concluímos o dossiê com o estudo comparativo de Stelamaris Coser sobre a escravidão no Brasil a partir da escrita imaginativa de Gayl Jones (1949-  ), que dialoga com a historiografia em abordagem interamericana e diaspórica.

Assim, consideramos que os estudos que compõem o dossiê Escravidão: múltiplos aspectos e reflexões, com suas diferentes perspectivas e dialogando com o documento, apresentam o cotidiano e as ações daqueles que vivenciaram a escravidão e são significativos para a apreensão da história e cultura nacional.

As organizadoras
(PACC/UFRJ)

CONSIDERAÇÕES SOBRE A ESCRAVIDÃO: LILIA SCHWARCZ E FLÁVIO GOMES

Lilia Schwarcz e Flávio dos Santos Gomes, juntos, organizaram o Dicionário da escravidão e liberdade. O dicionário reúne cinquenta verbetes, escritos por vários pesquisadores, com o objetivo de mostrar um “panorama abrangente, temporal e geograficamente falando” (Schwarcz; Gomes, 2018, p. 41), em que o “mundo do cativeiro” e a ação dos escravizados são evidenciados. É, portanto, com muita satisfação que realizamos esta entrevista e desejamos que sua leitura propicie reflexões.

Lilia é professora titular do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo (2005) e professora visitante em Princeton (desde 2011), editora da Companhia das Letras, membro do conselho da Revista Etnográfica (Lisboa), da revista Penélope (Lisboa) e da Revista Cadernos de Pesquisa da Fundação Carlos Chagas. Foi professora visitante e pesquisadora nas universidades de Leiden, Oxford, Brown, Columbia (como Tinker Professor), École des Hautes Etudes en Science Sociales e, em 2010, recebeu a comenda da Ordem Nacional do Mérito Científico Nacional. Lilia é autora, entre outros, de Retrato em branco e negro (1987, vencedor dos prêmios APCA e FNL), O espetáculo das raças (Companhia das Letras, 1993 e Farrar Strauss & Giroux, 1999, prêmio FNL) e Lima Barreto, triste visionário (São Paulo, Companhia das Letras, 2017, Prêmio APCA).

Flávio dos Santos Gomes é professor permanente no programa de pós-graduação em História Comparada, no Instituto de História da UFRJ, e professor colaborador do programa de pós-graduação em História da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Em 2009 obteve a John Simon Guggenheim Foundation Fellowship e, em 2014 (junho-julho), foi pesquisador visitante da New York University (NYU). Desenvolve pesquisas em história comparada, cultura material, escravidão, história da educação e instituições escolares para escravizados e libertos no Brasil Oitocentista. Atua no Laboratório de Estudos de História Atlântica das sociedades coloniais e pós-coloniais (LEHA). Autor de, entre outros, A hidra e os pântanos: mocambos, quilombos e comunidade de fugitivos no Brasil (séculos XVII-XIX) (São Paulo, Editora UNESP/Editora Polis, 2005) e Mocambos e quilombos: uma história do campesinato negro no Brasil (São Paulo: Ed. Claro Enigma, 2015).

Créditos: Renato Parada
Fonte: acervo pessoal de Flávio Gomes

 

Nilma Accioli e Raffaella Fernandez: Na apresentação do Dicionário da escravidão e liberdade, vocês destacam que “completam-se 130 anos da extinção da escravatura no Brasil. É muito tempo, mas as marcas do passado escravista ainda atormentam o país”. Quais são essas marcas do cativeiro e quais as perspectivas para superá-las?

Lilia Schwarcz: São muitas as marcas no presente. Estamos matando uma geração de jovens negros nas periferias do país e não nos damos conta. Os números e taxas são de guerra civil. Também mantemos um racismo estrutural e institucional que se manifesta como uma linguagem perversa na educação, na saúde, no lazer, no transporte, nas taxas de natalidade e mortalidade. As perspectivas do momento presente não são nada boas. Pois a saída para vivermos uma democracia plena seria apostar em modelos mais inclusivos, plurais e igualitários de cidadania no Brasil.

Flávio dos Santos Gomes: É interessante pensar como a escravidão foi ontem! E cronologicamente falando. Qualquer pessoa que nasceu na primeira metade do ano de 1871 (antes da Lei de 28 de setembro, a chamada Lei do Ventre Livre) foi escravo – aos 17 anos – até 1888. E se esta pessoa morreu com 90 anos (portanto em 1961) ela pode ter sido mãe (certamente avó foi) de quem tem hoje mais de 85. Significa que você tem ainda hoje uma memória da escravidão produzida pelos filhos mais velhos e netos dos escravizados e das primeiras gerações dos libertos pós 13 de maio. Para além da dimensão cronológica temos permanências e continuidades. O que mais tem de impacto é o racismo estrutural e estruturante da (e na) sociedade brasileira contemporânea. Os negros sistematicamente excluídos ocupam um “lugar social”: aquele da subordinação, da desigualdade, da cidadania incompleta etc. Talvez este seja o silêncio (suposto afastamento temporal) mais estrondoso da sociedade brasileira depois de 131 anos da extinção da escravidão (1888-2019). O Brasil não foi só o último país a abolir a escravidão nas Américas. Sobretudo, ele atualmente tem mais de 54% de população negra (pardos e pretos contabilizados pelo IBGE). Uma população que ocupa os piores índices de desigualdades e exclusão. Números assustadores. Um Brasil só de brancos talvez não aumentasse muito os seus índices de desenvolvimento humano (IDH) mas um Brasil só negro cairia muitas posições. As políticas públicas dos últimos dez anos – especialmente cotas para as universidades públicas, para os concursos públicos e melhoria no ensino – têm sinalizado possibilidades de mudanças neste cenário secular de exclusão racial, mas com passos ainda lentos; tamanha a desigualdade histórica! E não falamos somente de algo originado somente pelos mais de 370 anos de escravidão (se fala da montagem dos primeiros engenhos e uso de escravizados indígenas e africanos desde 1512), mas também da desigualdade reproduzida na pós-emancipação com a falta de políticas públicas (ou legislação coercitiva) nas áreas rurais e urbanas, repressão às populações negras, ações policiais e mesmo com argumentos raciais cientificistas de intelectuais e pensadores. Com a abolição e o fim de uma subordinação econômica e jurídica (a propriedade sobre o escravizado) as hierarquias e desigualdades são reforçadas por desqualificações sociais e supostamente científicas, no caso a raça.

NA e RF: Ainda na apresentação do Dicionário, é enfatizada a importância da recente produção acadêmica na construção de mudanças. De que maneira as novas abordagens históricas afetariam os currículos escolares consolidando a ideia de historicidade, ou seja, permitindo a construção de um pensamento de que a realidade pode ser modificada?

Lilia Schwarcz: Em primeiro lugar, as pesquisas vêm mostrando como escravizados e escravizadas eram, sim, vítimas desse sistema, mas não só. Sempre agenciaram seu lugar e condição. Em segundo, a nova historiografia tem mostrado como o sistema escravocrata brasileiro foi não só muito duro, mas também, e como resposta, aquele que gerou mais reação por meio de revoltas, insurreições, assassinatos, fugas, abortos e envenenamentos. Por fim, as investigações vêm mostrando como, junto com os africanos e africanas, vieram muitos saberes expressos em forma de cosmologias, conhecimentos técnicos, culinária, arte e formas de sociabilidade.

Flávio dos Santos Gomes: A historiografia brasileira sobre a temática é reconhecida internacionalmente. Deste modo foi difícil optar por apenas 50 verbetes, mas fácil encontrar obras, pesquisadores, estudos e investigações de quase uma centena de intelectuais que têm se debruçado mais contemporaneamente sobre escravidão e pós-abolição. Esta inflexão historiográfica ganha força – se quisermos datá-la – na segunda metade dos anos 1980. Também período da redemocratização, da Constituinte de 1988 e fundamentalmente dos debates dos movimentos sociais de luta contra o racismo no Brasil. Ainda precisamos reconhecer – enfatizar em escritos e manuais – a importância de intelectuais e militantes negros das décadas de 1970 e 1980 nestas mudanças e inflexões historiográficas. Não mais se admitia que se falasse de escravidão sem um repensar sobre as perspectivas das sociedades africanas, do impacto do tráfico, das linguagens sociais e ideológicas do regime escravista, das formas de trabalho e, sobretudo da violência da escravidão na produção de uma sociedade hierarquizada e estratificada em termos raciais. Assim como qualquer outro tema histórico, as questões do presente foram (e continuam) fundamentais para as inflexões historiográficas dos últimos 30 anos. Além disso, neste período surgem gerações de historiadores negros e negras com pesquisas consolidadas e obras sobre o tema, com grupo de estudos, formação de alunos e debates.

NA e RF: Uma das dificuldades para a pesquisa é o acesso à documentação? Como isso afeta o estudo sobre a escravidão e o pós-abolição?

Flávio dos Santos Gomes: Eu particularmente discordo da idéia de “dificuldade com a documentação”. A dificuldade só existe em termos de acessar arquivos não organizados (especialmente aqueles do judiciário) e não uma dificuldade histórica de localizar experiências e personagens. Na verdade, uma vertente historiográfica mais antiga ainda se baseava na falsa idéia da impossibilidade de se pesquisar a escravidão devido à suposta queima de documentos por Rui Barbosa depois da Abolição. De fato, Rui Barbosa, ministro do regime republicano decretou a “queima de documentos” (falava em “apagar a mancha”) da escravidão num explícito aviso aos fazendeiros e políticos que falavam em indenização com a extinção da escravidão. Significaria um símbolo para distanciar a escravidão, a experiência dos escravizados e as formatações econômicas envolventes. Com isso a idéia da escravidão – assim como a monarquia – era associada ao atraso, algo obsoleto em comparação a República, progresso, século XX. O que uma renovada historiografia tem feito não é somente analisar o pós-emancipação, mas incluir esta dimensão temporal, política, social e ideológica na concepção de história do Brasil: história do trabalho, história das cidades, história agrária, história do pensamento social, história cultural e outras. O Brasil entre 1890 e 1940 estava vivendo uma sociedade pós-colonial envolvida com o fim do trabalho escravo e os desdobramentos disso para vários setores dos mundos do trabalho, da cultura e das ideologias. Na verdade, o que se está fazendo atualmente é voltar com a temática da pós-emancipação para repensar a história do Brasil, ou como ela foi pensada. As experiências da pós-abolição foram banidas da história do Brasil

NA e RF: Tumbeiros, senzalas, quilombos e “casas de dar fortuna” eram também espaços de resistência cultural?

Flávio dos Santos Gomes: Penso na possibilidade de organizar – analiticamente falando – tais espaços como territórios. Devemos ter cuidado com as armadilhas da narrativa fácil do heroísmo esvaziado ou do romantismo denúncia. O que menciono sempre em palestras e para os meus alunos em cursos de graduação e pós é a dimensão temporal e a dimensão espacial para pensar a escravidão no Brasil. Mundos rurais do café, açúcar, mas também do arroz, do algodão, do fumo, do cacau, da mandioca e da produção de alimentos devem ser repensados na perspectiva de mostrar complexidades, naturezas diversas, elites, paisagens econômicas e mesmo étnicas dos escravizados e libertos. As cidades são bons exemplos. A história urbana no Brasil é a história da escravidão e do pós-emancipação. As grandes cidades foram repensadas e fundamentalmente “organizadas” enquanto espaços e territórios africanizados, crioulizados e formas de pensamento e coerção de senhores, poder público, higienistas e depois arquitetos. Há dimensões de religiosidades – e também formas rituais de edificações e coletividades urbanas – que ainda precisam ser estudadas. Há dissertações e teses inéditas explorando isso. Podemos sim falar de “resistência cultural”, mas com o cuidado de não esvaziar os sentidos sociais, políticos e mesmo econômicos. Há estudos que falam de segregação espacial, territórios e formas de alimentação e consumo organizando espaços urbanos a partir da escravidão, dos africanos e também dos libertos.

NA e RF: Como você analisa o papel dos negros no processo abolicionista?

Flávio dos Santos Gomes: Os avanços das pesquisas históricas têm demonstrado um movimento em torno da Abolição – aliás, se usava a palavra emancipação ou o debate sobre o “Elemento Servil” – desde a década de 1860, porém usamos movimento abolicionista para a última década da escravidão, anos 1880. Vários estudos têm recuperado movimentos complexos mobilizando vários setores sociais, passando de jornalistas a associações operárias e carnavalescas. Com isso o protagonismo de setores negros – intelectuais e jornalistas negras e negros – têm aparecido. Mas ainda precisamos saber mais sobre as áreas rurais, pois os estudos sobre emancipação/abolicionismo acabaram privilegiando as cidades e as fontes dos jornais/periódicos abolicionistas. E as áreas rurais? Para o Recôncavo da Bahia há referências sobre a constituição de bandas de músicas por parte de libertos e setores letrados negros. Enfim, é possível falar num “abolicionismo negro” para ressaltar tais protagonismos e ideias para além das abordagens que enfatizam somente as dimensões parlamentares e brancas (pensadores e políticos) do debate e mobilização política em torno do fim da escravidão.

NA e RF: O Rio de Janeiro era uma “cidade negra”? De que maneira, no pós-abolição, essa situação foi determinante na história da cidade?

Flávio dos Santos Gomes: Sim, o Rio era uma “cidade negra”, a que mais concentrava africanos num espaço atlântico e fora da África no século XIX. O termo “cidade negra” foi cunhado analiticamente por Sidney Chalhoub, mas depois redimensionado por várias pesquisas. Investigações têm mostrado outros espaços semelhantes espalhados em diversas partes do Brasil. Exemplo: sabemos bastante hoje sobre Porto Alegre e suas dimensões urbanas, escravistas e africanas – força dos africanos ocidentais – no século XIX, mas ainda sabemos pouco sobre São Luis. Rio de Janeiro, Salvador, Recife, Porto Alegre e São Luís eram importantes “cidades negras” do Brasil oitocentista. Eu destacaria o papel dos forros, pois Brasil e Cuba foram países escravistas oitocentistas com incríveis percentuais de negros livres (libertos ou filhos de libertos) concentrados em áreas escravistas urbanas. Isso chama atenção para outra pauta dos estudos emergentes: a possibilidade de reescravização, tal a força da escravidão em todas as áreas e termos daquela sociedade.

NA e RF: De que maneira as obras de autores negros e pardos como, por exemplo, Maria Firmina dos Reis (1822- 1917), Machado de Assis (1839-1908), Cruz e Sousa (1861-1898) e Lima Barreto (1881-1922) podem ser analisadas no contexto do Brasil escravista?

Lilia Schwarcz: São autores muito distintos mas que, em comum, trataram do sistema escravocrata. Literatura não é mero reflexo. Ou seja, não é apenas consequência ou corolário de um contexto. Na verdade, ela é pura reflexibilidade uma vez que ajuda a produzir o momento que pretende apenas descrever. Foi assim com Lima Barreto que radiografou um Brasil mais amplo, que incluía os subúrbios e a estrada de trem. Numa época em que não se falava de racismo, ele denunciava a Nova República e seu descaso para com as populações recém libertas. Machado, como funcionário público, sempre deu ganho de causa para os escravizados e escreveu contos maravilhosos como “Pai contra mãe” em que faz uma alegoria dura do Brasil escravocrata “em que nem todos sobrevivem”. Luiz Gama e Cruz e Souza denunciavam o sistema, assim como Firmina dos Reis, cuja descoberta recente diz muito sobre o silêncio que paira, ainda hoje, sobre esses grupos nacionais que, segundo o último censo, correspondem a 55% da nossa população.

NA e RF: No Dicionário da Escravidão e Liberdade você analisa teorias raciais e destaca que “também no Brasil raça foi amiúde um conceito ‘desolador’”. Por quê?

Lilia Schwarcz: No final do XIX, diante da eminente libertação dos escravos, intelectuais brasileiros criaram outras formas de discriminação, não mais pautadas na história pregressa, mas antes numa suposta cientificidade. Esse foi um modelo de pensamento, em voga até os anos 1930, que produziu muitos estereótipos ainda vigentes (e totalmente equivocados) sobre as populações negras. Raça foi e é um marcador forte de diferenças e continua a produzir várias formas de discriminação no país.

NA e RF: Como rediscutir a escravidão em tempos de polêmicas que envolvem o “lugar de falar”?

Lilia Schwarcz: Penso que há um protagonismo na questão que deve ser exercido pelos próprios ativismos negros. Também acredito que o ativismo teve e tem um papel central no sentido de propor agendas e questões para a academia.

NA e RF: Os estudos destacam o quanto foi tardia a Abolição da Escravatura no Brasil? Que reflexão você propõe sobre esta questão?

Flávio dos Santos Gomes: Acho que tem duas questões aí! O fato de ser último mostra a “força da escravidão” na sociedade brasileira – a linguagem, conforme tem analisado Lilia Schwarz – na medida em que as elites não abriram mão da escravidão, o tal privilégio da sujeição. Outra coisa é enfatizar que embora ter sido último, o fim da escravidão não foi aqui algo derradeiro também porque não havia mais importância econômica. Pelo contrário, mostra – como em outras partes das Américas – um período de muitos conflitos, incertezas, medos e denúncias. As abolições foram resultado de lutas de classes, onde os escravizados pensaram a respeito das suas vidas, destinos e expectativas.

Lilia Schwarcz: A escravidão no Brasil, nos finais do XIX estava muito enraizada no contexto brasileiro, e vinculada a políticas de estado. Tanto que, um ano depois da “abolição” era chegada a vez do Império se despedir. No país a escravidão não era apenas um sistema de trabalhos forçados, era uma linguagem com graves consequências. Ela moldou condutas, criou estruturas de mando e obediência, padrões de violência, formas de discriminação arraigadas. Tanto que, se conhecemos a data de início do período que se convencionou chamar de “pós-abolição”, 13 de maio de 1889, não sabemos quando termina. Afinal, até a nossa contemporaneidade, continuamos a praticar no país um racismo estrutural, no sentido de que encontra-se muito “estruturada” nas várias áreas da sociedade brasileira: social, cultural, econômica, educacional, na saúde, na segurança. O Brasil é um país muito desigual; o quinto mais desigual do mundo. Esse local no concerto das nações só pode ser explicado pela vigência e perpetuação da linguagem da escravidão. Muito foi feito, mas muito mais há por se fazer.


* Nilma Accioli é doutora em História Comparada pela UFRJ, possui pós-doutorado no Programa Avançado de Cultura Contemporânea-PACC/UFRJ, pós-graduação em História do Rio de Janeiro (UFF). Autora do documentário “Ibiri, tua boca fala por nós”,  1º colocado no Festival de Filmes de Pesquisa Esclavages: mémoire, heritáges et formes contemporaines (Paris, 2009), e dos livros José Gonçalves da Silva à nação brasileira: o tráfico ilegal de escravos no antigo Cabo Frio (Funarj, 2012) e  O sagrado e o profano: vivências negras no Rio de Janeiro (Appris, 2019). Trabalha com o registro da memória sobre a escravidão e o pós-abolição entre as comunidades remanescentes de quilombos na Região dos Lagos, RJ.

** Raffaella Fernandez é pós-doutoranda no Programa Avançado de Cultura Contemporânea da UFRJ. Atua na Universidade das Quebradas e na Faculdade de Letras como docente de Literatura e Teoria literária. Estuda o espólio literário de Carolina Maria de Jesus desde 1999. É autora de A poética de resíduos de Carolina Maria de Jesus (2019). Organizou os dois últimos livros de Carolina de Jesus: Onde estaes felicidade? (2014) e Meu sonho é escrever (2018).

Referências

SCHWARCZ, Lilia Moritz; GOMES, Flávio dos Santos. Dicionário da escravidão e liberdade: 50 textos críticos [1ª ed.]. Companhia das Letras, 2018.

O TRÁFICO ATLÂNTICO E O PROTAGONISMO SENHORIAL DEPOIS DE 1831

Resumo: Depois de 1831, os navios negreiros não podiam mais descarregar nas principais cidades brasileiras, passando a deixar sua preciosa carga humana nos portos naturais do litoral. O tráfico teve que se adaptar às novas circunstâncias. Em Pernambuco, todas as praias adequadas estavam nos limites dos grandes engenhos. O tráfico seria impossível sem a participação direta dos seus proprietários, a partir dali senhores de engenho-traficantes. Anos depois, alguns africanos ilegalmente escravizados contaram em juízo como desembarcaram no Brasil ainda crianças e adolescentes e como foram escravizados assim que desembarcaram. Este trabalho aborda esse processo.

Palavras-chave: tráfico de escravos; navios negreiros; escravidão infantil; escravidão.

Abstract: After 1831, slave-ships could not unload at the major towns of Brazil. Instead they had to leave their precious human cargo at smaller harbors on the coast. The slave trade had to adapt to those new circumstances. In Pernambuco, all beaches that served that purpose were part of major sugar plantations. The Atlantic slave trade would have been impossible without the direct participation of their owners, who became plantation owners and slave-dealers at the same time. Years later, some African illegally enslaved people told in court how they landed in Brazil as small children and adolescents and how they were enslaved as soon as they arrived. This paper focuses on this process.

Keywords: slave-trade; slave-ships; child slavery; slavery.

Uma vasta literatura tem demonstrado a serena intensidade do tráfico atlântico de gente escravizada perpetrado pelo Brasil afora depois da sua proibição em 1831. Como se sabe, a partir dali os africanos tornavam-se legalmente livres ao tocarem o solo brasileiro. A cada desembarque, portanto, era cometido o crime de escravização de pessoa livre. Esse crime desdobrava-se pelo país adentro, ao ser compartilhado por todos que adquiriam, herdavam e alugavam essas pessoas. Esse processo, amplamente difundido e de longa duração, não era invisível. É difícil avaliar, mas é inevitável refletir sobre o seu impacto no tal ethos brasileiro, que preocupou gerações de estudiosos, como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Hollanda e tantos outros antes e depois. Seria bizarro não ligar, mesmo que de maneira indireta, a repercussão dessas práticas ao molde da elástica tolerância e naturalização da corrupção, da violência e da mentira pública na mentalidade brasileira contemporânea. Claro que contrabando de cativos da África sempre existiu, pois o infinito litoral brasileiro é um convite para a entrada ilegal de mercadorias até os dias de hoje. Mas o que aconteceu entre 1831 e a década de 1850 foi diferente, pois a economia do país passou a ser movida por uma atividade ilegal. Por mais que se tenham contrabandeado cativos africanos antes, ou pau-brasil, ouro, ou sonegado quintos reais etc., nada se compara ao tráfico depois de 1831. Isso, mesmo relevando-se o que não se deve relevar: a brutalidade do tráfico. Pedindo perdão por um exemplo tosco logo no começo, mas é como se o uso de derivados de petróleo fosse proibido na contemporaneidade, e, mesmo assim, continuássemos a assistir toda a economia movendo-se à gasolina, óleo diesel etc. O tráfico era às claras. Quando era disfarçado, seu produto, os africanos escravizados, não o eram. Eles circulavam de mão em mão abertamente.

O tráfico, todavia, não nasceu pronto e estruturado a contento. Foram necessárias muitas adaptações. Algumas delas são o tema deste texto, que enfoca principalmente Pernambuco, que, em virtude de sua posição no tráfico, serve de modelo para outras paragens do mundo atlântico escravista, como veremos a seguir. Os inúmeros e repetidos desembarques paulatinamente impactaram o cotidiano das localidades em que ocorriam. Os proprietários rurais que controlavam os pontos do litoral mais adequados para desembarques foram grandes beneficiários do tráfico. Era inevitável, todavia, o envolvimento de outros agentes menos abastados, trabalhadores livres e libertos, além dos próprios cativos que esses proprietários podiam mobilizar nas ocupações de apoio. O tráfico precisava de trabalhadores em várias atividades que garantiam o bom andamento dos desembarques e o acolhimento seguro dos recém-desembarcados.

Como veremos, o tráfico ocupou uma miríade de barqueiros, produtores locais de víveres, pequenos negociantes das povoações do litoral, barbeiros, carpinteiros e até desocupados robustos que, eventualmente, podiam encontrar serviço na repressão e vigilância dos recém-escravizados. Todos os que habitavam nas proximidades dos locais de desembarque buscavam ganhar algo com o negócio, salvo bem-intencionadas exceções que, como sempre, servem para confirmar a regra geral da acumulação do capital mercantil. Embora os traficantes e os grandes proprietários dos recém-escravizados fossem os maiores beneficiários dessa prática criminal, é preciso notar que essa imensa riqueza, respingava para a clientela desses mesmos proprietários rurais e traficantes, de tal forma que o tráfico contribuiu para o estreitamento das relações clientelísticas que permeavam a sociedade. Ao mesmo tempo esses respingos contribuíram para legitimar o próprio tráfico e a escravidão diante dos seus beneficiários diretos e indiretos, por mais modestos que fossem seus ganhos em relação aos imensos lucros dos donos do negócio.

Além dos riscos normais de captura e da navegação atlântica, pairavam outros desafios para se desembarcar fora dos portos das maiores cidades, que contavam com estruturas e equipamentos para o acolhimento dos navios negreiros. Era preciso planejar as operações para evitar improvisos que gerassem prejuízos. A chave do sucesso era o controle do acesso a um porto natural adequado, pois, mesmo que os africanos livres chegassem em segurança à praia, a posse deles dependia dos poderes relativos dos proprietários rurais do entorno do ponto de desembarque. Para ser direto, portanto, o tráfico não poderia acontecer sem o envolvimento direto dos proprietários das terras que circundavam aquelas praias. Eventualmente, em arribada ou fugindo dos ingleses, houve embarcações que procuraram o litoral de Pernambuco devido à sua proximidade de Angola e Congo principalmente. Quando isso acontecia, entrava em operação as redes constituídas pelos traficantes em várias partes do país, pois um desembarque em local fora do controle do(s) consignatário(s) da embarcação podia resultar em perda total. As praias de Pernambuco, sem exceção, estavam na zona da mata açucareira, o que fez dos senhores de engenho protagonistas do tráfico. Esse protagonismo dos proprietários rurais repetir-se-ia em outras províncias com maior ou menor intensidade.

Décadas depois, em ações de liberdade, os próprios africanos narraram esses procedimentos do tráfico de forma clara e direta. Um deles, Camilo, tinha uns quarenta anos de idade em 1874, quando ajuizou sua ação no termo de Itambé, na fronteira entre Pernambuco e Paraíba. Camilo veio do Congo depois de 1831. Na letra da lei, portanto, era um africano livre e não um cativo. Ao depor diante do juiz, contou que já fazia uns 27 a 30 anos que havia chegado, ou seja, veio no começo da década de 1840. Disse ainda que não tinha mais do que uns sete anos de idade, quando viajou no navio negreiro cujo nome não se lembrava, desembarcando na praia de Atapus, na ponta de Tapessoca, ao norte da ilha de Itamaracá, perto de Barra de Catuama, um dos principais portos do tráfico em Pernambuco depois de 1831. De lá, à meia noite, foi levado para o engenho Itapirema, onde ficou preso na casa de purgar junto com outros 90 companheiros de viagem (Amaral e Sette, 2012, passim). Nessa época, os navios negreiros traziam muitas crianças, principalmente os que vinham do Congo e Angola. Camilo, com seus sete anos de idade, era uma delas. Do engenho Itapirema, foi conduzido até a vila de Goiana, onde foi batizado, recebendo o nome de Camilo. Seu nome africano não chegou até nós.

Engenhos do entorno de Goiana e Itamaracá
Engenhos do entorno de Goiana e Itamaracá
Fonte: Arquivo Público Estadual de Pernambuco, Mapa n. 1301, circa 1842

O depoimento dele coincide em vários pontos com o de Mahommah Gardo Baquaqua, outro cativo africano levado para Pernambuco poucos anos depois. Camilo procedia do Congo. Baquaqua da Costa da Mina (Law e Lovejoy, 2001, p. 149), mas desembarcou ao norte de Barra de Catuama, perto portanto do local onde Camilo pisou pela primeira vez no Brasil. Uma vez em terra, Baquaqua ficou em uma propriedade agrícola, certamente um dos muitos engenhos da zona da mata norte de Pernambuco, que segundo seu famoso relato, servia como uma espécie de mercado de escravos. De lá foi repassado, talvez mais de uma vez, até chegar a um padeiro, seu primeiro senhor no Brasil, ao qual serviria até ser vendido a um capitão da marinha mercante, seu último senhor, antes de sua fuga em Nova York. Camilo ficou em Pernambuco, primeiro aprisionado no engenho Itapirema, de onde seguiu para ser batizado em Goiana, no sobrado de Manoel Gonçalves, junto com os africanos Abraham, Manoel, Luis e Justino, provavelmente crianças como ele, ou, no máximo, adolescentes. Só Camilo ainda estava vivo em 1874, quando intentou sua ação de liberdade, alegando justamente que viera depois da lei antitráfico de 1831. O padre que batizou aqueles malungos era branco e alto, disse o africano, que foi herdado por um filho do seu primeiro senhor, Manoel Gonçalves – o dono do tal sobrado onde ocorreu o batismo – depois pelo seu neto. Serviria aquela família, e sobreviveria, por três gerações senhoriais.

Sobre Baquaqua, veja-se o vídeo produzido pela rede de professores de História das escolas públicas de Pernambuco REDHIS:

 

Desembarcar no litoral da zona da mata brasileira, em alguma praia que margeava grandes engenhos, é algo que sempre aconteceu. A facilidade da viagem do litoral africano ao Brasil era bem conhecida, ao ponto de ser o pretexto para o início das aventuras de Robinson Crusoé, publicado em 1719. É numa viagem para trazer cativos da África para a Baía de Todos os Santos que a trama de Daniel Defoe realmente começa. A viagem para o Brasil era bem mais curta e segura do que para o Caribe e isso era bem sabido por todos. Essa facilidade encorajou o aventureiro na ficção e inúmeros negociantes do mundo real a contrabandear cativos da África até os brasis. Os donos dos melhores portos naturais das zonas de plantation eram os maiores beneficiários. Alguns dispunham de condições excepcionais para tal, como o engenho Salgado, na embocadura do Cabo de Santo Agostinho. O viajante Tollenare esteve lá em 1817 e ficou impressionado pelo fato do rio Ipojuca, que margeava o engenho, poder receber embarcações de até 150 toneladas (Tollenare, 1956, p. 69). Pelo Alvará de 1813 que regulava a matéria, era possível carregar cinco cativos por cada duas toneladas de arqueação. Um barco de 150 toneladas, portanto, seria capaz de trazer em segurança 375 cativos na travessia atlântica.

Ora, sabemos que o dono daquele engenho trouxe pelo menos 5.186 cativos para o Recife, pagando os direitos correspondentes (Albuquerque, Versiani e Vergolino, 2013, p. 220). O viajante francês contou que o proprietário não sabia quanto custaram os 130 a 140 cativos que tinha no Salgado, pois eles vieram diretamente da África em dois navios do próprio senhor de engenho (Tollenare, 1956, p. 74). Não é difícil imaginar que trouxe mais outros tantos cativos africanos diretamente para seu engenho, sem passar pelo Recife, tendo à sua disposição um porto dessa qualidade e sendo um experiente negociante atlântico de cativos. Na realidade, depois de 1831, o “senhor Ramos”, como o chamava Tollenare, continuou no tráfico, inclusive em sociedade com o filho, José Ramos de Oliveira, que viria a ser o primeiro presidente da Associação Comercial de Pernambuco. Os relatos de Camilo e Baquaqua, portanto, são narrativas de experiências repetidas por centenas de milhares de africanos contrabandeados para o Brasil depois da lei antitráfico de 1831.

Pernambuco era um importante ponto nesse processo. Gonsalves de Mello constatou a vinda de cativos africanos para a capitania de “forma regular” já na metade do século XVI (Gonsalves de Mello, 1967, p. 175). Os pedidos do donatário remontam ao começo da colonização, como indica sua carta de 1542, na qual se queixava que haviam se passado três anos que solicitara à coroa uma licença para poder trazer cativos da Guiné (apud Gonsalves de Mello, 1967, p. 86). Aparentemente o rei atendeu a súplica, pois, em 1552, o jesuíta Antonio Pires notou que ali havia “grande a escravaria assim de Guiné como da terra” (1967, nota 7, p. 106). Em 1587, eram tantos os africanos em Pernambuco que Gabriel Soares de Souza relatou que os homens bons de Olinda eram capazes de mobilizar 4 a 5 mil “escravos da Guiné”. Era, portanto, a capitania que mais africanos tinha na América portuguesa nessa época (Soares de Souza, 1987, p. 58).

Mesmo diante da concorrência de outros açúcares, Pernambuco permaneceria na rota do tráfico pelos séculos seguintes, inclusive, vale salientar, sua elite participou ativamente da expansão do negócio no XVII na própria África. Ao periodizar a História da África centro-ocidental, Thornton (1999) demarca um salto no tráfico na segunda metade do XVII, a partir do que chamou de era dos governadores brasileiros, que começa justamente com os heróis da guerra contra a ocupação holandesa (1630-1654), Fernandes Vieira e Vidal de Negreiros, que se sucederam no governo de Angola, entre 1658 e 1666. Negreiros – nome mais que apropriado para um intermediário do tráficocomandou a expedição de 1665, que deu início ao colapso do Reino do Congo, ao aprofundar as guerras civis que se estenderiam até ao menos 1718, provocando um crescimento exponencial na oferta de cativos para o mundo atlântico escravista (Thornton, 1999, cap. 4 e passim). Numa perspectiva mais ampla, percebe-se que, entre o XVI e o XIX, o volume do tráfico para Pernambuco precede apenas Rio de Janeiro, Bahia e Jamaica (Domingues da Silva e Eltis, 2008. Costa, 2013).

Apesar dessa presença marcante de Pernambuco nesse negócio, a historiografia local tradicional não se preocupava muito com a demografia do tráfico no século XIX e sequer identificava os principais negociantes atlânticos. Esse não era assunto para os literatos e historiadores que escreviam sobre as “glórias de Pernambuco”, construindo a história oficial das elites locais. O primeiro a tentar produzir um quadro demográfico desse processo no XIX foi Peter Eisenberg (1974). É relativamente injusto, todavia, constatar essa omissão apenas para a historiografia sobre Pernambuco, ou mesmo sobre o Brasil. O comércio atlântico de escravos demorou a receber a importância que hoje tem no mundo acadêmico. Antes, foi preciso que o estudo da escravidão nas Américas se consolidasse como tema historiográfico legítimo. Quando Philip Curtin (1969) publicou seu famoso censo, contava com poucos trabalhos sobre o tráfico no Brasil, à exceção do clássico de Pierre Verger.

À medida que a historiografia avançou, foi ficando claro que a participação do Brasil era ainda maior do que se pensava. Os dados de Curtin apontavam que o Brasil havia recebido em torno de 38% de todos os africanos que vieram para as Américas. Atualmente, no sempre atualizado censo do slavevoyages, o Brasil está perto de 47%. A tendência é aumentar, pois as pesquisas que alimentam o site indicam que o lugar sobre o qual menos se sabe ainda é a América portuguesa, inclusive no século XVIII, a época do ouro e apogeu do comércio de gente da África como um todo para as Américas. É vergonhoso prever, portanto, que em breve é bem possível que cheguemos à conclusão que o Brasil recebeu mais da metade de todos os africanos banidos para as Américas. Não podemos, portanto, silenciar sobre este assunto e seus infinitos desdobramentos.

Contabilizar o volume de gente cativa que veio para as Américas, todavia, foi sempre complicado. Estava certo Curtin ao admitir que a demografia do tráfico envolvia um certo numbers game, uma expressão carregada de ironia, já que game tanto significa jogo como brincadeira de criança, ou seja, futebol é um game, esconde-esconde também. O censo do tráfico envolve saltos indutivos, projeções quase que intuitivas, que seguem uma estrita lógica histórica, mas sem a segurança de outros processos melhor documentados (Curtin, cap. 1, passim). No que se refere a Pernambuco, um importante estudo de Domingues da Silva e Eltis produziu uma série confiável sobre o tráfico, confirmando sua posição relativa, atrás de Jamaica, Bahia e Rio de Janeiro. Deixou claro ainda que os negociantes locais foram capazes de armar pelo menos 2.000 viagens para negociar cativos na África, o que situa o Recife no quinto ou sexto lugar entre os portos do tráfico, ou seja, dali saíram mais viagens negreiras do que todos os portos franceses juntos (Eltis e Domingues da Silva, p. 122).

Apesar dessa posição, aquele estudo constatou também que há bem menos trabalhos sobre o tráfico para Pernambuco do que para outros locais que receberam menos gente da África, como é o caso de Cuba, Haiti e os Estados Unidos, por exemplo.[1] Ora, diante da nossa ignorância sobre o tráfico para Pernambuco e da consistência das pesquisas sobre outros locais, talvez não seja exagerado também supor que, à medida que a historiografia for avançando, Pernambuco talvez ultrapasse a Jamaica, que até onde se sabe, recebeu em torno de 100 mil cativos a mais durante toda a duração desse lucrativo negócio. O que sabemos até agora é que Pernambuco começou a receber cativos da África no século XVI e só parou na metade do XIX. São poucos os lugares nas Américas que compartilham esse vexame. No Brasil só a Bahia e Pernambuco.

Essa posição de Pernambuco contrasta com a secular decadência de sua produção açucareira, sempre espremida pela concorrência de outros açúcares, pouco compensada pelo surto algodoeiro entre o final do XVIII e a Confederação do Equador, em 1824. A natureza, todavia, colaborou para contornar esse problema, pois o trajeto desde o Congo e Angola até o entorno do Cabo de Santo Agostinho é a viagem mais rápida da África até as Américas, devido ao regime de ventos atlânticos e à corrente de Benguela que empurra os barcos naquela direção. Assim, a relativa escassez de capitais foi compensada pela facilidade da viagem. Com o tempo, esse trajeto rotinizou-se, deixando de ser uma aventura incerta. O resultado é que uma amostra de 37 navios negreiros que viajaram de Angola e Congo até o Recife, entre 1827 e 1831, levaram, em média, 26 dias na travessia. Um deles concluiu o trajeto em apenas 19 dias (Carvalho, 2018, passim). A bem da verdade, no que tange à duração da viagem desde a África, a Bahia e o Rio de Janeiro também levavam enorme vantagem em relação ao Caribe.

Essa facilidade para se chegar ao Brasil incomodava a esquadra inglesa que reprimia o tráfico. Como deixou claro o experiente Capitão Henry James Matson, que patrulhou o litoral africano na década de 1840, a viagem até o Brasil durava em média metade do tempo de uma viagem à Cuba. Por isso, explicou, os traficantes brasileiros podiam utilizar barcos velhos e de baixa qualidade e depois abandoná-los. Mesmo que os ingleses capturassem três ou quatro de cada cinco dos seus navios negreiros, o tráfico para o Brasil continuaria rentável, dizia Matson.[2] A demorada e complexa travessia para o Caribe exigia equipamentos mais sofisticados e uma tripulação maior, além de mais água e comida. A natureza subsidiava o tráfico para o Brasil e mais ainda para Pernambuco, cuja secular decadência econômica não justificaria seu lugar no tráfico atlântico não fosse essa facilidade natural.

Essa curta duração da travessia atlântica, juntamente com o fato de controlarem o acesso aos portos naturais na própria zona da mata açucareira, subsidiava duplamente os senhores de engenho-traficantes locais. Uso aqui esta expressão – senhores de engenho-traficantes – sem aspas, pois não se trata de um eufemismo, mas de um conceito muito simples, pois essa camada de proprietários rurais era protagonista do tráfico e não apenas um mercado para a preciosa mercadoria humana. Era diretamente nas praias que margeavam seus engenhos que os navios negreiros “desovavam” os cativos. Dependia desse protagonismo o sucesso da operação. Os senhores de engenho-traficantes foram fundamentais para a continuação do tráfico em Pernambuco depois de 1831, pois todo o litoral margeava engenhos, alguns dos quais contavam entre os mais antigos e tradicionais da província.

Isso não quer dizer que o processo não envolvesse riscos. Além da navegação atlântica em si e da perseguição inglesa, não era simples chegar ao ponto exato onde o barco era esperado para desembarcar os cativos no Brasil, ou mesmo embarcá-los na África. O tráfico precisava dos práticos de inúmeros portos antes restritos à cabotagem. O famoso “Relatório Alcoforado” menciona o “patrão-mor” (o prático mais graduado) de Campos (RJ) que enriqueceu guiando navios negreiros.[3] As operações de embarque e desembarque dos cativos mobilizavam muita gente. Nos dois lados do Atlântico surgiram estruturas de sinalização em pontos altos do litoral. À noite, acendiam-se fogueiras. No Nordeste, os jangadeiros alcançavam o alto-mar para ajudar a guiar os navios negreiros.[4] Erros podiam ser fatais, como um naufrágio nos arrecifes em Alagoas em 1844. Segundo o vice-cônsul inglês em Maceió, não sobrou ninguém vivo, restando uns trezentos cadáveres espalhados pela praia. Todos negros, exceto dois homens, um deles despedaçado no meio dos destroços do barco.[5]

Ao se transferir para as praias, o tráfico passou a envolver uma miríade de agentes que antes, quando muito, eram apenas consumidores da mercadoria humana. Estruturas foram construídas em várias partes do litoral para aprisionar e recepcionar a preciosa carga humana. As práticas médicas da navegação intercontinental haviam comprovado a importância de se fornecer imediatamente água e alimentos frescos nas escalas e portos de destino, pois só assim era possível manter os navegantes saudáveis. O mesmo se aplicava aos cativos recém-desembarcados, invariavelmente desidratados, famélicos e com chagas abertas pela fricção no casco ou pelo contágio bacteriano e virótico. O desembarque de um navio negreiro era um grande evento que demandava provisões variadas imediatamente.

O caso da escuna Aracaty, em 1842, serve de exemplo. No processo, a Marinha brasileira considerou a grande quantidade de frutas a bordo como prova de que se tratava de um navio negreiro. No momento da apreensão, havia no convés uma enorme quantidade de melancia, manga, laranja e maracujá. Ora, além da tripulação, havia 385 africanos a alimentar. Um tripulante alegou que aquelas frutas haviam sido adquiridas de uma barcaça que passou por perto, negando assim que teriam sido enviadas pelos consignatários do navio negreiro que, segundo a Marinha, estariam na praia recepcionando a carga humana.[6] Chama atenção essa variedade de frutas, pois implica a existência de pomares, cujos produtos teriam que ser entregues imediatamente. A cada hora perdida aumentava o perigo de morte dos cativos. Vale salientar ainda que uma barcaça, com seu casco achatado, podia facilmente adentrar os rios ali perto, carregando frutas produzidas em diferentes localidades. Sendo ela dos traficantes, ou contratada a barqueiros independentes, o fato é que havia um sistema de abastecimento organizado.

Tripulação do Aracaty
Tripulação do Aracaty
Fonte: Arquivo Histórico do Itamaraty, Coleções Especiais, Comissões Mistas (tráfico e negros), Embarcação Aracaty, Lata 2, Maço 1, Pasta 1

 

Detalhe do passaporte do Aracaty
Detalhe do passaporte do Aracaty
Fonte: Arquivo Histórico do Itamaraty, Coleções Especiais, Comissões Mistas (tráfico e negros), Embarcação Aracaty, Lata 2, Maço 1, Pasta 1

Depois de 1831, o tráfico exigia pressa, precisão e adaptação a locais de embarque e desembarque bem mais acanhados do que antes. Essa é uma das razões do paulatino encolhimento das embarcações. Brigues, escunas e depois sumacas, palhabotes e até iates substituíram os navios maiores que antes traziam cativos para os portos das grandes cidades brasileiras. Era preciso barcos mais ágeis, facilmente manobráveis, menos visíveis em alto mar, capazes de entrar em enseadas acanhadas e que custassem menos, de tal forma que, caso capturados, abandonados ou naufragados, o prejuízo era menor. De fato, não foram poucas as embarcações abandonadas ou encalhadas depois da viagem. Uma delas jazia em Porto de Galinhas em 1844 com 37 pipas de água no porão – típico lastro de navio negreiro – além de caldeira e grilhões no convés. Não muito longe, o cadáver de um “infeliz africano agrilhoado” em avançado estado de putrefação.[7] Esse encolhimento dos navios foi notado pelos cônsules português e inglês no Recife. Joaquim Baptista Moreira, em 1844, soube da chegada de pelo menos seis pequenas embarcações que saíram do Recife com papéis para ir até São Tomé e Príncipe, mas que, na realidade, foram para a Costa da Mina, de onde voltaram, desembarcando os cativos “a salvo nos pequenos portos desta província”.[8]

O agente consular inglês no Recife, Mr. Cowper, confirmou essa mudança nos negreiros, que encolheram além do padrão das escunas e sumacas de 150 a 300 toneladas, chegando a iates de apenas 45 a 60 toneladas. Segundo ele, essas embarcações já saiam do Brasil com as mercadorias do tráfico empacotadas de tal forma que podiam ser descarregadas no litoral africano na cabeça de um homem. Esses iates viajavam com passaportes para navegação de cabotagem. Em alto-mar, desviavam para a rota. Superlotados, voltavam com 100, 150, até 300 pessoas, que obviamente não conseguiam sequer deitar de tão apinhadas.[9] Eram barcos adaptados aos locais de embarque e desembarque, pois eram capazes de adentrar baías estreitas, estuários de rios ou ancorar perto da praia, tanto no litoral do Brasil como da África. Podiam assim operar em locais remotos que não dispunham das estruturas de portos como Recife ou Luanda, por exemplo. Essas circunstâncias explicam as muitas viagens grotescas nessa época. Embarcações minúsculas apinhadas de gente cruzando o oceano e despejando com sucesso sua sofrida carga humana, como um barco a vela, uma “lancha” na linguagem da época, sem nome de tão pequena que cruzou o oceano até a Bahia com um mestre, dois tripulantes e 42 meninos a bordo, dos quais 36 conseguiram sobreviver.[10]

Comprar crianças barateava as operações do tráfico, pois custavam menos na África. Eram boa mercadoria para os traficantes, mesmo não sendo a mais valiosa. Estavam onipresentes no XIX (Campbell, 2006, p. 261-285; Diptee, 2006, p. 183-196; Villa e Florentino, 2016, p. 1-20). A odisseia de Camilo, com seus sete anos de idade, repetiu-se inúmeras vezes, como nos casos de Maria e Joaquim Congo, por exemplo, que falaram na ação de liberdade ajuizada por Maria, em 1884, quando já tinham em torno de 50 anos de idade. Nas palavras de Joaquim, já fazia “uns quarenta e tantos anos” que haviam chegado em Pernambuco. Camilo, como vimos acima, desembarcou em Atapus, no continente, ao norte da ilha de Itamaracá na década de 1840. Joaquim e Maria, pisaram pela primeira vez no Brasil, na praia de Porto de Galinhas, do outro lado da província, na zona da mata norte. Não sabemos os nomes africanos dessas crianças. No momento em que depôs a favor de Maria, Joaquim não era mais cativo. Era um africano livre, condição que pretendia estender a Maria, alegando que haviam viajado no mesmo navio negreiro. Eram malungos entre si, irmanados, portanto, pela viagem atlântica.

Narciso Congo também era africano livre e malungo de Maria e Joaquim, quando depôs naquele processo. Tinha 16 anos quando chegou ao Brasil – mais o menos a mesma idade de Baquaqua, segundo Law e Lovejoy (2001), quando desceu em Pernambuco em 1845. Baquaqua e os demais africanos aqui mencionados chegaram na mesma década. Aos 16 anos, Narciso era valioso, pois estava na plenitude de sua capacidade de trabalho. Todavia, logo depois do batismo na vila do Cabo de Santo Agostinho, conseguiu fugir. Apesar de não sabermos detalhes sobre o seu trajeto, em seu depoimento, ele disse que foi capturado no Recife, a mais 60 quilômetros de distância do local de desembarque, o que não é uma distância pequena para ser percorrida a pé, muito menos por um africano boçal em fuga. No Recife, foi capturado e enviado para o Arsenal da Marinha, o que nos permite assumir que foi reconhecido como um africano livre pelas autoridades locais.[11] Narciso vivia de carregar água em 1884 e afirmou ter vindo no mesmo navio de Maria. Nas suas palavras, apenas uma “menina”, quando chegou no Brasil.[12]

Manoel também desembarcou em Porto de Galinhas, na zona da mata sul de Pernambuco, por volta de 1849 ou 1850, segundo seu depoimento em 1884 ao juiz do termo de Palmares. Pelos seus cálculos, tinha uns 7 anos de idade pois estava “mudando os dentes” nessa época.[13] Benvinda, por sua vez, desembarcou com 4 ou 5 anos de idade. Mesmo assim, lembrava-se de alguns detalhes parecidos com o que disse Baquaqua em suas memórias, pois, era de noite quando pisou pela primeira vez no Brasil e foi logo conduzida para uma casa-grande onde ficou aprisionada até ser leiloada. De Porto de Galinhas, conhecido porto do tráfico, foi levada para o engenho Conceição ali perto. Tal como Camilo, Benvinda sobreviveu a seus primeiros senhores e intentou sua ação de liberdade em 1885. O proprietário que herdou Benvinda reconheceu que ela era angolana, mas argumentou que ela chegou no Brasil não com 4 ou 5 anos, como alegou a africana, mas sim em idade de mamar, antes de 1831, portanto.[14] Ao defender sua propriedade, admitiu, portanto, o que já se sabe: havia crianças pequenas, crias de braço, como se dizia então, nos navios negreiros, alguns deles verdadeiros “berçários infernais”, nas palavras do tenente Forbes que patrulhou o Atlântico sul na marinha inglesa justamente nos anos 1840, a década em que as crianças aqui mencionadas chegaram ao Brasil (Forbes, 1849, p. 87).

Todas essas crianças foram ilegalmente escravizadas em praias nos limites de alguns dos maiores e mais tradicionais engenhos de Pernambuco. O litoral era controlado por senhores de engenhos que estavam inseridos no topo da escala social das povoações próximas, pois eram eles que ocupavam as posições mais altas na justiça de paz, na guarda nacional e na polícia civil. Eram eles, portanto, os encarregados de reprimir o tráfico do qual eram protagonistas. É uma bobagem falar desses senhores de engenho como vítimas dos traficantes, aos quais estariam endividados, pois era impossível um negreiro desembarcar sua preciosa carga humana sem estar sob a proteção do proprietário que controlava o acesso ao local de desembarque. Esses proprietários rurais, portanto, eram senhores de engenho-traficantes – uma expressão que pode ser utilizada sem aspas, pois é um termo que define a posição relativa deles nesse ramo de negócios, pois não eram apenas compradores de cativos recém-chegados, mas protagonistas do processo, desde o desembarque até a escravização das mais de 150 mil pessoas livres que vieram para a província depois de 1831 nos porões de navios negreiros.

Esse crime, portanto, foi protagonizado pela tal “nobreza da terra”, melhor dizendo, senhores de engenho traficantes. O maior ou menor destaque de cada um desses protagonistas nesse ramo de negócios é matéria para a historiografia atual e futura. O que fica claro, é que o tráfico marcaria o litoral desses imensos brasis e foi um potente instrumento de reforço e legitimação da escravidão, ao envolver diferentes agentes, inclusive empregando muita gente, que compunha a população livre pobre circunvizinha aos pontos de desembarque. Claro que o tráfico sempre empregou muita gente, mas depois de 1831, era uma atividade francamente ilegal mesmo que apoiada pelo estado brasileiro, ao menos a partir da regência do pernambucano Araújo Lima, em 1837, cujo engenho margeava o rio Sirinhaém, que desembocava em Ponta de Serrambi, um conhecido ancoradouro de navios negreiros depois de 1831.

Em 1847, Nabuco de Araújo escreveu um ácido livreto de oposição ao partido praieiro, que passou a governar Pernambuco durante o quinquênio liberal (1844-1848). O texto panfletário foi publicado anonimamente. Décadas depois, sua autoria seria reconhecida por seu filho, Joaquim Nabuco, em Um estadista do Império (vol. 1, p. 36). Nabuco de Araújo conhecia bem a elite local, pois, como explicou seu filho e biógrafo, estudou Direito em Olinda e iniciou sua carreira sob a proteção dos irmãos Cavalcanti de Pernambuco, três dos quais iriam se tornar senadores no Império e Viscondes (de Albuquerque, Suassuana e Camaragibe). No livreto, o futuro ministro da Justiça do gabinete Honório de 1853, o “gabinete da conciliação”, rechaçava as repetidas acusações dos praieiros de que o partido conservador de Pernambuco apoiava e praticava abertamente o tráfico. Mas sua defesa é uma manobra retórica típica do pensamento conservador da época, pois, ao invés de negar o crime, Nabuco de Araújo preferiu dizer que todos o praticavam, inclusive os praieiros. Assim, admitiu expressamente que havia gente do clã Cavalcanti que permitia o “desembarque e o depósito de africanos em seus engenhos”. Nabuco de Araújo estava escrevendo anonimamente em 1847. Nada tinha a temer, portanto. Segundo ele, o tráfico contava então com a “sanção moral do país”, do que resultava sua impunidade (Nabuco de Araújo, 1847; 1977, p. 9).

Praticado pelos maiores negociantes dessa época, o  tráfico desdobrou-se, indo muito além das praias onde ocorriam os desembarques, de tal forma que terminou alcançando praticamente toda a escala funcional e clientelar do estado imperial, através da distribuição de propinas e emolumentos que chegavam até os padres e capelães das povoações e engenhos que, ao batizarem aquelas crianças e adolescentes, confirmavam a escravização ilegal, pois o que estava expresso em um livro de batismo definia a qualidade e a condição da pessoa, servindo como prova de propriedade. As propinas e pagamentos que se propagavam pelo entorno dos pontos de desembarque faziam girar a economia local. As relações clientelares estreitavam-se. A escravidão saía fortalecida não apenas por se renovar demograficamente, mas por reforçar essa malha clientelar, espalhar pequenos ganhos monetários entre não proprietários de cativos, legitimando o processo diante de seus beneficiários grandes e pequenos, diretos e indiretos.


* Marcus J. M. de Carvalho é professor de História da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Agradece ao CNPq pelo apoio a esta pesquisa.

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Notas

[1] Sobre a demografia do tráfico para Pernambuco, veja-se: DOMINGUES DA SILVA e ELTIS (2008), p. 95-129. Veja-se ainda: COSTA, 2013, p. 186-217.

[2] Depoimento de Henry James Matson, 21/06/1849. In House of Commons Parliamentary Papers, Reports from the Select Committee of the House of Lords, 1850, vol. 6, p. 202.

[3] ANRJ (Arquivo Nacional, Rio de Janeiro), Fundo Justiça, IJ6-525, Relatório Alcoforado-Africanos, 1837-1864, fls. 2.

[4] Sobre os detalhes dos desembarques nas praias, veja-se: CARVALHO (2012).

[5] Mr. Hamilton para o Earl of Aberdeen, 17/07/1844; Mr. Burnett a Mr. Cowper, 31/05/1844. In British Parliamentary Papers, Slave trade. Correspondence with Foreign Powers relative to the Slave trade [class B and C], n. 28, vol L., Feb. 04, Aug. 09, 1845, p. 417.

[6] Embarcação Aracaty, Lata 2, Maço 1, Pasta 1 Arquivo Histórico do Itamaraty, Coleções Especiais, Comissões Mistas (tráfico e negros). Parliamentary Papers. Slave trade. Correspondence with British Commissioners and with foreign powers relative to the Slave trade [class A and B], vol. 23, p. 268-273. Veja-se ainda: REIS, GOMES E CARVALHO, p. 161-162.

[7] Caetano José da Silva Santiago a Chichorro da Gama, 08/02/1844, Arquivo Público Estadual de Pernambuco Jordão Emerenciano (APEJE), Polícia Civil, vol. 8, fls. 40-42. José Venceslao Affonso Pereira Rigueira Pereira de Bastos para Caetano José da Silva Santiago, 15/02/1844, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro (ANRJ), Fundo Justiça, pasta IJ-1-323.

[8] Joaquim Baptista Moreira ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, 10/12/1844. In: Torre do Tombo, Ministério dos Negócios Estrangeiros, Pernambuco, caixa 3.

[9] Mr. Goring a Lord Aberdeen, 16/05/1845, Parliamentary Papers. Slave trade. Correspondence with Foreign Powers relative to the Slave trade [class B], vol. 30, p. 443.

­[10] Mr. Cowper a Lord Aberdeen, Second Enclosure in 292, 31/12/1841, Parliamentary Papers. Slave trade. Correspondence with British Commissioners and with foreign powers relative to the Slave trade [class A and B], vol. 23, p. 437.

[11] Sobre o destino dos africanos livres em Pernambuco, veja-se: OLIVEIRA (2010).

[12] Memorial da Justiça (Recife), Fundo: Recife, Caixa 1161. Ano 1884, Autor: Maria (Africana). Réu: Rita Maria da Conceição, fls. 13 e 13 verso.

[13] Memorial da Justiça (Recife), Fundo: Palmares, Caixa 2696. Ano 1884, Autor: Manoel (Africano). Réu: Irineu Cavalcante Filgueira de Menezes.

[14] Memorial da Justiça (Recife), Fundo: Recife, Caixa 2782. Ano 1885, Autor: Benvinda (Africana). Réu: José Francisco Pereira da Silva.

FEMINISMO NEGRO E ATIVISMO DE MULHERES NEGRAS – 1870-1888

Nós, mulheres negras, fazemos parte de um contingente de mulheres, provavelmente majoritário (…). Fazemos parte de um contingente de mulheres que trabalharam, durante séculos, como escravas nas lavouras ou nas ruas, como vendedoras, quituteiras, prostitutas… Mulheres que não entenderam nada quando as feministas disseram que as mulheres deveriam ganhar as ruas e trabalha! Fazemos parte de um contingente de mulheres com identidade de objeto. Ontem, a serviço de frágeis sinhazinhas e de senhores de engenho tarados. Hoje, empregadas domésticas de mulheres liberadas e dondocas, ou de mulatas do tipo exportação. Quando falamos em romper com o mito da rainha do lar, da musa idolatrada dos poetas, de que mulheres estamos falando? (Carneiro, 2003, p. 50)

Por uma nova perspectiva de análise

Ao trazer à tona o racismo no feminismo, o Feminismo Negro vem sendo responsável, nos últimos anos, por uma específica etapa da chamada revisão historiográfica porque intersecciona os conceitos de gênero, raça e classe. Nesse sentido, recentes estudos vêm se dedicando à compreensão do modo de funcionamento das sociedades marcadas pela experiência da escravidão, priorizando análises sobre as vivências e agências de mulheres negras e suas relações com o racismo e o sexismo, fundamentais para pensar a dinâmica da exclusão capitalista (Davis, 2016).

Como resultado do descrito, estão sendo revistas, desde a onda de publicações dedicadas aos estudos sobre a temática iniciada nos idos anos 1970, análises sobre escravidão que não visibilizaram as mulheres, camuflando muitas realidades, destacadamente suas experiências e vivências. No âmbito de uma nova tendência historiográfica cuja violência contra as populações negras na escravidão e pós-abolição tem sido ressaltada, a despeito do convívio com uma literatura moderno-hegemônica-branca, o protagonismo da mulher negra vem sendo tema de diversas pesquisas que escrutinam os mais variados contextos diaspóricos sob várias perspectivas (Xavier, Farias e Gomes, 2012).

O significado das experiências de mulheres negras no trabalho escravo, em contrapartida, tem sido importante para o Feminismo Negro. Fundamentalmente porque possibilitam visualizar condições similares pós-abolição. Donde se conclui que a abolição não significou, de fato, o fim das relações abalizadas na escravidão. Além disso, o contexto chama a atenção para o fato de a negra escravizada ser a primeira categoria de mulher no trabalho fora de casa.

Ainda que haja um legítimo uso político da História – pela introdução de novos temas, fontes e problemas, bem como pelo reconhecimento de novos protagonistas como sujeito das análises históricas –, o sentido do uso de novas ferramentas e de novas perspectivas teóricas e metodológicas para reinterpretar os acontecimentos do passado não é outro senão o de dar maior volume à história das sociedades. Enriquecendo, assim, com novas versões, a chamada história oficial.

Especificamente em relação aos estudos sobre os processos históricos que envolveram as relações entre indivíduos escravizados e os demais membros de sociedades escravistas, as novas interpretações têm tido como resultados análises que alteram principalmente as perspectivas predominantes em diversos trabalhos sobre a temática, por colocar em evidência a insubmissão de populações negras durante a vigência da escravidão e pós-abolição. Em verdade, por colocar em evidência as vivências e experiências de novos sujeitos da História, a tendência teórica que tem origem a partir dessas novas versões são apontadas como marco de movimentos como o antiescravagista e o antirracista que deram origem a movimentos políticos como o feminismo negro, não obstante a inclusão de mulheres brancas nestes movimentos (Davis, 2016, p. 47).

O feminismo, enquanto movimento político cujo principal objetivo é a luta para abolir as desigualdades que as mulheres enfrentam, tem sua historicidade. Estavam entre os principais objetivos políticos das primeiras feministas responsáveis pela primeira “onda” de manifestos, que teria ocorrido no século XIX e início do século XX, certos direitos negados às mulheres filhas do patriarcado, que lhe faziam oposição. Assim, o foco original do feminismo era a promoção da igualdade nos direitos contratuais e de propriedade para homens e mulheres, e na oposição de casamentos arranjados e da propriedade de mulheres casadas (e seus filhos) por seus maridos. Ainda no último quartel do século XIX, o ativismo por parte desse grupo de mulheres passou a focar principalmente na conquista de poder político, especialmente o direito ao sufrágio feminino (Krolkke e Sorensen, 2005, p. 1-23).

Como não eram cidadãs daquela categoria, a agenda de reivindicação de mulheres pobres e negras não consta nas primeiras ondas dos movimentos feministas, que dão demasiado ênfase a experiências de mulheres brancas. A própria historicidade do feminismo, portanto, coloca em xeque as especificidades que o movimento carece de considerar. Mesmo porque a heterogeneidade da categoria “mulher” apenas começou ganhar notoriedade histórica em meio aquela onda já comentada de publicações dedicadas aos estudos sobre a escravidão e, também, sobre as sociedades pós-coloniais iniciada nos anos 1970. Com ela, novos sujeitos ingressam no imaginário acadêmico (Chalhoub e Silva, 2009, p. 13-45).

É no bojo dessas perspectivas que surgem feminismos alternativos que tratam de questões que são percebidas como limitando ou oprimindo outras dimensões da vivência de específicas mulheres, bem como de identidades marginalizadas. Este é o caso do Feminismo Negro. Diversas feministas, destacadamente negras, vêm procurando negociar um espaço dentro da esfera do feminismo para a consideração de subjetividades relacionadas à categoria “raça” (Hall, 2009, p. 66).[1]

Antonio Ferrigno: “Mulata quitandeira”. São Paulo, Pinacoteca do Estado
Antonio Ferrigno: “Mulata quitandeira”. São Paulo, Pinacoteca do Estado

A percepção do direito à liberdade como um dos objetivos do ativismo

Historicamente falando, como havia diferença de objetivos no interior da categoria mulher, o não reconhecimento das mulheres negras como sujeito das análises históricas fazia com que suas causas ficassem subsumidas, enfraquecidas mesmo, ante aos desígnios das brancas. Por exemplo, ainda que as mulheres negras, independente de sua situação civil, fossem forças atuantes nos mundos do trabalho ao longo de vários séculos, na França, as mulheres casadas receberam o direito de trabalhar sem a permissão de seu marido apenas em 1965.  Reflexões sistematizadas por Sueli Carneiro, conforme destacado na epigrafe deste texto (Carneiro, 2003).

Em se tratando da estrutura do ativismo da mulher negra que a conjuntura do sistema escravista formatou o que prevaleceu foi uma luta por melhorar a condição do cativeiro e, destacadamente, para obter a almejada alforria. Peculiarmente, nos objetivos de melhorias das cativas consta a luta por algum grau de autonomia na produção, pela criação de laços familiares e pela escolha ou aceitação de padrinhos e/ou senhores. Especialmente quanto à alforria, chama a atenção o fato de estudos sobre o tema ter confirmado a prevalecia de manumissões gratuitas e agenciadas pelos próprios escravizados. (Florentino, 2002, p. 9-40; Chalhoub, 1990) Destacadamente nas últimas décadas do período escravista, e em áreas urbanas. Fundamentalmente para o Município Neutro da Corte, nesse que foi o último período de vigência legal da escravidão no Brasil – o recorte dado por este texto –, os números dos censos realizados apontam para um significativo decréscimo no número de cativos, que vinha sendo potencializado nas duas décadas anteriores (Chalhoub,1990, p.148).

Conforme os números dos censos realizados no período, em 1849, havia 110.602 homens e mulheres mantidos sob o regime da escravidão nas freguesias urbanas do Rio de Janeiro. No recenseamento de 1872, foram computados menos da metade. Em verdade, foram contados 48.939 africanos e crioulos escravizados.  E, da finalização desse que foi o último censo realizado acusando a presença da categoria até a abolição total da escravidão, o número de alforrias na província do Rio de Janeiro continuou a aumentar de forma expressiva.  Segundo Robert Slenes,

Os negros da cidade do Rio nas últimas décadas da escravidão sempre tiveram uma chance mais do que razoável de conseguir a liberdade: nada menos do que 36,1% da população escrava da matrícula de 1872-1873 receberam liberdade até a matrícula de 1886-1887 (Chalhoub, 1990, p. 158).

As pesquisas sobre o tema indicam que essas “chances mais do que razoáveis” foram resultados de específicas negociações. Que foram utilizadas naquele objetivo as mais singulares estratégias: desde um comportamento específico e calculado até ajuizamento de ações visando à liberdade. O significado disso é que, por esses e outros meios, africanas/os e crioulas/os cativas/os procuraram formas de mudar seu estatuto jurídico, elevando-se socialmente à condição de libertas/os. Representam um contingente de homens e de mulheres que não permitiram que suas aspirações fossem frustradas pelas exigências do sistema escravista. Defendendo ser este um comportamento político essencial na reivindicação por direitos, destacando o de liberdade como um dos fundamentais – uma vez que ser escrava/o significava antes de tudo um estatuto jurídico, que se caracterizava por não ter o indivíduo a sua posse – este texto terá como eixo principal à análise de específicas estratégias utilizadas por mulheres negras para a conquista da alforria no perímetro urbano do Rio de Janeiro – o Município Neutro – no período entre 1870 e 1888. Estratégias que configuram, em verdade, um prenúncio da via parlamentar de luta.

Fontes diversas contribuem na análise, mas se dará destaque a ações cíveis de liberdade levadas a cabo por mulheres escravizadas na capital do Império, através de seus curadores. Destacadamente a documentação que chegou à segunda instância de apelação – o Tribunal de Relações – nas décadas de 1870 e 1880. Registros que permitem elucidar diversas estratégias escravas para a conquista da liberdade e, ainda, realizar uma sumária investigação sobre como as mulheres negras aprenderam a extrair das circunstâncias opressoras a força necessária para resistir ao cotidiano da escravidão no seu próprio rescaldo.[2]

Pode-se falar em rescaldo por que o sistema escravista, sobretudo em perímetros urbanos na segunda metade do século XIX, sofrera várias adaptações para atender uma agenda de reivindicações imposta pelos próprios escravizadas/os. O que resultou em maior autonomia dos mesmos no trabalho e até mesmo na possibilidade de alguns homens e mulheres sujeitas/os ao regime morarem por suas contas em cortiços ou casas de cômodos. O que tornava difícil o intenso controle por parte de seus senhores. Analisando um contexto mais alargado, Keila Grinberg argumenta que “o que fazia a diferença na vida de um escravo de qualquer meio urbano das Américas de fins do século XVIII e meados do século XIX era o próprio fato de estar vivendo em uma cidade, tendo acesso a tudo o que a vida urbana proporcionava” (2002, p. 57).

A possibilidade, e oportunidade, de atuar nos mundos de trabalho urbano possibilitou a alguns escravizados uma economia a título de pecúlio para promover a autoindenização. De acordo com a avaliação de Manolo Florentino, a despeito de considerações que argumentam ser a liberdade comprada uma conquista escrava por excelência”, nas negociações para a manumissão “concorria grande dose de concessão levada a cabo de acordo com as vicissitudes do cálculo senhoril”.  No entanto, considerando os ajustamentos do sistema escravista, vale anotar que tal cálculo tinha a ver com a avaliação da possibilidade real de se perder o controle total sobre os escravizados. Daí se observar maleabilidade no trato social da parte de proprietários de escravos que buscavam se adaptar às novas circunstâncias.  Diante das circunstâncias, sobressaíram as modalidades de alforrias classificadas como “gratuitas”, “de serviço” ou “condicionais”.

Na escravista sociedade do Município Neutro nos anos 1870 e 1880, o aumento de alforrias gratuitas e de serviço, ou “sob condição”, refletiu estratégias utilizadas tanto pelas/os escravas/os quanto por seus senhores, para conquista e concessão da liberdade, respectivamente. Estratégias mais “políticas”, segundo Florentino. Por exemplo, o predomínio absoluto das alforrias gratuitas, que em verdade, era um panorama observado desde a segunda metade dos anos 40, para o autor

Assinalou a chegada ao auge da “politização” na busca da liberdade. Tratar-se-ia do ápice de um longo processo em que, esquematicamente, a conquista da liberdade deslocou-se da esfera da formação do pecúlio (i. e., do mercado) para a órbita intrínseca da negociação entre o escravo e o seu senhor, sem, contudo, esterilizar por completo a possibilidade de que alguns pudessem comprá-la (Florentino, 2002, p. 20-21).

Dois fatores teriam contribuído, na avaliação de Florentino, para que o ato de alforriar fosse investido de novos sentidos em meados do século XIX.: o preço do escravizado[3], que passou a ser avaliado pelo valor de mercado, verificado no momento da compra, e “a crescente recusa senhorial em aceitar a liberdade mesmo dos escravos que, as duras penas, ofereciam pelo seu resgate o valor corrente de mercado”.

Nesse sentido, se houve um declínio da compra de alforria pelos escravos, ele deve ser pensado dentro do panorama geral vigente em meados do século XIX. Momento em que a questão da reposição da mão-de-obra ensejava estratégias mais “políticas” também por parte de senhores. Modalidades de alforrias como as gratuitas e as de servir, de acordo com um novo ideário da sociedade imperial, permitiria a reprodução dos laços de dependência e que novas políticas de controle fossem instituídas nas relações escravistas. Podiam ter o efeito de transformar ex-escravos em negros libertos, mas fiéis e submissos a seus antigos proprietários.[4]

A vida urbana, entretanto, proporcionava outras coisas, como o acesso a informações. No objetivo de instituir novas políticas de controle social foram elaboradas as leis abolicionistas. Assim, como seus senhores, africanas/os e crioulas/os mantidos em regime de escravidão estiveram atentos às transformações sociais em curso, inclusive as legislativas. Não apenas percebiam o movimento das mudanças da estrutura da conjuntura como atuaram significativamente em todas as etapas em um processo que deslegitimava a anteriormente estabelecida. Interessados em alterar suas condições de vida, perceberam a via judicial como um componente fundamental na luta contra a escravidão e, destacadamente, um instrumento político de limitação da dominação senhoril.

As Ações Civis de Liberdade como instrumento formalizador do direito à liberdade

Entre os anos de 1850 e 1879, cerca de 70 escravos residentes na Corte tiveram seus nomes arrolados, por outrem, como apelantes ou apelados em processos que chegaram tanto à Corte de Apelação como ao Supremo Tribunal de Justiça.[5] Neste texto, será feita uma reflexão a partir da análise do conteúdo de 14 processos envolvendo casos de mulheres negras escravizadas. Constam da amostragem referente àqueles que chegaram ao tribunal de segunda instância de apelação na década de 1870. Trata-se de casos de mulheres escravizadas que apelavam fundamentalmente por seu direito à liberdade.

A maioria dos processos arrolados na amostragem, 23 ações civis ou criminais, tratava-se de ações de liberdade movidas contra aquilo que a/o escravizada/o considerava injusto na relação imposta pelo sistema escravista e que, por isso, via como necessária a intervenção judicial do Estado para forçar seus proprietários, ou seus herdeiros, a concordarem com as adequações que aquele sistema vinha sofrendo. Destacam-se nas ações os casos em que a principal demanda era a recusa dos mesmos em conceder a alforria, em muito dos casos já conquistada por ter sido comprida uma condição pré-determinada ou por ter sido saldado o seu valor aberto a título de indenização.

Ao longo de uma pesquisa realizada no Arquivo Nacional foram localizados os vinte e cinco processos que chegaram a Corte de Apelação.  Dois deles, os de Delfina e Júlia, entretanto, não foi possível a localização. Os aqui analisados são aqueles envolvendo mulheres negras escravizadas demandando as suas liberdades.[6] Retrataram experiências de luta vividas por africanas/os e crioulas/os para conquistarem suas alforrias e ingressarem nos mundos dos libertos, galgando, assim, degraus significativos na escala social possível de ser trilhada por aqueles que tiveram a escravidão como experiência de vida. Casos que são os últimos que a documentação tem registrado para os períodos finais da escravidão para as mulheres dessas categorias (ver quadro abaixo).[7]

Quadro Fontes – Referências de processos

Nome da ré Proc. núm. caixa ano Natureza da ação Tipo de Apelação
Francelina 7633 3699 1870 Ação de Liberdade Contra a reescravização
Carolina 12888 3682 1870 Ação de Liberdade Cumprimento de condição
Geraldina e outras 7553 3691 1870 Ação de Liberdade Contra a reescravização
Delfina 13747 3695 1871 Doc. não localizado
Eulália 14181 3683 1871/72 Ação de Liberdade Escravidão injusta
Efigênia 14298 3687 1872 Ação de Liberdade Escravidão injusta
Rosa 14273 3680 1872 Ação de Liberdade Cumprimento de condição
Josefa 14198 3693 1872 Ação de Liberdade Escravidão injusta
Eva 14133 3686 1872 Ação de Liberdade Escravidão injusta
Joaquina 14149 3688 1872 Ação de Liberdade Escravidão injusta
Marcelina 8293 3683 1873 Ação de Liberdade Escravidão injusta
Rita 14206 3684 1872 Ação de Liberdade Escravidão injusta
Francisca 14652 3688 1873 Ação de Liberdade Direito à autoindenização
Benta e outras 2623 3689 1879 Ação de Liberdade Prazo de matrícula

Fonte: acervo do Arquivo Nacional

 

É importante ressaltar que, apesar de esses processos chegarem de fato à Corte de Apelação ou ao Supremo Tribunal de Justiça década de 1870, tratam-se de apelações referentes a processos abertos em datas anteriores, que tramitaram por instâncias jurídicas inferiores.  O fato em si faz com que as experiências representem um retrato do ápice de negociações.  Especialmente porque a mediação do aparato institucional nos acordos envolvendo a alforria despolarizava um processo que podia envolver tão somente proprietário e propriedade.

É verdade que as várias mulheres que recorreram aos tribunais para terem a posse de sua liberdade, no mais dos casos, já a julgava conquistada. Isso por terem cumprido a condição imposta por cláusula testamentária, por força de específicas leis, por terem adquirido o pecúlio necessário à suas indenizações ou mesmo por terem sido submetidos a uma escravidão injusta. A tese defendida aqui é que suas experiências são indícios do modo operante do ativismo de mulheres negras escravizadas em suas lutas pelo direito à liberdade, sobretudo. Informam, ainda, os meandros das negociações necessárias à sua obtenção e algumas das dimensões das relações sociais de uma específica sociedade escravista que, apesar de sua força, tinha que se adequar aos princípios de legalidade que as leis abolicionistas instituíam.[8]

As ações de liberdade

Em uma sociedade escravista, do ponto de vista dos escravizadas/os, o status de livre pode ter sido percebido como um direito a se adquirir. E perseguido mesmo por escravas/os urbanas/os, que gozavam de certa liberdade e autonomia. Afinal, no caso da que se desenvolveu no Brasil, em geral, e no Rio de Janeiro, em particular, as distinções legais entre escravos, libertos e livres estabeleciam uma hierarquia até mesmo entre africanos e afrodescendentes. Aos escravizados não era permitido possuir sobrenome, firmar contratos, dispor de suas vidas, testemunhar contra homens livres, escolher seu trabalho ou empregador. Somente após a lei de 1871, por exemplo, foi-lhes possível firmar legalmente contrato com terceiros.[9]

Quanto às/aos libertas/os, apesar de a primeira Constituição do Imperial, de 1824, classificá-las/os como cidadãs/ãos brasileiros, os indivíduos dessa condição não gozavam das mesmas prerrogativas dos livres.   Além disso, havia distinções legais que se somavam a outros tipos de ultrajes decorrentes do tratamento dispensados aos dessas condições jurídicas. No trato social, observava-se uma gradativa intensificação do processo de racialização das relações. O reconhecimento daquelas distinções pode ter funcionado mesmo como estímulo para muitos buscarem galgar degraus sociais.  Impulsionando-os a esforçarem-se, até mesmo com sacrifícios, para conquistar sua liberdade e a de seus familiares, com prioridades para as mulheres cujo ventre determinava a condição sociojurídica dos descendentes de escravizados.

Diante da necessidade da intervenção do Estado no poder senhorial, a via judicial se apresentou, pelos exemplos encontrados, como um instrumento com o qual podiam contar não somente aqueles que as “duras penas” teriam conseguido acumular pecúlio, mas, também aqueles que tinham interrompido as negociações de compra por parte de seus proprietários ou de seus herdeiros.[10] Como já destacado, a despeito das transformações sociais que sinalizavam o fim da escravidão, alguns senhores desejavam prolongar o domínio sob sua propriedade ou mesmo tirar vantagens econômicas do esforço de seu cativo para conquistar a liberdade ou para melhorar sua condição social.  Foi esse o dilema enfrentado pela crioula Francisca de 36 anos, escrava do senhor Francisco Raimundo Correia, narrado no relato feito por seu curador Graciliano Aristides de Prado Pimentel quando, em 1873, elabora a petição inicial em do processo aberto em sua defesa:

Diz a preta Francisca, por seu curador, que, achando-se depositado por mandato de V. Ex.a, a fim de resgatar a sua liberdade, e tendo depositado em mão de José Patrício de Castro Pereira, a quantia de 600$ para esse fim destinado, requer à V. Ex. a se digne mandar citar ao seu senhor Francisco Raymundo Correia de Faria Sobrinho para vir receber em juízo na primeira audiência a referida quantia e passar carta de liberdade à suplicante ou nomear e aprovar peritos que avaliem a suplicante sob pena de revelia.[11]

A curta narrativa do dilema enfrentado por Francisca, que a impeliu travar uma batalha judicial contra o seu proprietário, possibilita atentar para o fato de que nas últimas décadas em que a escravidão vigorou nem sempre prevalecia o “cálculo senhoril”, como argumentou Manolo Florentino referente a algumas décadas anteriores. A despeito da concessão do proprietário, era uma época em que a via judicial, como outros tipos de atos de resistência, favorecia aos cativos em suas agências pela liberdade.

A leitura do processo informa que o senhor Francisco Raymundo Correia de Faria Sobrinho, o proprietário de Francisca, alegou em juízo tê-la comprada por R$ 1:600$000 (um conto e seiscentos mil-réis) – valor bem mais alto do que o de mercado à época da tentativa de autoindenização de sua escrava – e, segundo os argumentos do curador, pretendia repor esta quantia sem considerar a desvalorização e, também, os anos de exploração nos quais a escrava esteve “arruinando a saúde”.  A despeito da vontade do proprietário, Francisca em uma primeira avaliação, tem estipulada sua indenização em R$ 700$000 (setecentos mil-réis). Alegando estar sendo prejudicado, o senhor Francisco consegue que seja feita uma segunda avaliação de preço de sua cativa. Como resultado, o valor da indenização é aumentado para R$ 1:200$000 (um conto e duzentos mil-réis). Dando prosseguindo ao litígio, o curador de Francisca entra com um pedido de reforma desta segunda avaliação alegando ser ela ilegal.

Os bastidores do processo e os argumentos utilizados pelos advogados do senhor Francisco, que levaram os peritos, em uma segunda avaliação, aumentar em quase 80% o valor da indenização de Francisca, são detalhes que escapam ao nosso conhecimento. Mas cabe ressaltar a coragem de uma escravizada ao enfrentar seu proprietário em um tribunal. Afinal, o que estava em jogo no processo era o seu valor no mercado de carne humana. O seu direito à liberdade que Francisca garantiria mediante ao pagamento de um valor acordado. Não pode haver dúvida quanto o interesse dessa mulher nesse processo. Este fato parece ser de conhecimento do proprietário de Francisca que busca tirar o máximo de vantagens do projeto da visão de liberdade de sua escrava.[12]

A documentação colabora para dar visibilidade à dinâmica da relação envolvendo senhores e escravizados naquele período. O resgate do drama enfrentado por Francisca é importante fundamentalmente para destacar que a alforria forçada já era uma prática costumeira nas negociações judiciais por liberdade. Fato que tem relação direta com o texto final da redação da Lei 2040, que reconheceu uma série de direitos dos escravizados. Mas o seu significado é mais amplo, por indicar que os escravizados souberam extrair diversos significados daquela lei. Em verdade, foram bem além de sua intencionalidade para que o texto fosse revestido em conquistas rumo à aquisição da liberdade.

As/os africanas/os e seus descendentes, cativas/os, utilizaram as ações de liberdade, enquanto instrumento legal, como prerrogativa quando da impossibilidade de chegar a um acordo com seus senhores. Em verdade, o caso de Francisca apresenta uma situação limite, quando a via “política” não dava conta das negociações e a ganância dos senhores impulsionava-os até mesmo a burlar leis preestabelecidas no intuito de não conceder a tão almejada alforria a seus escravos. Porém, o que se tem tentado ressaltar é que o que foi recuperado da leitura da documentação, que revela a atuação política pela via legal como uma ação tática daquela mulher negra, pode ser considerado um modelo daquilo que Edoardo Grendi cunhou como “excepcional normal”. Uma experiência que é aparentemente excepcional, mas que se constitui como uma prática comum no cotidiano social.[13]

Foram muitos os cativos que, não tendo conseguido acumular pecúlio para elevar-se á condição de liberto e, atentos às transformações culturais de sua época procuravam meios legais obterem a sua alforria e para que seus descendentes desfrutassem desta condição. Outros casos analisados deram conta de demonstrar essa que parece ter sido uma norma do cotidiano social. A pesquisa documental permitiu trazer a tona experiências como a de Eva, escrava de Antônio Francisco Couto. Tudo leva a crer que, durante sua gestação, a escravizada, atuando em favor da liberdade, conseguiu acumular um pecúlio de R$ 70$000 mil-réis para comprar a alforria da filha que carregava em seu ventre logo após o seu nascimento.  Ao nascer, a criança recebeu o nome de Francelina. A ação, calculada, de Eva garantir-lhe-ia a consecução de um projeto familiar: ver livre a sua descendência. Afinal, segundo o que parecem ter sido os seus cálculos, os futuros filhos de sua filha não nasceriam sob o julgo da escravidão.

A parda Francelina nasceu em três de abril de 1860, no Rio de Janeiro. Foi liberta na pia de batismo por sua senhora, D. Joana, em maio do mesmo ano.  Entretanto, em 1870 teve sua liberdade contestada pelo senhor Couto, marido de dona Joana, que utilizando como argumento princípios como o de “o parto segue o ventre” e, denunciando o machismo daquela sociedade, o da “incapacidade da mulher”. Consegue, assim, a reescravização da menina.  Era outro tempo. Segundo o resultado da apelação proferido pelo juiz responsável pelo julgamento da ação: “não pode a mulher casada conceder liberdade a um escravo do seu casal”. Apesar do argumento do procurador Domingos Custódio de Souza – que a soma auferida com a liberdade da escrava teria servido à subsistência de ambos – em conclusão, o juiz argumentaria que “a tese jurídica, discutida nestes autos é a incapacidade da mulher do recorrido para conceder liberdade a uma escrava do casal”. A pequena Francelina, aos 12 anos de idade, deixa de pode ostentar o estatuto de liberta.

Se naquele tempo, naquela sociedade escravista, os esforços de Eva para obter a soma necessária para ver sua filha Francelina crescer como liberta não foram bem-sucedidos, o fato, em si mesmo, já é significativo. A experiência dessa mulher negra é um indicativo da complexidade das estratégias de lutas por direitos, pela liberdade e por melhoria das condições de vida e de um tipo de ativismo que as/os escravizadas/os protagonizavam no objetivo de defender e proteger direitos duramente conquistados. Um tipo de fenômeno que transcorria até mesmo de forma ascendente e geracional, ou seja, mãe lutando para que seus descendentes tivessem uma experiência de vida em melhores condições que a sua.  Vale anotar, no entanto, que, tendo em vista a diversidade de relações sociais possíveis e a complexidade das relações escravistas em áreas urbanas, nem sempre foi este o movimento observado nos processos de aquisição de alforria. Sua conquista era algo que dependia da experiência individual e de circunstâncias específicas.

Uma dessas circunstancia era o caso de ser considerado injusto o preço proposto pelo proprietário quando da oferta de indenização da/o escrava/o de sua propriedade. Era uma prática comum no cotidiano que foi legitimada com as determinações da lei 2040. A partir de sua promulgação, nesses casos, seria instituído arbítrio para avaliar o justo valor a ser negociado na transação de transferência da posse de liberdade.  No trato social, antes da lei, uma intervenção desse tipo podia ser feita até mesmo por um delegado de polícia, como se deu no caso envolvendo Francisca Rosa. A senhora de uma escravizada de nome Rufina, reconsiderou e prometeu, na presença da dita autoridade, conceder a alforria de sua escrava pelo valor de um conto e quinhentos, “pedindo tão somente que não demorasse a conclusão do negócio por mais de oito dias”.

O caso foi relatado em um recurso de apelação interposto pai da escravizada, o africano Francisco Diogo, da nação cabinda[14].Provavelmente, percebendo a importância de um ventre livre, após ter conseguido obter sua própria alforria, trabalhou duro para comprar libertar sua filha. Infelizmente o projeto familiar não foi bem-sucedido. O caso foi ajuizado por que proprietária nem mesmo deu atenção ao prazo proposto pelo delegado de polícia. Francisca Rosa, apesar de ter sido chamada a delegacia várias vezes, por se recusar a concluir as negociações, acabou fazendo com o que poderia ser uma rápida negociação se estendesse por muitos anos.

A abertura do processo se deu no ano de 1856. Mesmo ano em que o preto Francisco Diogo, no intuito de negociar a liberdade de sua filha, procurou a senhora Francisca Rosa para que esta “abrisse o preço” para a venda de sua cativa, o valor apresentado foi a quantia de dois contos de réis. Valor considerado abusivo pelo pai da apelada. Em julgamento de primeira instancia, em 1856, Francisco Diogo teve seu pedido deferido. Segundo as autoridades: “Vista do exposto sendo evidente que o suplicante tem legitimo direito de libertar sua filha, visto que a suplicante abriu preço à liberdade prometendo-o positivamente perante pessoas respeitosas”.

No entanto, Francisca Rosa recorre da decisão, saindo vitoriosa em um segundo julgamento em 1859. O resultado que foi contestado por Francisco que diz ser a filha,

Vitima da caprichosa bronca de uma mulher rancorosa, que depois de ter formalmente prometido conceder a alforria de uma sua filha, depois de ter aberto preço, retratou-se por ciúmes que teve de um seu amasio que fora um dos protetores da misera escrava, e a conseqüência de tudo, e que o recorrente depois de ter esgotado todas as suas economias, tudo quanto possuía, tem de ver sua filha voltar a um cativeiro bárbaro, a fim de cevar (?) a vingança por muito tempo comprimida por sua senhora.[15]

Pode ser que pai e filha tenham, de alguma forma, se beneficiado com o entendimento judicial sobre a questão. Uma vez que, em 1869, treze anos após a abertura do processo, o caso continuava sem resultado.  É o filho Francisca Rosa, Antônio Gomes Pereira, quem neste ano reivindicava a posse de Rufina.

Se no caso da crioula Francisca, exposto acima, a questão provavelmente envolvia o desejo do seu senhor em lucrar ao conceder a liberdade a sua escrava, o caso da supervalorização do preço da indenização de Rufina envolvia relações pessoais mais complexas. Segundo se verifica na documentação, um dos “protetores” que financiou o valor da pleiteada indenização de Rufina era ou fora amásio de dona Francisca Rosa.  Segundo o pai da Crioula Rufina, este teria sido o principal motivo de o processo se arrastar nos tribunais do Império por mais de uma década.  É importante ressaltar que mesmo tendo recentes estudos destacado a autonomia e a liberdade de movimentos dos escravos urbanos, Francisco Diogo foi enfático em desqualificar a condição de vida da filha, classificando-a de “mísera” e chamando de “bárbaro o seu cativeiro”.  Condições que as/os escravizadas/os tinham por objetivo mudar através de atos individuais e coletivos de resistência diários, que podem ser organizados e entendidos, destacadamente o seu caráter de ativismo, para uma maior compreensão de suas lutas.

Lutas que vêm de longe

Eva e Francisco Diogo não representam casos excepcionais de escravos fluminenses que conseguiram acumular pecúlio. Através de seu senhor, ou de um protetor de melhor condição social, vários escravizados depositaram judicialmente somas auferidas com o seu trabalho no objetivo de se autoindenizar. Só para exemplificar, e voltar às narrativas das experiências de atuação políticas pela via judicial por parte de mulheres negras escravizadas, verificou-se que, em outubro de 1876, quando a Junta Classificadora de Escravos[16] concluía o trabalho de seleção daqueles seriam contemplados para, com os recursos arregimentados, receberem a sua alforria, pelo menos 127 escravos residentes no Município Neutro foram identificado como possuidores de depositário.[17]

Trabalhar por anos para obter o pecúlio necessário para sua própria indenização e/ou a de seus entes queridos foi escolha estratégica daqueles que as circunstâncias assim permitiram.  Estratégias mais “políticas”, no entanto, tiveram que adotar aqueles que ou não tinham um ofício, ou não tinham a permissão para andar ao ganho, ou que sofreram qualquer tipo de impedimento de acumular um pecúlio. Estratégia desse tipo seria, por exemplo, se fazer merecedor da concessão da liberdade por parte do proprietário. Como já foi anotado, os modelos de alforrias gratuitas e de servir predominaram em meados do século XIX, destacadamente Corte, o que para Manolo Florentino representou uma etapa mais politizada das negociações entre senhores e escravos. É preciso ainda ressaltar que, em ambos os casos, podia estar em jogo tanto a reprodução das relações escravistas quanto uma possibilidade real de deixar para trás o “misero” cativeiro.

Nos casos de concessão da alforria por condicionalidade, a condição para a liberdade podia ser a de servir por longos anos a um proprietário ou a seus herdeiros. Como se corria o risco de uma eventual impossibilidade de efetivação do acordo, assumir a/o escravizada/a uma postura dócil e obediente até que decorressem os anos estipulados por promessa ou em testamento, era uma escolha estratégica e calculada de muitos cativos.  Fazia parte dos cálculos políticos, afinal, foram vários os casos em que se observavam esses projetos serem interrompidos por herdeiros ou tutores, atingidos pela crise econômica da época ou desejosos em ampliar seus lucros, para o que já chamou atenção Sidney Chalhoub. Circunstancias que não frustraram as expectativas de muitos escravizados fluminenses, não colaborou para desistirem de obter a liberdade e melhorar sua condição social, como comprovam os números recenseados.[18]

O caso da crioula Rosa, de 29 anos por ocasião da abertura de seu processo, é um exemplo de uma mulher negra escravizada que obteve a liberdade condicionada a um comportamento dito adequado. E foi exatamente este o argumento apresentado pela cativa ao curador para que ele construísse a narrativa de sua defesa. Em 1872, o processo de Rosa chega à Corte de Apelação. Nele, a apelada reclama por ter sido vendida, pela viúva de seu falecido proprietário, o senhor José Bento, ao senhor João Batista de Oliveira Ferraz.  Segundo Rosa, seu falecido proprietário, em seu testamento, teria lhe concedido a liberdade sob a condição de servir a seu sogro enquanto este vivesse.  O senhor Bento estabeleceu o seguinte no documento: “Se falecesse em época que seu sogro ainda vivesse, ficariam livres seus escravos com a obrigação de o servir, durante a sua vida, isto no caso de que tais escravos procedam bem”.[19]

Segundo o curador, a “autora sempre procedeu bem, obediente, sossegada, humilde e ativa nos serviços que lhe eram ordenados”, tal qual a exigência do falecido. Uma vez falecido o sogro do senhor Bento e tendo Rosa “procedido bem” em servi-lo enquanto este vivia, considerou a mulher negra que a condição de sua liberdade já estava satisfeita.  Supunha que poderia, então, gozar totalmente de sua liberdade. Entretanto, viu-se em meio a uma negociação que envolvia a sua venda e resultaria na continuidade da sua condição de cativa.  Rosa, então, muda a sua tática e recorre aos tribunais.

Muito provavelmente o comportamento obediente, sossegado, humilde e ativo na execução dos serviços demonstrado por Rosa ao longo dos últimos anos de vida do sogro do senhor Bento, fazia parte de uma estratégia para a obtenção de sua liberdade e melhoria de condição social. Podendo mesmo ser interpretado como uma prática individual e efetiva de transformação da realidade. Do tipo possível de ser acessado nas circunstâncias em que aquela mulher vivia. Estratégia parcialmente vitoriosa, uma vez que teve ela sancionada a sua liberdade em primeira instância.  Infelizmente, o senhor João Batista recorreu.  O resultado final deste libelo não foi possível constatar na documentação, mas vale o resgate da forma de luta dessa mulher negra pela causa da liberdade.

“Viver em conformidade” foi também a estratégia da escrava Carolina. Com o falecimento de dona Maria Felizarda do Nascimento, foi ela doada à sua filha Maria Felizarda da Cruz, em 1855. Isso por que teve sua liberdade condicionada a servir a proprietária, a mãe, e a seus donatários – marido, filhos e netos – enquanto esses vivos fossem. O Conhecimento minucioso da cláusula testamentária que narrava a condicionalidade proporcionou a construção do argumento que serviu de base à ação de liberdade movida contra o contestador Felicíssimo Antônio Gomes, em 1870, quando morre sua esposa, a donatária. O que rezava o documento, estabelecido no testamento deixado por Dona Maria Felizarda do Nascimento, sogra do réu, era que a liberdade plena da escravizada Carolina estava condicionada “aos serviços da A., à donatária já referida, e por morte d’esta donatária à seus filhos, e caso não os tenha, ao seu marido, e caso faleçam os donatários, ficaria liberta a A.”[20]

Segundo a autora do processo, a escrava Carolina, a donatária Maria Felizarda da Cruz tivera um filho, de nome Fructoso, e ele teria morrido em idade tenra.  A morte imatura do filho da donatária, provavelmente, criou na cativa a expectativa de se ver alforriada ao término do cumprimento da condição relacionada à filha de sua falecida proprietária. Não contava que o marido de Dona Maria Felizarda da Cruz se tornasse um impedimento ao usufruto pleno de sua liberdade. Em contrapartida, o senhor Felicíssimo Antônio Gomes, possivelmente, também não contava que a experiência do cativeiro pudesse ter produzido em Carolina algumas percepções acerca de seus direitos.

Carolina percebeu que as coisas estavam fora do lugar, uma vez que o que ficava definido pelo testamento que os donatários seriam, então, a filha, os netos e o marido da proprietária. Na ação judicial movida, a cativa reivindica não somente o seu direito à liberdade plena, como também indenização, pelos anos que serviu indevidamente ao genro de sua ex-senhora. A questão da rede de sociabilidade que favorecia aos cativos obterem acesso a informações contidas nos testamentos de seus falecidos senhores permanece como um importante tema que envolve rever não somente alguns de seus significados, mas, também, o grau de autonomia e mobilidade das/os cativas/os.

A luta legal pela causa da liberdade

A manutenção do compromisso da concessão da alforria mediante indenização ou por ter a/o escravizada/a comprido a “condição” pré-estabelecida, mesmo em cláusula testamentária, se apresentou como um aspecto de uma luta no âmbito de uma “cultura legal”, que tinha por objetivo a conquista da liberdade pelos próprios escravizados.  O conhecimento do conteúdo dos testamentos de seus falecidos senhores foi imprescindível nas batalhas judiciais para forçar supostos donatários ou herdeiros a manter o acordo feito pelo proprietário. Mas é necessário destacar que trabalhar além do necessário para se obter um jornal que excedesse o exigido pelos proprietários, ou em atividades extras – no caso dos escravos ganhadores – que possibilitava acumular um pecúlio, foi sim um dos modos operantes das estratégias utilizadas pelos escravizados urbanos nas últimas décadas de vigência da escravidão para transformar suas condições de vida, de maneira geral. A historiografia sobre o tema é ampla. Porém, foram relacionados para a reflexão proposta com este texto, processos e ações judiciais que tratam de específico ativismo de mulheres negras escravizadas, ou seja, do uso de uma “cultura legal” em suas práticas efetivas de transformação da realidade em que elas viviam.[21]

O texto será concluído com a abordagem de ações judiciais que chegaram à instância de apelação cujas autoras eram mulheres negras exclusivamente exploradas na prostituição. Trata-se da análise de Ações de Liberdade que chegaram aos tribunais do Município Neutro na defesa da liberdade com base no argumento de submissão a uma “escravidão ilegal e infame”. Todos foram abertos a partir do início da década de 1870. Envolviam até mesmo escravas pretas e pardas que se alojavam em casas montadas pelos seus próprios senhores que as obrigavam ao pagamento de uma diária bastante elevada. Aqui trataremos dos casos de sete mulheres negras que aparecem como autoras em processos, cuja referência já foi pontuada, a parda Rita, moradora da rua carioca nº. 103; a preta Efigênia de 24 anos; a parda Joaquina de 25 anos, moradora da rua das violas nº. 91; a crioula Josefa; Marcelina, escrava de José Vás da Costa; Eulália, moradora da rua do Hospício; e a quitandeira Eva.

De acordo com Sidney Chalhoub, as ações judiciais movidas na Corte em favor das negras exploradas na prostituição foram resultadas dos esforços conjuntos de um chefe de polícia e do juiz municipal da Segunda vara municipal de nome Miguel José Tavares. Fizeram no sentido de combater “o imoral escândalo da prostituição escrava”. No entanto, é possível perceber as agências das cativas no processo de construção de suas defesas por seus curadores. O acordo entre as duas autoridades, provavelmente feito com base no Direito Romano segundo o qual o senhor que forçasse a uma escrava a se prostituir era obrigado a libertá-la, se deu em 1871. Entretanto, nos anos 1867 e 1869, dois chefes de polícia – Conselheiro Luiz de Paiva Teixeira e Francisco de Faria Lemos, respectivamente –, teriam tentado criar posturas públicas com o mesmo objetivo: diminuir o contingente de mulheres negras que se prostituíam pelas ruas do Rio. (Macedo Junior, 1869).

Nos processos, os advogados aparecem na condição de curadores. Como curadores, requeriam a remoção de suas curateladas para depósitos particulares ou públicos, onde aguardariam o julgamento da ação sumária de liberdade que era impetrada sob a alegação de má utilização da propriedade privada. Mau uso que rendia considerável lucro. Explorando suas escravas na prostituição os proprietários, em sua maioria mulheres, podiam obter uma renda diária de até quatro mil réis. Antes de se verem envolvidos em diligências judiciárias, muitos senhores libertaram as escravas que possuíam no exercício da prostituição. O que pode ter contribuído para um considerável aumento no número de cartas de alforria registradas nos cartórios da Corte no ano de 1871.

Em 1871 cerca de 200 escravas sexualmente exploradas estavam em litígio através de seus curadores. Todas enfrentaram judicialmente seus proprietários, questionamento o direito de propriedade, afirmando terem eles perdido o direito sob suas pessoas por aquela prática. Por exemplo, o curador da preta Efigênia alegou que a perda de direitos de seu proprietário se dava por infame procedimento, por prática de atos contra a moral e bons costumes.  Em defesa de suas curateladas os advogados explicitavam as condições em que eram submetidas.  Segundo eles, as escravas eram obrigadas a receber todos e quaisquer tipos de indivíduos.  Também declararam que o trabalho causava sérios danos à saúde das cativas, que a atividade era proibida por leis nacionais e internacionais, não podendo uma escrava estar a ela submetida. Que o valor pago era todo entregue aos proprietários. Afirmavam, também, ser a prostituição uma atividade bastante lucrativa.

O processo da parda Joaquina, aberto em 1872, nos permite entrar um pouco no cotidiano de uma destas mulheres. A mulher negra chegou ao Município da Corte vindo da província de Santa Catarina a bordo de um vapor de nome Imperador na condição de escrava de José Bonifácio Caldeiras de Andrade. Foi vendida na Corte à dona Florinda, moradora na rua da Viola nº. 91, que logo se dedicou a explorá-la na prostituição.  Mais tarde, Joaquina foi vendida para dona Amélia Carolina Garcia, filha do Conselheiro Thomas Xavier Garcia de Almeida.  Enquanto vivia o Conselheiro, a integridade de Joaquina foi preservada.  Após a sua morte, provavelmente por estar enfrentando os problemas econômicos do período, sua filha Amélia passa a alugar a escrava à dona Francisca, moradora à rua do regente nº. 24, que também passou a explorá-la sexualmente.

De acordo com a própria Joaquina, cobrava-se aos clientes, por visita, R$ 5$000 (cinco mil-réis). E ela recebia até oito homens, diariamente. O que significava que uma escrava submetida à exploração sexual poderia render ao seu proprietário até R$ 40$000 (quarenta mil-réis) diários, algo em torno de R$ 1200$000 (um conto e duzentos mil-réis) mensais.  Importa anotar que, quando entra com processo, exigindo a sua alforria, a mulher negra possuía alguns graus de autonomia sob sua vida. Na qualidade de escrava de ganho, já havia trabalhado no bordel de dona Valquíria Adelaide Belford, que lhe dava alimento e onde conseguia até R$ 50$000 (cinquenta mil réis) diários.   Seu bom desempenho pode tê-la favorecido na negociação com sua senhora.

Um acordo entre as duas tornou possível a escrava viver por sua própria conta, pagando um aluguel de trinta mil-réis mensalmente, mais o jornal exigido por sua proprietária, pois ela relata que:

Em março de 1871, dali saíra (do bordel de Dona Valquíria) e foi viver em casa de sua própria conta a rua de São Joaquim nº.49 – o que comunicou a D. Amélia, já então casada com o R. (o réu seria o atual marido de D. Amélia o senhor José Júlio da Silva) e a quem entrega o jornal.[22]

O nome de Joaquina provavelmente figurava entre os, aproximadamente, duzentos processos de liberdade ajuizados nos anos de 1871 e 1872. Foi por ter sido sua primeira ação rumo à aquisição da liberdade frustrada por sua ex-proprietária que seu processo chegou à corte de apelação.  Pelo depoimento de Lionídia Rosa de Jesus, uma das testemunhas de defesa arrolada no processo, dona Florinda, primeira proprietária de Joaquina na Corte, só teria vendido a escrava ao saber que ela estava juntando pecúlio para remir-se da escravidão, disse ainda que o dinheiro vinha de donativos de “pessoas que compadeciam de sua sorte”.  Dona Florinda, no entanto, apossou-se da soma e vendeu a dita escrava.

Nota-se que, apesar das circunstâncias, a escravizada lutava efetiva e insistentemente para transformar a realidade em que vivia.  Apesar da autonomia e da provável melhoria da condição de vida, ter posse de sua liberdade era algo imprescindível para Joaquina. E, atenta à dinâmica do jogo político, viu na iniciativa daquelas autoridades uma possibilidade real de obtê-la, legalmente. Declarou em juízo já possuir o direito a usufruí-la desde que fora explorada sexualmente por dona Florinda, logo que veio província de Santa Catarina para o Rio de Janeiro.  Concorria para sua defesa o fato de também estar sendo exposta à exploração sexual por seus proprietários por ocasião da abertura do processo. No entanto, a condição de “explorada” não fica muito clara no caso de Joaquina, as testemunhas arroladas não contribuíram muito para sua defesa. Foram, inclusive, desqualificadas pelo advogado de defesa do réu.

O desfecho do caso de Joaquina será analisado um pouco mais adiante.  Mas até onde o seu processo permite recuperar, a escravizada não era “constrangida a deixar que o seu corpo fosse devassado e o seu pudor ultrajado, já por ameaças, já por efetivos castigos”,[23] como fora o caso de da escravizada de nome Josefa. Assim descrita a sua experiência de exploração sexual, esta curatelada, após passar por uma série de “constrangimentos”, foi também arrolada entre as prostitutas da Corte e o advogado designado para ser seu curador entra com uma ação de liberdade. Em 1872, manda citar como réus Caetana Rosa, Manoel Marquês de Carvalho Alvim e Matilde Rita do Nascimento. Todos com efetiva participação na trajetória de exploração sexual daquela mulher negra. A primeira por haver lhe iniciado no exercício da atividade e explorado, por três anos, seu corpo na prostituição, o segundo e a terceira teriam comprado a escrava para submetê-la ao mesmo tipo sujeição. Ainda assim, Josefa extrai das circunstâncias forças para lutar pela sua liberdade.

A preferência sexual de senhores por belas escravas pretas e pardas é tema recorrente na historiografia. Como se pode inferir, explorar economicamente tais mulheres representou um excelente negócio para senhores ávidos de aumentar seus rendimentos.  Alternativamente – ou por não ter alternativa –, para algumas cativas, como parece ter sido o caso de Joaquina, a atividade se apresentou como oportunidade para obtenção de melhor condição de vida. Afinal, quando sua proprietária, dona Amélia Carolina Garcia, comunicou à Joaquina a necessidade de empregá-la ao ganho nas ruas do Rio de Janeiro, segundo teria confidenciado à sua amiga Lionídia, a própria cativa teria exposto as dificuldades de atuar como ganhadeira exercendo outras ocupações e teria sugerido ganhar por meio do exercício da prostituição.

A atividade parece ter estado nos cálculos de Joaquina, entendeu que se entregando à prostituição poderia amealhar o suficiente para juntar o pecúlio necessário à autoindenização. Isto ficou evidenciado também no caso de Marcelina, escrava de José Vás da Costa, cujo processo chegou à Corte de Apelação em 1873. A escravizada declarou em juízo que, por cinco anos, vinha empregando-se nesta atividade. Declarou também viver “sob si” e que “para esse efeito recebeu de seu senhor autorização escrita para fazer economias separadas, e até para promover um benefício em seu favor”. O problema foi que “apesar de todos os lucros colhidos nesta torpe indústria não quis o seu senhor conduzi-la a liberdade”.[24]

Marcelina era um sobrevivente ao regime de opressão do escravismo. Vivia com sua mãe, era responsável pelo pagamento de seu próprio aluguel e remetia mensalmente ao senhor José um jornal de R$ 60$000 (sessenta mil-réis). Chegou até mesmo a ser citada nos autos como “chefe de família”. De acordo com os argumentos do advogado de defesa da mulher negra escravizada, a condição de vida da cativa poderia se “nivelada” aos livres da cidade. E para viver como se livre fosse, tinha que se submeter, a contragosto, a uma atividade que classificou como “torpe indústria”.

Entretanto, o círculo do trajeto percorrido pela informação sobre a decisão do delegado de polícia e do juiz da Segunda Vara de promover as ações de liberdade envolvendo as escravas submetidas à prostituição por seus senhores, iniciada a pelo menos dois anos antes da abertura do processo em seu favor, chegou à Marcelina.  Como a liberdade estava no horizonte de suas expectativas, a estratégia utilizada por aquela mulher negra naquela conjuntura foi a de também recorrer, em seu próprio favor, “à humanitária providência tomada por esse juiz para arrancar do cativeiro algumas escravas”. Também no seu caso, o pecúlio oferecido ao seu senhor não foi aceito.  A via legal da autoindenização não fora bem-sucedida. Apesar da abertura de seu preço pelo proprietário, e de a escrava já possuir pelo menos R$ 400$000 (quatrocentos mil-réis) a título de pecúlio, o senhor Vás se recusou a finalizar a negociação.

Mas foram deverás vários os casos bem-sucedidos. Segundo relatório enviado pelo Chefe de Polícia da Corte ao Ministro da Justiça, somente no ano de 1871 teria sido expedido 186 cartas de alforrias motivadas por haver os proprietários de escravas explorando-as sexualmente.[25] Nessas circunstancias, é bastante plausível que a difusão da decisão judicial em favor das negras escravizadas exploradas na prostituição possa ter, de fato, aberto brechas para algumas escravas tentarem obter suas alforrias acusando indevidamente seus senhores. Foi o que concluiu o juiz que indeferiu a ação de liberdade movida pela suposta quitandeira Eva.

Assim como Marcelina, Eva teria procurado, em 1872, as autoridades judiciais para acusar seu proprietário, o senhor Eduardo Xavier dos Santos Lima, de explorá-la na prostituição pelo menos um ano antes. Segundo sua declaração, ela se prostituía em uma casa da rua Estreita de São Joaquim. Seu proprietário alegou em sua defesa que tinha a negra em ganho lícito, recebendo por dia o “módico jornal de mil duzentos e oitenta réis” proveniente da venda de quitandas e que não era culpado se ela, sem o seu consentimento e em virtude de sua “ninfomania”, se entregava à prostituição. O curador, entretanto, retrucou dizendo ser impossível que o senhor de Eva desconhecesse sua verdadeira atividade. Além disso, a atividade de quitandeira não poderia render o acerto que lhe era pago.

Dessa feita, a balança da justiça pendeu em favor do réu. O juiz em sua sentença considerou que Eva tinha apenas licença para quitandar e que se prostituía sem o conhecimento ou responsabilidade do proprietário. O argumento vencedor foi o produzido pelo advogado de defesa do senhor Eduardo. Ele teria se apresentado em juízo e afirmado que seria o exposto pelo curador teria sido “invento para ver a autora se consegue a liberdade envolta com essas outras que têm sido depositadas”. Segundo ele, seu cliente teria a apelada em “ganho lícito, que provendo trabalho auferindo de seus jornais unicamente quatro patacas (1$286 mil-réis) por dia. Além disso, segundo as testemunhas arroladas, até mesmo para a defesa da autora, a escrava nunca tinha sido vista dedicando-se à prostituição, apenas souberam do fato por terem ouvido a confissão da própria boca de Eva.

Pode não ter sido esse aquele caso, mas explorar as belas cativas em atividade sexual rendia aos senhores uma pequena fortuna que significaria, em pouquíssimo tempo, a quantia suficiente para a compra de uma nova escrava. Considerando que o aluguel de uma escrava variava de R$ 30$000 (trinta mil-réis) a R$ 50$000 (cinquenta mil-réis) mensais, para alguns proprietários, não preocupados com a “moral e os bons costumes”, este tipo de atividade, na qual se podia empregavam sua escravaria feminina, era uma excelente fonte de lucro. Donas de bordéis, como Valquíria Adelaide Belford Silveira, podiam enriquecer com tal atividade. Segundo a preta escrava de nome Efigênia, sua falecida proprietária, Eva Joaquina de Oliveira, tinha cativas pelo menos oito escravas, todas sendo obrigadas a se prostituir.

Algumas donas de bordéis podiam mesmo funcionar como “testa de ferro” de proprietários ambiciosos.  De acordo com o processo da parda Eulália, escrava de propriedade do senhor Antônio Pereira Liberato, quando veio da província do Paraná para supostamente ser negociada por Francisco José Pereira Liberato – irmão do proprietário contra quem, indevidamente, é movida a ação de liberdade – teria sido explorada na prostituição no bordel de Dona Corina, uma parda moradora da rua do Hospício. Eulália, no entanto, declarou que a diária de 15$000 mil-réis que obtinha por ser explorada nesta atividade não era destinada à Dona Corina antes, “a uma moça que lá ia buscar”. A “moça” em questão podia ser um membro da alta sociedade fluminense, como dona Amélia Carolina Garcia, filha de um renomado político brasileiro, o Conselheiro Thomas Xavier Garcia de Almeida. Como já anotado, após a morte do pai, ela passou a alugar a negra escrava Joaquina à dona Francisca que a explorava sexualmente. A herdeira do conselheiro pode ter feito parte de uma categoria de mulheres daquela sociedade que, pela pouca habilidade em lidar com um mundo dos negócios eminentemente masculino, e por considerarem mulheres de uma categoria superior, estiveram mais afeitas a encaminhar suas escravas ao ganho através da arte de seduzir. Provavelmente a prática se dava com os seus consentimentos.

Como relatado, quando chamado a depor como réu no processo, o proprietário de Eulália, alegou desconhecer que sua cativa estivesse em uma casa para ser explorada na prostituição. Identificava a casa de Corina como tão somente uma casa para venda de escravos. Assim como dona Francisca, dona Corina e seu estabelecimento poderiam estar colaborando para que pessoas da alta sociedade, como os irmãos Pereira Liberato e dona Amélia Carolina Garcia, pudessem estar aumentando seus lucros explorando o corpo de negras escravizadas, sem o prejuízo de serem vistos como transgressores da “ordem e dos bons costumes”.

E o processo histórico aqui analisado também envolveu a desumanização da mulher negra. Quiçá para que a sua exploração sexual, mesmo por outras mulheres, não entrasse em desacordo com o ideal de feminilidade vigente à época – que procurava destacar o papel da mulher como o de mães protetoras, parceiras e amáveis donas de casa. Um dos chefes de polícia do período, o senhor Francisco de Faria Lemos materializou a ideologia ao dizer em seu relatório que “a escrava posta à janela, não é uma mulher, é uma máquina que se move ao aceno da senhora, que a faz rir para os transeuntes com medo de ameaças das lágrimas de dor do azorrague”. [26] Importa ressaltar que o mesmo deixava transparecer no seu relato a prevalência do elemento feminino nesse tipo de exploração.

Como já destacado, aquela não era apenas uma sociedade com escravo. Era uma sociedade escravista. Como tal, produzia diferentes estruturas de acordo com específicas conjunturas. Assim, nem sempre pardas e pretas donas de bordéis foram apenas “testas de ferro” de conceituados membros da Corte. Em alguns casos explorar sexualmente negras escravas foi estratégia de sobrevivência àquele mundo. Tendo em vista a dinâmica de exclusão capitalista, a performance pode ter sido o caminho encontrado também por mulheres negras alforriadas para extrair das circunstancias opressora de sua vida um arranjo econômico plausível. Por exemplo, no caso da crioula Efigênia, sua falecida proprietária de nome Eva Joaquina de Oliveira era uma preta forra. Na condição de curatelada, Efigênia declarou que a mulher negra tivera a propriedade de pelo menos oito escravas, todas exploradas na prostituição.  Na ação que move contra seus herdeiros e o senhor Manoel Furtado de Mendonça – testamenteiro, inventariante e ex-amásio –, afirma que foi comprada pela preta aos catorze anos de idade e explorada na prostituição por pelo menos seis anos.

Difícil saber se a condição racial dos réus interferiu no desfecho do caso da crioula Efigênia. O que temos como fato é que, entre sucessos e fracassos judiciais, pode-se destacar o resultado da sentença que se pode ler no seu processo, que tramitava na Corte de Apelação em 1872, como uma das poucas Ações de Liberdade examinada a constar a imputação dos envolvidos na exploração sexual daquelas mulheres negras. Nela se lê:

Por este procedimento (i.e., o de obrigar a escrava a atos contra a moral e os bons costumes), segundo o direito romano, subsidiário do nosso, perderão os réus o direito sobre a autora, que deve ser declarada livre, sendo eles condenados nas custas.[27]

Considerações finais

A análise sobre o papel e as experiências da mulher negra, destacadamente no trabalho escravo, de fato, tem sido um dos temas essenciais para a compreensão dos modos de funcionamento das sociedades marcadas pela tragédia da escravidão. E tema é caro ao feminismo negro. Ao defender que as mulheres negras são posicionadas dentro das estruturas de poder de maneiras fundamentalmente diferentes das mulheres brancas, o movimento encontra a legitimidade argumentativa em análises históricas como a feita nas páginas anteriores.

Destacadamente, o feminismo negro busca demonstrar que as relações racializadas, produzidas em contextos como aquele em que a escravidão vigorou como sistema que organizava a ordem social, influenciaram diretamente na feminilidade negra. Fundamentalmente por razão de serem as mulheres negras escravizadas percebidas como unidades de trabalho, unidades estas desprovidas de gênero. Mulheres cuja desumanização resultava em que aspectos da existência fossem ofuscados mesmo em análises sobre o trabalho compulsório. Os debates e discussões sobre a promiscuidade sexual obscureciam a situação das mulheres negras durante a escravidão, resultando na invisibilidade de suas agências.

A se permitir acompanhar reflexões como as de Sueli Carneiro a respeito de um provável majoritário contingente de mulher que não constituem parte do mito da rainha do lar, o feminismo negro remonta as vivências de ume grupo específico de mulheres e recuperam os sentidos de suas lutas enquanto sujeitos que, de fato, protagonizaram suas histórias. Conforme sugestões de Angela Davis, a partir desta perspectiva teórica e de específicos procedimentos metodológicos, é possível, então, deslocar olhares viciados sobre o tema do feminismo hegemônico e atribuir centralidade ao papel da mulher negra na luta contra as explorações que se perpetuam no presente.

Quando a documentação permite adentrar mais incisivamente nas redes sociais tecidas mesmos em contextos onde a opressão sobre os corpos femininos negros foi mais intensa, percebe-se que a as donas desses corpos, ou as que tiveram de lutar para que eles fossem seus, não permitiram que suas aspirações fossem frustradas. E quando o próprio sistema produziu oportunidade de corroê-lo, estiveram ali, atentas.


* Lucimar Felisberto dos Santos é pós-doutora pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2015); Doutora em História Social do Brasil pela Universidade Federal da Bahia (2013); Mestra em História pela Universidade Federal Fluminense (2006) e Graduada em História pela Universidade Federal Fluminense (2003). Experiência em pesquisas e estudos sobre História, Historiografia e Relações raciais no Brasil Imperial, com ênfase nas especificidades da história do Rio de Janeiro, escravista e urbano; sobretudo nas mudanças conjunturais ocorridas na virada dos séculos XIX ao XX.

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Notas

[1] Aqui, considera-se uma construção política e social. Seguindo a linha analítica proposta por Stuart Hall, utiliza-se “raça” como uma “categoria discursiva em torno da qual se organiza um sistema de poder socioeconômico, de exploração e exclusão – ou seja, o racismo” (Hall, 2009, p. 69).

[2] Em verdade, a Corte de Apelação do Distrito Federal foi criada posteriormente, em 1890, em substituição ao Tribunal das Relações do Rio de Janeiro estabelecido em 1751. Representou um órgão de Segunda Instância aonde eram julgados recursos dos diversos tribunais civis de todas as províncias brasileiras

[3] Segundo cálculos de Pedro Carvalho de Mello (1984) o preço de um escravo no mercado do Rio de Janeiro variou de R$ 627$000 (seiscentos e vinte e sete mil-réis) em 1835, para aproximadamente R$ 1008$000 (um conto e oito mil-réis) em 1870.  Nos anúncios de venda de escravos analisados no Jornal do Commercio, no início da década de 1870, os preços variavam de R$ 300$000 (trezentos mil réis) – um escravo de meia idade – a R$ 1:200$000 (um conto e duzentos mil réis) – no caso de um escravo de 36 anos “acostumado ao serviço de ganho, ou para outros serviços”.  O preço de venda dos escravos na década de 1870, seguiu em ritmo ascensional, sendo um cativo vendido, em 1880, por até R$ 1:600$000 – um conto e seiscentos mil-réis.

[4] Refletindo sobre o assunto, Sidney Chalhoub (1999, pp. 96-98) se utiliza da análise do caso do escravo Pancrácio, personagem de uma das obras de Machado de Assis. Utilizando como fio condutor para conduzir sua reflexão a narrativa criada para o personagem pelo literato, comenta as mutações das relações sociais na Corte no período que precedeu a abolição

[5] Em 18 de setembro de 1828, é criado o Supremo Tribunal de Justiça, como órgão de última instância, substituindo o Tribunal da Mesa do Desembargo do Paço, Mesa da Consciência e Ordens e a antiga Casa da Suplicação do Brasil. A Relação do Rio de Janeiro voltou a atuar como órgão de primeira e de segunda instâncias.

[6] A listagem constituiu parte de uma amostra das fontes escritas analisadas para a produção de um capítulo da minha dissertação de Mestrado defendida, em 2006, no Programa de Pós Graduação da Universidade Federal Fluminense (Santos, 2016).

[7] Processos que chegaram à Corte de Apelação, a 2ª vara cível do Município da Corte e fazem parte do acervo do Arquivo Nacional.

[8] Muitas das estratégias levadas a cabos por escravizados entraram para a legalidade após a publicação da Lei de 1871. Por exemplo, a lei, em seu artigo 4.º, regulamentou a prática do pecúlio, obrigando os senhores a concederem liberdade ao escravo que tivesse em sua posse o valor de sua indenização.

[9] Ao se referir Lei de 1871, está tratando-se da chamada Lei do Ventre Livre, também conhecida como “Lei Rio Branco”. Foi uma lei abolicionista, promulgada em 28 de setembro de 1871, assinada pela Regente em exercício, a Princesa Isabel. A principal disposição do instrumento legal foi tornar livres (ou ingênuos – categoria criada com a lei) todos os filhos de mulheres escravas nascidos a partir da data de sua promulgação. Mas a dita lei tinha seus meandros. Teve a função de regulamentar relações de trabalho aos libertos e escravizados, por exemplo. Quanto à criança nascida do “ventre livre”, como seus pais continuariam escravos (a abolição total da escravidão só ocorreu em 1888 com a Lei Áurea), a lei estabelecia duas possibilidades: poderiam ficar aos cuidados dos senhores de sua mãe, servindo-os, até os 21 anos de idade ou entregues ao governo para que o mesmo depusesse de seus serviços. Ao fim e ao cabo, o principal objetivo do instrumento legal foi o de possibilitar a transição, lenta e gradual, no Brasil do sistema de escravidão para o de mão de obra livre

[10] Sobre a flutuação dos preços do cativo, ver Mello, 1984, p. 104.

[11] Processos crimes da Corte de Apelação, 2ª vara cível, processo 14652, cx. 3688, Arquivo Nacional, 1873.

[12] De acordo com os números utilizados por André Boucinhas (2006) em sua dissertação de mestrado para analisar o consumo e comportamento no Rio de Janeiro na Segunda metade do século XIX, os trabalhadores urbanos e artesãos auferiam uma renda média anual de R$ 721$000 (setecentos e vinte e um mil-réis) ou R$ 60$000 (sessenta mil-réis) mensais.

[13] Edoardo Grendi (1977, pp.506-520), no artigo “Micro-analisi e storia sociale”, propôs um paradigma, baseado no oximoro “excepcional normal”. Sua reflexão era em torno da questão do uso das fontes históricas como “testemunhos indiretos”. Chamou a atenção para o fato de que qualquer documento aparentemente excepcional pode resultar, na realidade, “excepcionalmente normal” por, na verdade, revelar fatos comuns à realidade que o pesquisador tem por objetivo se aproximar

[14] Ações de liberdade da Corte de Apelação, 2ª vara cível, processo 7809, cx. 3798. Apelada: Rufina, crioula por seu pai o preto Francisco Diogo, Arquivo Nacional, 1856

[15] Idem.

[16] A Junta foi um órgão veiculado ao Fundo de Emancipação de Escravos, instrumento jurídico instituído pela lei “do ventre livre” que regularizava a lenta e gradual abolição no Brasil. O artigo 4º da lei nº 2.040 tratava sobre a obrigatoriedade de concessão de liberdade aos escravos que apresentassem “seu valor de compra” (Santos, 2009, pp. 18-39).

[17] Junta Classificadora dos Escravos, notação 6-1-39, Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro.

[18] Ver CHALHOUB, Visões da Liberdade, op. cit.

[19] Ações de liberdade da Corte de Apelação, 2ª vara cível, processo 14273, cx. 3680. Apelada: Rosa, Arquivo Nacional, 1872.

[20] Idem

[21] Daí defender Chalhoub que “o texto final da lei de 28 de setembro foi o reconhecimento legal de uma série de direitos que os escravos haviam adquirido pelo costume e a aceitação de alguns objetivos das lutas dos negros” (Chalhoub, 1999, p. 159).

[22] Ações de liberdade da Corte de Apelação, 2ª vara cível, processo 14149, cx. 3688. Apelada: Joaquina, Arquivo Nacional, 1872.

[23] Ações de liberdade da Corte de Apelação, 2ª vara cível, processo 14198, cx. 3693. Apelada: Josefa, Arquivo Nacional, 1872.

[24] Ações de liberdade da Corte de Apelação, 2ª vara cível, processo 8293, cx. 36883. Apelada: Marcelina, Arquivo Nacional, 1873.

[25] Relatório do chefe de Polícia da Corte ao Ministro da Justiça, Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1871.

[26]  Relatório do chefe de Polícia da Corte ao Ministro da Justiça, Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1871.

[27] Ações de liberdade da Corte de Apelação, 2ª vara cível, processo 14298, cx. 3687. Apelada: Efigênia, Arquivo Nacional, 1872.

COR E LETRAMENTO NOS CENSOS: RECIFE E CERCANIAS, 1872-1890

Resumo: O artigo discute questões educacionais e suas implicações políticas, étnicas e sociais no Recife e suas cercanias, no século XIX. Tomando como base de análise os Censos produzidos em 1872 e 1890, procuramos compreender como era o acesso à instrução primária e os níveis de letramento da população naquele referido espaço. Documentos públicos, petições de populares, jornais e outros tipos de fontes nos ajudam a adensar as análises. Ao final, demonstramos o recorte étnico-social que perpassou a escolarização básica na capital pernambucana e região.

Palavras-chave: escolarização; censos; instrução primária; Recife.

Abstract: This article discusses educational issues and their political, ethnic and social implications in Recife and its surroundings in the 19th century. Based on the analysis of the Censuses produced in 1872 and 1890, we sought to understand the access to primary education and the literacy levels of the population in that space. Public documents, popular petitions, newspapers and other types of sources help us thickening the analysis. In the end, we show the ethnic-social dimension that permeated primary schooling in Pernambuco’s capital and region.

Keywords: schooling; census; primary education; Recife.

O artigo que entregamos aos leitores é um ensaio que se ancora nos Censos de 1872 e 1890. O primeiro deles foi o mais amplo, geral e de caráter científico realizado no Império do Brasil. Apesar disso, o governo subestimou os problemas que enfrentaria para contabilizar uma população que habitava um território com dimensões continentais. Os prazos curtos, que foram estipulados para a difícil empreitada, ainda esbarraram na precariedade dos transportes e das comunicações. Foram tantos os problemas técnicos que precisavam ser superados, no registro das informações e na tabulação dos dados, que os resultados da missão estatística somente foram publicados em 1877. O Censo de 1890, por sua vez, que foi a segunda grande contagem da população brasileira, realizada no alvorecer do período republicano, também encontrou grandes problemas em seu processamento. Entre eles, as desconfianças que foram suscitadas nos recenseados e a demorada publicação dos resultados finais, feita em 1898, por causa irregularidade no envio de dados (Rodarte e Santos Júnior, 2008, p. 3; Gouvêa e Xavier, 2013, p. 104-105). Por tudo isso, ambos os documentos possuem imperfeições, mas são excelentes bússolas para compreendermos o Brasil oitocentista.

Ainda do ponto de vista empírico, para complementar o trabalho analítico que foi feito a partir dos Censos de 1872 e 1890, utilizamos as mais diversas fontes que podem ser encontradas em arquivos pernambucanos. Especial atenção mereceram as que foram produzidas pelos poderes públicos locais, como os relatórios da Instrução Pública, as correspondências trocadas entre os diretores desse órgão e os chefes do Poder Executivo e as leis que foram aprovadas para regular a escolarização. As petições de populares, que foram enviadas ao Poder Legislativo por meio de abaixo-assinados, solicitando a criação e/ou manutenção de aulas noturnas, também compõem com relevância o nosso corpus documental. Das entidades da sociedade civil recifense, compulsamos os estatutos e os manifestos de organizações voltadas para o fomento da instrução primária e os livros de matrículas dos alunos que estudaram no Liceu de Artes e Ofícios, estabelecimento de ensino criado por artesãos e professores pretos e pardos filiados a Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais. Os jornais pernambucanos, sejam eles de grande ou pequena circulação, finalizam o material que fundamental nossas análises.

Em todas as fontes que compulsamos, buscamos compreender as relações entre cor, condição jurídica, instrução e classe social na cidade do Recife e suas cercanias, tendo como recorte temporal os anos 1870 e 1880. Esse período é de vital importância não somente por causa dos censos de 1872 e 1890, que nos ajudam a aferi-lo, mas porque foi uma época em que se fortaleceu, no Império do Brasil, o debate sobre a escolarização popular em tempos de desagregação do escravismo e da criação de critérios educacionais para o exercício dos direitos políticos. Para apoiar nossas escolhas temática e temporal, a nova historiografia da educação tem absoluta importância, pois há muito tempo seus pesquisadores desconstruíram o mito de que os escravos e seus descendentes, trabalhadores livres ou libertos, pretos ou mestiços, no século XIX, passaram ao largo dos bancos escolares, estivessem eles em estabelecimentos de ensino públicos ou particulares (Fonseca, 2002 e 2007; Barros, 2005; Silva, 2000; Veiga, 2008). Sem dúvida, tal contribuição, cujos textos mais seminais foram publicados na década de 2000, dialoga com a renovação das pesquisas em história social da escravidão, iniciada nos anos 1980.

Apesar dos rigores e dos critérios acima descritos, há uma série de lacunas nesse artigo. Sem dúvida, elas são fruto da complexidade do período estudado, das análises mais panorâmicas que foram empreendidas e do fato de a pesquisa estar em processo de maturação. As limitações editoriais de um texto dessa natureza, que toca em tantos assuntos diacronicamente sensíveis, também nos impõem escolhas. Por exemplo, aqui não realizamos recortes de gênero, mas sabemos que a escolarização das mulheres é assunto de extrema importância epistemológica e política. Oportunamente, priorizaremos o debate da temática. Como último alerta, talvez o leitor sinta falta de algumas comparações entre os Censos de 1872 e 1890, mas, nem sempre isso é possível para o pesquisador. Apesar de ambas as contagens populacionais possuírem questionamentos comuns, outros são bastante específicos. Por exemplo, a realizada no período imperial faz um levantamento dos menores em idade escolar, indica sua cor e mensura os que frequentam estabelecimentos de ensino. A outra nada nos informa sobre o assunto.

A cor, a condição jurídica e a instrução da população recifense segundo o Censo de 1872

Em 11 de janeiro de 1873, o Diário de Pernambuco informava aos seus leitores que a cidade do Recife era composta por onze paróquias.[1] Orientado pela matéria que revelava alguns números do Censo de 1872, e também apoiado pela bibliografia especializada, sabemos que entre as paróquias mais centrais, pujantes e movimentadas estavam São Frei Pedro Gonçalves, onde estava localizado o porto e as principais casas de grosso trato da capital pernambucana, Santo Antonio, lugar onde se concentrava as vidas pública e administrativa provinciais, São José do Ribamar, região mais precarizada onde residiam muitos artesãos de pele escura, e Boa Vista, seio das camadas médias urbanas e espaço do comércio sofisticado. Graça da Capunga, Afogados, Poço da Panela, Várzea, São Lourenço da Mata, Jaboatão e Muribeca, cada qual com suas especificidades sociais, econômicas e demográficas, estavam entre as paróquias que compunham as chamadas zonas suburbana e rural da cidade. O rio Capibaribe era um vetor de comunicação e de transporte entre boa parte dessas freguesias quer entre si quer com o interior pernambucano (Carvalho, 1997, 1988; Arrais, 2004; Mac Cord, 2005, 2012).

Demograficamente, ao lançarmos nosso olhar para as onze paróquias que compunham a capital pernambucana, percebemos que nelas residiam 116.671 pessoas – aproximadamente 13,86% de toda a população provincial, segundo o Censo de 1872. Obviamente, esses indivíduos estavam distribuídos de forma bastante heterogênea no território recifense, sendo que 54,06% concentravam-se nas paróquias mais centrais. Impressionava a densidade populacional nas localidades de São Frei Pedro Gonçalves, Santo Antonio e São José, visto que eram insulares e somente poderiam crescer por meio de aterros – que foram sendo feitos no transcorrer do século XIX. Apesar de contar com muitos moradores, Boa Vista era continental e ainda suportava novos arruamentos no período em quadro, pois compunha o complexo “rurbano” da cidade e possuía relações de vizinhança com algumas paróquias suburbanas e rurais (Carvalho, 1997, 1988; Arrais, 2004; Mac Cord, 2005, 2012). O Gráfico 1 ainda oferece outro importante dado mais geral, para compreendermos o perfil populacional do Recife: 87,03% de seus moradores eram juridicamente livres, por mais que muitos deles conhecessem uma liberdade absolutamente precária.

Fonte: (BRASIL, [1874?]).
Fonte: (BRASIL, [1874?]).

Para compreendermos os dados do Gráfico 1, e suas peculiaridades conjunturais, precisamos saber que, no transcorrer do terceiro quartel do século XIX, o contingente populacional do Recife mais que duplicou. O crescimento do número de pessoas juridicamente livres pode ser explicado por dois fatores. O primeiro deles nos remete para o significativo montante de trabalhadores livres que migrou do interior da província, por causa da chamada “crise na lavoura” açucareira registrada entre os anos de 1850 e de 1870. O deslocamento espacial pode ser justificado, portanto, pela busca de condições de vida e de emprego menos precários possíveis, já que as “modernizações” no plantio da cana de açúcar desempregaram e expulsaram um sem número de trabalhadores dos engenhos (Eisenberg, 1977; Marson, 2008). O outro fator nos remete para o tráfico interprovincial de escravos, comércio que se tornou uma alternativa ao fim do tráfico transatlântico de africanos escravizados, algo que somente se efetivou com a lei de 1850. Motivado pela expansão das lavouras localizadas no sul do Império do Brasil, muitos senhores recifenses, em busca de lucros, venderam seus cativos em função da nova demanda (Slenes, 1976).

A maior parte dessa gente juridicamente livre que viveu no Recife, e que representava 87,03% de sua população, era composta por matizes de cores as mais diversas. Pessoas com a pela escura, que se identificavam ou eram identificadas, entre outros etnônimos, como pardos, caiados, mulatos, pardos, pretos e cabras, fossem livres ou libertos, abundam na documentação. O Censo de 1872, que padronizou, em nível nacional, os habitantes do país como brancos, pardos, pretos e caboclos, fez com que perdêssemos essas nuances. Apesar disso, atentos ao Gráfico 2, observamos que 59,21% dos moradores da capital pernambucana se declararam ou foram declarados como não-brancos. A atribuição da cor sempre foi um dado sensível em nossa sociedade escravista (Mattos, 1998). Na primeira metade do século XIX, Pedro Pedroso, reconhecido publicamente como mestiço, se dizia preto ou mulato de acordo com suas conveniências (Pereira da Costa, 1984, p. 62). Os artesãos da família Ferreira Barros, pernambucanos livres da cor preta, no transcorrer do século retrasado, também passaram a se declarar pardos na medida em que conquistavam mobilidade social por meio da escolarização e do trabalho qualificado (Mac Cord, 2010).

Fonte: (BRASIL, [1874?]).
Fonte: (BRASIL, [1874?]).

Estrategicamente, da mesma forma que os não-brancos ressignificavam os tons de suas peles a partir de uma plêiade de tonalidades escuras, o Gráfico 2 também permite que levantemos alguns problemas sobre a significativa presença de pessoas brancas no Recife – 40,79%. No Censo de 1872, observamos que a capital pernambucana contava com 8.038 estrangeiros, sendo que a maior parte deles, 6.110, era europeia – 5.288 portugueses e 822 indivíduos registrados com outras nacionalidades.[2] Africanos escravizados e livres contavam 1.859. Sul-americanos e asiáticos, 69. Aquele pequeno contingente de europeus, quase sempre associado à branquitude, representava apenas 5,23% da população recifense. A cidade não recebeu, no século XIX, e nem mesmo no final desse período, grandes levas de imigrantes vindos da Europa (Araújo, 1997, p. 209). Filhos e netos de portugueses, nascidos no seio da própria comunidade instalada na capital pernambucana, poderiam até ser fenotipicamente brancos. Da mesma forma, os outros europeus. Contudo, eram demograficamente irrelevantes. Creio que a maior parte dos brancos tabulados no Censo de 1872 tenha se declarado assim ou foi dessa forma declarado por razões sociais, políticas e econômicas.

A partir dos dados até aqui analisados, podemos afirmar que a maior parte da população recifense era composta por gente juridicamente livre, pobre e com a pele escura. O Gráfico 3 permite que adicionemos mais uma característica a esse contingente populacional. Na tabulação, observamos que 68,89% dos moradores da capital pernambucana eram analfabetos. A média nacional era um pouco maior, em torno de 82,3% (Ferraro, 2002, p. 34). Certamente, esses números geraram muitos debates entre aqueles que, desde meados dos anos 1860, se envolveram com dois temas relacionais: a instrução popular e o direito de voto. As elites letradas e proprietárias brasileiras queriam que a base da sociedade, em tempos de desagregação do escravismo, fortalecesse suas “moralidade” e “civilidade” por meio da instrução primária e da aprendizagem de ofícios (Martinez, 1997, P. 8-11, 50, 83; Kuhlmann Junior, 2001; Fonseca, 2002; Chalhoub, 2003, p. 282). Ao mesmo tempo, também queriam promover a exclusão eleitoral de uma massa de libertos e de livres pobres que não comprovasse renda e fosse desprovida de uma ferramenta básica: ler e escrever (Graham, 1997; Rosas, 2002; Dias, 2005; Souza, 2014).

Fonte: (BRASIL, [1874?]).
Fonte: (BRASIL, [1874?]).

No Censo de 1872, apesar de não anunciada, há uma fronteira muito tênue entre os que foram considerados analfabetos e os que foram registrados como sujeitos que sabiam ler e escrever. O que chamamos de “alfabetização” é uma categoria espinhosa, que precisa ser problematizada no espaço-tempo. Historicamente, nos censos ocidentais e brasileiros, o simples fato de se assinar/desenhar o nome era parâmetro para que alguém fosse considerado alfabetizado para fins estatísticos (Ferraro, 2002, p. 31). Por si só, esse dado diminuiria, e muito, a percentagem dos que efetivamente soubessem ler e escrever. Outro problema surge quando “saber ler e escrever” é compreendido acriticamente, enquanto competências que são adquiridas simultaneamente. Pelo menos até a segunda metade do século XIX, de forma ideal, caso não existissem grandes percalços, primeiramente se aprendia a técnica da leitura em um prazo de até dois anos. Depois, caso fosse possível financiar o restante da instrução primária, o estudante poderia iniciar sua aprendizagem da escrita. Realizar as quatro operações matemáticas seria o último estágio dessa caminhada pedagógica (Morais, 2016, p. 98; Gouvêa e Xavier, 2013, p. 111).

Fonte: (BRASIL, [1874?]).
Fonte: (BRASIL, [1874?]).

O Gráfico 4 permite que esmiucemos um pouco mais o anterior, revelando o elevado percentual de escravos que não dominavam o saber ler e/ou escrever. A legislação pernambucana pode ser um bom indicador para compreendermos o alto índice de analfabetismo entre os cativos. Aprovada em 14 de maio de 1855, a Lei n. 369, que dava nova organização à instrução primária provincial, proibia a matrícula de escravos em escolas públicas. Eles também estavam proibidos de cursar o Ginásio Provincial, estabelecimento público de ensino secundário. Só as escolas particulares poderiam aceitá-los em suas instalações (Collecção, 1855, p. 43, 47 e 51). Sem sombra de dúvidas, a Lei n. 369 tinha sua inspiração nas chamadas “Reformas Couto Ferraz”, ocorridas na Corte. Os legisladores pernambucanos foram inspirados pelo Decreto Imperial n. 1.221, de 17 de fevereiro de 1854. Ao proibir a matrícula de escravos em escolas públicas do município neutro, o governo central procurou reforçar hierarquias na sociedade escravista, frisar que o direito à instrução pública era prerrogativa constitucional do cidadão brasileiro e criar uma normatização que fosse seguida por todas as províncias imperiais (Silva, 2014, p. 91).

Apesar de os escravos serem proibidos de frequentar oficialmente a instrução pública pernambucana, na época do Censo de 1872, muitos travaram contato com o mundo letrado. Entre outras formas, quando necessitavam conhecer certos registros e códigos no mundo do trabalho ou ouviam leituras de textos feitas em voz alta. Tal ato de publicidade era feito pelos mais diversos tipos de gente, inclusive por escravos que aprenderam a ler e/ou escrever com seus senhores, malungos ou até mesmo em escolas particulares (Wissembach, 2002, P. 108, 110 E 119; Morais, 2016, p. 108 e 113; Machado e Gomes, 2017). Há vários exemplos de escravos letrados no Recife oitocentista, o que pode nos ajudar a compreender o percentual de 0,07% de cativos que, em algum nível, eram considerados alfabetizados. Nos jornais recifenses da primeira metade do século XIX, encontramos algumas notícias de venda e de fuga de artesãos escravizados que liam e escreviam (Luz, 2014, p. 169 e 243-244). Em mesmo período, Agostinho, o Divino Mestre, tinha mais de 300 seguidores entre livres, libertos e escravos. O profeta alfabetizava muitos deles utilizando-se de um ABC que condenava a escravidão com base na Bíblia (Carvalho e Ferreira, 2017).

Atentos ainda ao Gráfico 4, dentre os 31,04% de moradores livres do Recife que, em diversos níveis, sabiam ler e/ou escrever, podemos incluir muita gente de pele escura que conseguiu se capacitar por meio de processos pedagógicos formais, matriculando-se em escolas públicas ou particulares. Na primeira metade do século XIX, alguns meninos de cor, livres e libertos, tiveram a chance de frequentar a ainda pouco organizada instrução pública pernambucana. Eles eram oriundos de famílias nucleares chefiadas por homens. Nos poucos mapas disponíveis para análises, tais menores sempre foram registrados com suas famílias declaradas. Por causa desta regularidade, eles alcançavam algum grau de escolarização na medida em que fizessem parte de núcleos familiares organizados (Silva, 2007, p. 298-341). Entre os anos 1841, quando foi fundada, e 1872, quando foi feito o Censo, a Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais, grupo mutualista formado por artesãos pretos e pardos, livres e libertos, ofereceu aulas noturnas para seus sócios, e para trabalhadores em geral, em locais como a Igreja de São José do Ribamar, um sobrado na Rua Direita e uma espaçosa casa na Rua da Imperatriz (Mac Cord, 2012).

FIGURA 1 – Litografia aquarelada de Guesdon. Panorama da freguesia de São José por Frederick Hagedorn (1856). Diretoria de Documentação/CEHIBRA, Acervo da Fundação Joaquim Nabuco-Recife. Detalhe da obra que destaca a Igreja de São José do Ribamar.
FIGURA 1 – Litografia aquarelada de Guesdon. Panorama da freguesia de São José por Frederick Hagedorn (1856). Diretoria de Documentação/CEHIBRA, Acervo da Fundação Joaquim Nabuco-Recife. Detalhe da obra que destaca a Igreja de São José do Ribamar.

Não era nada fácil para os trabalhadores pobres e de pele escura aprender a ler e a escrever quer de forma insuficiente quer de forma plena. Os que conseguiram frequentar alguma aula noturna enfrentavam imensos problemas para manter sua regularidade discente e o interesse pelos estudos. A Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais costumava afirmar que seus alunos precisavam de mais tempo que o habitual para fazer os devidos exames de habilitação. Segundo a entidade mutualista recifense, isso ocorria porque eles estavam em precário patamar sociocultural e ainda sentavam em seus bancos escolares muito cansados, logo após uma exaustiva jornada de trabalho (Mac Cord, 2012, p. 205-206). Junto disso, das dificuldades advindas do cansaço após a labuta diária, existiram outros entraves para a instrução formal da classe trabalhadora no período em quadro, como, por exemplo, a falta de professores dispostos a lecionar à noite em bairros mais distantes, a própria distância entre a residência do estudante e a escola, o cancelamento oficial de cadeiras de instrução primária por falta de público e a inexistência de boas condições materiais nos estabelecimentos de ensino noturno (Costa, 2012).

Sobre os 55,99% que era composto por gente livre e analfabeta (entre eles, certamente, uma imensa maioria de trabalhadores de pele escura), vários motivos podem ser arrolados para a compreensão da magnitude do dado estatístico recifense. Vejamos duas justificativas bastante representativas. A primeira delas nos remete para o parágrafo anterior, ou seja, para os problemas enfrentados pela classe trabalhadora, inclusive para garantir sua subsistência, o que afetava sensivelmente suas possibilidades de escolarização. De forma complementar, em inícios da década de 1870, existiram poucas aulas noturnas na província, como atestavam as próprias autoridades públicas (Lima, 2014, p. 62). Para tentar mudar o quadro, abaixo-assinados foram produzidos por setores mais pobres da população recifense, exigindo-as. Em 1871, os moradores dos povoados de Areias, Barro, Peres e Tejipió, em Afogados, peticionaram às autoridades a escolarização de seus filhos, impedidos de frequentarem as aulas diurnas porque trabalhavam.[3] Em mesmo ano, o professor da cadeira diurna da Graça da Capunga solicitou sua contratação na recém-aberta cadeira noturna da mesma localidade, ainda vaga, porque havia vinte interessados em aprender a ler e escrever.[4]

Os morados do Recife entre 6 e 15 anos: sua relação com a escola no Censo de 1872

No quesito “população considerada em relação às idades”, o Censo de 1872 organizou as pessoas de forma bastante criteriosa: “meses”, “anos completos”, “quinquênios”, “decênios”, “maiores de cem anos” e “não determinadas”. Nessa seção, voltaremos nosso olhar para dois “quinquênios” bastante específicos, listados naquele documento estatístico: dos 6 aos 10 anos e dos 11 aos 15 anos. Metodologicamente, nossa escolha é justificada quando observamos o próprio Censo de 1872, que, em seu quesito “instrução”, indica que a população em idade escolar era aquela que estava entre 6 e 15 anos. Ao estudarmos a Lei n. 369 de 14 de maio de 1855, que dava nova organização à instrução primária pernambucana, percebemos que sua compreensão sobre a idade escolar era praticamente a mesma. Em seu Capítulo 3, mais precisamente no Artigo 71, os legisladores indicaram que as escolas provinciais não poderiam admitir “alunos menores de cinco anos, nem maiores de quinze” (Collecção, 1855, p. 43-44). Tal regularidade vai ao encontro da construção de um tempo de vida associado ao aprendizado formal, que, no Ocidente, instituiu parâmetros sobre o que seria a mais adequada idade para se frequentar a escola (Gouveia, 2004, p. 278).

Na faixa etária entre 6 e 15 anos, portanto, segundo o quesito “população considerada em relação às idades” do Censo de 1872, o Recife contava com 27.801 habitantes. Os menores livres somavam 24.644 indivíduos, enquanto os escravos chegavam ao total de 3.157. Por sua vez, ao atentarmos para o quesito “instrução”, o referido documento estatístico demonstra que somente os menores livres (entre 6 e 15 anos) foram tabulados como sujeitos que estavam dentro (“frequentam escolas”) ou fora (“não frequentam escolas”) dos estabelecimentos de ensino da capital da província. Não há referências, infelizmente, se eles eram públicos ou particulares. Com esse critério demográfico, os censores somente consideraram em seus cálculos escolares os 24.644 menores livres, excluindo assim os 3.157 escravos. Em vista disso, ao retomarmos a Lei n. 369, de 1855, que dava nova organização à instrução primária pernambucana, notamos que, além de manter os escravos excluídos da instrução pública, a estrutura social não permitiu que eles estivessem em estabelecimentos particulares de ensino. Ou, na melhor das hipóteses, podemos sugerir que se deixou de fazer o registro oficial dos estudantes cativos que eram crianças e jovens.

Fonte: (BRASIL, [1874?]).
Fonte: (BRASIL, [1874?]).

Em números absolutos, os 27.801 moradores do Recife que estavam em idade escolar correspondiam a 23,92% de sua população. Ou seja, quase ¼ das pessoas que habitavam a cidade, número superlativo, poderiam estar em escolas públicas ou particulares, segundo a Lei n. 369 de 1855. Ao observarmos o Gráfico 5, contudo, notamos que somente 19,24% dos menores, ou seja, 5.349 indivíduos livres, tinham real acesso à escolarização formal. Número bastante inexpressivo. Em outro momento, demonstramos que não era nada fácil para a classe trabalhadora conseguir instrução para seus familiares e agregados. Recordemos da petição que foi feita pelos moradores de Afogados, que não conseguiram matricular seus filhos nas aulas diurnas porque trabalhavam. E mesmo que os menores pobres, livres e trabalhadores conseguissem sentar nos bancos escolares, tinham frequência irregular porque lhes faltavam recursos e tempo (Veiga, 2008, p. 507-508; Barros, 2005, p. 80, 81 e 130). De uma forma geral, seus responsáveis buscavam escolas em que, junto do ler e escrever, se pudesse também aprender um ofício, receber roupas, abrigo, algum pecúlio e alimentação, como nos arsenais de Guerra e de Marinha (Silva, 2013, p. 27-61; Cunha, 2005, p.109-113).

Como podemos facilmente concluir, a precariedade cotidiana quase impedia que os menores pobres, livres e trabalhadores (matriculados em escolas públicas e particulares) continuassem seus estudos. Não por acaso, a estrutura social afastava por completo a maior parte deles das lições que eram oferecidas pelos professores primários da capital pernambucana. No Recife de 29 de outubro de 1875, em relatório para o presidente da província, a Inspetoria Geral da Instrução Pública corrobora nossa análise. O referido departamento governamental informava ao chefe do Poder Executivo que o público escolar era pequeno em toda a província por causa de circunstâncias conjunturais, como a disseminação da varíola e os tumultos causados por movimentos sediciosos (talvez estivesse fazendo referência ao “Quebra-Quilos”), e de problemas estruturais, como a pobreza e a miséria em que estavam mergulhadas as crianças pernambucanas, cujos pais não podiam mandá-las para as escolas por causa de tantas mazelas. O documento ainda afirma, por fim, que faltavam asilos para amparar a infância desvalida, o que contribuía para o baixo rendimento da instrução pública provincial.[5]

Fonte: (BRASIL, [1874?]).
Fonte: (BRASIL, [1874?]).

O Gráfico 6 permite que encerremos essa seção com conjecturas muito semelhantes àquelas que fizemos quando discutimos a percepção social da cor, sensibilidade que dependia dos condicionantes socioculturais, das conveniências cotidianas, das relações políticas e da capacidade de negociação simbólica dos sujeitos. O dado novo, contudo, aparece quando comparamos os Gráficos 6 e 2, que apresentou o total da população do Recife definida pela cor. Do ponto de vista estatístico, se os brancos compunham 40,70% dos moradores da capital pernambucana, nas escolas públicas e particulares seus menores abocanharam 50,48% das matrículas. Uma desproporção considerável em seu favor. Os pardos estavam bem representados, pois a cidade era composta por 40,40% deles e suas crianças e seus jovens livres compunham 39,88% do corpo discente recifense. Da mesma forma os caboclos, que no primeiro caso eram 0,48% e no outro 0,53%. Os pretos, entretanto, experimentaram a maior perda de representatividade na comunidade escolar, pois, mesmo compondo 18,33% da população local, somente 9,11% dos estudantes (que tinham entre 6 e 15 anos e eram livres) foram daquela forma registrados pelos censores.

Salvas as imprecisões objetivas e subjetivas do Censo de 1872, parece evidente que os censores e as famílias (ou tutores e curadores) dos menores recifenses livres, pobres ou não, que estavam matriculados em escolas públicas e particulares, tendiam a mudar sua cor na medida em que entendiam a escolarização como instrumento de mobilidade social. Nesse jogo intrincado, as motivações de cada um daqueles sujeitos poderiam ou não convergir. Para os que nasceram com a pele escura, os sentidos de liberdade e de cidadania estavam em disputa quando da desagregação do escravismo (Albuquerque, 2009). Para os pretos, poderia ser estratégico se tornar pardo. Da mesma forma, para esses últimos também seria vantajoso ser reconhecido como gente branca. Concomitantemente, não podemos perder de vista que a instrução pública e particular pernambucana possa ter sido mais discriminatória com as pessoas livres que apresentassem fortes marcas fenotípicas de africanidade. Até o início dos anos 1870, recaía sobre essas pessoas a suspeita de serem escravas, mesmo que fossem livres ou libertas (Chalhoub, 2012). Sem dúvida, estamos diante de duas situações que não se excluem mutuamente, tendo em vista as complexidades da sociedade recifense.

Propostas e ações em torno da instrução pública e particular nos anos 1870

No início dos anos 1870, diante de um quadro aterrador no âmbito da instrução pública e particular, especialmente revelado no processamento do Censo de 1872, a sociedade pernambucana buscou criar novos parâmetros que a aproximasse da “civilização” e do “progresso”. Na esfera pública, uma das mais importantes iniciativas nesse sentido foi a elaboração de uma nova norma que regulasse a escolarização provincial. Depois de muitos debates legislativos, os deputados pernambucanos aprovaram a Lei n. 1.143, aos 8 de junho de 1874, que tinha por objetivo reorganizar o ensino primário e secundário local. Na esfera privada, em 1871, com o apoio da Associação Comercial Beneficente e de importantes figuras públicas, a Imperial Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais, entidade fundada e administrada por artífices pretos e pardos, ganhava o benefício de criar e manter o Liceu de Artes e Ofícios do Recife (Mac Cord, 2012). Outra entidade particular pernambucana, de vital importância nesse emergente processo de valorização do ensino escolar, foi a Sociedade Propagadora da Instrução Pública. O grupo foi fundado em 1872 por professores, médicos, cônegos e demais gente que desfrutava de respeitabilidade (Santos, 2014).

Especialmente sobre a Lei n. 1.143, aprovada em 1874, há um bom termo comparativo com a Lei n. 369, de 1855. Aquela primeira norma não faz mais qualquer menção à proibição da matrícula de escravos nas escolas públicas e no Ginásio Provincial, algo que era basilar na outra. Na Lei 1.143 também não encontramos qualquer autorização para que os cativos somente frequentassem as escolas particulares, como fazia a norma anterior. Em outras palavras, o escravo não é sequer citado na legislação dos anos 1870 (Collecção, 1874, p. 59-66). Ainda nos faltam pesquisas para afirmar os motivos dessa ausência, mas talvez possamos sugerir que, no período em quadro, o ler e escrever, base da instrução primária, começasse a ser pensado como um instrumento para qualificar o exercício da cidadania política (Chalhoub, 2007, p. 231). Nesse sentido, como o escravo não era cidadão, e com a acelerada (e em curso) desagregação do escravismo na província, parecia desnecessário aos legisladores reeditar o que era vital em meados dos anos 1850. Outra hipótese é que talvez fosse interessante permitir que alguns escravos tivessem a oportunidade de se “lapidar” por meio de aulas que os ensinassem a ler, escrever, contar e rezar.

Governo e sociedade pernambucanos participavam de um fenômeno mais geral, ocorrido no Império do Brasil desde finais dos anos 1860 e que se intensificou após a chamada “Guerra do Paraguai”. Nesse processo histórico, por exemplo, o ministro Paulino de Souza, do Partido Conservador, reforçava a necessidade de se ampliar a instrução básica da população brasileira por meio de escolas ambulantes, noturnas, de fábricas, de domingo, de verão e para a infância desvalida. Outro ministro, João Alfredo Correia de Oliveira, também daquele mesmo partido, propôs um projeto, em 1874, que ampliaria a instrução básica. Ele entendia que a população mais pobre, de qualquer faixa etária, deveria ter mais fácil acesso ao ensino profissional, pois era preciso responder às demandas por mão de obra em uma época de “transição” do trabalho escravo para o livre (Rocha, 2010). A própria Lei do Ventre Livre, de 1871, de caráter emancipacionista, que estava inserida no debate da referida “transição”, tinha por objetivo oferecer aos ingênuos um nível de instrução que os transformasse em trabalhadores morigerados, minimamente escolarizados e conhecedores dos princípios “morais” que norteavam a sociedade brasileira (Fonseca, 2002).

No começo dos anos 1870, apesar de todas essas articulações nacionais e pernambucanas para o aumento da oferta e da “qualidade” da instrução pública, o que de fato ocorreu na cidade do Recife (em sua vida cotidiana e mais comum) é o que sublinharemos nessa seção. Caso fiquemos apenas na ordem das leis educacionais e dos projetos político-pedagógicos, deixaremos de conhecer sua (in)efetividade na história social e na vida rotineira das pessoas. Portanto, para iniciarmos o exercício proposto, no final do ano de 1875, a Inspetoria Geral da Instrução Pública informou ao presidente de Pernambuco que existiam 11.309 menores matriculados em escolas públicas de toda a província. Desses, 8.312 assistiam efetivamente às lições que eram ministradas por seus professores primários. Na cidade do Recife, especificamente, foram contabilizadas 3.974 matrículas, sendo que, segundo o documento, apenas 2.554 discentes registravam assiduidade nas aulas de ensino básico. Justificando-se, o inspetor relatou ao chefe do poder executivo que muitas escolas públicas ainda não tinham enviado seus mapas à repartição, “por isso os algarismos supra são inferiores ao número real dos alunos”.[6]

Relativizemos ou não as alegações que foram feitas pela Inspetoria Geral da Instrução Publica, estamos diante de importantes problemas. Mesmo que o conjunto dos mapas estivesse incompleto e, por causa disso, o governo encontrasse dificuldades para conhecer o número de matrículas realizadas em escolas públicas recifenses, o total de 3.974 estudantes é bastante tímido para finais de 1875. Especialmente quando havia um consistente debate nacional e pernambucano sobre a necessidade de se fomentar a instrução popular. Talvez, o volume de matrículas se adensasse com os mapas atrasados e os enviados pelos estabelecimentos particulares. De qualquer forma, sugerimos que, apesar de todo o alarde quanto à disseminação da leitura e da escrita, não encontraríamos números muito superiores aos que foram computados pelo Censo de 1872, que afirmava que a capital da província possuía 5.349 indivíduos livres, entre 6 e 15 anos, em salas de aula – como comentamos anteriormente, não sabemos se públicas e/ou particulares. Bastante reveladora, contudo, é a irregularidade na frequência escolar de 35,73% dos menores, o que corrobora todo o debate em que sublinhamos os motivos para que a instrução fosse um privilégio para poucos.

Fonte: Livro de Matrículas no Francês, 1858-1878, fls. 1-18, Universidade Católica de Pernambuco (doravante UNICAP), Recife, Biblioteca/Coleções Especiais, Série Liceu de Artes e Ofícios; Livro de Matrícula das Aulas de Geometria, 1858-1878, fls. 1-21, UNICAP, Recife, Biblioteca/Coleções Especiais, Série Liceu de Artes e Ofícios; Livro de Matrículas de Primeiras Letras, 1858-1878, fls. 1-36, UNICAP, Recife, Biblioteca/Coleções Especiais, Série Liceu de Artes e Ofícios.
Fonte: Livro de Matrículas no Francês, 1858-1878, fls. 1-18, Universidade Católica de Pernambuco (doravante UNICAP), Recife, Biblioteca/Coleções Especiais, Série Liceu de Artes e Ofícios; Livro de Matrícula das Aulas de Geometria, 1858-1878, fls. 1-21, UNICAP, Recife, Biblioteca/Coleções Especiais, Série Liceu de Artes e Ofícios; Livro de Matrículas de Primeiras Letras, 1858-1878, fls. 1-36, UNICAP, Recife, Biblioteca/Coleções Especiais, Série Liceu de Artes e Ofícios.

Na falta de mapas das escolas particulares, que complementem o relatório da Inspetoria Geral da Instrução Publica, escrito em finais de 1875, o Gráfico 7 apresenta dados sobre as aulas noturnas que foram oferecidas pela Imperial Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais. Podemos comparar o período em que a entidade criou e manteve o Liceu de Artes e Ofícios do Recife, a partir de 1871, com o anterior. Existiram outras aulas noturnas além das tabuladas, mas foram os códices de francês, geometria e primeiras letras que sobreviveram ao tempo e chegaram até nós. Nos primeiros anos de existência da referida escola pernambucana, e no bojo dos debates sobre a necessidade de se fomentar a instrução popular, houve um aumento considerável de estudantes matriculados, especialmente nas lições de primeiras letras. Nessas, a média etária era de 16,22 anos, ou seja, acima da então chamada idade escolar (Mac Cord, 2012). O Gráfico 7 ainda informa que, apesar do aumento quantitativo de estudantes nos primeiros anos do Liceu de Artes e Ofícios do Recife, posteriormente houve uma queda, muito em função das históricas dificuldades enfrentadas pelas famílias trabalhadoras, como analisamos oportunamente.

FIGURA 2 – Palacete do Liceu de Artes e Ofícios do Recife. Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, FOTOS, Armário 8.2.2. (7), negativo 04470; COSTA, Menna da [Liceu de Artes e Ofício, PE, 1880]. Observação: A fotografia foi tirada dias depois da inauguração do Palacete (IMPERIAL, 1881, p. 26-27).
FIGURA 2 – Palacete do Liceu de Artes e Ofícios do Recife. Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, FOTOS, Armário 8.2.2. (7), negativo 04470; COSTA, Menna da [Liceu de Artes e Ofício, PE, 1880]. Observação: A fotografia foi tirada dias depois da inauguração do Palacete (IMPERIAL, 1881, p. 26-27).

A Sociedade Propagadora da Instrução Pública, fundada em 1872, por sua vez, também buscou fomentar a escolarização básica dos pernambucanos. Além de criar sua própria Escola Normal para a formação de professoras, muitos de seus estabelecimentos particulares de ensino aceitavam gratuitamente estudantes pobres e ainda subvencionavam suas roupas, sapatos e livros (Santos, 2014, p. 71 e 91). A entidade educacional sabia que essa era condição sine qua non para mantê-los em sala de aula, mesmo que encontrasse dificuldades para realizar seu objetivo. Junto disso, na documentação disponível, notamos, na década de 1870, o esforço de seus Conselhos Paroquiais, junto às autoridades provinciais, no sentido de criar (e também nomear professores para as) aulas noturnas de primeiras letras destinadas aos adultos. Na cidade do Recife, em 1873, por exemplo, o Conselho Paroquial da freguesia do Poço da Panela solicitou a abertura de uma escola noturna e outra diurna no povoado do Monteiro. Em mesmo ano, o Conselho Paroquial da freguesia da Graça da Capunga pediu que a escola diurna dos povoados de Cruz das Almas e da Encruzilhada do Rosarinho também pudessem oferecer aulas de primeiras letras à noite.[7]

Atentos aos discursos vindos de cima da pirâmide social e às iniciativas da sociedade civil em torno da instrução popular, setores populares não estiveram passivos nesse processo de redefinição da liberdade e da cidadania. Por meio de abaixo-assinados dirigidos às autoridades provinciais, eles reivindicaram o direito de aprender a ler e escrever, para que também, estrategicamente, fizessem parte da “civilização” e do “progresso” e pudessem usufruir de seu legado. Oportunamente, citamos um abaixo-assinado produzido em 1871 pelos moradores dos povoados de Areias, Barro, Peres e Tejipió, localizados na freguesia de Afogados. No documento dirigido aos deputados provinciais pernambucanos, recordemos, seus redatores solicitavam aulas noturnas de primeiras letras. A justificativa da petição é emblemática: “o conhecimento da arte de ler e escrever, único e precioso elemento sobre cujas bases assenta o edifício da civilização e traça o princípio da felicidade material e moral do homem, é ambicionado por todas as classes da sociedade”.[8] Os peticionários deixaram evidente sua compreensão das regras do jogo e foram além, na medida em que frisaram que a instrução era um direito e não um privilégio.

No final da década de 1870, um grupo de trabalhadores da Passagem da Madalena produziu um abaixo-assinado que solicitava aos deputados provinciais pernambucanos a oficialização de sua aula noturna destinada para o sexo masculino. Ele temia que seu caráter voluntário gerasse descontinuidades nas lições de primeiras letras. A insegurança era legítima, tendo em vista o perfil social dos peticionários e o fato de que a iniciativa instrucional existia há pouco mais de um mês. Eles eram operários de “um importante estabelecimento fabril” e acreditavam que sua escola noturna era um instrumento para que “um grande número de crianças e pessoas adultas [não] deixem de aprender a ler e escrever, por serem ocupadas em diversas profissões durante o dia”. Ainda segundo o documento, 32 estudantes frequentavam as lições de primeiras letras, “na sua maioria artistas”. Para que suas pretensões fossem atendidas, de forma muito apropriada e conveniente, nos moldes do paternalismo e da economia do favor, os redatores do abaixo-assinado finalizaram sua petição afirmando que estavam certos de seu deferimento, visto que o Poder Legislativo “sempre facilita o ensino primário naquelas localidades onda há uma população que conviera educar e instruir”.[9]

Os anos 1880, o problema da instrução pública e particular e o Censo de 1890

O início dos anos 1880 continuou pouco auspicioso para a instrução básica dos pernambucanos, especialmente daqueles que eram mais pobres. Seminal, um dos relatórios da Inspetoria Geral da Instrução Pública afirmava que “a situação do ensino não se pode transformar de improviso por atos regulamentares”.[10] Parece evidente que os debates e as normas que procuraram fomentar o aprendizado da leitura e da escrita não alcançaram seus objetivos, muito em função de a escolarização estar vinculada à perspectiva da cidadania, algo absolutamente problemático em uma sociedade pautada por privilégios, escravismo e racialização. Ainda sobre o alerta feito pelo referido órgão, sabemos que, por si só, a aprovação de leis não garante o respeito ao seu escopo, assim como não promove uma imediata mudança na percepção cotidiana de justiça e de direitos (Thompson, 1987). Ao mesmo tempo, os orçamentos provinciais também podem nos enganar, tendo em vista que muitos recursos eram destinados às escolas. Só que nem sempre o que foi previsto pelo erário era executado pelos governantes, pois alguns setores da administração pública gastavam mais e outros menos do que o programado, de acordo com os mais diversos interesses.

No Brasil, desde os anos 1870, o desejo por excluir a base da pirâmide social do processo político stricto sensu, utilizando para isso critérios educacionais, sobrepôs os projetos de inclusão por meio da escola. A Lei Saraiva, de 1881, que acabou com o voto indireto em todo o país, exigia a alfabetização e a efetiva comprovação de renda dos eleitores. No 2º Distrito do Recife, por exemplo, a norma que restringia a cidadania política eliminou os direitos de 60,3% daqueles que podiam ir às urnas. Entre os mais pobres, antes da reforma eleitoral, agricultores, jornaleiros e artesãos compunham 48,2% do eleitorado. Por sua vez, os mais ricos e as camadas médias urbanas, conjunto que incluía negociantes, funcionários públicos e proprietários, 25,7%. Depois de aprovada a Lei Saraiva, o primeiro grupo caiu para 10,6%. O outro subiu para 62%. Naquele referido distrito, para ratificarmos a nova relação entre posses, direitos políticos e escolarização, sonho acalentado por muitos membros da “boa sociedade”, nas eleições de 1876 os analfabetos compunham 40,4% das listas eleitorais, mas em 1884 foram reduzidos para 4,7% (Souza, 2014, p. 168-170 e 181). Esse último percentual tem relação com algumas exceções previstas pela Lei Saraiva.

A redução do número de eleitores acirrou a economia do favor, pois ficou mais fácil para as elites letradas e proprietárias controlarem a máquina eleitoral e suas redes de clientela. No final dos anos 1880, em artigo intitulado “A reforma da Instrução”, publicado no jornal A Epocha, seu articulista faz parecer que as mudanças na lei eleitoral tiveram graves consequências na seleção dos professores pernambucanos, pois teria aumentado o quantitativo daqueles “cujos títulos de habilitação são algumas vezes unicamente os seus títulos eleitorais”.[11] Certamente, esse quadro mantinha a instrução pública e particular no “improviso”, como havia denunciado anos antes a Inspetoria Geral. O próprio Liceu de Artes e Ofícios do Recife e a Sociedade dos Artistas Mecânicos e Liberais, sua mantenedora, experimentaram mudanças depois da Lei Saraiva. Seus principais gestores e professores, artífices pretos e pardos escolarizados, conquistaram muitas vantagens porque foram habilitados como eleitores. Concomitantemente, com o passar do tempo, o fortalecimento da troca de favores com seus patronos fez com que muitos doutores reconhecidos como brancos começassem a fazer parte da diretoria e da sala de professores (Mac Cord, 2014).

Em meio às mudanças ainda mais excludentes em uma sociedade baseada em privilégios, escravismo e racialização, novos atores ligados à instrução pública e particular ganhavam visibilidade. Criado em 1878, o Grêmio dos Professores Primários em Pernambuco tinha por objetivo reunir docentes de ambos os sexos, no intuito de aperfeiçoar a instrução primária e o próprio magistério (Estatutos, 1878, p. 5 e 9). Em princípios de 1890, o Club Literário Ayres Gama, formado por jovens mais ou menos vinculados à escola primária, criou a Associação Pedagógica Pernambucana, que também buscava fomentar a escola básica e o aperfeiçoamento docente.[12] Junto dessas instituições, outras, que a priori tinham caráter diverso, criaram suas próprias aulas noturnas para “civilizar” o povo e qualificar eleitores. Entre os anos de 1889 e 1891, vinte clubes republicanos foram fundados no Recife e em Olinda. Alguns deles, que só aceitavam sócios alfabetizados, ofereciam lições de leitura e de escrita à comunidade (Souza, 2018, p. 86, 88 e 96). Em mesma época, organizações operárias e artesanais também foram criadas, para, entre outras metas, escolarizar a classe trabalhadora, conscientizá-la politicamente e qualificá-la eleitoralmente (Mac Cord, 2016).

Fonte: (BRASIL, 1898).
Fonte: (BRASIL, 1898).

Todos os esforços particulares e as tentativas de incremento da escola pública, contudo, obtiveram inexpressivos resultados quantitativos no intervalo de quase vinte anos, como podemos observar no Gráfico 8. Contudo, antes de analisarmos essa tabulação, que foi embasada no Censo de 1890, e apresenta os graus de instrução básica dos habitantes do Recife e suas cercanias, será preciso fazer um importante alerta. Na época em que a referida contagem populacional foi publicada, as localidades de Jaboatão, São Lourenço da Mata e Muribeca foram registradas como municípios pernambucanos. Portanto, o Recife perdera suas antigas dimensões espaciais e políticas, ficando circunscrito somente aos bairros de São Frei Pedro Gonçalves, Santo Antonio, São José, Boa Vista, Afogados, Graça da Capunga, Poço da Panela e Várzea. Com essa nova configuração político-administrativa, a capital do estado havia perdido parte de suas características mais rurais. Isso posto, por questões metodológicas que facilitaram nossas operações comparativas, decidimos juntar os dados demográficos do Recife com os das três outras cidades, para que tenhamos, a partir do Gráfico 8, parâmetros de análise mais precisos em relação ao Censo de 1872.

Feito o alerta, a primeira leitura do Gráfico 8 permite afirmar que, diferentemente do período compreendido entre os anos 1850 e 1870, que testemunhou uma explosão demográfica no Recife, o intervalo de tempo entre os Censos de 1872 e de 1890 registrou uma pequena curva ascendente no crescimento de sua população e de suas cercanias. Por sua vez, do ponto de vista do saber ler e escrever, a contagem feita pelo Império do Brasil informou que 31,11% dos moradores da capital pernambucana (pretensamente) dominavam essas competências. O de 1890, considerando aquela localidade mais ampla, 31,52%. Em termos percentuais, como podemos atestar, também houve um ínfimo aumento no quantitativo de pessoas consideradas alfabetizadas, segundo os critérios estatísticos dos censores oitocentistas. Entretanto, caso tomemos a cidade do Recife isoladamente, tendo como parâmetro o Censo de 1890, notamos que 37,38% dos seus habitantes brasileiros e estrangeiros sabiam ler e/ou escrever. O número um pouco maior deve refletir sua urbanidade, a maior presença de ações instrucionais e suas complexidades sociais, em relação às zonas rurais menos adensadas e mais empobrecidas de Jaboatão, Muribeca e São Lourenço da Mata.

No Gráfico 8, dentre os habitantes do Recife e suas cercanias, 1,78% dos que sabiam ler e/ou escrever eram estrangeiros – 2.587 indivíduos. Diferentemente do Censo de 1872, não há seus locais de origem. A maior parte deles deveria ser portuguesa, pois, além de abundarem na região, falavam nosso idioma. Ainda sobre os estrangeiros, no Censo de 1890, o item “população recenseada no estado de Pernambuco quanto à nacionalidade” apresenta uma inconsistência, pois somos informados que havia 2.227 na capital e suas cercanias. Desses, 2.125, maioria absoluta, vivia no Recife. Certamente existiram alguns mais, considerando-se o montante de considerados alfabetizados. Contudo, supomos que tenha diminuído o número de imigrantes na capital, que chegou a contar 8.038 no Censo de 1872. De certa forma, caso essa afirmativa seja verossímil, podemos sugerir que, nos primeiros anos da República, menos europeus (sujeitos fenotipicamente brancos) viveram no espaço em foco. O Gráfico 8 também permite concluir que a maior parte dos ditos alfabetizados era composta por brasileiros, perfazendo um total de 29,74% da população. Parece evidente, pelo que já foi discutido, que, hegemonicamente, fosse gente de pele escura em seus mais variados tons.

Dentre os que não liam e/ou escreviam, há 68,89% no Censo de 1872 e 68,48% no outro, somando Recife e suas cercanias. Regularidade que acompanha as anteriormente analisadas. Em 1890, caso observemos somente a capital, 62,62% eram analfabetos, número um pouco menor. A explicação desse fenômeno vai ao encontro da que propomos no caso dos recifenses que sabiam ler e/ou escrever: existiam mais oportunidades de escolarização nas cidades, comparativamente ao campo. Apesar de expressivos, os percentuais acima eram menores que a média nacional, 82,6%. De qualquer forma, os analfabetos do Recife e região nos remetem para um perfil social bastante específico: gente com pele escura, pobre e sem empregos regulares. Ela sofreu os mais duros golpes após o fim da escravidão, pois teve que responder aos primeiros desafios do pós-abolição. Cativas ou não antes do 13 de maio, essas pessoas precisaram ensaiar novos espaços de liberdade em uma sociedade sem escravidão, mas marcada pelo racismo científico (Gomes e Machado, 2015, p. 36-40). Tal ensaio exigia que criassem pontes para uma efetiva cidadania, pois suas vidas não eram muito diferentes do tempo em que vigia o escravismo (Rios e Mattos, 2007, p. 55).

Fonte: (BRASIL, 1898).
Fonte: (BRASIL, 1898).

Para embasar nosso argumento sobre uma maioria de não-brancos analfabetos, o Gráfico 9 nos remete aos critérios de cor que balizaram a feitura do Censo de 1890. Eles foram tão homogeneizadores e impositivos quanto aqueles que pautaram a contagem realizada em 1872. Apesar disso, ainda observamos certas regularidades, em quase duas décadas, quando lançamos nosso olhar para a percepção étnica dos e sobre os moradores do Recife e suas cercanias. Na comparação com o Gráfico 2, notamos que, no início do período republicano, houve um aumento da percentagem de caboclos, que passaram de 0,48% para 2,02%. Da mesma forma, existe uma estabilidade entre aqueles que se declararam ou foram declarados brancos: de 40,79% para 40,37%. Tendo em vista as conjunturas excludentes do pós-abolição, muitos sujeitos que tinham a pele menos escura continuaram a achar conveniente se declararem brancos ou serem assim declarados. Os etnônimos pardo e mestiço merecem especial menção. O primeiro apareceu no Censo de 1872. O outro, no de 1890. Tendo em vista que os números são similares, 40,40% e 44,31% respectivamente, provável é que estejamos diante de um grupo étnica e socialmente semelhante.

No último quartel do século XIX, os pretos foram os que conheceram e/ou construíram a maior queda de representatividade percentual no seio da população recifense e de suas cercanias. No espaço de quase vinte anos, segundo os censos até aqui estudados, eles passaram de 18,33% para 13,30% dos habitantes da referida região. Em 1890, exclusivamente na capital, eles somavam 12,17%. Talvez tenhamos aqui um fenômeno bastante parecido ao que ocorreu com os menores que eram estudantes, no ano de 1872. Recordemos que apesar de os pretos comporem quase ¼ dos habitantes da capital pernambucana, somente 9,11% das crianças e dos jovens entre 6 e 15 anos, livres e regularmente matriculados foram declarados dessa forma. Ao analisarmos esse caso, sugerimos que os números poderiam apontar para a exclusão daqueles com mais fortes sinais de africanidade e/ou para a conveniente manipulação da cor nas mais diversas situações cotidianas. Nos primeiros anos republicanos, essa última estratégia também continuava vinculada à mudança de status social dos indivíduos, ao afastamento do passado escravista e à própria proteção pessoal e/ou familiar em uma sociedade onde o racismo científico ganhava força.

Considerações finais

Há muito que se pesquisar, pensar e escrever sobre a instrução pública e particular brasileira, e pernambucana, no século XIX. Ainda existem muitas lacunas para sua melhor compreensão e nosso artigo não teve a pretensão de preenchê-las. Contudo, avanços fundamentais ocorreram nos últimos 30 anos. Especialmente quando a historiografia da educação demonstrou que o regime republicano não foi o “marco zero” das iniciativas governamentais e civis no campo da escolarização, os escravos e seus descendentes também estudavam em estabelecimentos imperiais de ensino e os trabalhadores pobres, livres e com a pele escura buscavam nas aulas noturnas um caminho para sua inserção social e respeitabilidade pública. No tempo presente, como desdobramento dessas investigações seminais e inovadoras, ganha cada vez mais espaço os estudos acadêmicos sobre intelectuais, doutores, políticos e professores, muitos deles pretos e pardos, oriundos da base da pirâmide social, que lutaram por mais acesso à instrução pública e à cidadania no Império do Brasil. Da mesma forma, os pesquisadores também estão mais atentos às entidades que, com os mesmos objetivos, foram criadas ou apropriadas por tais personagens.

Do ponto de vista historiográfico, no campo da educação, devemos nos cuidar para que não vivamos um movimento radicalmente pendular. No passado, os estudiosos ampliavam o ângulo de suas análises e negligenciavam as ditas “atipicidades” em suas explicações, mais estruturalizantes, sobre os problemas educacionais brasileiros. Por outro lado, neste momento, devemos ficar cada vez mais atentos para não reduzir acriticamente o ângulo de nossas análises, criando assim ilusões biográficas e desconsiderando os condicionantes sociais. Sem sombra de dúvidas, no Império do Brasil, existiram escravos e ex-escravos, e também seus descendentes libertos e livres, gente pobre, frequentando, mesmo que forma precária, espaços (in)formais de aprendizagem. Os poucos que conseguiram se tornar professores, doutores, intelectuais e políticos tiveram que lutar bravamente contra uma estrutura social que manteve a maior parte da população excluída dos direitos políticos, econômicos e sociais. E também da escola pública e particular, como demonstramos nesse artigo, já que os Censos de 1872 e 1890 indicaram que pouco mais de 82% da população brasileira não teve acesso aos mais básicos conhecimentos da instrução primária.

As fontes, nesse artigo, demonstraram que setores das classes populares reivindicaram o acesso ao ensino básico, seja para que seus filhos tivessem um futuro melhor, seja para votassem após a reforma eleitoral, seja para que alcançassem algum status social positivo. Contudo, não podemos superestimar a importância da escola para todos aqueles que estavam na base da pirâmide social. Talvez, muitos deles se sentissem desconfortáveis com a ideia de frequentar estabelecimentos oficiais de ensino. Como afirma E. P. Thompson, “o universo instruído estava tão saturado de reações de classe que exigia uma rejeição e desprezo vigorosos da linguagem, costumes e tradições da cultura popular tradicional” (2002, p. 32). Nesse sentido, apesar da pouca oferta pública e particular de instrução básica em Pernambuco, provavelmente também faltasse mais interesse e pressão vindos “de baixo” para aumentá-la. Poderia não ser atraente para os trabalhadores pobres e de pele escura estar em um espaço que lhes tratava “como grosseiro, imoral e ignorante” (Thompson, 2002, p. 32). E para “corrigi-los”, ou aos seus filhos, muitas vezes os professores utilizavam violência física e/ou moral, coisa que lhes fazia parecerem escravos. Isso, sem dúvida, não era algo por eles desejado.


* Marcelo Mac Cord é doutor em História Social pela Unicamp. Professor Adjunto da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense. Autor dos livros O rosário de d. Antonio: irmandades negras, alianças e conflitos na história social do Recife, 1848-1872 e Artífices da cidadania: mutualismo, educação e trabalho no Recife oitocentista. Coorganizador dos livros Rascunhos cativos: educação, escola e ensino no Brasil escravista e Organizar e proteger: trabalhadores, associações e mutualismo no Brasil (séculos XIX e XX).

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Notas

[1] Diário de Pernambuco, 11 de janeiro de 1873, Fundação Biblioteca Nacional (doravante FBN), Hemeroteca Digital Brasileira. Disponível em http://memoria.bn.br/hdb/uf.aspx. Acesso em 1º mar. 2019.

[2] Para saber mais sobre a comunidade portuguesa no Recife oitocentista, consultar (CÂMARA, 2013). Sobre os outros europeus, faltam pesquisas. Especificamente sobre os alemães, consultar (MAC CORD, 2019).

[3] Documento 04, Caixa P136, Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco (doravante ALEPE), Recife, Divisão de Arquivo, Série Petições.

[4] Códice IP-25, fl. 459-460, Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano (doravante APEJE), Recife, Setor de Documentos Manuscritos, Série Instrução Pública.

[5] Códice IP-30, fl. 354-355, APEJE, Recife, Setor de Documentos Manuscritos, Série Instrução Pública.

[6] Idem, ibidem.

[7] Códice IP-28, fl. 208, 213, 312 e 517, APEJE, Recife, Setor de Documentos Manuscritos, Série Instrução Pública.

[8] Documento 04, Caixa P136, ALEPE, Recife, Divisão de Arquivo, Série Petições.

[9] Tudo em Caixa P145B, ALEPE, Recife, Divisão de Arquivo, Série Petições.

[10] Códice IP-35, fl. 38, APEJE, Recife, Setor de Documentos Manuscritos, Série Instrução Pública.

[11] A Epocha, 20 de setembro de 1889, FBN, Hemeroteca Digital Brasileira. Disponível em http://memoria.bn.br/hdb/uf.aspx. Acesso em 1º maio. 2019.

[12] A Epocha, 1º de março de 1890, FBN, Hemeroteca Digital Brasileira. Disponível em http://memoria.bn.br/hdb/uf.aspx. Acesso em 1º maio. 2019.

EM BUSCA DA COROA DA SALVAÇÃO: MAGIA E ESCRAVIDÃO EM 1869

Resumo: Este artigo trata da análise de um processo-criminal em Cunha, São Paulo, 1870, aberto para investigar o que foi chamado de Escola de Feitiçaria Coroa da Salvação. Os escravos envolvidos foram acusados de matar pessoas como prática de lições de feitiçaria, em investigação iniciada pela senhora do principal acusado. A escola envolvia escravos de várias fazendas locais, além de libertos que moram na região. A base teórica usada são, principalmente, textos de Max Weber sobre religião e magia para tentar observar as condições de possibilidade para a crença compartilhada por senhores e escravos no caso analisado.

Palavras-chave: escravidão; magia; acusações de feitiçaria.

Abstract: This article deals with the analysis of a criminal process, in Cunha, São Paulo, 1870, open to investigate what was called by the School of Witchcraft Crown of Salvation. The slaves involved were accused of killing people as practicing witchcraft lessons in an investigation initiated by the lady of the main accused. The school involved slaves from several local farms, as well as freedmen living in the area. The theoretical basis used are mainly texts by Max Weber on religion and magic to try to observe the conditions of possibility for the shared belief by masters and slaves in the case analyzed.

Keywords: slavery; magic; witchcraft accusations.

Max Weber se notabilizou nas Ciências Sociais, dentre outros fatores, por abordar a religião como fenômeno social, entrelaçado a elementos de ordem diversa, centrais na sua compreensão. Momentaneamente, ele isola o fenômeno para investigá-lo e, assim que possível, relacioná-lo a tantos outros. Uma questão de estratégia analítica, de método. Para Weber, a crença na salvação, a conformação das regras de autorização para alguém ser mágico, feiticeiro ou sacerdote, as maneiras de produzir os fundamentos de sua reputação, da crença em suas habilidades extraordinárias, a sustentação social moral que imbui de poder um messias, as camadas letradas, os especialistas, que detém as rédeas da argumentação teológica e as justificativas rituais, são, em alguma medida, aspectos dos universos chamados de religiosos. Esses seriam ambientados a partir dos desejos nutridos nas pessoas para responderem de forma confortável aos seus medos, às suas angústias. Tudo isso socialmente concebido e performatizado, experimentado com paradoxos de diversos níveis de complexidade. Para Weber, a sociogênese da crença na magia não ocorre em etapas evolutivas numa única temporalidade ahistórica, mais sim em processos sociais os mais diversos – alguns de cunho mundial, outros territorialmente mais localizados. O tempo também é socialmente construído e vivido, e as investigações de Weber trazem recomendações teóricas e metodológicas para observarmos e analisarmos os agentes sociais em relação nos seus devidos contextos históricos.

Neste artigo, viso a fornecer alguns instrumentos para avaliar situações nas quais indivíduos se valeram de recursos mágicos e processos de magicização do mundo social para atingir os fins por eles almejados, num processo de busca de superação de angústias, dramas dolorosos. Terei como corpo analítico central parte de um caso ocorrido na cidade de Cunha, província de São Paulo, em 1869 (Processo-crime, Corte de Apelação, número 50, caixa 28, galeria c, ano 1870). Desde minha tese de doutorado não revisitava essa documentação, e esta é a primeira vez em que publico algumas análises, que serão completadas em outros artigos em fase final de elaboração, parte de um livro que pretendo publicar com investigações e interpretações mais amadurecidas intelectualmente sobre o caso.

A base teórica das análises neste artigo são algumas observações de Max Weber, contidas nos seus estudos sobre as condições sociais de possibilidade para crença na magia e as investiduras sociais que os candidatos a mágicos devem ter para que sejam reconhecidos como portadores de poderes mágicos, para os que neles acreditam. De maneira alguma tratarei de percorrer a vasta bibliografia sobre a magia, tema central na Antropologia, muito menos sobre a historiografia sobre religiosidade e escravidão nas Américas e Caribe. A proposta é me ater em textos que permitam pôr em relevo o quanto os procedimentos mágicos são constitutivos do funcionamento do mundo social, buscando compreender o que me parece ser uma densa trama de relações, presentes nas narrativas que constam nas diferentes peças processuais que compõem o já referido documento. Dessa forma, a perspectiva por mim adotada é procurar identificar em certos antropólogos aquilo que é útil para pensar os materiais de pesquisa, enfatizando questões inspiradas em textos específicos sobre religião de autoria de Max Weber.

O que de Max Weber ajuda na análise do caso de Cunha?

Religião é ação no mundo, para Weber, mas as motivações dos fiéis adeptos seguem os mais diversos protocolos, baseados em regras morais compreendidas empiricamente. Tal afirmação não vale somente para o que denominou por grandes religiões mundiais, às quais ele dedicou volumes particulares. Tal maneira de tratar pesquisas sobre religião coloca o pesquisador diante do impedimento de não universalizar valores morais. Não percebo, nesse sentido, um caráter etnocêntrico em Weber, nem mesmo observo antropólogos sob sua influência, tendo feito uso de seus apontamentos ao se debruçarem no entendimento de seus materiais de pesquisa. Citarei dois exemplos. Lygia Sigaud (1979) buscou avaliar as condições morais de interpretação de formas de remuneração e de lidar com dinheiro entre trabalhadores em engenhos de cana na Zona da Mata de Pernambuco, observando forte presença de justificativas morais para colocar patrões entendidos como sendo mau-pagadores na justiça. Stanley Tambiah (1968) entendeu, em certos rituais religiosos em Sri Lanka a verbalização das moralidades em palavras ritualmente alocadas em situações de transformação de estágios sociais dos participantes das cerimônias. Ambos esses autores não trataram de modo etnocêntrico os universos pesquisados, como se fossem confirmações de fenômenos mais amplos, exemplos da ocorrência em qualquer outro lugar, mas partiram do raciocínio de Weber da preponderância de explicações morais para atos objetivamente vividos e performatizados, com autorização ou condenação ética de outros agentes envolvidos. Por um lado, podemos dizer ser esse um uso canibalista do autor, mas eu prefiro dizer pragmático e empírico, fazendo render os dados das pesquisas. Ou seja, o que Weber (1921) chama de tipos ideais.

Dos textos em que ele coloca aspectos religiosos como sendo centrais em certas sociedades, escolhi L´éthique économique des religions mondiales (1996 [1915-1920]), posto que traga questões inspiradoras para a avaliação do material que estou revisitando. Weber põe em relevo a promessa ofertada como algo a ser investigado no que chama de religiões mundiais asiáticas. Nelas, o saber é o caminho da salvação, uma vez que há o pressuposto de um fosso entre a massa de fiéis e os letrados, os especialistas. Não há o banimento, mas sim a tolerância às práticas mágicas por meio de constantes negociações entre os envolvidos. Desde que não houvesse concorrência com os rituais religiosos, haveria como acomodar as coisas em seus devidos lugares socialmente aceitos. Existiria, para o autor, um saber asiático, dito de maneira imprecisa, em seu aspecto voltado para a vida religiosa e para não dar conta somente de um saber prático no mundo. A relevância disso encontraria variações nas religiões mundiais asiáticas.

Para Weber, “só o saber assegura o poder” (1996, p. 464), e, não à toa, ele destaca a atuação dos Brâmanes, uma aristocracia sacerdotal que exercia domínio na leitura e interpretação das escrituras sagradas, na Índia, e que liderava a negociação do bom lugar da magia nessa sociedade. Se os sacerdotes e teólogos trabalham para dar explicações acerca dos acontecimentos no mundo, racionalizando a religião, os feiticeiros operam no campo da eficácia. Estes teriam o papel de contemplar as insatisfações de fiéis com relação à ação dos sacerdotes. A capacidade de chegar à gnose mística estaria ligada, então, a um carisma que só essa casta possuiria – ela teria o monopólio das possibilidades racionalizadas de salvação, pois é a casta dos especialistas. A salvação é experimentada, assim, nesse texto de Weber, na vida mística, e interpretada na vida racional. Ela não é conseguida por uma recompensa por atos corretos dados por um Deus pai, único e absoluto.

O referido texto pode ser conectado a outro conjunto de escritos sobre Confucionismo e Taoísmo (2000), também produzidos no mesmo intervalo de tempo, cerca de dez a quinze anos depois da publicação da Ética protestante e o espírito do capitalismo (1985). Especificamente sobre aquelas duas religiões há um conjunto apontamentos que também me inspiram. O caráter mais solto desses textos em relação aos dados específicos me traz certo desconforto na imprecisão, contudo, também observo maior dinamismo no aparecimento de questões gerais que devem ser testadas à luz de material empírico mais detalhado. Nos textos apontados, Weber coloca as mesmas perguntas às grandes religiões mundiais: como se chega à salvação? Qual é o caminho da salvação? Uma forma de encarar essas questões, através de observações do próprio Weber, é examinar trajetórias religiosas de indivíduos e coletivos humanos que tenham suas condutas morais orientadas por alguma ideia de salvação. Localizei claramente essas duas questões no material pesquisado e no cenário no qual foi produzido, sendo, assim, pontos centrais da minha abordagem da rede de relações para o estudo e prática de magia, organizada por escravos e libertos de fazendas localizadas no município de Cunha, São Paulo, em 1969, chamada na documentação consultada Escola de Feitiçaria Coroa da Salvação.

Sobre os critérios para a escolha do caso estudado

Na tese de doutorado (Couceiro, 2008), busquei avaliar como poderia encontrar situações de acusação de feitiçaria enfrentando o problema do seu aparente não-lugar nas classificações nos arquivos consultados. Minhas pesquisas ocorreram, principalmente, no Arquivo Nacional, localizado no Rio de Janeiro. Geralmente, as classificações obedecem aos códigos legais de cada período administrativo estatal, em parte formulados de acordo com critérios morais dos agentes com poderes legitimados socialmente para o exercício do controle jurídico satisfatório dos conflitos. No período colonial, a América Portuguesa era regida por ordenações que previam que acusados de feitiçaria participassem de ritualísticas jurídico-criminais, assim como nas primeiras décadas da república no Brasil, conforme mostrou, dentro outros autores, Laura de Mello e Souza (1986) e Yvonne Maggie (1993), respectivamente para os períodos colonial e o início do republicano. Como feitiçaria e magia não eram crimes prescritos no Código Criminal do Império é preciso adotar outro tipo de busca dessas fontes. Esse é o motivo para ter me detido nesse período, uma vez que a crença não desapareceu com o novo corpo de leis.

Operei com pesquisas em arquivos como sendo eles espécies de aldeias, em metáfora às primeiras etnografias clássicas em antropologia, na medida em que operam como registros sob questionamento do investigador pata responder a questões que não são as que deram sentido original à sua produção (Carrara, 1998). No caso de processos judiciais, são papéis organizados a partir de regras institucionais, carregados de significados morais, tecidos de pedaços de narrativas de biografias esfaceladas dirigidas em rituais policiais e jurídicas em que os narradores estão em posições desiguais de locução (Vianna, 2014). De acordo com a pergunta que se faça, podemos inscrever os documentos em narrativas ordenadas por informações de fontes as mais variadas sobre os seus autores, a sua natureza, os personagens que ali apareçam direta ou indiretamente, e as circunstâncias e os cenários para a sua construção (Le Goff, 1996, p. 203-231). Ou seja, o que Weber (1985) chama de condições de possibilidades, principalmente a de narrativas acerca de situações dramáticas experimentadas por pessoas de outros tempos, no tocante às relações escravistas, em nosso caso, documentadas na organização de um acervo – aldeias em forma de fichas, gavetas, instrumentos de busca, catálogos diversos, em meios físicos ou, mais recentemente, digitais.

Assim, procuro operar por meio do caráter histórico das relações sociais. Muito embora seja território consagrado aos historiadores, não é lugar incomum aos antropólogos desde a fundação da disciplina (Stocking Jr., 1992). Estar nos arquivos é fundamental para que fatos sejam reclassificados e interpretados pelos pesquisadores. Realizar etnografias nos arquivos permite redimensionar os caminhos para a formulação de narrativas e de seus variados estilos, historicizando lógicas e sentidos, descobrindo personagens e suas relações, questionando temporalidades, observando as contradições dos tempos. Um dos caminhos pelos quais enveredei foi o do emprenho de autoridades senhoriais, burocratas do sistema legal escravista e seus prepostos nas investigações de casos denominados por feitiçaria quando relacionados às denúncias de insurreições de escravos, com a participação ou não de libertos e africanos livres. Seguindo a literatura nacional e internacional, trata-se de um perfil bem estabelecido de evento que produziu documentos os mais variados. As pessoas envolvidas passaram a ser personagens desses registros, nas Américas e no Caribe, como apontam trabalhos de Carolyn Fick (1992), para o Haiti, John Savage (2007), para Martinica, Vincent Brown (2003), em relação à Jamaica, João José Reis (1988; 1989; 2001) e Rachel Harding (2003), sobre Salvador.

Circunscrito às investigações a fazendas de café do Vale do Paraíba e do Oeste Paulista, examinei documentos judiciais e oficiais do Império, processos criminais que tratavam de homicídios e tentativas de, correspondências confidenciais de ministros de Estado, chefes de polícia, da diplomacia e presidentes de província, além de romances, como A carne, de Júlio Ribeiro, de 1888, e notícias de jornais (Couceiro, 1998b). Todos eles se referiem às insurreições de escravos ou a sinais lidos por senhores seus prepostos e autoridades públicas como da iminência de sua ocorrência, bem como planos de acusados de serem feiticeiros conspirando para matá-los. Nessas fontes, encontrei narrativas sobre acusações de feitiçaria e sobre os acusados e os seus acusadores, com os últimos recorrendo ou não às esferas jurídicas para resolver as ofensas sofridas. As narrativas sobre as ações das autoridades públicas não trazem certeza ao pesquisador de que elas compartilhavam, sempre e de que maneiras, da crença nos efeitos dos feitiços, dos poderes dos sacerdotes e das sacerdotisas, dos iniciados nas práticas mágico-religiosas de matriz africana diversa. Os acusados eram punidos não por serem feiticeiros e nem por praticarem o que seus acusadores e julgadores entendessem por feitiçaria, mas sim por estelionato, homicídio, e demais crimes previstos no Código Criminal do Império.

Lembrando autores como Malinowski (1935), Evans-Pritchard (1968), Mauss e Hubert (2003) e Lévi-Strauss (1975a; 1975b), não é feiticeiro e nem mágico quem quer, mas sim quem corresponde às investiduras simbólicas socialmente instituídas pelos problemas que afligem certo número de pessoas. Quem demanda suas intervenções no correr da vida exige eficácia para atingir os fins desejados por meio mágicos, e explicações aceitáveis do mágico para os motivos de suas falhas. Ele é punido, de acordo com as disputas de poder em cada coletivo humano, seguindo o nível de frustração de quem avalia ter sido prejudicado. Trata-se de uma relação de morde e assopra: coerção aos mágicos e feiticeiros quando alguém se sente prejudicado através da ação mágica, e, em alguns casos, com legítimas relações de vingança e contra-vingança, como nos materiais analisados por Evans-Pritchard (1931), Max Gluckman (1968), e Jeanne Favret-Saada (1977), e presentes em livro organizado por Mary Douglas (1970). Contudo, protegem-se os ditos feiticeiros quando eles não estão a serviço de inimigos ou pessoas que ameacem poderes estabelecidos, como no caso dos Shona, na antiga Rodésia, atual Zimbábue, analisado por Peter Fry (1976), no período em que membros do partido comunista a eles recorriam nas lutas de independência. Mais recentemente, trabalhos como os de Peter Geschiere (1998) e naqueles organizados por Jean e John Commarof (1993) demonstram a dinâmica dessas relações de explicação de infortúnios nos processos de construção das formas burocráticas estatais ditas modernas em países como Camarões, e as perspectivas de interferir nos rumos dos acontecimentos.

Entendendo a Escola de Feitiçaria Coroa da Salvação

O cenário por mim escolhido é o da chamada “segunda escravidão”, conceito construído por Dale Tomich (2011), para falar do momento de maior crescimento das economias escravistas ligadas às plantações monocultoras uma vez inseridas no sistema capitalista industrial mundial – a partir da década de 1760. Trabalho de escravos africanos em regiões tropicais forneciam a baixíssimos custos matéria prima para as indústrias europeias, principalmente algodão, e alimentos estimulantes de valor nutritivo precário, como café e açúcar, consumido pelo proletariado capaz de fabricar os bens mundialmente comercializados (Mintz, 1986; 2010). No Brasil, a região economicamente mais rica na concentração de escravos de origem africana eram as lavouras de café, principal produto desse cenário no século XIX, a partir de 1840 (Slenes, 1986). Tal região abrangia parte do Vale do Paraíba Fluminense e do Oeste de São Paulo. Verdadeiro laboratório historiográfico para explicações de caráter local e nacional acerca de problemas os mais diversos, desde migração, até táticas revolucionárias precoces, recentemente vem sendo revisitada com outros olhares teóricos e metodológicos. Através da compreensão do quadro mais amplo das estruturas da economia nos meios de produção em escala industrial nas quais tais fazendas escravistas operavam (Marquese e Salles, 2016), de um lado, e dos debates acerca do grau de influência das ações de escravos nessa região na queda desse sistema de produção econômica em termos legais oficiais (Gomes, 1995; Machado, 1987; 1994), podemos avaliar como dona Geraldina e senhores vizinhos reagiram de forma tão rápida para evitar o alastramento das ações da Coroa da Salvação.

Nesse ambiente, pesquisei casos em que acusações de feitiçaria ocorriam exatamente quando os senhores não se sentiam contemplados pela ação de mágicos de origem africana, algo que resumi, em parte, noutro artigo (Couceiro, 2008). Pelo contrário, sentiam forte ameaça ao seu poder quando feiticeiros operavam perspectivas salvacionistas antissenhoriais nos rituais por eles comandados. Um dos casos analisados por mim ocorreu na fazenda de dona Geraldina Maria de Campos, na cidade de Cunha, província de São Paulo, em 1869, onde foram praticados assassinatos, segundo ela mesma narrou em carta ao inspetor de quarteirão Antonio Pereira Coelho, datada de 12 de janeiro de 1870.

Contava a senhora que alguns de seus escravos haviam aparecido mortos, depois de sofrerem da mesma enfermidade.[1] Os sintomas levaram dona Geraldina a suspeitar que eles pudessem ter sido “envenenados”, uma vez que tais fatos já haviam ocorrido em fazendas daquela região. Desta forma, mandou fazer “minucioso exame em todas as casas que serviam de morada para os seus escravos”. O alvo principal do exame eram as “caixas onde os escravos guardavam suas roupas”. Na “casa onde residia” o escravo Pascoal de Nação foram encontrados em sua caixa e uma patrona de couro contendo “uma pequena garrafa branca com um líquido que ele confessou ser de uma raiz muito venenosa, raspada e misturada com aguardente”, bem como “diversas raízes, todas venenosas, das quais de algumas ele se servia para dar aos seus parceiros”.

Depois do exame, dona Geraldina mandou que Pascoal fosse preso por trabalhadores livres, empregados em sua fazenda, e levado a ser interrogado na sala da casa de morada. Perguntou a Pascoal o porquê das tais “raízes venenosas” estarem em seu poder, tendo ele respondido que nem todas eram venenosas. Em seguida, sobre a “composição” que estava na garrafa, Pascoal afirmou que dera a três escravos de dona Geraldina – Jeremias, Benedito Gama e Lourenço Crioulo. Da raiz, tinha dado à “crioulinha Rita, também escrava de dona Geraldina”, misturada ao seu “mingau”. A escrava faleceu no dia seguinte. Pascoal afirmou, ainda, que não matara somente estes quatro escravos, mas também o escravo chamado Luís, pertencente ao genro de dona Geraldina, Joaquim Augusto da Purificação. Havia dado a Luís um pouco de pó de uma raiz venenosa, misturado à “canjiquinha que o crioulo estava comendo”. Seu falecimento também se deu no dia seguinte à ingestão da raiz.

Pascoal teria dito ser ele o único escravo que detinha o conhecimento acerca das propriedades das ervas e de seus usos com os objetos com ele encontrados. Usando esse aparato, segundo afirmara em juízo, havia matado, sozinho, cinco escravos. Além disso, contou que fora os dois “mestres”, Luís Moçambique e Félix, havia outro que era “o que melhor sabia fazer tudo aquilo” – um “preto” de nome Antonio. Entretanto, com aqueles dois “mestres, disso ele sabia, muitos escravos estavam aprendendo o ofício”. Não sabia quem eram, muito menos precisar o que realmente estavam “aprendendo” para atingirem o grau maior no que chamou “Escola de Feitiçaria Coroa da Salvação”.

Os depoentes foram revelando uma complexa estrutura de aprendizado na chamada “Escola de Feitiçaria Coroa da Salvação”. Mestres, calendário com local, mês, dia e hora de atividades específicas, protocolos rituais rígidos, tarefas a serem realizadas, hierarquia definida entre o seleto grupo de participantes, fórmulas de conteúdo misterioso, segredos, demonstração de habilidades, e o preço de objetos mágico-religiosos. É possível estabelecer uma tabela relacionando esses objetos, prestações e contra-prestações entre os que os negociavam, como dentes de cobra, patuás, orações, imagens de santos, ervas as mais variadas, através dos seus preços e do valor social a eles atribuído entre os envolvidos. Parte do documento indica, ainda mais quando ocorreram acareações entre os sacerdotes e candidatos ao grau máximo da Coroa da Salvação, que havia dívidas financeiras entre eles. Elas teriam motivado vinganças, uma vez que mau-pagadores não teriam digerido muito bem a cobrança material que seus credores exerceram, que obedeceria a outro calendário que não o das aulas e provas para avançar rumo à Coroa da Salvação.

Como Weber (1985) demonstrou, a vida religiosa não está automaticamente associada à vida voltada para ganhar dinheiro pelo trabalho diário, algo claro no capitalismo. Os agentes sociais tecem essas relações, através dos mais variados critérios, experimentando a vida sob condutas morais que ajudam a fazer uma costura entre a ação religiosa para a salvação pela ação nesse mundo e o ganho financeiro pelo trabalho diário. A fazenda de dona Geraldina estava localizada numa região rica e monetarizada do Império, perto de Parati, aonde desembocava o antigo caminho do ouro colonial. Não avalio como sendo de todo irrelevante lembrar que essa microrregião conhecia formas monetarizadas de intermediação de relações sociais as mais diversas, de modo pioneiro na América portuguesa, junto com a região das Minas Gerais. Da mesma maneira, podemos encontrar registros sobre isso na cidade de Salvador, a partir de 1828, segundo as pesquisas de, envolvendo a encomenda de feitiços, organização de festas dos candomblés e a sustentação dos terreiros nos arrebaldes da cidade, de cujos africanos e seus descendentes, em situação de escravidão ou não, participavam de relações mediadas pelo dinheiro (Reis, 2001; Santos, 2005). Para os anos subsequentes, especificamente nos terreiros do chamado candomblé jeje, Luís Nicolau Parés (2006) fornece dados acerca da complexa rede de relações para o sustento econômico das casas de culto e seus organizadores. Gabriela Sampaio (2007) investigou extensa rede de dons e contra-dons eróticos, políticos e econômicos na sexualizada figura de Juca Rosa, afamado feiticeiro africano-descendente que morava no coração da capital do Império do Brasil.

Entrevista com o prof. João José Reis (Departamento de História/UFBA), sobre resistência dos escravizados africanos e seus descendentes à escravidão

Entrevista com o prof. Vagner Gonçalves da Silva (Departamento de Antropologia/USP), sobre construção social das religiosidades no Brasil e intolerâncias às religiões de matrizes africanas

Há registros de que escravos e africanos moradores de Salvador e do Rio de Janeiro, durante o século XIX, teriam vindo de regiões em que bens mágico-religiosos, saberes e ofícios de sacerdotes e sacerdotisas, por exemplo, eram pagos com dinheiro. Esse sistema não seria diferente do que os africanos islamizados transmigraram com sucesso para Salvador e o Recôncavo da Bahia, a partir da série de insurreições étnico-religiosas desde 1816 (Reis, 2003; 2008).

Contudo, para a região cafeeira, ou para além dos limites urbanos de grandes cidades escravistas das Américas e do Caribe, trata-se de uma novidade esse perfil de organização econômica das relações mágico-religiosas, incluindo pagamento por etapas de aprendizado. Tanto Cunha, Parati como Salvador ocupam lugar privilegiado nas correspondências reservadas dos ministros da Justiça, da Agricultura e da Fazenda do Império quando o assunto eram moedas e notas falsas. Para Weber, somente esse caminho explicaria a racionalização da crença religiosa na salvação pelo trabalho remunerado diário para outrem. Um espírito, um sentir e agir simultâneos, um conjunto de éticas, ethos, que guiam o sentido das pessoas no mundo. Se fosse um radical leitor de Weber, e não de certa maneira um herético, submeteria toda a interpretação do processo de precificação, seguindo as definições de Viviana Zelizer (2011), desenvolvidas por José Renato Baptista (2007) para religiões de matriz africana, dos feitiços e outros elementos do caso de Cunha ao contato com a mentalidade econômica religiosa supostamente disseminada pelo protestantismo na anglo-américa. Poderia até mesmo tratar, em parte como Robert Slenes (1991-92) e Parés (2006) vêm propondo, de uma diáspora religiosa do que autoridades classificavam como feitiço africano e de entidades espirituais. Mas esse não é o meu caso, nesse artigo.

Considerações finais

Diante de todas as declarações, dona Geraldina entregou Pascoal às mãos do inspetor de quarteirão, para que ele, por sua vez, o enviasse ao delegado de polícia da cidade de Cunha, afastando-o do convívio dos seus escravos. O caso se desenrolou em processo criminal volumoso e duradouro, e num longo inquérito que mostrou ser um verdadeiro pente-fino da senhora e outros senhores locais nas senzalas de suas fazendas para descobrir como dar fim ou controlar satisfatoriamente, como diria Yvonne Maggie (1992), a ação dos feiticeiros. Afinal, o dono do escravo não era quem controlava a magia, a manipulação de ervas usadas como dispositivos outros, que não senhoriais, e nem legais, para a resolução de conflitos. Os senhores insatisfeitos poderiam deslocar as autoridades religiosas, e seus futuros mestres, para longe do conjunto de seus escravos. Tal atitude era comum nessas áreas do café, obedecendo ao conjunto de atitudes de vigilância e punição para evitar as ondas negras, nos termos de Célia Azevedo (1987).

No dia 30 de março de 1870, Pascoal e Luís Moçambique foram condenados a pena de galés perpétuas – prisão com trabalhos forçados. Jacinto Monjolo foi absolvido. O pedido de apelação foi negado, em 6 de julho de 1870, com o processo sendo encerrado em 21 de agosto. A condenação foi pelos homicídios, no caso de Pascoal, e por Luís Moçambique tê-lo ajudado diretamente a cometê-los, lhe fornecendo os instrumentos necessários.

Em Mauss e Hubert, Malinowski e Evans-Pritchard o mágico era informado por características místicas e carismáticas, funcionando como um mediador, um especialista, para proporcionar às populações atingir suas demandas. Pela etnografia e pelo recurso aos arquivos, é possível mostrar o lugar da magia na sociedade. Entre os Azande e os Trobriandeses, seguindo Malinowski, a magia não tem relação com sentido do mundo e da vida, ao contrário das grandes religiões mundiais trabalhadas por Weber. É bom saber que se os Azande desnaturalizam a morte, os Trobriandeses não. Um dos interesses do texto de E-P é pensar que magia e feitiçaria não são as mesmas coisas. Quem se considera atingido pela feitiçaria atribui o seu estado como produto da ação de alguém que teria feito o mal magicamente. Isso só é possível se a sociedade permitir que essa possibilidade exista – na feitiçaria, sempre há a atribuição de responsabilidade por um terceiro, tendo como suporte a crença da sociedade, a opinião. O epicentro é a vítima que formula a acusação, refutada pelo acusado. Isso é moralmente condenado pela sociedade, através das opiniões. Esse tipo de acusação revela as classificações dos indivíduos no mundo social, e a natureza social da acusação. A pessoa é vista como um feiticeiro, e não instituída socialmente como mágico. O feiticeiro é escolhido pelo jogo de relações pessoais. A questão, assim, é como os indivíduos tratam historicamente as situações de acusação de malefício, tendo sido acusados por alguém. Ao acusar, a pessoa atribui culpa. Em ambos, magia e feitiçaria operam com o pressuposto da crença de que há uma força fora do mundo.

A magia e a feitiçaria somente relacionam pessoas que já estão em relação em determinado círculo social. Por isso, é fundamental reconstituir a rede de quem diz o que em relação a quem. Como no mundo social tudo é fluido, é preciso historicizar as acusações – o acusado de um momento pode ser o acusador de outro. E Max Weber nos oferece perspectivas eficazes de leitura de materiais de pesquisa que tenham perfis de crença, organização de relações com o sagrado em sentidos salvacionistas que rendem análises não etnocêntricas.


*Luiz Alberto Couceiro é bacharel e licenciado em história pela PUC-Rio, mestre e doutor em antropologia pelo PPGSA-IFCS/UFRJ, com pós-doutorado em antropologia social pelo PPGAS-Museu Nacional/UFRJ. É professor de antropologia no Departamento de Sociologia e Antropologia e professor no PPGHIS, ambos da UFMA. Pesquisa perfis de sociedades escravistas e ações dos agentes escravizados no dimensionamento dos significados de sua existência, através de conflitos com senhores e seus prepostos nos cenários de fazendas de café no Rio de Janeiro e São Paulo, na segunda metade do século XIX, acusações de feitiçaria no Rio e em Salvador, e comunidades de fugitivos no Maranhão e Amapá, a partir de 1755, e suas conexões com as dinâmicas do sistema capitalista internacional.

Fonte documental
Arquivo Nacional

Processo-crime, Corte de Apelação, número 50, caixa 28, galeria c, ano 1870.

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Nota

[1] Todas as citações estão nas folhas 17 e 18v do documento citado.

“IAIÁ DE OURO”: FEITIÇARIA E ESCRAVIDÃO NO RECIFE OITOCENTISTA

Resumo: As sociabilidades religiosas de africanos e crioulos são fios condutores, não só da resistência, mas também de uma cultura que organiza a população negra na sociedade e no território urbano. Por outro lado, as movimentações de feiticeiros(as), curandeiros(as), catimbozeiros(as), são importantes enquanto mecanismo de resistência dos egressos da escravidão. As experiências de vida de livres e libertos, como de Feliciana Maria Olimpia, a Iaiá de Ouro, nos permitem entrar no mundo das negociações nos espaços urbanos do Recife do século XIX, por caminhos diferenciados daqueles que privilegiam as análises estruturalizantes do impacto da abolição no desenvolvimento econômico. O presente artigo traz para o debate, portanto, as ações de livres e libertos – praticantes das religiões afro-brasileiras – como mecanismo de resistência para assegurar seus espaços sociais, religiosos, culturais na cidade nas últimas décadas da escravidão.

Palavras-chave: feitiçaria; escravidão; espaço urbano; Recife; século XIX.

Abstract: The religious sociabilities of Africans and Creoles are the guiding threads not only of resistance, but also of a culture that organizes the black population in society and urban territory. On the other hand, the movements of sorcerers, healers, catimbozeiros(as), are important as a mechanism of resistance of the graduates of slavery. The experiences of free and liberated life, such as those of Feliciana Maria Olimpia, the Iaia de Ouro, allow us to enter the world of negotiations in the nineteenth-century Recife urban spaces, by differentiated paths from those that favor the structural analysis of the impact of abolition in the economic development. The present article brings to the debate, therefore, the actions of the free and free – practitioners of Afro-Brazilian religions – as a mechanism of resistance to ensure their social, religious, and cultural spaces in the city in the last decades of slavery.

Keywords: witchcraft; slavery; urban space; Recife; nineteenth-century.

A[1] presença de africanos(as) e crioulos(as) praticantes de feitiçarias e mandingas, no Recife, como a parda Iaiá de Ouro, que burlava a vigilância e o controle das autoridades eclesiásticas e civis, e assim, garantiam seus espaços de liberdade na sociedade da época, foi registrada por memorialistas e viajantes. Segundo o memorialista Francisco Augusto Pereira da Costa, foi a tal Iaiá uma “afamada bruxa do Largo do Forte das Cinco Pontas”, que, por meio da indústria da feitiçaria, conquistou grande clientela e acumulou fortuna legada a seus devotos protetores. Chegou a viver no Recife até os primeiros anos do século XX e exerceu forte influência sobre policiais, políticos, inspetores de saúde e comerciantes da época (Pereira da Costa, 1974, p. 120-121).

No dia 28 de janeiro de 1873, foi enviada ao Comendador Henrique Pereira de Lucena (posteriormente Barão de Lucena), então presidente da Província de Pernambuco, uma carta anônima pedindo que fosse remediado um grande mal. Curiosamente, tal malefício que pairava sobre a Cidade do Recife de Pernambuco era a presença de uma moradora do Largo da Fortaleza das Cinco Pontas: “parda de nome Feliciana Maria Olímpia, conhecida por Iaiá de Ouro, ou feiticeira, que intitulava-se viúva, mas que sempre foi e é prostituta”[2]. Possuidora de escravos, costumava aplicar golpes e furtos em comerciantes, tendo como cúmplice um sujeito de nome João Nepomuceno. Teve relações estreitas com pessoas de influência na sociedade da época, como o Secretário da Chefatura de Polícia, o senhor Eduardo de Barros. Foi acusada ainda de estar envolvida no assassinato de algumas de suas escravas. Era de tão má conduta que chegou a ser presa dez ou doze vezes, sendo algumas dessas prisões por crime de ferimentos, outras por injúria e outras ainda por furtos e golpes.[3]

O Presidente da Província parece ter levado muito a sério as denúncias contra Feliciana Maria Olímpia, a Iaiá de Ouro, pois, cinco dias depois da referida carta, estava nas ocorrências da Polícia Civil um ofício que dizia estarem sendo tomadas as “precisas providências sobre a prisão dos criminosos” citados na carta.[4]

Na tentativa de percorrer a trajetória dessa mulher parda, feiticeira, criminosa e, como relata seu algoz anônimo, pessoa de má conduta, procuramos pensar como as ações cotidianas de pessoas livres e/ou libertas: africanas, crioulas ou mestiças; em especial, praticantes de feitiçarias, mandingas, catimbós, xangôs – práticas afro-religiosas[5] – se constituíram em mecanismos de garantia de seus espaços na cidade, tornando bairros e logradouros áreas de suas relações de poder. A exemplo do bairro de São José, que foi sendo reconfigurado por escravizados e egressos do cativeiro, tornando-se, segundo Marcus Carvalho, lugar de reconstrução de laços sociais, culturais e religiosos esgarçados pela violência do tráfico transatlântico de africanos (Carvalho, 1998, p. 87).[6]

O objetivo deste artigo, portanto, é por meio da trajetória da Iaiá de Ouro coteja as ações de livres e libertos – praticantes de feitiçaria, curandeirismo, catimbós, ou seja, práticas afro-religiosas – os mecanismos de resistência utilizados para assegurar seus espaços sociais, religiosos, culturais na cidade nas últimas décadas da escravidão, por caminhos diferenciados daqueles que privilegiam as análises estruturalizantes do impacto da abolição no desenvolvimento econômico.

Iaiá de Ouro à época do Recife das Maxambombas

A cidade do Recife, na segunda metade do século XIX, assistiu à chegada do progresso, experimentado na expansão de sua área urbana e nas ações dos “homens de negócios”, que, preocupados com a industrialização e a reforma da cidade, investiam na edificação de prédios públicos, como a construção do Mercado Público de São José, inaugurado em 1875; no alargamento de ruas e largos; no transporte coletivo, com o aparecimento das maxambombas – bondes que circulavam na Cidade, ligando o centro a seus arrabaldes. Por outro lado, o progresso do Recife, na proporção em que se expandia urbanisticamente, tentava conter o fluxo de pessoas egressas dos engenhos, normatizando a utilização das ruas, controlando as idas e vindas dos transeuntes, principalmente a movimentação cotidiana de escravos e libertos que circulavam nas ruas, seja à luz do dia ou à noite.

O Largo das Cinco Pontas, localizado no bairro de São José, onde morava Iaiá de Ouro, foi um desses lugares de vigilância e controle das autoridades civis e eclesiásticas da época. Era o Cinco Pontas visto pelas instâncias púbicas – policiais e administrativas – como reduto de vadios, malandros, ajuntamento de negros escravizados, livres e libertos: “rixa entre moleques e pretos que alli vão estacionar com o fim de conduzir as bagagens dos passageiros. Da lucta resultou ferimentos feitos á pedradas e até canivete”.[7] Também a violência era registrada nas ocorrências dos chefes de polícia:

Hotem às 8 horas da noite, na ocasião em que dous Bondes se encontraram na curva que forma as linhas na Praça do Conde d’Eu, João José Nepomuceno, passageiro do Bonde que vinha da Magdalena, estendendo a cabeça para fora da plataforma, onde vinha, recebeu uma forte pancada no rosto pelo bonde que ia para a passagem. Este facto foi e deste modo informado por Pedro Luiz de Oliveira, empregado na Estação das Cinco Pontas que presenciou.
As 11 horas da noite de 2 do corrente os dous vigias, q’rondam a Estação das Cinco Pontas, perceberam q’ uma canoa atracara aos cães do lado interior da estação. Dos dous indivíduos, q’ vinham em dita canoa, um saltou á terra e travou uma lucta a faca com os vigias, não podendo esse indivíduo tirar vantagem nessa lucta, retirou-se á canoa, e com o outro fez-se ao largo. Quatro horas depois apareceu outro individuo q’ sorphehendido pelos vigias, retirou-se depois de desparar sobre os mesmos um tiro.[8]

Mais uma vez, ambos os relatos policiais mostram a área como violenta e perigosa para os que nela labutavam, a exemplo dos vigias da Estação, que arriscaram sua vida para garantir o patrimônio do estado, como para aqueles que precisavam ir e vir, como João José Nepomuceno, que saía da Madalena para ir ao Cinco Pontas, talvez no caminho de seu trabalho. Ou ainda para aqueles que escolhiam residir nessa parte do Recife, como Iaiá de Ouro que, ao sair da comarca de Nazareth, chegou a essa localidade no final da década de 1860. Ali se estabeleceu, tirando feitiços, praticando curandeirismo, envolvendo-se em furtos e golpes, acusações de assassinatos, muitas vezes em parceria com seus amigos, clientes ou domésticos. Chegou a ter doze registros na Casa de Detenção, devido às estratégias de sobrevivência, que passou a engendrar nesse lugar[9].

Disputas acirradas por trabalho entre moleques e pretos, furtos, roubos, assassinatos cometidos por ex-cativos, foram alguns exemplos elucidados por Walter Fraga ao analisar as ações da população livre e liberta às vésperas do movimento de 1888, que culminou na abolição do sistema escravocrata. Para ele, são exemplos que podem ser lidos como experiências com a liberdade e estratégias de sobrevivência dos egressos da escravidão na sociedade pós-emancipação. Análises importantes também para perceber como outros libertos ou livres, assim como a parda feiticeira Feliciana, criavam mecanismos para garantir seu espaço na cidade (Fraga Filho, 2006).

Feliciana Maria Olímpia, muitas vezes era ela “Maria da Conceição”, “Maria Conceição”, “Maria Olímpia Floresta Brasileira”. Isto é, na tentativa de escapar da vigilância e do controle policiais, utilizava um nome para cada momento, talvez delegacia, chefe de polícia, circunstância, conteúdo do crime. Os jornais da época, no Recife, estão cheios de anúncios à procura de cativos(as) que, em seus momentos de fuga, costumavam mudar de nome, como Severino, que, quando fugia, segundo seu senhor, mudava seu nome para Francisco Antônio (Carvalho, 1998, p. 184).

Feliciana Maria Olímpia, Maria Floresta Brasileira, Maria da Conceição, ou Iaiá de Ouro, também era tida como parda. Talvez uma liberta ou, quem sabe, parda livre. Enfim, Feliciana trazia na cor de sua pele as marcas comuns ao cativeiro. Pelas informações documentais não foi possível precisar sua condição de experiência com a liberdade. Mas, assim como tantos que carregavam na pele a cor do cativeiro, Feliciana negociava, criava estratégias para inserir-se no mundo “branco” e escravocrata. Sobre suas estratégias de inserção nessa sociedade e de garantia de sua sobrevivência na cidade, discutiremos, a princípio, sua identidade étnica e/ou de cor, ou melhor, sua meta-etnia, uma vez que sua classificação de cor/etnia é dada por terceiros.[10]

No final do século XIX, as classificações de cor e raça passaram a ter uso científico e de vinculação com a sociedade brasileira. No cotidiano da sociedade, as classificações de cor/raça seguiam padrões múltiplos desde o século XVIII, podendo representar desde características físicas, relações de parentesco até sinalizadores de redes sociais. Desse modo, o que era ser pardo(a) como a feiticeira Feliciana nas últimas décadas do oitocentos? Ou melhor, de que critérios a sociedade se utilizava para classificar uma pessoa como negra, crioula, parda, mulata, cabra, enfim, das mais variadas matizes de cor/etnia?[11]

No Brasil escravista, mais que a condição de cor e social, a condição jurídica era a balizadora das diferenças entre livres e escravizados; desse modo, negros, pardos, mulatos, cabras, poderiam ser juridicamente tanto escravizados como libertos. O termo negro era utilizado juridicamente como sinônimo de escravo, não sendo possível encontrar designações do tipo “negro livre” ou “negro liberto” no século XIX. Seguindo o mesmo raciocínio, era a classificação de crioulo tida como referência de escravizado nascido no Brasil, ou seja, filho de africanos cativos. Quando alforriados, os crioulos seriam designados como pardos forros, enquanto seus filhos seriam pardos, independentemente da cor da pele. Ou seja, os termos classificatórios: negro, crioulo e/ou pardo para designar escravizado não significavam cor de pele, mas origem de nascimento.

A cor da pele entre os livres e libertos, por sua vez, indicava outros níveis de diferenciação social para os homens e as mulheres coloniais/imperiais que não eram submissos pelas distinções entre livres, forros e escravos. A cor da pele era um fator de reconhecimento social de determinada situação que caracterizava o status dos livres e dos escravizados e não a condição jurídica desses ou ainda sua ascendência étnica (Machado, 2008, p. 123). O termo pardo, portanto, recebeu conotação mais variante/ampla, poderia indicar tanto os recém-libertos filhos de africanos, libertos, filhos de crioulos e seus descendentes livres. Para Sheila Faria, pardo seria um termo para indicar a mestiçagem. Até meados do século XIX, a cor parda era triplamente qualificada: “pardo cativo”, pardo forro” e “pardo livre”. Quando forro, pardo adquiria o mesmo sentido que mulato; quando livre, seria então não-branco (Faria, 2004, p. 69; Mattos, 1998, p. 96). Isto é, a cor parda depois da segunda metade do século XIX tornou-se um critério de diferenciar o liberto do escravizado. Segundo Hebe Mattos, a cor era ainda um indicativo de lugar social, signo de cidadania no Império. Dessa forma, seria a cor parda, no final do século, também um indicativo de inserção no “mundo do branco”; era, pois, uma identidade de negociação no mundo escravocrata.

No dia 12 de fevereiro de 1873, ou seja, 12 dias do surgimento da carta anônima na mesa de Henrique Pereira de Lucena, foi também entregue ao referido Presidente um oficio do promotor público da comarca de Olinda, ministro Gaspar de Vasconcelos Mendes de Drummond, a resposta ao ofício datado de 17 de janeiro do mesmo ano, referindo-se à apuração do inquérito sobre o assassinato de Madame Luiza Boltine, tendo como principal suspeita do crime, Feliciana Maria Olímpia.[12] Pelo conteúdo da carta, a investigação sobre a morte de Madame Boltine estava sendo minuciosa, segundo palavras do próprio promotor Mendes de Drummond, que ainda não tinha chegado a conclusões mais precisas sobre se Feliciana era ou não a autora do crime. Desejando dar ao Presidente da Província resultado do que lhe foi pedido, iria usar o máximo de sua autoridade enquanto Promotor Público, investigando, indagando testemunhas envolvidas no processo, até extrajudicialmente. Ou seja, Mendes de Drummond, ao dizer que iria utilizar extrajudicialmente sua autoridade, provavelmente se valeria de ações no âmbito do privado para resolver uma questão de ordem jurídica – pública.

Investigando o cotidiano do bairro de São José, na época em que morou ali Feliciana, através dos registros policiais, observamos ainda que dez dias após as denúncias feitas anonimamente a ela, foi presa uma africana liberta de nome Josepha. O alferes do 9º Batalhão da Delegacia do 1º Distrito do Recife, delegacia que respondia pela localidade onde morava Feliciana, João Bernardo do Rego Barros – comandante da guarda na época – deixou de registrar os motivos que levaram à prisão de Josepha. Seria ela uma “transgressora da ordem e dos bons costumes”, assim como Feliciana? Teria sido presa por praticar algum furto, tirar feitiço, ferir, espancar ou assassinar alguém? Provavelmente foi Josepha presa apenas pelo fato de sua procedência étnica e condição social, visto que foi “reconhecida ao torreão desta casa [Detenção] em a noite de hontem”.[13] Historiadores da escravidão já se comprometeram com análises sobre as posturas municipais e leis provinciais que controlavam a movimentação de escravizados e libertos à noite nas ruas da cidade sem bilhetes que assegurassem sua condição jurídica, enfatizando que, para os africanos, uma linha muito tênue dividia a condição de escravização daquela de liberto, quando o assunto era vigilância e controle policiais (Maia, 2008; Reis, 2008).

Vale ressaltar que Feliciana, “a título de tirar feitiços, vai-se locupletando com o alheio dos incautos”.[14] Ou seja, as práticas de feitiçaria da parda moradora do Largo das Cinco Pontas, além de terem lhe rendido algum cabedal, por meio de uma clientela que a procurava sem cautelas ou medidas, enriqueceu. Provavelmente a clientela de Feliciana era considerável não só entre a polícia, visto que o local onde morava foi registrado nas delegacias da Cidade do Recife como violento e perigoso. Mas, sobretudo, estavam seus clientes, entre as altas cúpulas policial e jurídica, que provavelmente iam buscar os trabalhos de Feliciana ou de outras pessoas que oferecessem os mesmos serviços que a parda feiticeira no referido logradouro, área de furtos e roubos, malandragem, assassinatos, prostituição. Reduto de negros, como afirmamos no início da narrativa; espaço de exercício da negociação entre a vigilância e o controle policiais e as práticas de sobrevivência dos moradores da área. Desse modo, as relações estabelecidas entre a parda Feiticeira e seus “protetores” da polícia se constituíram em redes de poder, de (inter)dependência.[15] Ela se empoderava por meio de suas práticas de feitiçaria, curandeirismo ou até mesmo pelas redes sociais que articulava com policiais.

Por outro lado, mesmo não tendo tantos subsídios para uma análise da trajetória de Feliciana sobre a leitura de gênero – classe – etnicidade, arriscaremos fazer algumas considerações sobre o assunto em torno dos mecanismos utilizados pela sociedade patriarcal a partir do silenciamento de Feliciana na documentação. Por meio de sua trajetória, é possível ler estratégias sócio históricas de produção das desigualdades não só de gênero, como também de cor e classe. Sua experiência não é só de uma praticante de feitiçaria, mas de uma mulher dentro de uma sociedade de “voz e mando” masculinos, cujos estigmas negativos sobre sua condição social, econômica e cultural lhes eram atribuídos por homens e mulheres de sua época. A carta anônima traz a informação de que ela “se intitulava viúva, mas que sempre foi e é prostituta”. Aqui, talvez seja possível que não só classificaram Feliciana de algo que ela não era, como também negaram sua própria condição de existência. As origens do acúmulo de seu dinheiro, que a levou a ficar rica, foi uma das questões que mais incomodaram as pessoas de seu convívio cotidiano, motivo no meio de outros, que impulsionou a escrita da tal carta anônima. Para seus algozes, eram chocantes os meios pelos quais a fortuna de Feliciana, vinda da prática de feitiçarias e curandeirismo foi gerada. Talvez o(a) autor(a) da carta anônima também quisesse dizer que não só de feitiçaria mais também de prostituição a parda feiticeira afortunou-se. Por outro lado, ao estigmatizarem Feliciana de prostituta, feiticeira, sinalizavam condição de sua cor/etnia, ou seja, prostituição e prática de feitiçaria seriam sinônimos de representação de mulher negra. Classificações, designações, “estigmas” elaboradas ainda no século XIX para diferenciar, naturalizar, legitimar as desigualdades de gênero e etnia.

Feiticeira escravocrata

Até o momento, foram feitas algumas análises acerca de denúncias contra Feliciana, suas redes sociais, possíveis motivações de suas ações. Mas, quem foi o autor da carta anônima contra ela? Quem eram as pessoas de que esse seu algoz trata na carta que também queriam ver a Feiticeira ser punida pelas autoridades provinciais?

Pelo conteúdo da carta e da forma como vêm sendo descritas suas ações, provavelmente foi alguém próximo a ela, que também fez parte de suas redes de sociabilidade. Cliente para os trabalhos com feitiçarias e mandingas? Amigo, vizinho, ex-amante? Comerciante da redondeza do bairro de São José? Ou quem sabe se esse algoz era, na realidade, uma das consortes dos amigos íntimos de Feliciana? Difícil saber! O fato é que a pessoa que escreveu a carta sabia da trajetória de vida dela. Sabia possivelmente como ela conquistou sua riqueza, e até como a parda Feiticeira tratava sua escravaria, pelo visto deve até ter presenciado a morte de uma de suas cativas pois, segundo o autor, ou autora da carta anônima, foi Feliciana a assassina de uma de suas escravas. No entanto, o atestado médico dizia “ter morrido a negra de apoplexia”.[16] Isto é, no óbito da cativa de Feliciana, constou que a causa do falecimento foi um infarto fulminante, ou seja, o coração parou, levando à morte a desvalida. É plausível que a morte da cativa esteja até relacionada com a truculência que comumente Feliciana tratava sua escravaria. Uma de suas escravas foi vista, outro dia, fugindo em estado de quase nudez e ferida nas mediações do Campo das Princesas, no vizinho bairro de Santo Antônio.[17]

O algoz de Feliciana ainda cita vizinhos que estavam ansiosos por ver a feiticeira por traz das grades, como o português Antônio Maria Reis “e um indivíduo de nome Carvalho”, que também eram testemunhas do trato de Feliciana para com suas escravas. Carvalho e Reis também chegaram a presenciar os espancamentos noturnos que Feliciana costumava dar às suas cativas. Mas por que os referidos vizinhos estavam tão “preocupados” com o trato que uma senhora dava a sua escravaria, visto que se tornou prática corriqueira a correção – coerção pela violência – para assegurar a autoridade senhorial?

Decerto alguns desses vizinhos de Feliciana estivessem dando guarida ou apadrinhando as escravas fugidas da casa da feiticeira. Comumente, os escravizados buscavam auxílio, apadrinhando-se na vizinhança. A rede de apadrinhamento, segundo Paulo Moreira (2008), foi um traço cultural presente no escravismo brasileiro, cujo objetivo era atenuar, ou até mesmo, resolver os conflitos que poderiam ter desfechos violentos. Prática comum, entre os escravizados fugidos, apadrinharem-se com pessoas vizinhas aos seus senhores, negociando a volta para seu cativeiro de origem. Havia também casos em que os cativos revoltados pelos “castigos injustos” recebidos procuravam padrinhos que lhes dessem condições de trocar de senhor por meio da venda. A busca por apadrinhamento, em casos de fugas, adquiria maior sucesso quando os escravizados jogavam com as redes de poder de seus senhores. Não adiantava pedir proteção a qualquer padrinho, pois seus senhores só negociaram com pessoas de seus mesmos ou superiores valores sociais e/ou econômicos. Ressalta-se também que se corria riscos ao apadrinhar-se com inimigos políticos de seu senhor. Isto é, cabia ao escravizado realizar uma avaliação política antes desta empreitada, visto que tinha muito a perder (Moreira, 2008, p. 212).

Em meados do século XIX, dar guarida, acoitar cativos fugidos se tornou corriqueiro em Pernambuco. Mesmo sendo crime, referida ação na época era mais uma estratégia que os senhores utilizavam para assegurar a exploração da mão-de-obra que estava se tornando cada vez mais difícil com a Lei de 1831, colocando empecilhos na posse de cativos. Acreditamos que a Lei de 1871, esse problema teria aumentado, visto que a transação para o trabalho livre ainda estava sendo teorizada, sendo culturalmente muito mais desesperador para os senhores escravocratas perderem a “peça” da engrenagem de seu poder. Enfim, para o escravizado que encontrava na fuga que culminava em seu acoitamento na casa de um vizinho de seu senhor, era mais uma tentativa para melhorar sua condição, buscando por um senhor menos tirânico e/ou que viesse respeitar alguns direitos que pensava o escravizado ter conquistado ou adquirido.[18]

Suspeitamos ainda que os senhores Carvalho e Reis, vizinhos de Feliciana, estavam se beneficiando das cativas da feiticeira. Ou quem sabe se não eram simpatizantes da causa abolicionista que tomava maiores proporções entre a população na época? Vale ressaltar que os movimentos abolicionistas e a mentalidade da população em relação a escravidão estavam mudando entre as décadas de 1870 e 1880. Portanto, os vizinhos de Feliciana que estavam acompanhando, pormenorizadamente, o que acontecia com suas cativas, poderiam ser adeptos da causa abolicionista.

Nos relatos dos viajantes que estiveram no Brasil no século XIX, alguns como Maria Graham, mencionaram como a população negra – crioulos, mulatos, pardos – já era expressiva demograficamente desde o início do século. Graham deixou em seus relatos suas impressões sobre a esperteza e as habilidades de crioulos, mulatos e pardos. Quando libertos, muitos chegavam a acumular fortunas, montando comércio, ostentando sua riqueza através de joias, tecidos de seda, etc. (Graham, 1990, p. 157). Feliciana era uma parda que fez sua fortuna através de sua prática de feitiçaria, chegando também a investir na propriedade de escravos. Na sociedade escravocrata em que ela viveu, a escravidão era mais do que um sistema de sustentação econômica, tornou-se também uma instituição social – implicando práticas sociais correspondentes, ou seja, a posse de escravos representava simbolicamente poder, status social, riqueza, passaporte para a ascensão social. Até mesmo o próprio escravizado, na primeira oportunidade, virava um proprietário de cativos (Carvalho, 1998, p. 273).[19] Nossa feiticeira escravocrata era, nada mais nada menos, que sujeito social das relações produzidas na sociedade de sua época, suas cativas representavam seu capital simbólico de poder no âmbito no qual estava inserida.

Feiticeiros, bruxos, curandeiro, catimbozeiros e os espaços citadinos

“Os feiticeiros formigam no Rio, espalhados por toda a cidade, do cais à estrada de Santa Cruz” (Rio, 2008, p. 51). Assim, João do Rio mostrou a cartografia da cidade do Rio de Janeiro por meio das ações dos últimos africanos feiticeiros, com suas casas de candomblés que demarcavam ruas e bairros como espaço de seu poder. Na visão de João do Rio, a feitiçaria seria então as práticas religiosas de herança africana, isto é, por nós conhecidos como cultos afro-brasileiros.

Luís da Câmara Cascudo definiu em Meleagro, feitiçaria e bruxaria como sinônimos de catimbó, termo popular para designar as práticas de manipulação de ervas, defumações com cachimbos e charutos, orações e rezas invocativas para resolução de problemas ligados a dinheiro, casamento, trabalho. Seria então o feiticeiro ou catimbozeiro “quem mestra a ‘mesa’, usando a ‘marca’ fumegante ou isoladamente atendendo aos clientes, vendendo ‘orações fortes’, fazendo muambas na intenção do amor e morte” (Câmara Cascudo, 1978, p. 21-22). Assim, amalgamaram-se as orações poderosas e magias europeias à ciência das ervas indígenas, ficando o velho africano com maior prestígio enquanto místico/feiticeiro. Nessa narrativa sobre a parda Feliciana Maria Olímpia, a Iaiá de Ouro, sua condição social, ou melhor, sua cor de pele e sua área de moradia apresentavam-se como indícios para conjecturarmos seu perfil de feiticeira dentro das denominações de Câmara Cascudo e João do Rio.

Iaiá de Ouro viveu no espaço tempo da cidade do Recife nas décadas de 1870, momento de tensões políticas e sociais que concorreram para a fragmentação do patriarcalismo e dos movimentos para o fim do sistema escravagista, como já mencionamos em outros momentos. Nas acusações que sofreu, não havia nenhuma ligada à prática de feitiçaria, e sim por crimes de roubo, ferimentos, injúrias. Nos relatórios do Presidente da Província de 1873, ano das denúncias sobre a parda feiticeira Feliciana, foram listados os seguintes casos de crimes na província de Pernambuco: 16 furtos, 57 tentativas de furto, 19 roubos, 46 homicídios, 18 ferimentos e ofensas físicas leves e 66 ofensas à religião. Esse último tipo de crime perdeu apenas para 153 quebras fraudulentas, ou seja, eram as “querelas” ligadas à religião, uma preocupação considerável para a polícia e a justiça provinciais da época. Feliciana foi indiciada por vários desses crimes listados nos Relatórios do Presidente da Província, alguns até explicitados na carta anônima.[20]

Possivelmente por ter sido indiciada por vários desses crimes se tornou alvo do cólera de pessoas de todas as estratificações sociais, como Manoel Pinto Ribeiro da Silva que, embora não sabemos qual o grupo social o qual pertencia, conjecturamos que fazia parte de algum grupo privilegiado. Isto devido a defesa que o mesmo terá, como veremos adiante. Ele atentou contra a vida dela usando um clavinote e uma faca de ponta. Tendo esta última arma ferido Feliciana, no dia 18 de agosto de 1872 na casa que ela possuía em Porto da Madeira, Beberibe, enquanto ela “admoestava um caboclo”.[21] Ou seja, quando Feliciana exercia suas funções religiosas e/ou de feitiçaria. Embora Manoel Pinto tenha sido preso, recebeu um habeas corpus, o qual veio ela a contestar junto ao juiz de Direito da cidade de Olinda que estava à frente do caso naquela ocasião. Referido Juiz chegou a dar atenção a solicitação de Feliciana em relação ao habeas corpus de Manoel Pinto. Em carta de 14 de setembro de 1872, a feiticeira pedia ao juiz de Direito de Olinda que não atendesse ao pedido de relaxamento da prisão de Manoel Pinto, pois

A concessão de habeas-corpus animou o perverso, e assustou a suplicante sobre a maneira que desde logo se tem conservado trancada, vendo a cada instante repetir-se aquela scena (sic) de horror: porquanto o perverso passeia impune por toda parte dizendo que levará a efeito o que na outra vez não conseguiu.
Portanto, à vista do que fica podendo e consta das provas dos autos, espera a suplicante da indefectível justiça de Vossa Magnificência Ilustríssimo que tomando conhecimento do dito recurso reforme a sentença recorrida para efeito de ser capturado o dito perverso, como autor de tão qualificada e horrorosa tentativa de morte, que escapou ao demasiado escrúpulo daquele integro magistrado.[22]

Não sabemos quem foi atendido pelo Juiz de Olinda. Se Feliciana ou Manoel Pinto. O fato é que Feliciana apelou ao juiz de Direito de Olinda não só por temer por sua vida, mas também por ter alguma certeza de que seu pedido iria ser apreciado pelo Magnífico Juiz. Estrategicamente, ela se valeu da imprensa, a carta foi publicada no Jornal do Recife como uma forma senão de comover a sociedade, ao menos de deixar o Juiz em evidência e em situação delicada perante o caso. É possível também que alguma ascendência Feliciana tinha sobre essa autoridade, do contrário não utilizaria de tal audácia para atingir seu objetivo que era impedir o habeas corpus de seu verdugo.

O impacto de sua carta de apelação contra o habeas corpus de Manoel Pinto entre seus algozes foi tamanho, assim como sua atuação, enquanto feiticeira, o era na cidade. Três dias depois da publicação da carta de Feliciana, ou seja, no dia 17 de setembro de 1872, um Redator anônimo escreveu no Jornal do Recife, saindo em defesa de Manoel Pinto, afirmando que “o juiz de direito, não fez mais do que executar a lei, tornando-se garantidor da liberdade individual injustamente ameaçada.”[23] Ainda acusou Feliciana:

Maria Olympia invertendo a história do tiro que sofrera, santifica-se e mandou narrar, a bel prazer seu, o fato, para calar no espírito dos membros da Relação e na opinião pública, de que foi selváticamente agredida, sem ofender, pelo abaixo assinado. Entretanto, quem tem conhecimento de Yayá de Ouro, sabe quanto insólita e ousada é esta feiticeira, que não respeita a honra das senhoras casadas, das solteiras, dos homens, etc. etc.[24]

Este algoz da Iaiá de Ouro não só defende o seu agressor como a acusa de feiticeira ousada que não respeita a honra e a moral das famílias da cidade. Mas, o que torna esta acusação interessante é o fato do temor que Feliciana, a Iaiá de Ouro causava em um seguimento da “gente grã-fina” do Recife.

Desde a década de 1860, já estavam sendo registradas nas Delegacias de Polícia da Cidade do Recife pessoas praticantes de feitiçaria ou simplesmente por serem feiticeiros que roubaram, como Manoel Matheus dos Anjos Fernandes, conhecido como Manoel Feiticeiro, autor de um crime de roubo com agravante de incêndio no Forte do Mattos – bairro do Recife, zona portuária da Cidade.[25] Não temos muitas informações sobre Manoel Feiticeiro, salvo a ocorrência da Delegacia do bairro de São José, onde foi preso. Seria ele um orientador espiritual dos escravos, libertos e livres que labutavam no porto? O crime por ele cometido não seria parte das várias ações dentro do movimento abolicionista que cativos e libertos acionavam? Por outro lado, era também comum escravizados, tanto crioulos como africanos, serem acusados de praticar feitiçaria, quando o assunto era assassinato do senhor ou de seus empregados. Para Luiz Alberto Couceiro, ainda neste período, as acusações de feitiçaria só apareciam como crimes quando ligados à classe senhorial, vistos sob a ótica das autoridades imperiais como crimes de “sedução” (Couceiro, 2008).

A feitiçaria ou as práticas religiosas africanas não eram prescritas como crimes pelo Código Criminal de 1830, ao contrário do que veio a ocorrer posteriormente na República. Francelino Correia da Silva, conhecido como Pai Velho,[26] foi acusado por crime de homicídio em 1902. Encontramos, nas petições de presos da Detenção do Recife, uma apelação ao Supremo Tribunal de Justiça, na qual Pai Velho apelava para que sua prisão e sua condenação fossem revistas. Não sendo possível saber se realmente Pai Velho foi o autor do crime pelo qual estava sendo preso e julgado, permanece para nós a pergunta: será que a polícia e a justiça republicanas continuaram com as mesmas prerrogativas utilizadas no Império? Ou Pai Velho foi tido como principal suspeito de um crime por ser feiticeiro, catimbozeiro ou xangozeiro? – denominações utilizadas pela polícia nos primeiros anos da República, de forma pejorativa, para designar os praticantes das religiões afro-brasileiras.[27]

Portanto, a estatística de 66 crimes por ofensa à religião, apontada no Relatório do Presidente da Província de Pernambuco em 1873, pode ser o fio de Ariadne para nos conduzir no labirinto da documentação policial e judiciária, para chegarmos até os sujeitos sociais das práticas de feitiçaria e suas estratégias de apropriação dos espaços citadinos no Recife, como no caso de nossa Iaiá de Ouro. Teria ela seduzido o delegado Martins, que, ao indiciá-la, acabou se tornando seu amigo, assim como Eduardo de Barros, chefe de polícia, que passou a ser seu testamenteiro? Uma vez que ambos passaram a pertencer às redes sociais tecidas pela feiticeira o que seria na realidade um crime de “sedução” cometido por feiticeiros e/ou catimbozeiros no final do Império é o argumento central que conduziu o trabalho de Coceiro (2008).

Mas, não só foram o delegado Martins e o chefe de política Barros que passaram a fazer parte das redes políticas da Iaiá de Ouro. Além desses ela obteve também a proteção do Dr. Moscoso, Inspetor de Saúde Pública do Recife em 1874. No dia 11 de junho de 1874 foi publicado no Jornal do Recife, uma carta denúncia assinada por um tal Dr. Murilo contra o Inspetor de Saúde Pública da Província:

O que tem feito e Sr. Dr. Inspetor de Saúde Pública em relação a uma celebre feiticeira Yaya, que recebe doentes e dá consultas em sua casa no Largo das Cinco Pontas?
Nada absolutamente. Ou Sua Senhoria ignora a existência dessa feiticeira que especula com a boa fé e credulidade pública e outras, fazendo profissão de curar a loucura e outras moléstias com benzeduras, feitiços, etc. e nesse caso  Sua Senhoria não cumpre os seus deveres, por que não procura conhecer as infrações constantes e repetidas do regulamento, ou não tem se importado absolutamente com esse fato, como se ele não fosse gravemente criminoso, e nesse caso faz mais do que não cumprir os seus deveres, os ignora. É ainda verdadeira a nossa asserção:  O Sr. Dr. Inspetor de Saúde Pública não tem cumprido com o seu dever.
O Sr. Dr. Inspetor de Saúde Pública só se lembra infelizmente que é Inspetor de Saúde Pública, quando deseja dizer alguma couza em desabono de algum seu colega.[28]

O curandeirismo foi prática corrente no Brasil imperial, tendo nos africanos e seus descendentes os principais alvos da perseguição policial e médica. Por outro lado, constantemente procurados pela população escrava, livre e liberta. Segundo Maria da Vitória de Lima (2016), os curandeiros exerciam atuação mais direta no meio da população pelo fato de irem até o domicílio para atender aos que o procuravam, além do que, havia entre essa população e os curandeiros uma identidade de solidariedade que passavam por experiências comuns e pela condição social (Lima, 2016, p. 276).

Iaiá de Ouro estava sendo acusada de curar as moléstias de loucuras de seus consulentes, cuja medicina da época certamente não atendia. O saber médico se consolidava, em meados do século XIX, anulando o conhecimento popular, sobretudo de manipulação de ervas, plantas medicinais, benzeduras, as chamadas “mesinhas” que a população se valia para curar suas enfermidades. Lidos como charlatanismo, como nomeou o dr. Murilo ao acusar o dr. Moscoso de não exercer devidamente suas funções quanto a tal assunto que “alça o solo e a todos ameaça a dominar”.[29] Não obstante, foi a partir do conhecimento das plantas e ervas medicinais que a farmacologia e a medicina buscaram as bases para o saber científico. Todavia, o saber médico, a impressa, a igreja, a polícia e as elites articulavam discursos que deslegitimavam a atuação dos curandeiros em meio aos populares, em particular, aos escravizados, negros livres e libertos cuja medicina e a farmacologia não alcançavam.

Para o Dr. Moscoso a ilegalidade não estava na prática de curandeirismo de Iaiá, mas sim nos médicos, como o dr. Santos Mello que estava com seu registro irregular na Inspeção. Iaiá, dentro de seu saber, era bastante procurada pela população, assim como outros tantos curandeiros e curandeiras que existiam na Província. Alguns ficaram deveras afamados como o preto Manoel, escravo do engenho Guararapes, curandeiro que atuou em 1856 no combate à epidemia do cólera no Recife. Pai Manoel, como era popularmente conhecido, chegou a ter autorização para ter “mezinha” no Hospital de Marinha do Recife, onde atendia os achacados pelo cólera (Farias, 2012). Era bastante procurado pela população devido a sua fama de cura do cólera e de outros malefícios.

O sucesso de pessoas como Pai Manoel, Iaiá de Ouro, entre outros que se tornaram afamados nas práticas de cura não se deu apenas pela falta de médicos, cirurgiões ou porque a maioria da população não podia arcar com os custos de um serviço médico. A bem da verdade, os curandeiros e as curandeiras eram solicitados por serem mais eficientes para tratar tanto as moléstias leves quanto as mais sérias e também por estarem mais próximas as pessoas. Percebemos pela denúncia do dr. Murilo que Iaiá de Ouro tinha a confiabilidade não só da população consulente, mas também da própria autoridade de inspeção de saúde da província, dr. Moscoso, que não desabonava o exercício de seu curandeirismo. Por outro lado, Recife já era uma afamada capital, desde a década de 1850, de atuação de afamados curandeiros e curandeiras que exercitavam o curandeirismo concorrendo com a medicina alopática (Farias, 2012).

Breves considerações finais

Para finalizar, as ações dos egressos do cativeiro na garantia de seu espaço na cidade e as ações da parda feiticeira, curandeira Feliciana Maria Olímpia, a Iaiá de Ouro foram aqui pensadas em torno das teorias de resistência – concepções tão caras à historiografia da escravidão dos anos 1980, que trazem os escravizados e seus descendentes como sujeitos sociais de suas próprias histórias. Segundo Michael Brown, pensar nas ações de pessoas dentro da dicotomia subserviência-resistência estaria um tanto demasiada, perdendo-se de vista as dimensões antropológicas que privilegiam a existência em detrimento da resistência (Brown, 1990). Portanto, a trajetória dos atores sociais que acompanhamos, muitas vezes, são traduções de suas experiências de vida, de como o mundo é concebido em seu cotidiano. Isto é, as práticas de feitiçaria de Feliciana podem ser lidas como um mecanismo pelo qual ela conseguia não só se inserir em determinados espaços na cidade, todavia, sua própria maneira de conceber sua existência e traduzir a sociedade na qual vivia.

Assim, por meio das conjecturas sobre a parda feiticeira Feliciana e suas redes sociais tecidas no bairro de São José na Cidade do Recife, cotejar os mecanismos de garantia de sua sobrevivência na área urbana. Seguindo as hipóteses de Carlo Ginzburg sobre as ações dos praticantes da feitiçaria no século XVI como meios de combater a ordem vigente, ele pensou os sujeitos sociais praticantes de feitiçaria nos quinhentos como articuladores de armas de “defesa e ataque nas lutas sociais” (Ginzburg, 1989, p. 21). Ou melhor, seriam as movimentações dos feiticeiros estudados por ele, meios de inserção e garantia de espaços na cidade, formas de redesenhar as áreas citadinas sob o olhar das camadas subalternas. Iaiá de Ouro, mesmo não sendo do século XVI e também não estando mais inserida nas camadas desfavorecidas – por sua situação econômica, pode ser exemplo de uma subalterna buscando inserção nos espaços sociais do Recife no final do Império.


* Valéria Costa é autora de É do dendê! História e memórias da nação Xambá no Recife, 1950-1992 (2009); co-organizadora de Religiões negras no Brasil: da escravidão à pós-emancipação (2016); publicou o capítulo 7 (Mônica da Costa e Teresa de Jesus: africanas libertas, status e redes sociais no Recife oitocentista) em Mulheres negras do Brasil escravista e do pós-emancipação (2012) e o capitulo 10 (Os libertos no Recife: os mundos de João Joaquim José de Santa Anna) em História da escravidão em Pernambuco (2012). Doutora em História Social/UFBA e professora do IF Sertão PE/Campus Serra Talhada.

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Notas

[1] Parte das discussões aqui presentes foram previamente elencadas em um trabalho preliminar apresentado no IV Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional.

[2] Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano (doravante APEJE), Diversos Avulsos, vol. II, n. 28 (1872-1873), fl. 336.

[3] APEJE, Diversos Avulsos, vol. II, n. 28 (1872-1873), fl. 336.

[4] APEJE, Polícia Civil, 03 fev. 1873, fl. 40.

[5] Em Pernambuco, são chamados xangôs os cultos de orixás, tidos como formas mais africanizadas de religião. Enquanto as designações de catimbó e feitiçaria seriam para as formas mais hibridizadas de culto, amalgamando elementos da feitiçaria europeia e do catolicismo popular com a manipulação de ervas e defumações utilizadas pelos indígenas e os rituais africanos. João Reis, analisando a Revolta escrava de 1835 na Bahia – Levante dos Malês – trouxe para o debate a utilização de bolsas de mandingas (espécie de patuás contendo pedaços de orações do Alcorão) que os africanos carregavam consigo. Ficaram as bolsas de mandingas como marca do islamismo entre os africanos envolvidos na referida Revolta. Posteriormente, tornaram-se as bolsas de mandingas um objeto de identidade entre os praticantes das religiões africanas no Brasil.

[6] Utilizamos também os conceitos sobre práticas culturais de espaços de Michel de Certeau, nos quais concebe as ações de transeuntes, pessoas comuns, como formas de ressignificação de áreas citadinas, ou seja, criação de mecanismos para assegurar seu espaço na cidade (Certeau, 1991).

[7] Diário de Pernambuco (doravante DP) 16 out. 1871 – APEJE apud ARRAIS, 2004, p. 418.

[8] Relato 1: Fundo da Casa de Detenção do Recife – CDR (doravante FCDR), 24 mar. 1872, fl. 13. Relato 2: AEJE, Fundo Secretaria Segurança Pública (doravante FSSP), 5 jul. 1872, fl. 49 v.

[9] APEJE, Diversos Avulsos, vol. II, n. 28 (1872-1873), fl. 337.

[10] Sobre o conceito de meta-etnia ou meta-narrativa, isto é, das construções de identidades que são elaboradas no jogo entre os sinais diacríticos, preferenciais e interesses dos atores sociais e o olhar da alteridade foram discutidas por F. Barth, retomadas por Luís Nicolau Parés. Este utilizou o conceito de meta-etnia e/ou meta-narrativa, para considerar as configurações de identidades étnicas e de procedências que africanos e seus descendentes foram elaborando no período do tráfico e escravização, rememoradas nas religiões africanas da atualidade (Barth, 1997; Parés, 2006).

[11] Para uma leitura sobre teorias racializadoras que são embutidas no Brasil no final do século XIX, ver Schwarcz, 1993. Ver também Santos, Jocélio Telles dos. De pardos disfarçados a brancos pouco claros: classificações raciais no Brasil – XVIII-XIX, Revista Afro-Ásia, Salvador, n. 32, 2005, p. 115-137.

[12] APEJE, Diversas Autoridades, vol. 16, 12 fev. 1873, fl. 71.

[13] APEJE, FCDR, 7 fev. 1873, fl. 41.

[14] APEJE, Diversos Avulso, vol. II, fl. 336.

[15] Sobre relações de poder, ver Ginzburg (2002).

[16] APEJE, Diversos Avulsos, fl. 336v.

[17] O campo das princesas na atualidade é uma área que compreende do Palácio do Governo do Estado e a Praça da República.

[18] Sobre fugas e crimes de acoitamento em Pernambuco, ver Carvalho (1998, p. 276-283). Ver também Chalhoub (1990) e Lara (1988).

[19] Para o debate sobre escravidão na África e a atuação dos africanos nessa agência ver Thorton (2004).

[20] Falla com que o exm. sr. comendador Henrique Pereira de Lucena abrio a sessão da Assemblêa Provincial no 1º de março de 1873. Pernambuco, Typ. de M. Figueiroa de F. & Filhos, 1873, Relatórios do Presidente da Província, http://www.crl.edu/content/brazil/pern.htm.

[21] Fundação Joaquim Nabuco (doravante FUNDAJ), secção de microfilmes, Jornal do Recife, n. 213, 14 set. 1872.

[22] Idem.

[23] FUNDAJ, secção de microfilme, Jornal do Recife, n. 215, 17 set. 1872.

[24] Idem.

[25] APEJE, Fundo CDR – 24 mar. 1864, fl. 10.

[26] A liderança espiritual, ou seja, o sacerdote – cargo mais alto na hierarquia de uma casa de culto africano, popularmente denominado de “pai-de-santo”, é chamado pelos adeptos das religiões afro-brasileiras de tatá (língua bantu), baba (língua iorubá), palavras que significam “pai” (Castro, 2001; Slenes, 1991, p. 48-67).

[27] APEJE, Coleção Petições de Presos, FCDR, 8 ago. 1902, fl. 268.

[28] FUNDAJ, secção de microfilmes, Jornal do Recife, n. 131, 11 jun. 1874.

[29] Idem.

FAKE NEWS, FAKE HISTORY? A RACIST JUDGE TAKES ON ZUMBI

Resumo: Este ensaio considera o potencial de encontrar ideais e caminhos produtivos através de uma refutação de e engajamento com o comentário da desembargadora Marília de Castro Neves Vieira, quem ressaltou que Zumbi é “mito histórico”, inventado para “estimular racismo”. Se o fato de existência de Zumbi não precisa provas, a construção de mitos sobre ele é, de fato, assunto interessante, só não da maneira que Neves sugere. O artigo descreve e analisa quatro mitos construídos sobre Zumbi não com o objetivo de valorizar Neves, mas, ao contrário, para entender de onde vem sua declaração absurda e para ressaltar outras linhas de pensamento sobre a mitologia sobre Zumbi, Palmares e a resistência contra a escravidão em geral.

Palavras-chaves: Zumbi; Dandara; quilombos; escravidão; resistência.

Abstract: This essay explores the potential of finding productive ideas and routes through a refutation and engagement with the commentary made by Judge Marília de Castro Neves Vieira that Zumbi is a “historical myth,” invented to “stimulate racism.” If the fact of Zumbi’s existence does not need further substantiation, the construction of myths about him is, in fact, an interesting subject, just not in the way that Neves suggests. The article describes and analyzes four myths constructed about and around Zumbi. This is done not with the objective of valorizing Neves—just the opposite, the idea is to understand where her absurd declaration comes from and to emphasize other lines of thinking about the mythology surrounding Zumbi, Palmares, and resistance against slavery, in general.

Keywords: Zumbi; Dandara; quilombos; slavery, resistance.

As right-wing politicians continue to ascend globally, it is of little surprise that they display little if any command (or interest) in the histories of race and slavery, or the relationship between past and present. Not so long ago (though it feels like ages), George W. Bush visited Brazil and asked then president Fernando Henrique Cardoso “Do you have blacks, too?” Bush’s National Security Advisor Condoleeza Rice quickly jumped in. “Mr. President,” she said, “Brazil probably has more blacks than the USA.”[1] More recently, Donald Trump displayed a similar ignorance, calling Frederick Douglass “an example of somebody who’s done an amazing job and is getting recognized more and more, I notice,” as if Douglass, the famed slave-turned-abolitionist and brilliant orator and writer who died in 1895, was an up and coming entrepreneur or artist (Wootson, Jr.).

Enter Judge Marília de Castro Neves Vieira, she of countless venomous lies and slurs spewed at the likes of Marielle Franco and Jean Wyllys. Last March, Neves called Zumbi, the last leader of Palmares and namesake for the National Day of Black Conscience, an “invented myth.” Before digging more deeply into the surprisingly rich possibilities hidden in Neves’s patently false statement, a few points of fact are in order, inspired at least in part by Neves’s own Facebook page, which reveals her favorite quote to be, “Know the truth, and it will set you free.”[2]

Neves’s Facebook profile.
Neves’s Facebook profile. Available at:
https://brasil.elpais.com/brasil/2018/03/20/politica/1521561716_720743.html

First, though it seems like a painful waste of time and space to make this point, Zumbi was real. Brazilians have been writing about him for centuries, and in recent years Flávio Gomes and Silvia Lara (among others) have collected, transcribed, and brilliantly analyzed scores of documents about his life and death, and the larger history of Palmares (e.g., Gomes, 2010; Lara, 2008).[3] Second, Neves’ absurd statement and larger collection of caustic provocations are a mix of Trump and Bush, whose own ignorance and chauvinism are not to be dismissed, even now when they almost seem to pale in comparison to Trump’s. Bush had no qualms using “dog whistles,” a euphemism for racist statements presented in a way that might sound innocuous but whose real message is clear to a racist base of voters, eager to preserve white privilege. Bush’s father, George H.W., perfected the art of the whistle with his infamous 1988 “Willie Horton ad,” a television spot that played on white paranoia of black crime and helped Bush Sr. win the presidency. Trump, meanwhile, most often discards the whistle altogether and simply makes hideously racist statements. Indeed, his campaign and presidency are built on such statements.

Indirectly, at least, Neves is a Trump acolyte by way of Bolsonaro, all peers in the lowest sense of the word. In her attacks on Marielle and Wyllys, Neves has shown little use for hiding anything between the lines, determining that doing so is too much work and no longer necessary, anyway. To once again state an obvious but necessary point: casting the inspiration of Brazil’s Day of Black Conscience as an invented myth is to spit in the face of history and countless activists and citizens who every day bear the weight of racism in its many forms. And yet part of what makes her comments about Zumbi so potentially pernicious is that they link up with long-standing—and truly mythological—ideas about Brazilian “racial democracy,” a concept that has been used (though not always with that name) for many decades to suppress and silence black activists and other oppositional voices.

As with Trump, Bolsonaro, and other demagogues, Neves’s outlandish comments pose a number of dilemmas, including whether or not to even engage them in the first place. There is no perfect formula for when to let racism whither on the branch and when to denounce it publicly, but given the great deal of attention that the comment has already received there is a case to be made here for denunciation over silence. But what to say? A point of guidance comes from anthropologist-activist Yarimar Bonilla, who chose to respond when Trump tweeted utter falsehoods about Hurricane Maria, which devastated Puerto Rico in 2017. “His insistence,” she wrote, “on maligning Puerto Rico and its people might have an unintended positive outcome: to cast a spotlight on Puerto Rico’s long-standing problems” (Bonilla, 2018). Dwelling too deeply on Neves’s comments runs the risk of dignifying and giving them extra life. But there is perhaps a way to find unintended positive outcomes here, too. What if, for example, we take the idea of an “invented myth” at face value and then turn the assertion into a question: what myths have been created around Zumbi? As it happens, there are, in fact, a number of myths surrounding Zumbi, just not the one that Neves suggested. In fact, and somewhat ironically, much of the myth making around Zumbi leads down the very roads and lines of inquiry that Neves intended to close down. Four myths, among others to choose from, stand out.

Myth #1: Zumbi is Palmares

Though Neves hardly meant it in this way, it is in fact true both that there is mythology surrounding Zumbi and that that mythology has marginalized other people and other histories. In 1678, Gangazumba, then the leader of Palmares’ sprawling collection of mocambos, signed a peace accord with the Portuguese. During the late twentieth century, as Zumbi became a figure of national renown and as more research about Palmares came out, Gangazumba became, as Lara (2008, p. 10) puts it, “a counterpoint: a leader who had misjudged the forces at play, succumbed to the weight of defeat, and lost all standing among his followers”.[4] Gangazumba thus has been depicted as weak and traitorous, while Zumbi became the consummate hero.

If both Gangazumba and Zumbi are often cast in unrealistically dichotomous (romanticized or demonized) form, in other cases the enthroning of Zumbi as the representative of Palmares takes other forms. While Neves complains about Palmares and the larger history of mocambos and quilombos being spoken of at all, others might reasonably object to the way that Palmares often stands in for all runaway or fugitive slave experiences. Flávio Gomes and others have shown the nature, expanse, and geography of mocambos and quilombos to have been almost unimaginably vast and complex (e.g., Gomes, 2005; Reis and Gomes, 1996). As these authors suggest, Zumbi may carry crucial symbolic weight, but history is also full of nameless other men and women, the vast majority of them marginalized not only by reactionaries like Neves but also less intentionally by earnest and well-meaning scholars and activists. As the Zumbi-Gangazumba dyad suggests, the historiography of Palmares—and mocambos and quilombos, in general—is dominated by male figures. Perhaps the most famous female quilombola is one whose very existence we know next to nothing about. Dandara, who one writer calls “the feminine face of Palmares,” has generated powerful meaning and symbolism, but precious little is known about her (Dandara). In fact, it is not certain whether she was a single person, a conglomeration of different individuals, or a creation passed down over time as a shield against unending waves of erasure and repression. Whatever Dandara’s origins, she is hardly responsible for division, as Neves would have it, and has instead become a remarkable means for claiming and accessing histories that have otherwise been obliterated.

Myth #2: Zumbi killed himself (and so Brazil is not racist)

To Neves, Zumbi was invented “in order to stimulate a racism that Brazil previously did not know” (“5 Momentos”).[5] There is no point rehashing the countless refutations of the notion that Brazil is or ever was free of racism. Other issues bear further scrutiny and discussion.  For example, the notion that the black activists—those who helped turn the anniversary of Zumbi’s death into the Day of National Conscience and those who continue to observe it—somehow “stimulated” or “invented” racism parrots one of the main lines of argumentation used to oppose Brazil’s landmark affirmative action legislation. By advocating for more equitable representation in higher education and beyond, critics insist, proponents of affirmative action and quotas create “dangerous divisions” that were previously unknown or minimal in Brazil (Fry et al, 2007.).

The argument that afrodescendentes or anyone else struggling against racist structures of exclusion, marginalization, and violence may themselves be guilty of sowing divide by calling attention to inequality has been used for ages in Brazil and the US. In the US, the myth has been debunked by, among others, North American political scientist Ira Katznelson, who shows how generations of structural, institutional, and casual racism in effect equaled a powerful and pervasive “affirmative action for whites” (Katznelson). Though this was enforced and enacted via different mechanisms than in the US, Brazil has its own history of “affirmative action for whites,” who historically gained much greater access to education, infrastructure, privilege, and opportunity than blacks.

Papering over and denying racial inequality is a central strategy for political figures like Neves and the opponents of legislation to guarantee spaces at universities and in other venues for underrepresented minorities and ensure the inclusion of African and minority history in school curriculum. Discourses about Brazil’s putative “racial democracy,” which by definition would not need affirmative action or quotas, has relied on countless smaller stories and myths, including a number about Zumbi. One is the centuries-old story that he died by his own hand, throwing himself off a cliff to avoid capture and a certain return to slavery. In fact, colonial documents make clear, Zumbi was captured and killed, his body then mutilated, and his head posted on a stake as a warning again other would-be runaways and rebels. The suicide myth appeared in the earliest writings about Zumbi and persisted for centuries, often as part of a romantically constructed history of slavery. As a self-sacrificing martyr, Zumbi’s suicide became a symbol of a closed chapter of Brazilian history and a way to lighten the burden of, and ultimately erase, white violence. By contrast, the actual death and decapitation represent a brutal recounting of the racial terror that white colonizers and their descendants wrought. The suicide story therefore helped keep the blood off of white hands and neatly sealed Zumbi, Palmares, and slavery into a closed compartment to be accessed selectively in the service of fanciful histories of racial inclusion. Neves is actually right that myths about Zumbi have been constructed, though she is dead wrong in suggesting that they somehow helped exacerbate racial divisions. Just the opposite, the suicide myth and others have been used for centuries to deny very real divisions and larger histories of racism.

Myth #3: “Zumbi owned slaves” (and was like Hitler)

Desembargadora Neves’s “invented myth” post gains legs in part because there are already well developed, though misleading and often just plain false, critiques circulating in Brazil. One of the most popular revolves around the supposition that Zumbi owned slaves. In his popular Guia politicamente incorreto da história do Brasil (Politically Incorrect Guide to the History of Brazil), Leandro Narloch cherry picks bits of evidence from scholarly references to cobble together an ostensibly irreverent and frank version of history that, in fact, simply reproduces old talking points, the great majority of which line up neatly with anti-black and anti-leftist lines of argumentation. One of the things that makes Narloch’s work so potent is that it engages, even if selectively, with serious scholarship and in some cases even makes important points. For example, he points out the forgotten importance of Gangazumba, though does so in a way that is both contradictory and indicative of his goals. On the one hand, he demonizes Zumbi for rejecting the peace accord, and on the other hand suggests that Gangazumba descended from a savage lineage, thus casting him alternately as a symbol of peace and a war-prone brute (Narloch, 2012, p. 75, 78).

Narloch frames his discussion of Palmares with a section heading that doubles as a sensationalist headline: “Zumbi owned slaves” (Narloch, 2012, p. 73).[6]  This point, he claims (without any specific references) “appears to offend some people today, to the point that they prefer to omit or censure it” (Narloch, 2012, p. 73).[7] In fact, the complex issue of slaves and former slaves who owned slaves is treated with great depth and subtlety by some of the very same scholars whose work Narloch selectively cites. But in Narloch’s hands, multifaceted histories are reduced to what amounts to a campaign or advertising slogan — Zumbi owned slaves! — that also functions as a vehicle by which to sneak in other disproven myths. To “prove” his point, Narloch reprises an old saw about the notions of liberty and freedom emanating from Europe. He writes,

The slave system only began to collapse when the Enlightenment gained strength in Europe and the United States… Abolitionists appeared a century after Zumbi and seven thousand kilometers from the region where the Quilombo of Palmares was constructed. It is difficult to believe, in the middle of the jungles of Alagoas, Zumbi had anticipated the European humanist spirit or foresaw the ideals of liberty, equality, and fraternity of the French Revolution (Narloch, 2012, p. 74).[8]

In one fell swoop, the author revives a veritable pantheon of hoary, long-disproven ideas—that history and progress began in Europe and the U.S., eventually moving south and west; that everyone back then owned slaves so what’s the big deal, anyway?; that history may be understood through the western, liberal categories codified by the French Revolution; that Zumbi and other blacks were too backwards or pre-modern to understand or even desire freedom.

It is difficult to know where to even begin to address the misconceptions and falsehoods repeated here. Suffice to say that each and every one has been thoroughly disproven by historians not just in Brazil but also throughout the Americas and beyond. Before concluding the section on Zumbi, The Politically Incorrect Guide also takes a swipe at João Goulart and Leonel Brizola, placing blame for the apparently “politically correct” histories of Zumbi on Marxists and the left, writ large (Narloch, 2012, p. 77). This is also indicative of Narloch’s political vision, and of the way that historical falsehoods feed political agendas—fake history begets fake news. In this case, faulty historical relativism (everyone back then was bad, and slavery was just the way things worked, even for Zumbi) is employed to undo the work of black activists and to remove Zumbi as the figurehead of freedom and even black conscience, to reestablish instead the primacy of Princesa Isabel, Rio Branco and other white patrons, and to generally absorb the fall of slavery into a heroic, romantic arc of history that eventually produced Brazil’s putative racial paradise.

The myths stemming from the notion that Zumbi owned slaves links up in a somewhat stunning way with the “dangerous divisions” line of argument through the remarkable rhetoric of the hardline Movimento Brasil Livre (MBL, Free Brazil Movement) and one of its figureheads, Fernando Silva, better known as Fernando Holiday. Holiday, a young man who describes himself as “black, poor and honest,” likens the Day of Black Conscience to “a day of white conscience honoring Hitler.” Not only did Zumbi have slaves, Holiday maintains, but tortured them (Alessi). Zumbi, Holiday and the MBL suggest, was not only evil on a level comparable to Hitler, but also now the root of new divisions that threatened to destroy what was once a country free of racial strife.

Myth #4: Zumbi was the “Leader of All Races”

The idea that Zumbi and the Day of Black Conscience create rather than critique societal division evolved especially over the last five decades, in response to the consolidation of the 20th of November as a symbol of black resistance and unity. A much older myth, which casts Zumbi as neither divisive nor even necessarily symbolic of blackness, is expressed on the plaque of a monument dedicated to him in Brasília, which describes the former quilombola as “the leader of all races.” If Zumbi, then, is on the one hand demonized as a “black Hitler,” on the other hand he has also been improbably transformed into a benevolent leader of all Brazilians.

This particular myth has several smaller, seemingly opposing legends wrapped into it. Scholars have shown fugitive slave communities to have been home to diverse groups, in addition to people of African descent, also indigenous and white people. In one sense, then, Zumbi could be accurately described at least as a leader of a racially diverse group of people. But the monument in Brasília suggests something larger and more tightly aligned with the myth of racial democracy. However diverse Palmares and other mocambos and quilombos were, to hold them as representative symbols of a multi-racial colonial order would be absurd. It would be similarly incorrect to portray quilombos as simply oppositional to colonial society—in many cases, fugitive settlements traded and interacted regularly with nearby towns and farms. But that subtlety in no way suggests that Palmares or Zumbi may be understood as some kind of gel that bonded society happily together. Thanks in part to the suicide myth, over time some writers (on both the left and the right) helped create the most improbable of legends—the runaway slave, who rejected a peace alliance, was known for his fierceness, and who died a bloody death as a symbol of peaceful and democratic interracial harmony.

Any doubt about the veracity of the “leader of all races” label and companion myth of racial democracy was viscerally dismissed in 2018, when vandals effaced the Brasília Zumbi monument with red paint evoking a gunshot wound.

Monument to Zumbi in Brasília, extolling him as the “Black Leader of All Races”.
Monument to Zumbi in Brasília, extolling him
as the “Black Leader of All Races”. Available at: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Zumbidospalmares.jpg

 

The monument vandalized in 2018.
The monument vandalized in 2018
Available at:
http://www.palmares.gov.br/?p=50538

A lesson, a tragedy

While history and historians provide plenty of material with which to bury Neves’ assault, the judge herself might benefit from some of the messages and displays from Carnival this year. Mangueira’s much talked about winning samba enredo (Carnival theme song), “História pra ninar gente grande” (Lullaby History for Grownups) is a case in point. In delivering “the history that history doesn’t tell” and stories “that the book erased,” Mangueira took an almost direct stab at Neves, or at least what she represents.[9] The famous samba school exhorted revelers to hear the voices of, among others, countless “Marielles,” an explicit reference to the slain leader who Neves slandered.

Mangueira also harkened the age of Palmares, though—importantly—not via Zumbi. “Brazil,” Mangueira sang, “your name is Dandara.”[10] The choice is instructive, not only for centering a black female figure at the center of history and the nation but also for its meaning about the power of myth and legend. While Neves slings “myth” as an insult, the truth is that history does not exist without it. Sometimes this results in fake history precisely along the lines of what Neves and her kin constantly try to prop up as unassailable truth. Other times it is the primary or only means by which the histories that history doesn’t tell survive. It is possible that a palmarina named Dandara existed and also possible that she was assembled from the detritus of very real stories of black women cast aside by colonial violence and “official” history. In other words, and in this case, legend and myth play an undeniably important and meaningful role in making history more representative and more accurate.

In 2014, the journalist Dandara Tinoco wrote a moving column in O Globo about her namesake (Tinoco). The piece reflected on the seeming countless “uncertainties” surrounding Dandara’s life and also on the immense power that her figure could nonetheless inspire. Three years later, Brazil and the international community viewed shocking video of the brutal killing of a transgender woman named Dandara dos Santos (Phillips). Together, the two Dandaras suggest the value and indeed necessity of understanding and honoring the importance of historical myth-making. Dandara Tinoco and Dandara dos Santos remind us that, in spite of the rhetoric coming from Neves and other likeminded pundits, slavery continues to swing a long tail, capable of inspiring memories and narratives about resistance, suffering and other dynamic aspects of humanity, and at the same time equally adept at unleashing brutal violence against those memories and against individuals who have dared to create and keep them alive.


* Marc A. Hertzman is Associate Professor of History at the University of Illinois, Urbana-Champaign. He is the author of Making Samba: A New History of Race and Music in Brazil, which will be translated into Portuguese by Editora 7Letras this year.  He is writing a history about the memory of Zumbi’s death from 1695 to the present.

References

“5 Momentos em Que a Desembargadora Marília Castro Neves Criou Polêmica”. Bol Notícias. 20 March 2018. https://noticias.bol.uol.com.br/ultimas-noticias/entretenimento/2018/03/20/5-momentos-em-que-a-desembargadora-marilia-neves-poderia-ter-ficado-quieta.htm. Accessed: 22 March 2019.

ALESSI, Gil. “Líder do Movimento Brasil Livre compara Zumbi a Hitler ‘para chocar.’” EL PAÍS, 7 Apr. 2015, https://brasil.elpais.com/brasil/2015/04/07/politica/1428432891_689300.html. Accessed 22 March 2019.

BONILLA, Yarimar. “Trump’s False Claims about Puerto Rico Are Insulting. But They Reveal a Deeper Truth.” Washington Post, 14 September 2018. https://www.washingtonpost.com/outlook/2018/09/14/trumps-false-claims-about-puerto-rico-are-insulting-they-reveal-deeper-truth/?utm_term=.3eb103696617. Accessed 19 March 2019.

CARNEIRO, Edison. O Quilombo dos Palmares. 2a Edição. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1958.

“Dandara: a face feminina de Palmares.” Geledés, 20 Oct. 2011, https://www.geledes.org.br/dandara-a-face-feminina-de-palmares/. Accessed 22 March 2019.

ENNES, Ernesto. As guerras nos Palmares (subsídios para a sua história). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938.

FREITAS, Décio. República de Palmares: pesquisa e comentários em documentos históricos do século XVII. Maceió: Edufal, 2004.

FRY, Peter, et al. (eds.). Divisões perigosas: políticas raciais no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

GOMES, Flávio dos Santos. A hidra e os pântanos: mocambos, quilombos e comunidades de fugitivos no Brasil (séculos XVII-XIX). São Paulo: UNESP, 2005.

GOMES, Flávio dos Santos (ed.). Mocambos de Palmares: histórias e fontes (séculos XVI-XIX). Rio de Janeiro: 7Letras, 2010.

KATZNELSON, Ira. When Affirmative Action Was White: An Untold History of Racial Inequality in Twentieth-Century America. W. W. Norton & Company, 2006.

LARA, Silvia Hunold. Palmares & Cucaú: o aprendizado da dominação. 2008. Tese (apresentada para o concurso de Professor Titular). Campinas, UNICAMP.

NARLOCH, Leandro. Guia politicamente incorreto da história do Brasil. Rio de Janeiro: Leya, 2012.

PHILLIPS, Dom. “Torture and Killing of Transgender Woman Stun Brazil.” The New York Times, 8 Mar. 2017. NYTimes.com, https://www.nytimes.com/2017/03/08/world/americas/brazil-transgender-killing-video.html. Accessed 30 December 2017.

REIS, João José, and GOMES, Flávio dos Santos, editors. Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

TINOCO, Dandara. “Descrita como heroína, Dandara, mulher de Zumbi, tem biografia cercada de incertezas.” O Globo, 15 November 2014, https://oglobo.globo.com/sociedade/historia/descrita-como-heroina-dandara-mulher-de-zumbi-tem-biografia-cercada-de-incertezas-14567996. Accessed 30 December 2017.

WOOTSON JR. Cleve R. “Trump implied Frederick Douglass was alive. The abolitionist’s family offered a ‘history lesson.'” The Washington Post, 2 February 2017. https://www.washingtonpost.com/news/post-nation/wp/2017/02/02/trump-implied-frederick-douglass-was-alive-the-abolitionists-family-offered-a-history-lesson/?utm_term=.2a214a5230b1. Accessed 1 April 2019.

Notas

[1] https://www.snopes.com/fact-check/black-tuesday/ Accessed 18 March 2019.

[2] https://www.facebook.com/Euzinha.Marilinha. Accessed 6 February 2019. Conhece a verdade e ela te libertará.

[3] Both build on earlier waves, spearheaded by Ernesto Ennes, Edison Carneiro, and Décio Freitas (Carneiro, Ennes, Freitas).

[4] tornou-se um contraponto, um líder que havia avaliado mal o jogo de forças, sucumbira ao peso da derrota e perdera prestígio entre os seus

[5] inventar mitos históricos como Zumbi para estimular um racismo que o Brasil até então não conhecia.

[6] Zumbi tinha escravos.

[7] Essa informação parece ofender algumas pessoas hoje em dia, a ponto de preferirem omiti-la o censurá-la.

[8] O sistema escravocrata só começou a ruir quando o Iluminismo ganhou força na Europa e nos Estados Unidos… Os abolicionistas apareceram um século depois de Zumbi e a 7 mil quilômetros da região onde o Quilombo dos Palmares foi construído. É difícil acreditar que, no meio das matas de Alagoas, Zumbi tenha se adiantado ao espírito humanista europeu ou previsto os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade da Revolução Francesa.

[9] https://www.letras.mus.br/sambas/mangueira-2019/ (A história que a história não conta) + (versos que o livro apagou).

[10] Brasil, o teu nome é Dandara.

A CASA DA ÁGUA: DIÁSPORA, MITO E MATRIARCADO EM ANTÔNIO OLINTO

Resumo: Este trabalho analisa a influência mítica na narrativa de Antônio Olinto e a maneira como a mítica orixaísta influencia sua prosa, buscando comprovar que o romance A Casa da Água (2007), primeiro tomo da trilogia Alma da África, lançado originalmente em 1967, problematiza a reterritorialização de uma família que tenta se estabelecer em solo africano após a abolição da escravatura no Brasil. A representação da reterritorialização presente no romance será analisada à luz de autores como Regina Zilberman (1977), Wayne C. Booth (1980), Edward Said (1996) e, finalmente, Lukács (1978), dentre outros. A partir desta análise, buscar-se-á uma melhor compreensão do empoderamento feminino feito a partir do resgate dos valores presentes em um matriarcado tribal fundamental para o processo de descolonização do território africano.

Palavras-chave: A Casa da Água; Antônio Olinto; diáspora; mito; matriarcado.

Abstract: This work analyzes the mythical influence on Antônio Olinto’s narrative and how this orixaist myth influences his prose. We will seek to prove that the novel A Casa da Água (2007), first volume of the trilogy Alma da África, originally published in 1967, problematizes the reterritorialization of a family trying to settle on African soil after the abolition of slavery in Brazil. This representation of the reterritorialization present in the novel will be analyzed according by authors as Regina Zilberman (1977), Wayne C. Booth (1980), Edward Said (1996) and, finally, Lukács (1978), among others. From this analysis, we will to demonstrate the proccess of the feminine empowerment made from the recovery of the values ​​presents in a tribal matriarchy comes up as fundamental to the process of decolonization of the African territory.

Keywords: A Casa da Água; Antônio Olinto; diaspora; myth; matriarchy.

Olinto representa, em sua trilogia Alma da África – A Casa da Água (2007), O rei de Keto (2007) e Trono de vidro (2007) – famílias que se desenvolveram ainda dentro das paredes da senzala e que foram, a partir de sua organização e dos laços estabelecidos entre elas e, não raro, com seus senhores, fundamentais para a sobrevivência após a abolição dos sujeitos da diáspora. A história de A Casa da Água (2007) em terras brasileiras, em um período preponderante para a história do Brasil, mostra os primeiros momentos após a abolição da escravatura. A narrativa inicia com a saída da família de Catarina (Ainá) da cidade do Piau, Zona da Mata de Minas Gerais, no ano de 1898, dez anos após a abolição. A escravidão no Brasil, em seus momentos finais, atingia contornos complexos. Em 1822, com a Independência do Brasil, o país necessitava de reconhecimento por parte das outras nações. A Inglaterra, mantendo uma forte pressão, que já realizava em prol da extinção do tráfico de escravos, posicionou-se condicionando o reconhecimento do Brasil enquanto nação independente à abolição. Dois grandes obstáculos se interpunham ao fim da escravidão no Brasil. Por um lado, o grande número de escravizados poderia ocupar lugares na sociedade, adquirindo o status de cidadãos. Por outro, a independência recente fora impulsionada, em grande parte, por recursos oriundos de agricultores escravocratas. Com o fim da escravidão e a entrada de imigrantes europeus como mão de obra, o movimento de retorno de escravizados para o solo africano se intensificou. Esses homens e mulheres valeram-se do dinheiro auferido com seu trabalho, do auxílio de amigos e, não raro, do apoio de ex-proprietários de escravos, como é descrito n’A Casa da Água (2007).

O romance se subdivide em quatro partes, a partir das quais se desenvolve a trajetória da protagonista Mariana e de sua família. Assim, em “A viagem” o foco da narrativa se estabelece em torno das dificuldades a que a família de Mariana será submetida, desde a saída da pequena cidade de Piau, em Minhas Gerais, até sua chegada ao solo africano. A segunda parte, “O marido”, mostrará a chegada de Mariana à fase adulta e sua adaptação a essa outra sociedade culturalmente distinta, dentre os agudá, descendentes de escravos brasileiros retornados à África. Os laços da protagonista são definidos a partir da composição das bases da família Silva, com o casamento de Mariana e o nascimento de seus três filhos, Joseph, Ainá e Sebastian[1]. O terceiro e principal capítulo do romance, “A Casa da Água”, narra o estabelecimento de Mariana enquanto empresária de sucesso em três países africanos: Nigéria, Daomé (atual Benin) e, finalmente, o fictício país de Zorei (ver mapas abaixo). O quarto capítulo, “O chefe”, faz referência a Sebastian Silva (o filho), que protagonizará, a exemplo do pai, poucas cenas antes de sua morte – novamente um assassinato. Sebastian (o filho) é mostrado, preponderantemente, de maneira indireta, a partir de sua ausência, pelo olhar estabelecido por Mariana e outros personagens[2].

Atual mapa da África
Atual mapa da África
Fonte: ANGOP/Agência Angola Press

 

Com base nos fatos da narrativa, ilustramos o que seria a fictícia nação de Zorei, separada do Togo pelo rio Momo e cuja capital, Aduni, fica próxima ao Golfo do Guiné
Com base nos fatos da narrativa, ilustramos o que seria a fictícia nação de Zorei, separada do Togo pelo rio Momo e cuja capital, Aduni, fica próxima ao Golfo do Guiné
Fonte: do autor

O romance se desenvolve a partir de um ponto de vista raramente traçado por uma narrativa literária, o das mulheres (afro-brasileiras ou africanas) que, após a diáspora, reconstroem a si mesmas, na medida em que participam da transformação da sociedade pós-colonial. Essas protagonistas agem sobre as três conjunturas elencadas por Paul Ricoeur (1994) – econômica, físico-política e civilizatória, porém, a partir de valores bem diversos dos que mobilizaram o colonizador.

A prosa é permeada pelo conceito iorubá de owó (do iorubá, valor), pelo qual se percebe a organização do romance de Olinto, cujo eixo semiológico se estabelece a partir de noções de tribalidade-subjetividade-ancestralidade, na contramão da visão marxista[3] monetária de capital, que se desenvolve a partir do eixo semiológico sociabilidade-objetividade-capitalismo. Dessa forma, é a partir do owó e do axé (energia telúrica circulante) que ocorre o empoderamento do matriarcado.

O narrador funciona, em Olinto, como a primeira personagem da qual faz uso o autor para comunicar ao leitor sua ideologia, buscando-lhe a adesão necessária ao encantamento que faz da proposta mimética uma efetiva experiência estética. Ainda que, ocasionalmente, não comungue dos pontos de vista do autor, faz-se necessário que o leitor lhe dê crédito, cumprindo a tarefa de se movimentar dentre as páginas do romance. Wayne C. Booth (1980) fala das implicações retóricas na ficção, salientando o viés retórico no texto literário, afetando a percepção do leitor e as produções de sentido a partir de suas estratégias narrativas. O narrador de A Casa da Água (2007) é onipresente e onisciente, acessando as memórias que utiliza para compor sua tentativa de convencimento a partir de possíveis diálogos com a protagonista, valendo-se de sua própria imaginação para preencher lacunas necessárias à sua compreensão dos fatos: “[…] é assim que vejo Mariana começando sua aventura, carregada por alguém” (Olinto, 2007a, p. 11). Nota-se, na construção do narrador de A Casa da Água (2007), ao estabelecer Mariana como o fiel da memória do romance, a tentativa de localizá-la em um ponto cronológico muito distante no futuro, como se tivesse acesso às memórias de uma anciã, fugidias e cambiantes, através do véu do esquecimento erigido pelo tempo. Este narrador recupera, em diversos trechos do romance, seu diálogo com o leitor, na medida em que descreve a protagonista como se a estivesse observando através da narrativa, como se de fato a encontrasse e reencontrasse, constantemente, enquanto conta sua história.

Não sei como surpreendê-la no começo de minha história – de sua história –, mas vejo-a, naquela manhã de enchente, sendo arrancada da cama e do sono, ouvindo palavras de cujo sentido completo nem se dava conta, sabendo que havia perigo e que desejavam protegê-la – é assim que imagino Mariana começando sua aventura, carregada por alguém, a luz ainda não viera de todo, um pouco de noite se prendia como água nas coisas, e só a ideia de que o rio transbordara lhe dava medo […] (Olinto, 2007a, p. 16, grifo meu).

O trecho acima reproduz as primeiras palavras do romance. Dessa forma, Olinto principia sua história posicionando o narrador enquanto um observador onisciente que se propõe a contar a história da protagonista a partir de suas reminiscências, enquanto testemunha ocular da trajetória de Mariana ou ainda seu confidente. Booth define, ao analisar os caminhos retóricos para o texto da ficção, a possiblidade do narrador transmitir suas histórias enquanto cenas – de forma primária; enquanto sumário ou quadro ou, o que afirma ser mais frequente, em uma combinação das duas estratégias figurativas (Booth, 1980, p. 170). Esse narrador permanecerá consciente de si próprio e da natureza literária de seu intento e definitivamente não é envolvido nas ações que irá descortinar ao leitor.

O narrador de Antônio Olinto aponta, frequentemente, para o fato de que versará sobre as recordações de Mariana, seus pensamentos e sua experiência de vida, alternando, sem qualquer sinal maior desta modificação de curso, a descrição de memórias, pensamentos e fatos. No momento em que utiliza o verbo “imaginar”, Olinto localiza a obra enquanto indústria da imaginação, ou ainda, abre espaço para um questionamento sobre o acesso deste narrador sobre os fatos que descreve, uma dubiedade constantemente reiterada – ora posiciona o narrador enquanto observador da vida da protagonista e seu cúmplice, ora adventa com sutileza a possibilidade de ficção – em uma retórica ficcional que perpassa Alma da África (2007). Divisa-se, porém, de maneira definitiva, o projeto de Olinto de desenhar o desenvolvimento e o processo de consolidação da protagonista enquanto indivíduo. A partir do momento em que elege a trajetória de Mariana enquanto objeto de sua história, descreve a consolidação de sua personalidade com riqueza mimética. Dessa forma, este narrador se localiza enquanto sujeito maduro e partícipe dos valores morais e espirituais de sua protagonista, enquanto vai reduzindo sua distância intelectual da mesma, descrevendo o amadurecimento de sua psicologia.

Mariana aparece nas primeiras páginas na vacilante fragilidade e incerteza tipicamente pueris e chega às páginas finais no auge de sua maturidade – momento em que se desenha o ápice do que Carl Gustave Jung (2014) define enquanto individuação (processo de vir a ser do sujeito em indivíduo pleno em sua percepção de mundo). O apogeu de Mariana enquanto sujeito aparece, no encerramento do primeiro romance, na repetição do desfecho trágico e no epicédio[4] da protagonista frente à perda do filho em condições similares à do marido.

A cosmovisão africana se assenta em três pontos, a partir dos quais um sujeito é bem sucedido em sua vida: a prole – que deve ser numerosa; a fartura – que difere da ideia de mera acumulação de bens e relaciona-se com uma ideia de pleno gozo dos recursos naturais no decorrer da vida e de movimentação das riquezas dentre os membros da tribo (é interessante como o conceito de riqueza relaciona-se diretamente com o de movimento no pensamento iorubá e não com o de acúmulo, tal como ocorre na perspectiva eurocêntrica); e, finalmente, o conceito de longevidade – um sujeito, para concretizar sua existência em plenitude, deve atingir grande prole, a partir da qual imortalizará seu nome e transmitirá os valores de sua tribo para as futuras gerações. Mariana, enquanto personagem central do primeiro romance da trilogia e matriarca da família sobre a qual se desenvolve a épica de Olinto, é uma mulher plenamente sucedida nos três aspectos que norteiam o sujeito no mundo orixaísta.

Para um iorubá, três são os objetivos maiores da existência: a abundância, que difere da ideia de riqueza ocidental, aproximando-se da natureza e da sustentabilidade e razoabilidade do uso de recursos, devendo ser comungada pela comunidade; a longevidade, celebrada na velhice, muito distante da visão narcisista da eterna juventude; e a fertilidade, fundamental para a transmissão dos valores civilizatórios, calcada na tradição e na oralidade. A personagem que representará, acima de todos os outros, o êxito destes valores da civilização orixaísta é Mariana, cujo percurso de vida fundamenta-se no primeiro romance da trama, mas se desenvolve, como coadjuvante, nos demais tomos de Alma da África.

Michel Pêcheux (2010, p. 50) afirma que a memória é formada por diversos matizes que se entrecruzam. Assim, mais que um produto da mera memória individual, a memória mítica, inscrita no inconsciente coletivo descrito por Jung (2014); a memória social, inscrita em práticas do grupo e a memória histórica, construída pelo historiador e inscrita na cultura e na ciência, se misturam na composição de uma narrativa. Olinto propõe, no primeiro romance da trilogia Alma da África, um narrador que parte do processo de evocação dos fatos depositados na mente de Mariana, na medida em que necessita definir um marco zero, um primeiro sujeito em sua proposta literária:

Ponho esse despertar com enchente como início das lembranças de Mariana, e pensei muito na melhor maneira de contar o que aconteceu com ela. Poderia ter escolhido o sistema do narrador alheio, separado dos acontecimentos, mas de tal modo me é íntima, conhecida, a história de Mariana, que só consigo transmiti-la colocando-me de dentro e narrandoa-a como se eu estivesse, a cada passo, acompanhando as cenas, ouvindo diretamente os diálogos e recebendo na cara as emoções da longa viagem da menina (Olinto, 2007a, p. 12).

Com efeito, já nas primeiras páginas do romance, surgem exemplos de memória mítica, social e histórica a se confundirem à experiência das personagens, representadas a partir do ponto de vista da protagonista. A psicologia de Mariana é construída de forma gradual, descrevendo o amadurecimento dos caracteres que irão compor a matriarca da família Silva, desde o momento em que é retirada de sua casa em meio a uma grande enchente, início do deslocamento que é objeto central, segundo o narrador, de sua história: “Porque é de uma viagem que se trata e dela irei falar, a partir da manhã em que Mariana foi  tirada da cama e levada para a rua, que ficava em plano mais alto do que a casa” (Olinto, 2007a, p. 12, grifo nosso). A Casa da Água (2007) apresenta ainda, de forma acentuada, uma circularidade dos fatos, que comunga com o pensamento africano[5].

O romance tem início com uma grande enchente. São as águas de um rio, o Piau, que irão fazer com que Catarina (Ainá), no comando da família Santos, tome a decisão de retornar para a África, levando consigo a filha, Epifânia, e os netos, Mariana, então com dez anos, Emília, com cinco anos e Antônio, com três. Catarina posiciona-se como líder da família e é forte seu desejo de retorno para a África. Sofre ao perceber a demora em cada momento de viagem, temerosa de fracassar em seu projeto de retorno. Vê ainda no fato de Mariana já estar com dez anos uma preocupação. Devem iniciar o quanto antes “A viagem” (primeira parte do romance), de maneira que a menina estabeleça sua identidade em África (Olinto, 2007a, p. 16).

Regina Zilberman, ao analisar a presença do mito no romance, salienta o contraste entre mudança e permanência, quando afirma que “as relações se transformam, mas as pessoas continuam ocupando as mesmas posições relevantes” (1977, p. 53). Detecta, no que denomina “saga familiar”, uma circularidade onde a permanência e, portanto, a negação do tempo – que aproxima ainda mais a narrativa romanesca da mítica – ou antes, sua delimitação no que chama de “origem, único tempo verdadeiro e paradigma para o futuro” (Zilberman, 1977, p. 56). Toda a prosa de Olinto evolui a partir de uma sucessão de nascimentos, casamentos e mortes, que serão igualmente comemorados e é conduzida pelo percurso nômade e inconstante, intuitivo e transformador de Mariana. Ao não pertencer unicamente a nenhum continente, Mariana consegue ressignificar seus saberes e reorganizar o mundo de seus antepassados, novo e velho a um só instante. Esta sucessão relaciona-se ao próprio pensamento iorubá, no qual cada pessoa é substituída em seu papel perante a tribo por um de seus descendentes. Na cosmovisão africana, os fatos não são meramente repetidos, mas reordenados e celebrados dentro de padrões idênticos.

Sem ser propriamente africano e sem ser considerado negro em seu país, o homem afrodescendente Olinto compõe, a partir da tentativa de libertação do país imaginário de Zorei – mimese e homenagem ao corpo da mulher amada, Zora – uma obra feminina e afro-brasileira, ou antes, como lembra Mariana, agudá, palavra que significa, a um só tempo, brasileiro e cristão. Aguessy (1980) afirma que a filosofia e o pensamento africanos são expressos na oralidade dos mitos repassados para além da religiosidade e, acima de tudo, no modo de vida e na maneira como este comunga uma alma (ou psique) comunal, onde o espírito individual se relaciona constantemente com o espírito da tribo. Mariana se percebe agente de uma (re)evolução que se deu pela própria evolução, como se vê nos momentos finais de A Casa da Água, quando se principia um movimento de democratização liderado por seu filho, com o fim da Segunda Guerra Mundial.

Mariana se sentiu ligada àquele chão, estava na África há tempo suficiente para saber que suas imagens eram daquelas terras, tornara-se africana antes de tudo, tanto de Lagos como da Casa da Água e de Aduni, não via muita diferença entre esses lugares, aqui, porém, era onde o filho mais próximo, o último, o que sempre lhe dera uma sensação de segurança, o que sempre lhe dera uma sensação de segurança, o que tinha o nome do marido, o que nascera depois da morte do pai, era onde ele trabalhava e morava, onde fora preso, aqui ficava sendo sua terra, como podia ser na Casa da Água ou em Lagos […] (Olinto, 2007a, p. 327-328).

A protagonista, nesse instante, compreende que não pensou o mundo de forma política, mas o contradisse e o modificou pelo estar no mundo. Sem apagar sua origem brasileira, a protagonista se vê como africana. Produz-se, portanto, a definitiva reterritorialização dos sujeitos da diáspora simultânea e intimamente ligada à descolonização da qual a matriarca toma parte:

Na independência nunca pensara com atenção, talvez por se ter sempre achado independente, por ter vindo do Brasil que naquele tempo já era independente e nunca se haver sentido dependente de ingleses, alemães ou franceses. Pouco falara com eles, só se sentira dependente na ocasião em que os ingleses haviam exigido que todos os brasileiros de Lagos falassem inglês e durante a guerra entre os franceses do Daomé e os alemães de Zorei, mas o filho tinha razão, chegara o tempo de cada região tratar de seus próprios assuntos, lembrou-se de  que era proprietária importante em três lugares da África, sua opinião teria de pesar […] (Olinto, 2007a, p. 328).

Zilberman (1977), em seu estudo Do mito ao romance, define o primeiro enquanto “elemento unificador e fundamental da vida primitiva”, localizando sua presença de modo notável no interior de romances que chama de “sagas familiares”, na revelação de acontecimentos originais, cercados por outros “sinais míticos” (Zilberman, 1977, p. 47), na composição de um sujeito ligado ao mundo de forma intuitiva.

O homem das sociedades nas quais o mito é uma coisa vivente, vive num mundo “aberto” embora “cifrado” e misterioso. O Mundo “fala” ao homem e, para compreender esta linguagem, basta-lhe conhecer os mitos e decifrar os símbolos. […] O mundo não é mais uma massa opaca de objetos arbitrariamente reunidos, mas um Cosmo vivente, articulado e significativo (Eliade, 2013, p. 125).

É interessante notar que não apenas encontramos marcas da narrativa mítica e importantes arquétipos representados na prosa de Olinto quanto seus personagens são herdeiros deste pensamento primitivo que subjaz no texto. Dessa forma, investigar o mito que se entrelaça à narrativa de Alma da África e investigar a maneira como este universo é retratado no pensamento das personagens são importantes possibilidades de estudo sobre as maneiras como a macroestrutura arquetípica condiciona a trilogia; evidenciando ainda o fato de que o autor também compartilha das crenças orixaístas de suas personagens, possuindo, portanto, uma ligação ainda mais íntima com a mítica que recupera em sua obra. Eliade (2013) afirma que o conhecimento de ordem esotérica, transmitido ao iniciado em um culto, traz em si uma capacidade, um atributo de controle “mágico-religioso” associado a esta narrativa, comum a diversas crenças (Eliade, 2013, p. 82).

A viagem de que trata a narrativa de Olinto, reiterada pelo narrador, consiste em uma indústria arquetípica per se – o retorno do degredado, a partir de uma travessia de mares perigosos, ao solo nativo – mas se reveste ainda do pensamento africano, pois celebra um arquétipo central na cultura orixaísta: a retomada do poder por parte do matriarcado (como será visto nos mitos que introduzem cada um dos capítulos seguintes). Mariana compreende-se como herdeira de suas ancestrais divinas que já haviam lutado pela manutenção do poder feminino e entende, ao fim, que, se a força matriarcal permanece viva no mundo em que vive, está sufocada pelo poder do colonizador, como percebe na conclusão do primeiro romance, momento em que reflete, igualmente, sobre a circularidade e inevitabilidade dos fatos em uma cronologia, porém, que pode ser recuperada – ou revertida, pelas palavras de Eliade (2013) – até o momento em que as mulheres dividiam o governo do mundo. Este (re)empodarento se faz necessário e é o cerne da trilogia, a partir de múltiplas referências aos mitos ligados às iyabás (orixás femininos), especialmente aos mitos referentes a Oxum, em A casa da água (2007).

Esse mundo “transcendente” dos Deuses, dos Heróis e dos Ancestrais míticos é acessível porque o homem arcaico não aceita a irreversibilidade do Tempo. Como constatamos por diversas vezes, o ritual abole o Tempo profano, cronológico, e recupera o tempo das façanhas que os Deuses efetuaram in illo tempore. A revolta contra a irreversibilidade do Tempo ajuda o homem a “construir a realidade” e, por outro lado, liberta-o do peso do Tempo morto, dando-lhe a segurança de que ele é capaz de abolir o passado, de recomeçar sua vida e recriar o seu mundo (Eliade, 2013, p. 124, grifo nosso).

Camila Marques (2012) propõe, ao revisar a historiografia da família escrava brasileira, um papel para os escravos enquanto agentes sociais na história do Brasil, levando em conta o ponto de vista dos próprios escravizados. Afirma que “os escravos não foram meros objetos manipulados, desorganizados e que agiam guiados por instintos”, em contraponto a teóricos como Gilberto Freyre e Caio Prado Jr., que, segundo a autora, em linhas gerais, culpabilizavam os descendentes dos escravos por sua situação socioeconômica atual, associando-a a uma pretendida “ausência da instituição familiar” dos escravos (Marques, 2012, p. 56). A autora enfatiza a existência de laços de solidariedade surgidos ainda dentro do cativeiro entre os escravos e mesmo relacionamentos que transcendiam o mero vínculo de paternalismo-subordinação a que se refere Freyre, assumindo verdadeiros laços de afetividade (Marques, 2012, p. 57-58). Freyre representa um “equilíbrio de antagonismos de economia e de cultura”, entre os quais o mais geral e o mais profundo ainda é o do “senhor” e do “escravo” (Freyre, 1980, p. 53), reduzindo a relação entre senhor e escravo a aspectos de exploração e violência e ignorando afetos estabelecidos entre escravos na senzala e entre estes e seus senhores.

Entender esta sociedade enquanto uma organização com polos estanques, definidos entre senhores e escravos, não é o melhor caminho, como lembra Nila Michele Bastos Santos (2014). A autora vê a cultura enquanto um elemento polissêmico, a compor um “jogo conflituoso e tenso nos espaços de convívio social” (Santos, 2014, s. p.), no qual sujeitos, não raro, firmavam afetos e relações das mais diversas, independentemente do vínculo de servidão. O olhar que Olinto estende para a sociedade pós-escravidão brasileira abarca afetos que podem parecer, a um primeiro momento, incompreensíveis. Tio Inhaim é visto por Catarina como um amigo, independente da relação de senhor-escravo que existia entre eles até então.

Sem poupar nada em sua mimese do drama da diáspora africana, Olinto foge, porém, de alternativas maniqueístas de representação. Assim, o primeiro fato que chama a atenção do leitor é o do auxílio recebido por Catarina (Ainá) para seu retorno para a África, após a abolição, por parte de seu antigo proprietário, afetivamente tratado como “Tio Inhaim”. Analisando os limites da mobilidade social de mulheres e mães negras ainda no século XVIII, Dantas (2012) mostra uma relação entre mulheres negras e seus senhores que transcende o jugo escravagista. É notório, vide exemplos como os da célebre Chica da Silva, que mulheres negras cultivavam relações sociais – frequentemente familiares ou afetivas – com homens brancos para que se pudessem beneficiar. Estas mulheres, ainda segundo Dantas, construíram redes de sociabilidade que lhes permitiram um reposicionamento social, a partir de sua libertação mediante alforria (Dantas, 2012, p. 104). Catarina (Ainá), nascida em Abeocutá, Nigéria, fora vendida como escrava pelo próprio tio, durante uma visita à cidade de Lagos, aos dezoito anos. Olinto narra o processo de adaptação da personagem à realidade brasileira. Nesta adaptação, a língua aparece como metáfora do apagamento identitário gradual que se processa. A jovem, ainda conhecida como Ainá, chega primeiro à Bahia, sendo levada até Juiz de Fora, Minas Gerais, onde receberá o nome de Catarina, que termina por obliterar sua identidade de origem.

Conhecera Juiz de Fora muitos anos antas, ainda moça, recém-chegada da Bahia, sem entender a língua daquela gente, achando as palavras duras, lembrando-se da sonoridade das palavras que usara em casa, ekaró, odabó, mó fé jé, tudo tão claro, aberto, simples. Aprendera com raiva suas primeiras palavras de português, no princípio não queria falar a língua e fora exatamente em Juiz de Fora que se dera conta de que os sons lhe entravam sem esforço na cabeça e passavam a ter significado, um dia teve sede e pediu água, teve fome e falou que tinha fome (Olinto, 2007a, p. 21).

A Casa da Água (2007) se afirma enquanto possibilidade poética de revisão de um período da história cujas narrativas são preponderantemente eurocêntricas e masculinas. Assim, a arte e a ciência articulam-se enquanto tentativas de reorganização da realidade, partindo de elementos que as constituem. O estudo da arte é, pois, um estudo da particularidade que constitui o objeto observado, associada ou comparada à realidade que a sustenta. Pode-se afirmar, em dada medida, respeitando as construções teóricas estéticas e éticas (de Lukács), lógicas e antropológicas (de Kuhn), que é possível a percepção de uma estética do texto científico, assim como de uma lógica da reflexão estética. Há ordem na arte, e é esta que permite ao sujeito a compreensão mínima necessária à experiência dita artística. Da mesma forma, sem uma dose mínima de sensibilidade associada ao senso crítico, a descrição científica careceria de um apelo ao homem, em sua busca pela compreensão do mundo, que imprimisse em sua alma a verdadeira cognição. Tem-se, pois, arte e ciência, estética e lógica em situação de armistício, ainda que temporário, no campo de batalha epistemológico que, não raro, relega à arte o estatuto de mero devaneio e à ciência o epíteto de enfadonha. Dedicamo-nos ao estudo da trilogia de Olinto sob estes dois vieses, constantemente buscando um senso estético que faça um sentido igualmente científico. A eficácia do trabalho científico, lembra Julia Kristeva (1978), sempre foi contestada no domínio das ciências humanas. A autora anuncia nas humanidades uma lógica outra, que não a científica.

A escravidão nas Américas sempre esteve ligada ao projeto colonial, de forte caráter comercial. Dessa forma, a maior parte dos escravos em solo americano era de africanos e afrodescendentes. Esses homens e mulheres, convertidos em propriedade, trabalhavam sob regimes duríssimos e eram comercializados abertamente. Gabriel Aladrén (2012) enfatiza que, nas Américas, a escravidão, diferentemente do modelo do Velho Mundo, possuía uma base racial – “com o crescimento do tráfico de africanos, os escravos se tornaram sinônimo de negros” (Aladrén, 2012, p. 20). Desta forma, embora nem todos os negros fossem escravos, a maioria o era. A cor da pele converteu-se rapidamente, em forte elemento de identificação da condição do escravo, marcando sua inferioridade social. Este sentimento perpassou toda a escravidão e perpetuou-se após a abolição, intervalo de tempo representado por Antônio Olinto. Outro fator decisivo no modelo de escravização colonial atinha-se à destinação destes escravos enquanto mão de obra – preeminentemente serviços braçais, voltados para a agricultura, pecuária e mineração, além de serviços domésticos. Os escravos rapidamente converteram-se em maioria populacional, eram em maior número em fazendas e nas cidades.

No Velho Mundo, como atenta Aladrén (2012), os escravos tinham origens étnicas e características raciais variadas (gregos, eslavos, egípcios, ingleses e alemães, dentre outros) em diferentes períodos da história dos países e exerciam funções muito mais amplas que nas Américas – trabalhando como artesãos, soldados, administradores, tutores ou criados – e, portanto, tinham seu potencial intelectual tão explorado quanto o braçal. Nas Américas, a ênfase era da mão de obra básica, composta por um número muito maior de escravos e de duas origens básicas – indígena autóctone e africana. Necessitava-se, portanto, para a manutenção dos liames da escravidão e da submissão dos escravos que sua língua, sua cultura, sua ciência, suas tradições e sua religiosidade fossem apagadas, pois, em maior número em terras americanas, o esquecimento de sua história e de seu manancial de saberes era fundamental para o domínio de seus senhores.

Se, no universo discursivo do romance, o destinatário está incluído enquanto discurso (Kristeva, 1978, p. 71), o escritor eleva-se enquanto um dos macrodiscursos que (re)unem o texto. Em Alma da África, em especial em A Casa da Água (2007), tem-se a sociedade enquanto um terceiro discurso subjetivador. A sociedade que atua discursivamente na obra tem características bastante distintas da que se vê no romance europeu da metaficção historiográfica delimitada por Linda Hutcheon (1991). Muito antes do pensamento engendrado pela experiência da União Europeia expressar-se no romance, Alma da África brinda ao leitor com uma proposta que é, a um só tempo, tribal e supranacional de sociedade, a interpelar o brasileiro em meio à ditadura e o processo de redemocratização (o primeiro romance da trilogia foi lançado em 1969 e o terceiro em 1987).

Em uníssono ao pensamento de George Lukács (1978), este trabalho tem a teoria marxista como uma das possibilidades para o estudo da literatura que representa a os sujeitos da diáspora no período da pós-colonialidade. Embora não se possa abandonar o pós-estruturalismo e as teorias fabricadas no Ocidente, as discussões sobre transnacionalização, hibridismo, nomadismo, sincretismo, crioulização e as literaturas poliédricas produzidas na representação desta realidade não podem ser analisadas unicamente por teorias que se atém ao pós-colonialismo. A teoria marxista poderia servir para um melhor entendimento sobre o imperialismo, enquanto uma característica do capitalismo. A dialética materialista, a partir de autores como Lukács, analisa as literaturas pós-coloniais, porque ela é capaz de enfrentar as coordenadas materiais do imperialismo sem reduzir o texto literário a um relacionamento mimético com a realidade, tampouco limitá-lo a um simples objeto de análise dos discursos veiculados. Sem se ignorar, por exemplo, a importância das teorias feministas e do pós-colonialismo na composição do manancial teórico necessário à desconstrução do imperialismo e do patriarcalismo, percebe-se a necessidade da crítica de conectar os textos literários aos contextos históricos, valendo-se da dialética marxista.

Em sua forma ortodoxa, a teoria pós-colonial e os feminismos analisaram, com muita propriedade e profundidade, embora frequentemente no viés apenas discursivo, os mecanismos, as causas, as consequências e os resíduos do colonialismo e do patriarcalismo, mas parece que deixaram de entender a história dos movimentos sociais de libertação, explicar as teorias de libertação total, e compreender a centralidade do imperialismo para o capitalismo (Bonicci, 2006, p. 14).

Em conformidade ao olhar de Thomas Bonicci (2006), este trabalho busca ampliar as possibilidades de reflexão sobre o texto literário a partir do materialismo marxista, porém, faz eco ainda ao olhar de teóricos como Edward Said, que vê, em seu Orientalismo (1996), a necessidade de uma descentralização dos pensamentos eurocêntricos para se tratar de sociedades que tiveram, justamente, na Europa, seu algoz. Dessa forma, pensar o mundo a partir da cosmovisão tribal orixaísta pode lançar luzes sobre a maneira como essas mulheres, a partir da celebração de seus valores ancestrais e de seu empoderamento enquanto coletividade, lançam-se ao mundo patriarcal, desafiando suas regras. O universo de Alma da África supera, porém, o imediatismo materialista de Karl Marx (s.d.). Na obra, é o bem tribal que deve ser privilegiado, e este leva em conta dimensões espirituais, divinas e ancestrais.

Longe de se ater à noção de bem social comunista, um senso de responsabilidade tribal leva Mariana, ao comerciar a água que extrai de seu poço, a vendê-la por diferentes valores, de acordo com o poder aquisitivo dos compradores, ou antes, a doá-la secretamente àqueles que, necessitando do bem vital, não podem comprá-lo, em A Casa da Água. Desde o princípio da trama, as mulheres desenvolvem-se em âmbito privado e público sem a presença masculina. Já sob a Lei do Ventre Livre, Catarina (Ainá) dá à luz sua filha, Epifânia, sem qualquer menção ao pai da criança. Seus netos, que a acompanham também em sua aventura de regresso, Mariana, Emília e Antônio, nascem já após a abolição, sendo criados sem saber a identidade do pai. Após uma grande enchente que alaga a cidade do Piau, onde se localiza a fazenda onde ainda vivia com a família, a mulher, já anciã, decide pela volta ao país de origem. Catarina (Ainá) passa a juntar dinheiro, aceitando ainda o auxílio de seu antigo proprietário, que chama, familiarmente, de “Tio Inhaim”, e de outros ex-escravos, após o fim da escravatura. A família demorará, porém, ainda dois anos até que o retorno à África seja possível. Saindo de Minas Gerais, passam por um período no Rio de Janeiro, indo estabelecer-se, finalmente, na Bahia, onde buscam uma embarcação que propicie seu retorno. Durante esse período, passam a trabalhar em um mercado, na venda de peixe, lugar onde passarão as noites.

Uma leitura atenta de Alma da África exige do crítico a disposição de questionar, ao mesmo tempo em que se utiliza de conceitos eurocêntricos tais como feminismo (ou feminismos) e pós-colonialismo. Nascida no Zimbábue, a escritora (e feminista) Anne McClintock (1994) percebe a ideia de um pós-colonialismo eivada de contradições, na medida em que, para se pensar a superação do período das colonizações é necessário imaginar-se um mundo onde não exista a inegável crise generalizada e histórica da concepção de “progresso” (McClintock,  1994, p. 91). McClintock vê a necessidade de uma revisão constante de conceitos como feminismo e pós-colonialismo para a análise de sociedades onde práticas capitalistas e pré-capitalistas podem ocorrer simultaneamente e, não raro, simbioticamente. Da mesma forma, a teoria feminista não considera a intrincada estrutura social de realidades onde países “imaginados” por interesses externos romperam com a tessitura tribal e a complexa relação étnica de grupos que convivem há milênios, como é o caso da Nigéria, Benin e da fictícia Zorei. A geografia política é relativizada, nestas sociedades, por uma geografia étnico-tribal e, não raro, mítica. Assim, o pensamento mágico determina que culturas se diferenciem em prol de seus deuses fundadores e que a própria topografia dos territórios pode ser determinada por um mito ou divindade, que, diferentemente do que acontece na Europa – onde diversos acidentes geográficos ou a topografia de cidades tiveram seus mitos fundadores apagados pelo tempo – o mito permanece vivo e constantemente celebrado. Assim, determinados limites geográficos, culturais, econômicos, são respeitados e outros são relativizados ou esvaziados por força do pensamento mágico.

O hábito de grandes deslocamentos feitos a pé, sem qualquer apoio de meio de transporte, passando noites ao relento, nas proximidades da estrada, mostra-se uma prática herdada da África por Catarina, como se vê em sua ida a um ritual de sacrifício para Xangô. Xangô é o primeiro orixá que surge na narrativa, divindade de devoção de Catarina. É nesse episódio que aparece a primeira representação de uma possessão religiosa. Durante esse ritual, jovens são tomadas pelo orixá, sob o olhar atônito da pequena Mariana.

Mariana viu a avó entrar na roda e sair dançando como as outras. O som do tambor e dos cânticos se tornou íntimo, as danças foram ganhando força, de repente uma das mulheres deu um grito e ficou  num canto da sala, os braços esticados, olhos fechados, o lábio inferior estendido, e logo se atirou numa dança rápida, o corpo dando voltas sobre voltas, todos ao redor gritaram kauô, e outra mulher imitou a primeira, e em alguns instantes eram várias que dançavam na maior das entregas, a roda se desfez numa alegria geral, Mariana acompanhou cada volteio das mulheres que dançavam, uma parecia às vezes que ia chocar-se com outra, mas as duas se detinham a tempo (Olinto, 2007a, p. 51-52).

Outra alegoria que aparece com grande força em Olinto é a da máscara Egungun. A partir dela, o religioso iorubá resgata do mundo dos mortos (o Orum) a presença dos ancestrais, que poderão, personificados pelo religioso que ostenta a máscara, passear pelos lugares que visitava em vida. Assim, o ancestral é revivificado e se propõe a uma retomada de sua trajetória habitual. O fato cotidiano e a experiência do sujeito enquanto membro de sua tribo é, desta forma, fortalecido e alçado ao status de fato mágico e sagrado. Há ainda um papel moralizador do egum, espírito de um antepassado, que poderá erguer-se dos mortos para reestabelecer valores tribais perdidos momentaneamente, em ato de moralização da urbe. Assim, os antepassados, a partir da visão de mundo iorubá, participam da vida de seus descendentes.

[…] ouviu dizer que a festa era de Eguns, em homenagem às almas dos antepassados que se chamavam Egunguns na África e eguns na Bahia, os eguns surgiram tarde da noite, com roupas coloridas, pareciam lisos como tábuas, haveria alguém embaixo daqueles panos?, o rosto desaparecia, todos se ajoelhavam, diziam agô, esfregavam uma das mãos na outra, perguntavam coisas, agradeciam a resposta, os adupés e modupés ecoavam pela sala, […] (Olinto, 2007a, p. 51-54).

Ao teorizar sobre a diáspora, Stuart Hall (2003) afirma que cada dispersão carrega consigo a esperança de um “retorno redentor”. Fala de uma identidade cultural fixada no nascimento, enquanto parte da natureza impressa através do parentesco e da genética, constitutiva da subjetividade. Essa visão de identidade fixa e herdada como tradição (na sua acepção mais centralizadora) não abarca questões como a hibridização das culturas pelo inevitável contato do contexto diaspórico e a crioulização decorrida do contexto multicultural. Essa hibridização e o sofrimento pela adaptação ao estatuto irreversível do sujeito da diáspora é representado em diferentes pontos de vista pelo drama de Catarina (Ainá) em sua tentativa de retorno que é frustrada pela realidade da diáspora; pelo sofrimento de Epifânia pela desterritorialização sentida por uma afrodescendente brasileira em solo africano e pela adaptação de Mariana ao contexto híbrido das comunidades pelas quais transita na África – africanos, brasileiros descendentes de africanos retornados e colonizadores europeus. Mariana representa a riqueza do que Edward Said 1996 chama de “culturas irremediavelmente impuras” e, por isto mesmo, ricas de significações novas, em uníssono a uma modernidade inevitável. Ao retornar a seu país de origem, Catarina busca para si o passado que lhe fora roubado e seu vínculo com estes ancestrais, capazes de passear pelas ruas. Um passado que a assombra, na medida em que é capaz de se levantar dos mortos, tal como os Egunguns, mas que lhe devolve sua razão de existir, em seus momentos finais.

Catarina respondia com poucas palavras, usava muito “eu quero”, o som iorubá de mó fé permanecia no ouvido da filha, que sonhava com ele, a mãe sempre fora de poucas vontades, anulava-se, hoje afirmava que queria isto, queria aquilo, em Lagos ia querer tal ou qual coisa (Olinto, 2007a, p. 64).

Destarte, a diáspora fragmenta a identidade de Catarina (Ainá) e o processo de reconquista desta identidade perdida dá-se a partir do retorno à África. Lentamente, a personagem adquire um traço que, até então, era desconhecido pela filha: vontade própria. Torna-se, no navio, silenciosa, em um primeiro momento, voltando-se para suas memórias, tentando remontar os traços de sua antiga personalidade. Ainda que sua transcendência ao sofrimento da diáspora dê-se apenas com a morte, Catarina (Ainá) integra a espiritualidade que alimentará o matriarcado que se inicia, irá reencontra-se como parte de uma família que se une à comunidade a partir de sua ancestralidade.


*José Ricardo da Costa realiza doutorado na área de Estudos de Literatura, em Pós-Colonialismo e Identidades, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestre em Estudos de Literatura, Literaturas Portuguesa e Luso-Africanas (UFRGS). Algumas de suas publicações: Opaxorô, o cetro dos ancestrais: mímese e mito na representação de mundo afro-gaúcha (UFRGS, 2016); Emília e Oxum, da Reinação à ação no reino: indícios e vestígios em uma proposta comparatista (UNIPAMPA, 2014), dentre outras.

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Notas

[1] Reforçando a abordagem desta pesquisa de um ocultamento da participação masculina na narrativa central, o “marido” de que trata a segunda parte do romance é representado em sua ausência, na medida em que Sebastian Silva (o pai) parte logo após o nascimento da pequena Ainá, retornando apenas ao fim do capítulo para poucas cenas antes de sua morte, deixando Mariana grávida de seu terceiro filho.

[2] Um movimento neo-sebastianista, encabeçado pela filha de Sebastian, Mariana, será a temática central do terceiro romance da trilogia, O rei de Keto (Olinto, 2007).

[3] Para Karl Marx (s.d.), o valor de uma mercadoria está ligado ao trabalho que é necessário para que seja produzida, e sobre o qual diversas circunstâncias se sobrepõem, implicado ao conceito de capital. Valores subjetivos, porém, como prazer ligado ao trabalho e tradição de trabalho, bem como implicações espirituais do trabalho perante a comunidade e a divindade, presentes no conceito de owó e axé, ultrapassam os aspectos desenvolvidos pelo autor.

[4] Do grego, epikêdeios (Moisés, 1982, p. 188), sofrimento ou canto plangente de personagem em presença do corpo do morto.

[5] Como será visto, esta circularidade se intensifica pela ruptura com o tempo cronológico em O rei de Keto (2007) e é enfraquecida em Trono de vidro (2007), de acordo com as intenções retóricas do autor.

A ARTE E O ARTISTA NEGRO NA ACADEMIA NO SÉCULO XIX

Resumo: O negro adentrou o século XIX na escravidão, ou quando alforriado, estava presente invariavelmente em trabalhos subservientes e mal pagos. Nas artes desse século, sua presença não foi muito diferente, tanto na condição de artista como de uma figura representada. Este artigo procura evidenciar a presença negra na Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro, então centro de atividades artísticas do Império, analisando algumas das inúmeras dificuldades de afirmação do artista negro e a aceitação de sua presença em telas expostas por essa instituição. Uma concepção de nação, defesas científicas, preconceitos cristalizados entram em jogo para defender estéticas e formas de ensino que perduram, de certo modo, até os dias de hoje.

Palavras-chave: história da arte; cultura brasileira; escravidão.

Abstract: Black people began the nineteenth century in slavery, or when they were free, they were invariably in subservient and poorly paid work. In the art field of that century, their presence was not very different – as artists and as a figure represented. This article seeks to highlight the presence of black people at the Academy of Fine Arts of Rio de Janeiro, the centre of artistic activities of the Empire. It analyzes some of the innumerable difficulties of affirmation black artist faced and the acceptance of his representation on the canvas exposed by this institution. A conception of nation, scientific defenses, crystallized prejudices came into play to defend aesthetics and forms of teaching that endure, in a certain way, even nowadays.

Keywords: History of art; Brazilian culture; slavery.

1. Introdução

“O que se pode esperar de um povo feito do conluio de selvagens inferiores, indolentes e grosseiros, de colonizadores oriundos da gente mais vil da metrópole – calcetas, assassinos, barregões – e de negros boçais e degenerados?” (Veríssimo, J. apud Pontual, 1987, p. 7). Com essas palavras José Veríssimo, escritor e membro fundador da Academia Brasileira de Letras, assina um artigo publicado em 1901 em um jornal da Capital Federal. O início da República marcou uma época no Brasil em que se tornou ordem do dia a discussão acerca do então atraso científico, tecnológico, econômico da nação frente aos outros países europeus e mesmo americanos. Era fundamental que se interpretasse o Brasil a partir de sua realidade nacional, e nesta estava presente a mestiçagem, o predomínio do meio rural, a população analfabeta; tudo isso acabava por se traduzir em um sentimento de alijamento do Brasil do concerto de nações ditas desenvolvidas.

A República, ainda que fosse inaugurada sem a presença da escravidão e que propugnasse a ideia de ordem e progresso calcada nos pressupostos positivistas que pretendiam abandonar os preconceitos e atrasos do desconhecimento das época anteriores, continha ainda em grande parte de seu discurso que permeava o meio político e intelectual, uma enorme desvalorização do negro e do mestiço.

De fato, a partir da década de 1870 a questão da miscigenação ganha enlevo no Brasil, pois como observa Schwarcz (1993), é nesse momento que há uma desmontagem da escravidão com a Lei do Ventre Livre (1871). Em 1894, Raimundo Nina Rodrigues, professor titular da cátedra de Medicina Pública em Salvador, expõe no seu livro entitulado “As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil” seu posicionamento acerca do papel da raça na patologia da população brasileira:

O desenvolvimento e a cultura mental permitem seguramente às raças superiores apreciarem e julgarem as fases por que vai passando a consciência do direito e do dever nas raças inferiores, e lhes permitem mesmo traçar a marcha que o desenvolvimento dessa consciência seguiu no seu aperfeiçoamento gradual (Rodrigues, 2011, p. 28).

E acrescenta que “(…) os atos tidos por criminosos nos povos civilizados confundem-se nos selvagens com os atos comuns, permitidos e até obrigatórios” (Rodrigues, 2011, p. 29).

Em 1911, o então diretor do Museu Nacional, João Batista Lacerda, apresenta no I Congresso Internacional de Raças, a sua conferência “Sobre os mestiços do Brasil” em que afirma que “o Brasil mestiço de hoje tem no branqueamento em um século sua perspectiva, saída e solução” (Schwarcz, 1993).

Obviamente, a discriminação e o racismo não começaram no Brasil nessa época, porém a questão da raça, da mestiçagem e da necessidade de branqueamento da população se transformou em parte fundamental de um discurso sobre a construção de uma identidade nacional que, com a queda do Império, se tornava ainda mais presente.

A Academia Imperial de Belas Artes (AIBA) também passava, por esses anos de 1870, por uma reformulação movida por um desejo de progresso que insuflasse ares de renovação e de modernidade a um ambiente academista, patrocinado por uma monarquia que já dava ares de decadência.

Por volta de 1870 um novo período vai se abrir na história do pensamento brasileiro. É então que novos matizes de ideias… o positivismo, o naturalismo, o evolucionismo, enfim, todas as modalidades do pensamento europeu do século XIX — vão se exprimir agora no pensamento nacional e determinar um notável progresso de espírito crítico (Costa, apud Pereira, 2016, p. 241).

É importante ressaltar que dentro desses “novos matizes e ideias” se insere também o conceito de superioridade e de eugenia racial, tudo isso embasado pela ciência — o darwinismo social, entendendo a mestiçagem como um sinônimo de degeneração racial e social.

Nesse contexto, o fim da escravidão, a queda do império, o início da industrialização, a abertura para novas ideias republicanas, não trazem qualquer tipo de avanço, ao menos em princípio, para a atenuação do racismo e da discriminação racial no Brasil nesse final de século XIX. Ao contrário, passa a haver todo um cabedal teórico que dá ênfase à necessidade de constituir uma nação segundo ideais burgueses calcados na eficiência, na produtividade, no liberalismo econômico e na limpeza étnica, só assim o Brasil poderia pretender ascender um dia ao rol das nações desenvolvidas.

2. O negro nas artes brasileiras

Como ficaria então o papel do negro nesse final de século nas artes brasileiras? Como a Academia, ou melhor, a Escola Nacional de Belas Artes absorveria, ou não, artistas negros e uma arte negra?

Uma rápida abordagem acerca do papel dos negros e de sua representações nas artes brasileiras no período colonial poderia ser resumida pela afirmativa do historiador Antônio da Cunha Barbosa afirmando, no final do século XIX, que “em geral foram escravos todos aqueles que naquela época [colonia] se dedicavam às artes” (apud Teixeira Leite, 1988, p. 13). De fato, a grande parte dos artistas presentes no Brasil colonial eram negros ou mulatos. Alguns, como o caso do pintor negro Manuel da Cunha, poderiam ter uma formação mais aprimorada indo estudar em Portugal, mas isso constituía uma exceção, o aprendizado, em geral, acontecia nas corporações de ofício que atuavam na colônia. Márcia Bonnet (2009, p. 97) explica que

Muitos senhores ensinavam ou proviam para que se ensinasse ofícios mecânicos aos seus escravos com o objetivo de colocá-los para trabalhar ao ganho, alugando seus serviços a terceiros, ou mesmo com o intuito de vendê-los. Desta forma, uma vez em liberdade, estes escravos já tinham um ofício por meio do qual poderiam sobreviver, ao invés de perambular pelas ruas da cidade desorientados e sem meio de sustento.

As corporações de ofício tiveram sua extinção através de um alvará do Príncipe D. João que privava os seus associados do monopólio do exercício de qualquer que fosse a arte. A atitude do regente se deveu a uma intenção política que tinha como pressuposto o desenvolvimento do liberalismo econômico; quebrava-se o monopólio das corporações e abria-se espaço para a livre concorrência.

Ao mesmo tempo, D. João inaugurava, em 1816, a Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios que institucionalizava o ensino das Artes[1]. Assim, não só uma estética neoclássica de estirpe francesa passou a ser incorporada no programa da arte no Brasil, mas foi profundamente abalada toda a tradição da pintura colonial e sua estrutura de corporações de ofício, onde negros e mulatos obtinham o seu aprendizado. A Escola, mais tarde Academia, representava a um só tempo a formação intelectual do artista e sua desvinculação de qualquer formação e atuação vinculada a práticas corporativas.

Essas formas coletivas entraram em conflito violento, ou até mortal, com as academias, que, no começo, desejavam ser um elemento libertador. Mas também estas iriam formar um quadro de restrições, em cuja sombra podiam ser encontradas e reproduzidas as posições dominantes. Sendo assim, o sistema acadêmico não continha estruturas tão coletivas quanto o sistema corporativismo e, sob seu abrigo, o modo de trabalhar dos artistas tendeu a individuação (Greffe, 2013, p 128).

A Academia Imperial de Belas Artes, quando inaugurou as suas atividades em 1826, passou a ser o centro gravitacional das artes, onde exposições, encomendas, prêmios, faziam parte do seu controle, ou seja, ao contrário do período colonial, nesse momento a produção artística estava intrinsecamente ligada ao direcionamento oficial, cujo objetivo “era formar uma elite de artistas treinados segundo valores considerados os melhores para uma produção oficial” (Pereira, 2016, p. 45).

Aceder a esta instituição era, por um lado, relativamente fácil, pois bastava ser alfabetizado e saber fazer contas. Contudo, se grande parte da população branca era analfabeta, o que dizer então de negros e mulatos[2]? Mas é preciso perceber também, como observa Sônia Pereira, que as classes abastadas não se interessavam pela Academia, já que eram “pressionados pelo bacharelismo, num país em que o trabalho manual sofria todo o tipo de descrédito social” (2016, p. 44). De fato, segundo o censo de 1872, das profissões liberais, a de artista é a que tinha maior número de integrantes, tanto entre a população livre quanto a de escravos.[3]

Era possível que negros e mulatos acedessem ao ensino acadêmico nas artes nesse século XIX, embora isso não constituía algo corriqueiro.

Nessas condições, é de se prever que, dada sua congênita vocação áulica, a Academia funcionasse como uma barreira tendendo a dificultar consideravelmente ao negro e ao mulato acesso à condição de artista, que ela, estava habilitada a conferir (Marques, 1988, p. 136).

Por outro lado, os poucos alunos de origem africana que conseguiam ingressar em seus quadros de discentes, passavam a ter um prestígio intelectual que jamais conseguiriam obter no período colonial. Nesse sentido, acabava por existir uma espécie de acordo: a Academia promovia uma ascensão social do negro enquanto este reforçava o ideário acadêmico e elitista da Escola.

Um caso conhecido e bom exemplo disto é o de Estevão Roberto da Silva (1845?-1891). Filho de escravos, é considerado o primeiro pintor negro com destaque na AIBA. Famoso por suas naturezas-mortas, seu nome é justamente relacionado como um dos maiores artistas dessa temática de todos os tempos no Brasil.

Ao mesmo tempo que a AIBA foi uma promotora de seu talento, esta instituição limitou o seu reconhecimento.

Perante o próprio Imperador Pedro II, na sessão solene de entrega de prémio àqueles que se distinguiram na Exposição Geral da Academia, o pintor levantara-se para protestar contra a premiação que lhe coubera, dizendo-se injustiçado. O escândalo foi enorme, tanto que, quase um ano mais tarde uma comissão nomeada pelo diretor para apurar o incidente aplicava a Estevão a pena de suspensão por um ano, reconhecendo que praticara “um atentado sem exemplos nos anais da Academia”, da qual só não foi expulso porque a mencionada comissão, após lhe ouvir a defesa, convencera-se de agira “por acanhamento da inteligência” (Teixeira Leite, 1988, p. 476).

A atitude de Estevão Silva deveu-se a ter recebido um prêmio inferior a que não só ele, mas todos os seus colegas de academia esperavam. Estavam plenamente convencidos que o primeiro lugar deveria ser conferido ao pintor negro, como Antônio Parreira escreve em suas memórias “Íamos nos revoltar”. Mas Estevão pediu a seus amigos “Silêncio! Eu sei o que devo fazer.” Estevão se limitou a proferir “Recuso!” Foi suficiente para ser tomado como um atentado sem exemplos nos anais da Academia”, essa insolência de um negro dito arrogante só não foi mais duramente punida, pois imputaram-lhe generosamente o atributo de “acanhado de inteligência”.

 Durante o período imperial, talvez não se possa elencar, além de Estevão Silva, mais do que cinco nomes de artistas de origem negra que conseguiram algum destaque na arte realizada no Brasil através da AIBA[4].

Além da óbvia discriminação existente no período escravocrata e que continuou (e continua ainda hoje) nas décadas seguintes, a educação artística era dispendiosa e devia se realizada de acordo com o gosto social dominante. O resultado imediato disso é que as obras de todos esses artistas não contêm, pelo menos em relação à técnica, a estrutura espacial, ao modo de composição, nada que seja peculiar a identidade africana ou a qualquer qualidade identitária do negro.

Em relação a temática, há diversas obras onde estão presentes pessoas negras ou mulatas. Em certo sentido isso denota uma presença, dentro da arte dita oficial, dessa negritude. Por outro lado, vários desses retratos exibem essas pessoas executando serviços braçais, como se estas pinturas representassem o retrato uma realidade nacional. Algo que possuía certa reminiscência da pintura holandesa no Brasil ou das aquarelas de Debret.

Há também alguns retratos de pessoas negras em que não estão associadas a qualquer tipo de atividade braçal. O primeiro deles é o retrato do Marinheiro Simão, o carvoeiro de José Correia de Lima, de 1853 (Figura 1). Contudo, essa pintura de Simão escapa àquilo que era costumeiro de ser feito, mesmo na obra de Correia Lima. Em primeiro lugar, Simão não era escravo, e, além disso, foi responsável pelo salvamento de treze pessoas do naufrágio do navio Pernambucana nesse mesmo ano. Sua figura ficou notória através da imprensa, sendo alçado, com esse gesto de bravura, do anonimato para a notoriedade. Ele ganhou assim o status de personalidade, sendo, com isso, passível de ser representado — uma representação não mais associada ao trabalho, mas apenas ao indivíduo Simão.

José Correia de Lima — Marinheiro Simão, o carvoeiro, OST, 93x72,6 cm, 1853
Figura 1: José Correia de Lima — Marinheiro Simão, o carvoeiro, OST, 93×72,6 cm, 1853

Certamente o retrato de Simão se configurou uma das poucas exceções. Outros retratos de negros sem a associação com o trabalho foram feitos por artistas negros, como é o caso, por exemplo, de Arthur e de João Timóteo da Costa que teve diversos negros como modelos de seus retratos.

Em grandes telas representativas da história nacional, patrocinadas pelo governo e pintadas por professores da AIBA, como Batalha dos Guararapes, de 1879, de Victor Meireles (figura 2) ou Independência ou Morte, de 1888, de Pedro Américo (figura 3), por exemplo, a figura do negro é retratada fora do centro de ação das obras. No caso da obra de Américo, o único negro presente apenas assiste à ação, como se fosse um elemento componente da paisagem.

Victor Meireles — Batalha dos Guararapes, OST, 9,25x5,0m, 1879
Figura 2: Victor Meireles — Batalha dos Guararapes, OST, 9,25×5,0m, 1879

 

Pedro Américo — Independência ou Morte, OST, 7,6x 4,15m, 1888
Figura 3: Pedro Américo — Independência ou Morte, OST, 7,6x 4,15m, 1888

A figura do negro não era apenas mal vista como representação, ainda que esta fosse de uma realidade manifesta em uma força de trabalho, mas também como modelo. Neste século XIX, muitos negros, devido obviamente às suas condições subalternas ou mesmo à baixíssima remuneração que recebiam, serviam de modelos-vivos para os artistas da AIBA. Contudo, até mesmo nisso, a presença deles causava desconforto. João Maximiano Mafra[5], então aluno da Academia, em 1839, investiu para que fosse organizada uma associação a fim de trazer europeus ao Brasil com o intuito de substituirem os modelos-vivos negros. Argumentava que as pessoas negras não possuíam beleza física suficiente para serem retratadas em quadros cujo padrão estético adotado pela Escola remetia à Grécia clássica.

Um exemplo significativo deste desprezo ao modelo negro se encontra no quadro de Oscar Pereira da Silva, Escrava romana de 1894 (figura 4), ganhadora da medalha de ouro no Salão Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro de 1897. A pintura retratava uma escrava, mas sem ter por base o modelo clássico de corpo humano. Ao contrário, seu referencial é de uma mulher de sua época, com pés grandes, sobrancelhas grossas, ventre volumoso, algo que deveria ser muito mais próximo da beleza de uma típica escrava. Contudo, essa escrava retratada possuía pele clara e se situava em um ambiente romano. Por que Pereira da Silva não utilizou como modelo a negra brasileira, que tinha fartamente a disposição? Se a temática era a representação de uma escrava, por que então não colocar na pintura a escrava brasileira que há pouco havia sido liberta?

Oscar Pereira da Silva — Escrava romana, OST, 146,5x72,5cm — 1894
Figura 4: Oscar Pereira da Silva — Escrava romana, OST, 146,5×72,5cm — 1894

3. O negro e o ideal de nação

Certamente a exclusão do negro tanto na Academia quanto a sua representação em pinturas ou em esculturas pode ser vista hoje como o reflexo de uma época preconceituosa e excludente. Contudo, essa exclusão se baseava em dados e em teorias científicas amplamente aceitas e validadas à época.

Os mesmos modelos que explicavam o atraso brasileiro em relação ao mundo ocidental passavam a justificar novas formas de inferioridade. Negros, africanos, trabalhadores, escravos e ex-escravos — “classes perigosas” a partir de então — nas palavras de Silvio Romero transformavam-se em “objetos de sciencia”. Era a partir da ciência que se reconheciam diferenças e se determinavam inferioridades (Schwarcz, 1993, p. 28).

A partir da segunda metade do século XIX, começavam a ganhar força teorias que procuravam explicar a inferioridade de determinadas raças, em particular a negra. As teorias evolucionistas e social-darwinistas justificavam cientificamente a supremacia racial através de uma seleção natural em que sobrevivia o mais apto e o mais capaz. Assim, negros teriam sido naturalmente escravizados dada as suas supostas condições de inferioridade racial.

O componente negro existente no Brasil poderia então ser excluído de ser formador de uma identidade nacional.  A filiação francesa existente na AIBA não poderia ser vista apenas como um modelo exótico aplicado em terras brasileiras, mas ao contrário, esse modelo significava a busca de uma identidade nacional calcada em um branqueamento da raça. Significava ainda que se o Brasil quisesse entrar para o concerto de nações desenvolvidas teria que efetivamente excluir raças inferiores e degeneradas. O famoso quadro do pintor espanhol radicado no Brasil, Modesto Brocos y Gomes aluno da AIBA e mais tarde professor da Escola Nacional de Belas Artes (ENBA)[6], A redenção de Cam de 1895 (figura 5), exposto no Museu de Belas Artes do Rio de Janeiro, expõe de modo claro a busca do embranquecimento brasileiro como elemento de salvação pátria.

Modesto Brocos y Gomes — A redenção de Cam, OST, 199x166cm — 1895
Figura 5: Modesto Brocos y Gomes — A redenção de Cam, OST, 199x166cm — 1895

O índio, nesse caso, acabava por ser banido desta exclusão. Baseado na ideia do bon sauvage de Rosseau, o indígena era o homem em seu estado puro e natural, representativo de uma natureza que era, em uma nação destituída de grandes obras, personalidades e feitos, a marca que dava ao Brasil sua peculiaridade em face às outras nações. Por isso, pode-se encontrar, dentro das artes plásticas, como também na literatura, na ópera, a figura do índio sendo exaltada. Contudo, esse índio era representado não em sua condição própria, mas, como observa Roberto Pontual (1987), com nova roupagem indígena elementarmente brasileira que acabava por produzir um pieguismo que só lhes acentuava a estranheza.

Procurava-se criar assim uma nação calcada em virtudes europeias, onde a ciência, a indústria, os valores morais cristãos, a vida privada, a arte eram reflexo de teorias e princípios universais que condiziam com o mundo branco.

A classe de pessoas brancas procurava formar uma nação que tinha como paradigma o mundo europeu. No entanto, ela se distanciava de tudo aquilo que poderia ser tido como ligado as tradições brasileiras.

A alienação passou a ser a condição mesma desta classe dominante, inconformada com seu mundo atrasado, que só mediocremente conseguia imitar o estrangeiro, e cega para os valores de sua terra e de sua gente. O mais grave é que esta alienação, tornando a classe dominante incapaz de ver e compreender a sociedade em que vivia, tornava seu componente erudito também inapto para propor um projeto nacional de desenvolvimento autônomo (Ribeiro, 1978, p. 144).

Em contrapartida, o mundo negro se filiava ao trabalho braçal, à servidão, às religiões pagãs com rituais tribais e arcaicos, a uma arte dominada pelo sentimento comunitário que nada poderia oferecer àquilo que se pretendia como paradigma de uma nação ou de um ideal maior.

Talvez, assim se explique que no século XX ainda persistiu essa visão. O samba, o carnaval, o futebol, por serem artes coletivas e passionais, são de domínio maioritariamente negro, enquanto que a literatura, a pintura de cavalete, a filosofia, são exemplos de atividades que são realizadas individualmente, precisam de um espírito crítico daqueles iniciados em uma cultura superior.

Sem antecedentes culturais fortes, a ideia de progresso, no Brasil, estava associada a um preceito exógeno fundamentado naquilo que o europeu moderno tomava como inovador e avançado. Assim, “o brasileiro comum se construiu como homem tábua rasa, ou seja, mais receptivo às inovações do progresso do que o camponês europeu tradicionalista, o índio comunitário ou o negro tribal” (Ribeiro, 1995, p. 249).

Os negros teriam a excelência do artesanato, da arte regionalista, seriam como artífices da época colonial, servos de alguma corporação, presos a uma arte de sobrevivência e de prática herdada pela tradição. Os brancos seriam os herdeiros da École de Beaux Arts, representantes da imagem da nação fundada a partir do translado da Família Real Portuguesa e capazes de realizar a Bela Arte. Darcy Ribeiro observa bem quando afirma que

[e]ssa camada senhorial constitui um círculo fechado de convívio eurocêntrico, que mais cultua a moda que seus próprios valores hauridos no acesso ao centro metropolitano, onde, bem ou mal, se faz herdeira da literatura, da música, das artes gráficas e plásticas, bem como outras formas eruditas de expressão de uma cultura que, apesar de alheia, passaria a ser sua própria (1995, p. 262).

Duas realidades distintas conviviam na mesma espacialidade, separadas por barreiras simbólicas. Quando um elemento de uma realidade adentrava em outra, acabava por ser impelido a assumir os valores que esta outra realidade impunha.

É importante também perceber que é próprio da cultura europeia formular um cabedal teórico e crítico acerca da arte. Desse modo, muitos dos estudiosos da herança africana, em terra brasileira, eram, ou ainda são, brancos. O francês Pierre Verger (1902-1996), o argentino Carybé (1911-1997), o brasileiro Alberto Vasconcellos da Costa e Silva (1931- ) são exemplos de grandes estudiosos da cultura e da história africana sem serem afro-descendentes. Mais preocupado com valores comunitários, sem a necessidade de formular princípios universais a partir de um entendimento individual da cultura e da história, o artista negro acaba por sentir a necessidade de criar uma arte mais sentimental e mais próxima das pessoas de seu mundo e de sua realidade.

4. Considerações finais

Caberia agora refletir quais seriam as possíveis heranças na Academia, ou seja, na atual Escola de Belas Artes (EBA) da Universidade do Brasil, da presença, ou melhor, da ausência do negro nas artes visuais na capital brasileira do século XIX.

Certamente muita coisa mudou de lá para cá em termos institucionais, conceituais, artísticos etc. A EBA teve um aumento sensível em seus quadros discentes da presença de negros e pardos, principalmente a partir da Lei das Cotas Raciais de 2012, tornando assim o universo de pessoas de origem africana, entre os alunos da instituição, bem maior que no século XIX. Por outro lado, em relação aos docentes, a Escola conta com pouquíssimos representantes. À exceção do recém inaugurado curso de Conservação e Restauro, há apenas um professor afro-descendente, em um universo de aproximadamente 140 docentes.

Ainda dentro das estatísticas da Universidade do Brasil, de que a EBA faz parte, esse número causa perplexidade, já que há entorno de 2% de negros e 8% de pardos de professores do quadro efetivo[7].

Se como afirma Xavier Greffe, a profissão de artista atrai mais os representantes das classes mais baixas do que das superiores, pois estes procuram mais profissões que propiciem mais segurança e prestígio profissional, como engenharia, medicina, direito, seria obviamente de se esperar que haveria mais artistas de poucos recursos do que o contrário. Porém, esses profissionais ainda continuam a ter grande dificuldade, ou pelo menos, baixo interesse em aceder aos quadros acadêmicos. Um estudo pormenorizado dessa causa certamente não caberia nesse espaço, mas vale ressaltar que passado mais de um século, a Academia continua a possuir um ensino ministrado por uma elite social e econômica, aos moldes do Brasil Império.

É ainda pertinente observar que das aproximadamente 400 disciplinas oferecidas pela EBA existe apenas uma dedicada à arte africana[8] e apenas uma outra que trata da questão da antropologia e sua relação com a arte[9].

Mesmo que a Academia, no decorrer de mais de cem anos, tenha criado vários outros cursos de graduação e de pós-graduação, aumentado enormemente o número de alunos, aderido ao sistema de cotas, que esteja a buscar uma formação plural e que procure incorporar a diversidade cultural, étnica, social etc. é fundamental que ela repense as suas propostas levando em conta que a tradição que incorpora é importante, mas que, ao mesmo tempo, deve haver um diálogo profundo com uma realidade que vem sendo obliterada há mais de duzentos anos. Se negros, escravos ou libertos, eram uma realidade que não queria ser incorporada à imagem da nação brasileira no século XIX, hoje eles são parte integrante e fundamental para a produção de uma nova imagem nacional sem estar atrelada a estereótipos. Repensar os seus respectivos papéis na época do império é possibilitar entender uma construção identitária que, em boa parte, perdura até os dias atuais. Superá-la significa repensar modelos de arte e de ensino que sejam críticos e inclusivos de uma pluralidade de formas e conceitos de arte e de cultura.


* Marcelo da Rocha Silveira é arquiteto e urbanista (FAU/UFRJ), mestre em Filosofia (IFCS/UFRJ), doutor em História, Teoria e Crítica da Arquitetura (ProArq/UFRJ). Professor Associado do Departamento de História e Teoria da Escola de Belas Artes/UFRJ. Autor do livro A cidade informal: arquitetura e projeto; co-autor do livro No centro do problema arquitetônico nacional, a modernidade e a arquitetura tradicional brasileira; organizador e autor do livro A cidade e o patrimônio, Ouro Preto, Paraty, Cataguases.

Referências

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DIWAN, Pietra. Raça Pura: uma história da eugenia no Brasil e no mundo. São Paulo: Contexto, 2007.

GREFFE, Xavier. Arte e mercado. São Paulo: Iluminuras: Itaú Cultural, 2013.

MARQUES, Luiz. “O século XIX, o advento da Academia das Belas Artes e o novo estatuto do artista negro”. In ARAÚJO, Emanoel (org.). A mão afro-brasileira. São Paulo: Tenege, 1988.

PEREIRA, Sônia Gomes. Arte, ensino e academia: estudos e ensaios sobre a Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Mauad, 2016.

PONTUAL, Roberto. Entre dois séculos: arte brasileira do século XX na coleção Gilberto Chateaubbriand. Rio de Janeiro: JB, 1987.

RIBEIRO, Darcy. Os brasileiros: I teoria do Brasil. 3ª ed. Petrópolis: Ed. Vozes, 1978.

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RODRIGUES, Raimudo Nina. As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil.  [online]. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisa Social, 2011, 95p. Disponível em <https://static.scielo.org/scielobooks/h53wj/pdf/rodrigues-9788579820755.pdf>. Acesso em :21 fev. 2019. Livro.

SCHWARCZ, Lilia M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

TEIXEIRA LEITE, José Roberto. Dicionário crítico da pintura no Brasil. Rio de Janeiro: Artlivre, 1988.

TEIXEIRA LEITE, José Roberto. “Negros, pardos e mulatos na pintura e na escultura brasileira do séc. XVIII”. In: ARAÚJO, Emanoel (Org.). A mão afro-brasileira. São Paulo: Tenege, 1988.

Notas

[1] Mais tarde essa Escola viria a se tornar Academia Imperial de Belas Artes (AIBA)

[2] Segundo o censo de 1872 — o primeiro do Brasil — a taxa de analfabetismo, para pessoas com idade igual ou superior a cinco anos, para o conjunto do país era de 82,3%. (https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/monografias/GEBIS%20-%20RJ/Recenseamento_do_Brazil_1872/Imperio%20do%20Brazil%201872.pdf)

[3] Segundo Censo de 1872, disponível em https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/monografias/GEBIS%20-%20RJ/Recenseamento_do_Brazil_1872/Imperio%20do%20Brazil%201872.pdf

[4] São eles, o escultor Manuel Chaves Pinheiro (1882-1844), e os pintores Leôncio da Costa Vieira (1852-1881), Horário Hora (1853-1890), Antônio Firmino Monteiro (1855-1888) e Rafael Pinto Bandeira (1863-1896).

[5] Mafra (1823-1908) entrou na Academia como discente em 1835, com apenas 12 anos. Foi professor de Pintura Histórica e de Desenho de Ornatos, lecionando entre 1854 e 1890.

[6] Com a República, a Academia Imperial de Belas Artes, passou a ser chamada de Escola Nacional de Belas Artes e mais tarde Escola de Belas Artes.

[7] Disponível em https://adufrj.org.br/noticia/apenas-2-dos-docentes-da-ufrj-se-declaram-negros/

[8] A disciplina de Arte Africana e Afro-brasileira.

[9] A disciplina de Arte e Antropologia.

A ORAÇÃO DO CARRASCO, O “PESSOAL MESMO” E O “OUTRO DA RAZÃO”

Resumo: A partir do que Gomes defende tratar-se “de uma luta semântica no interior da própria ciência” (2010, p. 510), proponho com este trabalho estabelecer interlocuções com base nas inquietações levantadas por intelectuais negras e negros em seus escritos, no tocante às diversas expressões identitárias, através dos contos do livro A oração do carrasco (2017). Em seu universo ficcional, o autor baiano Itamar Vieira Junior – recém-laureado com o Prêmio LeYa de Portugal com o seu primeiro romance, Torto arado (2019) –, evoca uma complexa rede de questões humanitárias que afeta intelectuais das humanidades, desde tempos remotos até o que se convém chamar, neste momento, de contemporaneidade. Esta escrita, portanto, se configura como um aprendizado, na tentativa de chegar a uma melhor compreensão de saberes outros, com os quais fui, sou confrontada e afetada diariamente. E por que não dizer, agora mais que nunca.

Palavras-chave: A oração do carrasco; intelectuais negras e negros; expressões identitárias.

Abstract: Considering what Gomes advocates as being “a semantic struggle in the interior of science itself – “de uma luta semântica no interior da própria ciência” (2010, p. 510) –, my aim with this writing is to entail interlocutions based on issues raised by black female and male intelectuals in their writing output, towards the diversity of cultural identities expressed in the book A oração do carrasco (2017). In his short stories fictional environment, the baiano writer Itamar Vieira Junior, who won recently the literary award LeYa (Portugal) for his first novel Torto arado (2019), brings to the contemporary debate a complex networking of human rights issues, which has been affecting Human Sciences thinkers since remote times. Therefore, this writing should function in terms of an awakening, a learning expecience, an attempt of achieving a greater awareness of some other knowledges and epistemologies, which I have been confronted with and daily affected by in the today-world, more than ever.

Keywords: A oração do carrasco; black female and male intelectuals; diversity of cultural identities.

Sobre esta escrita. De outras e outros

Entre outros tantos trabalhos e os desafios inerentes a cada um pessoal – e academicamente falando –, esta escrita resulta como avaliação final do componente curricular “Expressões Identitárias”, ministrado pela professora Dra. Florentina Souza do programa de Pós-graduação em Literatura e Cultura (PPGLitCult) da Universidade Federal da Bahia (UFBA), no período compreendido entre outubro de 2017 e fevereiro de 2018. Segundo orientações da própria professora o ensaio deve debruçar-se sobre “textos/obras de um escritor/a negro/a que se reporte a questões identitárias”.

Ainda sobre o tema, a professora reforçou que a este deve ser acrescido de “uma introdução com uma discussão sobre intelectual negro/a que será seguida da análise crítica do texto/obra selecionado que acione os textos das referências do curso” e que “a parte introdutória do trabalho discuta as proposições a respeito de intelectualidades negras apresentadas nos textos de West, hooks e Gomes”.

Assim sendo, proponho com este trabalho estabelecer interlocuções com base nas inquietações levantadas por intelectuais negras e negros em seus escritos, no tocante às expressões identitárias, a partir dos contos do livro “A oração do carrasco” (2017), do escritor negro baiano Itamar Vieira Junior.

Conforme Gomes (2010), a atuação acadêmica e política dos intelectuais negros, além de problematizar e tensionar questões pertinentes ao próprio campo científico, amplia o debate contemplando outras produções de saberes. Em outras palavras, ao problematizarem especificidades do debate étnico-racial, esses intelectuais comprometidos com sua luta, põem em pauta outras questões, a saber, de gênero, de sexualidade, de práticas religiosas, de idade, da relação campo/cidade, por exemplo (Gomes, 2010, p. 509-510).

É nesse sentido que busco aqui articular, sobretudo numa dimensão ética e estética, a relação da produção intelectual negra com as diversas alteridades que, violentamente invisibilizadas pelos mecanismos do poder hegemônico branco, reinam com dor e vigor nos contos de Itamar. Embora seja esse, digamos, o mote deste trabalho, gostaria de iniciar essa introdução, portanto, me valendo da conduta da própria professora que nos assinalou essa tarefa, por ser ela mesma um exemplo daquilo que nos propôs. Já me utilizando da discussão empreendida por bell hooks sobre o que seria uma intelectual negra em seu ensaio “Intelectuais negras” (1995), testemunho, como aluna do acima mencionado componente curricular, que Florentina Souza é, ela própria, uma professora negra e uma intelectual negra. Professora ou docente, pois este é o cargo que ocupa na academia, com a recente conquista do mais alto grau da carreira acadêmica, o título de professora titular, com atuações nos vários setores da Universidade Federal da Bahia, notadamente nos cursos da graduação e pós-graduação do Instituto de Letras (Ilufba). Intelectual orgânica (nos termos gramscianos, eu diria), pela forma engajada e academicamente sólida com que exerce seu ativismo lutando, dentro e para além dos muros da academia, em defesa das causas que afligem quotidianamente a população negra, sobretudo a brasileira, com destaque para a comunidade mais próxima ao seu local de fala, o Estado da Bahia, e em particular a cidade de Salvador.

Florentina é incontestavelmente uma mulher negra, pelo que deixa ver como pele e como postura de vida, seja nas delícias e/ou nas dores da vida pessoal e intelectual. Em sala de aula discutiu e debateu com argúcia e sabedoria a complexidade da intelectualidade de negras e negros por meio de textos seminais, bem como do “outro da razão”, para empregar o termo de Castro-Gómez, utilizado por Gomes para se referir aos “diferentes”, quais sejam, o louco, o índio, o negro, o desadaptado, o preso, o homossexual, o indigente (2010, p. 502-503). Dentre as diversas expressões identitárias, a questão da mulher negra e o exercício de sua intelectualidade ganhou vulto durante as discussões, fosse através da militância da própria professora ou das falas engajadas do número expressivo – digo expressivo para aquele contexto específico de sala de aula – de alunas negras que participavam ativamente dos debates, numa interpolação de seus conhecimentos teóricos com aqueles de suas subjetividades, vivências dolorosas e/ou potentes, cravadas e carregadas na negritude de suas peles.

Diante desse último aspecto, ou seja, a condição de mulher negra intelectual, considero oportuno trazer novamente a voz de hooks, a qual critica a negligência de Cornel West em seu ensaio “O dilema do intelectual negro” (1999), em não dar visibilidade ao trabalho intelectual da mulher negra em um momento histórico de grande efervescência  das discussões de gênero à época. Quanto a isso, ela se manifesta:

Quando eruditos negros escrevem sobre a vida intelectual negra em geral, só focalizam as vidas e obras de homens. […] Apesar do testemunho histórico de que as negras sempre desempenharam um papel importante como professoras, pensadoras críticas e teóricas na vida negra em particular nas comunidades negras segregadas, muito pouco se escreveu sobre intelectuais negras. Quando a maioria dos negros pensa em grandes mestres quase sempre invoca imagens masculinas (hooks, 1995, p. 466-467).

No que tange aos modelos epistemológicos discutidos por West no ensaio acima citado – os modelos burguês, marxista, foucaultiano e o insurgente –, hooks exalta este último como alternativa futura para a prática intelectual no ativismo afro-americano. O modelo insurgente define como prioridade “a criação ou a reativação das redes institucionais que promovam hábitos críticos de alta qualidade para propósitos, primeiramente de insurgência negra” (West, 1999, p. 13). Entretanto, na ampliação do debate, hooks enfatiza que tal modelo deve, não só, mas sobretudo, abranger também intelectuais negras e negros que estejam à margem da academia (hooks, 1995, p. 475). Dando prosseguimento ao seu pensamento insurgente, West defende que os intelectuais negros (assim mesmo, relativo aos homens) pós-modernos têm como tarefa central promover o deslocamento do poder sobre o conhecimento através de práticas discursivas outras, que não as dominantes: “Isso pode ser feito somente por um trabalho intelectual intenso e por uma prática insurgente e engajada” conclui ele. (West, 1999, p. 13).

Voltando à nossa realidade acadêmica na UFBA, combativamente ao lado da professora Florentina, destaco também o ativismo, a militância e a liderança da professora doutora e intelectual negra Denise Carrascosa, na luta em dar visibilidade e disseminar o trabalho de possíveis intelectuais negros e, sobretudo, negras dentro e fora da academia. A convivência com ambas na condição de aluna este semestre e com minhas/meus colegas negras/os me fez entrar em contato com minhas pontuais ignorâncias e a me aproximar de um universo de escritas literárias e não literárias de intelectuais e/ou escritoras/es negras ou negros. Para situar algumas e alguns “vivos e bulindo” próximos, cito a escritora e doutoranda Cidinha Silva, a professora doutora Lívia Natália e a tradutora e doutoranda Luciana Reis, que se destacam, respectivamente, não apenas, mas sobretudo, no campo da crônica (do tipo denúncia, ouso dizer), da poesia e nos estudos de tradução afrodiaspóricas. Entre os negros intelectuais, tive o prazer de ouvir em diferentes ocasiões, Dr. Samuel Vida, jurista e professor da UFBA, Dr. Eduardo Oliveira, filósofo e professor da UFBA e Itamar Vieira Júnior, escritor e doutor em Estudos Étnicos e Africanos, pela mesma instituição.

Posso afirmar que suas contribuições, sejam de natureza epistemológica e/ou artística, rasuram[1] o conhecimento monolítico naturalizado, dito neutro e objetivo, e o desloca para o campo das subjetividades, da diversidade epistêmica, na luta pela construção de novos saberes e práticas mais justas e dignas de coexistência entre as diversas expressões identitárias.

Nesse processo de estabelecer diálogos possíveis entre as diferenças, Gomes (2010) apoia-se no pensamento de Santos e propõe sua “ecologia de saberes” como um caminho a ser trilhado. A ecologia dos saberes, nos termos de Santos, é um conjunto de epistemologias contra-hegemônicas, cujos pressupostos baseiam-se na diversidade e na busca por legitimação dessa diversidade epistemológica no campo científico. Gomes destaca seu caráter incompleto, contextual, portanto, investido (não-neutro) politicamente, socialmente e culturalmente falando (2010, p. 493).

Diante do exposto, concluo esta introdução oportunamente, ressaltando a ênfase dada sobretudo por parte de minhas professoras intelectuais negras em suas práticas, no sentido da não hierarquização de epistemes e a atenção para com sua potencial hegemonia. Segundo Gomes, o engajamento do intelectual negro brasileiro, dentro e fora do campo científico, deve “ampliar ao máximo a inconsistência das análises sobre a identidade negra, inclusive aquelas que são produzidas pelos próprios intelectuais negros” (2010, p. 514). Pelo que ela conclui, em seguida, esse deve ser o maior desafio encarado pelas intelectuais negras e negros, na busca por compreender a complexa rede que emaranha identidades e diferenças nos diversos grupos étnico-raciais.

Máscaras expostas na Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia/UFBA. Salvador – Bahia, 2018
Máscaras expostas na Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia/UFBA. Salvador – Bahia, 2018
Fonte: foto da autora

Sobre alguns desafios. De mim

E eu, quem sou? A qual desafio me refiro em relação a este trabalho? Sou paraibana de Campina Grande, crescida em João Pessoa, nordestina portanto, a terceira filha de um total de seis, sendo uma irmã e quatro irmãos, a primeira menina depois de dois meninos, de um casal modesto. Ela, a mãe, cultivada para ser dona de casa, oriunda de mais uma família campinense, estudou até o ginásio. Ele, o pai, desterritorializado da área rural do município de Sapé, formado como técnico em Contabilidade na capital. De ambos herdei, entre outros traços, a pele ostensivamente não negra.

Traduzindo o desafio, a partir do que aqui coloco e como me coloco, ressalto dois movimentos:

– Reside nesse privilégio histórico e social, de ter nascido branca temperada em uma sociedade patriarcal e racista, o desafio de tratar de questões étnico-raciais que me dizem respeito, que nos dizem respeito, porém que não me atravessaram a pele via fenótipo negro;

– Reside na desvantagem histórica e social de ser mulher e nordestina, a vantagem de poder me aproximar um pouco de alguns lugares de exclusão, ainda que ciente esteja de que ser uma mulher de pele branca e que teve acesso à educação formal, já se trata de um grande privilégio nesse país – o que não deveria.

No entanto, reside também, em algum espaço entre esses dois movimentos, a convicção de que, apesar de ocupar este lugar no mundo, podemos tratar da tarefa à qual nos foi designada com este trabalho, qual seja, debruçar-se sobre questões identitárias através do pensamento intelectual negro. Não que isso tenha sido inviabilizado ou desencorajado nos nossos encontros em sala de aula. Pelo contrário. No entanto, havia uma tônica sobre o lugar de fala que nos punha em um lugar de constante reflexão e vigilância, que vinha das falas teóricas e dos testemunhos vivenciais de nossos colegas e professoras e que, às vezes, por que não dizer, nos punham sob suspeita, uma vez que a experiência de estar no mundo de parte de nós não era atravessada pela cor da pele negra ou por outras questões identitárias, outras subjetividades e sociabilidades, que afetavam mais diretamente uns que outros.

É exatamente por ocupar esse espaço de privilégio e pela oportunidade que tive junto às minhas/meus colegas e professoras de tensionar conflitos que cercam as questões identitárias, que senti a necessidade de expor com honestidade a minha condição. Pensando nisso, me reporto agora aos instrumentais metodológicos e nas categorias de análise de tradição ocidental, enfrentadas pelos negros e, sobretudo pelas negras, no exercício de sua intelectualidade.

Gomes afirma tratar-se, portanto, “de uma luta semântica no interior da própria ciência”, pois o desafio é fomentar uma produção de conhecimento protagonizada pela/o negra/o, e não sobre ela/ele (p. 510). Trata-se, portanto, da mudança de paradigma que é deixar de ser objeto e passar a ser o sujeito de sua própria produção intelectual.

Todas as acadêmicas e acadêmicos aqui citados perseguem o mesmo objetivo de problematizar o espaço de produção acadêmica, deslocando-o do seu eixo hegemônico de conhecimento e saberes da branquitude, a fim de viabilizar a ressemantização de discursos que promovam lugares para as diferentes identidades e a circulação de seus saberes, culturas, conhecimentos, estéticas. Sobre isso, Gomes reúne os seguintes questionamentos:

[…] quais são as possibilidades e perspectivas reais da universidade, enquanto espaço acadêmico, vir a desempenhar o papel de instituição capaz de articular os saberes oriundos e outras tradições e universos sociorraciais, sem hierarquias e discriminações (Abib, 2005)? A universidade e sua estrutura organizacional, curricular e de poder nos permite isso? Ela é capaz de se redefinir por dentro? (2010, p. 511).

É em meio a essas considerações até aqui feitas que esta escrita se configura como um aprendizado, um exercício, que tem como ponto de partida o reconhecimento de minhas limitações, de minhas ignorâncias, na tentativa de chegar a uma melhor compreensão de saberes outros, os quais não me atravessam diretamente, porém, com os quais fui e sou confrontada e afetada diariamente.  E, por que não dizer, agora mais do que nunca.

Isso posto, é a partir desses movimentos, ora como quem se encontra meio dentro estando fora e/ou ora meio fora estando dentro, que busco articular as reflexões feitas por intelectuais negras e negros aqui mencionados a partir dos contos que compõem o livro A oração do carrasco (2017), do escritor baiano Itamar Vieira Junior.

A oração do carrasco e as expressões identitárias

O escritor Itamar Vieira Júnior, nascido em 1979 na cidade de Salvador, Bahia, é geógrafo e doutor em Estudos Étnicos e Africanos pela Universidade Federal da Bahia. Seu livro A oração do carrasco foi selecionado pelo edital de Literatura da Fundação Cultural do Estado da Bahia (FUNCEB) 2016, além de ter recebido menção honrosa no edital de Criação Literária em São Bernardo do Campo, São Paulo. O livro é composto por sete contos, obedecendo à seguinte ordem: “Alma”, “A floresta do adeus”, “A oração do carrasco”, “O espírito aboni das coisas”, “Meu mar (Fé)”, “Doramar ou A Odisseia” e o “Manto da Apresentação”. Como se pode notar, os títulos de seus contos já deixam entrever ou sugerir marcas de sua formação acadêmica, bem como de elementos que sugerem vivências pessoais em seu lugar de origem.

Por meio de suas narrativas potentes e poéticas, personagens e contextos vão ganhando contornos e camadas que permitem estabelecer relações com as diversas expressões identitárias, foco desta escrita. As/os personagens de seus contos – mulheres negras escravas/escravizadas, homens negros, empregadas domésticas, indígenas, loucos, prisioneiros, clandestinos, ilegais – protagonizam, em sua maioria, a condição do não-lugar, da marginalização. As narrativas se situam em espaços urbanos (cidade, apartamento da patroa), urbanos periféricos (favela, cais, maré da baía), rurais (casa grande, roça, mato, mata, uma floresta), ou ainda no que se cabe chamar de um não(entre)lugar (uma instituição psiquiátrica, uma embarcação no meio do mar, uma fuga).

Suas/seus personagens com suas dores, sofrimentos e angústias são o “outro da razão”. Com integridade e força insubmissa, legitimam suas existências ante as condições mais adversas e indignas dentro de uma sociedade racista, sexista, opressora e excludente. Em seu universo ficcional, Itamar evoca uma complexa rede de questões humanitárias, que afetam intelectuais das humanidades, desde tempos remotos até o que se convém chamar, nesse momento, de contemporaneidade.

Insurgência

Em “Alma”, o primeiro conto do livro, a protagonista é uma mulher negra escrava/escravizada que se liberta do poder de seus algozes, senhores e senhoras brancos da casa grande, empreendendo, sozinha, uma fuga fenomenal. Sobrevivente, após caminhar por muitas luas cheias em busca de sua liberdade, enfim ela chega a um lugar sem cercas onde faz sua morada. Numa sucessão de acontecimentos, Alma, outra vez fortalecida, arranja um companheiro, pare seus filhos e vive da terra com dignidade. Aos poucos, outros irmãos insurgentes como ela vêm de longe e fundam uma comunidade. O final da narrativa revela sua força e segredos de sua ancestralidade como a base de sua insurgência.

[…] eu, uma mulher, uma alma, que lutava todas as horas e da primeira vez quando levaram um filho urrei de tristeza, como uma cadela, meus filhos arrancados como uma ninhada de cães, um a um, foram retirando de mim, um a um foi sendo retirado, eu que agora caminho para a frente, lembro-me de todas essas coisas que doem mais que as feridas abertas de meus pés e do couro do meu cabelo, eu, essa mulher que anda pela mata como se bicho fosse, e que um dia disseram que eu tinha alma, e por isso me chamaram de Alma, “e toda alma reside em um corpo”, rezava minha senhora, e eu, se era uma alma, era  posse daqueles senhores, minha morada era o fundo de sua casa branca, era meu corpo [….] (Vieira Junior, 2017, p. 19).

Fronteiras

A “floresta do adeus” é uma narrativa que mais se assemelha a uma distopia. A floresta submetida a um regime totalitário é um espaço rigorosamente controlado por uma organização militar, cujos limites não podem ser ultrapassados sob pena de soldados armados abrirem fogo. Separados por uma cerca de arame farpado, Luís e Rosa se encontram em lados opostos e revelam o sofrimento causado pela separação forçada e de terem seus desejos amorosos reprimidos. A situação dramática cresce aos olhos do leitor através de seus relatos e de seus familiares: irmãs e irmãos, tias e tios, sobrinhas e sobrinhos, primas e primos, entre outros.

Eu me posto na margem da estrada onde está estabelecido o limite e aguardo, mirando a floresta, com o coração incerto de que eles conseguiriam vir conforme combinamos no último encontro. O barulho do vento, incansável, abafa os sons que espero das pegadas quebrando gravetos secos compactando as folhas caídas de tanto adeus. Uma sombra ao longe surge e logo se divide em duas, três, quatro, cinco, com suas roupas coloridas, as tias idosas com lenços na cabeça, a prima com um lenço florido em volta dos cabelos soltos, o tio com bigode  grisalho e a boina velha que usa desde que eu era criança (p. 48).

Recrudescimento

No conto “A oração do carrasco”, que intitula o livro, o personagem central é um pai de família – num semiárido esquecido qualquer –, cujo ganha-pão é a profissão de carrasco. Seu ofício deve ser passado adiante ao filho mais velho, obedecendo à linhagem dos homens da família. A reviravolta se dá quando esse primogênito desaparece aos dezessete anos, como “inimigo do Estado”, supostamente por ter entrado em contato com ideias subversivas em reuniões clandestinas com camponeses a favor da reforma agrária. Em nota, o autor explica que, embora o conto seja ficcional, traços biográficos de personagens icônicos de nossa história foram utilizados sem, no entanto, fazer referências a nomes.

Seu bisavô e avô foram carrascos. Seu pai também. Ele, que lhe deu o machado na última manhã de uma estiagem de quatro anos, para depois vir a chuva, e paradoxalmente a fome, empenhou-se para que o filho, o primogênito, honrasse a linhagem de carrascos à qual pertencia. Seu avô foi a figura mais importante da família, e certamente um herói anônimo de seu país: foi o executor da sentença de morte do ditador que governou por 30 anos, quando o filho carrasco ainda não havia nascido. Não se livraram dos ditadores, que se alternavam nos governos, muito menos de seus interesses, mas o tempo e os conflitos os ensinaram a serem parcimoniosos com a vida (p. 75).

“pessoal mesmo”[2]

No conto “O espírito aboni das coisas”, o indígena Tokowisa deixa a aldeia seguindo instruções de um velho xamã em busca de uma palmeira de abatosi para curar a sua mulher doente. O conto, na sua forma e ritmo narrativos, se assemelha a uma lenda indígena, como se contada por alguém do próprio grupo étnico. Segundo nota do próprio autor, foram utilizadas palavras da língua jarawara, uma das muitas etnias indígenas do Brasil, explicitando desse modo, a pesquisa empreendida e criteriosa ao se aproximar esteticamente de outros falares, pertencimentos e ancestralidades. A fonte para o vocabulário utilizado no conto foi o Dicionário Jarawara – Português, do linguista Alan Vogel.

Tokowisa é um homem que sobe o rio faha com sua canoa. Os guerreiros de seu povo não estão ao seu lado, mas Tokowisa tem o mundo: a terra wami, a água faha e o céu neme. Tokowisa pode falar com a pedra yati quando desce da canoa. Pode falar com o boto e ouvir sua resposta. Pode falar com os espíritos aboni do céu neme. Com o espírito aboni das árvores. Tokowisa carrega o mundo em seu coração ati boti. Yanici está em seu ati boti. Os seus filhos também. Tokowisa ouve estrondos que parecem com o som da madeira que cospe fogo dos homens brancos. Estão matando o espírito aboni das coisas, pensa. Tokowisa pode sentir clarões de luz vindo do interior da floresta. Tokowisa disse para o xamã que as árvores tremem de medo dos homens brancos que devoram a floresta (p. 101).

Clandestinidade

Em “Meu mar (Fé)” a narrativa é contada em primeira pessoa por uma mulher, que nos lança ao mar de um lado a outro do Atlântico, numa remissão a movimentos semelhantes aos afro-diaspóricos. São personagens “à deriva” entre Baraka (uma favela superpopulosa na capital senegalesa de Dakar), o porto da Bahia, a América, São Paulo, o Brasil e o Haiti, por exemplo. Essas referências nos remetem irremediavelmente ao período da escravização dos cidadãos negros arrancados violentamente de suas terras e famílias e embarcados em navios para a América, ou ainda, na contemporaneidade, aos fluxos migratórios de cidadãos negros e não-negros tornados clandestinos confinados em contêineres dentro de navios de carga ou em botes de borracha, em busca de uma vida digna ao redor do globo.

Vendemos a casa que habitávamos, a outra casa que herdamos de seu pai e rendia o parco para nos saciar a fome, para pagar a travessia até o porto da Bahia. Desembarcaríamos depois de muitos dias sem ver a terra e com a memória dos muito poucos fios de luz que nos chegavam ao longo da viagem.  No contêiner, éramos seis pessoas, jovens, cinco homens e somente eu, mulher, que conhecemos o inferno da travessia. O alimento terminou antes de nossa chegada, o calor sufocante nos enchia de cansaço e mal-estar. Havia um medo de que fôssemos descobertos, havia o balanço da pesada embarcação no mar aberto, quebrando ondas, havia o perfume nauseante da maresia. Você segurou minha mão diversas vezes com muita força. Era uma travessia dolorosa, carregada de angústias E temores. Deixávamos nosso país para trás, sem a esperança de voltar em breve (p. 108).

“Como se fosse da família”

Doramar protagoniza o conto através de sua voz e memórias que se confundem entre o tempo da infância, em que era menina livre, moradora da favela da maré da baía; a mocidade marcada pelos sorrisos, brincadeiras e a volta clandestina no Puma amarelo (roubado) de Pito e a passagem do tempo, cujo anúncio vem na forma de cabelos brancos, lapsos de memória e pés cansados. Mecanizada pelo trabalho doméstico dedicado à mesma família há 20 anos, o despertar de Doramar é provocado por um incômodo encontro ao final da tarde de mais um exaustivo dia de trabalho: um cão moribundo, fétido, apodrecendo nas dependências do prédio dos  patrões, sacode-a para sua própria vida (conforme nota do próprio autor, o conto “Doramar ou A odisseia”, faz uma breve referência à crônica “Mineirinho”, de Clarice Lispector).

Minha cabeça coça, o mar cheio invade minha cabeça, é o som da maré, a dona pediu para comprar o peixe, vou para o fundo de casa, nas palafitas, para buscar o peixe na maré que não vai embora, olho para o céu que é o teto branco da casa de meus patrões: “Deus, onde está a sacola?” A sacola está bem acima de meus olhos, pendurada no varal, coçando minha cabeça. Volto para a porta e o cão me olha, eu olho para a fome do cão, então abro a geladeira e tem sobras do jantar, agacho próxima ao seu prato e despejo, o que tem dentro com as minhas mãos, o cão lambe meus dedos, lambe meu nariz, eu limpo os dedos na minha roupa, mas não sei se esse gesto salvará a sua vida. Fecho a porta, minha mãe não me pediria que fechasse a porta, porque lá quando era menina éramos livres e agora eu sirvo meus patrões que não me dão descanso. Olham para mim e dizem para os convidados que sou “como se fosse da família” e nada posso dizer (p. 146-147).

Tecelão do Mundo

O “Manto da Apresentação”, o último conto do livro, é narrado por uma voz feminina negra, a mãe de um Jesus filho negro a quem é dado a chance e o poder de refundar o mundo em sete anos de trabalho. A voz maternal que fala com Jesus filho sobre sua tarefa de reconstrução do mundo diz-lhe que ele deverá estar apropriadamente vestido para a ocasião. Em sua missão, ela o orienta a não usar as roupas rotas da colônia, uma menção à instituição psiquiátrica, na qual foi interditado como esquizofrênico. Segundo a voz, ele deveria portar um manto divino, nobre e delicado, tecido e bordado por ele mesmo, com a sensibilidade de sua arte. Quem estiver minimamente familiarizado com a história de Arthur Bispo do Rosário, logo é capaz de estabelecer conexões entre ele e o personagem Jesus filho.

Segundo a escritora e pesquisadora Luciana Hidalgo, no artigo “As artes de Arthur Bispo do Rosário” (2009) sobre o artista plástico sergipano, em sua ficha no manicômio podia-se ler “negro, sem documentos, indigente”. O manto da apresentação que seria usado no dia do Juízo Final, era uma espécie de vestimenta semelhante a uma mortalha, confeccionada por ele mesmo com objetos de naturezas e formatos diversos.

Conforme nota do autor Itamar Vieira Junior, o conto traz elementos biográficos do artista plástico, baseados sobretudo na dissertação Manto da Apresentação: Arthur Bispo do Rosário em diálogo com Deus, de Alda Moura Macedo.

[…] são tuas mãos generosas e hábeis que tecem este novo mundo para maravilhar o homem, as mãos que fazem o pão, deves também bordar o globo terrestre, para que saibam por onde caminhamos,  o seu interior deverá carregar algo muito precioso porque nele estarão os nomes dos eleitos, que sejam louvadas as mulheres que subirão para sua morada, jesus filho, as mulheres que serão arrebatadas, porque em suas dores se fizeram maiores que os homens, com seu senso de humanidade interromperam guerras, sofreram dores, atravessaram desertos, viveram  odisseias, transpuseram muros e cercas, forjaram a liberdade das entranhas do seu ventre,  nadaram por oceanos, elas que terão seus nomes escritos no interior do manto que vestirás para o dia da  fúria ida glória […] (p. 161).

Detalhe da Gaia Mother Tree (2018), obra do artista plástico Ernesto Neto. Estação Central de Zurique - Suíça, 2018.
Detalhe da Gaia Mother Tree (2018), obra do artista plástico Ernesto Neto. Estação Central de Zurique – Suíça, 2018. / Fonte: foto da autora

Arrematando as pontas de tudo até aqui dito, pode-se perceber que a A oração do carrasco, como o título mesmo já anuncia, não é um livro para melindres. É um livro que tem como fio condutor os cataclismos humanos causados pelo poder hegemônico branco e seus mecanismos de opressão que se abatem sobre uma sociedade de classes, em que o racismo se traduz como uma de suas formas mais perversas e violentas. Todos os sete contos dão visibilidade a figuras humanas subalternizadas ao longo da História, dentro da lógica de um sistema hierarquizante e racista, sem que tampouco sejam resignadas ou vencidas. São identidades em estado de vulnerabilidade, – mulheres negras, homens negros, crianças negras, indígenas, pobres, favelados, mães, empregadas domésticas e até animais doentes abandonados – contudo, numa luta aguerrida pela sobrevivência e garantia de seus direitos na construção de suas identidades.

Considerando a potência dos contos de Itamar Vieira Junior no contexto acadêmico, é como se eles traduzissem do ponto de vista ético e estético, o conjunto de epistemes defendidos pelas diversas/os intelectuais negras e negros mencionados nessa escrita. O fazer literário de Itamar, enquanto escritor e intelectual negro, se revela comprometido e engajado, através de uma riqueza de outros saberes e sabedorias “da memória, da oralidade, da ancestralidade, da ritualidade, da temporalidade, da corporeidade”, conforme Gomes (2010, p. 510)

Por essas e outras, creio não ser nenhum exagero afirmar que o escritor Itamar é um autor contemporâneo, tal como postulado por Agamben (2013). Ele é intempestivo na forma como projeta as temporalidades em seus contos ficcionais: adere ao seu tempo histórico e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias. É essa condição que o habilita, de forma extra-ordinária, a perceber e apreender o seu tempo. Na célebre imagem de Walter Benjamin, seus contos “escovam a história a contrapelo” (Löwy, 2002).

Comparativamente, se considerarmos o pensamento de Édouard Glissant, a literatura de Itamar, neste caso, nos oferece a possibilidade de uma abordagem “crioulizada”, no sentido de que seu imaginário destrona a ideia de identidade como “raiz única, fixa e intolerante” (2005, p. 80) para se espraiar rizomaticamente exuberante em busca de outras raízes. É a literatura do imaginário do sendo e não de ser, para a qual Glissant apela: “(…) o imaginário do sendo, de todos os sendos possíveis do mundo, de todos os existentes possíveis do mundo” (p. 81)

Podemos dizer ainda dessa relação que os contos de Itamar atendem à noção de rastro/resíduo, o que supõe em si a incompletude, a divagação, a impermanência. A seguinte citação traduz com propriedade esse fenômeno:

Não seguimos o rastro/resíduo para desembocar em confortáveis caminhos; ele devota-se à sua verdade que é a de explodir, de desagregar em tudo a sedutora norma. Os africanos, vítimas do tráfico para as Américas, transportaram consigo para além da Imensidão das Águas o rastro/ resíduo os seus deuses, de seus costumes, de suas linguagens (Glissant, 2005, p. 83-84).

Itamar transporta de si para sua escrita o rastro/resíduo de seu povo, o “pessoal mesmo”.

A citação acima pode, com efeito, desembocar na reflexão de Stuart Hall (2000) sobre a identificação, como sendo um processo de articulação, que traz em si intervalos, faltas, mas nunca uma completude. Sujeita ao “jogo” da différance (o “mesmo”/ o “outro”), a identificação, como em geral ocorre nos processos de significação, se constitui enquanto trabalho discursivo, abrindo brechas para a produção do que ele vai designar de “efeitos de fronteiras” (Hall, 2000, p. 106). Na minha leitura, essas seriam demarcações de fronteiras simbólicas, cujas aberturas e fechamentos se encontrariam a serviço do poder vigente.

Hall conclui que, na consolidação desse processo, a identificação vai requerer justamente aquilo que é deixado de fora e que lhe é parte constitutiva: o exterior. Justo aí, nesse deixar de fora o que lhe é de dentro, se instala seu caráter desagregador, desconfortável, no qual a literatura de Itamar se inscreve por meio da relação – e não da exclusão – com outras culturas, sejam estas aquelas que nos cercam mais imediatamente no nosso convívio diário, ou as tantas outras além-mares, além-ancestralidades. Seu livro bem pode representar um clamor por atitudes literárias corajosas e criativas, no tratamento dado à construção e visibilidade de novos sujeitos, novas subjetividades e possibilidades de relações sociais, como forma de contribuir para o combate ao epistemicídio (evocando Santos, segundo Gomes).

É nesse sentido que compreendo o debate aqui engendrado através do pensamento das/os diversas/os teóricas/os negras/os aqui citados, quer no campo acadêmico – e por que não dizer?  – como também no ficcional-estético. É nesse sentido que compreendo a potência e beleza da contribuição artístico-literária de Itamar Vieira Junior para essa contemporaneidade.


* Rosilma Diniz Araújo Bühler é professora do Departamento de Letras Estrangeiras Modernas (DLEM) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), em João Pessoa. Atualmente, encontra-se doutoranda na área de Estudos da Tradução, do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura (PPGLitCult), Universidade Federal da Bahia (UFBA), em Salvador.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo. In: AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo e outros ensaios. Trad. Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2013. p. 55-73

GLISSANT. Édouard. Cultura e identidade. In: GLISSANT. Édouard. Introdução a uma poética da diversidade. Trad. Eunice do Carmo Albergaria Rocha. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2005. p. 71- 95

GOMES, Nilma Lino. Intelectuais negros e produção do conhecimento: algumas reflexões sobre realidade brasileira. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (Orgs.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010.

HALL, Stuart. Quem precisa da identidade?. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.); HALL, Stuart; WOODWARD, Kathryn. In:. Identidade e diferença. A perspectiva dos estudos culturais. Trad. Tomaz Tadeu da Silva. Petrópolis: Editora Vozes, [1996] 2000. p. 103-133.

HIDALGO, Luciana. As artes de Arthur Bispo do Rosário. In: Mente Cérebro. 2009. Disponível em:<www2.uol.com.br> Acesso em: 11 abr. 2018.

HOOKS, bell. Intelectuais negras. Estudos feministas. Trad. Marcos Santaritta. Florianópolis, v. 3, n.2, p. 464-478, 2º semestre 1995.

JUNIOR, Itamar Vieira. A oração do carrasco. Itabuna, BA: Mondrongo, 2017.

LÖWY, Michael. A filosofia da história de Walter Benjamin. São Paulo, 2002. Disponível em:<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142002000200013> Acesso em: 10 abr. 2018.

WEST, Cornel. The dilema of the Black Intelectual. In: The Cornel West: reader. Basic Civitas Books. Trad. Braulino Pereira de Santana, Guacira Cavalcante e Marcos Aurélio Souza. 1999. p. 302-315.

Notas

[1] O conceito vem usualmente na forma de “sob rasura” e é corrente a esse processo. É atribuído ao intelectual afrodiaspórico Stuart Hall em seus estudos sobre identidades, e aqui me reporto mais especificamente ao artigo “Quem precisa de identidade?” (2000).

[2] pessoal mesmo: “e yokana” é a forma como os povos indígenas Jarawara, Jarauara, Yarawara ou ainda Jaruará se autodenominam. Segundo o linguista Alan Vogel (2006), “e yokana“ significa literalmente “pessoas de verdade”. Contudo, esses povos indígenas traduzem o termo por “pessoal mesmo“. Jarawara, nome e localização. Disponível em:< https://pib.socioambiental.org/pt/povo/jarawara/615> Acesso em: 09 abr. 2018.

APANHAR PANCADA: RESQUÍCIOS DE ESCRAVIDÃO

Resumo: Este texto busca resquícios de escravidão em cenas do cotidiano: um comercial de perfume; um comercial de Natal; um patrão que dá bananas aos empregados no Dia da Consciência Negra; um ladrão que é acorrentado a poste e submetido a linchamento público; uma advogada algemada, presa e humilhada em pleno exercício da profissão; um guarda-chuva confundido com fuzil, e mais um jovem fuzilado.

Palavras-chave: escravidão; cotidiano; faits-divers.

Abstract: This article looks for remnants of slavery in daily scenes: a perfume comercial; a Christmas comercial; a boss that gives bananas to a employee in Black Conscience Day; a burgler tied up to a post and submmited to public lynching; a lawyer on handcuffs, arrested and humilliated in her duties; confusing an umbrela with a rifle, and another Young man is shot.

Keywords: slavery; daily; faits-divers.

1

Um quase adolescente aluno negro, em meio à atividade corriqueira de classe, questionava, com alguma ponta de ressentimento, que não entendia o motivo de ter nascido com aquele tom de pele. O que pude contestar, em contrapartida, e a título de (des)consolo pedagógico, é que muitos, dentro de nossa controversa sociedade, inclusive em idade adulta – fossem negros ou não –, também ainda não haviam se inteirado efetivamente dessa questão. De pele.

Uma pergunta inicial, então, logo se impunha: seria possível – no contexto racial, como o brasileiro – se vivenciar a experiência, o sentimento da discriminação e da inadequação à própria cor sem pertencer à etnia subjugada?

Em outras palavras – e retomando o mote inicial: um quase adolescente aluno considerado branco, ou quase branco[1] faria similar questionamento ressentido a seu mestre em classe?

Essas perguntas costumam remeter ao momento inaugural das concepções de Homem e cidadão. E, consequentemente, da identidade moderna.

Lembremos que a sinonímia entre os conceitos de negro e raça passaria a ganhar vulto no imaginário da Europa ilustrada paralelamente ao discurso em torno dos valores constituintes da humanidade e da cidadania – narrativa da qual, aliás, o elemento negro sempre estivera de fora. Desde a fonte.

Outrossim, dentro dos valores da razão, disseminavam-se teorias raciais que separavam, em contrapartida, Homens e cidadãos. Por raças.

Tais teses legariam aos séculos posteriores complexos padrões de (des)igualdade, a partir dos quais, por fim, uns tornar-se-iam mais cidadãos do que outros – e outros menos humanos do que uns. Na sucessão discriminatória, pode-se somar, então, à distinção por raças – ranço da antiga era mercantil –, a divisão por classe – fruto da era nova industrial.

A razão iluminada – a mesma que idealizou o capitalismo comercial, formatou o colonialismo europeu, e trouxe em seu ventre a escravidão negra –, inauguraria também a ideia da mercadoria humana. Neste sentido, a teoria da cor de pele inferior tanto serviu para confirmar teses raciais, quanto para fragmentar ao limite o autoentendimento de etnias inteiras: sua identidade, enfim.

Rebaixado, pois, em sua condição humana e intelectual, e rejeitado socialmente, o elemento negro seguiria, desde então, excluído de todos os paradigmas razoáveis projetados pelo sonho da ilustração.

Logo, na lógica do mercado, o negro, tornado mercadoria, passaria também a ter o seu valor. De troca.

Não bastasse toda a escravização de humanos historicamente sempre estar vinculada à violência e ao subjugo, a modalidade negra viria ainda a fundar no imaginário das relações humanas o sentimento – com permanência no tempo – do preconceito racial.

Talvez seja esse caminho – o da identidade – o início da trilha para se entender melhor o drama da inadequação daquele quase adolescente aluno negro.

Fonte: http://www.cartapotiguar.com.br/wp-content/uploads/2015/07/alckmin-maioriade-penal.jpg. Acesso em 11 jul 2019.

2

Na perspectiva de Stuart Hall (2005), a dificuldade na definição de identidade, deve-se ao fato de ser este conceito antropologicamente recente, e um tanto quanto complexo.

De início, Hall pondera a identidade a partir de três concepções distintas – expostas aqui de forma sucinta:

  1. a do sujeito Iluminista: caso em que o centro essencial do eu equivalia à identidade do indivíduo; um ser unificado, razoável, consciente e ativo, pertencente à etnia e a sexo específicos, posto que “o sujeito do Iluminismo era usualmente descrito como masculino” (Hall, 2005, p. 11). E não-negro.
  2. a do sujeito sociológico: caso em que, na contramão da ideia de autonomia e autossuficiência iluministas, a identidade seria formada na interação entre o eu e a sociedade. Em outras palavras, a individualidade só funcionaria quando em contato com os mundos culturais externos. “A identidade, então, costura (ou, para usar uma metáfora médica, ‘sutura’) o sujeito à estrutura” (Hall, 2005, p. 12).
  3. a do sujeito pós-moderno: caso em que o processo de identificação se torna fluido; a identidade, neste contexto, adquire caráter variável e problemático. Movediça, equivaleria agora à forma como o indivíduo se vê representado pelos sistemas culturais circundantes. E passa a ser “definida historicamente, e não biologicamente” (Hall, 2005, p. 13).

Por razões de cor, imediatamente excluído dos paradigmas de subjetividade do Iluminismo, e, por conseguinte, fora dos padrões do homo economicus – o que o modelo pós-industrial só fez confirmar –, o negro tampouco protagonizaria a narrativa do homo sociologicus, visto que, naquele contexto, era explícita cobaia. Ou mera mercadoria. Um pouco aquém do humano. Objeto próprio a experimentos. Propício à venda. E à troca.

Na sequência do tempo, quedaria também subalterno – quando não preterido – na lógica do mundo automatizado. Pós-moderno.

No caso específico brasileiro, o ajuste identitário carrega ainda nas costas a mácula de três séculos e meio de maus-tratos escravistas. Afinal se a identidade, na concepção sociológica, é projeção das identidades externas, mediante valores internalizados, e se, de fato, é o que “costura”, “sutura” o sujeito à estrutura social, onde se espelharia a subjetividade negra sob os recentes reflexos da escravidão? Que face vê o negro refletida no espelho do seu cotidiano? E como é visto? O que projeta quando vê sua imagem precária projetada nos aparelhos de representação social?

E neste tempo-espaço pantanoso, em que a identidade se torna cada vez mais rarefeita, e incessantemente reformatada pelos meios de representação, onde situar a identidade negra, sob a ótica agora de exotismos e de minorias?

Tais questões aumentam a complexidade do conceito de identidade, sobretudo quando o foco recai sobre aqueles que historicamente estiveram à margem do eixo identitário imposto pela modernidade – e que a dita pós-modernidade ora pulveriza. E desmancha no ar.

3

Em sua Crítica da razão negra, Achille Mbembe (2014, p.25), embora admitindo que “só nos é possível falar da raça (ou do racismo), numa linguagem totalmente imperfeita, dúbia, diria até desadequada”, reafirma que a ideia do negro como sujeito racializado é uma invenção recente do ocidente civilizado. E, sendo assim, para uma elementar reflexão acerca da condição subalterna da etnia no mundo contemporâneo, não se deve negligenciar a responsabilidade colonialista-escravista no tocante ao vínculo que encobre de preconceitos tanto raça quanto categoria social em que se enquadram o ser negro historicamente no tempo.

Sob esta perspectiva, então, se entende um pouco mais porque, até nossos dias, não assusta à maioria quase branca um corpo negro humilhado, espancado e acorrentado pelo pescoço a um poste[2].

Há, inclusive, argumentos que tornam casos como esses simples e corriqueiros faits-divers. Discursos que tendem a dissociar a natureza do fato de sua evidente questão racial. No âmbito neológico-ideológico, hoje, o termo vitimismo, por exemplo, parece se encaixar perfeitamente ao propósito de desqualificação do ato racial, fazendo a denúncia do episódio racista, ou sua exposição pública, depor contra a própria vítima: a acusação consiste em contestar que o vitimado é quem vê racismo em tudo; afinal – afirmam os defensores do fait-divers –, fosse o meliante branco e mereceria, no caso, idêntico castigo.

No entanto, nesta hipótese, restam dúvidas quanto a possibilidade de tal episódio. Em outras palavras: haveria frequente probabilidade de um jovem delinquente branco, em qualquer território urbano, quer fosse por ódio racial, quer fosse por diferença de classe – ou até mesmo pela própria delinquência –, ser linchado e em seguida acorrentado a poste público pelo pescoço, à revelia da lei? A cena, em paralelo, de um jovem nipo-brasileiro, por exemplo, sumariamente justiçado a sociedade historicamente registra?

Em contrapartida, vivemos numa cultura que se habituou a ver negros ao longo dos séculos em situações similares, de indigência, de servidão e humilhação; e, na sequência dos tempos, quase sempre em praças públicas, maltrapilhos, e pedintes. Ou a roubarem para subsistir. No papel de subalterno ou de inimigo público, com classe e cor definidos socialmente, o negro – no imaginário coletivo – quase sempre esteve apto mesmo a apanhar pancada.

Fonte: https://pt.globalvoices.org/2014/02/10/menor-preso-a-poste-barbarie-racial-exposta-em-zona-nobre-do-rio-de-janeiro/. Acesso em 11 jul 2019.

Achille Mbembe (2014, p. 21) pondera os efeitos da herança colonial que reside neste fenômeno:

[…] da obstinação colonial em dividir, classificar, hierarquizar e diferenciar, sobrou ainda algo: cortes e lesões. Pior ainda, a clivagem criada permanece. Será mesmo verdade que somos capazes hoje em dia de estabelecer com o negro relações distintas das que ligam o senhor ao seu criado?

E é neste pormenor – da obstinação irracional e irrefletida – que se pode rastrear algum senso de urbanidade no episódio do meliante negro submetido a linchamento público, mediante, inclusive, vasta justificativa pseudosociológica. A naturalização do fato, sua banalização cotidiana, enfim, confirma – sempre por vias abjetas e escusas – filigranas demagógicas da famigerada “democracia racial”: a sociedade vigia e pune quem é digno de castigo, quer branco, quer negro. Embora todos saibamos, dentre nós, quem mormente é, e deverá ser, excluído, mantido submisso. E sob controle.

Busquemos uma razão, no rastro de Mbembe (2014, p. 11): “Funcionando simultaneamente como categoria originária, material e fantasmática, a raça esteve, no decorrer dos séculos precedentes, na origem de inúmeras catástrofes, tendo sido a causa de devastações psíquicas assombrosas e de incalculáveis crimes e massacres.”

Desta forma, a razão vigente, com frequência, torna o Outro um dessemelhante, uma ameaça constante, a ser controlada. Desdenhada. Ou aniquilada.

Lembremos do tão frequente, quanto midiático, “teste” de racismo: o das duas menininhas, uma negra, outra branca, perdidas no centro urbano. Diluída no formato do entretenimento, do fait-divers, a cena racial decorre conforme o esperado: a quase unanimidade dos transeuntes acode a criança branca, que afinal está ali ocupando um lugar, uma identidade que historicamente não lhe pertence.

Como no caso das menininhas, na hipótese de branco o adolescente acorrentado e espancado, a sociedade – quer negros quer brancos –, tenderia também à imediata empatia com o pobre rapaz. É o que com frequência ocorre quando determinado tipo de injustiça acomete à identidade modelo. A branca[3]. Sob esta ótica, a questão posta é de desvio e norma: o negro, apenas um ponto fora da curva.

Em sua Crítica, Mbembe, (2014, p. 10) compreende que:

(…) o pensamento europeu sempre tendeu a abordar a identidade não em termos de pertencimento mútuo (copertencimento) a um mesmo mundo, mas antes na relação do mesmo com o mesmo, do surgimento do ser e da sua manifestação em seu ser primeiro ou, ainda, em seu próprio espelho.

Por que tanto incomoda, por exemplo, uma propaganda de cosméticos, vez ou outra, protagonizada por uma família classe média negra?[4] A quem desconforta, senão à certa elite e à alguma patuleia brancas, que – neste caso específico – vociferaram o mimimi dos vitimizados? Admitindo que a sobreposição de uma etnia à outra é, efetivamente, ato racial – vez que só havia negros no comercial –, houve quem se utilizasse da equivocada, e renitente, expressão “racismo inverso”.

Como se o ato racista legítimo fosse algo exclusivo do branco. Um privilégio. De casta.

O que, afinal, inquieta e afronta na representação de uma família negra em situação de igualdade, ocupando um lugar estético e social compatível às elites raciais? Assusta a ideia da compatibilidade, da paridade no estamento social? A hipótese de perda, ou mesmo divisão de privilégios? Motivo porque não se registram manifestações sociais idênticas para o protagonismo negro quando na pele do escravizado, do flagelado, do traficante, do presidiário, do pé-de-chinelo, do desdentado, do desdenhado. Representando sempre latente ameaça, convém mantê-lo no lugar social em que, historicamente, se mantém.

A Crítica da razão negra levanta e esquenta a questão cromática que desconcerta a razão branca:

A que se deve então esse delírio e quais as suas manifestações mais elementares? Primeiro, deve-se ao fato de o negro ser este (ou então aquele) que vemos quando nada se vê, quando nada compreendemos e, sobretudo, quando nada queremos compreender. Onde quer que apareça, o negro desencadeia dinâmicas passionais e provoca uma exuberância irracional que invariavelmente abala o próprio sistema racional (Mbembe, 2014, p. 11).

Exemplo similar se viu em outra propaganda, cuja narrativa apresenta uma família branca que, no Natal, doa ceia a família menos favorecida socialmente[5]. E negra. Enquanto no comercial do perfume o antagonismo cor x classe se deu numa só família – motivo da celeuma racial –, neste caso há uma polarização de classe e cor em famílias distintas. E, logo, o ajuste de classe se faz pela cor. Ou vice-versa.

Ainda reverberam as questões: e a simulação contrária, de uma família classe média negra doando a ceia a outra, menos favorecida?. E branca? Neste caso, qual seria o clamor dos vitimizados? O fato é que, conforme vimos afirmando, independente da classe social, o branco se reconhece, e se autoproclama superior, por intermédio dos mecanismos ideológicos historicamente a sua disposição. É norma. Desta forma, nem coletiva, tampouco individualmente se consegue equacionar bem a questão: de quem a responsabilidade pelos ranços e resquícios do escravismo?

Mbembe (2014, p. 15, 16) reitera a existência de um sistema formador de subalternidades: “Desde logo, os riscos sistemáticos aos quais os escravos negros foram expostos durante o primeiro capitalismo constituem agora, se não a norma, pelo menos o quinhão de todas as humanidades subalternas.”

O imaginário coletivo tende a reproduzir um padrão de comportamento para o negro; este, se espelha, mas não se vê no espelho. Como resultado, resta a absorção do que pertence ao universo do Outro.

De acordo com Mbembe (2014, p. 19), sob esta perspectiva, o negro vive prisioneiro da própria aparência. Sempre inadequado, enfim:

(…) esse termo (negro) foi inventado para significar exclusão, embrutecimento e degradação, ou seja, um limite sempre conjurado e abominado. Humilhado e profundamente desonrado, o negro é, na ordem da modernidade, o único de todos os humanos cuja carne foi transformada em coisa e o espírito em mercadoria (…)

Se, no caso da propaganda do perfume, o incômodo residia na classe social da família, em seu comportamento excessivo aos estereótipos da negritude, no episódio das bananas oferecidas a funcionários em pleno Dia da Consciência negra[6]– a título de deboche! –, a classe social dos entregadores não figurou, necessariamente, como fator preponderante. Há bilionárias contas bancárias no mundo do esporte, por exemplo, que, com frequência, sofrem este tipo de constrangimento. E quem oferece bananas, nestes casos, são cidadãos, em tese, inferiores economicamente. Mas brancos, provavelmente. Ainda uma vez, a cor sobrepondo-se à classe social.

Na visão do pensador camaronês (2014, p. 11):

Ao reduzir o corpo e o ser vivo a uma questão de aparência, de pele e de cor, outorgando à pele e à cor o estatuto de uma ficção de cariz biológico, os mundos euro-americanos em particular fizeram do negro e da raça duas versões de uma única e mesma figura: a da loucura codificada.

Viver sob pele negra, a partir do advento da escravatura, equivale, pois, a experimentar – e não apenas metaforicamente – o “calabouço das aparências” (Mbembe, 2014, p. 12).

4

Uma apresentadora de TV (branca) apresenta em rede suas babás (negras)[7]; e, ao primeiro mimimi – acusada de racismo –, justifica-se mediante a mais secular, e elementar, das evasivas de raça e classe: as negras são bem tratadas, bem remuneradas, e comem na mesa da casa. Há ato racial na cena de ostentação involucrada em episódio – aparentemente – tão comezinho e banal? De onde vem a naturalização do ato e de toda a narrativa que o envolve de naturalidades? Qual sua origem? Sempre fora assim, desde às mães negras? Desde às amas-de-leite? Estima ou estimação? Casa-Grande e Senzala em secular harmonia?

Fato é que, respondidas ou não as questões acima, na condição de subjugado e subalterno, o negro será sempre bem-vindo. E visto. Afinal de contas, sua força de trabalho, desde os primórdios de nossa história econômica, vem servindo para manter o bem-estar das classes que o dominam. Daí a tensão ambígua com a qual, entre nós, o dominante se posiciona diante da premente questão de raças. Ora, uma vez que há papeis socialmente predefinidos, e a sociedade se mantém conservadora, a desigualdade é mero exagero na voz dos menos favorecidos. Para as elites raciais, adeptas da narrativa da democracia racial, no Brasil há boa convivência, sem preconceitos. Claro, enquanto os espaços se mantiverem bem definidos. E discriminados.

Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:A_Brazilian_family_in_Rio_de_Janeiro_by_Jean-Baptiste_Debret_1839.jpg. Acesso em 11 jul 2019.

Em ensaio intitulado Ser negro no Brasil, hoje, Milton Santos (2000, p. 1) ajuda a desfazer de vez o equívoco midiático do tal vitimismo, isso que – na sociologia das redes sociais – ficou conhecido hoje, no Brasil, como mimimi: “(…) a opinião pública foi, por cinco séculos, treinada para desdenhar e, mesmo, não tolerar manifestações de inconformidade, vistas como um injustificável complexo de inferioridade (…)”. À luz deste raciocínio – que vitimiza a vítima –, a relação escravista fora justa. Posto que legal. Equalizou as cores. Mas cada qual ocupando seu espaço, seu território social.

Milton Santos (2000, p. 1) acrescenta:

Os interesses cristalizados produziram convicções escravocratas arraigadas e mantêm estereótipos que ultrapassam os limites do simbólico e têm incidência sobre os demais aspectos das relações sociais. Por isso, talvez ironicamente, a ascensão, por menor que seja, dos negros na escala social sempre deu lugar a expressões veladas ou ostensivas de ressentimentos (paradoxalmente contra as vítimas).

No caso da advogada negra[8], algemada, humilhada e presa em pleno exercício da profissão, toda a “loucura codificada”, os mais “básicos ressentimentos”, “dinâmicas passionais”, “exuberância irracional” tudo ali convergiu, num só roldão, abalando as estruturas da pretensa racionalidade. E quedam ainda as renitentes questões: com a justificativa da falsa paridade – fosse branca fosse negra –, o tratamento seria, de fato, isonômico?  Racista ou não o episódio, há registros de constrangimento e humilhação pública semelhantes ocorridos com advogadas brancas em exercício da função? A partir de que sentimento, ou a partir de que lugar a sociedade faz (re)produzir historicamente tais cenas, senão do lugar da supremacia? A questão, que era, literalmente, jurídica, virou apenas mais um fait divers.

Na compreensão de Santos (2000, p. 4): “(…) no Brasil, o debate sobre os negros é prisioneiro de uma ética enviesada. E esta seria mais uma manifestação da ambiguidade a que já nos referimos, cuja primeira consequência é esvaziar o debate de sua gravidade e de seu conteúdo nacional.”

Conforme se constata, o lugar do negro, neste contexto, não se define socialmente, a despeito de sua mobilidade na pirâmide social. Milton Santos (2000, p. 5) nos ajuda a concluir:

Ser negro no Brasil é, pois, com frequência, ser objeto de um olhar enviesado. A chamada boa sociedade parece considerar que há um lugar predeterminado, lá em baixo, para os negros e assim tranquilamente se comporta. Logo, tanto é incômodo haver permanecido na base da pirâmide social quanto haver subido na vida.

Mediante o reconhecimento de que há “espaços que mandam” e “espaços que obedecem”, e partindo da básica distinção que considera o território um termo político para definir o espaço de um país, uma pergunta mais ainda resta: em que outro território urbano, por exemplo, um guarda-chuva seria confundido com um fuzil,[9] que não fosse na periferia, na quebrada, na favela? A partir de que olhar turvo e enviesado um jovem negro – a menos – assim resulta sumariamente fuzilado? Como?, por quem?, por quê?, para quê?

Santos (2000, p. 02), esboça o rumo de uma resposta: “(…) ser negro no Brasil o que é? Talvez seja esse um dos traços marcantes dessa problemática: a hipocrisia permanente, resultado de uma ordem racial cuja definição é, desde a base, viciada. Ser negro no Brasil é frequentemente ser objeto de um olhar vesgo e ambíguo.”

No vigor de uma necropolítica (Mbembe, 2018), foi-se estabelecendo a territorialização da violência e expandindo a política do extermínio ao redor das zonas periféricas do mundo.

Enquanto política de morte, por conseguinte, a necropolítica visa sempre restringir, retirar o espaço do cidadão menor. Quer seja menor na escala social, quer seja menor na idade. Afinal, o famigerado “de menor” é apenas um menor de idade que, na escala social, é bem menor do que outros menores. Brancos.

É sabido, pois, que forças militarizadas e policias possuem códigos de conduta, adornados por jargões. Na cidade do Rio de janeiro, por exemplo, um agente da lei é capaz de distinguir um “cidadão” de um elemento considerado “cor padrão” (Ramos; Musumeci, 2005).

Logo, havendo um jovem branco e um negro no mesmo território, sabe-se de antemão quem o suspeito. Adolescentes negros (ou quase) são “cor padrão” na ótica vesga e enviesado do desvio social. Afinal, mesmo dentro da lógica do slogan “bandido bom é bandido morto”, o imaginário coletivo recusa-se a cogitar morto, crivado de balas e humilhado em praça pública o bom bandido de “colarinho branco”. Por exemplo.

E, de acordo com Santos (2000, p. 03), tudo passa pelo corpo:

No Brasil, onde a cidadania é, geralmente, mutilada, o caso dos negros é emblemático. Os interesses cristalizados, que produziram convicções escravocratas arraigadas, mantêm os estereótipos, que não ficam no limite do simbólico, incidindo sobre os demais aspectos das relações sociais. Na esfera pública, o corpo acaba por ter um peso maior do que o espírito na formação da socialidade e da sociabilidade […]

O corpo. A aparência. A cor: mancha indelével a demarcar, identificar e discriminar negativamente, de cara, o indivíduo. A ostensiva corporeidade: a própria identidade sendo constantemente avaliada pelo viés do dissenso.

Retomando-se aqui a ideia do devir-negro do mundo, de Mbembe (2014, p. 21):

Não persistirá ele próprio a se reconhecer apenas pela e na diferença? Não estará convencido de ser habitado por um duplo, uma entidade estrangeira que o impede de se conhecer a si mesmo? Não vivenciará seu mundo como um definido pela perda e pela cisão e não nutrirá o sonho do regresso a uma identidade consigo mesmo, que regride ao modo da essencialidade pura e, por isso mesmo, muitas vezes, do que lhe é dessemelhante?

A despeito disto, nem todos em nossa controversa sociedade reconhecem resquícios de escravidão em episódios tão esparsos – e tão cotidianos – como os que acima se recompilou.

Aquele quase adolescente aluno negro, em seu drama identitário, sequer mensura se individualmente sobreviverá às estatísticas da necropolítica. Tampouco qual o devir, na sucessão dos tempos, daqueles contemporâneos seus que carregam na pele o tom da sua cor.

Fonte: https://gz.diarioliberdade.org/quadrinhos/category/3-carlos-latuff.html?start=60. Acesso em 11 jul 2019.

A crítica da razão negra (2014, p. 20-21) – repleta de humanismo – aposta na ponderação final:

Se, além disso, no meio dessa tormenta, o negro conseguir de fato sobreviver àqueles que o inventaram e se, numa dessas reviravoltas cujo segredo é guardado pela história, toda a humanidade subalterna se tornasse efetivamente negra, que riscos acarretaria um tal devir-negro do mundo à promessa de liberdade e igualdade universais da qual o termo negro foi a marca patente no decorrer da era moderna?

A despeito do vigoroso esforço humanístico de Stuart Hall, Milton Santos e Achiles Mbembe na busca por questionar e equacionar o devir do negro por vias da razão, há quem viva – os adeptos da necropolítica – à espera da Redenção de Cam.[10] Ainda que se tenham que admitir, para isso, práticas de Estado menos ortodoxas do que a simples miscigenação.


­­­* Lucio Valentim é doutor em Letras Vernáculas. Pós-doutorando e pesquisador visitante do PACC/UFRJ. Autor do livro de contos Memórias Pústulas (2012). Entre suas publicações destacam-se:  “Poética e Ritmo da Música Popular Brasileira”, Revista Agália (Espanha/2015); “O galego no léxico de Rosa: veredas”, Revista Gallæcia. Estudos de lingüística portuguesa e galega (Espanha/2017). Colunista semanal “Botafogo na Literatura”: site http://curtabotafogo.com.

Referências

HALL, Stuart. A identidade cultural na pósmodernidade. 10ª ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.

MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. 1. ed., Lisboa: Antígona, 2014.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. 1ª ed. N-1 edições, 2018.

RAMOS, Silvia e MUSUMECI, Leonarda (Coord.). Elemento suspeito: abordagem policial, estereótipos raciais e percepções da discriminação na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

SANTOS, Milton e SILVEIRA, Ma Laura. O Brasil: território e sociedade no início do século XXI. 9ª ed, Rio de janeiro: Record, 2006.

SANTOS, Milton. Ser negro no Brasil, hoje. In: SANTOS, Milton. O país distorcido: o Brasil, a globalização e a cidadania. São Paulo: Publifolha, 2000.

Notas

[1] Referência à canção Haiti, de Gil e Caetano: “…a fila de soldados, quase todos pretos/Dando porrada na nuca de malandros pretos/De ladrões mulatos e outros quase brancos/Tratados como pretos/Só pra mostrar aos outros quase pretos/(E são quase todos pretos)/E aos quase brancos pobres como pretos/Como é que pretos, pobres e mulatos/E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados…” No Brasil da miscigenação, onde japoneses, chineses, libaneses e similares são considerados brancos, o Censo (Disponível em: https://ww2.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/04062004pmecoreshtml.shtm), por sua natureza autodeclarativa, mais confunde do que esclarece. Certo é que poucos, entre nós, podem ser efetivamente considerados brancos. Em contrapartida, muitos, na pele, são imediatamente identificados negros. Logo, neste texto, ao utilizarmos os termos branco/quase branco estaremos nos referindo – excetuando-se o índio –, ao não-negro.

[2] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/02/1407239-adolescente-e-agredido-a-pauladas-e-acorrentado-nu-a-poste-na-zona-sul-do-rio.shtml Acesso em: 21 jan. 2019.

[3] Vide o caso da família de mendigos brancos: https://www.youtube.com/watch?v=BQ7OEy6QmKs

[4] Disponível em: https://exame.abril.com.br/marketing/o-boticario-poe-familia-negra-em-comercial-e-os-racistas-não gostaram/ Acesso em: 21 jan. 2019.

[5] Disponível em: https://www.revistaforum.com.br/comercial-onde-chester-e-doado-a-familia-negra-causa-indignacao-na-internet/ Acesso em: 21 jan. 2019.

[6] Disponível em: https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/gerente-oferece-bananas-a-funcionarios-negros-no-dia-da-consciencia-negra-e-e-preso/ Acesso em: 21 jan. 2019.

[7] Disponível em: https://odia.ig.com.br/_conteudo/diversao/celebridades/2015-08-04/fernanda-lima-publica-foto-de-babas-e-e-chamada-de-sinha-em-rede-social.html Acesso em: 21 jan. 2019.

[8] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/09/valeria-foi-algemada-em-um-conflito-entre-dois-advogados-afirma-juiz.shtml Acesso em: 21 jan. 2019.

[9] Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/09/19/politica/1537367458_048104.html Acesso em: 21 jan. 2019.

[10]Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/A_Reden%C3%A7%C3%A3o_de_Cam#/media/File:Reden%C3%A7%C3%A3o.jpg. Acesso em: 21 jan. 2019.

LÍNGUA E PODER NO SISTEMA EDUCATIVO COLONIAL, EM ARNALDO SANTOS

Resumo: O presente artigo pretende discutir o papel da língua na definição das desigualdades sociais e raciais, dentro e fora do ambiente escolar de Luanda, durante a época colonial, através da análise dos contos “A menina Vitória” e “O velho Pedro”, escritos por Arnaldo Santos e publicados na coletânea Quinaxixe em 1965. Nessas narrativas, a personagem Vitória, uma professora mulata que se comporta à maneira dos portugueses, contrapõe-se a Pedro, um médium que mora no musseque e que possui habilidades curativas extraordinárias, pela função educativa que esses adquirem na narrativa, além das diferentes metodologias didáticas adotadas, demonstrando as tensões culturais e sociais na cidade de Luanda durante a colonização portuguesa. Ademais, a descrição e a caraterização destes personagens, feitas através de uma linguagem polifônica que inclui termos quimbundos num texto maioritariamente escrito em português, mas na sua variedade angolana, demonstra as conexões entre língua e poder na sociedade luandense segundo a percepção do autor.

Palavras-chave: literatura angolana; Arnaldo Santos; educação; assimilados; quimbundo; língua.

Abstract: The aim of the present paper is to discuss the role of language in the definition of the racial and social inequalities, inside and outside the school environment of Luanda during colonial time, by analysing Arnaldo Santos’s short stories “A menina Vitória” and “O velho Pedro”, belonging to the collection of nine short stories titled Quinaxixe and published in 1965. In the above stories, Vitória, a mixed-race teacher who acts like a Portuguese, places herself in contraposition against Pedro, an old sorcerer who lives in the musseque (slum) and has extraordinary healing powers, due to the educative function that both characters acquire in the narrative, besides the different methodologies adopted, hence showing the cultural tensions occurring in Luanda during the Portuguese colonisation. In addition, the description and characterisation of the above personages, done through a polyphonic language the blends Kimbundo terms within a Portuguese text, in its Angolan variety, demonstrates the connections between language and power in the society of Luanda, according to the author.

Keywords: Angolan literature; Arnaldo Santos; education; assimilation, kimbundo; language.

Introdução

O presente artigo pretende discutir o papel da língua na definição das desigualdades sociais e raciais, dentro e fora do ambiente escolar em Luanda na época do colonialismo, nos contos “A menina Vitória” e “O velho Pedro”, escritos por Arnaldo Santos e publicados na coletânea Quinaxixe em 1965. Nas narrativas, a personagem Vitória, uma professora mulata que se comporta à maneira dos portugueses, contrapõe-se a Pedro, um médium que mora no musseque e possuidor de habilidades curativas extraordinárias, pela função educadora que estes personagens adquirem na narrativa e pelas diferentes metodologias didáticas adotadas, ressaltando as tensões culturais e sociais na cidade de Luanda durante a colonização portuguesa. Ademais, a descrição e a caraterização destes personagens, feitas através de uma linguagem polifônica que inclui termos quimbundos num texto escrito principalmente em português, na sua variedade angolana, contribui para a caraterização dos sujeitos, mas também demonstra as conexões entre língua e poder na sociedade luandense, segundo a percepção do autor.

Capa do livro Quinaxixe de Arnaldo Santos
Capa do livro Quinaxixe de Arnaldo Santos (http://livrosultramarguerracolonial.blogspot.com/2017/05/angola-literatura-quinaxixe-de-arnaldo.html)

Quinaxixe é uma coletânea de nove contos que retratam a vida dos moradores do bairro homônimo de Luanda, maioritariamente povoado pelos nativos negros e mestiços nascidos em Angola, os quais se confrontam constantemente com o poder colonial português em todos os aspetos da vida privada e social. A conexão entre o autor e este lugar geográfico é muito significativo, sendo que Arnaldo Santos escreveu esta obra inspirado pelos eventos que caraterizaram a própria infância no bairro mencionado. Dando voz aos marginalizados da sociedade luandense, o autor usa uma linguagem impregnada de vocábulos e expressões que vêm do quimbundo para sustentar um discurso anticolonial e que discute as tensões sociais e culturais da própria terra.

Como é noto, a colonização portuguesa impôs a própria cultura e a própria língua na administração e na educação em Angola, obrigando os nativos falantes das línguas bantu a comunicarem somente em português e a adquirirem os costumes dos colonizadores, em detrimento da própria identidade linguística e cultural. Neste sentido, a obra de Santos descreve as emoções dos personagens perante às formas opressivas de supressão das culturas locais, para questionar e redefinir as múltiplas culturas dos angolanos colonizados e para criticar o regime colonial, em nome da liberdade de expressão. De fato, como veremos na análise dos contos “A menina Vitória” e “O velho Pedro”, as distinções sociais e raciais são expressas através de uma série de escolhas linguísticas que remarcam a subalternidade das culturas nativas bantu na sociedade colonial instaurada pelos portugueses, onde a categoria social dos assimilados toma uma função relevante, por suportar a superioridade racial e social dos colonizadores. Na sua obra, Arnaldo Santos revoca constantemente os assimilados para levantar um debate ideológico, criticando o processo de absorção da cultura portuguesa em Angola.

Devido ao desejo de “civilizar” os nativos africanos, a legislatura e o sistema educativo angolanos da época colonial tinham como objetivo o “branqueamento” da sociedade e a eliminação dos traços caracterizantes as etnias locais. Sob o ponto de vista legal, conforme o Estatuto Político, Civil e Criminal dos Indígenas das colónias portuguesas de África, retificado e aprovado em 1929, os assimilados eram todos aqueles angolanos que tinham obtido a cidadania portuguesa somente depois de terem cumpridos os requisitos necessários:  a idade mínima de 18 anos; saber falar corretamente em português; ter um emprego ou recursos que dessem a possibilidade de providenciar alguma forma de sustentamento para a pessoa e para a própria família; uma boa conduta e a aquisição dos hábitos portugueses, a nível público e privado; ter prestado serviço militar (Meneses, 2010, p. 85). A ideia fundante da política colonial portuguesa era o conceito segundo o qual os povos nativos africanos eram considerados crianças num estado primitivo da evolução humana, portanto, a assimilação da cultura dominante podia servir para eles atingirem à fase adulta (Duvpy, 1961, p. 295).

Devido à necessidade de “civilizar” os nativos negros, também as escolas angolanas refletiam essa tendência. De fato, como podemos ver ao longo da história da educação da então colônia, houve uma distinção entre brancos, assimilados e indígenas, os quais tinham acesso a uma instrução diferente, conforme a própria raça e ao próprio status social. Em 1845, foram criadas as “escolas principais de instrução primária”, onde os estudantes aprendiam a ler, escrever e contar, graças ao decreto criado por José Joaquim Falcão, ministro de Estado, da Marinha e do Ultramar, durante o reinado de D. Maria II. Essas escolas eram frequentadas pelas pessoas “evoluídas”, enquanto, para os indígenas, o Governo ainda planejava a criação de Escolas Rudimentares (Gomes, 2014, p. 2). Subsequentemente, Sá da Bandeira, ministro da Guerra e dos Negócios Estrangeiros, aprovou a portaria régia, em 1856, que estabelecia que os filhos dos potentados indígenas recebessem uma educação portuguesa, para que eles pudessem difundir esse conhecimento para o próprio povo (Liberato, 2014, p. 1006).

Na década de 1910, a política colonial da República Portuguesa impôs uma soberania branca, que teve, na personalidade de Norton de Matos (governador geral de Angola, entre 1912 e 1914, e alto-comissário entre 1921 e 1924) a expressão do dito “darwinismo social”, que previa a consolidação da raça portuguesa em Angola, ao fim de implantar uma “forma de civilização superior” (Liberato, 2014, p. 1006). Norton defendia a distinção entre a educação para os indígenas e a para os portugueses, promovendo a criação de institutos para os africanos que ensinassem a língua portuguesa, as quatro operações aritméticas e os cálculos com a moeda local, além da higiene pessoal e da limpeza do lar (Liberato, 2014, p. 1008).

Com a instauração da ditadura militar, no final dos anos 1920, o regime político autoritário, policial e corporativista era regulado por uma moral nacionalista cristã. Nos primeiros anos do Estado Novo, as escolas tinham o objetivo de transmitir um conhecimento baseado na ideologia salazarista que não permitia o desenvolvimento de um pensar crítico que pudesse comprometer o poder ditatorial (Liberato, 2014, p. 1009). Foi nesse contexto político que a instrução primária, graças ao Diploma legislativo n. 518 de 1927, foi reestruturada de forma que houvesse um plano curricular específico para os portugueses e os assimilados, por um lado, e um para os indígenas, pelo outro (Gomes, 2014, p. 3). Neste sentido, o Diploma legislativo n.º 238 de 1930, formalizou a separação dos objetivos para os dois tipos de instrução: de acordo com a dita lei, no caso dos indígenas, a educação devia servir para a civilização dos nativos, enquanto os portugueses e os assimilados beneficiavam de uma formação que os preparasse para a vida social e adulta. Esta distinção, baseada na raça, foi reforçada ulteriormente através do Acordo Missionário de 1940 e do Estatuto do Missionário de 1941 (Gomes, 2014, p. 3).

Para terminar esta breve resenha histórica, em 1964, foi fundada a Secretaria Provincial de Educação de Angola, dirigida por José Pinheiro da Silva, defensor da ideologia salazarista e da ideia de criação de uma “Angola portuguesa”, para suprimir qualquer movimento subversivo (Gomes, 2014, p. 3). No mesmo ano, o Decreto-Lei n. 43.893 reformou a educação primaria, através da difusão de um plano curricular único para todos os portugueses, conforme o sistema educacional da mãe-pátria (Gomes, 2014, p. 3).

As próximas seções do presente artigo articularão a análise dos dois contos de Arnaldo Santos, onde será possível notar uma demarcação acentuada das disparidades entre assimilados e negros, através de uma linguagem que reflete a política colonial portuguesa delineada nesta parte introdutória.

A menina Vitória

Depois de discutir brevemente as fases salientes da história da educação em Angola, esta seção enfoca-se na análise do conto de Arnaldo SantosA menina Vitória”, que é exemplar em relação à discussão das contraposições entre português e quimbundo no âmbito escolar angolano, durante a época colonial. Esta obra, de fato, denuncia a maneira em que as escolas costumavam silenciar as culturas nativas, através de um plano curricular meramente português. O ambiente escolar criado pelo autor critica e reconstrói o processo colonial de assimilação, representando as transformações culturais e sociais que o dito processo implicava, e promovendo, de forma implícita, um sentimento de resistência que defendesse o legado cultural dos nativos bantu, em nome da independência e da formação do país angolano.

O título do conto vem do nome da protagonista, Vitória, uma mulher mestiça assimilada, professora de Gigi, um menino que foi obrigado a mudar de escola por motivos higiênicos e pela baixa qualidade do ensino. O substantivo menina confere um aspeto de inocência à protagonista, apesar da atitude agressiva e da índole racista dela, que impede ao jovem estudante de se integrar na nova escola, por causa da sua raça e da sua classe social. Desta forma, a aparente bondade da professora representada no título desaparece ao longo do conto, onde encontramos vários exemplos que demonstram o caráter discriminatório de Vitória contra todos aqueles que não tivessem assimilado a cultura e a maneira de falar dos portugueses.

O conto começa apresentando Sr. Silvio Marques, o pai de Gigi, que decide transferir o próprio filho para o colégio da Bucha Beatas, uma escola mais cara, mas que, segundo este personagem, podia providenciar uma instrução melhor que pudesse formar o jovem estudante e prepará-lo para uma carreira profissional no setor público, garantindo-lhe, assim, um futuro próspero e uma condição social mais avantajada. Mas além da escola, Gigi é obrigado a mudar também de estilo de vida, evitando a companhia dos amigos do musseque que lhe poderiam afetar a fala e o comportamento.

Transferiram-no no meio do ano lectivo, para o colégio do Bucha Beatas, por causa dos piolhos da Escola 8 e da prosódia, em que os professores o achavam muito fraco. O Sr. Sílvio Marques embora pouco exigente consigo em relação à pronúncia — trocava amiúde os vv pelos bb — era no entanto muito cuidadoso a fechar as vogais. Ralhava severamente o Gigi sempre que lhe ouvisse algum desconchavo, ou então abria-lhe muito os olhos, o que significava o mesmo. Também os amigos dele aos domingos, debaixo da mulembeira e entre uma ou outra jogada de sueca, comentavam as incorrecções do Gigi. E sibilavam (alguns eram da Beira Alta) lamentando que a pronúncia do garoto se estragava, que era preciso afastá-lo da companhia dos criados e dos colegas dos musseques (Santos, 1965, p. 45).

No presente trecho o autor descreve as dificuldades dos nativos em absorver o idioma do dominador. Até o Sr. Silvio Marques achava complicado pronunciar a letra “v”, devido à influência do quimbundo, sua língua-mãe. Apesar disto, o homem repreendia Gigi caso cometesse algum erro (desconchavo), que precisava ser corrigido imediatamente. Além do pai, também os amigos dele criticavam asperamente a maneira do menino e sugeriam para que ele se afastasse dos rapazes do musseque, ao fim de “limpar” a própria pronunciação. Embora seja evidente, desde o princípio da estória, o comportamento depreciativo dos personagens em relação à língua e a cultura dos nativos, o autor quer criticar o processo de “branqueamento” que a assimilação pressupõe, condenando, implicitamente, todos aqueles que anelam ser portugueses, para se sentirem superiores aos indígenas e para beneficiarem de privilégios que lhes eram recusados.

Ademais, graças às escolhas linguísticas usadas pelo autor, o conto quer transmitir a sensação de estranhamento e de deslocamento dos nativos dentro do espaço colonial. Por exemplo, a árvore local mencionada acima, a mulembeira, onde os amigos de Silvio Marques jogam, por um lado representa a identidade dos povos autóctones pela função social e espiritual que esta planta carrega, adquirindo um valor simbólico de resistência e de afirmação da própria identidade (Miranda, 2009, sem página), enraizada na terra desde um tempo ancestral e reforçando a visão holística das culturas bantu que se baseiam na harmonia do homem com a natureza e com o mundo inteiro (Costa, 2009, sem página). Por outro lado, a dita planta sofre com as mudanças histórica e cultural que se verificam em Angola, na época da publicação da obra, por virar o lugar onde os personagens jogam à sueca, palavra que claramente demonstra uma marcada influência colonial também nas atividades lúdicas dos residentes, inspirados por uma cultura alheia que se impõe sobre os jogos tradicionais (Santos, 2017, p. 44).

Outro termo de origem quimbunda que manifesta essa sensação de deslocamento é representado pela palavra musseque, o típico bairro com chão arenoso onde moram os marginalizados de Luanda, que aqui indica o lugar de onde Gigi tem que se afastar, porque os moradores dessa área influenciam  negativamente o menino, prejudicando-lhe um futuro como assimilado, o sonho dos pais do menino e a aspiração dos demais naquela época.

Depois da introdução providenciada acima, Arnaldo Santos apresenta a personagem de Vitória, que dá nome ao conto. Ela representa a classe dos assimilados e do sistema educacional colonial. Aqui, a menina é definida de mulata, palavra que, em si, demonstra a conotação racista da língua portuguesa, por derivar de mulo, sublinhando, de forma negativa, o hibridismo racial da personagem (Menocci, 2018, p. 4). De todas as maneiras, a jovem mulher tenta aparecer e comportar-se como os portugueses, escondendo, assim, a própria descendência africana. De fato, a maquilhagem branca (pó de arroz) que a protagonista põe frequentemente na cara pode ser vista como uma forma de cobrir a própria cor natural, criando uma “máscara”, na tentativa de disfarçar a identidade real (Menocci, 2018, p. 4). Ademais, o gesto de tocar o cabelo loiro de um dos estudantes sentados na primeira fila demonstra a ambição da mulher em ser o que não é, depreciando tudo o que seja associado à fisionomia dos nativos negros, considerados um padrão de que é preciso afastar-se. Desta forma, Vitória tenta replicar a cultura dominante europeia, reproduzindo os mesmo mecanismos de opressão dos colonizadores. Ela não parece ter ressentimento pelas atrocidades cometidas pelos portugueses, que exploraram e submeteram os nativos de África, e reforça a posição dos dominadores, seja a nível físico, seja social, silenciando qualquer pessoa que expressasse livremente a própria identidade.

A professora da 3.a classe, a menina Vitória, era uma mulatinha fresca e muito empoada, que tinha tirado o curso na Metrópole. Renovava o pó de arroz nas faces sempre que tivesse um momento livre, e durante as aulas gostava de mergulhar os dedos nos cabelos alourados e sedosos de uns meninos que se sentavam nas primeiras filas. Olhou-o com desconfiança e depois do primeiro exame mandou-o para uma carteira do fundo da aula, junto de um menino com cara de puto, a quem chamava cafuzo, por ser muito escuro. Mas o menino cafuzo chamava-se Matoso, o que, de início, pareceu ao Gigi insuficiente para justificar o seu mutismo. Vergado na cadeira, não tirava os olhos do livro, nem mesmo quando a menina Vitória se referia a ele, quase sempre com desprezo, ao recriminar outro aluno. «Pareces o Matoso a falar…», «Sujas a bata como o Matoso…», «Cheiras a Matoso…», — e ele grudava-se cada vez mais à carteira, transido por aqueles comentários impiedosos (Santos, 1965, p. 46).

Ademais, na segunda metade de parágrafo, vemos o comportamento suspeitoso da menina, que afasta Gigi até mandá-lo para o fundo da sala, para ele se sentar ao lado de Matoso, alcunhado de cafuzo, devido à cor da própria pele – no Brasil, a palavra cafuzo refere-se a todas as pessoas nascidas de pais nativos-americanos e negros, mas neste contexto, o termo é usado como depreciativo para remarcar a cor escura do menino, que é constantemente usado como referência negativa da qual é preciso afastar-se. E a atitude racista da professora é enfatizada, ainda mais, através de expressões como “Pareces o Matoso a falar…”, “Sujas a bata como o Matoso…”, “Cheiras a Matoso…”, que associam a língua dos nativos ao aspecto físico, à escassa higiene pessoal e à falta de educação, para ridiculizar, mais uma vez, os nativos africanos. Relembrando as palavras de Fanon (2008, p. 33): “O negro tem duas dimensões. Uma com seu semelhante e outra com o branco. Um negro comporta-se diferentemente com o branco e com outro negro.” Sílvio Marques e Vitória atuam um processo de autocensura muito repressivo porque a sociedade lhes impõe apagar qualquer traço do próprio ser e da própria cultura, imitando os cânones estéticos e as etiquetas socias portugueses para eles se integrarem na sociedade. Ademais, Gigi, embora se sinta próximo a Matoso, devido ao aspecto físico e à maneira de falar e de se comportar, é obrigado a tomar distância dele, a fim de se integrar na escola. Na realidade, Gigi gostaria de se expressar livremente, sem constrangimentos de nenhum tipo, mas o sistema educacional colonial não permite essa liberdade. No próximo trecho, de fato, o jovem protagonista tenta eliminar qualquer traço da própria cultura nativa para absorver aquela dos colonizadores, embora o trastorno que esta forma de censura comporte na mente do menino.

Procurava esquecer o colorido vivo das penas dos maracachões, dos gungos, dos rabos-de-junco que ele perseguia na floresta e cujo canto escutava trêmulo atrás dos muxitos, o sabor ácido dos tambarinos que colhia sedento, o suor e o cansaço das longas caminhadas pelas barrocas, emoção dos seus jogos de atreza e cassumbula. Imitava passivamente a prosa certinha do gosto da menina Vitória. Esvaziava-a das pequeninas realidades insignificantes que ele vivia, das suas emocionantes experiências de menino livre, agora proibidas e imprestáveis. (Santos, 1965, p. 48).

As memórias felizes de Gigi brincando com os pássaros da vegetação local (muxito), aqui descritos com nomes quimbundo ou português na sua variedade local (gungos, e rabos-de-junco), ou os jogos típicos de atreza e cassumbula que retratam a vida do dia-a-dia no musseque, são reprimidas pelo menino para se adequar à cultura imposta pela professora, agressiva e exigente. Neste sentido, Campos (2017) afirma que Gigi quer aderir a uma cultura que não lhe pertence, tentando apagar as memórias e as cores do seu mundo e repetindo gestos que não fazem sentido para ele, como o ato de repetir “a prosa certinha do gosto da menina Vitória”. As palavras ligadas à natureza e à cultura locais representam, aqui, a memória do jovem protagonista, simbolizando todos aqueles nativos que, durante a época da colonização, foram obrigados a apagar a própria identidade em favor da cultura dominante portuguesa. Sem esses termos tão específicos em língua quimbunda ou na variedade angolana de português, o autor não poderia explicar as memórias de Gigi, que deseja voltar para aqueles momentos felizes da própria vida, em que se sentia realmente livre. Devido à impossbilidade de escolher, o menino representa os sentimentos fragmentados de todos aqueles nativos que, durante a época colonial, não sabiam efetuar uma mediação entre a cultura própria e aquela exógena (Campos, 2017).

Depois de várias humilhações sofridas pelo jovem protagonista, o conto de Santos acaba com a enésima palmatória de Vitória que repreende o menino por ter usado, no próprio ensaio, o artigo definido para descrever um importante político colonial. Inicialmente Gigi não percebe a razão pela qual a professora quer puni-lo, sendo que ele tinha escolhido os vocábulos adequados muito atentamente, conforme às instruções dela. Contudo, os esforços feitos para não decepcionar a professora não foram suficientes para evitar essa reação tão agressiva, como podemos ver no trecho em baixo:

Olhou o caderno que ela lhe devolvera, aberto nas mãos, mas não distinguiu as letras sùbitamente misturadas. A acusação, porém, veio sem tardar, inexorável, imprevisível. Como é que ele se atrevera a tratá-lo por tu! Como é que ele tivera o arrojo de o nomear com um simples artigo definido!?
— Ouve lá.., tu julgas que ele anda sujo e roto como tu, e come funje na sanzala…?
— Não… não.., não é… — gemia o Gigi, desnorteado, tentando estancar o fluxo daquelas insinuações que ele temia. (Santos, 1965, p. 51)

A exclamação dura da menina Vitória pode ser vista como uma tentativa de denegrir o aluno, não só remarcando a sua inferioridade em nível estético (“sujo e roto como tu”), como já vimos no exemplo anterior, quando a professora ofendia Matoso, mas também em nível cultural, mencionando o prato típico angolano (funje) e a organização social tradicional das etnias ovimbundo (sanzala), para reforçar a distância cultural entre os nativos, considerados “primitivos”, e os colonizadores, urbanizados e, supostamente, mais “evoluídos”. Neste sentido, Pires Laranjeira (1995, p. 416) relembra-nos que o código etno-antropológico que emerge na literatura da época é caracterizado por lexemas e conceitos que se referem a um estilo de vida rural, dependente do setor primário, em contraposição à sociedade do consumo instaurada com o colonialismo. A dita contraposição remarca as diferenças entre natureza e urbanização, que são usadas constantemente pelos colonizadores para exercerem o próprio domínio a nível ideológico e cultural (Laranjeiras, 1995, p. 416). Este tratamento de inferioridade se reflete na palmatória de Vitória que humilha Gigi que, na impossibilidade de providenciar uma explicação adequada para justificar a própria escolha estilística (ou seja, o artigo definido antes do nome do personagem político colonial), chora e uma sensação de torpor lhe invade o corpo, até enfraquecer. O menino sente-se triste pelas lutas constantes que tem que enfrentar na nova escola e pergunta-se o porquê desses maus-tratos, desde que Vitória tem ascendência africana como ele. Em seguida, o aluno entulha o caderno e chora, sem lágrimas, com a cabeça dentro da carteira. Depois de ser agredido violentamente pela professora, os olhos do menino são, conforme à narração de Santos, “orgulhosamente” raiados de sangue, como aqueles de Matoso, porque se dá conta de não querer assimilar a cultura do colonizador, mas prefere expressar a própria identidade sem constrangimentos, representando todos os nativos que foram subjugados pelo regime colonial.

O velho Pedro

Depois de ter analisado “A menina Vitória”, passamos a examinar o conto “O velho Pedro”, a narrativa de um ancião que mora isolado numa barroca de Kinaxixi. No começo da narração, este personagem é ridicularizado pelos meninos do bairro por causa da aparência assustadora e pelo estilo de vida que não se conforma aos cânones impostos pelos colonizadores, de forma semelhante ao conto anterior. Por outro lado, contrariamente ao primeiro conto, o protagonista, Pedro, representa o legado tradicional bantu, por recusar o processo de assimilação. De fato, o homem é um médium que pratica rituais ancestrais para curar as doenças mentais e físicas dos seus pacientes, de acordo com os ditados herdados dos antepassados.

Quando os meninos do musseque jogam na rua, as mães pedem para eles terem “cuidado com o cambungú da barroca” (Santos, 1965, p. 25), um ogre típico da narrativa oral bantu, do quimbundo kimbungu (Porto Editora, online). Apesar das advertências, os jovens personagens continuam na mesma, mexendo nos objetos acumulados na caverna onde mora o velho Pedro:

Só quando chovia e porque, diziam-se, vinham cacussos na corrente, é que alguns se atreviam a enfrentar o risco da aparicao do cambungú… Se ele aparecia mesmo, silenciava no alto da barroca, magro, anguloso, como um diquixi de madeira. No rosto ossudo, os olhos redondos brilhavam febris sobre uma barba castanha. Os garotos ficavam transidos, sem reações, prensados entre aquele olhar fixo e imperativo, e o fundo vermelho do buraco (Santos, 1965, p. 26).

Musseque luandense
Musseque luandense (http://acrimararquitectura.blogspot.com/2015/03/2-parte-da-conversa-com-angela-mingas.html)

Mas um dia, o homem sai da cava e todos os meninos ficam assustados por causa do aspecto físico dele, descrito pelo autor como um diquixi de madeira, um outro monstro da tradição oral bantu que, segundo a investigação de Oliveira (2001, p. 55), vem do radical bantu kixi que pode ter vários significados, entre os quais: máscara/mascarado, feitiço, espírito/alma, monstro/antropófago, albino e anão. No presente texto, a descrição do homem feita através de uma referência explícita ao ser monstruoso da narrativa popular, confere uma conotação negativa ao homem. De fato, a descrição física fornecida pelo autor (o rosto ossudo, os olhos redondos, febris, a barba castanha) reforça os estereótipos dos médiuns, devidos aos preconceitos raciais construídos pela cultura colonial ao fim de subjugar e depreciar os dominados física e ideologicamente. Neste sentido, Hellis e Ter Haar (2004, p. 94) afirmam que as práticas rituais tradicionais são consideradas de malignas por três razões principais: primeiramente, a demonização das ditas práticas pelos missionários que evangelizaram o continente africano; por conseguinte, a difusão de outras crenças entre as novas gerações determinou uma diminuição dos guias espirituais tradicionais; ademais, como o mundo espiritual é visto como uma reflexão daquilo material, não surpreende que espelhe as condições adversas em que se encontram os nativos na vida cotidiana. A posição destes acadêmicos podem servir de explicação para entender o comportamentos dos meninos do musseque, que consideravam o homem de um ser maligno por causa da sua aparência. Ademais, os jovens protagonistas não paravam de desafiar o velho Pedro, como podemos ver no trecho seguinte.

Em certa ocasião teve uma explosão nasal para o Zeca e o Neco, que esgaravatavam distraìdamente no fundo da barroca, uns imbricados monturos de coisinhas bambas. «Fora chafurdos!». — Sob o impacto daquele grito, eles difìcilmente perceberam a separação dos termos, porque os sons se juntaram nos seus ouvidos tensos, enrolados uns nos outros, formando um volume único.
No dia seguinte o Zeca, porque a mãe dele, a D. Brízida, andara no liceu, explicou com arrogância e ódio que «chanfurdos» era uma quimbundisse do velho negro. O Neco concordou, vingativamente, embora não reconhecesse absolutamente perfeita semelhança entre aquela palavra e os sons que lhe tinham ficado gravados nos ouvidos. Mas enfim, devia ser quimbundisse, pois também o criado dele, o Catuto, metia muitas palavras na conversa, que a mãe lhe proibia de imitar, porque eram de quimbundo. Além disso aquele andava sempre mais roto e sujo que o criado dele, e nem se lavava! (Santos, 1965, p. 26-27)

Zeca e Neco, dois companheiros de escola e vizinhos de casa, costumam ir à caverna do homem para mexerem nos objetos acumulados pelo ancião, sem mostrar algum respeito pelas propriedades dele. Por isso, um dia, Pedro grita “fora chafurdos!” para que os meninos saiam da caverna e parem de perturbar. A exclamação do homem suscita perplexidade na mente dos jovens protagonistas, os quais não percebem a palavra proferida; de fato, eles pensam que o homem tenha dito chanfurdo e, por isso, afirmam que se trata de uma quimbundisse. Desta forma, o velho Pedro é considerado iliterato e incapaz de falar um bom português. Por conseguinte, essa presumida falta de escolaridade, segundo os meninos, é sinônimo também de falta de higiene pessoal e de elegância. Assim, constatamos que a língua, mais uma vez, toma um papel importante na produção literária de Santos, por descrever as distinções socioculturais entre os nativos quimbundo e os portugueses, através de imagens estereotipadas da cultura local e das práticas espirituais de origem bantu que colocam os colonizados num nível inferior respeito aos colonizadores. Tudo isto é, de fato, reforçado graças à comparação entre o ancião e o Catuto, que aqui é usado como referência negativa, de forma parecida ao Matoso do conto anterior; quem fala quimbundo é pobre e sujo, segundo o menino Zeca.

Contudo, ao longo da estória reparamos que os jovens protagonistas mudam gradativamente a própria opinião em relação ao velho Pedro, o qual não é assim tão mau como eles acreditavam antes.

Às vezes regressava com o Zeca que também tinha sido castigado com o velho e que lhe falava dos novos companheiros, pretos e mulatos, graúdos e bassuleiros que passavam os intervalos a lutar. Mas do cambungú nada! Parece que tinha desaparecido. Falavam de um Sr. Pedro, brando, que ensinava a ler na cartilha e soletrava pacientemente o b a – ba, como se falasse com as almas dos meninos traquinas. «Diz também umas palavras difíceis», cochichou um dia o Zeca muito sério, enquanto entrelaçava uma cadeirinha de capim (Santos, 1965, p. 29).

Esta citação descreve uma cena em que Zeca compartilha a experiência vivida pela irmã Juju, a qual, visitou o velho Pedro para resolver o próprio distúrbio da linguagem, adquirido depois de ter encontrado o cambungú, trazendo consigo “uma cartilha e uma pedra-negra” (Santos, 1965, 28). Graças à sabedoria do médium, a mulher supera o próprio problema e volta a ser feliz novamente. De fato, Pedro, aplicando os conhecimentos herdados pelos antepassados, consegue solucionar as dificuldades da mulher ensinando-lhe a ler e soletrando diligentemente, através de rituais ancestrais que, ainda na época da narração, demonstram certa validade. Desta forma, o médium demonstra uma índole bondosa, providenciando o próprio saber para o bem da comunidade. Ademais, reparamos uma contraposição entre a imagem negativa inculcada pelos colonizadores a respeito das culturas locais, na primeira parte da narração, enquanto, na segunda parte, o autor ressalta a atitude positiva dos nativos e dos mestiços não assimilados no que se refere às práticas rituais ancestrais que, desde tempos imemoriais, ajudam para a salvação espiritual e física do ser humano.

Ao longo da estória, os meninos do musseque adquirem maior consciência do fato que o velho Pedro não é maléfico como parecia no começo do conto. No trecho final da narração, vemos, de fato, que Neco decide deixar de lado os preconceitos e a raiva contra o velho homem para encontrá-lo e ver se é verdadeiramente capaz de afastar o azar do bairro:

Subitamente ele voltou-se e o Neco baixou os olhos com medo de enfrentar aquele rosto de diquixi, que ele temia. Viu depois a sua sombra caminhar e parar junto de si. O coração pulsava-lhe desordenadamente e ele mal sentiu que uma mão negra e enrugada se pusara no seu ombro. Os olhos redondos do Sr. Pedro brilhavam febris, mas ele sorria. O Neco estremeceu. E no acordo que os seus sorrisos selaram ia nascer o Sr. Pedro, e desaparecia o cambungu das barrocas (Santos, 1965, p. 32).

Este parágrafo mostra os sentimentos contrastantes do jovem personagem a respeito do médium e das crenças tradicionais que ele representa. O velho Pedro ainda tem um aspecto assustador mas, ao aproximar-se a Neco, a aparência maldosa esvanece. O menino cai em transe depois de ter olhado para o sorriso do ancião, que parecia um diquixi mas, após ter aberto os olhos, o “cambungú das barrocas” desaparece para sempre. Apesar dos preconceitos negativos contra a pessoa de Pedro, o poder das práticas espirituais nativas demostra a sua validade, pela função “evangélica” que adquire, favorecendo o regresso às raízes bantu, partindo da perspectiva colonial cristã imposta pelo poder colonial.

Conclusões

Para terminar, a análise linguística dos contos “A menina Vitória” e “O velho Pedro” de Arnaldo Santos, demonstrou que através de determinadas escolhas lexicais entre quimbundo e português operadas pelo autor, os dois protagonistas se colocam em contraposição dentro da coletânea Quinaxixe por várias razões.

Primeiramente, a menina Vitória parece ser uma personagem positiva, mas na realidade demonstra o seu lado maligno. De fato, ela representa todos os assimilados que recusam a própria identidade racial e cultural para assumir aquelas do colonizador de uma forma agressiva, que replica os métodos usados pelos colonizadores. Como vimos na análise desenvolvida ao longo do presente artigo, a professora aspira a ser portuguesa, comporta-se como tal e denigre Gigi and Matoso através de uma linguagem agressiva, para se afastar deles, considerando-se de “superior”. Por outro lado, o velho Pedro é descrito como um monstro no início do conto, sendo visto pelos meninos do musseque como um dos ogres dos contos tradicionais de origem bantu, mas, no fim da narração, demonstra o seu lado bondoso, por usar a própria sabedoria ancestral para ajudar e cuidar dos membros da comunidade. A sua aparência maléfica esvanece, quando o homem apoia a própria mão no ombro de Neco, estabelecendo, assim, uma relação de confiança e de compreensão mútua.

Ademais, Vitória ensina a língua e a cultura portuguesas de forma repressiva, e espera que os seus alunos mudem a própria maneira de falar e de pensar, seguindo os ditados dos colonizadores. Neste contexto, a língua do colonizador torna-se a única forma de comunicação possível, de acordo com as políticas postas em ato na época da publicação do livro de Santos. Por outro lado, Pedro consegue resolver a distúrbio da fala de Juju, devido a uma trauma que sofreu por ter encontrado o cambungú, o monstro da narrativa tradicional bantu. Depois da visita do velho Pedro, a mulher consegue falar normalmente e supera o transtorno de ansiedade que tinha. O médium, falando com as palavras dos ancestrais, transmite, assim, um conhecimento antigo para o bem da comunidade inteira, contrariamente aos estereótipos criados pelos colonizadores.

Além disso, o conto “A menina Vitória” termina negativamente, com a palmatória de Gigi que é humilhado pela professora e pelos colegas da turma. Contudo, o jovem protagonista aprende a ser orgulhoso pela própria identidade, apesar dos sofrimentos que esta escolha lhe possa causar. Por outro lado, o fim de “O velho Pedro” é positivo, de fato o monstro dos contos tradicionais bantu desaparece para sempre e o ancião mostra a própria índole benévola pela capacidade de curar todos os problemas de saúde dos membros da comunidade através das habilidades mediúnica que aprendeu com os ancestrais. O protagonista desta narrativa representa o legado das culturas bantu que está por desaparecer, devido às mudanças socioculturais em ato, enquanto os meninos do musseque personificam o futuro da sociedade angolana que, na época, não era ainda um país autônomo. Contrapondo o antigo com o novo, a língua quimbunda com a portuguesa, o autor consegue representar duas realidades distintas, a do dominante e a do dominado, de uma forma que subverte a hierarquia estabelecida pelo poder colonial, considerado o fim positivo deste conto.

Para terminar, o presente artigo ressaltou algumas das estratégias lexicais adotadas por Arnaldo Santos para descrever a própria sociedade e criticar o regime colonial, através de uma linguagem que incorpora termos de origem quimbunda num texto maioritariamente português, mas na sua variedade angolana, representando, assim, a maneira de falar dos marginalizados da sociedade luandense, na época da publicação do livro Quinaxixe. Em detalhe, Santos coloca no centro da própria narrativa a figura dos assimilados, que se põem numa posição controversa por recusar a própria identidade e abranger a língua e a cultura do opressor, apesar das atrocidades do colonialismo, que provocaram alienação e intolerância. Representando a sociedade luandense, dentro e fora do ambiente escolar, através de um amplo leque de registros linguísticos, o autor consegue discutir as tensões da própria sociedade que questiona a identidade dos angolanos e deseja um futuro melhor e próspero para o futuro país angolano, em nome da liberdade de expressão.


*Vincenzo Cammarata é pesquisador de doutorado do King’s College London, Departamento SPLAS, Reino Unido. A sua área de investigação se baseia na análise linguística e literária relativamente à tradição oral de origem bantu, na narrativa curta pós-colonial angolana. Vincenzo é mestre em Tradução Audiovisual (Sheffield University, Reino Unido) e licenciado em Mediação Linguística paras as Instituições, as Empresas e o Comércio (Università della Tuscia, Itália).

Referências

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A TRAJETÓRIA DO NEGRO PÓS-ABOLIÇÃO EM DIÁRIO DE BITITA

Resumo: Carolina Maria de Jesus ficou nacional e internacionalmente conhecida após a publicação de seu primeiro diário, Quarto de despejo: diário de uma favelada, em 1960, em que retratava sua rotina miserável no ambiente da favela e sua luta diária para se sustentar, bem como alimentar os três filhos. Neste artigo, procuro estabelecer uma relação entre a ideologia escravocrata de depreciação do negro e a trajetória dos negros que nasceram pós-abolição, por meio dos relatos de Carolina Maria de Jesus em seu livro de memórias publicado postumamente, Diário de Bitita (1986), no qual relata sua trajetória de vida desde a infância até a chegada a São Paulo, denunciando as dificuldades enfrentadas para sobreviver em um mundo feito pelos brancos e para eles.

Palavras-chave: trajetória; negro; Carolina Maria de Jesus.

Abstract: Carolina Maria de Jesus became nationally and internationally known after the publication of her first diary: Child of the dark: the diary of Carolina Maria de Jesus, in 1960, in which she portrayed her miserable routine in the favela environment and her daily struggle to support herself, as well as food the three children. In this article, I intend to establish a relationship between the slave-owning ideology of the depreciation of the black people and the trajectory of the blacks that were born after the abolition. It will be used as study object the accounts of Carolina Maria de Jesus in his posthumously published memoir Diário de Bitita (1986) in which Carolina recounts his life trajectory from childhood until her arrival in São Paulo, denouncing the difficulties faced in surviving in a world made by and for white people.

Keywords: trajectory; black people; Carolina Maria de Jesus.

Houve um tempo em que lugar do negro era na senzala.
Hoje trancam a gente na favela.
(Carolina Maria de Jesus)

Carolina Maria de Jesus ficou nacional e internacionalmente conhecida após a publicação de seu primeiro diário, Quarto de despejo: diário de uma favelada, em 1960, em que retratava sua rotina miserável no ambiente da favela e sua luta diária para se sustentar, bem como alimentar os três filhos. Ao tomar a favela como a atual senzala do negro, Carolina Maria de Jesus reconhece que a trajetória do negro é extremamente desigual em uma sociedade que ainda não superou a ideologia escravocrata.

Neta de um negro cabinda escravizado, filha de uma negra nascida sob a lei do ventre livre, Carolina Maria de Jesus conheceu, desde pequena, por meio das histórias do avô, não somente as atrocidades cometidas contra os negros durante o regime escravocrata, mas também tomou conhecimento das histórias de resistência, como as de Zumbi dos Palmares. Além disso, ela também vivenciou, durante toda a sua trajetória de vida, as dificuldades enfrentadas para sobreviver em um mundo feito pelos brancos e para eles.

Em virtude disso, neste trabalho[1], procuro estabelecer uma relação entre a ideologia escravocrata de depreciação do negro e a trajetória dos negros que nasceram pós-abolição, por meio dos relatos de Carolina Maria de Jesus em seu livro de memórias publicado postumamente, Diário de Bitita (1986).

Construindo a ideologia de depreciação do negro

Desde o início do século XIX, o Brasil se vê forçado a produzir argumentos sólidos que embasem e justifiquem a continuidade do sistema escravocrata aqui, tanto diante da pressão inglesa, quanto diante da noção europeia de nação moderna e civilizada que se espalhava nacional e internacionalmente entre políticos e pensadores abolicionistas da época.

Os trezentos anos de escravidão no Brasil e o esforço empregado para que ela não tivesse fim, enquanto um sistema econômico rentável para uma elite minoritária, fundamentam uma ideologia ainda existente (mas camuflada) de superioridade da raça branca, da inferioridade da mulher e do negro, da existência de uma língua pura, culta, correta e escrita, em detrimento de uma inculta e “errada” e oral.

Olhando para trás, na época da escravidão, é possível compreender os mecanismos de manutenção dessa ideologia. Nesse contexto, a elite escravocrata procurou difundir no país um ideal de depreciação da raça negra em todos os aspectos (físicos, intelectuais, culturais, psicológicos, religiosos, morais etc). Segundo Taunay (2001, p. 52-53):

A inferioridade física e intelectual da raça negra, classificada por todos os fisiologistas como a última das raças humanas, a reduz, naturalmente, uma vez que tenha contatos e relações com outras raças, e especialmente a branca, ao lugar ínfimo, e ofícios elementares da sociedade. Debalde procuram-se exemplos de negros cuja inteligência e produções admiram. O geral deles não nos parece suscetível senão no grau de desenvolvimento mental a que chegam os brancos na idade de quinze a dezesseis anos. A curiosidade, a imprevisão, as efervescências motivadas por paixões, a impaciência de todo o jugo e inabilidade para se regrarem a si mesmos; a vaidade, o furor de se divertir, o ódio ao trabalho, que assinalam geralmente a adolescência dos europeus, marcam todos os períodos da vida dos pretos, que se podem chamar homens-criança e que carecem viver sob uma perpétua tutela: é pois indispensável conservá-los, uma vez que o mal da sua introdução existe, em um estado de escravidão, ou próximo à escravidão; porém, esta funesta obrigação dá os seus péssimos frutos, e o primeiro golpe de vista nos costumes, moralidade e educação desengana o observador e o  convence de que a escravidão não é um mal para eles, e sim para os seus senhores.

Este trecho, retirado da obra Manual do agricultor brasileiro, escrita por Taunay, em 1829, mas publicada em 1839, demonstra que o autor representa os defensores do sistema escravocrata, descrevendo o negro como um ser completamente inferior e que a escravidão é um mal para o senhor que é obrigado, pelo regime, a conviver com ela.

Sob essa ótica, uma das justificativas para a continuidade da escravidão é o fato de a raça negra estar em posição completamente inferior à do branco, e os senhores é que “sofrem” por terem que conviver com esse “mal” e de trazê-lo no seio de sua família, que corre o risco de se corromper com ele. Todavia, esse mal é necessário: segundo Alencar (2009 – com primeira publicação em 1867), o homem foi o primeiro capital do próprio homem e “se a escravidão não fosse inventada, a marcha da humanidade seria impossível, a menos que a necessidade não suprisse esse vínculo por outro igualmente poderoso” (2009, p. 286).

Já os abolicionistas da época procuravam rebater a questão da inferioridade da raça e atribuíam ao sistema escravocrata o embrutecimento do negro. José Bonifácio de Andrada e Silva publicou em 1823:

Se os negros são homens como nós, e não formam uma espécie de brutos animais; se sentem e pensam como nós, que quadro de dor e de miséria não apresentam eles à imaginação de qualquer homem sensível e cristão? Se os gemidos de um bruto nos condoem, é impossível que deixemos de sentir também certa dor simpática com as desgraças e misérias dos escravos; mas tal é o efeito do costume, e a voz da cobiça, que veem homens correr lágrimas de outros homens, sem que estas lhes espremam dos olhos uma só gota de compaixão e ternura. Mas a cobiça não sente nem discorre como a razão e a humanidade (Silva, 2000, p. 25).

Apelar para a questão da humanidade em uma cultura intitulada católica e seguidora dos preceitos de Cristo leva ao questionamento de como um cristão poderia escravizar outro homem. Os escravocratas argumentavam que era para torná-los também cristãos que a escravidão tinha valor. Segundo Taunay (2001, p. 72):

Vimos que uma das cláusulas tácitas da compra dos escravos era a sua conversão: os senhores têm portanto obrigação, não menos como cidadãos do que como cristãos, de lhes mandar ensinar e praticar a religião, sendo aliás o meio mais eficaz de os conservar obedientes, laboriosos, satisfeitos da sua condição e de ocupar inocentemente as horas de domingo.

A preocupação em tornar os escravos cristãos também se dava mais por uma questão de dominação do que de humanidade. Para a Igreja, a “inteligência do negro” não permitia que ele compreendesse os “sublimes dogmas”, por isso era necessário que ele participasse da fé dos senhores para suprir a “alegria e a esperança no coração dos pretos” e como forma de amenizar a relação senhor/escravo, o que, na realidade, surtiu mais como um apagamento da cultura e das crenças que os negros possuíam (Taunay, 2001, p. 73).

Além disso, vem do livro religioso cristão, a Bíblia, a “associação da cor preta com maldade e feiura, e da cor branca com bondade e beleza” (Brookshaw, 1983, p. 12). Assim, toda a religiosidade cristã trazida ao Brasil pelos portugueses não impediu a prática dos maus tratos em relação aos escravos como algo corriqueiro e como regra para manter a ordem do sistema. De acordo com Taunay (2001, p. 54-55):

A escravidão priva o homem livre da metade de sua virtude. Este rifão não foi feito para os pretos, sim para brancos, oriundos da primeira das raças humanas, da caucásica, e até para republicanos, gregos e romanos. Que diremos dos pretos de raça ínfima e sujeita aos apetites brutos do homem selvagem? Qual será a mola que os poderá obrigar a preencher os seus deveres? O medo, e somente o medo, aliás empregado com muito sistema e arte, porque o excesso obraria contra o fim que se tem em vista.

Sempre que os homens são aplicados a um trabalho superior ao prêmio que dele recebem, ou mesmo repugnante à sua natureza, é preciso sujeita-los a uma rigorosa disciplina, e mostrar-lhes o castigo inevitável.

Medo e castigos eram os meios para a disciplina diante de tanto trabalho forçado. O autor, ainda afirma, na sequência, que sem castigo “um preto se não sujeitaria nunca à regularidade de trabalhos que a cultura requer” (Taunay, 2001, p. 55). A preocupação em tornar os escravos cristãos também se dava mais por uma questão de dominação do que de humanidade.

Além disso, nem os abolicionistas conseguiram se livrar totalmente do ideal escravocrata, uma vez que, até mesmo sua “‘consciência abolicionista’ era antes um patrimônio dos próprios brancos, que lideravam, organizavam e ao mesmo tempo continham a insurreição dentro de limites que convinham à ‘raça’ dominante” (Fernandes, 1972, p. 87).

Portanto, em prol da moral, da cristandade, da economia e do progresso nacional, a elite foi procurando manter vivo seu ideal nas gerações seguintes. Segundo Bernd (1988), “o maior perigo da ideologia, como se sabe, não é apenas permitir a dominação de um grupo sobre o outro, mas procurar atribuir a causas falsas, apresentadas de preferência através de um discurso pretensamente científico e verdadeiro, a dominação real”. E, assim, tendo como pano de fundo uma ideologia de uma elite construída com base na importância econômica do trabalho escravo, fecundada por ideias da superioridade da raça branca e da maldição que acompanha a raça negra no campo religioso (os filhos de Cam).

A ideologia favorecia os dominadores na medida em que também era uma forma de controle do escravo. Carolina Maria de Jesus relata em Diário de Bitita:

Os abolicionistas instigavam os negros a não obedecer aos sinhôs. Mesmo que eles quisessem fazer um levante estariam sós, não poderiam contar com a cooperação dos seus escravos. Começaram a dar presentes aos escravos. Furavam orelhas das negrinhas, ofereciam-lhes brincos de ouro com a pretensão de reconquistá-los. Mas já eram quase 400 anos de sofrimento.

[…] Os sinhôs haviam espalhado que eles eram amaldiçoados pelo profeta Gam. Que eles haviam de ter a pele negra e ser escravos dos brancos. A escravidão era como cicatriz na alma do negro (Jesus, 2014, p. 61).

Assim, por meio de uma ideologia dominante que favorecia o senhor branco, a abolição no Brasil foi muito tardiamente assinada. Segundo Bernd (1988, p. 7-8):

Último país da América a proceder à abolição do ultrapassado sistema escravocrata, o Brasil o faz de maneira a beneficiar mais uma vez a classe dominante, não criando as condições mínimas para que o contingente negro, egresso das senzalas, fosse absorvido pelo mercado de trabalho urbano na nova sociedade brasileira.

Além de ter sido um processo que beneficiou a classe dominante, não possibilitou que o negro construísse uma “consciência social própria da situação”:

Quanto ao negro, com a Abolição ele perdeu os liames humanitários que o prendiam aos brancos radicais ou inconformistas e deixou de formar uma consciência social própria da situação. Como foi mais tutelado que a gente do processo revolucionário, não tinha uma visão objetiva e autônoma dos seus interesses e possibilidades. Converteu a liberdade em um fim em si e para si, sofrendo com a destituição uma autêntica espoliação – a última pela qual a escravidão ainda seria responsável (Fernandes, 1972, p. 87).

Assim, após a abolição, o negro ficou entregue à própria sorte dentro de um contexto histórico, cultural e econômico que o excluía, pois toda a justificativa que a sociedade escravocrata utilizou durante anos para colocar o negro como um ser inferior não iria naturalmente nem facilmente desaparecer das práticas sociais. Agora então é que o processo de abolição se inicia e o negro terá uma batalha árdua para enfrentar que continua até os dias atuais.

O “mundo dos brancos”

Ao analisar a sociedade paulista já em meados do século XX, Fernandes (1972) aponta, a princípio, dois problemas mais evidentes na atitude daquela sociedade (que se aplicava também a toda a sociedade brasileira da época) que geravam discrepância na relação do negro e do branco: o primeiro é o preconceito de não ter preconceito e o segundo é o mito da existência da democracia racial.

Para a sociedade brasileira, o preconceito de cor é considerado algo ultrajante e degradante, algo completamente condenável. No entanto, isso fica mais no plano ideal e conceitual porque, na ação concreta e direta, o racismo se apresenta como algo absorvido em manifestações que não são consideradas como preconceituosas. Ou seja, uma adaptação de “falsa consciência”, resultado do grande período de escravidão (Fernandes, 1972, p. 25). Para o pesquisador,

Esse mecanismo adaptativo só se tornou possível porque as transformações da estrutura da sociedade, apesar da extinção da escravidão e da universalização do trabalho livre, não afetaram de modo intenso, contínuo e extenso o padrão tradicionalista de acomodação racial e a ordem racial que ele presumia (Fernandes, 1972, p. 25).

Trata-se, portanto, de um mecanismo historicamente firmado em que não há “um esforço sistemático e consciente para ignorar ou deturpar a verdadeira situação racial imperante”, dessa forma, o mecanismo se configura em uma prática de esquecer o passado ou deixar que as coisas se resolvam por si mesmas, que condenam o negro e o mulato “à desigualdade racial com tudo que ela representa no mundo histórico construído pelo branco e para o branco” (Fernandes, 1972, p. 25-26).

O mundo feito pelos brancos causou uma cissura na relação entre negros e mulatos, narrada por Carolina Maria de Jesus em Diário de Bitita:

A tia Ana Marcelina, irmã de minha avó materna, era mulata clara. A mulata cabedal. Não gostava de preto. Dava mais atenção aos brancos. […]
Tenho pouca coisa de dizer dessa tia, porque ela era mulata. E havia, como divisa das famílias, o preconceito de cor. Minha tia vestia roupas finas iguais às dos brancos. Esforçava-se para viver igual aos ricos. Residia numa casa confortável. […]
As filhas gostavam de dançar. Nos bailes dos brancos, elas não iam porque não eram convidadas. Nos bailes dos negros, elas não queriam ir. Quando nós, os sobrinhos pretos, íamos visitá-la, não tínhamos o direito de entrar. Casa de mulato, o negro não entra (Jesus, 2014a, p. 70).

No mundo dos brancos, o mulato ficava em um entre-lugar, pois não era negro nem branco. Esse mundo feito por brancos e para eles se acomoda na ideia da democracia racial que, segundo Fernandes (1972, p. 26) “constitui uma distorção criada no mundo colonial, como contraparte da inclusão de mestiços no núcleo legal das “grandes famílias” – ou seja, como reação a mecanismos efetivos de ascensão social do “mulato”. Esse mulato integrado à família antes escravagista compõe o processo de miscigenação, que deu continuidade à ordem racial, e sua hierarquia foi mantida pelo regime escravista.

Por isso, à miscigenação corresponderam mecanismos mais ou menos eficazes de absorção do mestiço. O essencial, no funcionamento desses mecanismos, não era nem a ascensão social de certa porção de negros e de mulatos nem a igualdade racial. Mas, ao contrário, a hegemonia da “raça dominante”, ou seja, a eficácia das técnicas de dominação racial que mantinham o equilíbrio das relações raciais e asseguravam a continuidade da ordem escravista (Fernandes, 1972, p. 27).

Com isso, muitos mestiços integrados eram socializados e educados dentro das famílias para agirem como “brancos”, sendo este o parâmetro para integração social. Surge, com essa prática, a ideia do “negro de alma branca” um protótipo do “negro leal, devotado ao seu senhor, à sua família e à própria ordem social existente” (Fernandes, 1972, p. 27). Sob essa ótica, esse comportamento ocorria em benefício do próprio negro e nos casos em que os negros ou mulatos não atingissem esse ideal do negro como imitação do branco atribuíram-se a eles uma “incapacidade residual do ‘negro’ de igualar-se ao ‘branco’” (Fernandes, 1972, p. 28).

Ao negro, cabe aceitar as regras do jogo que impõe os limites da linha de cor, ou romper com esse padrão, que o torna um inferior permanente na convivência com o branco. Mas esse não era o caso da maioria da população negra. De acordo com Fernandes (1972, p. 85):

Tudo se passou, historicamente, como se existissem dois mundos humanos contínuos, mas estanques e com destinos opostos. O mundo dos brancos foi profundamente alterado pelo surto econômico e pelo desenvolvimento social, ligados à produção e à exportação do café, no início, e à urbanização acelerada e à industrialização, em seguida. O mundo dos negros ficou praticamente à margem desses processos sócio-econômicos, como se ele estivesse dentro dos muros da cidade mas não participassem coletivamente de sua vida econômica, social e política.

Os negros que não voltaram para suas regiões de origem, após a abolição, para trabalhar no campo (também de forma explorada), continuaram nas cidades grandes em busca da sobrevivência em trabalhos precários de subsistência, reclusos em cortiços e depois concentrados nas favelas. Na disputa com os imigrantes, o negro saíra perdendo, sendo que os imigrantes ocupavam as novas oportunidades e, ao negro, cabiam certas atividades que mais ninguém queria realizar. Em suma, Fernandes (1972, p. 17) aponta a pobreza da brasilidade como uma herança do passado escravocrata:

A brasilidade que herdamos do passado escravocrata e das primeiras experiências de universalização do trabalho livre, é demasiado estreita e pobre para fazer face aos dilemas humanos e políticos de uma sociedade racial e culturalmente heterogênea. Temos de aprender a não expurgar os diferentes grupos raciais e culturais do que eles podem levar criadoramente ao processo de fusão e unificação, para que se atinja um padrão de brasilidade autenticamente pluralista, plástico e revolucionário.

Diante dessa pobreza, até mesmo de identidade herdada da escravidão, em busca da identidade plural, uma quebra dessa tradição é necessária, de modo que se busque a democracia tanto racial, como em geral:

Quanto ao mais, não é só a democracia racial que está por constituir-se no Brasil. É toda a democracia na esfera econômica, na esfera social, na esfera jurídica e na esfera política. Para que ela também se concretize no domínio das relações raciais, é mister que saibamos clara, honesta e convictamente o que tem banido e continuará a banir a equidade nas relações de “brancos”, “negros” e “mestiços” entre si. A chamada “tradição cultural brasileira” possui muitos elementos favoráveis à constituição de uma verdadeira democracia racial (Fernandes, 1972, p. 23).

Assim, é a democracia que se enfraquece quando se ignoram os problemas que a tradição cultural ligada à escravidão gerou em nossa sociedade. Ao conhecer e reconhecer esses problemas, estratégias para superá-los podem ser traçadas de modo que todos possam contribuir igualitariamente para a consolidação da democracia no país.

Carolina Maria de Jesus e Diário de Bitita

Em meio a este “mundo dos brancos” há quem se questione como Carolina Maria de Jesus conseguiu publicar seus livros. Primeiramente, ela precisou de um intermediador para publicar seu diário Quarto de despejo, o jornalista Audálio Dantas, que produziu um ambiente propício para a recepção do diário pelo público. A partir de reportagens escritas por ele, publicadas em jornal e revista, o primeiro livro de Carolina Maria de Jesus foi aguardado pelo público e tornou-se um grande sucesso de vendas. No entanto, o sucesso foi por um curto espaço de tempo e, em 1961, o segundo diário de Carolina Maria de Jesus, Casa de alvenaria: diário de uma ex-favelada (1961), não vendeu e a autora passou a ter dificuldades para conseguir publicar outras obras. Uma das causas dessa trajetória curta entre o auge e o esquecimento é o fato de o “mundo dos brancos” tê-la tratado como “exceção cultural”:

Carolina Maria de Jesus, a autora de diários, foi expressão de uma situação única onde o sucesso de uma negra poderia ter ocorrido além do destaque como cantora ou esportista. Ela só conseguiria, contudo, ter existido enquanto exceção cultural e alguém feito para aquele momento exato. Assim mesmo, precisou do prestígio de um homem, branco, já reputado jornalista, Audálio Dantas, para apresentá-la à sociedade brasileira. Sozinha, possivelmente pouco teria feito além de cuidar dos filhos e catar papel (Meihy, 1996, p. 13).

O negro de sucesso visto como exceção é fruto da tradição cultural escravocrata, que, além disso, desfavorecia a mulher:

Ser negra num mundo dominado por brancos, ser mulher num espaço regido por homens, não conseguir fixar-se como pessoa de posses num território em que administrar o dinheiro é mais difícil do que ganhá-lo, publicar livros num ambiente intelectual de modelo refinado, tudo isto reunido fez da experiência de Carolina um turbilhão (Meihy e Levine, 2015, p. 70).

É claro que o fato de Carolina ter conseguido sair da favela, juntamente com seus três filhos, já foi um enorme feito para uma mulher negra, favelada, sozinha, com pouco estudo formal. Mas ela não queria apenas sair da favela, objetivava ser reconhecida como escritora, como uma cidadã com plenos direitos, não como uma exceção.

No entanto, os responsáveis pela promoção dos dois primeiros diários de Carolina Maria de Jesus queriam manter a imagem da “escritora favelada”, da “escritora de diários” somente, que representava a “fórmula inicial do seu sucesso” e, além de ignorarem suas demais produções, procuravam manter a ligação de Carolina Maria de Jesus com a favela como algo indissociável, por isso é comum a imagem da escritora, com lenço na cabeça e no ambiente da favela, mesmo depois de ter se mudado dele.

Carolina Maria de Jesus na favela
Carolina Maria de Jesus na favela
Fonte: Audálio Dantas. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2014/11/1550499-escritora-carolina-maria-de-jesus-viveu-do-caos-ao-caos.shtml

Ao não aceitar as imposições cobradas pela mídia – tornar-se “branca”, ou seja, adotar comportamentos aceitáveis dentro daquela sociedade, Carolina Maria de Jesus passou por insubordinada, difícil, arrogante, dentre outras qualificações que depreciavam sua imagem. Porém, sua atitude era completamente aceitável para alguém que compreendia que a escravidão já tinha acabado, e que buscava a liberdade ainda relegada ao contexto feminino, principalmente ao negro:

Carolina foi, pode-se dizer, uma guerreira valente contra as tropas de herança racista, anti-interiorana, preconceituosa em relação às mulheres e, sobretudo uma pessoa afrontadora da marginalidade e da negligência política. Rebelava-se sozinha e por isso jamais chegou a ser revolucionária ou heroína permanente. Sequer foi musa de causas coletivas. Houve um momento em que, ainda que de maneiras contraditórias e estranhas, ela cabia em todas as frentes e, ao mesmo tempo, não servia por longo período a nenhuma. Por isso é provável que tenha sido deixada por todos. De qualquer forma, não se rendeu ao Estado ou a instituições, nem a maridos, ainda que muitas vezes estivesse tão próxima de adulá-los como de feri-los (Meihy e Levine, 2015, p. 21).

O estado de exceção vivido por Carolina colocava-a em uma “moldura” com um retrato empalidecido, o que definitivamente ela não aceitou e, sem conhecimento de como modificar a situação, ela demonstrava comportamentos contraditórios:

Negra, favelada, sozinha, semi-analfabeta, cabeça de família e pretensamente de oposição à ordem estabelecida, Carolina teria tudo para não dar certo. Neste sentido, suas constantes contradições argumentativas e vivenciais, antes de diminuí-la, a engrandecem, pois a tornam mais normal em sua anormalidade contextual. Excluídos os estalados momentos de glórias, sua obra não se constituiu em exceção do tratamento racista que a sociedade delegava aos que habitavam as franjas do progresso. Fora da moldura que segurava seu retrato, pálido para a efetiva sociedade dos brancos, ela não conseguiu praticamente nada. Sequer exibiu-se poetisa (Meihy, 1996, p. 13).

Portanto, a retomada de sua trajetória permite compreender melhor a jornada contraditória de Carolina no mundo dos brancos e no mundo dos negros, em uma tentativa de sobreviver nesses mundos e de existir neles, ela acabava se distanciando e se isolando cada vez mais no seu próprio mundo.

Em 1972, Carolina Maria de Jesus estava tentando publicar sua autobiografia, denominada “O Brasil para os brasileiros”, mas não foi algo bem recebido pela imprensa que via a iniciativa como mais uma tentativa da escritora de trazer a fama de volta (Meihy e Levine, 2015, p. 47). Assim, antes de falecer, ela entregou uma cópia dessa autobiografia para uma jornalista francesa que a publicou na França, em 1982, com o título de Journal de Bitita.

Diário de Bitita, diferentemente de Quarto de despejo e Casa de alvenaria, não é estruturado em formato de diário, ao contrário do que diz seu título. Trata-se de narrativas memorialísticas da infância da escritora, com uma linguagem estruturada, mais elaborada do que nos dois primeiros diários. Isso porque o trabalho de edição ocorreu duplamente (pela jornalista brasileira Clélia Pisa, que traduziu do português para o francês, e pela editora francesa Anne-Marie Métailié, que adaptou o texto para o público francês), o que resultou em outro texto, diferente da proposta original apresentada por Carolina Maria de Jesus. A versão publicada no Brasil em 1986 é a tradução da versão francesa. Segundo entrevista realizada por Raffaella Fernandez em 2014 (Fernandez, 2019, p. 86), a jornalista Clélia Pisa comenta da seguinte maneira a edição de Journal de Bitita (1982):

[…] Tiramos o que tiramos e o que podíamos tirar. Teve que ser traduzido, e o importante no Journal de Bitita é que fosse um testemunho que pudesse ser lido por um francês que não tivesse nenhuma referência da Carolina. Porque este livro não é o original.

Mesmo passando pela tradução e edição, o Diário de Bitita publicado no Brasil continua tendo seu valor enquanto narrativa memorialística que integra a trajetória de Carolina Maria de Jesus como narradora e personagem de si.

Em Diário de Bitita, Carolina Maria de Jesus demonstra, por meio dos relatos de sua memória, o que Fernandes (1972) constatou em seus estudos sobre o “negro no mundo dos brancos”, a saber:

  • A degradação moral, o negro enquanto mau exemplo:

Quando os negros bebiam, eu pensava: “Por que é que só os pretos bebem?”. Mas os brancos bebiam dentro de suas casas. Se um branco cambaleava nas ruas diziam que era indisposição, mal-estar. Se um branco bebia nos bares era repreendido: – Você está imitando os negros? Arranjou um negro para ser seu professor? A única coisa que está ao alcance do negro para ele nos ensinar é beber pinga. Na pinga eles são catedráticos (Jesus, 2014, p. 55).

  • Emprego de violência contra o negro:

Quando havia um conflito, quem ia preso era o negro. E muitas vezes o negro estava apenas olhando. Os soldados não podiam prender os brancos. Ter uma pele branca era um escudo, um salvo-conduto (Jesus, 2014, p. 55).

  • Falta de instrução técnica e falta de autodisciplina do assalariado:

Eu notava que os brancos eram mais tranquilos porque já tinham seus meios de vida. E para os negros, por não ter instrução, a vida era-lhes mais difícil. Quando conseguiam algum trabalho, era exaustivo. O meu avô com setenta e três anos arrancava pedras para os pedreiros fazerem os alicerces das casas. Os pretos, quando recebiam aquele dinheirinho, não sabiam gastar em coisas úteis. Gastavam comprando pinga (Jesus, 2014, p. 59).

  • Concorrência desfavorável com o imigrante no mercado de trabalho:

Minha tia Claudimira trabalhava para os sírios que vinham com imigrantes para o Brasil. E aqui conseguiam até empregadas. Ganhava trinta mil-réis por mês, para lavar a roupa, passá-la, cuidar das crianças, da casa e da cozinha.
Pensava: “Por que será que eles deixam a sua pátria e vêm para o Brasil?”. E dizem que o nosso país é um pedacinho do céu. Não havia motivos para odiá-los. Porque gostavam do país, e não perturbavam. Pensei: “Será que o Brasil vai ser sempre bom como dizem eles? Por que será que o estrangeiro chega pobre aqui e fica rico? E nós, os naturais, aqui nascemos, aqui nós vivemos e morremos pobres?”.
Ouvia dizer que os estrangeiros que já estão há mais tempo no Brasil auxiliavam os patrícios pobres. Que os brasileiros ricos não auxiliavam o brasileiro pobre. Que não confiam. Os estrangeiros não vinham pobres. Eles não eram analfabetos e dominavam o comércio (Jesus, 2014, p. 63-64).

Além desses relatos que atestavam a existência do “mundo dos brancos”, há as situações em que ela própria vivenciou sendo uma criança negra e pobre, como o preconceito racial presente nas falas de vizinhas e parentes: “– Dona Cota, espanca essa negrinha! Que menina cacete! Macaca” (Jesus, 2014, p. 16); “– Que negrinha feia! Além de feia, antipática. Se ela fosse minha filha eu matava” (Jesus, 2014, p. 18). Bitita ia tentando construir sua identidade em relação a sua cor, “Eu pensava que era importante porque a minha madrinha era branca” (Jesus, 2014, p. 17). O tratamento negativamente diferenciado com relação ao negro deixava a menina confusa: “Eu sabia que era negra por causa dos meninos brancos. Quando brigavam comigo, diziam:/– Negrinha! Negrinha fedida!” (Jesus, 2014, p. 95). Assim, Carolina percebia-se negra em contato com os brancos. E foi notando que, na relação com o branco, o negro era inferiorizado, isto a deixava triste e a questionar: “Fui ficando triste. O mundo há de ser sempre assim: negro para aqui, negro para ali. E Deus gosta mais dos brancos do que dos negros. Os brancos têm casas cobertas com telhas. Se Deus não gosta de nós, por que é que nos fez nascer? (Jesus, 2014, p. 95).

Sua memória mantém o mesmo tom crítico e de denúncia contra os maus-tratos dos patrões e patroas contra os negros que trabalhavam para eles, contra a polícia analfabeta, contra políticos, denunciava o abuso sexual das meninas negras pelos filhos dos patrões.

Com a chegada dos italianos, muitos negros passaram a trabalhar para eles por um salário como qual o negro não sabia o que fazer. Então compravam roupas e sapatos. Enquanto que os italianos compravam mais terras e construíam casas de aluguéis nas cidades.

Antes de narrar que foi pega em flagrante roubando manga no quintal da vizinha, Carolina Maria de Jesus previamente defende sua honestidade que, para ela, é algo inquestionável:

Mas não sentia tranquilidade interior. O meu subconsciente me advertia que havia praticado um ato indigno. Eu não tenho coragem de roubar. Devo e deverei lutar para conseguir tudo com honestidade. Tinha a impressão de que alguém sussurrava nos meus ouvidos – seja honesta, seja honesta, seja honesta –, como se fosse um tique taque de um relógio (Jesus, 2014a, p. 57).

Essa necessidade de assegurar sua honestidade, mesmo quando criança, é uma forma de se contrapor ao estereótipo instituído de que a criminalidade é intrínseca ao negro. Assim, ações que, para uma criança branca, soariam como peraltices da infância, para o negro, representavam indícios de criminalidade e desonestidade. Além disso, em sua trajetória pelo mundo dos brancos, Carolina Maria de Jesus foi presa injustamente por duas vezes, a primeira vez, acusada de roubar dinheiro de um padre; na segunda, acusada de bruxaria por ler o livro de “São Cipriano” quando na verdade ela lia um dicionário.

E assim, para a menina negra e pobre, crescer era um problema por perceber que suas expectativas diante do futuro não eram as melhores. Além disso, havia no âmbito familiar da menina a violência, promovida muitas vezes pelo excesso de bebida. No entanto, o avô procurava animar os netos ao dizer que essa realidade dos negros estava mudando: “O vovô nos contava que os pretos que moravam nas cidades grandes já sabiam ler e tinham até dinheiro nos bancos. Ele não sabia ler, mas procurava saber se os negros já estavam subindo na esfera social. “Oh!”, exclamávamos admirados (Jesus, 2014, p. 83).

O fascínio pela cidade grande aumentou à medida que Carolina Maria de Jesus vivenciou a exploração do trabalhador no campo, bem como a falta de expectativa de quem trabalhava no serviço doméstico pelas cidades do interior de São Paulo por onde Carolina Maria de Jesus passou.

A capital era a promessa de melhoria de vida para muitos negros do interior. Eram muitas as histórias que circulavam por meio de cartas de parentes que diziam que lá era o paraíso. E assim, com muita esperança de dias melhores, encerra-se o tempo de Bitita no interior:

No dia da viagem, não dormi para não perder o horário. O trem saía às sete horas, mas eu cheguei à estação às cinco. Que alegria quando embarquei!
Quando cheguei à capital, gostei da cidade, porque São Paulo é o eixo do Brasil. É a espinha dorsal do nosso país. Quantos políticos! Que cidade progressista. São Paulo deve ser o figurino para que este país se transforme num bom Brasil para os brasileiros.
Rezava agradecendo a Deus e pedindo-lhe proteção. Quem sabe ia conseguir meios para comprar uma casinha e viver o resto de meus dias com tranquilidade (Jesus, 2014, p. 206).

A principal bagagem levada por Bitita a São Paulo foi a esperança. Esperança de dias melhores, de poder trabalhar e não passar fome e de poder comprar sua casa, mas lá a aguardava também “o mundo dos brancos”.

Considerações finais

Durante sua trajetória, Carolina Maria de Jesus buscou um lugar comum, básico, burguês, com sonhos considerados simples, como ter sua casa própria, criar seus filhos honestamente por meio do seu trabalho e da sua aptidão para escrever. Porém esse “local” lhe foi constantemente negado e ela acabou se situando em um não-lugar por não se subjugar ao que a sociedade procurou determinar a ela, desde pequena.

Na infância, era repreendida por pensar, questionar e falar demais, coisas incomuns no seu meio familiar. Na adolescência, a falta de saúde e a pobreza extrema fizeram com que ela peregrinasse por outras cidades, dormindo em ruas, em casas de parentes e conhecidos onde não era bem-vinda ou em Casas de Misericórdia, atendidas por freiras. Na juventude, seu hábito de leitura proporcionou tanto conhecimento que a vida na sua terra natal já não era mais suportável, não havendo acolhimento nem entre os seus familiares. Na fase adulta, ao passar por várias casas exercendo o trabalho doméstico e não vendo nisso a possibilidade de melhoria na sua condição de vida, na possibilidade de adquirir sua casa própria, alimentou o sonho de chegar a São Paulo, como a terra de realizações dos sonhos. Na favela, Carolina se distinguia e se afastava dos favelados por seu conhecimento. Na casa de alvenaria, ela e sua família sofreram preconceito social e racial por não permitirem que eles pertencessem àquele mundo que era exclusivo dos brancos.

Assim, apesar de sua trajetória apresentar vários pontos de intersecção com a da maioria dos negros no Brasil contemporâneos a ela, compartilhando das mesmas condições socioeconômicas, houve um grande diferencial que permitiu a ela transgredir: a importância dada por ela à leitura e à escrita. Isso possibilitou que sua trajetória ficasse eternizada na literatura, por meio dos diários, diferentemente de muitos outros colegas de infortúnio que viveram no anonimato e, assim, morreram. Sua trajetória de vida deve ser conhecida e sua trajetória literária deve ser reconhecida, revisitada e trazida a público. Carolina Maria de Jesus autora-narradora-personagem representa motivação, superação e resistência.

Que a imagem lembrada seja a de Carolina Maria de Jesus escritora, rompendo os estereótipos e as barreiras impostas ao seu sonho de viver pela escrita em um mundo que seja de todos.

Clarice Lispector e Carolina Maria de Jesus
Clarice Lispector e Carolina Maria de Jesus
Fonte: IMS. Disponível em: https://ims.com.br/2017/06/01/sobre-carolina-maria-de-jesus/

* Vanessa Maria Poteriko da Silva é professora de língua portuguesa e inglesa da rede estadual de ensino público no Estado do Paraná; mestre em Letras / Estudos Literários, na linha de pesquisa Literatura, História e Crítica, do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Paraná (PPGL/UFPR).

Referências

ALENCAR, José de. Cartas de Erasmo. José Murilo de Carvalho (Org.). Rio de Janeiro: ABL, 2009. Disponível em: <http://www.academia.org.br/sites/default/files/publicacoes
/arquivos/cartas_de_erasmo_ao_imperador_-_jose_de_alencar.pdf
> Acesso em: 16 jul. 2018.

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BROOKSHAW, David. Raça e cor na literatura brasileira. Trad. Marta Kirst. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983.

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Nota

[1] Este artigo foi adaptado da dissertação de mestrado “A trajetória na construção da identidade da personagem-narradora-autora Carolina Maria de Jesus em seus diários”, UFPR, 2019.

HISTÓRIA SOCIOPOLÍTICA DO CABELO CRESPO

Resumo: O cabelo já foi objeto de análise de autores como Freud, Charles Berg e Edmund Leach. Tanto a abordagem psicológica de Freud e Berg quanto a antropológica de Leach foram unânimes em associá-lo a uma conotação sexual ou, mais especificamente, à castração simbólica. C. R. Hallpike (1969), em resposta, é contrário a essa conotação e associa o corte do cabelo ao controle social. Embora compartilhem da crença na sua importância simbólica, os estudiosos das relações raciais opõem-se a essas perspectivas ao reivindicar que a importância do cabelo para negros e negras é irrefutável devido ao seu legado histórico e político específico. Desde a colonização, pressupostos racistas foram formulados e propagados e uma das suas premissas é a negação da beleza aos negros e negras. Nesse contexto, o cabelo foi – e continua sendo –, junto com a cor da pele, um dos principais sinais diacríticos da negritude. Eventos históricos importantes, no entanto, marcaram a revalorização da beleza negra e impulsionaram diversos sujeitos a reinterpretar a sua estética através de uma valorização. Em âmbito global, vários movimentos articularam muito fortemente estética negra e política. Nos anos 1930, um contra discurso jamaicano sobre estética emergiu do Movimento Rastafari. Outro marco do reconhecimento positivo de ser negro refere-se à existência do conceito de negritude de Aimé Cesaire também nos anos 1930. Nos anos 1960 e 1970, com os movimentos “black is beautiful” e “black power”, o cabelo crespo passou a significar orgulho e poder. Nesse contexto, a radicalização em torno do uso do cabelo crespo considerado “natural” foi central, já que este foi reforçado como ícone identitário e cultural. Os reflexos desses movimentos foram sentidos no Brasil. A partir daí, houve um impulso crescente no sentido de também ressignificar as características físicas associadas à negritude, destacando-as e valorizando-as.

Palavras-chave: racismo; escravidão; cabelo crespo; mulheres negras.

Abstract: Hair has already been the object of analysis by authors such as Freud, Charles Berg and Edmund Leach. Both the psychological approach of Freud and Berg as well as the anthropological approach of Leach were unanimous in associating it with a sexual connotation or, more specifically, with symbolic castration. In response, C. R. Hallpike (1969) is contrary to this connotation and associates the haircut to social control. While sharing a belief in hair’s symbolic importance, scholars of Racial Studies oppose to these perspectives by claiming that the importance of hair to black people is irrefutable due to their specific historical and political legacy. Since the period of colonialism, racist assumptions have been formulated and propagated and one of its premises is the denial of beauty to black people. In this context, hair was – and still is -, alongside skin color, one of the main diacritical signs of blackness. However, important historical events marked the revaluation of black beauty and impelled several subjects to reinterpret their own aesthetics through a more positive perspective. At a global level, several movements have articulated very strongly black and political aesthetics. In the 1930s, a Jamaican counter-discursive on aesthetics emerged from the Rastafarian Movement. Another milestone in the positive recognition of being black is Aimé Cesaire’s concept of negritude in the 1930s. In the 1960s and 1970s, with the movements “black is beautiful” and “black power”, natural afro-hair came to mean pride and power. In this context, the radicalization around the use of “afro-hair” considered “natural” was central, since it was reinforced as an icon of identity and culture. Reflexes of these movements could also be perceived in Brazil. From then on, there was a growing impulse to also re-signify these physical characteristics, highlighting and valuing them.

Keywords: racism; slavery; hair; black women.

Primeiras páginas

Neste artigo, discorrerei sobre a história sociopolítica do cabelo crespo a fim de elucidar como foi construído, historicamente, o discurso racista que tem o corpo negro como sua “superfície de inscrição”. Tal discurso atua produzindo subjetividades e afeta profundamente a vida daqueles que subjuga sob o estigma da inferioridade. As expressões “cabelo de negro” e “cabelo ruim” revelam a arbitrariedade de uma dimensão estética que associa a negritude à absoluta negação da beleza (Mercer, 1987). Longe de negar as consequências disso para os homens negros, me debruçarei, por uma questão de escopo, mais sobre as mulheres negras. Elas conhecem a violência do racismo desde muito cedo, principalmente através da maneira como a sociedade taxa o cabelo crespo como “ruim”. Acredito que esse é um dos discursos racistas mais abertamente postulados. Sendo construída social e historicamente, a rejeição/aceitação do ser negro permeia a vida delas em todos os seus ciclos de desenvolvimento humano: infância, adolescência, juventude e vida adulta. De modo geral, os primeiros esforços de transformação do corpo negro datam da infância e do desejo de mudar uma parte específica do corpo: o cabelo crespo através do alisamento capilar (Gomes, 2008).

Importante começar dizendo que os significados do cabelo remetem a um campo fértil de pesquisa e perpassam a obra de autores como Freud, Charles Berg e Edmund Leach. Mesmo a abordagem psicológica de Freud e Berg quanto a antropológica de Leach foram unânimes em associar o cabelo a uma conotação sexual ou, mais especificamente, à castração simbólica. Em resposta, C. R. Hallpike (1969) nega essa conotação e associa o corte do cabelo ao controle social. Embora compartilhem da crença na importância simbólica do cabelo, os estudiosos das relações raciais opõem-se a essas perspectivas e mostram que a importância específica do cabelo para negros e negras é irrefutável devido ao seu legado histórico e político específico. No contexto das relações raciais, o cabelo pode significar relações com a África, construções da negritude, memória da escravidão, autoestima, rituais, estética, técnicas de cuidado apropriadas, imagens de beleza, política, identidade e, também, a intersecção de gênero e raça (Banks, 2000).  Fora todas as tensões que existem quando ideias culturais e sociais são transmitidas através dos corpos.

Segundo Banks (2000), apenas nos anos 1960, debates sobre o que as práticas com o cabelo representam entre mulheres negras surgiram na Academia. Quando o Feminismo Negro chega às universidades, está fortemente associado à necessidade de autodeterminação das mulheres negras sobre a sua própria estética. A geração de feministas negras pós-movimento Black Power construiu, em continuidade, uma nova celebração do “cabelo natural” e da ancestralidade africana, mas com ênfase na autonomia, na irmandade e na diversidade sexual. Esse processo desafiou as convenções de gênero em um mundo no qual o cabelo longo é sinônimo de feminilidade (Kelley, 1997).

Para as mulheres negras, a geografia do corpo serve como um poderoso símbolo da ideologia racista. Um dos elementos-chave para compreender a relevância do cabelo como uma marca identitária entre elas é, justamente, através da história desse imaginário poderoso e dessas crenças dirigidas à negritude e ao corpo feminino.  Esse apanhado histórico remete ao processo de colonização, à escravidão negra e à diáspora africana e, nesse contexto, um nome ganha relevo: Sarah Baartman. Sua vida ilustra, dramaticamente, como o corpo feminino negro se tornou a manifestação física de todas as características negativas associadas à raça. Duplamente distanciada da cultura e ligada à natureza por ser mulher e negra (Ferreira e Hamlin, 2010), Sarah foi uma sul-africana que, adotada aos dez anos na condição de serva, foi levada para Europa para ser exibida nos chamados “circo dos horrores”. Lá recebeu, pejorativamente, o apelido “Vênus Hotentote”. Ela também ficou conhecida como “Vênus Negra” e sua história marca o início de uma violência racial que ficou conhecida como racismo científico.

As exibições de Sarah Baartman nos chamados “Circo do Horrores” ou “zoológicos humanos” eram oferecidas como possibilidade de entretenimento na Europa e ali a diferença racial atuou como mola propulsora capaz de gerar uma distância abissal entre europeus e africanos (Braga, 2015). Nas suas primeiras apresentações, ela era exibida como uma “fera selvagem”, saindo e voltando de uma jaula. Em Londres e em Paris, se tornou famosa entre o público como um “espetáculo”, exibida em cartoons, ilustrações e mesmo em reportagens de jornais. Entre os naturalistas e etnologistas, ela foi medida e observada em cada detalhe de sua anatomia, viva e morta. Nos “circos dos horrores”, corpos humanos eram exibidos como monstruosidades que tinham por função dar ao seu público mais confiança e consciência de si, de sua civilidade, de sua normalidade, de sua preeminência. Sarah permaneceu em Londres por quatro anos e, em 1814, foi vendida a um exibidor de animais francês (Braga, 2015). Para Stuart Hall, o caso de Baartmam reitera uma preocupação – ou até obsessão – com a demarcação da “diferença”; no caso da “Vênus Negra”, essa diferença foi patologizada. Simbolicamente, ela não fazia parte da norma eurocêntrica sobre o que significava ser uma mulher. Seu corpo foi lido, como um texto, a fim de reiterar a irreversível assimetria entre as “raças”. Ela era comparada com feras selvagens, com orangotangos – e não com a cultura humana. A sua “diferença” foi naturalizada e traduzida, sobretudo, na sua sexualidade. Ela foi reduzida ao seu corpo e seu corpo foi reduzido aos seus órgãos sexuais. Sarah também não existia como uma pessoa; ela era um objeto. Seu caso tomou ainda mais importância, à medida que Georges Cuvier, seu “preceptor”, foi o cientista que protocolou, segundo Lilia Schwarcz (1993) o termo raça na ciência moderna. Ou seja, foi pelo corpo de Sarah que nasceu o conceito moderno de raça.

Se, durante o período em que permaneceu na Inglaterra, seu sucesso estava associado à sua exibição pública nos “circos dos horrores”, na França, o fascínio pelo seu corpo assume ares de interesse científico. Ela era exibida seminua em reuniões científicas onde mediam seu corpo, “observavam, desenhavam, escreviam tratados sobre, modelavam em cera, escrutinizavam cada detalhe de sua anatomia” (Hall, 1997, p. 265). Sarah despertou o desejo dos naturalistas de “se beneficiarem da circunstância oferecida pela presença, em Paris, de uma fêmea bosquímana que pode fornecer, com mais precisão do que jamais foi feito até hoje, as características distintivas desta raça curiosa” (Jean Le Garrec, 2002, p. 7 apud Ferreira e Hamlin, 2010).  Em 1815, o corpo nu de Baartman foi exposto ao olhar de cientistas e artistas no Jardin du Roi.  São as ilustrações registradas nessa exibição que compõem parte do livro de Cuvier e Saint-Hilaire, editado alguns anos mais tarde, “História Natural dos Mamíferos”. Nessa obra, Sarah Baartman é representada como uma espécie natural, dentre inúmeras outras, especialmente de macacos.

Depois da sua morte precoce em 1815 (há relatos de que ela acelerou esse processo através do uso excessivo do álcool quando já estava doente)[1], seu corpo foi moldado, dissecado e seu cérebro e sua genitália foram exibidos no Museu do Homem de Paris até 1974. A exibição de partes do seu corpo a transformou, literalmente, em separados pedaços de objetos, uma coisa, “um conjunto de partes sexuais”. Do relatório feito por Georges Cuvier sobre Baartman, nove das dezesseis páginas são usadas para a descrição da sua genitália (Blackledge, 2003, p. 141 apud Ferreira e Hamlin, 2010). O interesse de Cuvier em Sarah era inestimável: ela não era apenas uma mulher, mas, sobretudo, uma mulher negra. Duplamente distanciada da cultura, duplamente ligada à natureza (Ferreira e Hamlin, 2010).  Só quando pareceram “obsoletos”, os seus restos mortais foram arquivados nas prateleiras da reserva técnica do museu, sendo devolvidos à África do Sul após grande mobilização dos povos khoi-san já no governo de Nelson Mandela.  Com a devolução de seu corpo à África do Sul, Sarah Baartman, foi velada e enterrada na Cidade do Cabo em 2002 (Hall, 1997; Damasceno, 2008).

“Sartjee the Hotentot Venus”.
Sartjee the Hotentot Venus”. Fonte: https://www.britishmuseum.org/research/collection_online/collection_object_details.aspx?objectId=1490165&partId=1&people=108609&peoA=108609-1-7&page=1

Se, no século XIX, o corpo europeu masculino representa a normalidade, o que, se não o corpo de uma mulher negra, para representar sua radical alteridade? Não foi por acaso que Jay Gould (1990) notou, ao visitar o Museu do Homem de Paris no início dos anos 1980, que próximo de onde estavam expostos os cérebros de franceses “notáveis” como Renée Descartes e Pierre Broca, representantes do racionalismo francês, não havia um só cérebro de mulher. Como contraponto, eram expostos próximos deles os genitais de “uma negra, uma peruana e da Vênus Hotentote” (Damasceno, 2008).

Segundo Hall (1997) não tem como não lembrar de Fanon em “Pele Negra, Máscaras brancas”, em como ele se sentiu desintegrado, como um homem negro, pelo olhar dos brancos: “os olhares do outro me fixaram lá” (Fanon apud Hall, 1997). Essa substituição da parte pelo todo, de uma coisa – um objeto, uma parte do corpo – pelo sujeito, é o efeito de uma importante prática representacional: o fetichismo. A história da “Vênus Negra” marca o início de uma violência racial que ficou conhecida como racismo científico. Esse discurso era estruturado em um quadro de “oposições binárias” entre a “civilização” (branca) e “selvageria” (negra).  Essas oposições também eram marcadas no corpo, polarizadas em seus extremos opostos. De um lado, refinamento, instituições, governos formais e leis, civilização dos costumes, da vida sexual, emocional e civil etc. foram associados à Cultura, à Europa; de outro, emoção e sentimentos, ausência do refinamento civilizatório na vida sexual e social foram associados à natureza, aos outros, a Sarah Baartman (Hall, 1997). Por isso que, para Mbembe (2014), a raça não passou de uma ficção útil.

No livro 400 years without a comb (1973), um clássico sobre a importância dos cabelos para as negras(os), Willie Morrow afirma que o pente era um artefato cultural muito valorizado na África. Tais pentes, feitos à mão em diferentes tipos de madeira, eram verdadeiras obras de arte. A escravidão, no entanto, forçou os escravizados a abandonar essa tradição. Segundo Morrow, além de deixar o pente para trás, a escravidão também significou a perda da liberdade, da dignidade e do amor-próprio. Os homens negros, por exemplo, diante da nova realidade de negação da sua humanidade e, consequentemente, da sua beleza, muitas vezes cortavam os cabelos extremamente curtos – o que era muito perigoso devido à exposição ao sol no trabalho escravo. Junto com a imposição de um novo padrão estético, os pentes africanos, ideais para o cabelo crespo, foram substituídos por novos artefatos completamente inapropriados para o trato com aquele cabelo (Morrow, 1973). Não é à toa que, frequentemente, é dito que alisar o cabelo é mais simples e fácil de cuidar; ora, isso é verdade se o regime de cuidado é moldado por assunções da branquitude (Taylor, 2016).

Uma das consequências da trágica vida de Sarah Baartman foi que, no espírito do público, ela se tornara a mulher africana “típica” (Braga, 2015). A sua vida remete às raízes históricas do estereótipo da hiperssexualidade da mulher negra e a sua história atravessou o Atlântico, chegando ao Brasil.  Registros de mulheres negras, de certa maneira, comparadas à vênus negra estão espalhadas pelos arquivos do período escravocrata: pinturas, depoimentos de viajantes, anúncios de jornal, relatos históricos (Braga, 2015). Com uma pesquisa que lançou o olhar também sobre os anúncios de jornais brasileiros do século XIX, Amanda Braga (2015) pôde traçar e analisar a história da beleza negra no Brasil. Os anúncios de jornais brasileiros do século XIX guardam, em grande medida, a história de uma economia senhorial e, ao mesmo tempo, dependente de seus escravos. Impregnados pelo cotidiano do país e, consequentemente, pelo intenso comércio de negras escravizadas para fins sexuais, esses anúncios chegavam a ocupar dois terços dos jornais em questão. A constatação da continuidade da história da vênus negra, agora em solo brasileiro, é inevitável. Segundo Freyre ([1963] 2010, p. 114 apud Braga, 2015), “sucedem-se os casos de negros e negras de origem evidentemente hotentote ou bosquímana, que são as populações africanas culatronas por excelência”. Braga (2015) cita vários exemplos de anúncios de jornais tanto de venda de escravas quando de procura de escravas fugidas com menção a termos como “bundas grandes, nádegas salientes, empinadas para trás, nádegas gordas, traseiros arrebitados” etc.

Defendo que compreender como se deu, historicamente, a construção do discurso racista é fundamental para o fim de suplantá-lo. Nesse apanhado, a dimensão estética ganha ênfase, já que a negação da beleza negra é parte estruturante do racismo, que busca desumanizar suas vítimas.  O cabelo crespo/cacheado surge como uma questão desde muito cedo na vida dos negros, sobretudo das mulheres. A manipulação dessa parte do corpo tende a protagonizar os seus rituais de beleza, mesmo durante a infância.

O cabelo crespo no país do mito da democracia racial

É constitutivo do campo de estudos sobre as relações raciais brasileiras a comparação, implícita ou explícita, com os Estados Unidos (Figueiredo, 2002). Para esta pesquisa, a literatura norte-americana sobre cabelo foi muito importante, mas, para entender as nuances do caso brasileiro, é preciso discorrer sobre a especificidade do nosso racismo.  Segundo Lilia Schwarcz (1993), em finais do século dezenove, já perto do fim da escravidão, tomava força, no Brasil, um modelo racial de análise em resposta à hibridação das raças, a qual era tida, naquele contexto, como um grande “tumulto”. As teorias raciais chegam tardiamente aqui, recebendo, em contrapartida, uma entusiasta acolhida, principalmente nos diversos estabelecimentos científicos de ensino e pesquisa, onde estava localizada grande parte da elite pensante nacional (Schwarcz, 1993).

Diante do enfraquecimento da escravidão, que resultou em seu fim, e da necessidade de realização de um novo projeto político para forjar uma identidade para o país, os modelos raciais de análise tornaram-se um caminho teórico viável para justificar o status quo da época. Embora hoje seja bastante renegado, esse foi um momento na história intelectual do Brasil no qual pressupostos racistas foram abertamente postulados (Schwarcz, 1993). De acordo com tais modelos de análise, era a partir da ciência que se reconheciam diferenças e se determinavam inferioridades raciais. Assim, teorias como o evolucionismo social, o positivismo, o naturalismo e o social darwinismo começaram a se difundir, no Brasil, a partir dos anos 1870. Vale relembrar a importância de Sara Baartman para a constituição desses pensamentos na Europa. Como já foi dito, Cuvier, seu “preceptor”, foi o cientista que protocolou, segundo Lilia Schwarcz (1993) o termo raça na ciência moderna.  Ele apresentou a genitália de Sara a fim de sustentar sua tese acerca da origem comum dos seres humanos, posição conhecida como monogenismo. Sua proposta colocava Sara Baartman como “o elo perdido entre os seres humanos e os macacos” (Ferreira e Hamlin, 2010).

Através do racismo científico, a alternativa escolhida para o país foi a de negar a civilização aos negros e mestiços, sem citar os efeitos da miscigenação já avançada, e expulsar “a parte gangrenada” e garantir que o futuro da nação seria “branco e ocidental” (Schwarcz, 1993). Imigrantes europeus, então, foram trazidos ao Brasil como mão-de-obra livre. Os negros e negras foram jogados à margem da sociedade.

Após esse momento em que o racismo científico foi amplamente difundido no Brasil, em 1933, com a aparição de Casa Grande & Senzala de Gilberto Freyre, iniciou-se uma grande mudança na maneira do pensamento social e político brasileiro encarar a questão racial.  Não só na figura de Freyre, mas, de certo modo, a modernidade brasileira, seja nas ciências sociais — que tiveram em Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda (1936) e Caio Prado Jr. (1965 [1937]) seus primeiros expoentes —, seja na literatura regionalista — expressa por Jorge Amado (1933, 1935), José Lins do Rego (1934, 1935) e outros – tentou superar esse discurso racialista e valorizar a herança cultural brasileira (Guimarães, 1999). Uma ênfase especial precisa ser dada à obra de Gilberto Freyre, porque, ao romantizar a violência colonial, foi basilar para o surgimento da grande falácia das relações raciais no Brasil: o mito da democracia racial. A obra freyreana introduziu, de fato, um marco diferencial em relação às teorias raciais do século XIX. Além da substituição do conceito de “raça” pelo de cultura, ele tinha “novos objetos” de análise: a família, a intimidade e a sexualidade presentes nas relações sociais e raciais cotidianas (Guimarães, 1999; Pacheco, 2013). Na sua leitura, a miscigenação da sociedade brasileira teria contribuído no sentido de uma “democratização racial”.  Freyre propunha a ideia de houve, no Brasil, um encurtamento da distância entre a casa grande e a senzala, já que, para ele, os portugueses não tinham “preconceitos inflexíveis”, chegando a afirmar, inclusive, que estes tratavam com doçura os seus escravos (Freyre, 2006, p. 298). Em consequência de uma suposta plasticidade social maior do que qualquer outro colonizador europeu – devido a um passado étnico “híbrido” -, a colonização portuguesa, segundo o argumento freyreano, tinha como característica o “equilíbrio de antagonismos” (Freyre, 2006, p. 280).

O ideário antirracialista que buscava negar o discurso do racismo científico acabou prestando um grande desfavor para a população negra brasileira. Isto é, a redução do antirracismo ao antirracialismo e sua utilização para o fim de negar a existência de uma violência real tornaram-se uma eficaz ideologia racista. As raças, então, embora não existam num sentido biológico, existem na sociedade e pautam as atitudes racistas (Guimarães, 1999). O mito da democracia racial, ao negar uma realidade, criava uma dificuldade maior, a de ter de enfrenta-la e supera-la. Uma das suas consequências, segundo Florestan Fernandes (2008), é o dilema racial brasileiro, qual seja: o contraste entre o mito e a realidade de subalternização e opressão. A perpetuação do mito e do seu consequente dilema racial faz não só com que grupos mantenham suas estruturas de poder, mas também que, ao mesmo tempo, os negros, submetidos à dominação, fiquem propensos à impotência para impor sua vontade e corrigir a situação (Fernandes, 2008).

Convidado por Roger Bastide, Florestan Fernandes produziu um estudo revolucionário para a compreensão do Brasil. Seu trabalho trouxe uma nova visão das relações raciais oposta ao modelo então dominante de Gilberto Freyre, transfigurado no plano da ideologia nacional na noção de democracia racial (Soares; Braga; Costa, 2002). Ao estudar sobre como se deu a integração dos negros, pós-Abolição, na sociedade de classes, Fernandes mostrou que estes não conseguiram desfrutar de uma igualdade de condições para participar da sociedade capitalista emergente. Na realidade, passaram por um processo de pauperização e miséria social. Os mecanismos de dominação da época da escravidão permaneceram mesmo com o seu fim formal (Fernandes, 2008). As possibilidades de inclusão na nova sociedade eram esporádicas para os negros e negras.  Em sua quase totalidade, a sociedade de classes permanecia não igualitária e fechada àqueles cuja história é marcada por séculos de opressão. Além de relegados à margem e submetidos a um árduo processo de pauperização e miséria social, segundo Fernandes, os negros e negras não dispunham de meios materiais e morais para o ingresso na ordem competitiva (Fernandes, 2008).

Em 1979, Hasenbalg argumenta, ainda, que a integração subordinada dos negros criou uma situação de desvantagens permanentes, que o preconceito e a discriminação racial apenas tendiam a reforçar. Ou seja, ele afirma que a desigualdade racial coexiste e se alimenta da desigualdade social. A persistência histórica do racismo não deve, então, ser explicada como mero legado do passado, mas como servindo aos complexos e diversificados interesses do grupo racial dominante (Hasenbalg, 1979).

Esse breve apanhado sobre as relações raciais no Brasil ajudará a iluminar também a nossa história da beleza negra. Ainda segundo Florestan Fernandes (2017), foi a população negra que reivindicou significados novos para o 13 de Maio de 1888. Primeiro, a data foi desmascarada, nas décadas de 1930 e 1940, como uma falácia social: a Abolição não passara de uma artimanha, pela qual os escravos sofreram a última espoliação. Decorrente dessa interpretação, a militância negra passou a defender que do próprio negro dependia uma “Segunda Abolição”. A ressignificação da data, reflexo da compulsão libertária coletiva dos negros, atravessa e afirma Palmares e Zumbi. 20 de novembro, a data da morte desse grande líder quilombola, símbolo da resistência negra frente aos horrores da escravidão, é contraposta ao 13 de Maio. Esse novo olhar enxerga a liberdade não como uma dádiva, mas sim como uma conquista (Florestan, 2017). Segundo Gato (2018), Florestan Fernandes foi, além de pioneiro, bastante perspicaz na forma como percebeu a maneira através da qual as contestações do preconceito racial articuladas nos jornais da imprensa negra nas décadas de 1920 e 1930 construíram uma visão crítica sobre a história nacional condensada na utopia de uma Segunda Abolição (Gato, 2018).

Nesse momento, era preciso “reeducar a raça”. Com a voz dos negros endereçada aos negros, a ideia era subtrair-lhes os estereótipos consagrados pelos séculos anteriores: a preguiça, a deseducação, o “vício da cachaça” e a hiperssexualidade. Concursos de beleza, então, foram promovidos por essa população a fim de, além de auxiliar na construção de um conceito de beleza negra, responder à imagem da mulata promíscua que surgira na escravidão (Braga, 2015).  Segundo Guimarães (2001), tratava-se de uma “reeducação da raça negra, no sentido de sua completa aculturação e distanciamento de suas origens africanas, a começar pela educação formal”. Havia um elemento educativo como componente primeiro na proposta da primeira imprensa negra (Guimarães, 2001, p. 91 apud Braga, 2015), já que era preciso lutar contra os estereótipos que eram justificados cientificamente pelo racismo científico já mencionado. Bastide e Fernandes (1959, p. 228-229 apud Gomes, 2008), ao examinar os artigos dos jornais dos líderes negros entre 1925 e 1937, em particular, o jornal A voz da Raça da associação A Frente Negra, em São Paulo, destacaram a presença de uma ambivalência de ideologias, o orgulho da cor e um sentimento de inferioridade que, segundo os autores, levava à imitação do branco e dos seus pontos de vista. Não era só classe. Essa ambivalência é resultante da tensão entre uma imagem estereotipada construída em um processo de dominação e a luta pela construção de uma autoimagem positiva (Gomes, 2008).

Os primeiros concursos de beleza negra promovidos para e pela população negra, então, surgem a fim de construir não só um conceito de beleza negra, mas, principalmente, uma resposta à imagem da “mulata promíscua”. O primeiro deles remonta a 1916. As mulheres eram, por exemplo, chamadas de “senhorinhas” a fim de trazer uma conotação de respeito. Nesse momento, a beleza negra não passa pelo corpo negro, mas pela sua moral. Sobre o concurso Miss Progresso (não há imagem da vencedora, mas há da vice e da quarta colocada), pode-se perceber já um critério de beleza claro nas fotografias estampadas: a preferência pelo cabelo alisado (Braga, 2015).

Apesar de as três primeiras décadas do século XX terem ficado marcadas pelos resquícios do período escravista, houve, em contraproposta, uma imprensa militante, pulverizada entre vários periódicos e que oferecia voz, visibilidade e espaços de sociabilidade aos negros. O que essa publicidade vendia era um ideal de beleza eugênico, historicamente construído e perpassado por relações de poder. Naquele contexto de romper com os estereótipos, o alisamento capilar também era uma maneira de ascender. Ou seja, a busca por uma inserção social passava pela estética, ainda que isso custasse uma profunda manipulação de seu corpo. A exemplo das publicações do Jornal Progresso – escrito por negros e para negros – nas quais já havia muitas propagandas de produtos e locais para alisamento capilar (por exemplo o “salão brasil”, “especialista em cabelos de pessoas de cor”). Esse momento constitui a normalização de um processo que, como foi mostrado, remonta à escravidão (Braga, 2015).

Importante frisar que não pretendo engessar um olhar sobre a estética negra que associe o alisamento unilateralmente à imitação da branquitude. Estudos mostram que alisar aparece, muitas vezes, como uma alternativa de ascensão social (Tyler, 1990 apud Banks 2000; GOMES, 2008).  A análise dessas experiências que reduzem tudo à imitação do padrão branco negligencia as implicações profundas e a trama complexa que envolvem a relação negro e cabelo na esfera da dominação, da cultura e da subjetividade. O alisamento, claro, deve ser contextualizado e questionado devido à violência estruturante do racismo. Ao mesmo tempo, também pode ser visto como integrante de um estilo de o negro usar o cabelo. O que quero dizer é que a discussão sobre a expressão estética negra não pode ser cristalizada.

A partir de 1931, a Frente Negra Brasileira e o Teatro Experimental do Negro dariam continuidade a vários ideais. A Frente Negra Brasileira, fundada em setembro de 1931 tinha, dentre os seus militantes, o negro, dramaturgo, ator e ex-senador da república Abdias do Nascimento. Com núcleos em vários outros estados como Rio de Janeiro, Pernambuco, Bahia e Rio Grande do Sul, a sua proposta fundamental era a educação dos negros (Munanga e Gomes, 2006).  Com o lema “congregar, educar, orientar”, tratava-se de um movimento de massa cujo principal objetivo era resgatar os negros da condição de exclusão. Os militantes da FNB defendiam que, através da educação, seria possível ajustar o comportamento negro, formatando-o num dado padrão de comportamento social e moral (Braga, 2015). Devido aos êxitos alcançados, a Frente Negra resolveu transformar-se em partido político em 1936. Com o golpe do Estado Novo de Getúlio Vargas, em 10 de novembro de 1937, a FNB, que se caracterizava como partido político, é fechada. Raul Joviano do Amaral tentou dar continuidade à organização, fundando a União Negra Brasileira; a repressão do Estado Novo, no entanto, era muito acirrada. Seu jornal, A Voz da Raça, deixou de circular e, em 1938, a União Negra Brasileira deixa de existir (Munanga e Gomes, 2006).

Há uma ideia de que a Frente Negra teria sido uma organização conservadora, de direita. Há também críticas no sentido de que ela não se interessava por uma transformação mais profunda na ordem social e nas relações e comportamentos da população branca, limitando-se a afirmar a existência do racismo. Ou, ainda, a ideia segundo a qual a Frente nutria uma admiração pelo fascismo europeu, com alguns líderes monarquistas. Segundo o escritor Márcio Barbosa (1998), muito dessa visão sobre o caráter conservador da Frente Negra deve-se ao seu presidente, Arlindo Veiga dos Santos, um militante monarquista que realmente nutria simpatias pelo fascismo, prezando com muita determinação regras de disciplina e autoridade. Essa postura, no entanto, não refletia todo o grupo (Munanga e Gomes, 2006).

Após a ditadura do Estado Novo, há uma consciência internacional mais evoluída na militância negra. Em 1944, o Teatro Experimental do Negro (TEN) surge no Rio de Janeiro. Fundado e dirigido por Abdias do Nascimento, o objetivo do TEN era abrir as portas das artes cênicas brasileiras para os atores e atrizes negros. O TEN foi responsável por lançar grandes atores e atrizes competentes, expressivos e talentosos. Alguns são mais conhecidos do grande público e outros são nomes cujo talento é reconhecido apenas dentro do circuito artístico e por pessoas da geração do TEN: Aguinaldo Camargo, Grande Otelo, Ruth de Souza, Haroldo Costa, Lea Garcia, Abdias do Nascimento, entre outros. Isso sem falar de um dos seus fundadores ter sido o grande poeta pernambucano Solano Trindade. O TEN foi responsável também pela publicação do jornal Quilombo, o qual retratou o ambiente político e cultural de mobilização antirracista no Brasil. Além de montar espetáculos teatrais, o grupo do Teatro Experimental do Negro promovia cursos de alfabetização.  O jornal Quilombo foi uma produção muito diferente dos outros jornais militantes que o antecederam. Talvez o mais importante motivo dessa diferença tenha sido a sua inserção e sintonia com o mundo cultural brasileiro e internacional (Munanga e Gomes, 2006).

Havia agora, portanto, o comprometimento com o movimento internacional na luta pela descolonização. Algumas das reportagens do Quilombo exemplificam essa preocupação, a exemplo de matérias sobre a “ku-klux-klan”. Junto à eclosão de movimentos raciais pelo mundo – e da cobertura que a imprensa negra brasileira fazia de tais movimentos – aconteceu, na sociedade brasileira, o surgimento de um discurso que, embalado pela ideia de democracia racial, acusava as organizações negras de propagar um “racismo às avessas” (Braga, 2015).

O TEN buscava o resgate da cultura negra de raiz africana e um dos modos que encontrou foi a promoção de concursos de beleza para mulheres negras que valorizasse seu próprio padrão estético: contra os concursos que só aceitavam mulheres brancas. Os concursos “Rainha das mulatas” e “Boneca de Pixe” não duraram muito; foram, entretanto, importantes pela introdução de toda uma discussão sobre a estética negra, que não apenas afirmava um conceito de beleza construído entre o corpo e a moral, como também criavam espaços para socializá-los (Braga, 2015). Vale lembrar que a primeira miss Brasil negra, Deise Nunes, só venceu em 1986, 32 anos depois do surgimento do concurso Miss Brasil. Em âmbito global, a primeira Miss Universo negra, Jannelle Commissiong, de Trinidad e Tobago, venceu em 1977 após 26 anos de surgimento do concurso.

Uma análise sobre como a beleza negra foi abordada pelos próprios movimentos negros no pós-Abolição foi importante, porque, no seu transcurso, foi possível enxergar as tensões que sempre estiveram presentes. Mesmo o “olhar dos negros sobre os negros” recaiu na dificuldade de romper com pressupostos racistas. Apesar de todo o mérito, é notória a falta de questionamento desses estereótipos e, em certa medida, a assunção de que, para melhorar as questões raciais, o caminho era a equiparação com os padrões brancos dominantes. Esse questionamento, no entanto, não tardou em acontecer. Eventos históricos importantes marcaram a revalorização da beleza negra e impulsionaram diversos sujeitos a reinterpretar a sua estética através de uma valorização.

“Say it loud: I’am black and I’m proud!”[2]

Em um âmbito global, vários movimentos articularam muito fortemente estética negra e política. Nos anos 1930, um contra discurso jamaicano sobre estética emergiu do Movimento Rastafari. Caracterizado como um movimento antirracista, anticolonial, religioso e afro-centrado, o Movimento Rastafari tirou sua inspiração dos escritos de Marcus Garvey, um importante nome da luta antirracista (embora ele nunca tenha se convertido à religião).  Usando dreadlocks e elogiando a pele negra e a beleza “natural”, o movimento foi um símbolo poderoso de liberdade dos padrões estéticos brancos (Barrett, 1977 apud Tate, 2007).  Nesse contexto, os dreadlocks implicavam um link simbólico entre sua aparência “natural” e a África, como uma maneira de reinterpretar a narrativa bíblica que identifica a Etiópia como “Zion” ou Terra Prometida. Apesar da conotação primeira ter sido religiosa, os dreads se popularizaram em grande escala – via, especialmente, a militância crescente do reggae. Os dreadlocks também abraçam a ideia do “natural” na maneira em que celebram a materialidade da textura do cabelo crespo, o ideal para ser “emaranhado” e transformado em dread (Mercer, 1987).

Outro marco do reconhecimento positivo de ser negro refere-se à existência do conceito de negritude de Aimé Cesaire nos anos 1930.  Principal movimento literário francófono, africano e afro-caribenho, a “negritude” foi protagonizada não apenas por Césaire, escritor e político francês nascido na Martinica em 1913, mas também por Léopold Senghor, um político e escritor senegalês que foi presidente do Senegal de 1960 a 1981 (Appiah, 1992).   Aqui, a invocação da raça ou a tentativa de estabelecer uma comunidade racial visava, primeiro, a criação de um vínculo e o surgimento de um lugar como base em resposta a uma longa história de sujeição. Nos poetas da negritude, a exaltação da “raça negra” é um imenso grito cuja função é salvar da degradação absoluta os indivíduos que haviam sido subjugados à insignificância. Para Mbembe (2018) essa invocação da raça nasce de um sentimento de perda (Mbembe, 2018).

Com o mesmo apelo à valorização das raízes africanas, esses movimentos redirecionaram a consciência negra no Caribe (Gomes, 2008). Marcus Garvey também foi importante por participar com alguns outros seguidores e artistas do “Harlem Renaissance”, movimento que, dentre outros aspectos, clamava que os negros parassem de alisar o cabelo e abraçassem a sua beleza. Em 1920, o Harlem Renaissance defendia a repatriação da África e uma geração de poetas, escritores e dançarinos abraçaram tudo aquilo que tivesse uma conotação africana a fim de renovar um novo senso estético coletivo para a comunidade afro-americana dos Estados Unidos (Craig, 1997 apud Banks, 2000).

Nos anos 1960 e 1970, com os movimentos “black is beautiful” e “black power”, o cabelo crespo passou a significar orgulho e poder. James Brown perfeitamente expressou esse momento no seu hit de 1968: “say it loud – i’m black and i’m proud” (“Diga alto: eu sou negra(o) e me orgulho disso!”). Naquele momento, as pessoas que não usassem seu cabelo como um afro – ou porque a textura não permitia, ou simplesmente porque preferiam alisar – eram consideradas “uma contradição, uma mentira, uma piada” (Gayles, 1993). O “black is beautiful” foi um movimento cultural e comportamental norte-americano dos anos 1960 que reposicionava a ordem simbólica dominante, que tratava as características físicas associadas aos negros como esteticamente inferiores. Para Mercer (1987), a radicalidade do slogan “black is beautiful” está na função do “IS”, como marcando uma afirmação ontológica da beleza negra, indo de encontro à negação do Song of Songs que a Europa reescreveu (na versão da Bíblia de King James) como “I am black but beautiful”.

Embora as pessoas associem muito fortemente o “black is beautiful” exclusivamente ao movimento norte-americano, as suas raízes, na verdade, remontam à luta antirracista na África do Sul. No violento contexto do apartheid sul-africano, um grupo de estudantes decidiu se organizar politicamente, debruçando-se sobre os problemas históricos do país e construindo um conceito libertário intitulado Consciência Negra. O conceito de Consciência Negra teve como principal protagonista Steve Biko, assassinado pelo regime do Apartheid. O conjunto de ideias do movimento extrapolou as fronteiras sul-africanas e influenciou a organização dos negros em diversos países, inclusive no Brasil (Gomes, 2008). Assim como os Panteras Negras nos EUA, o movimento Consciência Negra na África do Sul, nas décadas de 60 e 70, ajudou não só a pensar estratégias políticas de combate ao racismo como também formulou um conjunto de ideias que inspiraram o ativismo de jovens militantes negros em outros países.  A valorização da estética negra esteve fortemente presente nessa militância, já que suas reflexões eram sobre os condicionamentos mais profundos do racismo. É assim que surge o slogan “negro é lindo” (“black is beautiful”). Steve Biko afirma que a importância desse slogan reside na maneira como desafia uma crença na inferioridade negra que é, via de regra, assimilada pelos próprios negros, levando-os a uma negação de si (Silva, 2001, p. 34-37 apud Gomes, 2008).

Em 1966, no contexto de luta pelos direitos civis nos Estados Unidos, surgiu o movimento chamado “Black Power”. O país estava vivendo uma mudança significativa na sua luta por justiça racial e a década de 1960 assistiu a urgência do desmantelamento legal de uma sociedade segregada. Com a ênfase na história dos negros, da África e da escravidão, o movimento Black Power trouxe também um ímpeto pela mudança comportamental e estética. Nesse contexto, o cabelo Afro ocupou papel central, além da maneira de vestir, o uso dos “dashikis” e até a mudança de nomes para nomes africanos. Em síntese, além da defesa da necessidade de uma luta organizada, o movimento acarretou uma mudança em direção às raízes africanas (Ture e Hamilton, 1967).

Parte importante da agenda da luta antirracista norte-americana, o movimento Black Power tinha como central o conceito de autodefinição. Para esses militantes, a autodefinição era um componente essencial para a “revolução das mentes”: pré-requisito para uma mudança mais ampla.  Antes mesmo da ascensão econômica, então, os negros precisariam definir a si mesmos positivamente, porque, aprisionados na vergonha de si, seriam incapazes de alcançar a liberdade. Por isso, o uso das distinções físicas e culturais foi uma arma na luta pela libertação. Eles proclamaram que os negros são, de fato, lindos. A valorização da herança africana e da cultura negra pareceu essencial. Aqui, especialmente, fica óbvio que o Black Power buscava mais do que a garantia de direitos civis. Tratava-se um conceito cultural revolucionário que demandava importantes mudanças nos padrões da cultura norte-americana hegemônica (Deburg, 1992).

O Black Power colocou o conceito de “negro” de cabeça para baixo, despindo-o de suas conotações negativas em discursos racializados, transformando-o, assim, em uma expressão de uma identidade afirmativa de grupo. Esse movimento estimulou os negros norte-americanos a construírem a “comunidade negra” não como uma questão de geografia, mas antes em termos da diáspora africana global. “Negro” se tornou uma cor política. A ideologia do Black Power não reivindicava apenas um passado ancestral pré-determinado, mas, no próprio processo, também construía uma versão particular dessa herança.  Já que os processos culturais são dinâmicos e o processo de reivindicação é também mediado, o termo “negro” não precisa ser construído em termos essencialistas, mas pode ter diferentes significados políticos e culturais em contextos diferentes (Brah, 2006).

A radicalização em torno do uso do cabelo crespo “natural” foi central, já que este foi reforçado como ícone identitário e cultural. O uso do cabelo no estilo Afro passa a ser privilegiado, numa releitura do que era enfatizado pelos ativistas do Movimento de Consciência Negra sul-africano. Todos esses movimentos articulavam muito fortemente estética e política (Gomes, 2008). Embora o Afro tenha sido claramente mais poderoso símbolo estético das políticas do Black Power e do Black is Beautiful, associá-lo exclusivamente a esses movimentos recai numa velha narrativa masculinista. Muitos pesquisadores cometem esse equívoco; consequentemente, a associação do afro com a militância pós-1960 tornou-se “senso comum” no mundo dos acadêmicos que estudam sobre cabelo. Kelley (1997), no entanto, atenta para os perigos dessa abordagem. A autora considera, então, os episódios mais antigos de mulheres negras intelectuais e, também, os esforços dos cabelereiros profissionais especializados em cabelo crespo. Esse é um capítulo pouco explorado da história sociopolítica do cabelo crespo.

Com raízes nos círculos burgueses de alta moda no fim dos anos 1950, o Afro foi visto por negros e brancos de elite como um símbolo de “exotismo feminino”. Entre alguns círculos, ou pela busca por um cabelo saudável ou pelo desejo de expressar solidariedade para com os países africanos que se tornaram independentes, o Afro ganhou destaque como algo fashion (Kelley, 1997). Nesse âmbito, chegou a ser celebrado mesmo nos círculos burgueses de maioria branca. Ainda mais importante, é preciso enfatizar que, logo no início da década de 1960 (antes do “Black Power”), mulheres negras como Odetta, Abbey Lincoln e Nina Simone passaram a usar o cabelo sem alisamento (Jones and Jones, 1971 apud Kelley, 1997). Ou seja, mulheres negras também foram precursoras do Afro como estilo político.

Com os movimentos “Black is Beautiful” e, sobretudo, “Black Power”, o Afro passou a ser associado à rebelião.  Tornou-se, assim, símbolo da masculinidade negra e foi essencial para o surgimento da imagem do militante, do “virulento homem negro”. Essa masculinização do Afro permaneceu mesmo após os movimentos e contribuiu para um retrocesso contra as mulheres negras com cabelo natural. Mesmo tendo sido uma mulher negra, Angela Davis, um dos grandes nomes do movimento “black power”, o uso do cabelo afro por ela também recaiu nos problemas dessa masculinização – como será melhor explorado adiante. Por isso que, para as mulheres negras, mais do que para os homens negros, assumir o cabelo crespo “natural” tem consequências diferentes. Mais do que a valorização da negritude ou da descendência africana, significa uma rejeição direta de uma concepção de beleza feminina (Kelley, 1997).

No fim dos anos 1960, em meio a esses movimentos que ressignificaram a estética negra norte-americana, uma mulher negra teve destaque particular e foi diretamente associada ao cabelo Afro (Banks, 2000). Nascida em 1944, em Birmingham, um dos principais centros dos conflitos raciais dos EUA, Angela Davis é filósofa e um dos maiores nomes do feminismo negro. Através da circulação da sua foto como uma das pessoas mais procuradas pelo FBI, tornou-se mundialmente famosa. Membro dos Panteras Negras, Davis foi acusada injustamente de crimes e chegou até a ser presa, o que despertou a campanha Libertem Angela Davis” (“Free Angela Davis”), que mobilizou ativistas e intelectuais do mundo inteiro. O período em que permaneceu injustamente presa serviu para fortalecer o seu engajamento pela abolição do sistema carcerário.

Cartaz divulgado pelo FBI com Angela Davis como “procurada”.
Cartaz divulgado pelo FBI com Angela Davis como “procurada”.
Fonte: https://www.geledes.org.br/angela-davis/

O “Black Panther Party” (Partido dos Panteras Negras), do qual Angela Davis era membro, pode ter parte de sua atuação resumida no seu próprio slogan: “for self defense” (pela autodefesa). Contra a ideia de uma militância exclusivamente pacífica, os Panteras Negras surgiram como herdeiros políticos de Malcom X, assassinado em 1965, e aderiram à tática de guerrilha urbana contra a violência perpetrada contra a população negra – sobretudo a violência policial. Nesse momento, os Estados Unidos viviam forte tensão, conflito racial e a luta dos Movimentos Pelos Direitos Civis, cuja principal expressão foi Martin Luther King. A militância do “Black Panther Party” também consistiu na composição e distribuição de livros de bolso sobre o Direito a fim de introduzir a população negra no conhecimento básico de seus direitos legais. Assim, com armas e livros nas mãos, os panteras negras deixaram claro para a polícia que os negros não seriam mais vítimas, mas sim sujeitos conhecedores de seus direitos perante a lei (Deburg, 1992).

Como há sempre tensões envolvidas quando ideias culturais e sociais são transmitidas através dos corpos, esses movimentos não ficaram isentos de contradições e ambivalências. Aliás, em quase todos os trabalhos produzidos sobre os significados do cabelo para negras e negros, a ambivalência é uma das categorias centrais. Em certa medida, o “Black Power” e o “Black is Beautiful” normalizaram a beleza negra racializada, criaram uma ideia de “beleza negra natural” (Tate, 2007). Por isso que, em “The making of a permanet Afro”, Gloria Wade Gayles (1993) discute como o Movimento pelos Direitos Civis influenciou a decisão dela de usar um Afro. Naquele contexto, o cabelo alisado significava uma contradição em relação à afirmação da negritude.  Até hoje, essas ideias culturais sobre o que significa ser negro estão presentes, por exemplo, na dificuldade em enxergar força e empoderamento em uma mulher negra de cabelo alisado (Banks, 2000).

Mercer (1987) problematiza o notório apelo à naturalidade e à originalidade africana presente tanto com o aparecimento do estilo de cabelo rastafári, quanto com o “afro”, nos EUA, onde “Afro” sugere um link com a África através do nome e de sua associação com um discurso político radical.  Ambos invocam a “natureza” para inscrever “África” como símbolo de oposição política e pessoal à hegemonia do Ocidente. A associação também é parte de um processo contra-hegemônico que ajudou a redefinir os negros norte-americanos não como negros, mas como afro-americanos.  Acontece que nenhum cabelo é apenas “natural”, mas sempre marcado ou remarcado por convenções sociais e intervenções simbólicas.  A ideia do cabelo “natural” e o consequente link entre “África” e “natureza” implicam uma oposição a qualquer técnica artificial, como se qualquer elemento de artificialidade fosse imitação da Europa, identificação com os ideais estéticos brancos. Ou seja, essa “estética do natural” é utilizada a fim de se opor a qualquer artifício como signo de influência eurocêntrica.  Esses estilos, no entanto, nunca foram apenas naturais: foram estilisticamente cultivados e politicamente construídos em um momento histórico particular como parte de uma estratégia de contestação contra o poder da branquitude. Apesar de radical e importante, essa tática de inversão de categorias foi limitada. Uma razão é que o “natural” invocado não é um termo neutro; ao contrário, como já foi dito, é uma ideia ideologicamente criada segundo a lógica binária e dualista da cultura Europeia. A associação da África à natureza foi fundamental para a hegemonia do ocidente (Mercer, 1987).

Outro exemplo é o já mencionado “Harlem Renaissance”. Um de seus espetáculos, chamado “New Negro”, invocava uma África mitológica, imaginária de nobre selvageria e primitiva graça, o que nada mais é que a reescrita da mitologia romântica criada pelo Iluminismo Europeu (Mercer, 1987). Mbembe (2014) também tece críticas semelhantes aos poetas da Negritude, porque, para eles, o “negro” passa a ser quase uma essência, uma “arma miraculosa” com que todos os negros da diáspora se identificariam.  Nesse movimento, esses poetas estariam endossando a narrativa que existe por trás da ideia racializada do “negro”.  Essa tática contra-hegemônica de inversão se apropriou de uma versão romântica particular da natureza como um meio de empoderar os sujeitos negros; por permanecer na lógica binária dualista, o momento de ruptura, no entanto, foi delimitado pelo fato de que foi apenas uma África imaginária que foi colocada em jogo (Mercer, 1987).

A reivindicação tanto de uma africanidade como de uma americanidade fez parte dos supracitados movimentos de ressignificação da estética negra.  Segundo Mbembe (2014) isso aconteceu como reflexo da “dupla consciência” da maioria dos pensadores negros da época. Mercer (1987) defende, ainda, que não há nada de particularmente africano nos dreads e no Afro: eles são estilos especificamente diaspóricos. Em África, eles não significam africanidade. Ao contrário, eles podem implicar uma identificação com o “primeiro mundo”, como uma imagem metropolitana de negritude, embora esses estilos expressem fortemente um desejo de “retorno às raízes”. Essa associação com a “naturalidade” e, consequentemente, com a natureza tem muito mais a ver com a Europa do que com a África (Mercer, 1987).  Longe de negar a grande importância desses movimentos, é preciso sempre ter atenção e cuidado para que a afirmação da diferença não recaia na inversão do mesmo. Sendo o racismo estruturante na sociedade, a linha entre a sua superação e manutenção é muito tênue. A atenção aos limites alarga a compreensão das possibilidades de tais processos. Apesar desse olhar cuidadoso, o mais evidente e importante são os méritos de movimentos que reivindicam algo tão fundamental para a relação das pessoas consigo mesmas que é a beleza.

Infelizmente, esses estilos de cabelo também foram, em certa medida, despolitizados e absorvidos pela moda. Uma vez comercializado no espaço do mercado, o Afro perdeu sua significação específica como um enunciado político-cultural negro.  Dissociado de seus contextos políticos originais, tornou-se, em alguns espaços, apenas um acessório fashion. Angela Davis discutiu as ambivalências de ser reduzida a um penteado e todas as sutis implicações da sua associação ao Afro.

Ela relata o episódio em que uma mulher advertiu um homem que não a reconheceu: “Você não sabe quem é Angela Davis? Você deveria se envergonhar!”. Ao que ele respondeu: “Oh! Angela Davis! O Afro!”. Essa associação fez com que ela se sentisse humilhada ao perceber que, uma única geração após os eventos que a construíram como uma pessoa pública, ela era lembrada apenas como um “penteado”. Isso reduziu toda uma política de libertação ao universo fashion, além de demonstrar a fragilidade e a mutabilidade das imagens históricas, particularmente as associadas à história afro-americana (Davis, 1994).

A associação do Afro à moda, a um glamour revolucionário, fez Davis também relembrar um artigo da New York Magazine que a listou como uma das quinze maiores influenciadoras fashion do último século. Como, após a acusação de assassinato, sequestro e conspiração, a ampla circulação de várias fotografias dela tiradas por jornalistas disfarçados de policiais e por ativistas, sua imagem é reduzida ao universo fashion?  Ela se sentiu violada (Davis, 1994). Como já mencionei, ela viveu um verdadeiro terror quando o FBI a colocou na lista dos dez mais procurados criminosos do país. Foragida, tentou mudar completamente sua aparência a fim de não parecer mais perigosa. Esse aspecto, na minha opinião, reitera o quanto o cabelo crespo é colocado fora das noções de feminilidade. Assumir o cabelo “natural” tem implicações diferentes para mulheres e homens negros. Angela Davis, para romper com a imagem de perigo que foi atrelada a ela, usou uma peruca com cabelo liso, longos cílios, sombras, blush etc. tudo que ela achou que poderia remeter ao glamour feminino. Essa pareceu uma maneira de anular a probabilidade de ser percebida como uma revolucionária perigosa. O que a impactou, então, foi que, de repente, essa imagem “revolucionária” e que ela tentou camuflar com artifícios de feminilidade pudesse se transformar, uma geração depois, em glamour e nostalgia (Davis, 1994).

A ampla divulgação de sua foto na lista dos procurados do FBI, na qual ela aparece com o cabelo Afro, teve fortes consequências na sua vida e na de outras mulheres negras, porque implicou na criação de imagens genéricas das mulheres negras com cabelo “natural”. Ela ouviu que talvez centenas ou milhares de mulheres que usavam o mesmo tipo de cabelo foram assediadas e até presas pela polícia, pelo FBI ou por agentes de imigração durante o tempo em que ela esteve foragida. A sua fotografia identificou um vasto número de corpos femininos negros com estilo black power como alvos de repressão. Esse é o passado secreto que existe por trás da associação do seu nome ao Afro. A transformação deste em uma “nostalgia fashion” apaga as consequências políticas que existiram não só na vida de Angela Davis, mas também na de muitas outras mulheres negras. Segundo ela, “nós precisamos encontrar maneiras de incorporar o Afro na memória política e social, em vez de usá-lo como algo que encoraja a atrofia de tamanha memória” (Davis, 1994). Mercer (1987) sugere que o fato de o Afro ser neutralizado e incorporado tão rapidamente reflete que a sua intervenção estética opera em um terreno já mapeado pelos códigos simbólicos da cultura branca dominante.

Apesar de tanto homens negros quanto mulheres negras rejeitarem alisar o cabelo no contexto desses movimentos de ressignificação da estética negra, houve diferentes implicações para as mulheres negras (Craig, 1997; Kelley 1997).  Para elas, assumir o cabelo “natural” não é só uma valorização da negritude ou da descendência africana, mas uma rejeição direta de uma concepção de beleza feminina que inclusive muitos homens negros reiteram. Marcus Garvey, cuja importância nesse contexto histórico já foi mencionada, foi reportado como fascinado pelo longo cabelo da sua esposa. Em suas memórias, a segunda esposa de Garvey, Amy Jacques Garvey que, diferente se sua primeira esposa, tinha a pele mais clara e o cabelo longo ondulado escreveu que ele era fascinado pelo comprimento e pela textura do seu cabelo, que ele considerava suave (Garvey 1963:186 apud Rosado, 2007). Enquanto, em público, Marcus Garvey defendia o orgulho racial negro e a nova definição de beleza negra, ele era privadamente fascinado pelo longo cabelo da esposa. A própria propensão de Garvey indica que a batalha em torno do cabelo é ao mesmo tempo pública e extremamente privada (Rosado, 2007).

A partir desse apanhado histórico dos movimentos de ressignificação da estética negra, podemos compreender melhor como seus reflexos foram sentidos no Brasil. A partir daí, houve um movimento crescente no sentido de também ressignificar essas características físicas, destacando-as e valorizando-as. A redefinição do lugar estético do cabelo crespo ocupa um lugar fundamental, como mostra a etnografia de Gomes (2002) em torno dos chamados salões de beleza étnicos na cidade de Belo Horizonte. Nilma Lino Gomes desenvolveu uma pesquisa etnográfica realizada em quatro salões étnicos da cidade de Belo Horizonte a fim de compreender o significado social do cabelo e do corpo e os sentidos a eles atribuídos por indivíduos negros. Evidente que a importância do cabelo e do corpo não se limita aos salões. O contato com eles, no entanto, levou-a a refletir que ser negro no Brasil está relacionado com uma dimensão estética, com um corpo; daí o seu potencial enquanto resistência política.  Na sua pesquisa, o cabelo do(a) negro(a) é considerado não de maneira isolada, mas dentro do contexto das relações raciais construídas na sociedade brasileira. A autora trabalha com quem assumiu o cabelo crespo através de uma revalorização que extrapola o indivíduo e atinge o grupo étnico-racial a que pertence.

Apesar de os salões populares que atendem à clientela negra serem uma realidade no Brasil há muitos anos, não havia uma ênfase na afirmação racial ou na luta política. Os espaços de beleza considerados étnicos surgem junto com a efervescência dos supracitados movimentos sociais, no final da década de 1970, e fortalecem-se nos anos 1980 e nos anos 1990. Esses espaços são criados não somente para o tratamento dos cabelos crespos, mas, principalmente, para a construção de um discurso afirmativo de negritude (Santos, 2000). O cabelo crespo passa por um processo de revalorização, o que não deixa de apresentar contradições e tensões próprias do processo identitário. Essa revalorização extrapola o indivíduo e atinge o grupo étnico/racial a que pertence. Por isso que o entendimento do significado e dos sentidos do cabelo crespo pode nos ajudar a compreender e a desvelar as nuances do nosso sistema de classificação racial (Gomes, 2008). Além dos salões étnicos, outro bom indicador das mudanças ocorridas nesta área também é fornecido pela imprensa. O lançamento da revista Raça Brasil, em setembro de 1996, é um marco.

As vendas de Raça Brasil contrariaram três dogmas do mercado editorial: o de que os negros não têm poder de compra de produtos supérfluos; o de que revistas que trazem negros na capa não vendem e o de que o negro brasileiro não tem orgulho da raça… (Jornal da Tarde, 13/10/96 apud Figueiredo, 2002).

O sucesso da revista, constatado pela tiragem expressiva de 300 mil exemplares já no primeiro número, foi importante também pelo estímulo que prestou para debates acerca da existência de produções específicas para o consumidor negro. Ficou evidente a existência de uma classe média negra e, consequentemente, de um poderoso nicho de mercado. Não por acaso, em todos os números, invariavelmente, há matérias sobre cabelo (Mizrahi, 2015).

Marcado pelo mito da democracia racial, o Brasil reproduz um racismo ambíguo: real, mas mascarado pela ideia falaciosa de harmonia racial. Nesse cenário, a ode à mestiçagem tem papel central. Como já foi mencionado, tal mito prestou e ainda presta um grande desfavor à população negra brasileira. Esse discurso também perpassa a ressignificação da estética negra: o maior salão para cabelos crespos no Brasil é justamente o que esvazia a questão racial.

Com 39 filiais pelo Brasil e uma recém-inaugurada (em 2017) em Nova York, o Instituto Beleza Natural tem como principal serviço a transformação de cabelos crespos em cabelos cacheados. Suas criadoras são duas mulheres negras que, a partir da própria experiência com seus cabelos, impulsionaram um novo tipo de tratamento capilar. Zica Assis foi babá e faxineira e, embora amasse seu cabelo black power, foi obrigada a alisá-lo para conseguir um emprego. Inconformada, ela se debruçou no estudo para se tornar cabelereira e passou 10 anos pesquisando uma fórmula para tratar seus cabelos sem perder a originalidade do fio. Nesse processo de estudo árduo sobre cabelos, ela se tornou uma expert em fios crespos, cacheados e ondulados. Em 2013, a revista americana Forbes incluiu Zica na lista das 10 mulheres mais poderosas do Brasil. Leila Velez também partiu da sua experiência situada de mulher cacheada e de origem humilde (trabalhou no McDonald’s e, ainda aos 16, foi promovida a gerente). Ela desenvolveu o conceito de uma experiência única para as clientes e o compromisso com preços acessíveis e resultados verdadeiros. Em 2014, Leila Velez foi escolhida uma das Young Global Leaders pelo Fórum Econômico Mundial de Davos[3].

O Instituto Beleza Natural é a maior rede de salões voltada para o tratamento de cabelos crespos no Brasil e, segundo Cruz e Figueiredo (2015), o seu sucesso está relacionado aos sentidos de uma identidade brasileira com base nas noções de morenidade. As autoras defendem ainda que um dos fatores que contribuem para o sucesso do salão é exatamente o silenciamento da raça e a emergência da identidade cacheada, que parece estar em perfeita consonância com o discurso da identidade nacional. No Instituto Beleza Natural, há uma recusa ao cabelo alisado, no sentido de torná-lo liso, mas há, igualmente, uma recusa ao cabelo crespo, considerado sem balanço. Com o uso de produtos químicos, o que para a clientela dos salões étnicos pode ser visto como negação da raça, o Instituto Beleza Natural entrelaça inserção social, afirmação de traços mestiços e autoestima (Cruz e Figueiredo, 2015).

Transição capilar: um novo capítulo

Infelizmente, não caberá, no escopo deste artigo, discorrer sobre esse novo momento na “história sociopolítica do cabelo crespo”. Vale dizer, pelo menos, que está, atualmente, em evidência um novo capítulo na história da ressignificação da estética negra. Fenômeno transnacional, articulado, principalmente, via internet, a transição capilar vem sendo vivenciada e compartilhada por milhares de mulheres negras no Brasil e em outros países. Esse processo consiste na ressignificação de cabelos que eram quimicamente alisados e no retorno ao cabelo natural. Para se livrar da química, é necessário esperar o crescimento de um cabelo totalmente novo, o que acarreta, por exemplo, o “problema das duas texturas”, qual seja: o contraste entre a parte alisada e o cabelo novo que cresce na raiz. Uma das partes mais importantes é, justamente, o corte do cabelo quimicamente tratado; muitas mulheres, inclusive, não esperam muito o crescimento do cabelo natural e optam pelo BC (“big chop” ou grande corte, em português), o que significa raspar a cabeça ou cortar o cabelo bem curto. Esse processo é muito difícil e marca profundamente a vida dessas mulheres.

Já que o enxergo como um capítulo de uma longa história, o movimento pela transição capilar apresenta continuidades em relação aos antigos movimentos aqui trabalhados (assim como no “black is beautiful”, por exemplo, essas mulheres estão reivindicando a beleza negra com ênfase na aceitação do cabelo “natural”). Apesar dos pontos em comum, o boom pela transição tem suas especificidades.  Por exemplo, podemos associá-lo a dinâmicas do capitalismo neoliberal cuja tendência é uma maior individualização e consequente fragmentação das pautas políticas, bem como da identidade racial (GOMES, 2008). Autoras como Ingrid Banks (2000) e Ashley Dunn (2015) também discorreram sobre a mudança existente na nova gramática social do uso do cabelo crespo e atrelaram o ressurgimento da importância do cabelo a partir da década de 1990 ao crescimento do individualismo. Defendo que, apesar dessa associação, a transição capilar, acarreta, via de regra, o reconhecimento de uma identidade negra antes negligenciada. É um processo que vai muito além do cabelo e implica a negociação de identidades complexas, sobretudo em um país que vive sob a égide de um racismo ambíguo.

Conclusão

Longe de encerrar qualquer debate, busquei iluminar uma discussão cara no âmbito das relações raciais: a importância da estética negra na luta política antirracista. A negação da beleza negra remete ao período escravocrata e o cabelo crespo foi e continua sendo, junto com a cor da pele, um dos principais sinais diacríticos da negritude.  A maneira como a sociedade naturalizou um discurso que taxa o cabelo crespo de “cabelo ruim” mostra a arbitrariedade de uma faceta do racismo cujas marcas são profundas na vida das pessoas negras. Compreender como se deu a construção desse discurso é fundamental para desmantelar o projeto histórico de hegemonia racial dos brancos.


* Anita Maria Pequeno Soares é formada com dupla-titulação em Ciências Sociais pela UFPE e em Sociologia pela Universität Hamburg. Mestra em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPE e, atualmente, doutoranda no mesmo programa.

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Notas

[1] As fontes diferem em alguns anos em relação às datas de seu nascimento e morte.

[2] “Diga alto: eu sou negra(o) e me orgulho disso!” (tradução minha)

[3] Fonte: http://www.belezanatural.com.br.

PALMARES E A ESCRAVIDÃO, NO FEMININO: AS HISTÓRIAS DE GAYL JONES

Resumo: Este estudo aborda a escravidão no Brasil a partir da escrita imaginativa de Gayl Jones (1949 – ), que dialoga com a historiografia em abordagem interamericana e diaspórica. A autora negra do estado de Kentucky, sul dos Estados Unidos, recorre à história colonial brasileira para contar histórias emocionadas e contundentes no romance Corregidora (1975) e nos poemas narrativos Song for Anninho (1981) e “Xarque” (1985). Narrados por uma mulher negra em primeira pessoa (respectivamente, uma descendente de escravas, uma palmarista e uma escrava), os textos de Jones se modulam em tons de blues para revelar os sonhos, lutas e dores de mulheres negras nas Américas.

Palavras-chave: Brasil colonial; mulheres negras; diáspora; Américas; contar histórias.

Abstract: This essay approaches slavery in Brazil through the imaginative lenses of Gayl Jones (b. 1949), a black writer from the southern state of Kentucky, in the United States.  The inter-American, diasporic concerns in her literature set up a dialogue with Brazilian colonial historiography to tell touching, dramatic stories in the novel Corregidora (1975) and the narrative poems Song for Anninho (1981) and “Xarque” (1985). With a woman as first person narrator (respectively, a descendant of former slaves, a Palmarista or maroon, and a slave), Jones’s texts echo sounds of the blues to reveal the dreams, struggles, and pains of black women in the Americas.

Keywords: colonial Brazil; black women; diáspora; the Americas; storytelling.

Eu me considero, na verdade, uma contadora de histórias.
[…] “Contar histórias” é algo dinâmico, em processo […que] me sugere
possibilidades, muitas possibilidades […]. Também me vejo como contadora
de histórias devido à conexão entre palavra falada e escrita […],
entre tradições orais e documentos escritos. […E] é preciso documentar as
tradições – para combater os efeitos das documentações falsas[1]

(Gayl Jones, 1979, p. 355-56).

Partindo de um viés alternativo para abordar a escravidão no Brasil, este estudo privilegia as histórias contadas em prosa e verso pela escritora negra Gayl Jones. Numa literatura que acena de modo especial aos brasileiros, Gayl Jones convoca nossa atenção para a agudeza do seu olhar e a contemporaneidade de sua abordagem interamericana e diaspórica. Nascida em 1949 na cidade de Lexington, no estado sulista de Kentucky, Estados Unidos, onde ainda vive, a escritora recorreu diversas vezes à história colonial brasileira para compor suas obras, ainda não traduzidas para o português. A mais conhecida em seu país é provavelmente seu primeiro romance, Corregidora (1975), cujo manuscrito causou uma impressão tão forte em Toni Morrison (então editora da Random House), a ponto dela declarar que “nunca mais um romance sobre uma mulher negra poderia ser o mesmo” depois daquele texto revolucionário da iniciante Gayl Jones (apud Ghansah, 2015).[2] Além da valiosa recomendação de Morrison, Corregidora recebeu mais adiante o aval transnacional do autor de O Atlântico negro [The Black Atlantic, 1993] e professor da University of London, Paul Gilroy, que vem estampado na contracapa do romance de Jones na edição de 1987: “O panorama de trauma e superação em Corregidora se tornou ainda melhor e mais relevante com a passagem do tempo. Continua sendo um indispensável ponto de entrada para a tradição da escrita afro-estadunidense, que Gayl Jones renovou e enriqueceu”.[3]

O enredo do romance entrelaça o tempo presente – os anos 1950-1970 em Kentucky – e os traumas coletivos carregados pela narradora Ursa Corregidora, uma cantora de blues, que dá voz e descende de mulheres que foram escravas no Brasil do século XIX, traumatizadas, estupradas e permanentemente marcadas com o nome do senhor de escravos, Corregidora. Nos longos poemas narrativos Song for Anninho (1981) e “Xarque” (1985), por outro lado, Gayl Jones escolhe uma mulher quilombola (denominada Almeyda, em Anninho) e uma escrava urbana (Euclida, em “Xarque”) para contar em verso suas vivências e memórias. A autora recria acontecimentos dos séculos XVII e XVIII, respectivamente, remetendo a locais, fatos e personagens da história colonial brasileira. Mas são, principalmente, histórias femininas e intimistas, imaginadas por Gayl Jones e narradas em primeira pessoa, falando de amores, alegrias, medos, sofrimentos, luta e sobrevivência.

Esses três textos publicados num período de dez anos – Corregidora (1975), Song for Anninho (1981) e “Xarque” (1985) –, compõem o referencial básico para este artigo, lembrando que o interesse da autora norte-americana sobre a história e a cultura afro-brasileira não se encerra neles; abarca vários outros escritos.[4]

Gayl Jones na literatura negra dos Estados Unidos

A obra de Gayl Jones compartilha características marcantes e inovadoras com outras escritoras que publicaram nos Estados Unidos nas décadas de 1970 e 1980.  Pode-se destacar, por exemplo, o entrelaçamento da imaginação literária com a história do país e, ultrapassando fronteiras nacionais, com a diáspora africana nas Américas; a ênfase dada às memórias e raízes familiares; e o foco voltado para a mulher (assumido ou não como feminista). Durante essa verdadeira Renascença da literatura feminina/ negra, há um boom na publicação e visibilidade de uma variedade de autoras e gêneros. Além de Gayl Jones, afirmam-se nomes como Paule Marshall, Audre Lorde, Ntozake Shange, Maya Angelou, Toni Cade Bambara, Alice Walker e Toni Morrison. Um traço distintivo no trabalho de Jones e de outras escritoras da época é a consciência das afinidades existentes entre o seu lugar de origem, a área continental dos Estados Unidos, e o Caribe e/ou partes da América Latina. Chama atenção o fato de que três das citadas acima, Jones, Marshall e Shange, deram especial relevo a aspectos da história e da cultura afro-brasileira em suas obras.[5]

Gayl Jones com frequência associa seu trabalho com a linguagem oral e a cultura negra dos Estados Unidos, mas também manifestou sua admiração por romancistas latino-americanos bastante conhecidos em seu país nos anos 1970.  Em entrevista de 1979, Jones declarou que a maior influência que recebeu sobre conceitos de ficção veio de Carlos Fuentes e Gabriel García Márquez. A lista de pontos que ela detalha é longa: “imagem, mito, história, linguagem, metáfora, movimento entre tipos diferentes de linguagem e de níveis de realidade […], a relação entre presente e passado com a paisagem […], as ‘revoluções’, ou tipos de mudanças constantes – coisas políticas (Chile, México, Brasil)”. Na percepção de Gayl Jones, a maioria dos escritores latino-americanos é “moral e socialmente” responsável, conciliando “inovação técnica” com implicações humanas. Preocupados com os “pesadelos históricos e contemporâneos” que atormentam seus povos, os escritores latinos, assim como os negros e indígenas dos Estados Unidos, “são sempre responsáveis”, contagiando a autora com sua energia e despertando nela um sentimento de confiança e de grande afinidade [kinship] (Jones, 1979, p. 366-67).

Algumas das escritoras que então despontavam viriam a ser reconhecidas e premiadas, influenciando tendências naquele país e em outras partes do mundo. Destacam-se Alice Walker, primeira autora negra a ganhar um prêmio Pulitzer de Literatura/Ficção (para A cor púrpura [The Color Purple], 1983) e Toni Morrison, agraciada com um Pulitzer/Ficção por Amada [Beloved] em 1988 e com o Nobel em 1993. Outras, como Gayl Jones e Paule Marshall, receberam prêmios e são valorizadas por leitores exigentes, mas suas obras merecem um reconhecimento bem maior, como enfatiza Volk (2001).

A efervescência dos anos 1970-80 contribuiu para a reedição de escritoras relegadas ao esquecimento, como Zora Neale Hurston (1891-1960), que alcança um lugar de respeito na literatura do século XX, e Frances Harper (1825-1911), poeta e romancista do século XIX, ativista política das causas negras e feministas. Essa energia impulsionou também a expansão e o prestígio da teoria crítica sobre a literatura feminina negra e/ou diaspórica, com nomes como bell hooks (em minúsculo), Barbara Christian, Mary Helen Washington, Hortense Spillers, Barbara Smith, Susan Willis e Hazel Carby, além de influentes ensaios produzidos pelas autoras de poesia e ficção e das parcerias feministas inter-raciais e interculturais que se abrem a uma crescente interamericanidade.

Relações interamericanas, transnacionais, diaspóricas

Toda essa movimentação na literatura e na crítica não acontece de forma isolada; ela tanto repercute quanto revigora mudanças sociais e culturais que se propagam nos Estados Unidos e em outras partes do mundo na segunda metade do século XX. Há os processos de independência de ex-colônias europeias na África e na região caribenha, intensificados naquela época; o incremento de contatos acadêmicos interamericanos e a grande migração de chicanos, latino-americanos e caribenhos para os Estados Unidos. Temos ainda o movimento dos Direitos Civis, os protestos políticos contra a guerra e pela liberdade, a contracultura, as organizações e bandeiras raciais (como Black Power, Black Arts, Afrocentrism) e o movimento feminista, em ramificações diversas. O feminismo negro reforça a necessidade de reconhecer e privilegiar este segmento específico, tendo em vista que, como afirma hooks (1981, p. 7), “nenhum outro grupo nos Estados Unidos teve sua identidade tão excluída do corpo social quanto as mulheres negras”.[6] Em graus e estilos variados, a literatura negra de autoria feminina se associa à expansão de pesquisas acadêmicas nas áreas de história e estudos sociais abordando o colonialismo e seus legados, a diáspora africana nas Américas, os sistemas escravistas, as formas de resistência escrava, os mecanismos de sobrevivência e adaptação, além da relação entre países americanos, sua cultura e história.[7]

É verdade que o reconhecimento dos laços culturais e raciais de caráter interamericano não era algo novo naquele país. Já nas primeiras décadas do século XX, época do primeiro boom da música e literatura black no Harlem, Nova York – a chamada Harlem Renaissance –, o poeta Langston Hughes (1902-1967) cruzava fronteiras, visitando e escrevendo particularmente sobre o México e Cuba. Desde então, os olhares e interesses de escritores, artistas, músicos, intelectuais e pesquisadores negros dos Estados Unidos se voltam cada vez mais para o espaço caribenho em razão da sua centralidade geográfica, da pluralidade cultural e da violência histórica ali gerada e irradiada desde a chegada dos europeus, com a dizimação de povos nativos e a implantação do tráfico escravista.

Vale lembrar o conceito de “Extended Caribbean” ou Grande Caribe, imaginado pelo viés da economia política por Immanuel Wallerstein (1980) para sublinhar características comuns às áreas onde milhares de africanos foram escravizados para garantir o domínio europeu sobre as colônias. Ultrapassando o âmbito das ilhas que marcam o começo da América e interligam hemisférios, e mesmo o conjunto de países em torno do Mar do Caribe, o termo “Extended Caribbean” é tomado emprestado e adaptado aqui para abranger a faixa ao longo do Oceano Atlântico que se estende aproximadamente deste o estado de Maryland, nos Estados Unidos, até o sudeste do Brasil. Reproduzido abaixo, um mapa inspirado em Wallerstein remete à conexão histórica, cultural e econômica entre hemisférios, países, regiões e cidades geograficamente distanciados e politicamente separados por fronteiras e línguas.

Grande Caribe / Afro-América (Coser, 1994, p. xii)
Grande Caribe / Afro-América (Coser, 1994, p. xii)

O estudo de Wallerstein interliga as economias “modernas” das sociedades que se desenvolveram no “Grande Caribe” em torno das minas de ouro e/ou das plantations, as fazendas de cana de açúcar, algodão e café, com base na mão de obra africana escravizada. Seu conceito oferece um recurso estratégico para abordar a escritora Gayl Jones que, a partir de Kentucky, nos Estados Unidos, focaliza importantes momentos históricos em pontos geográficos diversos do Brasil colonial. Outros historiadores e antropólogos daquele país usam denominações como “Plantation America” e “Afro-America” para identificar aproximadamente a mesma área, mas com interesse primordial nas questões raciais e socioculturais decorrentes da escravidão (por exemplo, Charles Wagley, 1968, p. 14).

A Afro-América une hemisférios, entrelaçando histórias coloniais e culturas de raízes africanas, e o Brasil tem lugar destacado nesse espaço e nessa história. Em 2018 o Museu de Arte de São Paulo (MASP) e o Instituto Tomie Ohtake abriram ao público uma grande mostra intitulada Histórias afro-atlânticas, com “obras de arte e documentos relacionados aos ‘fluxos e refluxos’ entre a África, as Américas, o Caribe e também a Europa, ao longo de cinco séculos”. Como parte da proposta de “descolonizar” a percepção do saber e da arte e transformar museus em espaço “diverso, inclusivo e plural”, a exposição centralizou a matriz africana, explorou as rotas entre continentes e privilegiou os afrodescendentes em suas obras de arte e formas de resistência. Em seu mapeamento, a Afro-América se expande para incluir até o Uruguai. Nesse enorme cenário, os diretores do Museu enfatizam: “O Brasil é um território chave nessas histórias, pois recebeu cerca de 40% dos africanos que deixaram seu continente, durante mais de trezentos anos, para serem escravizados deste lado do Atlântico” (Martins e Pedrosa, 2018, p. 28).

Nas últimas décadas do século XX e primeiras do século XXI, intensas migrações internacionais provocam mais aproximações, misturas, choques e embates. A evolução nas comunicações e transportes facilita contatos sociais e profissionais e a disseminação de saberes, mas também traz maior concentração de poder e riqueza. Esses fatores têm estimulado questões renovadas sobre antigos e novos colonialismos, a persistência de valores eurocêntricos e esquemas de discriminação com base em local, raça, cor, gênero, religião e outros marcadores de diferença. Tais dilemas trazem impulsos adicionais para a expansão de estudos literários e culturais de caráter interamericano/ diaspórico/ global e o desenvolvimento de ferramentas teóricas que contribuam para a análise dos novos desafios.

Este trabalho se desenvolve em grande parte com o suporte de estudos sobre a escravidão brasileira e formas de rebelião adotadas pelos escravos, associados a pesquisas sobre a persistência de legados patriarcais e coloniais, dentro de um quadro crítico-conceitual que inclui estudos feministas, culturais e de-coloniais, com elaborações sobre identidades afro-americanas e hibridismos culturais. Os cruzamentos e colaborações podem ser pensados como movimentos culturais minoritários, transversos e transnacionais, sob o conceito de “minor transnationalism” (Lionnet & Shih, 2005, p. 7-9), relacionado às teorias da relação e transversalidades elaboradas por Édouard Glissant (1928-2011). Em diversos momentos o pensador nascido na Martinica ressalta a interligação das Américas e a importância caribenha, e as razões são muitas:

O Caribe sempre me pareceu ser uma espécie de prefácio ao continente americano. […] Foi o lugar do primeiro desembarque dos escravos vítimas do tráfico, dos escravos que vivenciaram o tráfico – e que depois eram orientados para a América do Norte, para o Brasil, ou para as ilhas da região. […] Repito sempre que o mar do Caribe se diferencia do mar Mediterrâneo por ser um mar aberto, um mar que difrata […] e leva à efervescência da diversidade. Ele não é apenas um mar de trânsito e de passagens, mas é também um mar de encontros e de implicações (Glissant, 2001, p. 14-17).

O Brasil imaginado por Gayl Jones

Desde a primeira metade do século XX, o Brasil é foco constante de atenção para estudiosos norte-americanos da história colonial, relações inter-raciais e africanismos, as heranças africanas perceptíveis na cultura do país, principalmente na linguagem, culinária e bebida, música e dança, religião, crenças e costumes.[8] Têm a expectativa de encontrar aqui traços ou indícios relevantes para os muitos descendentes de africanos violentamente cortados de sua história e de seus ancestrais. Afinal, o Brasil foi o maior importador de escravos africanos nas Américas e o último a abolir totalmente a escravatura, tendo hoje a maior população de descendência africana fora da África. Por outro lado, a igualdade racial permanece um objetivo a ser conquistado. Como aponta Heloisa Toller Gomes (2009, p. 15) com referência ao Brasil e aos Estados Unidos, “aqui e lá (assim como em todas as antigas sociedades coloniais nas Américas, erigidas sobre a escravidão), os códigos de conduta diante das relações étnico-raciais se mantiveram obstinadamente refratários a mudanças”, deixando espaços vazios e “silêncios eloquentes” a respeito da escravidão e da pessoa negra.

Gayl Jones, menina tímida e pobre que amava ouvir as conversas dos adultos e as histórias escritas e lidas por sua mãe Lucille, foi sempre fascinada pelo ato de imaginar e contar histórias. A linguagem oral, os sons das palavras, a música e os relatos sobre o passado encantavam e inspiravam a garota que já escrevia seus primeiros registros aos sete/oito anos de idade. Até a adolescência estudou em escola segregada, só para negros, quando afinal começa a integração racial nos estados sulistas. Falando como autora a uma entrevista, citada em epígrafe, Jones se define como uma “contadora de histórias” [storyteller], que tenta reproduzir o ritmo e a integridade das narrativas orais, buscando conexão com o ouvinte. Ela retoma esse tipo de narrativa que é tradicional e ao mesmo tempo dinâmica, em processo, atuando na contraposição às “documentações falsas” (Jones, 1979, p. 355-356).

Nos anos 1970, a escrita de Gayl Jones se afirma com o desejo de registrar tradições, reescrever a história e preencher lacunas, particularmente sobre a figura complexa da mulher negra e escrava, ainda ignorada por estudiosos e mantida na sombra. A escritora procura, porém, abrir relações e horizontes em seus textos literários e ensaios críticos, abraçando culturas mestiças e criando interações entre personagens de raças diversas, fugindo à pureza monocromática e à dicotomia preto/branco ou afro/euro. Afastando-se também do foco exclusivo no país, a escritora defende uma “estética do Terceiro Mundo” que comporia o legítimo “romance afro-americano” [“the African-American novel”]: enraizado no folclore e histórias orais, estética e criticamente “decolonizado”, “afrocêntrico” e, ao mesmo tempo, “multicultural”, “multiétnico” e feminista, ou melhor, “Afro-womanist” (Jones, 1994, p. 507-512).

O termo adotado por Jones agrega o referente “Afro” a “womanist”, conceito proposto dez anos antes por Alice Walker (1984, p. xi-xii), acentuando a diferença feminina-negra.[9] Gayl Jones se alia também à obra literária de Alice Walker, escritora do estado da Georgia e, portanto, sulista como ela, para ilustrar a conexão entre o presente e a história e também as marcas de ambivalência e contradição em temas e personagens. Tem interesse pessoal na complexidade das relações humanas, as ambiguidades, paradoxos, violências e tensões, pontos que definem sua própria escrita e que também percebe em Alice Walker (Jones, 1982, p. 38).

Tais características se entrelaçam nos ‘textos brasileiros’ criados por Gayl Jones, nos quais a escritora combina fatos e personagens históricos, lendas folclóricas (em torno do jabuti, por exemplo), referências linguísticas e aspectos culturais, sem ter nunca visitado pessoalmente o país. Foi possivelmente inspirada por suas muitas leituras e pelo contato com professores e poetas, como Michael S. Harper (1938-2016), seu mentor durante o mestrado e doutorado na conceituada Brown University. Sensível, poeta premiado e professor admirado, Harper era profundamente interessado em história, mito, folclore negro, nos ritmos do jazz e do blues e, também, na cultura de outros povos e raças.

A entrevista concedida a Charles H. Rowell em 1982 possibilitou a Gayl Jones esclarecer seu prolongado interesse na escravidão do Brasil e situar-se num quadro amplo e interamericano: “Gostaria de poder lidar com todo o continente americano em minha ficção – a totalidade das Américas – e escrever com imaginação sobre negros em qualquer lugar e em toda parte.” [10] Segundo a autora, os contatos com a cultura brasileira, ainda que de forma indireta, contribuíram para o enriquecimento do seu próprio trabalho, pois “recorrer à história e à paisagem brasileira ajudaram minha imaginação e minha escrita”. Para alcançar isso, Jones desenvolveu “a necessária pesquisa sobre fatos históricos e sociais”, inclusive para reportar-se a figuras históricas (como Zumbi, Ganga Zumba, Domingos Jorge Velho etc.) e também para se apropriar de alguns nomes e atribui-los a personagens imaginários bem distanciados do ‘original’.[11] É o caso do sobrenome do governador de Pernambuco, D. Pedro de Almeida, usado como primeiro nome da mulher Almeyda, sobrevivente de Palmares, personagem-título do conto “Almeyda” (1977) e protagonista-narradora no poema Song for Anninho (1981), rememorada em “Xarque”(1985). A experiência brasileira (“puramente literária e imaginativa, já que nunca estive lá”, declara Jones) permitiu à escritora maior flexibilidade para abordar a extrema violência contra a mulher (e não ser acusada de exagero, já que se apoiava em fatos reais). Além disso, contribuiu para que olhasse de outra maneira as vidas das mulheres negras em seu próprio país (Jones, 1982, p. 40-41).

Nos dois textos longos poéticos aqui focalizados, Song for Anninho e “Xarque”, a escritora evoca locais, cenas e crenças africanas enquanto imagina histórias e vivências cotidianas de quilombolas e escravos em locais específicos do Brasil. Inspirada pela longa e sofrida história da escravatura no Brasil e, principalmente, pela resistência palmarista, Gayl Jones dialoga com a historiografia e abraça a causa quilombola, que é central para o movimento negro brasileiro e repercute nas Américas. Dada sua importância como resistência ampla e organizada – que envolveu diversos núcleos prósperos e ameaçou por quase um século o sistema escravagista –, Palmares é reconhecido como o maior movimento desse tipo conduzido por escravos fugidos ou maroons. A memória de Zumbi e de Palmares permanece viva e inspiradora, mesmo após sua destruição: todos se unirão novamente “em um Novo Palmares”, porque a força de Zumbi será imortal, em “carne e sangue e espírito” (Jones, 1981, p. 15, 59). A República palmarista é recriada por Gayl Jones ao longo das 80 páginas de Song for Anninho, poema-testemunho que termina assinado com local e data, como um documento sobre a grande utopia de liberdade brasileira.

(Jones, 1981, p. 88)
(Jones, 1981, p. 88)

A memória da resistência e a esperança em um Novo Palmares contagiam os personagens de “Xarque”, relato poético de 45 páginas narrado pela voz de Euclida e localizado em “Recife, Brasil, 1741” (1985, p. 51). Mesmo dois séculos após seu fim, a força simbólica de Palmares sustenta ainda os escravos oitocentistas do romance Corregidora (1975); o sonho permanece forte em meio à grande violência contra os corpos negros. A bisavó de Ursa lembra muito bem de um jovem africano que conhecera numa fazenda do Brasil:

“Ele tinha esse sonho, sabe, de fugir e se juntar com os quilombolas em Palmares. Eu vivia repetindo prá ele que isso tinha sido muito antes do seu tempo, mas ele não acreditava, dizia que ia se unir a esses negros que tinham dignidade.[…] Eu disse que ele não ia achar o caminho porque Palmares tinha sido lá atrás, há dois séculos, mas ele disse que Palmares era agora. […] Não devia ter mais de dezessete ou dezoito anos” (Jones, 1975, p. 126-127).[12]

Em vez de privilegiar os heróis oficiais, Gayl Jones ilumina as lutas, sofrimentos e amores de pessoas comuns, dando voz às mulheres negras da era colonial e às que vieram depois. Em Corregidora, romance em formato experimental e estilo “blues”, a autora tentou explorar relacionamentos (entre mulheres; entre mulheres e homens) em situações de tensão e contradição. Intercalando tempos e espaços, o texto cobre um período que vai desde o século XIX no Brasil escravista até o presente segregado e opressivo no sul dos Estados Unidos. A relação entre oralidade, música e escrita é marcante; Corregidora foi primeiramente pensado como uma canção, um ritual, uma combinação ambígua de sonhos e memórias, prosa e poesia, vida e escrita, desafiando gêneros estabelecidos (Jones, 1979).

As três obras se interligam em personagens, episódios e referências históricas que denunciam a opressão, o racismo, o sexismo e a exploração continuada do corpo feminino e negro, em linguagem contundente, por vezes chocante, ou surpreendentemente lírica. Em Corregidora, as memórias da avó e da bisavó de Ursa sobre o apetite sexual e o domínio violento do senhor Corregidora sobre suas escravas ultrapassavam qualquer pesadelo. As duas foram “testadas”, estupradas e engravidadas por ele, de modo que tanto a avó quanto a mãe de Ursa eram filhas biológicas de Corregidora (que não era totalmente branco; tinha cor de índio, segundo dizia a bisavó e mostrava um retrato dele). Ursa é descendente desse homem e odeia os traços híbridos, herdados dele, que enxerga em seu próprio rosto. Os traumas são passados de geração em geração, de corpo a corpo de mulheres comprometidas em gerar filhas que mantivessem ‘o nome do pai’ para denunciar o horror da história. Mas isso não seria, também, um prolongamento da escravidão?, questiona o texto. Ao ser contada e cantada, a dor pede alívio, corpo e voz clamam por um novo tempo.

O corpo feminino abusado e ferido é recorrente nas obras de Gayl Jones. Em Song for Anninho, no ataque final a Palmares, Almeyda teve os seios amputados e jogados num rio por soldados portugueses. Em fuga na mata, recebe os cuidados mágicos das mãos de Zibatra, sábia curandeira que a ouve e socorre, lhe dá de comer e beber e adivinha sua história: sabe que Almeyda nasceu em Recife por volta de 1669, que é católica e que sua avó africana lutou contra holandeses e portugueses. Esta avó, lembrada em diversas partes do poema, era uma bela e inteligente muçulmana que se fingia de católica e admirava o saber dos jesuítas, com quem gostava de conversar (1981, p. 35). Almeyda rememora os tempos de escrava junto com a mãe e a avó em fazenda de cana de açúcar, e depois como ajudante de um sapateiro que a espancava até sangrar. Por fim, foi raptada e levada por homens de Palmares (Jones, 1981, p. 28-29). Zibatra é outra figura feminina sábia e amorosa: fala as línguas portuguesa e tupi, domina os cantos sagrados, a Bíblia e outros saberes místicos, conhece as matas e usa as ervas para aliviar a febre e curar as feridas do corpo de Almeyda. Ao avistar “os globos dos seios flutuando no rio”, Zibatra os enrola e esconde, estanca o sangue com barro, coloca Almeyda num cobertor e a carrega para dentro da mata (p. 11).

Depois que se perde de Anninho, que era um soldado muçulmano de Zumbi, parece restar a Almeyda apenas a lembrança dos carinhos de seu companheiro.

Onde está ele? A guerra de Palmares
acabou, nós fugimos; os soldados portugueses
nos alcançaram no rio.
Minha memória não vai além disso
(Jones, 1981, p. 11).[13]

Coberta com o barro do rio, Almeyda se sente literalmente unida a essa terra que é vida, lar, lugar e história. É como se “o sangue de todo o continente” corresse em suas veias (Jones, 1981, p. 12). Ela conversa com o amado, mesmo em delírio:

Esta terra é minha história, Anninho,
nada menos que esta terra inteira.
Construímos nossas casas no topo
da história.
Você lembra como era,
lá no alto das montanhas?
(Jones, 1981, p. 10-11).[14]

Almeyda recorda as histórias contadas pelo companheiro, que nasceu livre e foi para Palmares por vontade própria. Como não era um escravo fugido e procurado, tornou-se útil à República por circular com facilidade nos vilarejos e fazendas dos arredores, atuando no comércio e colhendo informações. Ele havia conhecido Ganga Zumba, “o velho tolo” que acreditou nas promessas dos portugueses e ia entregar os quilombolas todos, mas foi morto pelo sobrinho Zumbi.  Nas palavras de Anninho, “só aqui existe dignidade e posição”, mas é uma liberdade necessariamente vigilante e armada (p. 37).

Sem conseguir aceitar tanta guerra e tamanha crueldade, Almeyda relembra as indagações cruciais que havia feito a sua avó. Falam do Brasil colônia, mas poderiam estar se referindo ao Brasil ou aos Estados Unidos dos dias atuais, do nosso tempo.

Então pergunto, “Porque eles precisam sempre tentar
nos destruir? Porque não nos deixam ficar
neste lugar que fizemos para nós mesmos?” […]
“Este é um país que não deixa os homens
serem gentis. Homens brancos ou negros. […]
E ela disse que não é fácil amar
num tempo como este. Não é fácil
nem para um homem, nem para uma mulher”
(Jones, 1981, p. 37-38).[15]

As três obras aqui focalizadas compartilham o referencial brasileiro e também a ênfase no matriarcado, com diversas gerações de mulheres da mesma família sendo representadas e sua experiência sendo lembrada e recontada pela descendente-narradora. Nos sonhos e delírios de Almeyda em Song for Anninho, por exemplo, a avó lhe fala sobre a necessidade da gentileza e a certeza de uma nova era chegando, quando será fácil mostrar ternura. “Você acredita nisso, vovó?”/ “Sim.” (Jones, 1981, p. 40-41).[16] Seria o diálogo a projeção do desejo de Almeyda, e não fato guardado na memória? Em sua mente torturada e confusa, essa palavra de esperança se mistura a previsões opostas e sombrias sobre o futuro, ditas pela mesma avó e um dia relatadas por Almeyda a Anninho:

“Não. Ela me disse que sabia que não era verdade
que chegaria a hora em que os tempos duros
teriam fim. Não haveria tal momento,
nunca na vida dela, nem na minha e nem
nas vidas dos que vierem depois de nós”
(Jones, 1981, p. 44-45).[17]

E agora, teria sido mesmo a avó quem fez essa “profecia terrível”? Mas ela não enfatizou a ternura, que haveria de prevalecer? Será que essa previsão pessimista não foi feita pela escrava que se automutilara para não ter nem homem nem filhos, mulher que surge trágica e recorrente nas lembranças de Almeyda?[18]

No fluxo de consciência apresentado por Gayl Jones em Song for Anninho, o real e o sonhado se misturam e se confundem. Há também lembranças de momentos doces e das conversas com Anninho, que a avó não chegou a conhecer. Ele era um dos palmaristas que capturaram a moça escrava e a trouxeram para o quilombo, junto a outras mulheres. Até então Anninho “estava convicto de que [aquele] não era nem o momento nem o lugar para uma mulher”, mas quando viu Almeyda, chegando tão amedrontada e cansada, percebeu que “teria que criar a hora” [I would create time] (p. 42-43). Mas ela chegou a ter medo do amado, quando o corpo dele estava tomado pelo ódio. Existirá um tempo certo e uma linguagem apropriada para o entendimento e o amor? é a pergunta que ressoa como refrão neste canto/ song.

A estratégia narrativa traz a confluência de tempos diversos e do real maravilloso presentes em autores como García Márquez e Fuentes. Aspectos violentos, contraditórios e paradoxais também existem na literatura dos dois escritores e em Alice Walker, todos admirados por Jones. Em sua riqueza imaginativa, o texto poético de Gayl Jones é lírico e épico, prosaico e filosófico, narrativo e reflexivo. Conta fatos da história entrelaçados a experiências cotidianas e relacionamentos fictícios, e ao mesmo tempo medita sobre os desafios da existência e da história, as crises políticas, as guerras e os conflitos humanos, o desejo e o amor. A escritora considera que suas “histórias mais autênticas estão em primeira pessoa”, exatamente quando tenta “entrar nas personagens e contar suas histórias como elas teriam contado” (Jones, 1982, p. 37).[19]

Ainda há muito a descobrir sobre o que de fato aconteceu e como viveram as pessoas em Palmares. Os documentos e fontes sobre o quilombo ou agrupamentos semelhantes têm geralmente o selo dos poderes coloniais. Nas palavras de Décio Freitas (1982, p. 13), “a República Negra será sempre vista de longe”, e pouco se consegue imaginar do seu interior. João José Reis e Flavio dos Santos Gomes (1996, p. 11-12) apontam as muitas abordagens existentes sobre Palmares, desde a visão colonial, que insere sua destruição e a vitória do poder constituído na história militar brasileira, passando por interpretações “culturalistas” na primeira metade do século XX e uma corrente “restauracionista”, que mostra Palmares como a tentativa de “restaurar a África neste lado do Atlântico”. Na segunda metade do século XX vieram estudiosos marxistas, socialistas, e ligados ao movimento negro. Análises mais recentes dos quilombos cobrem mais regiões e apontam “para uma complexa relação entre os fugitivos e os diversos grupos da sociedade em torno deles”, embora persistam polêmicas quanto a número, tipo de organização e variedade de habitantes, raças e etnias no conjunto das vilas palmarinas (Reis e Gomes, 1996, p. 13-14).

Gayl Jones recria personagens e episódios relacionados às guerras e sofrimentos, mas também ressalta aspectos do cotidiano e da cultura afro-brasileira em seus sincretismos e multiplicidades. Integra à sua “contação de histórias” diversos pontos de interesse de historiadores e antropólogos e ainda questões cruciais para o pensamento contemporâneo.  Entrelaça comentários sobre a linguagem, suas seleções e exclusões, o aspecto ‘construído’ de documentos, a importância do relato oral para o conhecimento de vivências e identidades à margem da história oficial, as relações inter-raciais e as questões de gênero.[20] Em Song for Anninho (1981, p. 17), as raízes na África são valorizadas por Almeyda tanto quanto seu pertencimento ao Brasil, com sua bela paisagem e sua realidade desafiadora. Ela assim diz, na canção dedicada a Anninho:

Sou neta de uma africana.
Esta é a minha terra.
Pego o óleo da palmeira e o esfrego no meu cabelo e corpo.
Este é o meu lugar. Minha parte do mundo.
A paisagem e a ternura,
também as guerras e o desespero. [21]

Jones incorpora lendas africanas e afro-americanas que mostram, por exemplo, a possibilidade de os africanos voarem, referência utilizada por Toni Morrison no romance Canção de Solomon [Song of Solomon, 1979]. Essa crença ressurge no Brasil em relatos sobre a destruição de Palmares, quando Zumbi e seus guerreiros teriam voado da montanha para a liberdade. São evocados por Almeyda:

E nossos bravos palmaristas, saltaram do penhasco ao invés da rendição.
Ah, se eles puderam se tornar pássaros naquela hora! […]
Mesmo agora continuo a olhar os pássaros,
na esperança de que seja algum palmarista!
(Jones, 1981, p. 36).[22]

A personagem Almeyda sobrevive à guerra e ressurge em “Xarque”. É avó da jovem escrava (e narradora) Euclida, insegura e arredia por ter perdido a mão após ser mordida por uma cobra jararaca. Ela se define como brasileira e filha de Bonifácia, esta conhecedora de muitas ervas, curas e antídotos que aprendeu com a mãe. Euclida herdou da avó o gosto pelos prazeres simples da natureza, mas com o insucesso da segunda tentativa de se estabelecer um Palmares em território brasileiro, ela tem medo de novos sofrimentos.[23]

Sou uma mulher tímida
que receia mudanças.
Sonho com redes macias,
com penas e capim. […]
Sonho com figos do mato
e com minha avó guerreira.
Mas sou uma mulher tímida.
(Jones, 1985, p. 7) [24]

Para sobreviver, Euclida força um sorriso e trabalha sem parar. Mas, como sua avó Almeyda, ela um dia encontra a doçura e o carinho em um negro bonito e livre (Feijó), que conheceu pescando no rio Maranhão: “Me senti uma deusa como Iemanjá,/se erguendo do mar./ Ele passou mel na minha testa/ e então me beijou./ ‘Me conta de você’” (Jones, 1985, p. 49).

Tanto em Song for Anninho quanto em “Xarque”, as jovens narradoras adotam uma linguagem simples e coloquial, como se contassem uma história oral ou escrevessem impressões e pensamentos num diário ou numa carta ao amado, em tons de um blues cadente, apaixonado e melancólico. Em Song for Anninho, a sobrevivente Almeyda rememora o sonho compartilhado com o amado Anninho, a força herdada de sua avó escrava, o movimento de resistência coletiva de que participou e, também, a crueldade dos colonizadores e a ameaça de destruição de Palmares. Euclida, neta de Almeyda, conta em versos livres sobre seu trabalho numa fábrica de carne-seca e o de sua mãe como cozinheira, na casa do dono da fábrica. As duas estavam entre os escravos e alguns libertos que acabaram chegando no vilarejo às margens do Rio Parnaíba, bem ao norte do Brasil. Em “Xarque”, a jovem Euclida expõe seu medo, a exploração e mutilação do corpo escravo, a persistente rebeldia negra, a frustrada tentativa de construção de um Novo Palmares.[25]  Fala também do sonho recente de fuga “para o norte”, para além das fronteiras brasileiras. Como deseja a criança abandonada pela mãe que havia partido para tentar a sorte em Paris:

“Não a culpo nem um pouco. […]
Mas se fosse eu, iria para o norte.
Dizem que esse é o lugar
para ter aventura e fortuna de verdade.
Subir até a América do Norte,
é para lá que eu vou.”
(Jones, 1985, p.41) [26]

Gayl Jones escolhe mapear cenários importantes na história colonial brasileira e interamericana. Assim é a Serra da Barriga, então na Capitania de Pernambuco e hoje município de União dos Palmares, Alagoas, onde Almeyda consegue sobreviver para contar histórias vividas no quilombo. Também relevante é o Rio Parnaíba, em “Xarque”, cuja denominação foi dada pelo bandeirante Domingos Jorge Velho, que conduziu a tropa para destruir Palmares e aparece como personagem em Song for Anninho e em Corregidora. Maior rio reconhecidamente “nordestino” e totalmente navegável, o Parnaíba corre entre os estados de Maranhão e Piauí até desaguar num grande delta no Oceano Atlântico, “o único delta em mar aberto das Américas” (Wikipedia). Localizado num ponto do mapa voltado para o hemisfério norte, o Delta do Parnaíba parece apontar para espaços além da fronteira, no Caribe e nos Estados Unidos. Esta era a rota desejada por uma personagem em “Xarque”, mas o plano se concretiza para duas escravas que deixam o Brasil, a bisavó e a avó de Ursa, no romance Corregidora. A bisavó consegue escapar da prisão de sexo e terror em que se encontrava sob Corregidora, cruza a fronteira e chega à Louisiana. Em 1906 volta para buscar a filha, também abusada e engravidada por Corregidora. As duas refazem o percurso rumo ao norte e vão até o Kentucky, em busca de trabalho e liberdade (Jones, 1975, p. 79).

Mesmo com tantas dores vividas e lembradas, as personagens de Gayl Jones, mulheres e homens, gostariam de superar as ameaças, de conseguir amar um ao outro e não sofrer mais violência ou mutilação. Será possível o sonho? Em Song for Anninho, sempre com jeito de blues, Almeyda anuncia a esperança no corpo solto e no contato humano, docemente, fora da linguagem, apesar da história: nós faremos nosso tempo.

Fale comigo suave e bem perto com um beijo, Anninho.
E nós teremos nosso tempo de ternura.
Nós faremos nosso tempo de ternura
(Jones, 1981, p. 78).[27]


* Stelamaris Coser é professora aposentada do Departamento de Línguas e Letras e do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários (UFES). Mestre em Letras/Literatura Norte-Americana (UFRJ) e doutora em Estudos Americanos (University of Minnesota), desenvolve Projeto de Estágio de Pós-Doutorado no PACC/UFRJ. Autora de Bridging the Americas: The Literature of Paule Marshall, Toni Morrison and Gayl Jones (1994); organizadora de O papel de parede amarelo e outros contos (2006) e de Viagens, deslocamentos, espaços (2016), entre outras publicações.

Referências

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WALLERSTEIN, Immanuel. The Modern World System. New York: Academic, 1980. v. II.

Notas

[1] As traduções de textos citados são de minha responsabilidade, e o original segue em nota. “[…] I really think of myself as a storyteller. […] “Storytelling” is a dynamic word, a process word. […] (it) suggests possibilities, many possibilities. […] I see myself as a storyteller also because of the connection between the spoken and the written. […] between the oral traditions and the written documentation […] it’s necessary to document the traditions – to counteract the effects of the false documentations.”

[2] “[…] no novel about any black woman could ever be the same after this.”

[3]Corregidora’s survey of trauma and overcoming has become even better and more relevant with the passage of time. It remains an indispensable point of entry into the tradition of African American writing that Gayl Jones reshaped and enriched.”

[4] Há poemas no livro The Hermit Woman (1983), cenas e personagens no romance Die Vogelfängerin (1986), publicado apenas em alemão (The birdcatcher ou O apanhador de passarinhos). “Ensinança” é nome de personagem desse romance e também título de um poema e um conto (1983). O jabuti e a suas lendas surgem em vários trabalhos e há referências “brasileiras” em The Healing (1998) e Mosquito (1999). Existe ainda o manuscrito inédito de um romance de 1.000 páginas intitulado Palmares.

[5] As três escritoras (mais Edwidge Danticat) fazem parte do projeto de pesquisa que desenvolvo no momento junto ao PACC: “A diáspora africana no Grande Caribe: visões de Brasil na literatura feminina-negra da América do Norte”.

[6] hooks explica: “Quando se fala de pessoas negras, o foco tende a ser os homens negros; e quando se fala de mulheres, o foco tende a ser as mulheres brancas”, como acontece em grande parte da produção feminista dos anos 1970-80. Destaques no original: “No other group in America has so had their identity socialized out of existence as have black women. […] When black people are talked about the focus tends to be on black men; and when women are talked about the focus tends to be on white women.”

[7] Publicam-se estudos pioneiros de autoria feminina e com foco explícito na mulher negra (no país e na diáspora), por ex.: F.C. Steady (The Black Woman Cross-Culturally, 1981); P. Giddings (When and Where I Enter: The Impact of Black Women on Race and Sex in America, 1984); D.G. White (Ar’n’t I a Woman?: Female Slaves in the Plantation South, 1985); R. Terborg-Penn (“Women and Slavery in the African Diaspora: A Cross-Cultural Approach to Historical Analysis”, SAGE, 1986); A. Davis (Women, Race & Class, 1981); b. hooks (Ain’t I a Woman?, 1981); M. Morrissey (Slave Women in the New World: Gender Stratification in the Caribbean, 1989).

[8] Alguns trabalhos pioneiros: M. Herskovits (The Myth of the Negro Past, 1941, e The New World Negro, 1966); F. E. Frazier (“The Negro Family in Bahia, Brazil” e “Some Aspects of Race Relations in Brazil”, 1942); Donald Pierson (Negroes in Brazil, 1942); e F. Tannenbaum (Slave and Citizen, 1947).  Na década de 1970, temos as pesquisas relevantes de E. Genovese, C. Degler, M. Horowitz, S. Mintz, R. Price, S. Schwartz, etc.

[9] Avessa a rótulos e partidos, Jones permaneceu distante de organizações feministas apesar de criar mulheres fortes e protagonistas. Em entrevista a M. Harper, 1979 (p. 364), declarou: “Não tenho bem certeza se sei o que é uma feminista” (“I’m not really sure if I know what a feminist is”). Muda de perspectiva nos anos 1990, quando se aproxima de Alice Walker, que havia definido “womanist” como “a feminista negra ou de cor”, que admira a força e a cultura feminina, mas pode amar mulheres ou homens, e é “universalista” em termos de raça e cor.

[10] “I’d like to be able to deal with the whole American continent in my fiction – the whole Americas – and to write imaginatively of blacks anywhere/everywhere. “

[11] Apenas especulação sobre obras que Jones pode ter consultado: Freyre, The Masters and the Slaves/Casa-grande e senzala: A Study in the Development of Brazilian Civilization (tradução inglesa de 1946); R. K. Kent, “Palmares: An African State in Brazil” (Journal of African History, v. 2, p. 161-175, I965); e Herskovits, Pierson e Tannenbaum, citados em nota anterior.

[12] “He had this dream, you know, of running away and joining up with them renegade slaves up in Palmares. I kept telling him that was way back before his time, but he wouldn’t believe me, he said he was going to join up with some black mens that had some dignity […] I said he couldn’t know where he was because Palmares was way back two hundred years ago, but he said Palmares was now.[…] Couldn’t’ve been more than seventeen or eighteen.”

[13] “Where is he? The battle of Palmares/ ended, we escaped; Portuguese soldiers/ caught us at the river./ My memory does not go beyond that.”

[14] “This earth is my history, Anninho,/ none other than this whole earth./ We build our houses on top of history./ Do you remember how it was/ up in the mountains?”

[15]  Then I ask, “Why must they always try to/ destroy us? Why can’t they let us stay in/ this place we have made for ourselves?”[…] This is a country that doesn’t allow men/ to be gentle. White men or black men./[…] And she said it is not easy to love/at a time like this one. It is not/ easy for a man or a woman.”

[16]There will come a time, Almeyda, / when it won’t be difficult/ to be tender, when it will be an easy thing./ Do you believe that, grandmamma?/ Yes.” (itálico no original).

[17] “No. She told me she knew it was not true that/ there would come a time when the hardness would/ be over. There would not come such a time,/ never in her lifetime and not in mine and not/ in the lifetimes of those that come after us.”

[18] Na história e na literatura há registros da revolta feminina contra a escravidão manifestada em violência contra o próprio corpo, em suicídio, em crimes contra os senhores  e na morte dos próprios filhos (como no romance Amada [Beloved], de Toni Morrison).

[19] “I think my most authentic stories are in first person when I enter the characters and tell their stories as they would tell them”.

[20] Tenho um artigo publicado sobre Song for Anninho: “Imaginando Palmares: a obra de Gayl Jones (Coser, Revista Estudos feministas, v. 13, n. 3, p. 629-644, 2005).

[21] “I am the granddaughter of an African./This is my land./ I take palm oil and rub it on my hair and body./ This is my place. My part of the world./ The landscape and tenderness,/ the wars too and despair”.

[22] “And our brave Palmaristas,/ jumping from cliffs rather than surrender./ Oh, if they could have become birds then!/[…] Even now I watch out for birds,/ hoping it’s some Palmarista!”

[23] A saga de Euclida inclui referências a seu pai Icó, negro livre e itinerante, sudanês/angolano, que falava do mundo mais ao norte; à liberta Tirana, que cantava “tiranas” e contava sobre Madagascar; ao escravo Diamantino, que perdeu três dedos na fábrica de charque; aos jesuítas e indígenas, à cidade de São Paulo, Bahia, Minas, etc.  Como na vila palmarista criada por Gayl Jones, há contatos entre raças, etnias e religiões diversas e misturadas.

[24] “I am a shy woman/ who fears change./ I dream of hammocks/ of feather and grass  […]/ I dream of wild figs/ and my warrior grandmother./ But I am a shy woman.” A timidez faz pensar na autora Gayl Jones, descrita como muito retraída e há anos reclusa.

[25] No texto de Jones, Euclida e a mãe foram capturadas em 1721, vendidas e trazidas para o vale do Piauí. Quase três séculos depois, em 2017, já são conhecidas  2.890 comunidades quilombolas, inclusive nos estados do norte.

[26] “I don’t blame her a bit./ We’re all poor devils,/ and now she’s off to Paris,/ to try to be a lucky one!/if it was me I’d go up North./ They say that that’s the place/  for real adventure and real fortune./ Up to North America,/ that’s where I’ll go.”

[27]  “Speak to me softly and close through a kiss, Anninho./ And we will have our time of tenderness./ We will make our time of tenderness.”