O SEXO DOS ANJOS: NOTAS SOBRE FEMINISMO, SEXO E LITERATURA

Discutir o sexo dos anjos é por definição uma tarefa fracassada. A expressão tem origem numa história curiosa: no século XV, na cidade de Constantinopla, enquanto autoridades clericais discutiam, entre outros temas, se os anjos tinham ou não um sexo, os turco-otomanos empreendiam os violentos ataques que determinaram a perda dos territórios controlados por reinos cristãos.

Lembro essa anedota por uma irresistível tendência à autoironia. Afinal, em tempos de ataques à democracia, discutir sexo e gênero na vida e na literatura poderia nos equiparar àqueles teólogos que examinam minúcias irrelevantes enquanto sua própria terra é devastada pela violência dos bárbaros.

Mas se aquelas autoridades estivessem discutindo política ou matemática, o efeito teria sido muito diferente? Afinal, que poder imediato tem o território do debate diante da violência?

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Em muitos aspectos, vivemos uma época pornográfica. Pornografia dos incêndios, do desmatamento, das armas, do estupro: o sexo em performance violenta, a exibição crua de um mecanismo ao alcance imediato das teclas.

A pornografia (etimologicamente, escrita da prostituição), na forma como se difunde na era industrial, implica produção e consumo de imagens sexuais imediatas. Umberto Eco, em Seis passeios pelos bosques da ficção, propõe que podemos reconhecer um filme pornográfico pela ausência de elipses: na elaboração audiovisual da fantasia masturbatória, o tempo do ato sexual filmado tem que ser semelhante ao de um ato sexual real, e essa obrigação contamina mesmo as cenas não sexuais dos filmes do gênero. Um filme pornográfico deve satisfazer o desejo de ver cenas de sexo explícito, mas não pode ficar uma hora e meia mostrando sexo sem parar, pois seria cansativo demais; como ninguém tem intenção de contar ou assistir a uma história razoável, tudo o que não é sexo explícito leva o mesmo tempo que levaria no cotidiano. O teste definitivo seria este: se, num filme, duas personagens demoram para ir de A a B o mesmo tempo que demorariam na vida real, estamos diante de um filme pornográfico. (É claro que as cenas de sexo explícito também são indispensáveis.)

O erotismo, ao contrário, é feito de elipses. Ele implica a existência de uma vida interior (Bataille). O erótico exige imaginação, ambiguidade: numa palavra, linguagem.

É triste quando a pornografia se torna a única forma de alfabetização do desejo.

[Ideia para um curta-metragem: a câmera exibe casais que veem TV em motéis e em aposentos diversos enquanto se ouve o som de ritmo constante. Nas telas mostradas em zoom, martelos, batedeiras, máquinas de lavar e montadoras de carros fazem seu trabalho.]

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Tanto em hebraico (מַלְאָךְ‎, malach) quanto em latim e grego (ângelus, ἄγγελος), anjo é sinônimo de “mensageiro”. Cabe ao anjo ser o elo transmissor entre o homem e o Criador.

Na tradição judaica da Torá, anjos são entes inteligentes, mas dependentes do poder divino, e podem assumir diversos tipos de tarefas que, aos olhos humanos, podem ser boas ou más. É o caso do anjo da Morte.

São Tomás de Aquino dividiu os seres celestiais em três esferas, numa hierarquia de três tríades que repete a obsessão triangular do cristianismo. A primeira é constituída por serafins, querubins e tronos. Da segunda esfera fazem parte os domínios, virtudes e potestades. A terceira esfera é povoada por arcanjos e anjos.

Anjos também podem ser maus. Lúcifer era um anjo de luz, que se revoltou contra Deus, e, como Prometeu, foi expulso do céu com seus seguidores, convertidos em Satanás e demônios. E há ainda os anjos barrocos, anjos cupidos de Caravaggio, de olhar malicioso e sorriso ambíguo.

(Cada tempo tem as classificações de sua preferência. Brinco com esta ideia: poderíamos falar hoje de uma angeologia dos gêneros?)

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Em Asas do desejo, de Wim Wenders (no original, O céu sobre Berlim), um anjo de sexo masculino decide se tornar humano quando começa a ansiar pelas sensações do corpo: uma xícara de café quente, o esfregar das mãos no inverno, o olhar e o toque de uma mulher.

A mulher desejada é uma jovem trapezista que voa, vestida com asas enormes, cabelos em cachos. O anjo a contempla, do seu mundo em preto e branco, um quase anjo sempre na iminência da queda.

Como num espelho, ambos se contemplam, dois corpos invertidos: o homem um anjo que cai, a mulher que brinca com sua ascensão. O sexo dos anjos é ascético, não asséptico.

Nossa terra: o sexo dos anjos.

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Eu poderia contar uma história pessoal do erotismo através das minhas leituras.

Começaria com Henry Miller, com a garota de 14 anos lendo as palavras do narrador atormentado, sentindo fisgadas de prazer quando uma cena comum rapidamente escorregava para um outro mundo. Era um roupão que se abria quando a mulher se inclinava para entregar uma toalha, uma conversa trivial que de repente era rasgada como uma roupa, até que as coisas explodiam em palavras obscenas junto com o desejo.

Desde então, eu nunca entenderia o fascínio por Bukowski. Era uma traição a Henry Miller que eu não estava disposta a consumar. Ao folhear os livros adorados pelos garotos, a precariedade do estilo, as cenas em que as mulheres pareciam bonecas de montar, a boemia, tudo me parecia uma pose triste e patética.

Ou talvez tivesse começado antes, com os best-sellers de Harold Robbins e Irving Wallace, com suas heroínas hollywoodianas hiper desejadas e destroçadas pela cobiça.

As primeiras marcas no meu imaginário vieram de homens.

Depois viriam o Complexo de Portnoy, de Philip Roth, e Lolita, de Nabokov, o desejo excitante dos homens.

Portnoy, em sua masturbação feroz enquanto a mãe rechonchuda tagarelava atrás da porta do banheiro, me comovia como a futura mãe judia que eu seria, a personagem mais inesquecível da vida do filho. Humor, autoironia, paixão trágica e desejo desesperado eram um coquetel poderoso para a imaginação.

Já Lolita entrava num terreno mais perigoso. O início deslumbrante (“Lolita, luz de minha vida, labareda em minha carne. Minha alma, minha lama. Lo-li-ta: a ponta da língua descendo em três saltos pelo céu da boca para tropeçar de leve, no terceiro, contra os dentes. Lo. Li. Ta.”) era o prelúdio da trama monstruosa encoberta pela voz do narrador de nome burlesco. Em sua peça de defesa, Humbert Humbert se dirige ironicamente aos seus juízes, aos membros do júri e ao leitor: “Senhoras e senhores membros do júri, quase todos os pervertidos sexuais que anseiam por uma latejante relação com alguma menininha são seres inofensivos, inadequados, passivos e tímidos…”. A narrativa nos lança em uma zona ambígua, em que amamos e odiamos esse Humbert duplicado: um personagem e outro narrador, um pervertido e outro um esteta nostálgico do perfume da infância, o homem que seduz e é seduzido pelo feitiço da ninfeta, o homem que estupra, mas é condenado pelo assassinato do rival amoroso, Quilty, o verdadeiro culpado (guilty). A própria Lolita é ambiguidade encarnada: entre criança e mulher, entre menina e menino, espontaneidade e premeditação, crueldade e generosidade, fraqueza e força, anjo e demônio.

(De algum modo, eu inscreveria mais tarde Nelson Rodrigues nesses registros: os desejos inconfessáveis por trás das portas das famílias, as adolescentes amorais como bichinhos de avenca.)

“Para mim, um romance só existe na medida em que me proporciona o que chamarei, grosso modo, de volúpia estética…”, escreveu Nabokov. Lolita não apenas entrega volúpia estética, mas uma estética erótica, ambígua, que mostra e esconde sua força (sua forca) nos véus da linguagem.

Com mais ou menos a idade da protagonista do livro de Marguerite Duras, O amante se tornou meu livro de cabeceira.

A menina de 15 anos e meio atravessando o rio Mekong era a menina que lia. Aquela que sabia que não são as roupas, ou os cuidados de beleza, ou os adornos caros que definem a beleza. Mulheres que se vestem para nada, que enlouquecem, que são abandonadas. “Esse desrespeito que as mulheres têm por si mesmas sempre me pareceu um erro”, escreve Duras. O desejo existia ou não existia, desde o primeiro olhar: “era a percepção imediata de um relacionamento com a sexualidade ou não era nada”.

Em O amante, em A doença da morte, a menina-mulher aprendia o corpo do amante com um desespero antigo, o desejo misturado ao desprezo e à morte. A mulher que ela seria estava ao mesmo tempo ali, na crueldade do quarto, e na mãe desesperada de abandono, aquela que, no entanto, de tempos em tempos lavava o piso da casa como quem lava a alma, leve como o esquecimento.

Clarice Lispector era diferente. O desejo contido à beira da explosão, da loucura. As mulheres e a náusea: a barata, o rato, o búfalo eram o fascínio do corpo, do sexo, da morte à espreita. Eu entendia e me embalava em Clarice; nas ruas, convocava epifanias; o mundo se sexualizava em abismo, imenso como o próprio desejo feminino.

*

Haveria um sexo ou gênero dos textos? É possível reconhecer se um texto foi escrito por um homem, por uma mulher? Os textos teriam marcas femininas, masculinas, híbridas, neutras? Devemos falar em literatura feminina ou em literatura de autoria feminina?

Muitas mulheres escreveram sob pseudônimos e passaram perfeitamente por homens: Mary Ann Evans / George Eliot, Aurore Dupin / George Sand, todas as irmãs Brontë, Nelle Harper Lee / Harper Lee, Karen Blixen / Isak Dinesen e mais recentemente Joanne Rowling / J. K. Rowling. Se a escrita feminina estava a princípio associada a um estilo mais intimista, delicado como se supunha fossem as mulheres, essas escritoras teriam abraçado um imaginário prestigiado como masculino? Seria por isso que Jane Austen adotou uma saída irônica, ao assinar seu Orgulho e preconceito com o pseudônimo “a Lady”?

Desde então, a literatura de autoria feminina se expandiu em muitas direções.

Um panorama relativamente recente dessa literatura pode ser traçado a partir de pesquisas realizadas na Universidade de Brasília com romances publicados pelas principais editoras de 1990 e 2004 (Dalcastagnè, 2007). Embora hoje o resultado possa ser um pouco diferente, especialmente se considerarmos a emergência de uma rica literatura produzida por mulheres negras e homossexuais, elas revelam um retrato interessante de uma tendência. As pesquisas mostraram que as autoras não chegam a 30% do total de escritores editados, menos de 40% das personagens são do sexo feminino, as mulheres têm menos acesso à posição de narradoras, e estão menos presentes como protagonistas. Constroem uma representação feminina mais plural e mais detalhada, incluem temáticas da agenda feminista que passam despercebidas pelos autores (quando as personagens são brancas, o que ocorre na maioria desses romances). Entre outras diferenças significativas, um dado que se destaca é que na literatura de autoria feminina as mulheres são muito mais saudáveis. Há um número muito grande de personagens doentes e com dependência química entre os autores, numa representação mais fragilizada da mulher que combina com outros índices que as fazem dependentes: são donas de casa, ou muito jovens (em geral atraentes, magras, loiras e com cabelos longos). São os medíocres descendentes temáticos de Lolita: homens de meia idade em crise que recuperarão a virilidade diante de moças ardentes, de preferência deslumbradas.

Quanto à sexualidade, as autoras descreveram mais cenas sexuais e com maior detalhamento; suas protagonistas não só fazem sexo com mais frequência, como possuem um número maior de parceiros do que aquelas escritas pelos homens. As mulheres traem mais e são mais traídas; sentem-se menos satisfeitas com o sexo do que os homens.

(A invisibilidade de todos esses livros de mulheres liberadas entre os críticos e leitores fala por si.)

Para além de dados quantitativos que revelam determinados imaginários sociais e sexuais, potências literárias explodem há tempos os mapas traçados, gerando outras configurações.

Conheci Hilda Hilst tarde na minha vida literária. Hilda, a mulher que perseguia o amor nos versos e de frente; a porca sagrada mergulhada nos mistérios do corpo e do tempo; a feminista paradoxal eternamente à procura do pai; o talento que se debatia em pele de mulher. Contraditória, apaixonada, Hilda rejeitava a literatura “intimista” enquanto sofria o “grande preconceito contra a mulher escritora” (“Você não pode ser boa demais, não pode ter uma excelência tão grande. […] Você tem que ser mediano e, se for mulher, só falta te cuspir na cara”).

Profana e sagrada, erótica e grotesca, cômica e sublime, anjo e demônio, Hilda busca radicalmente, no corpo da linguagem, a confluência entre o humano e o divino. Mas sua busca esbarra num mundo de não leitores: um mundo deserotizado. Para seduzi-lo, seria necessário lidar com a pornografia. Na despedida da literatura, a pornografia como política, instauradora de um campo radical de desordem.

Lóri Lamb vem cumprir esta difícil missão: Lolita radicalizada, escrachada do comportamento à linguagem. O Caderno Rosa nos esfrega na cara um imaginário pornográfico, tipicamente masculino, com crueza chocante. Hilda Hilst, HH, qual um Humbert Humbert invertido, em vez de adensar o estupro com a névoa do estilo, o torna raso como um mecanismo. Nem anjos nem demônios, apenas renúncia e auto escárnio.

Que não se confunda aqui obsceno com pornográfico. O obsceno (o que está fora da cena) por definição não coincide com o pornográfico, que implica exibição e consumo. A senhora D é obscena; Lóri Lamb, pornográfica. Louca senhora D.

Ao mesmo tempo alegoria e prática da prostituição da literatura, Hilda nem assim foi entendida. Nem pelos leitores que supostamente seduziria, nem pelos que já tinham sido seduzidos.

(Sinto uma tristeza infinita por Lóri Lamb, por Hilda, por mim.)

Suely Farhi, Os dois lados da mesma moeda, 2005.
Suely Farhi, Os dois lados da mesma moeda, 2005.

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Eu também poderia contar uma história pessoal do erotismo através da minha escrita.

(Não apenas de como tenho sido lida, mas daquilo que em mim nunca foi lido.)

Ian McEwan disse uma vez que é muito difícil escrever cenas de sexo. Desde que li a descrição de Proust que associa a sonata de Vinteuil, com sua frasezinha musical encantadora e fugidia, à sua paixão por Odette de Crecy, sonho com correspondências entre música, sexo e literatura.

Foi pensando em Proust que, em meu romance A feira, tentei descrever esse fascínio: “Com satisfação, extraiu os primeiros gemidos; umedeceu a orelha esquerda com uma lambida, a mão no seio direito pressionando devagar, ritmicamente; era como música, mas, enquanto alguns se contentavam com melodias e ritmos básicos, ele procurava as variações, adágios e scherzos, crescendos e diminuendos… Os dedos roçaram o bico do seio esquerdo; enquanto o sentia endurecer aos poucos sob o tecido, calibrava a velocidade segundo os arquejos e gemidos, acelerando progressivamente, cada vez mais, como num carrossel, enquanto a outra mão subia pelas pernas e, afastando a calcinha, chegava ao pequeno botão de carne.”

Ou, do ponto de vista da mulher:

“Ela era tão boa naquilo que um dos seus casos, um improvável estudante de administração que conhecera num barzinho do Bairro Boêmio num dia tedioso, lhe dissera, em êxtase, Você precisa escrever uma apostila!! O Poeta Suburbano chegara a escrever um longo poema à floração da sua boca – tinha certeza de que se referia a ela! –, no qual veludos de pétalas, pedras e cachoeiras se alternavam em imagens febris. Segundo amante uma ova. A Promessa afasta o rosto, em suspense; com a palma da mão, circunda ternamente a glande, aproveitando o líquido viscoso que ela regurgita como um bebê; com um olho vigia o segurança e com o outro contempla o amante. O rosto retorcido a enche de desejo e – por que não dizer? – de amor. É neste momento que o corpo dele lhe foge com um baque surdo.”

Suely Farhi, da série Boiemas: SADIAS VADIAS, 2009. Performance no ato a favor do Museu da Maré Complexo da Maré, Rio de Janeiro.
Suely Farhi, da série Boiemas: SADIAS VADIAS, 2009. Performance no ato a favor do Museu da Maré Complexo da Maré, Rio de Janeiro.

Bem antes disso, em Judite no país do futuro, vesti-me de garoto de 12 anos, saído de livros e lares burgueses:

“Sentado no sofá, com o ar-condicionado na máxima potência, ele ouvia o barulho do chuveiro vindo das dependências de serviço. Aquilo lhe atiçava o sangue: imaginava-a no quartinho trocando de roupa, tirando o sutiã de renda preta igual ao que vira na Playboy, os mamilos como dois pratos marrons, o biquinho espetado enfim livre. Ela entraria no minúsculo banheiro e se ensaboaria com movimentos de serpente, desviando a grande bunda da pia e da privada que ficavam bem próximas ao jato d´água. Ela era toda cheia de curvas, gostosa, bem gostosa (repetiu a palavra que os amigos falavam tanto, ao mesmo tempo alarmado e orgulhoso com o volume que crescia debaixo do seu short de menino), e estava ali, ao alcance da sua mão. Só precisavam esquecer que ele só tinha 12 anos.”

No mesmo romance, vivo um corpo adolescente de menina:

“Mariana ri e aperta mais a mão dele. Não tem o que dizer, só sabe que está com ele e o céu é de um azul louco. (…) Ele a arrasta pela multidão até a parede lateral de um prédio que forma uma espécie de galeria com o muro arruinado em frente; no fundo, algumas lojinhas estão enfeitadas com bandeirolas do Brasil. Um cheiro de mijo misturado a suor velho a atinge quando os corpos deles se apertam e ele cola a boca na sua. A pressão que a move para baixo é suave, mas insistente, e a deixa confusa. Ela faz o que imagina ser correto: beija o pescoço dele, enfia os dedos por baixo da blusa, e quando se dá conta está praticamente de joelhos. A coisa toda é muito rápida: ele abaixa as calças, mostrando um pau duro e brilhante; ela sente o gosto de cueca usada e fecha os olhos, ignora um pelo que enrosca na sua língua. Concentra-se em abarcar com a boca tudo o que pode, deixando-se levar pelo vaivém das mãos sobre os seus ombros; ele não deve perceber a sua inexperiência. Olha para cima: o rosto dele é uma máscara de agonia. Por favor, que tudo acabe logo. Uma voz vibra nos alto falantes, as pessoas aplaudem. O ar está parado, o suor cola na sua testa. Finalmente, num último sacolejo, ele lhe foge da boca e despeja um líquido viscoso no seu decote.”

Não tenho medo de escrever o sexo, tenho medo de escrever má literatura. Toda boa literatura é erótica.

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Em tempos de brutalidade semiótica, que às vezes chamamos de “polarização”, antessala da violência concreta, debater o sexo dos anjos é uma tarefa urgente.

Contra os gêneros e as formas fixas, contra os clichês e as ideologias congeladas, as configurações ambíguas da arte e da literatura. Hoje, essas novas configurações estão acontecendo principalmente por obra de mulheres.

Anjos, esses seres misteriosos, femininos e masculinos, crianças e adultos, puros e maliciosos, mensageiros entre aquilo que é humano e o que o ultrapassa. É nesse campo de debate que a partida assume novas formas, o momento em que entramos no jogo e passamos a também dar as cartas.


* Adriana Armony é escritora, professora do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, e doutora em Literatura Comparada pela UFRJ, com pós-doutorado na Sorbonne Nouvelle (Paris 3). É autora dos romances A fome de Nelson (Record, 2005); Judite no país do futuro (Record, 2008); Estranhos no aquário (Record, 2012), premiado com a bolsa de criação literária da Petrobras; A feira (7Letras, 2017), finalista do Prêmio Rio de Literatura; e Pagu no metrô (Ed. Nós, 2021).

 

Referências

BATAILLE, Georges. O Erotismo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.

DALCASTAGNÈ, Regina. Imagens da mulher na narrativa brasileira. O Eixo e a Roda: Revista de Literatura Brasileira, [S.l.], v. 15, p. 127-135, dez. 2007. ISSN 2358-9787. Disponível em: <http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/o_eixo_ea_roda/article/view/3267>. Acesso em: 18 out. 2021. doi:http://dx.doi.org/10.17851/2358-9787.15.0.127-135.

ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das letras, 1994.

HILST, Hilda. Pornô chic. São Paulo: Globo, 2014.

O SÉCULO BIOGRÁFICO

Aos alunos da disciplina Biografias e Vida Literária (2020.2),
do Programa de Pós-Graduação em Letras da UNIFESP

Ao longo das últimas décadas, junto com a demanda crescente por biografias no mercado literário, vimos a crítica biográfica impor-se como nova e dinâmica vertente nos estudos literários acadêmicos e suas extensões profissionais no campo da cultura. Se no circuitão do mercado o interesse dos leitores por biografias não chega a ser novidade, no circuito especializado a invasão do biografismo representou algo como uma revolução. Ela veio em paralelo ao fato de se ter aberto e prosperado, no mercado das biografias, o nicho das biografias literárias, o interesse pelas biografias de escritores. O nicho se expandiu para abranger, sob seu guarda-chuva, também biografias romanceadas, biografias de escritores imaginários, autoficções, assim como entrevistas, diálogos, testemunhos e memórias, reais e fictícias.

O emergir da crítica biográfica ocorre pois em diálogo com a relevância adquirida na cena literária por essa escrita biográfica proliferante, seja na forma canônica das biografias documentais clássicas, seja na miríade de formatos assumidos pelas combinações entre o documental, ou real, e o ficcional. Novas tendências críticas estão sempre associadas à emergência de novas práticas e à refuncionalização de velhos princípios. O discurso crítico renovado é tanto pedagogia quanto poética subjacente àquilo que está surgindo. Crítica biográfica e prática da escrita biográfica andam juntas e se existe hoje “evolução” ou “diversificação” formal desta última, ela se dá na intercomunicação entre ambas. A crítica é a dimensão reflexiva e autorreflexiva das práticas discursivas.

O viés do biográfico na contemporaneidade é indissociável do autobiográfico. Remetem ambos a relatos de vida, respectivamente a de terceiros ou a sua própria. Por seu turno, eles se manifestam em dois aspectos. De um lado, relacionam-se com a ubiquidade da narrativa de vida nos circuitos de consumo cultural e de entretenimento, culto ou comercial. De outro, são marcados pela contingência de vida em que se situa e sobre a qual atua o trabalho artístico em geral. Ambos, consumo (ou circulação/recepção) e produção (criação) emergem contra o pano de fundo do que pode ser definido como tendência de época nestas primeiras décadas do século: o imperativo da primeira pessoa, a implicatura do eu nos discursos de arte e de política, assinalando-se a presença de elementos auto e biográficos em boa parte da melhor ficção e poesia literária contemporâneas.

Através da referência à pessoa real de quem escreve, o texto literário contemporâneo busca evidenciar a circunstância concreta de sua produção, explicitando a materialidade do ato da escrita. O real perfura a cortina do ficcional, mas este, por seu turno, fagocita o primeiro, incorporando-o ao jogo de espelhos narrativo. Daí o topos do autor ou narrador referindo-se ao momento em que digita o texto em seu computador, buscando criar efeitos de presentificação e simultaneidade entre o ato da escrita e a leitura. A presença no enunciado de indicadores do processo de criação, ou de seus bastidores, é procedimento que encontra análogos nas artes expositivas, no cinema, no teatro. Narrar ou encenar o processo de criação torna-se a criação ela própria. Entre a mimeses e o reality show.

A presença reiterada de personagens escritores na ficção contemporânea, como em Paul Auster, Gonçalo Tavares, Roberto Bolaño, entre muitos outros e outras, atesta que o ego scriptor é objeto de desejo e interesse na cultura contemporânea. Se antes se dizia que de poeta, louco e filósofo todos temos um pouco, parece que no século da visibilidade total todos reivindicam ser escritores. Nos laboratórios de novas escritas que são as oficinas nas periferias urbanas, assim como nos grupos de slam, com destaque para os “slam das mina”, vive-se um clima de conquista do direito à escrita, a conquista da escrita como direito social, esse direito sendo exercido primordialmente via textos autobiográficos e biográficos. Ao lado da nova importância assumida pela poesia oralizada e pela poesia-performance, a escrita prossegue como instrumento incontornável de subjetivação e ressubjetivação, de elaboração de crise de subjetividade, de ressignificação dos signos recebidos. Somente na escrita o eu se encontra e desencontra, em movimento reflexivo verbal. O devir do(s) sujeito(s) se dá na prótese do escrito.

Mais do que simplesmente um movimento literário, e com potencial para implodir a própria noção de “movimento” ou “tendência” literária, a democratização radical do direito à escrita através do recurso ao literário como “bioescrita” (Chiara et al., 2017) integra-se a processos mais amplos. Estamos na era do artivismo, das impurezas, dos hibridismos e justaposições. Mesmo as mais estetizantes produções precisam autolegitimar-se criticamente frente às guerras culturais em curso. Estamos no terreno da pós-autonomia, tal como definida por Josefina Ludmer (2010).[1] A ficção já não obedece a critérios autárquicos, internos, mas também não se subordina de maneira simples aos imperativos do seu fora. A escrita que a sustenta põe em jogo o poder do ficcional. Nesse jogo entre ficção e não-ficção, a escrita do eu tem sido filtro por meio do qual se reelabora a vivência do despertar histórico de subjetividades coletivas, minoritárias ou excluídas. O coletivo político hoje é a soma por justaposição de experiências individuais irredutíveis. Já não se trata de um nós que se impõe como Voz homogênea capaz de falar por todos dentro de um grupo. O “nós” é cacofonia conjunta de vozes singulares.

***

Tais determinantes sociais podem e devem ser situadas no âmbito abrangente da Comunicação. O campo literário é parte do universo da comunicação, com seus múltiplos circuitos e redes de suporte e significação. Narrar o vivido por si ou por outrem é hoje o traço de união entre os múltiplos circuitos e suportes da comunicação. Narrar o vivido é a seiva da midiasfera em que se transformou a esfera pública e que absorveu a totalidade da cultura. Trata-se do “espaço biográfico”, condição definida e descrita por Leonor Arfuch, em duas obras de referência para a crítica biográfica continental: O espaço biográfico (2002) e La vida narrada (2018). A esfera pública é midiasfera e a midiasfera é espaço biográfico.

Leonor Arfuch. Disponível em: https://www.eduvim.com.ar/blog/conversatorio-con-leonor-arfuch
Leonor Arfuch. Disponível em: https://www.eduvim.com.ar/blog/conversatorio-con-leonor-arfuch

O ponto de partida da autora é a cultura escrita entendida como prática de produção discursiva e sua meta a descrição e construção de uma tipologia flexível das transformações sofridas pelas expressões literárias, resultantes das novas dinâmicas discursivas na civilização midiática dominante. A cultura escrita, e a cultura literária como segmento institucionalizado da cultura escrita, uma condicionada pela outra, estão engatadas na dominante simulacral. Entenda-se por simulacro a imagem tecnicamente produzida (televisual, virtual), condutora de informações e narrativas nas redes proliferantes dos circuitos comunicacionais que constituem o que Ludmer chama de “imaginação pública”.

Colado às redes cambiantes da comunicação, o eu se constitui como encenação e performance, presentificado no espaço virtual.[2] Narrar-encenar. Não que já não fosse assim antes, mas a condição encenada do sujeito no simulacro é explicitada e exteriorizada e sobretudo explorada em novas identidades e comportamentos, no devir das novas subjetivações – não há como deixar de apelar a ecos de um vocabulário deleuziano. Busca-se porém uma visão mais sociologizante dos processos de subjetivação enquanto devires coletivos de diferenciação na arena pública. Pragmaticamente, numa civilização onde os modos de vida e mesmo o corpo físico já não são mais herdados como imperativos de uma normatividade transparente e inquestionada, a subjetivação pode ser processo calculado de invenção, vivência/experiência de automodelagem diferencial. Ou seja, a escrita do eu como automodelagem, que significa desafiar modelos preexistentes. Criação individual e coletiva de modos de ser. Novas convenções. A automodelagem, enquanto processo, antecede a convenção. Eis aí um lugar importante para a escrita literária, particularmente a ficcional.

Na dominante midiática, prevalecem os discursos autenticados por experiência, ou seja, as histórias de vida, que serão pretensamente reais, documentais, nas ciências sociais e nas etnografias, mas desfrutarão da liberdade de serem reais ou ficcionais, ou uma mescla de ambos, no campo propriamente literário e em interfaces do literário, como no caso de textos filosóficos ficcionalizados. Diz Arfuch (2010), sobre o modo de ser discursivo das culturas contemporâneas: “um crescendo da narrativa vivencial que abarca praticamente todos os registros – uma trama de interações, hibridizações, empréstimos, contaminações – de lógicas midiáticas, literárias, acadêmicas” (p. 63). Esse é o contexto em que biografia e autobiografia remetem uma à outra. Lemos mais adiante: “espaço cuja significância não está dada somente pelos múltiplos relatos, em maior ou menor medida autobiográficos (…) mas também pela apresentação biográfica de todo tipo de relatos (romances, ensaios, investigações, etc.)” (Arfuch, 2010, p. 63-4).

A nova crítica biográfica, o retorno da pesquisa biográfica e o interesse renovado pelas biografias de escritores ocupam portanto seu lugar num campo literário agora redefinido como parte do espaço biográfico contemporâneo e na literatura recortada como objeto de atenção no interior de uma teoria ou problemática geral dos discursos. A literatura é discurso entre discursos, por um lado fixado como instituição, por outro circulando como valor em circuitos variados. Essa teoria geral dos discursos é uma teoria geral da Comunicação. Ela recolhe como ferramentas úteis todas as metodologias de leitura recebidas das antigas filologia, retórica, poética, assim como, seguindo a linha do tempo, das poéticas e teorias do século 20.

Do sujeito da enunciação ao sujeito autoral: textualismo X biografismo

Detenhamo-nos nessas últimas. A chegada do biografismo teórico e crítico nas primeiras décadas do século atual inverteu os valores, princípios e metodologias dominantes nos estudos literários ao longo de toda a segunda metade do século passado, com raízes nos deslocamentos estéticos e epistemológicos da primeira metade. As teorias (doutrinas) que marcaram esse período despediram o historicismo positivista do século XIX. A despeito das distinções entre elas, as teorias tiveram em comum o fato de especificar o texto como objeto de conhecimento empírico e a visão da leitura crítica como método disciplinar científico cumulativo, por oposição ao impressionismo, subjetivismo e falta de rigor das interpretações que adornavam os esquemas históricos do século XIX. Os discursos críticos e métodos de análise das novas teorias do século XX lançavam mão de esquemas de compreensão que descartavam ou colocavam em segundo plano tanto o dado biográfico, quanto a redução do literário à ilustração (mimese) de elementos contextuais e históricos, geralmente formulados em termos de nação. A positividade do texto como valor absoluto foi colocada no lugar da positividade do autor, de seu tempo e lugar.

No sistema escolar, na formação intelectual, a história literária não mais podia se ater à sequência cronológica de autores e épocas, na medida em que desde fins do século XIX e mais intensamente na primeira metade do XX foi preciso dar conta da diversidade de formas e poéticas trazidas pelas ondas de modernidade e vanguardismos. Cada nova teoria era na verdade uma poética ligada a determinados valores e práticas estéticas inovadoras, impondo a reconceituação do literário a partir da revelação de novas facetas e camadas de significação. Desenvolveu-se um arsenal de metodologias de análise textual. O formalismo russo e o primeiro estruturalismo (eslavo) conceituavam o literário em diálogo com o futurismo. O new criticism era ferramenta para lidar com as complexidades do modernismo anglo-saxônico. O estruturalismo francês conectava-se criticamente ao nouveau roman. Sua desconstituição pela desconstrução conectava-se ao “telquelismo”.[3]

Ultrapassar o positivismo biográfico do século XIX significara deixar de lado a tematização da criação autoral, empurrado-a para domínios extra-acadêmicos, alheios ao labor crítico e seu viés normatizador. Nessa empreitada, as seculares disciplinas filológicas foram abandonadas ou marginalizadas em favor das sofisticadas ferramentas de análise voltadas para produzir formalizações dos jogos de sentidos intrínsecos a cada texto. Buscava-se determinar aquilo que o texto produzia de sentido por si próprio, sua lógica intrínseca, independentemente de seu gesto criador original.

A teoria literária, como disciplina institucionalizada, desenvolveu procedimentos de crítica e análise dos textos que exerceram impacto importante na reflexão mais ampla sobre a formação social do sentido em geral. O impacto pluralizador das vanguardas, das novas correntes e experimentações literárias das primeiras três décadas do século inviabilizavam um conceito unívoco (romântico ou realista) do literário. Paralelamente, a teoria dialogava intensamente com as novas disciplinas humanísticas do século XX, elas também vanguardistas – a linguística, a psicanálise, a etnologia, o marxismo na história e nas ciências sociais. A teoria e crítica literárias tornaram-se parte das ciências humanas. O sentido literário, dado pelo texto e não pelo projeto autoral, ampliava-se para ser entendido como manifestação, projeção, emanação, articulação de um ou mais sistemas de sentido metadiscursivos sobredeterminantes, encarados de formas diversas, mais ou menos dinâmicas, em cada disciplina das ciências humanas.

A positividade autoevidente da figura autoral biográfica deu lugar ao sujeito da enunciação, reconhecível pelo jogo interno do texto, com suas camadas remissivas, perceptíveis pelo que parecia na época ser operação lógica possibilitada apenas pelo ato da leitura e análise e hoje fica mais claro que se tratava de reorganização do repertório canônico. O sujeito da enunciação podia ser a ideologia, o inconsciente, a fórmula ou esquema, dimensões de sentido que conectavam o interior do texto com seu contexto de textos, também ele visto como produtividade de sentido transcendente ao criador, ao agente, em suma. O agenciamento era do jogo de sentidos imanentes ao texto.

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Nesse sentido, a noção teórica e prática de texto ia além das clássicas distinções de gêneros literários, abrindo caminho para a incorporação da teoria literária a uma teoria dos textos em geral. A leitura e análise de objetos da cultura (linguagem, artefatos, discursos) passa a empregar conceitos e metodologias desenvolvidas pela teoria da literatura, buscando identificar estruturas de formação de sentido, a partir do que se identifica como matriz linguística (ou linguajeira) de todo sentido. Relações multidisciplinares podem ser estabelecidas entre “textos” de todo tipo – literários, cinematográficos, etc.

Não que a biografia literária tivesse sumido completamente do cenário, banida pelo textualismo dominante. O que houve ao longo do século passado foi o aprofundamento do cisma entre formação especializada, de um lado, e, de outro, circulação da literatura na cultura e na vida, como bem e como valor. Aprofundou-se o abismo entre a cultura literária como parte da cultura artística e intelectual na esfera pública e a cultura literária dos especialistas, professores e críticos. A autonomia de cada esfera discursiva corresponde à autonomização do grupo social que a sustenta. A cultura especializada apartava-se do “mundo da vida” (evocando o termo de Habermas), de sua circulação no mercado e nos circuitos da consagração, os quais podiam ou não reproduzir avaliações da crítica especializada, já que muitos profissionais desta atuavam dos dois lados. De um lado, o mundo pulsante da vida e da comunicação, a literatura como entretenimento culto e instrumento de autocompreensão individual e coletiva, impulsionadora ou desconstrutora de ideologias. De outro lado, o mundo austero e intrépido da formação universitária, a literatura como passaporte de entrada e saída para a filosofia e ciências humanas. De um lado, a vida literária. De outro, a indagação técnica pelo sentido. De um lado, a tradição das belles lettres, de outro a teoria literária. De um lado, a confraria difusa das pessoas cultas (ou cult). De outro, a república dos professores.

Nesse contexto, durante todo o período em que o textualismo dominou a crítica especializada, o mercado literário nunca deixou de existir, sempre vicejante a oferta de publicações de caráter biográfico, dos coffee table books com fotografias e recordações de grandes autores, às memórias de escritores ou sobre escritores. Sempre existiu lugar para o cultivo de celebridades e mitos nos tribunais e palcos da história das culturas letradas, oscilando entre a devoção religiosa dos mais eruditos e a crônica mundana dos mais superficiais. As vidas de grandes escritores atraíam tanto interesse quanto as vidas de grandes compositores, pintores, interesse contíguo ao dirigido às vidas de personalidades históricas, políticas e outras – não se pode esquecer que as Letras constituem uma república, em vários sentidos da metáfora. Em estantes de livrarias americanas, viam-se seções distintas para “belles lettres”, de um lado, e “literature” ou “theory of literature”, de outro. Nas primeiras, as biografias, os álbuns sobre escritores, os panoramas e histórias de capítulos de vida literária, os volumes de correspondência, os diários de escritores. Na seção “literatura”, os títulos “sérios” de teoria e crítica estudados na universidade, que educaram gerações e gerações de PhDs em humanidades e ciências sociais desde os anos 1950 e 1960, pelo mundo afora.

Sujeito autoral e nova crítica biográfica

Com a guinada biográfica na teoria e prática da literatura no século XXI, sai de cena o sujeito da enunciação e entra o sujeito autoral. Atente-se: trata-se do sujeito autoral, portanto não exatamente, ou não somente, o “autor” como totalidade bem constituída, tal como concebido pelo biografismo empirista/positivista banido pelo século da teoria. O autor empírico fora substituído pelo texto como empiria. Sim, há agora um elemento forte de retorno do autor, ente pragmático, real, empírico, identificado a si como um corpo e registrado no Estado com a identidade civil de seu nome e sobrenome. Mas ele não deve ser confundido com a categoria propriamente teórica e crítica de “sujeito autoral”.

Se é certo que o “autor” opera uma volta[4], um resgate, polarizando a noção contemporânea de sujeito autoral, o fato é que, no momento pós-teórico trazido pelo século XXI, ele incorpora em nova síntese as desconstruções operadas pela hiperconsciência metodológica da era anterior. Depois da psicanálise e de tudo que se desvendou sobre as camadas latentes de sentido textual, não há como voltar a paradigmas críticos que, sob certos aspectos, nos parecem ingênuos, diante, por exemplo, do total anacronismo de noções de consciência frente a problemáticas de linguagem, como se pudesse existir pensamento de si fora da linguagem. Não se vê caminho de volta por aí. O caráter transcendental absoluto da linguagem (ou dos jogos da linguagem, conforme Wittgenstein[5]) para pensar o humano é talvez o mais importante legado filosófico do século XX, depois do materialismo histórico legado pelo XIX. No século XX, leu-se cultura como linguagem. Deve-se ler, hoje, comunicação.

 

Jackson Pollock, Mask, 1941. Disponível em: https://www.wikiart.org/en/jackson-pollock/mask
Jackson Pollock, Mask, 1941. Disponível em: https://www.wikiart.org/en/jackson-pollock/mask

 

Se o autor como categoria biográfica íntegra pressupõe uma consciência estável, o sujeito autoral é um dado de linguagem, e também de moldura institucional, na linha do que se pode apreender no texto seminal de Michel Foucault, O que é um autor? Seria de fato ingenuidade ou anacronismo crer que o abismo entre o sujeito biográfico e o sujeito da enunciação pudesse ser simplesmente eliminado pela “retorno do autor”. Este se dá refuncionalizado, noutra economia discursiva. O abismo é transposto por um ato de força externa ao texto, externa à produtividade intrínseca do texto. Voltamos ao termo usado anteriormente: na nova escrita biográfica, o texto é perfurado por sua exterioridade. O sujeito autoral contemporâneo redefine as relações entre “autor” e “narrador”, na medida em que o sujeito da enunciação vigente no textualismo era uma diferenciação interna da categoria “narrador”. O sujeito da enunciação era, por assim dizer, a subjetividade latente ou não manifesta do narrador, jamais do autor. Essa subjetividade que animava o narrador era discernível apenas pelo ato da leitura analítica. Os embates metodológicos, naturalmente sustentados pelas diferentes teorias, fizeram desse ato uma batalha entre decodificação unívoca versus interpretação das entrelinhas, molduras e superposições intertextuais.

Assinalamos então que, sim, por um lado o autor retorna como agente manifesto do discurso, da escrita, retorna como figura-fetiche nos dois lados do campo literário, o mercado e academia. Um retorno que não deixa de ser um desrecalque. O desrecalque da referida implicatura universal do eu. Um resgate correspondente ao resgate da agência em ciências sociais. Porém, como mostra Diana Klinger (2016), o caráter de agente do sujeito autoral é performático e pode ser prismático (eu sou trezentos, sou trezentos e cinquenta, diz o poema de Mário de Andrade). Deve ser enfatizado que no espaço biográfico da comunicação, que define uma civilização da visibilização, as facetas inconscientes e latentes dos signos e dos comportamentos tendem a se exteriorizar. Para dar um exemplo: no lugar de um gênero sexual masculino que sufoca seu lado homossexual ou feminino, temos agora sujeitos que são explicitamente homem/mulher ou vivem processos trans e flex, rejeitando o binarismo das identidades de gênero. Não há propriamente “inconsciente”, mas exteriorizações performáticas de possibilidades de ser.

O retorno do autor ocorre também fora das fronteiras disciplinares do campo literário. A implicatura do eu transforma os espaços disciplinares. Como vimos, a escrita de si torna-se elemento de todo discurso de conhecimento, o qual, ao mesmo tempo que conhece, relata a experiência de conhecer. O discurso do conhecimento passa cada vez mais a situar-se em seu aqui-agora, indagado em sua condição concreta de produção e circulação, sua materialidade. Todo saber é situado e, como tal, dialógico, pois não existe escrita de si sem interlocução, mesmo que virtual. Estar situado exige a implicatura do eu e vice-versa, são dimensões mutuamente necessárias. Situar-se é uma afirmação de perspectiva, é uma operação do olhar. De modo que a implicatura do eu é ao mesmo tempo de raiz literária e visual.

Um recorte epistemológico é um ponto de vista sobre a empiria, sobre a matéria do social-cultural-comunicacional. A partir daí, tomamos como exemplo o discurso da psicanálise. Ele é questionado em sua universalidade, por seu viés masculino, branco, burguês, classe média, eurocêntrico, ocidental. As linguísticas estruturais e sistêmicas são desconstituídas em sua logicidade pelo pós-estruturalismo e deslocadas em relevância por filosofias da linguagem situacionais, historicizantes. Na antropologia, cai a máscara: o que se narra é a relação do etnólogo/etnógrafo com o grupo com que interage.

O situar dos enunciados (dos dizeres) em sua própria historicidade faz eclodirem os novos campos disciplinares que definiram campos de saber e ideologias nas duas últimas décadas do século passado: estudos feministas, pós-colonialismo, estudos culturais, estudos queer, novas ancestralidades, antropoceno. As pessoas comuns são reconhecidas como sujeitos, suas histórias de vida tornam-se matéria prima de conhecimento. O trabalho de campo e as pesquisas qualitativas invadem a sociologia, que passa a ter na entrevista e na narrativa da história de vida um de seus instrumentos mais importantes. As entrevistas de escritores são incorporadas ao material crítico e biográfico dos estudos literários. O trabalho de campo logo se torna ativismo político-social, seu papel é dar voz a processos de subjetivação e apoiar a articulação de grupos marginalizados. Assumir a voz até então calada se faz pela performance pública ou pelo exercício da escrita, refuncionalizando a relação entre a intimidade silenciosa do literário e a intervenção personalizada/personificada no espaço público.

Dar voz é desrecalcar. À medida que se aproxima o final do século XX, o exercício da memória adquire urgência, o século volta-se para seu passado recente, desrecalca a consciência dos grandes crimes cometidos, reabrem-se arquivos, multiplicam-se depoimentos, testemunhos de tantos derrotados, perseguidos, vitimados – o trauma do Holocausto, o trauma da conquista da América, o trauma da escravidão negra, tantos genocídios. As guerras, os genocídios, as epidemias, os desastres nucleares. Narrar a experiência, narrar o vivido é conteúdo, mas também incrusta-se como forma e moldura determinante do sentido, como sistematizam os estudos de Leonor Arfuch. A narrativa do vivido como suporte formal dos discursos em geral faz do texto jornalístico o modelo ou coração secreto da criação textual verbal e escrita. Modelo a ser emulado ou guerreado.

Cena brasileira

No Brasil, a consolidação do biografismo nos estudos literários contemporâneos associa-se a um movimento paulatino de retorno ao arquivo, como nos aponta Eneida Maria de Souza no livro Janelas indiscretas – Ensaios de crítica biográfica (2011). Depois da consolidação da hegemonia da pedagogia textualista dos anos 1960/1970, emerge nos 1980 uma renovação da história literária e um novo interesse pelo bom e velho tema de Brito Broca – a vida literária. Não existem textos se não existem autores, não existem autores se não existe vida literária, vida que transita entre o artístico e o intelectual, vida que tem sua própria política (falamos de uma “república das letras”). Por ser histórica, por existir dentro da história e entrelaçada a histórias e histórias e instituições, a vida literária toca o político-social.

Porém, a renovação, nos anos 1980, do interesse pela história e vida literárias tem uma forte motivação propriamente crítica. É que o modernismo canônico do século, na sua dualidade conflitiva entre anticonvenção e convenção, começa a ser visto de maneira distanciada, como algo já pronto e monumentalizado, à medida inclusive que vão desaparecendo seus protagonistas, ou vão chegando a idades provectas. Aproximando-se do final do século XX, a crítica literária brasileira vê-se então na contingência de historicizar, relativizar, colocar em perspectiva o modernismo. A noção mesma de modernismo perde sua auto-evidência. Já não se está inquestionavelmente dentro do modernismo. Conformam-se terreno, olhar e gestos pós-modernos. Entre eles, o novo biografismo emerge como releitura do cânone modernista.

Eneida Maria registra a pré-história desse processo, apontando como momento inaugural a doação, em 1971, dos manuscritos de Miguel Angel Astúrias à Biblioteca Nacional da França, gesto que, segundo a autora, motivou a criação da Coleção Archives/Arquivos, por onde vieram a ser publicadas algumas memoráveis edições críticas de grandes obras latino-americanas, incluindo algumas brasileiras. O tombamento do acervo do escritor Astúrias, mesmo além-mar, em Paris, assinalava seu momento panteônico, sua domiciliação, no sentido de Derrida em Mal de arquivo. Era a domiciliação arquivística de um escritor latino-americano integralmente moderno, integralmente século XX. Cabe assinalar que neste mesmo ano de 1971 foi publicado no Brasil um dos grandes marcos do biografismo de escritores, o livro A juventude de Machado de Assis, de Jean Michel Massa.

As antigas disciplinas filológicas, que até os anos 1950/1960 se dedicavam sobretudo à pesquisa sobre romantismo e século XIX, foram resgatadas, em novo diapasão intelectual. O trabalho realizado por notáveis pesquisadores para a Coleção Archives repercutiu no crescente interesse da crítica universitária pela pesquisa nos arquivos de grandes escritores do século[6]. Nesse primeiro momento, marcado pela produção das edições críticas de autores brasileiros para a coleção, o mergulho no trabalho de arquivo ateve-se à crítica textual da velha cepa filológica (descrição das variantes) e à crítica genética (interpretação das variantes). E assim tivemos na coleção Archives as edições críticas de Macunaíma, A paixão segundo GH, Crônica da casa assassinada, Triste fim de Policarpo Quaresma. Em todos esses volumes havia uma seleta de textos da fortuna crítica sobre o autor e elementos de um dossiê, com fac-símiles de cartas, algumas fotos, etc. Seguir-se-iam os volumes de Manuel Bandeira (Libertinagem) e Oswald de Andrade (Obra incompleta).

Mário de Andrade, Clarice Lispector, Lucio Cardoso, Lima Barreto, eram todos grandes autores do século cujos acervos vinham sendo domiciliados naquele momento, ou recentemente, em instituições como o Instituto de Estudos Brasileiros da USP e o Arquivo-Museu de Literatura da Casa de Rui Barbosa. Atravessar o umbral do arquivamento era para pesquisadores em Letras penetrar no oceano revolto da história a ser escrita ou reescrita. Ocorre, no entanto, uma inflexão metodológica e prática nessa trajetória da cultura crítica. Podemos tomar 1988, ano em que veio à luz a edição Archives de Macunaíma, como referente cronológico para assinalar a mudança na maneira como nossos estudiosos passaram a procurar os acervos de escritores. O interesse deixou de ser primordialmente textualista ou filológico. Descobriu-se que um acervo de escritor pode conter muito mais coisa interessante além de seus manuscritos. Sua biblioteca, por exemplo.

Tais descobertas assinalam o advento de um novo tipo de domiciliação/arquivamento, representado pelo Acervo de Escritores Mineiros da UFMG, em contraste com os modelos clássicos do IEB-USP e da Casa de Rui Barbosa. Naquele, o interesse biográfico adquire valor expositivo. A reconstituição do gabinete de trabalho de cada escritor introduz o dado da vida literária, da vida íntima literária, inseparável da reconstituição de suas redes de relação – sua participação na vida literária. O arquivo é museu num sentido propriamente expositivo, externalizado. Museu de exposição e não mausoléu de papéis velhos.

Intensifica-se a partir daí o boom dos estudos de correspondências, diários, crônicas, todo um material paralelo até então esquecido ou relegado para o segundo plano de mera crônica mundana da vida literária do modernismo. As pesquisas desenvolvidas pelo Setor de Filologia da Casa de Rui Barbosa resgatam autores e cronistas ditos pré-modernistas, instaurando uma visão crítica que desloca a noção de modernidade cultural brasileira de uma compreensão excessivamente centrada na Semana de Arte Moderna paulista.

O interesse pela edição de cartas e diários tornou-se uma autêntica paixão literária que dominou a virada para o atual século e prossegue até hoje. Poucos textos literários terão exercido tanto impacto sobre a pesquisa acadêmica, e sobre a formação crítica atualizada, quanto as publicações das cartas de Mário de Andrade à qual se vinculou produção crítica robusta. Todos nós da área de literatura brasileira mergulhamos vorazmente na leitura da correspondência de Mário de Andrade. Por meio dela, revivificava-se o drama das vidas literárias interconectadas em seu tempo – era o espaço biográfico e era a anamnese do modernismo, agora enquadrado pelo olhar fora, entre etnográfico (a etnografia das redes de relação em estudos de vida) e histórico. A correspondência de Mário passa para o século XXI como um dos principais monumentos literários legados pelo século anterior. Esse trabalho de monumentalização e ao mesmo tempo devoração antropofágica desenvolveu-se num primeiro momento sobretudo nos departamentos de letras da USP, da UFMG, da PUC-Rio. A fascinação pela correspondência de Mário disseminou o interesse pelas correspondências de outros autores, como nas pesquisas e publicações de Nádia Batela Gotlib. De maneira pioneira mas bastante representativa de todo um espírito de época, toda uma transformação do gosto literário, Nádia caminhou da epistolografia para a biografia, tornando-se a autora das imprescindíveis e amorosas biografia e fotobiografia de Clarice Lispector.

Cânone e extracânone

Por ser transformação no gosto, a paixão pelas cartas e biografias de escritores esteve desde sempre articulada a movimentos de interesse no público geral não especializado, afetando a estrutura do mercado e por conseguinte a definição mesma de literatura e de seus princípios de valoração crítica. Na relação entre instituições de ensino/pesquisa/exposição e mercado literário, não se sabe qual dos dois exerce mais influência sobre o outro como fonte de valores, conteúdos, consagração de obras. Ler literatura deixou de significar ler apenas ou principalmente romances ou poemas e peças canônicos e passou a incluir em pé de igualdade a leitura de cartas, diários, biografias, memórias. Resulta desse movimento a ampliação do conceito de literário, situando-o no espaço biográfico. Trata-se de um movimento de desierarquização e descentramento na economia dos gêneros textuais, na medida em que o que era sub ou para literário passou a ocupar o centro do cenário junto com as matrizes romance, poema, drama. Foram rompidas as fronteiras entre os gêneros canônicos e sancionaram-se a porosidade e toda sorte de hibridismos, particularmente entre o discurso crítico e a criação ficcional.

O campo do literário cindiu-se e existe hoje de maneira dual, simultaneamente canônico e extracanônico. A referência ao canônico confere identidade ao campo todo, sempre no entanto elusiva nas famílias de textos extracanônicos. Surgem dinâmicas na produção e circulação do literário que podemos compreender melhor fazendo analogia com a distinção entre criação artística moderna e movimento geral da criatividade na pós-modernidade, segundo o crítico de arte Mário Pedrosa (1981).[7] A poética extracanônica é contínuo exercício de criatividade, mais que criação solidificada em obra acabada.

Temos então, de um lado, o terreno canônico, convencional, herdado de uma longa tradição institucional de origem europeia, espraiada globalmente à medida que se universalizava a cultura intelectual e artística ocidental. Terreno ainda plenamente vigente, referência central nos circuitos dominantes do mercado e da formação escolar, definido pela clareza de fronteiras entre os gêneros discursivos que o constituem: as formas curtas e longas da prosa ficcional, a poesia em versos épica e lírica, a tragédia antiga e o drama moderno. Na economia geral dos discursos, o literário histórico se recorta, segundo a conceituação emprestada de Aristóteles, pela verossimilhança versus a verdade do fato, pela mimeses versus relato histórico. A possibilidade de autonomia do literário reside na poiesis ficcional, que se distingue, diga-se de passagem, da mentira factual, do engodo criminoso, da demagogia política.

Do outro lado, o terreno pós-autônomo, pós-moderno, pós-crítico, pós-canônico, contemporâneo. É nesse terreno que se insere a contribuição de Eneida Maria de Souza ao giro biografizante da crítica no Brasil. A presença ubíqua do prefixo “pós” aponta para a permanência fantasmática do modernismo. Na verdade, o pós-canônico consolida-se como extracanônico, suplementar ao canônico.[8] Em termos de uma hermenêutica, o sentido do prefixo “pós” indica um esquema histórico que é posterior e devedor de um cânone moderno e simultaneamente contíguo e parceiro, num jogo de semelhanças, diferenças e desvios. O campo literário é definido pela duplicidade constitutiva entre cânone e extracânone.[9] Na história intelectual recente, o debate-movimento do “pós” (anos 1980, ápice) de certa forma estabiliza-se no cenário alternativo do “extra”, a pulsão pelo desbordar convivendo com a persistência da herança. Quem vem depois está tão fora quanto dentro de sua herança.

O terreno extracanônico se define pela revolução, pela abertura das fronteiras entre os gêneros da tradição, rejeitando seu caráter normativo e autoevidente. É a norma (aquilo que dá formatividade ao desejo) do não-normativo, das antinormas. O gesto estético e narrativo se dá como ato mesmo de abrir fronteiras discursivas. Os gêneros clássicos, com suas identidades, permanecem presentes, como referência, pois para haver abertura, é preciso que algo esteja sendo aberto.

Nesse âmbito, a autobiografia literária e a biografia, no sentido clássico ou canônico, passam a ser encarados como modalidades discursivas, numa família de gêneros afins, puros e híbridos. São formas matriciais, modelos referenciais herdados da tradição, muitas vezes quase como resíduos em relação aos quais se situam suas derivas modernas, pós-modernas e contemporâneas, como planetas mais ou menos desgarrados, com destaque para a autoficção de um lado e as múltiplas combinações entre fato e ficção na escrita biográfica. Biografia e autobiografia passam a ser atributos do discurso biográfico, que abarca o autobiográfico, modalidades de uma mesma escrita, bio, bioescritas, a biografia e a autobiografia.

Os gêneros clássicos são formas matrizes que ajudam a balizar as aproximações por afinidade dos proliferantes e livres gêneros extracanônicos. Constituem um repertório de fundo (o cânone) de pretensão universal a que recorre de maneira própria cada ato idiossincrático de formação e criação literária (criação verbal escrita). No terreno do pós-autônomo, os gêneros são agrupados por afinidades, são famílias de textos, como sugere Leonor Arfuch (2010), situando sua proposta no campo wittgensteiniano das Investigações, propondo em lugar da lógica da construção conceitual, os agrupamentos vocabulares por “semelhanças de família”. Por seu caráter indutivo e pelo fato de que o espaço biográfico é comunicacional, portanto, dialógico, essa visão remete às teorizações sobre gêneros discursivos de Bakhtin.

Tais movimentos arqueológicos na epistemologia do literário obrigam a reposicionar todos os conceitos herdados da tradição canônica, passando a perspectivá-los de maneira dual. Isso acontece também, como não poderia deixar de ser, com os conceitos de autobiografia e biografia. Eles passam a ter dupla inscrição. Por um lado, ainda devem ser concebidos na sequência da tradição, em que constituem gêneros relativamente bem estabelecidos, cujas fronteiras são auto-evidentes. No caso da biografia, as fronteiras são circunscritas ao universo disciplinar da História e ao pacto do compromisso com a veracidade documental. Em torno dessas fronteiras, constitui-se o “pacto biográfico”, evocando o “pacto autobiográfico” de Philipe Lejeune (2014).

O pacto com a verdade factual empiricamente documentada é inescapável na forma matriz da biografia. Por lidar muitas vezes com um imbróglio documental, essa verdade é, no mais das vezes, puramente interpretativa, chegando, claro, ao limite da funcionalização. Embora não seja de modo algum determinante ou dominante, o lugar da ficção numa biografia pode se fazer presente desta e de outras formas, diante da necessidade de preencher lacunas documentais. Sem poder escapar de sua definição como gênero histórico, a biografia convencional não deixa de ocupar um espaço fundador no campo literário, senão como gênero, certamente como catalizador de suas ideologias, mitos, políticas, versões. Biografias de escritores são o núcleo dos estudos de vida literária, material imprescindível para a história literária, assim como autobiografias e memórias. As biografias de escritores e as histórias da vida literária sustentam o valor de fetiche do literário, ou seja, seu valor como mercadoria e pedagogia.

Grafias de vida, escritas de si

Na literatura, a biografia pode ser tida como o romance documentado da vida real de uma personagem histórica. O recorte conceitual muda de figura no âmbito da ciência geral dos discursos e da comunicação. Procuramos traços “bio” na urdidura de assinaturas autorais. O espaço biográfico é nuvem em expansão, perpassando os discursos. Ele se superpõe sobre todo escrito, como atmosfera, e imiscui-se em toda letra, como oxigênio. O que chamamos de discurso autobiográfico, ou elemento autobiográfico, tanto pode se apresentar de forma plena na autobiografia, como pode subjazer a quaisquer outros tipos de textos, em dosagens (ou intensidades) variadas, a serem rastreadas e sopesadas pela leitura crítica. Apropriamo-nos do termo escrita de si, tal como trabalhado por Diana Klinger (2016) a partir do conceito de Foucault, termo adequado como guarda-chuva para agrupar famílias de textos e elementos textuais.

São escritas de si as autobiografias reais ou ficcionais, as memórias, as autoficções. A escrita de si abrange ainda cartas, diários, entrevistas, sem esquecer sua presença dominante (embora não exclusiva) no âmbito do bom e velho, e bem brasileiro, gênero literário que é a crônica. A crônica brasileira seria uma manifestação avant la lettre do pós-autônomo, entre o profissional e o amador, entre o casual (uso comum da língua, interessado) e o literário (uso artístico, desinteressado no sentido kantiano). Pode-se dizer que o gesto literário por excelência combina a gratuidade inerente ao “não-interessado” à necessidade pessoalizada de dizer.

Já para designar a família ou o traço definidor do recorte crítico capaz de abarcar a variedade de gêneros biográficos, não faltam fórmulas – da “vidaobra” de Augusto de Campos sobre Pagu, à “escrita da vida” em vários autores de diferentes áreas[10], à bioescrita, ao “escreviver” de Guimarães Rosa e à “escrevivência” de Conceição Evaristo. Adota-se aqui a preferência pelo termo grafia de vida, cunhado por Silviano Santiago (2014, 2015, 2020a, 2020b) em dois ensaios marcantes de sua produção nos anos 2010, retomado em Fisiologia da Composição, estudo crítico-metodológico recentemente lançado. Neles, o crítico e mestre revisita e complexifica a questão autobiografia/biografia que sempre lhe foi cara, intervindo no debate da crítica biográfica intensamente travado no campo literário brasileiro desde os anos 1990. Sua persona autoral de prosador encenaria criativamente esse estágio do debate no par formado pela autoficção de Mil rosas roubadas e por Machado, híbrido de romance, biografia e ensaio. Como se sabe, a obra inteira de Silviano Santiago aborda seus temas ora no suporte teórico, ora no suporte ficcional, e poderíamos estender isso biograficamente para o suporte docente. Essa ida e vinda num entrelugar categorial regido pela lógica do suplemento fez de sua obra pioneira na mescla entre ensaio e ficção.

No vocabulário proposto nos ensaios referidos, autobiografia, biografia e romance são reunidos sob o guarda-chuva da categoria grafias de vida. Nesse sentido, o estudo de autobiografias, memórias, diários, correspondência, biografias reais ou ficcionais incluem-se entre estudos de grafias de vida. A própria escrita de si será portanto um tipo de grafia de vida. A amplitude da noção de “grafia de vida” (Silviano Santiago) corresponde à amplitude da noção de espaço biográfico (Leonor Arfuch). A noção de “grafia de vida” projeta o dado sociológico-comunicacional sobre a problemática da letra. É a gota de sangue de cada poema, o dado “bio” de todo discurso-prática-performance artística.

Os modelos paradigmáticos da grafia de vida são a biografia convencional e o romance moderno clássico (de Cervantes ao romântico-realista). Neles, um biógrafo ou um ficcionista conta a vida de uma pessoa do nascimento à morte, seguindo linearmente a sequência cronológica das idades e fases (as “edições” machadianas) e declaradamente comprometido com a verdade factual daquilo que narra. Os limites desse modelo serão parodicamente explorados em obras como Tristam Shandy de Sterne, Orlando de Virginia Woolf, assim como, em modo autobiográfico, as Memórias Póstumas de Brás Cubas e o Dom Casmurro de Machado de Assis.

Atenção: por verdade factual, na ficção literária (romance, conto), entenda-se a verossimilhança interna, ao passo que na biografia histórica, entenda-se comprovação documental. A verdade é um gradiente que vai da composição da verossimilhança ao grau de comprovação documentada do factual. Comprovação factual e interpretação constituem o gradiente em que se movem a escrita e a leitura do documental. O recurso à interpretação exige a construção de verossimilhança. E assim se fecha o círculo. A exigência de verossimilhança é o pedágio pago tanto pela interpretação quanto pela criação ficcional.

Biografia e romance moderno são diferenciações históricas na grafia da vida. A reflexão de Silviano Santiago, de natureza ensaística, faz uma linha do tempo singular, ao situar a biografia em espaço próprio, originado das grafias de vidas ilustres dos anais e verbetes enciclopédicos às biografias propriamente ditas desde a Antiguidade. São evoluções do registro, do relato, do epitáfio. A biografia canônica mantém no seu DNA o compromisso de narrar a vida de pessoas que a priori possuem nome ou posição na esfera pública. Nesse sentido, ela se distingue claramente das histórias de vida de pessoas anônimas no espaço público, tal como vemos nas histórias de vida da sociologia, da etnografia, da história oral e mesmo da psicanálise. Nesta última, as histórias de vida são anamneses quebradiças, de certa forma ritualizadas e dialogais, que constituem “casos” clínicos.

Possivelmente, os problemas práticos da escrita biográfica (incluindo aqui as escritas de si), assim como de sua crítica, exigem uma combinação entre fantasmas ou resíduos de categorias da escrita psicanalítica, refratadas pelas percepções advindas das ciências sociais e estudos culturais, além de uma pragmática linguística reanimada pelo prefixo multi de “multilinguismo”, “multilíngua”. Cabe terminar lembrando que biografias de pessoas “comuns” ou anônimas podem catapultá-las como “nomes” na esfera pública, assim como personagens de romance acabam por tornar-se nomes públicos, tanto quanto os de realmente existentes políticos, celebridades, artistas, intelectuais, músicos, filósofos e, por fim, escritores. Grafar é lançar sobre a pedra seu traço de vida.

Rio de Janeiro-Guarulhos, 2020/21
(Ano da Pandemia)

 


* Italo Moriconi é ex-Professor Associado (aposentado) do Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e Professor Visitante (2019-2021) do Programa de Pós Graduação em Letras da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).

 

Referências

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WOLFF, Jorge. Telquelismos latino americanos. La teoria critica francesa en el entre lugar de los tropicos. Buenos Aires: Grumo, 2009.

 

Notas

[1] Ver também capítulo com esse título em Pedrosa et al (org.), 2018.

[2] Sobre o eu como encenação e performance, v. Klinger, 2016.

[3] Sobre a noção de telquelismo, ver Wolff, 2009.

[4] Sobre o “retorno do autor”, Klinger, op.cit.

[5] O Wittgenstein das Investigações Filosóficas. Ele não gostaria de ver seus “jogos de linguagem” chamados de transcendentais ou absolutos, já que esses jogos se propõem como avesso de qualquer pretensão transcendental da linguagem. Deve-se distinguir “linguagem” de “sentido”.

[6] Sobre a Coleção, ver Souza e Miranda (org.), 2003.

[7] Sobre o mesmo assunto, Otília B. F. Arantes, 1991.

[8] Refiro-me aqui à “lógica do suplemento” tal como formulada por Silviano Santiago em diversos trabalhos, a partir de leituras de Jacques Derrida. O suplemento é o elemento que se agrega a algo já completo. Ele vem depois, pressupõe um antes e se agrega ao que já existe marcando diferença, replicando em diferença. Ver Santiago, 2020a e 2020b. O leitor e a leitora reconhecerão na polaridade cânone/extracânone aqui proposta (ver a seguir) a dívida para com as trilhas hermenêuticas abertas pela obra crítica de Santiago.

[9] Observe-se que no presente texto deixo de lado o campo da “literatura expandida”, em que o extracanônico extrapola a escrita fonética, a dimensão verbal, e transborda em hibridismos e combinatórias com outros suportes, basicamente visuais. Mencionem-se os trabalhos de Flora Sussekind, de Florencia Garramuño.

[10] Ver Dosse, 2015, para uma apresentação abrangente da questão biográfica, na área da História, em viés francófono.

MEDEIA POR CONSUELO DE CASTRO E O SUPOSTO FILME

O presente artigo apresenta um estudo do espetáculo Medeia por Consuelo de Castro, realizado no formato de teatro e filme. Vinculado pela internet ao contexto da pandemia em 2021, a proposta do teatrofilme é objeto para a reflexão sobre contaminações entre espaços, elementos e teorias próprios aos dois campos de trabalho, sempre tomando como referência o contexto da nova versão da tragédia da dramaturga.

A encenação de Medeia por Consuelo de Castro foi veiculada pelo canal da companhia de teatro Br116 na internet em meio ao agravamento de uma nova onda da pandemia da Covid-19 e da descoberta de novas variantes ou mutações do vírus. Tanto o vírus quando seu sentido de contaminação, desenhado diante da impossibilidade dos encontros, geraram uma nova procura ou medida de novos espaços-linguagens entre áreas historicamente já contaminadas:

Hoje, temos a obrigação de pensar em todas as formas de contágio. O vírus não é transmitido apenas por gotículas de saliva, mas também pelas palavras. A palavra metáfora vem do grego μεταφορά, que significa transferência, mudança, transporte. O que nos leva de novo ao início: metáforas do vírus (Mello, 2020).

Essa metáfora é útil para nós, pois o que apresentamos aqui, a problematização do teatro enquanto experimento de filme, considera três aspectos: primeiro, a impossibilidade ou inviabilidade do encontro vivo entre pessoas no contexto da pandemia; segundo, a linguagem da arte em sua constante contaminação e mutação; e terceiro, a encenação em busca de espaços e corpos no tempo atual. Assim, a linguagem é como um vírus – a palavra expelida pelo corpo e a palavra ingerida pela imagem. Em um estudo sobre a metáfora viral e o sentido do lugar da escrita em William Burroughs (Burroughs, 1967), o psicanalista Pedro Teixeira Castilho coloca:

Ilusões e imagens são criadas pelas palavras que vêm de fora, pois, essas palavras atacam, viroticamente, os seres humanos e instituem a concepção binária da diferença sexual. A diferença sexual é um efeito da virulência da linguagem, a relação homem/mulher só existe porque os corpos estão submersos na linguagem. Por um outro lado, segundo Burroughs, o pensamento binário estabelece o desejo de união que não pode ser nunca atingido porque os opostos nunca podem se transformar em um “won’t be two” (Castilho, 2005).

Esse deslocamento promovido pelo vírus, em conjunto com a ideia da contaminação imposta pelo isolamento, remete ao mesmo tempo ao dilema da abordagem binária teatro/cinema e, também, à impossibilidade de teatro e cinema se situarem como um só. A ideia de contaminação pressupõe um novo contato, se lembrarmos que o teatro, e principalmente o cinema, sempre estiveram associados a um lugar híbrido. Paulo Emilio Sales Gomes, num estudo inaugural, irá pensar as relações entre teatro, cinema e literatura através do personagem de ficção. Tendo em vista tal campo relacional, ele estabelece uma base para sua análise:

os melhores filmes e as melhores ideias sobre cinema decorrem implicitamente de sua total aceitação como algo esteticamente equívoco, ambíguo, impuro. O cinema é tributário de todas as linguagens, artísticas ou não, e mal pode prescindir desses apoios que eventualmente digere. Fundamentalmente, arte de personagens e situações que se projetam no tempo, é sobretudo ao teatro e ao romance que o cinema se vincula (Sales Gomes in Candido, 2002, p. 106).

Durante o processo de construção de Medeia por Consuelo de Castro, a atriz Bete Coelho e membros da trupe compartilhavam na rede algumas referências sobre a experiência e o processo de montagem de um espetáculo em forma de teatro e de filme:

A tragédia nunca se fez tão presente na realidade da população mundial e, principalmente, do povo brasileiro. Esse gênero continua latente até os dias de hoje porque ele representa o que há de mais belo e monstruoso no ser humano: a incapacidade de agir somente pela razão (@cia.br116, 2021).

Outra postagem veicula a palavra ao ator Matheus Campos, que atua como Apsirto:

Atuar em Medeia foi um momento de reencontro como ator depois de sete meses sem estar nos palcos. O vírus me fez lembrar como somos frágeis diante de um inimigo invisível e o gênero trágico nos faz lembrar dessa eterna condição humana. A vida é efêmera quando não se é um deus (@cia.br116, 2021).

A divulgação virtual objetivava antecipar um processo, viralizando na rede e suas conexões (cartaz-megafone do romantismo mambembe intermediado por câmera e tela, já que tudo hoje é câmera e tela), a necessidade de um filme a partir de uma peça e a expectativa de um novo encontro permitido por algum sentido proposto no limiar entre teatro e cinema, deslocando-os para um terceiro lugar.

Susan Sontag lembra que:

Pelo fato de a câmera poder ser utilizada para projetar uma espécie de visão relativamente passiva e não-seletiva (…) o cinema é um meio tanto quanto uma arte, no sentido de que pode abranger qualquer uma das artes de representação tornando-a uma transição fílmica (Sontag, 1987, p.100).

Grande parte dos trabalhos de teatro veiculados nesse contexto de isolamento social tinha seu resultado derivado dessa dualidade do cinema: simples meio de veiculação do registro de uma cena; ou do cinema como linguagem – permitindo usar o automatismo do registro e do olhar da câmera, seu trabalho de fragmentação e montagem sobre o ator, o espaço e o tempo como elementos de intervenção artística na cena. Diante da impossibilidade do encontro vivo, o teatro lidava, particularmente nesses tempos, com esse binarismo na defesa de territórios de prática e contaminação, tentando estabelecer uma discussão que já vinha sendo levantada desde o surgimento do cinema, e mais ainda, retomada na contemporaneidade, em torno da presença de recursos digitais audiovisuais como parte do espetáculo teatral.

A produção de eventos e debates no formato, em palcos diferentes e numa mesma temporada foi e continua constante, pois, ainda no momento da escrita deste texto, não vemos a saída para o atual estado viral do homem. O teatro permitido pelo meio cinema talvez nunca tenha sido tão acessado pelo público (o público próprio e cativo do teatro) e, também, por um novo público. Um detalhe importante e definidor dessa dualidade entre meio e linguagem é que o evento, ou peça, tornou-se registro, cópia, e pode ser visto e revisto nos arquivos ou cinematecas da rede. Sontag (1987, p.100) esclarece:

Uma pessoa pode filmar uma peça, um balé e um acontecimento esportivo de forma que o filme se torne, falando-se de maneira relativa, uma transparência, e parece correto dizer que se está vendo o fato filmado. No entanto o teatro (ou dança) nunca é um meio.

Em Medeia por Consuelo de Castro a proposta de contaminação e deslocamento já estava presente no termo teatrofilme atribuído pelos diretores Gabriel Fernandes e Bete Coelho para nomear a nova produção, desenhada no atual contexto. A proposta do teatrofilme “testa os limites de coexistência entre o teatro e o cinema, assim como todos os limites de trabalho e relação humana passaram a ser reavaliados durante a pandemia” (@cia.br116, 2021). O diretor, vindo de experiência com a presença do audiovisual no espaço do teatro, acrescenta:

O ator, mais que o diretor, é quem está mais próximo do autor, expõe suas falas, dá vida, corpo, razão e emoção às personagens. Minha função foi, através da câmera e da edição, criar o terreno para florescer o trabalho dos atores e a história da Consuelo (@cia.br116, 2021).

Se a proposta de teatro e filme não seguia pelo caminho do encontro vivo e presente, e do que se repete como novidade a cada apresentação nos palcos, e nem mesmo do ao vivo das transmissões mais comuns do período de isolamento, a proposta mantinha na posição de frente a vontade de teatro, contaminando-a e deixando-a se contaminar por uma ideia de um suposto filme. A cena viva se estabelece num limiar entre texto-ator-espaço; promove-se, assim, um encontro com as possibilidades de registro da câmera sob um projeto de montagem (cinematográfica e teatral); e, por fim, um modo de encontro com o público é arquitetado. O que poderia ser algo binário, teatro-teatro, filme-filme, torna-se diálogo e os lugares passam a se confundir. Esse encontro, teatro e cinema, nunca foi novo e é sabido que o cinema sempre se desenvolveu a partir desse atrito, entre assumir sua cena e linguagem específica, na encenação a partir das formas plásticas puras, e de um cinema que economicamente precisou se associar ao texto e às intrigas originárias do teatro e do romance no início do século XX. De forma correlata, o teatro soube reagir ao cinema desde sua consolidação e procurou buscar suas especificidades próprias. Essa busca esteve presente nos escritos dos maiores pensadores do teatro e cinema do século XX, e parece não ter fim. As contaminações recíprocas atualizam-se e o surgimento do digital e do amplo acesso ao dispositivo câmera/tela só vem reforçar tal parceria.

A presença de um texto para guiar a cena foi relevante para buscar elementos de distinção entre os dois procedimentos – a peça no teatro (mais presente ou ausente como centro irradiador da cena) e o roteiro, o texto dramatúrgico no filme (mesmo que mais presente ou ausente como estruturador da cena). A definição desses dois lugares em torno do efêmero do roteiro (fadado ao esquecimento e à lata do lixo depois de terminadas as filmagens) e à sacralização do texto do teatro (resgatado e repensado a partir de novas e sucessivas encenações) são possibilidades e distinções. O texto da versão de Medeia pela dramaturga Consuelo de Castro será a base para a encenação do teatrofilme e o ponto de partida para se estabelecer a realização – texto, ator, espaço, tempo, câmera e montagem (agora o termo apropriado em seu sentido cinematográfico). A palavra é dita e a cena é dita, reafirmando sempre a fidelidade ao texto, em detrimento da crença na imagem, ou simples paisagem, na força da natureza no mito de Medeia como potência a ser explorada.

Figura 1: A terra devastada. A natureza como o lugar do cinema. (Frame do teatrofilme / Gabriel Fernandes.)
Figura 1: A terra devastada. A natureza como o lugar do cinema. (Frame do teatrofilme / Gabriel Fernandes.)

No estudo sobre a relação entre texto e encenação, Raymond Williams destaca os quatro elementos centrais ao teatro: fala, movimento, espaço cênico e som; e apresenta quatro categorias de ação nesse espaço: a fala encenada, a representação visual, atividade e comportamento. Sobre a fala encenada ele lembra a tragédia clássica, onde todos os detalhes são tidos como pré-determinados e cita suas convenções, mas destaca que, entre as quatro ações, cabe a interferência e os pesos delegados pela sua efetiva encenação:

no teatro a relação entre texto e encenação não é nada estável. (…) as variações devem sempre ser compreendidas segundo os termos dos métodos possíveis e mutáveis de representação e escrita dramática” (Williams, 2010, p.219).

Por sua vez, o cinema se organiza a partir da autonomia da imagem e da possibilidade de abandonar a centralidade do ator e mergulhar em outros elementos da cena. Na sua História do Cinema Mundial, Georges Sadoul aponta para aquilo que funda o cinema e o separa do teatro desde o seu surgimento:

o cinematógrafo Lumière era uma máquina de refazer a vida. Já não eram fantoches que se agitavam na tela, eram personagens do tamanho natural, nas quais se distinguiam, melhor que no teatro, as expressões e a mímica. E, graças a um milagre que nuca tivera um equivalente no palco, as folhas agitavam-se ao vento, o ar espalhava o fumo, as vagas do mar vinham quebrar-se na praia, as locomotivas precipitavam-se sobre a sala, os rostos aproximavam-se dos espectadores. “É a natureza tal qual”, exclamaram com maravilhado espanto os primeiros críticos (Sadoul, 1983, p.52).

Entre a força do texto, a fala e a encenação com o irrepresentável da natureza, no teatrofilme, a cena nunca se desvia de Medeia e os personagens que a cercam. Fazer da paisagem o agente evocativo de sensações, tensões e ações – a ruína, o mar, a tempestade, o lugar possível da memória dos personagens, animar e humanizar a paisagem, talvez pudesse trazer a proposta de encenação mais para o lugar lembrado como específico do cinema. Em Medeia por Consuelo de Castro, a encenação está no nutrir-se do texto, sempre através dos atores, que nunca abandonam a cena. Nessa adaptação, o texto, o ator e a utilização da descentralização da cena talvez deslocasse a sua parte filme apenas como única forma e meio de encontro com o público. Mas não é o que ocorre. Algo nos intriga nessa Medeia, e com o trabalho do filme (câmera e montagem) chegamos a algum lugar. Onde o cinema (e o teatro) viria, aqui, reivindicar o seu lugar?

Se por cinema entende-se a liberdade de ação em relação ao espaço, e a liberdade do ponto de vista em relação à ação, levar para o cinema uma peça de teatro será dar a seu cenário o tamanho e a realidade que o palco materialmente não podia lhe oferecer. Será também liberar o espectador de sua poltrona e valorizar, pela mudança de plano, a interpretação do ator (Bazin, 2014, p.164).

O teatrofilme de Medeia parece problematizar essa colocação de André Bazin, no seu celebre estudo sobre o teatro filmado. No teatrofilme, a parte teatro nos parece sempre reivindicado, sempre presente, dada a sua interdição, como origem do projeto divulgado pela trupe. Todos os atores estão ali no set do filme em deslocamentos – isolados e contaminados pelos dois espaços. O espaço do palco resiste ao local real das ações demandado por um filme mais usual. A trágica personagem de Medeia, exilada de seu reino, não pode mais voltar, está exilada também de seu lugar (o palco). Esse desenho parece claro pois o set do filme insiste em elementos cenográficos deslocados, metafóricos e imaginários como um cenário fabricado para o espaço do teatro. Não se trata da reprodução do real em um estúdio. A natureza aparecerá nessa leitura apenas para libertar Medeia com sua vingança.

O espaço do teatro é bem demarcado na cena em que Medeia planeja sua vingança contra a traição de Jasão, que irá se casar com a filha do rei Creonte. Ela vai presentear a futura noiva com o vestido de ouro que seu avô, o sol, lhe deu de presente de casamento com Jasão. Ela nos conta que, ao vesti-lo, a rainha arderá em chamas junto de seu palácio e cidade. Na cena, a câmera espreita Medeia em seu monólogo sobre um chão coberto de carvão. Sobreposições sobre uma aparente tela trazem para esse espaço a imagem exterior da devastação. Ela, então, se curva e retira do carvão o vestido de ouro. Existe a recusa do corte cinematográfico, que inaugura a magia nos efeitos especiais mais comuns do cinema. O propósito do gesto é realçar seu simbolismo e não a surpresa ou o realismo da revelação do vestido enfeitiçado. O ambiente sempre imerso em um fundo infinito negro, sua rotunda invisível, e projeções/sobreposições de outros espaços exteriores à cena (luz, telas translúcidas) como recursos associados ao audiovisual. O propósito desse espaço imaginário e simbólico é apresentado pelo diretor de arte Cássio Brasil, no exemplo do uso cênico do carvão:

Como subproduto do fogo, ele carrega a qualidade ambígua daquilo que já́ foi queimado ou ainda está por queimar criando, portanto, uma elipse narrativa no espaço. Perde-se a referência entre passado e futuro (@cia.br116, 2021).

Figura 2: O cenário no teatro possível: projeções, sobreposições e lugares imaginários. (Frame do teatrofilme / Gabriel Fernandes.)
Figura 2: O cenário no teatro possível: projeções, sobreposições e lugares imaginários. (Frame do teatrofilme / Gabriel Fernandes.)

Quanto às projeções e sobreposições, fica a dúvida se são elementos cênicos, hoje comuns com o acesso às ferramentas digitais do audiovisual, ou se esses elementos na cena foram acrescentados na finalização do filme. O indexical inerente ao gesto fotográfico da câmera, a imagem técnica como documento e vestígio do ato de se ter efetivamente testemunhado os fatos e a cena (onde os atores se encontraram), não se faz menos ambíguo. Não sabemos ao certo se essas sobreposições e encontros são fruto de uma posterior composição cênica. Os recursos de manipulação digital das imagens, muito acessíveis hoje, jogaram por terra essa certeza do encontro real. Hoje podemos trabalhar a imagem do filme com a mesma liberdade que temos diante de uma tela de pintura, acrescentando ou subtraindo elementos, ajustando cores, acrescentando camadas e inserindo recortes. Não seriam esses recursos o equivalente às rotundas pintadas compondo o cenário tradicional de um determinado espetáculo teatral? Essa questão lança questões sobre um dado específico da realização do filme, que é seu material bruto. Não há dúvidas que todas as cenas do teatrofilme foram filmadas em diversas tomadas de cena, algumas tomadas únicas, ângulos, aproximações, afastamentos, erros, acertos, repetições. Desse material bruto registrado em um suporte de filme, as cenas foram articuladas e manipuladas no momento da montagem ou edição propriamente dita. Ou seja, o encontro entre os personagens e algumas cenas se deram somente no suporte do filme, depois de articulado e manipulado digitalmente o material na ilha de edição. Assim, podemos perceber esse jogo de interferência da imagem retocada nos encontros de Medeia com a Ama, sempre em planos paralelos ou sobrepostos, os encontros (reais?) entre Jasão e Creonte, contra o fundo de espelhos. O toque explícito de mão e rosto entre Creonte e sua filha Glauce. Medeia e o fantasma do irmão. A cena do pedido de perdão e comunicado da sentença de Jasão a Medeia, intermediado por um vidro ou transparência, onde os rostos ora estão paralelos ou se sobrepõem para quase formar um só. Essa plasticidade da imagem ganha força máxima de encenação quando Medeia procura Creonte para fingir arrependimento, em um jogo de sedução e início de vingança: Medeia surge aos poucos através da textura da tela de fundo negro. Creonte surge como uma projeção desproporcional do primeiro plano de seu rosto, com texturas ou manchas da parede sobre a pele. Houve o encontro vivo dos atores entre si e com o jogo da câmera? Ou é tudo montagem?

Figura 3: As telas e os encontros interditados. (Frame do teatrofilme / Gabriel Fernandes.)
Figura 3: As telas e os encontros interditados. (Frame do teatrofilme / Gabriel Fernandes.)

Quando o teatrofilme testa a presença dos atores, o teatral no cinematográfico, o corpo ganha força, e o ator e o processo de encenação do teatro invadem a paisagem – o vento, o chão queimado, a natureza. E o corpo do ator diz: eu sou Medeia, eu sou Creonte, eu sou Jasão, eu sou ator e personagem, assumindo sua teatralidade ou “aquilo que, na representação ou no texto dramático, é especificamente teatral” (Pavis, 2008, p.372). Mas a vontade do filme suposto para o teatro persiste. Podemos tentar mensurar o grau de intervenção da encenação do filme sobre a presença dos atores nessa dosagem de teatralidade, previamente prevista ou roteirizada pelo texto referência da tragédia de Medeia. Se o gesto de cinema no teatrofilme não se limita apenas a ceder o espaço que lhe é mais característico, talvez possamos pensar na presença do filme no espetáculo Medeia por Consuelo de Castro; não na fabricação do filme mais usual de ficção, mas sim na encenação do filme documentário:

A parte documentária do cinema implica que o registro de um gesto, de uma palavra ou de um olhar, necessariamente se refira à realidade de sua manifestação, quer esta seja ou não provocada pelo filme, mesmo ele sendo um filtro que muda a forma da coisa (Comolli, 2008, p.170).

Sob essa ótica, o filme como linguagem interventora no teatrofilme ganha enorme força ao trazer atores contaminados pela presença do teatro e, ao mesmo tempo, presenças contaminando o realismo do filme – e, em conflito, uma ideia de ator dissociada do realismo ou naturalismo demandado pelo cinema: “No cinema, a presença específica do corpo se sobrepõe a qualquer arte de composição. (…) o código do natural é muito mais opressivo no cinema: não basta imitar, sugerir, é preciso ser” (Roubine, 2002, p.54). Isso para lembrar que, dada a qualidade do gesto fotográfico, que toma um ator no espaço, a câmera do cinema registra um corpo que já se manifesta no simples recorte, na manipulação de seu tempo e espaço no quadro. O ator é imediatamente registrado em algum suporte técnico de imagem, numa ação fadada à repetição, sem o menor risco do erro, ou do desvio no corte final. No cinema, a presença do ator está irremediavelmente marcada por essa propriedade, o que permite, por exemplo, eleger um simples passante no instante da filmagem como um ator e torná-lo parte da cena do filme. O cinema permite esse ator que é único, um ator cotidiano (Barba, 2012). Ator esse, fundido com a pessoa e despossuído em suas ações (seu corpo e seu gesto) do estudo e da técnica para a cena (geralmente buscados nos estudos de teatro) e que, todavia, dado o projeto de um tipo de filme, é colocado em cena, não apenas como pessoa, mas também como personagem. O filmeteatro parece documentar o ator na cena da tragédia.

Bete Coelho está em Medeia por Consuelo de Castro na sua presença documentária. Aliás, todos os atores do teatrofilme estão disponibilizados para a cena como atores sociais na leitura de Bill Nichols em seus estudos sobre o filme documentário. Segundo o autor, o termo surge:

para enfatizar a dosagem em que os indivíduos representam a si para os outros; (…) O termo também é utilizado para nos lembrar que os atores sociais, as pessoas, trazem sua ação dentro da arena histórica, onde eles performam (Nichols, 1991, p. 42).

O primeiro olhar, o olhar do cinema, nos diz que o teatrofilme deixa-se impregnar primeiramente pela pessoa Bete Coelho em um estado de atriz de teatro, no lugar que deveria ser, se possível, o do teatro, para depois, em um segundo olhar, nos deixar identificar e impregnar por Medeia, participar da sua trama e tragédia. Embora uma atriz muito reconhecida, principalmente pelo teatro, não é a questão de falar em tipagem: “O tipo define o conjunto das características físicas e vocais de um ator na medida em que elas se encaminham para um certo gênero de papeis, e somente para este gênero” (Roubine, 2002, p.75), e nem no sentido de mito: “Nas sucessivas encarnações através de inúmeros atores, permanece a personagem de Hamlet, enquanto no cinema quem permanece através das diversas personagens que interpreta é Greta Garbo”, coloca Paulo Emílio Sales Gomes (in (Candido, 2002, p.115). A presença da atriz Bete Coelho e seus pares é a perfeita representação do ator interditado do teatro, apresentando-se em filme, no rastro de uma presença como na bela colocação de André Bazin (2014, p.174):

É errôneo dizer que a tela é absolutamente impotente para nos colocar “em presença” do ator. Ele faz isso à maneira de um espelho (que, é ponto pacífico, substitui a presença do que se reflete nele), mas de um espelho com reflexo diferido, cujo aço retivesse a imagem.

O magnetismo da atriz, o corpo expressivo, uma forma de falar – presente no filme numa espécie de desvio – para além do estranhamento que testa e, a um só tempo, compõe uma só presença na atriz em processo de fabricação ficcional da personagem trágica de Medeia. A teatralidade na pessoa e personagem (e com certeza os outros atores parceiros do teatrofilme estão nesse mesmo desenho de presença) é aqui o material para o filme – a sedimentação do personagem não na pessoa comum (aquele passante no instante da cena do filme) mas no ator, vestido de uma técnica pessoal ou códigos preexistentes a serem utilizados na cena proposta pelos encenadores/realizadores. E não faz parte do projeto de teatrofilme que a paisagem real se desloque para o centro do drama e, no seu poder de evocar sentidos e sensações, conduza uma parte da tragédia. Bete Coelho e os atores da trupe são três: a pessoa, o ator, a personagem. Os três em estado de contaminação pelo espaço e pela presença de dois lugares. Na encenação do filme, o espaço, o tempo, o acaso, associado à ilusão do real, são os elementos que indicam para o ator uma direção ao natural, à desconstrução técnica, até que sua fabulação encontre a pessoa no personagem. Ator esse que não interage diretamente com a câmera, mas joga com ela. Diferentemente do teatro, o ator nesse espaço não tem nenhuma resposta ou troca imediata com o espectador e não pode atualizar reações e novas ações. Como ressalta Jean-Jacques Roubine (2002, p.78)a partir do teatro: “qualquer natural é, apesar de tudo, histórico”.

Além de ser criada a partir de um encontro vivo no momento do set do filme, e atualizada no momento do encontro com o espectador mediado por uma tela, a imagem no cinema é uma imagem imposta pelo ponto de vista da câmera/realizador sobre as ações. Para Ismail Xavier (2003, p.37), no filme:

junto com a câmera, estou em toda parte e em nenhum lugar: em todos os cantos, ao lado das personagens, mas sem preencher espaço, sem ter presença reconhecida. Em suma, o olhar do cinema é um olhar sem corpo.

Já na sala do teatro estamos mais livres. O direcionamento do nosso olhar sobre a cena pode ser direcionado pelo foco da luz ou pelo do gesto do ator, mas o que sustenta esse encontro são os lugares imaginados, as falas encenadas, os personagens muitas vezes deslocados nos seus atores – a mulher faz o homem, o homem a criança, o belo faz o feio, assim por diante, e tudo isso também nos é crível. Dois encontros e dois acordos.

O olhar sem corpo do espectador tem, no filme, a possibilidade de adentrar a cena e acompanhar os atores do melhor ponto de vista possível, ou do ponto de vista que nos é dado ver, sem escolhas, por isso, também, olhar imposto. Esse olhar fragmenta o espaço, as ações e os corpos, numa aparente descontinuidade, que através da montagem reconstrói uma totalidade para nós e, principalmente, um novo espaço no mundo. Pactuamos com o caráter mais automático do gesto fotográfico, que determina um poder de crença no que vemos, de tomar como real prontamente a cena apreendia pela câmera e fixada em um suporte técnico, naquele instante de um certo teatro.

No cinema, para além de uma primeira etapa, da criação de uma mise-en-scène próxima ao teatro, o ser atuante em um espaço e tempo, o processo avança para uma próxima etapa de encontro dessa cena com o jogo de intermediação da câmera. Assim, como vimos anteriormente, a opção pela condução do drama no teatrofilme está pautada pela fala encenada dos personagens da versão de Medeia por Consuelo de Castro, mais do que o predomínio das representações visuais ou da simples paisagem. No momento de encontro com a câmera percebemos que o gesto do realizador é deixar a apreensão da cena em planos longos, com as ações dos atores em fluxo.

A fascinação do plano longo sempre repousou mais ou menos sobre a esperança de que, nessa coincidência prolongada do tempo do filme com o tempo real (e o tempo do espectador), algo de um contato com o real acabe advindo (Aumont, 2004, p.66).

Assim lembra o teórico Jacques-Aumont sobre a autoria de alguns realizadores. E a presença em fluxo também é uma característica teatral. O real em Medeia, está determinado pelo seu projeto inicial, a tragédia e suas convenções atualizadas “na realidade da população mundial e, principalmente, do povo brasileiro (@cia.br116, 2021). Trabalha-se no momento do set do filme com as limitações desse instante de isolamento social e do encontro vivo, no set do filme e no palco do teatro.

No espetáculo tudo está traduzido no projeto do filme: o teatro interditado, a imagem imposta do cinema e o drama imaginário dos personagens e atores. Em Medeia, na sua estreia, o encontro com o espectador não foi veiculado ao sabor do ao vivo, buscado por outros espetáculos ou teatros advindos dessa mesma situação de isolamento social. Portanto, é importante colocar a questão: No encontro com sua parte filme, como foi aproveitado os recursos narrativos permitidos pelo cinema? Nesse jogo de assumir espaços e corpos contaminados, podemos eleger uma ou duas sequências do teatrofilme e analisar três elementos reconhecidos pela teoria como vedados ao teatro: a câmera subjetiva, ou a possibilidade, no filme, do espectador assumir o olhar e ponto de vista do personagem; o plano e contraplano da ação tornando tudo, 360 graus, o mundo real da cena; e o plano detalhe, que permite não só descentralizar a cena, mas buscar no rosto ou olhar o que não precisa ser dito ou ampliado pelo gesto do ator.

O monólogo é comum ao teatro e ao cinema, mas a exteriorização do monólogo pela fala tem uma força teatral. No mundo real do espaço no cinema, salvo em algum contexto especial ou experimento formal, o monólogo se expressa em off (fora de quadro da cena). Não só porque na vida expressamos nossos pensamentos e sentimentos verbalmente através do diálogo ou de uma escuta direta, mas porque no filme a câmera tem propriedades especiais sobre a cena. A aproximação da câmera tem a capacidade reconhecida de ler, adentrar o personagem e ressignificar os objetos os quais ela destaca: “Mecanicamente, uma simples lente pode a seu modo ser suficiente para revelar a natureza íntima das coisas (Epstein, 2012, p. 296). O que Medeia verbaliza estaria no detalhe de suas mãos tensas, no seu rosto, nos seus olhos que expressam o ódio, a vingança. Bastaria no filme o silêncio ou a inserção das maquinações e angústias de Medeia, apenas no silêncio de seu pensamento. A opção de encenar o monólogo de Medeia sem levá-lo para o extracampo da imagem e da fala direta, não diminuiu a força de profusão dos detalhes no rosto, boca, olhos, corpo e mãos da atriz. Os planos são belíssimos e, algumas vezes, encenar o conflito de uma Medeia atualizada, não poderia ser mais eficiente que sua fala trágica e cortante sobre o rosto expressivo da atriz. A presença de Medeia no teatrofilme é quase todo em primeiros planos e planos detalhe. Nesses planos, além da expressividade formal associada ao texto, da atriz-personagem-pessoa, a plasticidade da imagem em preto e branco não deixa claro se a sua força dramática parte do teatro para o filme ou do filme para o teatro. Temos como exemplo a cena em que Medeia lança seu feitiço sobre Glauce. Um plano detalhe do rosto da princesa em êxtase e agonia é pressionado e deformado pelas mãos de Medeia (ou são, na verdade, as mãos da própria atriz/Glauce?), enquanto segue o monólogo em off ou extracampo: “(…) agora meus materiais de sortilégio, os mais daninhos, os mais dolorosos, os venenos (…)” (@cia.br116, 2021). Talvez, a predominância do plano detalhe não seja apenas para aproveitar a porção filme no espetáculo: “o teatro da pele”, na exata definição de Jean Epstein (in Keller, 2012, p.272), mas para traduzir em imagem o que Bete Coelho, diretora, coloca sobre Consuelo de Castro: “é uma das poucas dramaturgas que percebe a embocadura do ator e seu movimento interno: ‘é como se ela entrasse na carne das personagens’” (@cia.br116, 2021).

Figura 4: O plano detalhe e um possível encontro. (Frame do teatrofilme / Gabriel Fernandes.)
Figura 4: O plano detalhe e um possível encontro. (Frame do teatrofilme / Gabriel Fernandes.)

A câmera torna-se subjetiva quando abandona a observação externa da cena, permitindo ao espectador assumir o ponto de vista do personagem dentro da trama. Com a câmera subjetiva, o espectador vê o que o personagem vê, através do seu olhar e do seu corpo, proporcionando um outro modo de identificação. Fazer com que o espectador assuma o corpo e olhar sobre o mundo do personagem da trama é operação claramente negada ao teatro. Nem mesmo a interferência de recursos audiovisuais em algumas peças teatrais são suficientes para incorporar esse elemento do cinema. São experimentos formais sobre essa impossibilidade. No teatrofilme somos todos observadores de fora e essa barreira nos parece, mais uma vez, a opção de o encenador/realizador estabelecer um desenho para o encontro conosco, que também é o do teatro.

Em Medeia, mesmo que presentes no mesmo ambiente o encontro do teatro com o filme, o que se representa é o isolamento. Os encontros estão sempre separados por camadas de imagens, telas, projeções, texturas e recortes. O próprio corte cinematográfico já é em si um elemento de separação e projeto de articulação posterior, fora do momento do encontro no palco-set do filme. Nos momentos dos diálogos do texto da tragédia, a frontalidade da cena, em algumas sequências, dá lugar à tradicional montagem em plano e contraplano. Essa articulação tem a característica do filme em colocar as ações e reações dos personagens na totalidade do mundo onde se encena. Tudo é parte do lugar real da história. Nessa articulação da montagem, o aparato técnico – câmera, luz, som e equipe, desaparece e, ali no espaço real da cena, passam a existir somente os personagens e o mundo.

Uma cena representativa e forte sobre a frontalidade da cena, que se soma ao conflito do texto dramático, pode ser observada na mesma cena quando Medeia dialoga com Creonte, para apresentar o vestido a ser presenteado para sua filha, e no jogo de sedução que se estabelece. Plano e contraplano não se efetivam e o dado visual é produzido pela separação entre Medeia presente e a imagem de Creonte mediada por uma tela, em proporções desiguais, em um espaço de encontro que não escapa aos aspectos mais próximos do palco. Assim, também, na cena seguinte, no encontro de Medeia com Jasão.

Figura 5: A tragédia encontra a natureza. (Frame do teatrofilme / Gabriel Fernandes.)
Figura 5: A tragédia encontra a natureza. (Frame do teatrofilme / Gabriel Fernandes.)

Esses elementos que interferem na cena, e que fundam o espaço do filme, testam especificidades, mas jamais conseguiram inaugurar um binarismo da cena. O teatrofilme, na sua releitura do mundo de Medeia, apresenta um final muito significativo, inclusive para exemplificar o recurso do plano e contraplano na espacialidade do filme. Ao aproximar-se de seu desfecho trágico, a cena é levada para a natureza. As folhas se movem ao vento, o chão queima, Medeia está vingada, mas recebe de Jasão a notícia da morte dos filhos. Na montagem do diálogo em plano e contraplano, os atores estão imersos no mundo. Tudo participa da cena, não há coxia, não há camarim (o teatro não acontece para o espectador em seus bastidores, apenas no espaço traçado do palco). O poder de encenação visto no interior do enquadramento da imagem é tão forte quanto a cena que se esconde no fora de quadro, ativa, participando do contexto da trama. Enquanto vemos o encontro final de Jasão e Medeia, em outro lugar, algo está acontecendo, os argonautas preparam o navio, o tosão de ouro está sendo roubado, e o mundo prossegue paralelamente à cena.

Esses elementos do teatrofilme se efetivam nos instantes finais da tragédia, quando o espaço do cinema parece que vai se sobrepor definitivamente ao espaço da peça. Tudo é terra devastada. Porém, um novo corte, leva a cena de volta ao espaço imaginário do palco possível, das projeções, sobreposições, do fundo negro infinito e de objetos simbólicos. O teatrofilme chega ao seu desfecho, e de volta ao seu lugar mais contaminado. A cena readquire a frontalidade em fluxo. Medeia, em um gesto muito significativo, olha ao longe e lança o olhar acima do olhar da câmera, para o infinito da plateia imaginária, mergulhada no escuro. Ela apresenta seu monólogo final sobre sua desgraça e maldição e parte com os argonautas. Nesse momento, e somente nesse instante final, Medeia olha para a câmera, e a câmera somos nós. Medeia esboça um leve sorriso, e seu corpo se movimenta ao sabor do mar também imaginário. O teatrofilme suposto para o contexto atual se efetiva. O direito ao deslocamento, estar fora das convenções de um naturalismo demandado pelo filme realista, por parte da presença do ator e do lugar do cenário, transporta a realização e a montagem de Medeia por Consuelo de Castro de volta para o local mesmo do mundo em contaminação, dos espaços interditados, negando o binarismo inaugural que se experimenta sempre na intervenção do vírus, no encontro entre teatro e filme.

 


* Rafael Conde é doutor em Artes Cênicas pela UNIRIO, pós-doutorando em Cinema na Escola de Comunicações e Artes da USP e Docente do Programa de Pós-Graduação em Artes das Escola de Belas Artes da UFMG. Entre seus trabalhos em cinema destacam-se: Uakti: Oficina Instrumental, A Hora Vagabunda, Françoise, Samba-Canção, Fronteira. É autor do livro O ator e a câmera: Investigações sobre o encontro no jogo do filme (Editora UFMG, 2019).

 

Referências

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NICHOLS, Bill. Representing reality. Bloomington: Indiana University Press, 1991.

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XAVIER, Ismail. O olhar e a cena: melodrama, Hollywood, Cinema Novo, Nelson Rodrigues. São Paulo: Cosac Naify, 2003.

 

Filmes e mídias

@cia.br116, instagram, acessado em fevereiro de 2021.

COELHO, Bete e FERNANDES, Gabriel. Medeia por Consuelo de Castro. @cia.br116, Canal Youtube. Teatrofilme. Veiculado em: https://www.youtube.com/channel/UCI1SHxolUe9vFrWboCD57Jg/featured. Acesso em: 7 fevereiro de 2021.

PASSAR A LIMPO E VIRAR A PÁGINA

Este artigo trata sobre os embates prático-discursivos de memória política entre correntes do pensamento social (democrática x antidemocrática) em constante rearranjos narrativos conforme o momento temporal e o contexto espacial. Para efetuar uma análise sociolinguística dos vieses político-ideológicos de memória/esquecimento na apropriação simbólica do antigo Prédio do DOPS-RJ, utilizaremos de alguns arquivos virtuais envolvendo o Movimento OcupaDOPS – que tenta transformar antigo prédio do DOPS no Centro do Rio de Janeiro em um centro de memória contra a ditadura –, apontando para a possibilidade de superação psicossocial e consolidação democrática micro e macropolítica. Através do legado prático e teórico brasileiro e internacional sobre justiça de transição (direto à memória, reparação, punição e superação) e cidadania efetiva (vivida, garantida, percebida e ativa) no Brasil, expressos na esfera pública pelos trabalhos da Comissão da Verdade e Anistia, se tenciona reconhecer a urgência da ressignificação cultural dos espaços de memória associados ao terrorismo estatal na Ditadura brasileira – mas também a resistência estudantil a ela, como no caso do inacabado Memorial da Anistia do prédio do “Coleginho” da  UFMG, proposto pelo governo federal na Era Lula.

Fotografia de Fred Le Blue (ARTEtetura e HUMANismo).
Fotografia de Fred Le Blue (ARTEtetura e HUMANismo).

Em 2013 participei ativamente das Jornadas de Junho em diversos levantes populares contra um Estado refratário aos movimentos e demandas sociais, rarefeito em sua vocação de escuta e participação política. Entre as diversas manifestações históricas que ocorreram nessa época acompanhei mais de perto duas: do OcupaRio, como cidadão dos grupos de trabalho, e, como mestre de memória social, do OcupaDOPS. Ambos os movimentos pareciam ter mais em comum entre si do que com a global franquia “Occupy”. Com o passar do tempo segui acompanhando e estudando os esforços da Comissão da Verdade e da Lei de Anistia, como voluntário da paz conflitual.

Em 2017, fui convidado para ir a Brasília conhecer alguns dos integrantes da Comissão da Anistia no Ministério da Justiça, quando fora aprovado nas instâncias preliminares para me tornar mobilizador do Memorial da Anistia em Belo Horizonte (MG). No entanto, logo depois, o concurso foi cancelado sem motivo aparente e a Revista da Anistia, inviabilizada, pelo que consta, por falta de papel em função da crise econômica que se anunciava, e que culminou com o impedimento da ex-presidente Dilma Rousseff (PT). Mais do que um mal-estar pessoal, percebi que, a partir dali, o país começaria a se debater em um duelo de forças antitéticas sociodiscursivas, o que nos levaria, uma vez mais, para a perda de estabilidade política e jurídica. Ainda era cedo para prever que os fantasmas dos extremismos autoritários de direita e românticos de esquerda (ou vice-versa) voltariam à cena principal do debate público, para além do âmbito da questão da justiça de transição. O fato é que a justiça não foi, de fato, feita, e, por isso, ficamos sem transição, eternizando o bordão do país sem memória.

O artigo que aqui se consolida é uma versão atualizada do texto aprovado pelos pares da Comissão da Anistia, a partir também da minha pesquisa teórica prévia sobre o campo da Memória Social, baseada em autores franceses como Halbwachs (memória individual, coletiva, histórica, espacial e temporal) e pós-halbwachiano (memória subterrânea ou história oficiosa, história oficial, lugar de memória, memória e esquecimento, identidade social e política). Assim como os trabalhos da Comissão, ele também teve até aqui o mesmo destino de mordaça e esquecimento. Mas, doravante, não mais, afinal, pois eis que ele ressurge nesta relevante revista.

Utilizar-me-ei como pano de fundo ilustrativo da discussão teórica o fato histórico e antropológico, no caso, a manifestação OcupaDOPS em 2014: mais especificamente, a polêmica sobre o uso do prédio antigo do DOPS-RJ (Museu da Polícia X Centro de Memória da Resistência). Ao final, peço licença para fazer uma digressão ensaística sobre a relevância de nos familiarizarmos com esses temas da justiça de transição transicional, democratização cidadã e memória coletiva no contexto brasileiro atual de desmantelamento das políticas públicas humanistas e culturais. Inicialmente, faremos uma rápida contextualização para os não iniciados no assunto da Justiça de Transição para explicar como ela surgiu no contexto internacional dos direitos humanos no final do século XX.

Contexto

O legado do pensamento de transformação social de Lélio Basso e seus parceiros na defesa e colaboração em processos de justiça de pós-conflitos em vários continentes pode ser contemplado em iniciativas como o Tribunais Russel I e II[1] e o Tribunal Permanente dos Povos. Esses eventos ajudaram a consolidar a jurisprudência de que crimes políticos, crimes internacionais e violações dos direitos humanos não atentam somente contra o indivíduo, mas todo o escopo societal – em suas dimensões políticas, econômicas, sociais, jurídicas e culturais (Abrão; Torely, 2013).

Tal mudança de perspectiva do direito da pessoa humana para o direito dos povos (Fillippe, 2013) permitiu compreender que o autoritarismo e a onipotência do Estado não poderiam ser irrestritos e inquestionáveis por parte dos governados. Regimes totalitaristas, devido à banalização do mal institucionalizado (Arendt, 1999) através da violência disciplinar física e/ou panóptica (Foucault, 1997), mormente sobre grupos dissidentes ou antagônicos, atentam não somente contra a boa prática de governança política-jurídica, mas também contra os valores do humanismo, da democracia e dos direitos humanos universais. A diretriz da ONU (2004) sobre o tratamento criminológico em justiça de transição defende a conexão do direito à memória, à justiça, à reparação e à reconciliação (Parmentier, 2003): explicitar fatos do passado, punir os agressores, reparar as vítimas do passado à luz do presente para reconciliar possíveis contradições para que não ocorram recorrências totalitaristas no futuro.

Documento

Reproduzo a seguir a “Petição pela imediata transformação do prédio do antigo prédio do DOPS/RJ em Centro de Memória da Resistência pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro”, dirigida ao governador Sérgio Cabral (disponível em http://www.peticaopublica.com.br/pview.aspx?pi=BR69613, acesso em 28/12/2015):

O prédio que abrigou o antigo DOPS/RJ, inaugurado em 1910, localizado na esquina da Rua da Relação com Rua dos Inválidos, no Centro do Rio de Janeiro, foi construído para sediar a Polícia Central da República. Esta polícia teve como objetivo principal a perseguição à “vadiagem”, a criminalização das práticas de capoeira e de cultos religiosos afro-brasileiros. Ao longo dos anos, o prédio abrigou distintas polícias políticas responsáveis por coibir reações de setores sociais que supostamente pudessem comprometer a “ordem pública”, em especial nas ditaduras vividas no Brasil. A partir de 1962, funcionou no prédio o Departamento de Ordem Política e Social do Rio de Janeiro (DOPS-RJ), um dos principais órgãos de perseguição política, tortura, morte e desaparecimento forçado de pessoas durante a ditadura civil-militar. Tombado pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (INEPAC), o edifício ainda está sob a administração da Polícia Civil e encontra-se em péssimo estado de conservação, com arquivos em deterioração, o que evidencia a destruição e o abandono do poder público para com o patrimônio histórico. Além disso, há indícios de que o plano atual do governo do estado é estabelecer o Museu da Polícia e uma galeria de lojas neste espaço, a despeito do compromisso assumido pelo Governador Sérgio Cabral, em 8 de maio de 2013, durante a posse da Comissão da Verdade do Rio de Janeiro, de transformar aquele prédio em um centro de memória. Frente ao inegável atraso do Brasil em matéria de Justiça de Transição, faz-se urgente a destinação do prédio, por parte do governador do estado, para a construção de um espaço comprometido com a memória da resistência e das lutas sociais, e que explicite a relação entre as violações cometidas pelo Estado no passado e no presente, estimulando medidas que impeçam a repetição de tais práticas. É preciso transformar o prédio integralmente em um espaço voltado para as políticas de Direitos Humanos, de modo que seja dinâmico, congregando a produção, guarda e circulação de informações, documentações, acervos, projetos e propostas voltadas ao direito à memória, verdade e justiça. Para isso, os distintos movimentos sociais devem ser os atores centrais na construção e gestão deste espaço, com poder decisório efetivo.  A reparação dos danos causados pelo impacto da violência de Estado no conjunto da sociedade se faz através de medidas concretas, como a criação de suportes de memória, ou seja, a implementação de instrumentos que reivindicam o reconhecimento de um passado deliberadamente soterrado, esquecido e silenciado pelas versões oficiais da história, e contribuem com a formação de princípios éticos para a construção democrática do presente e do futuro. O Estado brasileiro e o governo do Rio de Janeiro têm esta dívida histórica pendente. Tornar público o que ocorreu em tempos sombrios fortalece a cidadania, revigora a democracia e pavimenta um futuro de mais justiça.  Assim, no intuito de fazer do prédio do antigo DOPS/RJ um marco na defesa e promoção dos direitos humanos no Rio de Janeiro, exigirmos do Governo do Estado do Rio de Janeiro que o compromisso se efetive e que seja realizada a imediata transformação do prédio da Rua da Relação n. 40 em um espaço de memória da resistência e das lutas sociais!

1. Memória histórica e coletiva

Percebem-se no trecho citado conflitos de memórias identitários e políticos entre a condição de memória subterrânea e a oficial (Pollak, 1992). No conflito prático-discursivo de uma estratégia tácita de “esquecimento orquestrado” (Ricouer, 2007) por parte das autoridades estatais militares “antidemocráticos” e outra, explícita de memória negativa, por parte dos movimentos sociais civis “democráticos”, vemos duas correntes de pensamentos sociais (Halbwachs, 2004) que tentam se apropriar da memória socioespacial do prédio do DOPS-RJ. Entre a defesa da instituição policial militar militarizada com o AI-5 (e muitos do regime militar) e da sociedade civil crítica às instituições totais (Goffman, 2010) totalizantes como o DOPS (e muitos da polícia militarizada), dois grupos sociais em disputas territoriais e simbólicas têm como background prévio a truculência policial na contenção das manifestações sociais após 2013, tidas por setores conservadores, como ato de vandalismo.

Após esse período, a polarização política que passamos a viver no Brasil, sobretudo por meio das guerras culturais digitais, resultaram em um empobrecimento dos matizes ideológicos existentes e futuros, que fizeram aflorar velhos fantasmas políticos como a monarquia, o coronelismo e a ditadura. Como uma espécie de karma coletivo, parece haver alguns conteúdos psicopolíticos traumáticos do período militar que ainda nos aprisionam em um dualismo epistemológico (esquerda x direita) que ainda estrutura o campo de batalhas mentais e comportamentais dos brasileiros na fila do banco. A confusão é maior porque ela não envolve somente uma briga por causa da cor da tinta do editorial da memória coletiva nacional, mas sim sobre os significados históricos e usos presentes do espaço do patrimônio edificado de prédios estatais. Tudo leva a crer que de fato há uma relação metafísica entre memorialismo e espacialidade, como parece mesmo sugerir, heuristicamente, a palavra “memorial”. Examinaremos essa máxima à luz do documento supracitado.

2. Memória e espaço

A frase da petição (“É preciso ocupar a memória, para não esquecer nossa história”) aponta para uma forma de ritualização da “memória impossível” através de “lugares de memória” (Norra, 2015), já que, em relação ao antigo prédio do DOPS, tanto os grupos militares quanto militantes reivindicam o uso do patrimônio material para construir um memorial (patrimônio material e imaterial). A necessidade de lembrar com um determinado viés, salvacionista para os militares, martirizante para os manifestantes, através de um anteparo físico e poético, está ligada ao risco do esquecimento, o que geraria o risco da repetição das supostas arbitrariedades humanísticas). O não cumprimento da promessa política do governador Cabral de transformar o local em Centro de Memória e Resistência revela como a memória militar ainda tem alguma pregnância em alguns setores mais conservadores, até porque há a tendência de as correntes de pensamento coletivo imitarem a matéria inerte – apesar dessa estabilidade ser só aparente (Halbwachs, 2004). Sendo os significados coletivos do prédio associados à tortura física e psicológica de supostos comunistas subversivos, o silenciamento sobre esses “silenciamentos” dessas vítimas dos crimes de Estado cria um espiral de violência invisível ad aeternum. O esquecimento cordialista, sem autenticação crítica da memória no tempo presente, seria aqui uma forma de endosso oculto do passado, haja vista que a sensação de impunidade é o principal motivador para que esses crimes voltem a ocorrer no futuro.

A estratégia de terapêutica psicanalítica pela transformação do espaço de memórias recalcadas (trauma coletivo) em memória associada à resiliência política permite reconciliar simbolicamente, ao menos, o grupo que enquadra o momento político-histórico pós-64 como ditadura e não revolução, os efeitos deletérios do terrorismo de Estado e o resgate dos Direitos Humanos e do Estado do Direito. Não é outro também o sentido da construção do Memorial da Anistia em Belo Horizonte (MG) e do Memorial da Resistência (SP), assim como as iniciativas da Comissão da Anistia em suas ações interinstitucionais de implementação de estátuas em homenagem aos mártires do terrorismo do Estado, as “Trilhas da Anistia”.

3. Memória e tempo

O enquadramento temporal na ancoragem de memória coletiva por meio de datas comemorativas permite uma estabilidade aparente para as correntes de pensamentos coletivos (Halbwachs, 2004). Aparente porque a duração é irreversível e contínua, enquanto a memória (individual-coletiva) é situacional e seletiva (Bergson, 2015), tendo em vista que:

A memória é seletiva. Nem tudo fica gravado. Nem tudo fica registrado. A memória é, em parte, herdada, não se refere apenas à vida física da pessoa. A memória também sofre flutuações que são função do momento em que ela é articulada, em que ela está sendo expressa. As preocupações do momento constituem um elemento de estruturação da memória. Isso é verdade também em relação à memória coletiva, ainda que esta seja bem mais organizada. Todos sabem que até as datas oficiais são fortemente estruturadas do ponto de vista político. Quando se procura enquadrar a memória nacional por meio de datas oficialmente selecionadas para as festas nacionais, há muitas vezes problemas de luta política. A memória organizadíssima, que é a memória nacional, constitui um objeto de disputa importante, e são comuns os conflitos para determinar que datas e que acontecimentos vão ser gravados na memória de um povo. Esse último elemento da memória – a sua organização em função das preocupações pessoais e políticas do momento mostra que a memória é um fenômeno construído (Pollak, 1992, p. 204).

A ineficácia para a solidariedade social da multiplicidade de durações individuais suscita, então, essa tendência de lembrar em e através dos grupos (Bergson, 2015). No caso do prédio do DOPS, 1º de abril é uma data estratégica para ambos, apesar dos recortes duracionais distintos sobre seu significado. O OcupaDOPS de 21 de março e a Marcha pela Família com Deus pela Liberdade em 22 acionam a mesma data de abril. Apesar do escrutínio da história educacional já vilanizar genericamente os militares, o que também é um erro historiográfico – já que houvera membros das Forças Armadas contrários ao regime que também foram perseguidos e torturados –, a mudança de caráter do prédio para Museu da Polícia cria uma batalha pela memória na iminência dos cinquenta anos do golpe após as jornadas de junho de 2013. Execrando e estigmatizando como “vândalos” (em equivalência ao comunismo nos anos 1960) os militantes do novo século, a mídia e a sociedade brasileira parecem reviver psicodramaticamente as correntes de pensamento coletivo no jogo político histórico e identitário durante o período militar. Porém, de forma ambígua em relação a temporalidades e fracionamentos ideológicos de versões de história (ou melhor, “hestórias”) do contexto político globalizado pós-guerra fria e neoliberal. A presidente Dilma (PT), outrora guerrilheira política, era entusiasta dos trabalhos da Comissão da Verdade e, como defensora da estabilidade política enquanto partido da situação, também da ação truculenta militarizada empreendida nas manifestações sociais de 2014 durante os jogos olímpicos.

4. Memória e indivíduo

Nessa manifestação se reivindica o direito à culpabilização e reconciliação por meio de cartazes personalizados com nomes dos torturadores – para além da crítica à época e ao lugar do terror. É necessário ressalvar que o aval sistêmico estatal totalitário legitimou ações violentas individuais desumanizadas (Arendt, 1999), pois o fluxo da ideia de grupo pode impelir a uma ação vivida sistêmica e magicamente como coletiva (Durkheim, 2010). A despeito das dissidências e incongruências internas dos (sub)grupos hegemônicos do poder que sustentaram o golpe, que se rearranjava conforme o momento histórico vivido durante os mais de vinte anos de ditadura (D’Araújo; Soares; Castro, 1995): “Se é possível o confronto entre a memória individual e a memória dos outros, isso mostra que a memória e a identidade são valores disputados em conflitos sociais e intergrupais, e particularmente em conflitos que opõem grupos políticos diversos (1992)”.

Sobre memória individual e coletiva, é possível afirmar que a primeira se assenta na segunda. Para Halbwachs (2004), a possibilidade estrita da memória individual não é possível, ao contrário do proposto por Bergson (2004) – o que é sintomático na obra de Durkheim (2010), já que ela oscila entre uma confiança cega e utópica na solidariedade social enquanto imperativo sobressalente do tipo social e um reconhecimento austero da psicologia, das faculdades individuais em complementaridade com o anterior –, o que será mais bem equalizado por Elias a partir de uma interface da sociologia com a psicologia freudiana (1994).

Considerações finais

O pioneirismo do Memorial da Anistia em Belo Horizonte (MG), no antigo prédio da FFCH/UFMG, marco da combatividade política militante na cidade, local depositário que irá salvaguardar os arquivos digitalizados dos fundos do Tribunal Russel II referentes à América Latina (Fundação Issoco, 2012), aponta para usos salutares da memória espacial como fonte de conhecimento e de resistência frente ao autoritarismo estatal. Ao confrontar as correntes de um pensamento social cordialista brasileiro através da ressignificação reconciliatória e terapêutica do patrimônio edificado, esse tipo de iniciativa permite mapear a polifonia das vozes políticas silenciadas e/ou esquecidas dos sujeitos coletivos no país, mormente as mais subalternas. Em prol do fortalecimento da pesquisa e da conscientização política e histórica nacional, vislumbram-se, nesse sentido, condições para a consolidação de uma democracia representativa participativa e inclusiva. A Comissão da Verdade e a Comissão da Anistia (Marca de Memória, Caravanas da Anistia, Trilhas da Anistia, Clínicas do Testemunho) são meios eletivos afins aos processos históricos de radicalização da democracia na sociedade brasileira a partir de 2013.

A perspectiva extraeconômica socioambiental, de justiça e participação, indicadores de desenvolvimento como qualidade de vida, bem-estar, cidadania efetiva (vivida, garantida, percebida e ativa) e direitos humanos (Ibase) passam, doravante, a nortear as diretrizes e critérios de desempenho das políticas públicas das instituições e dos compromissos sociais das empresas. Importância essa premente, já que é influente ainda o capital político (Bourdieu, 2005) de setores organizados da sociedade civil na agenda pública e social. No entanto, defesas entusiastas da manutenção da militarização da polícia e armamento da população civil e do retorno da ditadura militar demonstram quão incipiente é ainda o estatuto da democracia brasileira. Em observância também ao fato de que a Lei da Anistia ampla e irrestrita[2] já tem um papel subliminar de penitência automática aos crimes cometidos, cabe considerar que essas vozes reacionárias servem como desestímulo à realização plena dos pressupostos de uma justiça transicional da Comissão da Verdade.[3] Apesar de serem esses contraditórios a prova cabal da relativa afirmação democrática, paradoxalmente, essa conflitualidade de memória-temporalidade e, muitas vezes, de espacialidade também arrefece a radicalização da democracia (Habermas, 1987) no Brasil com o alargamento do espaço público pela participação cidadã dos sujeitos coletivos em disputa na sociedade civil. Disputas de interesses ideológicos e econômicos que, no entanto, encouraçam o direito à superação dos traumas individuais e coletivos dos horrores do regime de exceção cristalizado através de macropolíticas (identidade representacional) com possibilidades de desterritorialização por novas micropolíticas ou cartografias afetivas (desejo volitivo). Traumas esses que afetam, até hoje, a vibratilidade subcortical dos corpos, que, por sua vez, está em homeostase com a percepção micropolítica do cotidiano (Rolnik, 2014). Impasse que tem nos impedidos, sincronicamente, de virar a página da história e passá-la a limpo a contento, haja vista que, mal resolvido mnemonicamente, ele sempre volta a nos assombrar quando menos se espera, inadvertidamente:

Nós, integrantes e apoiadores da Campanha Pela Transformação do Prédio do ex-DOPS/RJ em Espaço de Memória da Resistência – OCUPA DOPS -, manifestamos nosso repúdio à ameaça e a censura a que fomos submetidos na última quinta-feira, 26/06/2014, Dia Internacional de Combate à Tortura. Nesta ocasião, dois integrantes da campanha foram detidos e ameaçados por policiais civis da 5ª DP, no centro do Rio de Janeiro, que os acusaram de dano ao patrimônio público e crime ambiental por realizar uma intervenção artística de Graffiti nos tapumes da obra do prédio do ex-DOPS/RJ, ainda que exista um decreto municipal (Decreto 38.307/2014) que autorize e incentive o Graffiti em tapumes de obras na cidade do Rio de Janeiro. Após serem prestados depoimentos ao delegado titular e concluído pelo delegado de plantão daquele dia que não havia crime, os integrantes da campanha foram avisados por ele que não poderiam concluir o Graffiti, sob a ameaça de que se houvesse qualquer “confusão” em frente ao prédio, seriam indiciados por “crime”, que ele “criaria um crime”. Tal impedimento se caracteriza como ato arbitrário, de censura e ameaça de criminalização: um ataque à liberdade de manifestação! Contrariando a própria lei que deveria ser garantida por agentes de Estado, os militantes da campanha foram ameaçados de sofrerem a criminalização que tem ocorrido com integrantes de vários movimentos sociais, exclusivamente pelo conteúdo político de sua atuação! O prédio histórico onde funcionou o DOPS no passado ditatorial é um prédio público, que pertence ao Estado do Rio de Janeiro. Inclusive, o ex-Governador havia se comprometido publicamente em destiná-lo a um Centro de Memória, uma reivindicação antiga dos movimentos sociais. A Campanha OCUPA DOPS é mais um passo neste longo caminho na luta por este prédio. Esta é constituída por diversos grupos, entidades e militantes autônomos que lutam por políticas de reparação do Estado, por Memória Verdade e Justiça, e que sempre teve como princípio a defesa dos direitos humanos e a prática da liberdade. Portanto, não toleraremos atitudes arbitrárias de agentes públicos que mantenham práticas autoritárias e opressoras remanescentes do Estado ditatorial. A Campanha OCUPA DOPS não se intimidará! Continuará a realizar seus atos e manifestações em frente ao prédio do ex-DOPS/RJ! Para evitar qualquer tipo de constrangimento futuro, abuso de autoridade, bem como a manipulação de autoridades policiais que levem a criminalização das atividades desta campanha, esclarecemos:
• A expressão “OCUPA DOPS” é o nome dado a esta campanha e não objetiva ou incentiva a invasão do edifício situado à Rua da Relação, 40, popularmente conhecido como “Prédio do DOPS”.
• A campanha OCUPA DOPS, promove através de atos públicos uma ocupação cultural e política, pautada na liberdade de manifestação, sem ofensas ou desrespeito à qualquer pessoa, instituição ou agente público. Ao contrário do tratamento destinado àquele prédio nas últimas décadas, lutamos por sua revitalização e transformação simbólica! Para fazer do prédio do antigo DOPS/RJ um marco na defesa e promoção dos direitos humanos no Rio de Janeiro, queremos a imediata transformação deste em um espaço de Memória da Resistência das lutas sociais! Por Memória Verdade e Justiça! (http://www.global.org.br/blog/campanha-ocupa-dops-denuncia-ameaca-e-censura-durante-intervencao-artistica/, 2017).

Os avanços da sociedade brasileira do autoconhecimento sociomnemônico não podem correr o risco de virar uma nota de rodapé. Por isso, é bastante preocupante essa denúncia de ameaça e censura durante intervenção artística do OcupaDOPS de 26 de junho de 2014, Dia Internacional de Combate à Tortura.

A crise política econômica no Brasil pós-2013 tem desencadeado um revival discursivo extemporâneo psicodramático do polarizado jogo de forças e imagens do período militar e redemocratizante no Brasil com novos e velhos atores. Muitos deles em posições ideológicas agora invertidas, já que, em função do desgaste imagético-moral da esquerda, a nova direita surge como “Messias”, como se, num passe de mágica, monarquistas, militaristas e coronelistas tivessem apagado seu passado associado à consolidação de um modelo macroeconômico internamente desigual e externamente dependente. Esse movimento parece apontar para a tentativa macropolítica de não passar a história a limpo, mas, sim, de arrancar as páginas documentais, escrevendo uma história fake com cronologias didáticas (descontinuidades aparentes) a-históricas em um novo caderno. Contrárias ao fluxo irreversível e criador da história da humanidade que caminha rumo a um “esquecimento inercial”, mas que permite ao homem equilibrar esse imperativo de modernidade (sempre beirando o niilismo) com alguma seleção da história (bem distante de uma memória onipresente), as elites políticas costumam abusar da possibilidade de impor à sociedade uma espécie de “esquecimento  ativo” (Nietzsche, 2017), como estratégia patológica de assimilação física e/ou psicológica das massas, capturando suas carências e inseguranças existenciais. O estranho e paradoxal é que, para isso, fazem um uso por conveniência e livre associação do mesmo Nietzsche (1976), que sugere, de fato, que devemos saber a hora exata de lembrar e esquecer porque, com efeito, ressentimento demais não é saudável ao devir da vida.

Quanto às políticas públicas de memória, também tem ocorrido esvaziamento, já que a ministra da Mulher, Família e dos Direitos Humanos tem atuado, juntamente com Bolsonaro, contra os interesses de memória da pasta, para tornar meramente protocolar a Comissão da Verdade. Nesse sentido, modificaram o perfil dos CEMDP (Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos), incluindo no grupo dois militares, um olavista e um “damarista”, que podem comprometer a neutralidade esperada nas decisões – haja vista que eles surgem com forte compromisso com uma visão de que a ditadura civil-militar-empresarial foi uma “revolução” que salvou o país de um mal maior, que seria o comunismo. Além de disso, Damares interrompeu os trabalhos de reforma e adaptação da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FFCH-UFMG), o “Coleginho”, para se tornar sede do Memorial da Anistia em Belo Horizonte (em acordo assinado pelo governo federal com a UFMG em 2008). A realização da obra foi a punição positiva dada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que poderia servir como mínima compensação moral pelos crimes contra a humanidade (torturas e desaparecimentos políticos) pelo Estado de exceção brasileiro.

Porém, mesmo ações propositivas do Estado estão sujeitas às descontinuidades das políticas públicas em função das oscilações polarizantes de vieses político-ideológicos que, inevitavelmente, tendem a se estender em direção aos espaços de memórias e narrativas – ainda mais quando se trata do tema metalinguístico que é o da história política brasileira. Após um suspeito impeachment presidencial de uma ex-guerrilheira comunista e mineira, foram alvo da operação federal com nome visivelmente antidemocrático “Esperança Equilibrista” (em alusão à canção tema das Diretas, “O bêbado e a equilibrista”, de Aldir Blanc e João Bosco) justamente os responsáveis pela obra do Memorial da Anistia. A UFMG passou a ser investigada em 2017 por suspeita de diversas ilegalidades no projeto (aumento do custo da obra, falsificação de documentos e de prestação de contas, desvio de bolsas de estudo de estagiários e pesquisadores), e o reitor da universidade, Dr. Jaime Arturo Ramirez, foi obrigado a depor na Polícia Federal por medida de mandato coercitivo.

O governo alega falta de recursos e que o foco será na célere reparação financeira dos anistiados, apesar de que só no governo Bolsonaro mais de mil pessoas já tiveram pedidos de indenizações negados, mas o fato é que não é de interesse da cúpula militar que a ditadura no Brasil, ao contrário do que vem ocorrendo em outros países da América Latina, ganhe um lugar de memória de alta patente. Pois isso criaria um empoderamento público da verdade através de uma materialização físico-predial para a memória coletiva, que, sem isso, tende a estar mais sujeita psicopoliticamente ao sabor do tempo, sendo lembrada ou esquecida conforme a posição ideológica do Estado. E, dessa forma, a democracia do direito à memória tem se transformado no Brasil em um autoritarismo do dever do esquecimento. Mas como quem é torturado nunca esquece, em alguns casos, nunca é demais relembrar: “tortura nunca mais!”.

Em março de 2021, com a saída sincronizadas dos três comandantes das Forças Armadas (Marinha, Exército e Aeronáutica), o consenso básico entre militares quatro estrelas com o damarismo bolsonarista, subliminarmente, em torno do esquecimento planejado da revisão da Anistia, no tocante à punição dos torturadores, aponta para os primeiros sinas de recrudescimento, pois não é de interesse desses mesmos oficiais dar tanta projeção midiática às controvérsias dentro das Forças Armadas que possam legitimar revisionismos das legislações sobre seus crimes e privilégios. Ademais, Bolsonaro, por não ter seguido o critério de antiguidade na escolha dos novos comandantes da Marinha e do Exército, começa a desafiar a própria estrutura hierárquica das Forças Armadas, o que contraria o seu vice-presidente, General Hamilton Mourão, que, apesar de ter aceitado “o argumento” pouco iniciático de ser rebaixado na chapa presidencial, sendo vice de um capitão reformado expulso da Aeronáutica, não quer que se altere o samba tanto assim, na tradição de institucionalidade estamental militar – haja vista que isso poderia acender um pavio de pólvora nos quartéis, com insubordinação em massa, gerando um efeito de caos que poderia ser útil para Bolsonaro conseguir se tornar o tenente-coronel Hugo Chávez que tanto criticou e associou, não sem fundamento de todo, à esquerda brasileira.

Apesar da composição demográfica de cargos comissionados no Planalto em 2021, o governo bolsonarista ainda tem em seus quadros muitos militares eméritos, como Bolsonaro tem apontado, em detrimento de uma política de estadista de longo prazo, cada vez mais tendendo para uma autofagia imagética por tratamento temerário e negacionista ideológico-partidário da gestão pública no Brasil. Como temos observado, no tocante à ciência e à saúde coletiva, é possível que haja um aprofundamento do isolamento político do presidente, podendo ele contar somente, doravante, mais com as baixas patentes militares, das quais ele surgiu para a vida pública, para dar algum grau de apoio ao seu curral eleitoral, no caso de ser aprovado algum dos vários pedidos de impeachment (por condução desastrosa na pandemia, apoio a protestos com pautas antidemocráticas, ataques à imprensa, quebra de decoro, improbidade administrativa e tentativa de interferência ilegal em um órgão independente como a Polícia Federal). Cabe lembrar que o último pedido se deve à suposta tentativa inconstitucional de interferência e cooptação das Forças Armadas pelo chefe do Executivo, gerando instabilidade política e institucional.

Tais conflitos internos dentro das Forças Armadas, no entanto, se tornam contornáveis no dia 31 de março de 2021, quando todos eles comemoram juntos o aniversário do Golpe Militar (“Revolução Militar”), com direito a carta oficial do novo ministro da Defesa, Braga Netto, em busca de lapidar uma linha argumentativa que consiga extrair a pureza das intenções democráticas por trás dos crimes de censura, tortura e genocídio cometidos contra a humanidade no Brasil. Precisamos considerar que, assim como os nazistas se viam como “ingênuos genocidas” cumpridores de tarefas sistêmicas (Arendt, 1999), os militares, mesmo os autoritários e torturadores, não se pensam e não querem ser vistos e lembrados pela sociedade e pelas suas respectivas famílias como ditadores antidemocráticos – buscando negociar, tacitamente ou não, uma narrativa historiográfica ou um gesto ritualístico que aponte para um messianismo jihadista de suas ações deletérias.

Tal litígio num campo de força usualmente afim ao presidente-capitão pode contribuir para que a pauta da memória volte a ser lembrada pela sociedade civil em prol da democracia afirmativa e da cidadania plena, pois somente depurando as Forças Armadas como um todo é que será possível consensualizarmos uma narrativa que permita uma autocrítica da extrema direita nos 21 anos de ditadura, bem como a desconstrução de uma narrativa ufanista e sacralizada da ditadura, da qual se beneficiam até hoje grupos políticos clientelistas e/ou econômicos patrimonialistas de interesses conservadores e não humanitários.

Intentei mostrar, com a polarização prático-discursiva em torno do uso do antigo prédio do DOPS no Rio, que o impasse se deve justamente ao fato de a historiografia marxista (hegemônica no estudo da História Política e que legitima o OcupaDOPS) não abrir espaço para revisionismos tão revolucionários como os militares desejam para salvar as suas biografias pessoais e/ou institucionais. O pensamento de Marx sobre o capitalismo expropriador de trabalhadores e nações nos parece problemático em relação à calibragem epistemológica, sobretudo pela questão da ênfase no materialismo (estrutura) em detrimento da cultura (superestrutura), mas a sua análise historiográfica, ao contrário de sua solução revolucionária (comunismo), costuma mais acertar do que errar. Tendo isso em vista, nos parece relevante uma autocrítica do campo esquerdista no Brasil dos anos em que estiveram no poder com Lula e Dilma para que possamos transcender essa Guerra-Fria-em-nós que nos convida a um eterno-retorno de um cabo de guerra. Feita essa ressalva, afirmo que, enquanto não passarmos a limpo a nossa memória política recente, continuaremos sem virar as páginas, reféns desse jogo de disputas narrativas e ideológicas geradoras de uma crise também historiográfica e epistemológica, que tenta dourar a pílula para vender como presidente exemplar um contraventor no melhor estilo Boca de Ouro.

Em função disso se vê a importância do estudo conexo de Ciências Políticas e Sociais, Direitos Humanos e Direito Urbano, haja vista que esse procedimento nos permite compreender a história do espaço presente aliado ao entendimento da antropologia do espaço passado e vice-versa. A democratização de espaços estatais – que somente por isso já deveriam ser públicos ou abertos ao público –, sobretudo, aqueles ligados à opressão ou à resistência antidemocrática, é uma estratégia de tecnologia preventiva de paz sociocultural que aponta a salvaguarda da democracia/memória política e urbana. Um equipamento de memória espacial pode permitir uma ancoragem tangível do tempo pretérito, justamente para que a consciência histórica e jornalística resulte em responsabilidade eleitoral (votar com consciência crítica). O que serve de imunizante contra o vírus do Alzheimer coletivo de alguns tipos de revisionismos negacionistas, que tentam aplicar a dialética contra ela mesma para banalizar o banal. Mas, sem tese propositiva a ser defendida nesses projetos de destruição da própria ideia de cidadania político-urbano por meio de uma corporalidade civil que une o cidadão com sua cidade (Sennet, 2008), o público com o espaço público – lembrando que pólis, em grego, significa cidade-Estado –, eles não passarão se nós, passarinhos, estivermos “caminhando e cantando” com o tão combativo e tão combatido Geraldo Vandré sobre as flores poderosas da comunicação violeta (não violenta).



*Frederico Le Blue Assis
faz pós-doutorado em Artes Visuais na EBA/UFMG; é doutor em Planejamento Urbano IPPUR/UFRJ; mestre em Memória Social PPGMS/UNIRIO; graduado em Comunicação Social pela FIC/UFG; pesquisador associado do Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC-UFRJ); coordenador do LAH-AQUI (Laboratório de Artetetura e Humanismo de Ações para Questões Urbanas Insolúveis); idealizador do Movimento Artetetura e Humanismo; e editor da Editora Brasilha Teimosa.

 

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Notas

[1] Este versava sobre os crimes violações dos direitos humanos na América Latina, produto da consolidação de uma rede de atuação e solidariedade a partir da Fundação Basso, Chris Farley e Ken Coátes (Fundação Issoco, 2012). Na ocasião do encontro de Basso em Santiago (1971) com os membros do Comitê de Denúncia da Repressão no Brasil (CDRB), no caso, Betinho de Sousa, Almino Afonso e Armênio Guedes, o presidente do Comitê, Pablo Neruda, e o conselheiro, Darcy Ribeiro, bem como o presidente do país-sede, Allende, pedem a ele que fosse incumbido de apurar e julgar as denúncias de violações de direitos humanos relativas ao Brasil (ibid.).

[2] Essa lei, que, na sua primeira fase irrestrita para os dois lados (guerrilheiros e militares), funcionou como anistia do esquecimento e da impunidade da liberdade reparação, que fora consolidada em 1988, tem um caráter, num segundo momento, de comissão especial sobre mortos e desaparecidos políticos (1995-2007), em que se originam também ações como Comissão da Anistia, o que permite ao estado reconhecer seus crimes (direito à memória e à reparação econômica). Atualmente, a tendência conjuntural parece apontar para a urgência de uma terceira fase da revisão estrutural da lei, no sentido de assumir que sem verdade não pode haver justiça. Essa se daria por meio dos movimentos sociais “Movimento dos Escrachos”, “Levante Popular da Juventude”, “Aparecidos Políticos” (ambos surgidos na descomemoração dos 50 anos do Golpe em 2012), cujo impacto de ressonância pode continuar sensibilizando a Corte Interamericana de Direitos Humanos a condenar maciçamente a autoanistia e graves violações do direitos humanos no Brasil da ditadura militar-civil-empresarial, como na sentença do caso Estado na Guerrilha do Araguaia (comandada pelo lendário guerrilheiro “imorrível” Oswaldão) – o que obrigou a uma nova posição da Câmara Criminal do Ministério Público Federal (Abrão, Torely, 2012). No entanto, o Supremo Tribunal Federal é mais resistente a essa transformação de mentalidade cultural no Brasil, já que em 2010 endossa inconstitucionalmente a lei de outrora. Atestando que ela fora bilateral, não se aplicaria, destarte, a crimes contra humanidade e não pode ser modificada pelo judiciário, no que considera estado de direito o período militar e o seu pacto político da anistia proposto em momento de repressão política, que camufla crimes judiciários e negou proteção judiciária para as vítimas do estado por tanto tempo (ibid.).

[3] Na votação da Câmera do impeachment presidencial da ex-guerrilheira de esquerda Dilma, o deputado Bolsonaro (PP/RJ) dedicou seu voto à memória do coronel Brilhante Ustra, conhecido por ser chefe responsável pela tortura de muitos perseguidos políticos.

54A! A INVISIBILIDADE SACRAMENTADA

Este ensaio propõe uma leitura sobre o bairro de Sacramento, usando como norte o percurso da linha de ônibus são-gonçalense 54A. Situado no município de São Gonçalo, o bairro é cercado por regiões de conflito armado, sendo ele próprio palco de constantes tiroteios. Suas estruturas urbanísticas são precárias, carecendo de meios indispensáveis para a vida, como o saneamento básico ou o acesso eficiente a tratamento médico público. O ensaio Necropolítica (2016) e o livro Crítica da razão negra (2014), ambos escritos pelo filósofo camaronês Achille Mbembe, fornecem o aporte teórico para pensar em Sacramento e suas tessituras. O objeto de análise é o bairro de Sacramento e a linha de ônibus 54, representados na arte feita por mim: mulher, negra, moradora do bairro e passageira da citada linha de ônibus.

54A – uma janela para o Sacramento

O que mais me aproximou do pensamento de Mbembe em Necropolítica (2016) e Crítica da Razão Negra (2014) foi identificar em suas palavras sobre raça e sociedade a imagem de Sacramento, um bairro onde os ônibus lotados vão para “despejar” os trabalhadores no começo da noite. Lembrei-me desse local onde resido. Um lugar repleto de pessoas pobres e em sua maioria negras – é importante notar que entendo como pessoa negra aquela que é preta, mas também aquela que é parda.

O Negro, nomeado com tal por alguém que não ele mesmo, é a figura multiplicada a habitar tanto as páginas de Mbembe como o meu Sacramento. Pontuo isto tendo como base o axioma de Mbembe (2014), que cirurgicamente investigou o termo Negro, para expor a origem de caráter fetichista e reificadora dessa palavra enquanto ferramenta de construção do Outro. Sendo o Outro, o indivíduo nomeado Negro torna-se candidato ao “alterocídio” (Mbembe, 2014, p. 26).

Essa pessoa, nem rica, nem branca, é o trabalhador instrumentalizado para ser usado pelo sistema capitalista até que se esvaiam suas forças, ou até que seja abatido pela violência sistêmica. O “esvai-se” escrito aqui representa a realidade de uma parcela considerável de trabalhadores que não gozam de uma calma aposentadoria, pois precisam complementar a renda para sobreviverem. Dessa forma, “mesmo aposentados, 21% dos idosos continuam trabalhando, revela pesquisa CNDL/SPC Brasil” (CNDL, 2018).

Ser não negro, no entanto, não afasta o trabalhador da reificação que tende a acometê-lo quando se é pobre. Para Mbembe (2014, p. 21) estamos caminhando cada vez mais em direção a um “devir-negro do mundo”, em que trabalhadores da modernidade vivenciam a precarização do trabalho em todos os âmbitos, tal ocorrera sistematicamente com os laboriosos negros ao longo da história. Exemplo disso é a retirada de direitos sofrida pela classe trabalhadora brasileira nos últimos anos. Para discorrer sobre a precariedade do trabalho reflito, principalmente, acerca da mobilidade entre locais de trabalho e residência.

Quando o ônibus da linha 54A – Alcântara x Meia Noite abrolha no ponto de parada em Alcântara, minha família abdica de todos os afazeres não concluídos e embarca imediatamente na referida condução, geralmente afoita. Não importa se ele partirá em cinco ou vinte e cinco minutos, o importante é ocupar seu espaço no raríssimo 54A e voltar para casa, com as bolsas pesadas. A imprevisibilidade é uma característica da tão estimada linha, então poucos deixam passar a oportunidade de apresentar seu Rio Card à máquina do Meia Noite.

Figura 1: Nataly Costa, 54A!, 2020
Figura 1: Nataly Costa, 54A!, 2020

 

Acontece que o dito ônibus, em seu percurso, passa pela rua Domício Porto Filho, que corta o bairro de Sacramento, situado no município de São Gonçalo. A um custo de três reais e noventa e cinco centavos, ele carrega os passageiros aos sacolejos, até o movimentado polo comercial de Alcântara. Sem asfalto nem calçadas, a Domício Porto Filho se transforma em um desafio ao fim de um dia exaustivo de trabalho ou estudo. Percorrê-la a passos médios custa de quinze a vinte minutos, em meio a densa poeira, temperaturas altas e perigos urbanos, por isso o ônibus torna-se um alento para os moradores da região.

O bairro de Sacramento, sacramentado em sua ausência de urbanização ou até humanização, segue sem rede de esgoto tratado, sem ruas asfaltadas e com poucas possibilidades de locomoção, como serviços de transporte como Uber e 99, pois a região é temida por seus constantes confrontos armados. Não posso deixar de ressaltar que os Correios também temem Sacramento. Não são feitas entregas postais nessas cercanias sacramentadas.

O temor que Sacramento impõe não parte do receio de seus visitantes de perder os bens materiais em um assalto. Não. Nesse bairro, residencial, o que acomete os de fora é o risco da “destruição material de corpos humanos” (Mbembe, 2016, p. 125). Aqui emprestei as palavras de Mbembe novamente, para lembrar que o ato de entrar no bairro em um automóvel, não baixar os vidros das janelas, não ligar o pisca-alerta e não acender o farol do carro é arriscar a própria vida. O bairro, germinado em um vale densamente povoado, é fruto de disputa entre facções rivais. Os tiroteios se abundam quando de tempos em tempos os “alemães” tentam invadir o local: “Troca de tiros entre traficantes deixa morador ferido no Sacramento em São Gonçalo – Facções disputavam o controle das drogas” (Troca…, 2017). As máquinas de guerra desfilam entre transeuntes acostumados à guerrilha urbana, à luz do dia, em meio à movimentação sempre acalorada do bairro, bem servido de comércio e delícias palatáveis, como um copo grande de açaí coberto por doces e afins a um preço razoável. Às vezes, os tiros trocados impedem a passagem do 54A. Isso é lamentado fortemente pelos adeptos da apreciada condução.

Sacramento pode ser pensado como um bairro dormitório, abandonado pelas autoridades, mas fervilhante de vidas que insistem em preencher seus espaços. É uma zona repleta de terra batida, com casas precárias e gente trabalhadora e desassistida. Esses proletários, que no sentido mais puro da palavra produzem proles, são os pais das crianças e adolescentes que brincam ou vagam pelas ruas de Sacramento, a despeito das balas que passam traçantes ou da poeira que o 54A levanta quando surge sacolejante. Eles são meus alunos no CIEP Mora Guimarães, eles são filhos de alguém, mas antes de tudo, eles são do vale ainda repleto de árvores, cravado em um município com aproximadamente 1.091.737 habitantes, segundo o IBGE (2020).

Essas meninas e meninos, “a prole”, passam pela vida com um tom de efemeridade. Foi nesse Sacramento que uma bala perdida atingiu Yasmin Cristina Gomes Silva, de 14 anos, no ano de 2018. A aluna do CIEP Mora Guimarães não retornou às aulas, pois perdera a visão dos dois olhos por causa do ferimento à bala. O seu corpo seguirá marcado pela guerra urbana, e, ao contrário das vítimas pensadas por Mbembe (2016), Yasmin não pode encarar a marca que lhe foi imposta.

Esses corpos trazem em si mesmos uma memória tatuada, como um arquivo vivo, palpitante, que alerta aos moradores e visitantes onde eles estão. Eles não estão nas zonas protegidas, cercadas de muros erguidos pela classe média, eles não estão nos condomínios de luxo da classe alta, eles estão em Sacramento, onde as memórias são faladas, às vezes sussurradas, mas raramente escritas.

Achille Mbembe, em Necropolítica (2016, p. 123), apresenta o pressuposto de que a soberania se situa na potência de eleger quem vive e quem morre. Nesse cenário, aqueles que portam as armas, que possuem falos e detêm a autoridade provida pelo crime organizado ou pelo Estado exercem o “direito de matar”. Yasmin viu-se impotente, em meio aos projéteis que lhe cobraram os dois olhos. É provável que o 54A não tenha podido passar pelo Complexo do Anaia no fatídico dia em que a bala encontrou a aluna do CIEP 423.

Ainda pensando no conceito de permissão para viver, como proposto por Mbembe (2016), é válido citar que Sacramento não tem um posto de saúde. O mais próximo da localidade é o posto do bairro vizinho, Barracão, que serve aos moradores do entorno. A pequena unidade médica, no entanto, sempre é acometida pela partida repentina de seus médicos. Assustados com a dinâmica da região, os clínicos vêm e vão, não permanecendo no posto nem o suficiente para que seus nomes sejam aprendidos pelos pacientes. Quaisquer tratamentos mais refinados requerem o deslocamento para longe das cercanias de Sacramento. Ademais, andar pelas ruas do bairro se torna um desafio e tanto para aqueles que têm alguma dificuldade de locomoção.

 

Figura 2: Nataly Costa, Poças na rua Domício Porto Filho, 2020
Figura 2: Nataly Costa, Poças na rua Domício Porto Filho, 2020

 

Ainda assim, nem só de agruras vive Sacramento. O bairro ainda tem o privilégio de possuir uma persistente parte da Mata Atlântica e plantas vindas de outras regiões. Assim ele exibe fartas mangueiras, suntuosas palmeiras, coloridos ipês, leucenas abundantes, flamboyants, cajueiros, jaqueiras e goiabeiras e, ainda que pareça improvável, também altos pinheiros.

O local é um exemplo da preservação da floresta nativa que ocupa cerca de 30% do estado do Rio de Janeiro, segundo o INEA (2020). A fauna do bairro também é variada: saguis, pica-paus, jiboias e gambás misturam-se a inúmeros animais domésticos como cabras, vacas, cavalos, porcos, gatos e muitos cachorros. O 54A, em sua passagem pelo bairro, vez ou outra diminui sua velocidade para respeitar a passagem de rebanhos que seguem sem pressa.

As ladeiras de Sacramento, por sua vez, são imperiosas. Elas cobram do viajante grande vigor e empenho. Não é à toa que no bairro existe um local apelidado Morro do Céu. Os que vivem lá têm o costume de subi-lo em zigue-zague, na esperança de que a caminhada de um lado ao outro e um pouco para cima amenize o penar da subida. Quem faz esse caminho é curiosamente observado pelas famílias de saguis. Do alto do Morro do Céu é possível divisar não só quase todo o Sacramento, como os bairros do Barracão, do Pacheco, da Amendoeira e do Bichinho. Bichinho, por sua vez, é um pedaço de Sacramento, área de forte confronto e limite de alcance para os mais assustados. É pelo Bichinho que o 54A passa para sair de Sacramento e rumar, bairro a bairro, até chegar em Alcântara.

O 54A – Alcântara x Meia Noite tem um irmão gêmeo: 54 – Meia Noite x Fórum. Com extensão maior de percurso, essa linha parte do Anaia e vai até próximo ao Clube Mauá, no centro de São Gonçalo. Enquanto o 54A tem um total médio de 9,7 km, o 54 tem 17,5 km. Sua frequência é ainda menor que a de seu semelhante. Outra linha que despontava em Sacramento era a 553 – Legião x Niterói, mas desde o início da pandemia de Covid-19 no Brasil a linha perdeu sua regularidade, passando raramente pelas cercanias do bairro. Segundo o site Moovit, a linha 54A – Meia Noite x Alcântara tem 37 paradas, com duração de viagem de vinte e dois minutos em média, funcionando em todos os dias da semana.

As três linhas não têm ar-condicionado, mas evitam uma caminhada na Domício Porto Filho, tomada por lama e poeira, ou a sensação térmica alta nos verões do Rio de Janeiro. Assim, quando as estações de calor chegam, o 54A se torna imprescindível para a saúde dos moradores de Sacramento. O bairro está localizado em um município com a média de temperatura em torno de 35°C.

São Gonçalo, estabelecida como tal em 1890, tem a extensão territorial de 249,25 km² e pertence à região metropolitana do Rio de Janeiro. O segundo maior colégio eleitoral do Estado, caracteriza-se por sua segregação socioespacial. A heterogeneidade de classes no município destaca-se pela diferença entre bairros bem assistidos pelas autoridades, habitados pela classe média, e bairros desassistidos, habitados pela classe baixa.

O artigo “A segregação socioespacial no município de São Gonçalo, RJ: uma análise a partir do acesso ao saneamento básico” (Britto et al., 2017) discute a desigualdade no município a partir da reflexão acerca do saneamento básico. Seus autores, Ana Lucia Britto, Andreza Garcia de Gouveia, Thiago Giliberti Bersot Gonçalves e Rosa Maria Formiga Johnsson, concluíram que, embora a região apresentasse recortes elitizados, como a presença de shoppings, por exemplo, a população pobre segue negligenciada.

Sacramento está inserido na parcela desassistida de São Gonçalo, mas mesmo dentro de seu próprio espaço o bairro apresenta bolsões de territórios privilegiados: as cercanias que beiram a estrada de Santa Izabel têm inúmeras farmácias, comércios alimentícios de toda sorte, lojas de roupas, eletrônicos e cuidados pessoais. As residências têm acabamento e as ruas próximas à estrada começam a esboçar algum concreto. Aqueles que vivem perto da estrada não dependem do 54A. Eles são servidos pelo 01 – Santa Izabel x Alcântara, que vez ou outra disponibiliza ônibus com ar-condicionado.

Barulhento e musical, Sacramento apresenta fartura em apreço por ruídos e pavor pelo silêncio. Até os animais do bairro se esforçam determinadamente para excluir toda possibilidade de calmaria. Os rádios em alto som disputam entre si, entoando sambas de raiz, pagodes, louvores e o já tradicional funk “proibidão”. Nessa efervescência de sons, o bairro agita-se cedo nas manhãs e dorme tarde da noite, a despeito da pandemia.

Seguindo a tradição musical, o Grêmio Recreativo Escola de Samba Unidos do Sacramento foi fundado em 1996. A agremiação tornou-se pentacampeã em São Gonçalo entre os anos de 1999 e 2003. A vermelho e branco de Sacramento tem como seu símbolo um pégasus, tendo homenageado os funkeiros Claudinho e Buchecha em 2003 com o enredo “Os meninos de São Gonçalo que encantaram o mundo, Claudinho e Buchecha”.

Faz-se aí, na história da Unidos do Sacramento, um intento de arquivamento. A história da escola de samba é uma das poucas informações a respeito do bairro encontradas na internet, além das notícias sobre a violência urbana, é claro. O registro escrito da história contemporânea de São Gonçalo encontra-se espalhado ao vento pela web. A oralidade, no entanto, é a ferramenta furtiva, que narra e faz lembrar as histórias desse lugar à margem.

 

Figura 3: Nataly Costa, Pés Cansados, 2020
Figura 3: Nataly Costa, Pés Cansados, 2020

 

É a partir desses constructos de imagens psíquicas entrelaçadas (Mbembe, 2014, p. 180) que é tecida a memória à qual recorro para entrar no campo da representação, aqui exposta em palavras e ilustrações. Nelas o apreço pelo 54A vem borrifado com pitadas de uma indignação saturada. Vem ao lado do desalento por não termos ruas pavimentadas. Vem de mãos dadas com a constatação de que nossas necessidades não são visíveis aos olhos das autoridades. Mbembe (2014) concluiu que quem tem a potência de decidir o que deve ser visto e o que não deve ser visto na colônia manda. Reflito que é daí que vem essa inquietante invisibilidade de Sacramento. Nesta cegueira planejada o próprio trabalhador deixa de se enxergar. Deixa de ver as agruras e as bonanças que o cercam. Ao não se ver ele se anula, perdendo o precioso poder de massa que classe trabalhadora possui.

Ao tornar-se novamente vidente a classe tem a potência de encarar-se outra vez. De ver os calos das mãos e a insistente lama nos pés. Embora as bocas possam reclamar da precariedade da locomoção no bairro, são os pés as verdadeiras testemunhas torturadas que percorrem a lama, a poeira, os buracos e as pedras. São eles que se apressam quando o confronto armado chega. Então é justo que eles, os pés cansados, sejam aqui representados na ilustração Pés Cansados.

São os Pés Cansados que sustentam o peso do corpo e têm contato com o solo desnudo. São neles que se agarra a amálgama formada na via não pavimentada. Longe de ser como uma romântica terra fresca bucólica, essa amálgama é composta por lixo, excrementos de animais de toda sorte e água empoçada. As poças insistentes, que retornam a despeito da tentativa dos moradores de enterrá-las, tornam-se referência para quem quer indicar determinado ponto da rua Domício Porto Filho: “Ali! Logo depois da poça perto da igreja!”.

Por isso, nesta ilustração, assim como na ilustração Poças da Domício Porto Filho, o requadro da imagem é baixo, para que possamos ver ao nível do solo. Para que possamos olhar o que está perto do chão, fazendo toda a dinâmica do avançar e do carregar acontecer. Não é por acaso que esses Pés Cansados, que sustentam todo o corpo e seus acessórios, se assemelham com a massa de trabalhadores esmagados pelo sistema capitalista liberal.

Trabalhadores sacramentados

Essa região é apenas mais uma de muitas. É produto de um sistema capitalista liberal que sustenta as diferenças de classe, que racializa e depois nega o racismo, que ignora as questões de gênero e que abandona o trabalhador afogado numa multidão a se proliferar. Nesse cenário o laborioso torna-se uma máquina endividada cuja vontade própria já se encontra esquecida. O respeito por si, por sua condição humana, por seu trabalho, é eclipsado pelo desejo de possuir os “espelhos e miçangas” que a modernidade oferece em troca da sua labuta dura e incessante.

É através do desejo que a colônia domina o colonizado (Mbembe, 2014, p. 205). Foi esse o grande segredo que o filósofo camaronês compartilhou em seu livro. Assim, numa confusão que emaranha o “bem estar” com o “possuir”, o trabalhador segue tentando captar e acumular um capital que raramente é acumulado por ele, uma vez que a mobilidade entre classes é rara e a própria existência de classes – tão distanciadas entre si – condena o trabalhador a viver incessantemente uma réplica cristalizada de sua subalternidade. Mbembe observou que estamos muito distantes de uma era pós-racial, da mesma forma que nos encontramos distantes de uma justiça de classes.

Ainda assim é possível tomar para si o nome “trabalhador”. É possível apoderar-se dele subvertendo-o em favor do grupo. Mbembe (2014) comentou como um termo abjeto, como a palavra Negro, difundida pelos colonizadores, pôde ser subvertido e transformado em beleza, orgulho e insurreição. Uma reviravolta que toma o nome das mãos dos colonizadores e o transforma em combustível para a resistência. Negro torna-se poder.

O “devir-negro do mundo” tem sua amostra nesse bairro da Região Metropolitana II do Estado do Rio de Janeiro. Aqui, onde a música só para quando os tiros começam, os trabalhadores seguem repetindo um misto de viver e sobreviver. Seguem desconhecendo a força que têm como categoria e classe. Sem perceberem que, assim como a palavra “Negro” fora subvertida em prol do empoderamento e da luta contra o racismo, a palavra “Trabalhador” pode tornar-se uma potência, capaz de revolucionar a sociedade e entregá-la a quem sempre a sustentou.

Sacramento é a realidade da imutabilidade de um bairro invisível aos olhos das autoridades competentes. Os anos se passam, o bairro cresce demograficamente, preenche-se de comércios diversos, mas segue sem asfalto, sem calçadas, sem previsão. Mesmo assim, para além da permanente insistência do descaso para com Sacramento, lá está o 54A, a esperança de que não vamos carregar as bolsas pesadas a passos cansados. Isso, é claro, se apresentarmos nossos Rio Cards à máquina do Meia-Noite.

54A!


*Nataly Costa é licenciada em Educação Artística pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, mestranda em Artes Visuais pela UFRJ, ilustradora e quadrinista independente.
Referências

BRITTO, Ana Lucia; GOUVEIA, Andreza Garcia de; GONÇALVES, Thiago Giliberti Bersot; JOHNSSON, Rosa Maria Formiga. A segregação socioespacial no município de São Gonçalo, RJ: uma análise a partir do acesso ao saneamento básico, XVII ENANPUR, São Paulo, 2017. Disponível em: http://anpur.org.br/xviienanpur/principal/publicacoes/
XVII.ENANPUR_Anais/ST_Sessoes_Tematicas/ST%204/ST%204.7/ST%204.7-01.pdf
, acesso em: 14 set. 2020.

CNDL. Mesmo aposentados, 21% dos idosos continuam trabalhando, revela pesquisa CNDL/SPC Brasil. CNDL, 11 dez. 2018. Disponível em: https://site.cndl.org.br/mesmo-aposentados-21-dos-idosos-continuam-trabalhando-revela-pesquisa-cndlspc-brasil/, acesso em: 14 set. 2020.

IBGE. População estimada: Diretoria de Pesquisas, Coordenação de População e Indicadores Sociais, Estimativas da população residente com data de referência 1º jul. 2020. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/rj/sao-goncalo/panorama, acesso em: 14 set. 2020.

INEA. Estudo do Inea confirma conservação da Mata Atlântica no Estado do Rio de Janeiro. INEA, 9 jun. 2020. Disponível em: http://www.inea.rj.gov.br/estudo-do-inea-confirma-conservacao-da-mata-atlantica-no-estado-do-rio-de-janeiro/, acesso em: 14 set. 2020.

MBEMBE, Joseph Achille. Necropolítica, Arte & Ensaios, Revista do PPGAV/EBA/UFRJ, n. 32, dez. 2016.

MBEMBE, Joseph Achille. Crítica da Razão Negra. Lisboa: Antígona Editores Refractários, 2014.

MOOVIT. 54A – Meia Noite x Alcântara. Disponível em: https://moovitapp.com/index/pt-br/transporte_p%C3%BAblico-line-54A-Rio_de_Janeiro-322-870417-678803-0, acesso em: 14 set. 2020.

TROCA de tiros entre traficantes deixa morador ferido no Sacramento em São Gonçalo – Facções disputavam o controle das drogas, O São Gonçalo, São Gonçalo, 18 dez. 2017. Disponível em: https://www.osaogoncalo.com.br/seguranca-publica/49700/troca-de-tiros-entre-traficantes-deixa-morador-ferido-no-sacramento-em-sao-goncalo, acesso em: 14 set. 2020.

O DIREITO À DÚVIDA: SOBRE PRÉ-HISTÓRIA, DE PALOMA VIDAL

O livro mais recente de Paloma Vidal, Pré-história (2020), conta em fragmentos o relacionamento de um homem e uma mulher, do encontro inicial – não o primeiro, mas o mais marcante na memória da narradora – até o afastamento definitivo. Essa história, porém, é contida entre duas declarações de intenção que põem para funcionar a obra, uma no começo e outra no final do romance. A primeira é: “Este livro é a sombra de um outro que eu queria escrever para te ferir”, que lemos num fragmento em itálico (o único italicizado) que explica que a narradora desistiu de escrever um livro para escrever outro (Vidal, 2020, p. 12). Há, assim, um livro desejado e um livro possível; este é o que lemos, aquele podemos apenas intuir. Na última página antes dos agradecimentos, lemos a outra declaração de intenções: “Ninguém pode terminar por mim” (idem, p. 120), explica a narradora, que deve então escolher como fechar o romance. Esse gesto narrativo – declarar que estamos lendo algo escrito sobre a sombra de um livro ausente, um livro desejado, e que esse livro possível termina porque, afinal, todo livro precisa terminar – parece indicar um pathos que distingue o romance dentro da cena contemporânea. Este é um romance sobre a impossibilidade de afirmar – impossibilidade de escrever o que se deseja, de se chegar ao fim da história –, impossibilidade sobre a qual ergue-se essa obra literária.

A pré-história (prelúdio de uma história que não é contada) começa com o encontro da narradora, filha de um casal de psicanalistas argentinos radicados no Brasil, com um adolescente de 13 anos que usa uma estrela do PT. Esse marco mítico do relacionamento ocorre em agosto de 1989, antes do primeiro turno das eleições presidenciais que levariam Fernando Collor de Mello à presidência. Em fragmentos curtos, dirigidos a um “você” que identificamos com o homem que um dia foi o adolescente com o broche de estrela, ficamos sabendo de alguns detalhes do relacionamento de três décadas do casal: um encontro na praia, um beijo, um tempo de distância, o reencontro, o namoro, o filho que tiveram, os interesses em comum, desentendimentos e a separação, quando ela percebe que a sensibilidade dele “em algum momento deixou de estar onde eu a esperava” (idem, 66). Deixou de ser aquela imaginada por ela a partir da figura do jovem com a estrela do PT. Esse momento parece ocorrer perto do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, em 2016, embora a narradora apresente indícios anteriores de não comunicação.

 

Capa de Silvia Nastari (Divulgação)
Capa de Silvia Nastari (Divulgação)

 

O romance, portanto, é a história de um relacionamento, narrada pela mulher e direcionada ao homem. Os fragmentos curtos narram cenas dessa relação ou refletem sobre ela, divagam sobre a história (do Brasil, da Argentina e da família da narradora), sobre as indecisões da escrita e sobre as incertezas das identidades de uma família que veio para o Rio de Janeiro fugindo da ditadura argentina. Num efeito curioso, essa estrutura em fragmentos, que acentua a impossibilidade de escrever a história de um relacionamento que se desfaz na política (talvez mais do que “por causa da política”), produz uma espécie de solidão, como se a narradora escrevesse sobre si mesma e para si mesma, apesar de a história (ou pré-história de uma história que não está no livro) falar de um presente que podemos chamar de concreto e apesar do livro ser endereçado a um “você”.

Muitos dos elementos que encontramos no romance já haviam sido explorados pela autora em contos (de A duas mãos, de 2003, e Mais ao sul, de 2008), poemas e romances (como em Algum lugar, de 2009, e Mar azul, de 2012): o jogo com a autobiografia e a ficcionalização do eu; o fragmento; a identidade nacional e os vestígios das história nacional (especialmente traumática nos países latino-americanos que passaram por ditaduras) nas histórias de vida; e os relacionamentos familiares e amorosos do ponto de vista da mulher. Aqui, no entanto, eles são direcionados mais claramente para a política do que em seus livros anteriores, algo que tem sido uma tendência da ficção contemporânea (sobre isso, ver Bandeira de Melo, 2020). Afinal, o “tema” do livro – a maneira como as tensões políticas do presente produzem cisões ideológicas onde antes parecia haver harmonia – é quase o mesmo de dois romances publicados no mesmo ano do livro de Paloma Vidal, Solução de dois Estados, de Michel Laub, e A tensão superficial do tempo, de Cristovão Tezza. O interessante de Pré-história é que, apesar de tocar nessas questões contemporâneas, ele parece insistir em algo que chamo aqui de “direito à dúvida”, que produz um tipo de literatura que tira sua potência da negatividade, isto é, daquilo que o romance não consegue falar a respeito do presente.

Isso se dá principalmente pela estratégia formal, começando pela moldura: as duas declarações de intenção que anunciam o início e o fim da obra. Outro elemento que conforma essa estratégia são as repetições, espalhadas pelo texto, de frases e palavras em torno de um tema principal, enunciado logo na abertura em itálico do romance: o que é simples e o que é complexo?; as coisas são complexas ou nós as complicamos? É como se essa dúvida (a narradora se pergunta se estaria complicando as coisas, como “você”, o destinatário, costumava acusá-la de fazer) se projetasse na estrutura do livro, coalhado de tempos verbais ou advérbios que significam indecisão (“É o que me fez escrever ‘talvez’ 14 vezes até agora”, encontramos na página 32). Essas estratégias parecem marcar um desejo de fugir da assertividade, de neutralizar “a natureza assertiva da língua”, como sugeriu Roland Barthes (2003, p. 90), isto é, evitar o simples recorrendo à simplicidade de uma pergunta constante: foi assim mesmo que aconteceu? Essas dúvidas são reforçadas por reflexões sobre a própria escrita, como quando a narradora explica escolhas (“Volto às frases curtas. Uma de cada vez. São como passos”, diz na página 47), e pela deriva entre relato (pretensamente autobiográfico) e ficção (“As palavras não me dizem mais nada e eu começo a inventar”, lemos na página 36).

São esses os elementos que minam qualquer tentativa do romance de dar uma interpretação fixa do presente (do esgarçamento do tecido social pela radicalização política), ao mesmo tempo que aceita o desafio de comentar o presente. É dessa impossibilidade, transformada em forma, que o romance tira seu efeito: a história daquela mulher e daquele homem termina no presente porque houve uma pré-história que os separou, mas contar essa história – encontrar sua origem pré-histórica – é um ato desde o princípio fadado a fracassar.

Se essa descrição estiver correta, parece que o romance tensiona duas experiências literárias: por um lado, o impulso de fundamentar a narrativa nos debates correntes; por outro, de transformar o romance em um espaço propriamente literário, que fala sobre o desejo de escrever, sobre a luta com a página em branco, sobre a solidão do escritor, da obra e do leitor. Aqui, claro, estou me referindo à ideia blanchotiana de “espaço literário”: desviando sempre da afirmação para a dúvida e pronunciando o silêncio, é como se o escritor quebrasse o vínculo com o não literário e, com isso, “o vínculo que une a palavra ao eu” (Blanchot, 2011, 17), ao mundo real, ao referente exterior da literatura. Desse modo, o uso da primeira pessoa por Paloma Vidal, um “eu” que o tempo todo reflete sobre suas limitações enquanto narradora, parece muito mais a anunciação de um lugar de dúvida do que o lugar do signatário de um pacto autobiográfico. Por isso ela tenta alcançar alguma segurança narrativa na busca pela “primeira pessoa do plural” (Vidal, 2020, 96), um nós impossível, que seria capaz de dar alguma segurança à história.

O outro impulso, aquele que ancora a narrativa no presente, porém, não deve ser esquecido. Pelo contrário, a especificidade “temática” de Pré-história é importante. Não é à toa que o romance use essa forma fragmentada, sempre na deriva entre a afirmação e a negação, entre o eu enunciativo e o nós impossível, para construir uma história que fala de tensões contemporâneas. Na verdade, é essa impossibilidade que, paradoxalmente, comunica algo sobre o contemporâneo e dá ao romance sua qualidade (ouso dizer) política. Esse algo é uma interrogação. Dar conta desses destinos (o destino de uma geração – caracterizada no romance pelas citações do rock brasileiro dos anos 1980 – que assistiu à volta da democracia representativa e sua crise) é impossível, como é impossível assumir uma primeira pessoa do plural, porque nenhuma das respostas é certa: nem a simplicidade, nem a complexidade. A literatura não vai responder às nossas angústias; ela pode apenas instituir um espaço de solidão num presente que pede que sempre busquemos respostas. É o direito à dúvida que me parece que o romance de Paloma Vidal recupera. É também o direito à individuação, mas uma individuação que não abre mão de compartilhar as experiências coletivas. E esses direitos, contrapostos à certeza de quem vê o mundo como simples, não significam isolamento, isenção e impotência, mas resistência.


*Lucas Bandeira é editor executivo da revista e faz pós-doutorado no PACC/UFRJ, com bolsa da Faperj.

 

Referências

BANDEIRA DE MELO, Lucas. Dívida e castigo: o apocalipse da nova classe trabalhadora na ficção de Fernando Bonassi, Remate de Males, Campinas, SP, v. 40, n. 1, p. 41-68, 2020, DOI: 10.20396/remate.v40i1.8657538.

BARTHES, Roland. O neutro. Tradução de Ivone Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2003 [2002].

BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 2011 [1955].

VIDAL, Paloma. Pré-história. Rio de Janeiro: 7letras, 2020.

VIDAL, Paloma. Mar azul. Rio de Janeiro: Rocco, 2012.

VIDAL, Paloma. Algum lugar. Rio de Janeiro: 7letras, 2009.

VIDAL, Paloma. Mais ao sul. Rio de Janeiro: 7letras, 2008.

VIDAL, Paloma. A duas mãos. Rio de Janeiro: 7letras, 2003.

O POETA É A ANTENA DA PRAÇA: ENTREVISTA COM ANGÉLICA FREITAS

Na poesia de Angélica Freitas (Pelotas, RS, 1973), Ítaca é não mais a ilha para a qual o herói volta, mas um lugar para onde o viajante deve levar Hipoglós; a escrita pode ser feita com o corpo ou com a ajuda do Google; e o poema pode transfigurar em palavra uma obra de Iberê Camargo ou se transfigurar em performance. Com três livros de poemas – Rilke Shake (2007), Um útero do tamanho de um punho (2012) e Canções de atormentar (2020) –, além da graphic novel Guadalupe (2012), em parceria com Odyr Bernardi, Angélica é uma das principais poetas contemporâneas. Como escreveu Heloisa Buarque de Hollanda, “Angélica abriu para as jovens o caminho da desobediência, do corpo, de que escrever é investigar o avesso das regras que regem a poesia”.

Nesta entrevista, concedida em 4 de outubro, a poeta e tradutora fala sobre seus caminhos artísticos, sobre a vida em Berlim, para onde foi como artista residente do Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (DAAD), e sobre seus novos projetos.

Angélica Freitas (Foto de Dirk Skiba/Divulgação).
Angélica Freitas (Foto de Dirk Skiba/Divulgação).

 

 

Beatriz Resende: Queria que você falasse um pouquinho sobre como é que está viver longe do Brasil, que deve ter muita coisa boa, umas coisas mais complicadas, e o que que você está fazendo por aí.

Angélica Freitas: Eu acabei de entregar há trinta minutos a tradução para a editora Fósforo de um romance, acho que é mais uma novela que um romance, de uma escritora alemã chamada Katharina Volckmer, e essa foi a primeira coisa que eu fiz depois da minha residência do DAAD, que durou doze meses. Eu vim para cá com um projeto de escrita e na verdade acabei fazendo outra coisa. Escrevi muito, mas mudei de projeto no meio do caminho, até por causa da pandemia. Porque eu vim para cá, mas em novembro do ano passado tudo fechou, e todo mundo fica dentro de casa, porém em Berlim. Mas dava para sair para dar umas voltas e esta cidade é muito legal, porque tem muitos parques. Então, por mais que não pudesse ir ao cinema, ao teatro, não pudesse sair para ouvir música, dava sempre para dar uma volta, caminhar num parque. A cidade é bem verde e é uma cidade onde é muito bom caminhar, então apesar da pandemia deu para aproveitar bastante.

Augusto Guimaraens Cavalcanti: E você mora na parte oriental ou ocidental?

AF: Eu moro na parte ocidental bem para o sul de Berlim. É um lugar bem diferente do que a gente – não sei qual é a ideia que vocês têm de Berlim, mas antes de vir morar aqui eu imaginava muito os bairros como Kreuzberg ou Neukölln, que têm a cara de Berlim. E aqui onde eu moro é para o sul de Berlim, é uma área super residencial, não é muito badalada. É perto de uma universidade – a Freie Universität – e é muito tranquilo e calmo, tem muitas árvores, dá para ver raposa passeando à noite, tem umas árvores aqui atrás do parque onde eu moro, ali a gente sempre vê esquilo e um monte de pássaros. O Rio de Janeiro deve ter muito disso também, se você estiver em Santa Teresa dá para ver os micos. Eu moro em São Paulo há mais de uma década.

Mas acabei ficando aqui depois da bolsa, porque, conversando com a Juliana [Perdigão, namorada de Angélica Freitas], a gente achou melhor prolongar a estada. Afinal a gente ficou muito tempo dentro de casa e agora as coisas começaram a voltar a uma certa normalidade. Hoje saí para cortar o cabelo e tive que mostrar um certificado de vacinação e que ficar de máscara. Para você comer num restaurante também tem que mostrar um teste ou um certificado de que você já tomou as duas doses. Então a gente decidiu ficar para poder aproveitar um pouco mais a cidade, e também porque agora no Brasil não teria, principalmente para Juliana, muito o que fazer, já que ela é da música e, como ela mesma diz, tudo o que ela faz depende de aglomeração.

A gente está aqui agora tocando alguns projetos. Eu continuo escrevendo como sempre, mas já estou tentando retomar algumas performances, traduzir algumas coisas para o alemão das performances que eu tenho com a Juliana, também estou tocando paralelamente um livro a partir das pinturas do Marcelo Cipis, que é um artista lá de São Paulo. E durante a residência eu comecei a escrever um livro de prosa autobiográfico em que falo da minha infância. Na verdade, eu já vinha há tempos querendo escrever sobre a minha experiência de ser mulher e de ser lésbica, então eu resolvi começar pela infância, foi só isso. Durante a residência eu fiz uma primeira versão e estou deixando descansar um pouco para voltar e tentar trabalhar nele. Tem sido uma experiência bem diferente, porque a prosa tem que ter uma certa resistência, uma persistência, e achei muito difícil encontrar o tom para contar a história. Estava falando com um amigo meu que disse que eu posso contar essa história de duas maneiras: com amor ou com ódio. Meu amigo disse: conta com ódio, com ódio é mais interessante. É uma experiência nova, mas eu também já não quero ficar limitada a escrever poesia, tenho questionado muito essa coisa de me ater a um só gênero de escrita.

AGC: Eu li numa entrevista sua que você começou a ler poesia em uma enciclopédia que você ganhou e que tinha poemas do Lewis Carroll, adivinhações, com um humor muito forte. Eu gostaria que você falasse um pouco sobre como sua poesia costuma estar atrelada a uma ludicidade. O que marca a sua poesia para mim é essa profanação dos mitos sagrados da literatura, desde o Rilke shake. Poder homenagear uma referência literária, mas sem aquele púlpito literário, sem a torre de marfim. Trazer as referências literárias para a horizontalidade do chão, como você traz a Gertrude Stein para uma banheira, soltando pum, depois você descreve a bunda da Gertrude Stein saindo da banheira. Você nunca teve essa atitude de olhar para cima para a poesia, ou de escrever de uma torre de marfim, mas sempre de escrever ao rés do chão.

AF: Eu não sei, eu fico pensando nessa parada do humor. Eu definitivamente acho que associei escrever poesia com humor já desde muito pequena. Acho que a raiz disso são justamente os poemas que eu li primeiro, que tinham uma pegada nonsense. É claro que eu li outros tipos de poemas, mas esses foram os que ficaram. E eu acho que tem uma coisa do humor que deixa o poema muito fresco e muito vivo. Tem uma energia neles. Acabei de falar sobre o tom que o livro de prosa teria que ter, se de amor ou de ódio – a gente está falando de sentimentos e da energia que move esses sentimentos. Essa coisa tem que ser rápida e esperta. Acho que, pelo meu temperamento, eu gosto muito disso. Não quer dizer que eu não seja uma pessoa séria ou que fique rindo o tempo inteiro, sabe? Eu acho até que eu sou bastante séria, mas enfim, é isso, né? Talvez cause muita estranheza, porque a gente associa a poesia a um lugar dos grandes questionamentos, das grandes questões, o que de fato é, mas acho que sempre teve algum poeta ou outro que usava humor, que praticava o humor. Eu não sou humorista, eu não sou comediante, mas acho que os meus poemas têm uma energia que é do humor, mas também têm outros em que o humor não está presente. Como você mesmo falou, acho que tem a ver com esse primeiro contato com a poesia e com o ter sido incentivada a escrever desde pequena. O que aconteceu foi que eu tinha professoras de português que me pediam poemas, ficavam me incentivando, daí eu acreditei naquilo, sabe? Elas pediam os poemas – um poema, sei lá, sobre o Dia das Mães – e elas ficavam: “Nossa, que legal!”. Acho que foi como qualquer criança que é incentivada a fazer alguma coisa, tocar um instrumento, desenhar. Eu nunca mais parei de fazer isso. Mas eu conservo essa coisa da energia, da emoção, que tem a ver com o humor, e acho que é o que me faz mais feliz como poeta.

Capa de Canções de atormentar (Ale Kalko/Divulgação).
Capa de Canções de atormentar (Ale Kalko/Divulgação).

 

BR: Angélica, esse livro Canções de atormentar começou como um show, que a Adriana assistiu ao vivo.

Adriana Azevedo: Eu queria entender qual foi o processo. Você primeiro criou essa performance ou os poemas foram entrando na performance que você foi construindo com a Juliana? Eu vi você falando numa entrevista que comprou um violãozinho na Índia, pequenininho, de viagem, e que isso te estimulou a construir essas performances. E você também fala sobre essa questão de dar corpo ao poema. Eu queria saber como foi, para você e a Juliana, estarem no palco juntas fazendo a performance e como foi o encontro desses seus corpos e dessas poesias com um público que eu suponho que seja um pouco diferente do público de feiras literárias e de debates sobre poesia.

AF: Eu sempre gostei de fazer música. Na verdade, eu ia dizer musiquinha, porque não é nada sério e geralmente são músicas engraçadas. Você já matou a charada, eu comprei um violão quando estava viajando e eu acho que os instrumentos, os materiais nos influenciam completamente. Comecei a fazer umas músicas que tinham a ver com sereias, não sei muito bem por que apareceu esse tema, e aí eu fui gravando no celular. Eu estava fazendo uma residência na Índia e fui mandando para a Juliana. Quando voltei para o Brasil me convidaram para participar de um evento de poesia musicada lá em São Paulo, que se chamava Zapoeta, organizado pelo Joca Reiners Terron, e que tinha sempre a participação de um poeta e de alguém da música. Ele me convidou e eu falei com a Juliana: bom, já tenho aqueles poemas musicados, vamos apresentar lá. E foi a minha primeira vez… não, talvez não tenha sido minha primeira vez num palco, acho que eu já havia lido poemas num palco, mas num projeto de poesia e música foi a minha primeira vez.

Enfim, é uma coisa muito louca, principalmente para mim. Eu me considero tímida, não sou muito de querer aparecer nem nada, mas tem uma energia muito inacreditável num palco. Eu acho até que ficar nervosa potencializa essa energia. Foi um encontro brutal com quem está do outro lado, que é uma coisa que não acontece tanto no livro. Quando alguém está te lendo, no máximo pode te dar um retorno e te escrever depois, te contar alguma coisa, mas quando você está fazendo uma performance, está vendo as pessoas, o rosto delas ali, e como elas estão reagindo. Corporalmente é muito forte. E é muito, mas muito mais legal do que só brincar num livro ou em qualquer outro lugar. É uma outra experiência e você tem que saber entregar a coisa, e esta é a minha pesquisa agora: como você entrega o texto. A vocalização ao vivo dos poemas eu digo que é performance, mas para mim qualquer coisa que não seja ficar olhando para o livro e lendo sem me mexer já se classifica como performance. Mas eu não sou muito performática, não. Acho que meu negócio é meio um minimalismo performático.

BR: E a Índia, que entrou no livro Canções de atormentar? Como foi essa experiência?

AF: Eu fui para lá duas vezes. A primeira vez fui fazer uma residência e a segunda eu fui participar de uns festivais. Isso foi em 2015-2016, depois em 2017. Foi muito louco porque fui convidada pela Embaixada do Brasil na Índia e lá eu podia escrever sobre o que quisesse. Fiquei morando três meses lá e viajando. Algumas viagens entraram nos poemas, eu escrevi poemas sobre a Índia, mas não publiquei ainda. Acho que para mim é mais fácil escrever sobre um lugar quando já estou longe deles, mas é um país muito diferente de tudo o que já tinha visto e acho que me abriu a cabeça para outras coisas.

Jucilene Braga: A partir do que Adriana falou eu fiquei pensando que alguns poemas de Canções de atormentar a gente lê cantando, não é? Eu não sei se você tem essa impressão, mas tem a repetição das sílabas, e em um poema você faz um jogo de palavras, “entrei no grande magazine”, e vai trocando os versos, o que dá muita vontade de ler cantando. Como você falou da compra do instrumento e do título das canções, essa mobilização do ritmo, eu queria saber se no seu processo de criação dos textos a música interfere. Você também escreve cantando, a música aparece como uma motivação?

AF: Então, Jucilene, sim. Eu acho que no início talvez não conscientemente, mas depois sim, eu sempre quis escrever coisas que pudessem virar música. Quando era adolescente eu gostava muito de ler uma revista chamada Bizz Letras Traduzidas. Eu sempre gostei de ler letra de música e letra de música sempre me causou um estranhamento. Porque a gente não sabe direito se é um poema, se não é, e a letra de música traduzida ainda contém um estranhamento maior, e eu gostava muito desses estranhamentos. Acho que eu ter lido letra de música foi tão importante quanto ter lido poemas. E acho que a melopeia, que a música do poema, se não é a coisa mais importante, é das coisas mais importantes para minha escrita. Eu sou completamente guiada por vogais. Eu amo vogal, eu vou na minha cabeça criando uma musiquinha, pego todos os meus poemas, vejo como eu gosto de separar as vogais e entendo perfeitamente por que fui por aquele caminho: porque as vogais me levaram. O que é uma forma de compor também. E gosto de sons e ritmos, então acho que esse caminho é muito natural para mim.

AA: Falando dessa questão das vogais, eu me lembro do poema “us enimaos”, que é uma loucura, é maravilhoso.

AF: Eu tenho uma série de poemas em que troco as vogais de modo aleatório. Eu só publiquei esse, mas tenho vários. Uma época em que só eu achava aquilo engraçado, mas não fiquei também perturbando muitas pessoas com isso. Mas eu quis fazer essa homenagem à Veronica [Stigger], daí entrou no livro. Eu gosto de tudo que a poesia pegou emprestado da música, gosto de repetição, gosto de refrão. Eu acho que teria sido muito feliz naquela época em que o mundo era jovem e a poesia, a música e a dança eram a mesma coisa.

AGC: Você disse numa entrevista que o Morrissey e The Smiths foram responsáveis pela sua primeira epifania musical.

AF: Não sei se foi a primeira, mas eles foram muito importantes para mim. O Morrissey foi muito importante por ele ser gay e por ter um tipo de humor ferino que eu gosto. Agora ele está super-reacionário, né? O que é uma pena, mas esses dias eu estava ouvindo uma música do Morrissey que dizia: “We Hate It When Our Friends Become Successful”. Eu acho muito engraçado o tipo de tirada que ele faz.

AGC: Esse humor ácido do Morrissey está muito presente na sua poesia.

AF: Mas eu sou um amor comparada ao Morrissey, sou um docinho. Eu queria dizer também, sobre essa ligação entre música, dança e poesia, que talvez a última pessoa que eu vi fazendo isso foi a Kate Bush naquele vídeo do “Wuthering Heights”. Vocês conhecem a coreografia que ela fazia no final dos anos 70. Então, aqui em Berlim tem um pessoal que se junta todos os anos para fazer a coreografia. É muito engraçado, um monte de gente vestida de vermelho, inclusive os homens de vestido vermelho, no parque fazendo coreografia e cantando juntos. Pretendo participar do próximo “Wuthering Heights”.

BR: Mas também tem política nesse livro, só que ela tomou para mim um sentido um pouco maior por esse passeio pelo mundo e pelos efeitos do capitalismo: a roupa que veio da Ásia, a pobreza da Índia. É como se você se espalhasse e tivesse uma visão um pouco de fora, talvez até por estar em Berlim. Estou certa?

AF: Talvez. Acho que eu sempre tive uma visão meio de alguém que está do lado de fora, como nasci em Pelotas e já saí várias vezes do lugar onde estava para poder olhar para trás e pensar e inclusive para poder voltar para esse lugar. Mas o que você falou de capitalismo, eu acho que é meio impossível não pensar nisso como um problema global.

AGC: A sua poesia me faz pensar muito no Oswald de Andrade, naquela posição de amalgamar o alto e o baixo, o erudito e o popular, e naquela frase clássica: “Um dia a massa ainda comerá o biscoito fino que eu fabrico”. A mesma postura se encontra presente no disco Tropicália (1968) e um pouco na poesia marginal. Como você coloca a música pop num mesmo nível hierárquico da poesia, gostaria que comentasse que importância teve a Tropicália e o Oswald para a sua escrita?  

AF: Você sabe, Augusto, que eu tenho um problema muito grande com a questão de nacionalidade, né? Fico sempre questionando o que significa ser brasileira afinal. E, para mim, eu sei que sou lá de onde o Brasil termina ou começa (se você olhar de baixo para cima), então é uma relação um pouco estranha a que tenho com o Brasil. Tem muitas coisas que eu não identifico como minhas, mas eu definitivamente me sinto parte dessa coisa que a gente chama de “Brasil” quando eu ouço o Tom Zé. E não é só o Tom Zé, já que você falou de Tropicália, mas me identifico mais como Tom Zé. Mas é óbvio que se ouvir o Caetano Veloso aqui, dependendo do dia, eu posso até chorar.

A Bruna [Beber] foi a grande responsável por eu ouvir a Tropicália. A gente se conheceu por volta de 2005 e na época a Bruna dizia: baixa aquele disco do Jorge Mautner que está na minha pasta, baixa aquele outro disco lá de não sei quem. Eu acabei baixando muita coisa, e nesse período eu ouvi muita música brasileira. Em 2006-2007, baixei tudo que consegui do Tom Zé quando estava na Argentina. E, como eu sou uma pessoa muito ligada em música, isso obviamente acabou respingando no que eu escrevo.

Então é isso, eu acho que o Oswald chegou para mim primeiro por meio da Tropicália mesmo. Depois eu fui ler um tanto tardiamente, porque durante muito tempo eu escrevia poesia sim, mas eu não achava que ia publicar, ou pelo menos não tinha uma previsão e não me preocupava muito em ser poeta, em estudar poesia. Eu ia lendo o que caía nas minhas mãos e foi só depois que eu tentei fazer uma leitura mais programática e ordenada da literatura brasileira. Até porque eu queria entender o que estava acontecendo, o que tinha acontecido. Bateu esse interesse genuíno pela história da poesia. Eu digo que cheguei tarde porque eu fui ler o Oswald com uns 30 e poucos. Sempre lembrando que eu sou do interior do Rio Grande do Sul e o que estava disponível nas prateleiras das bibliotecas era o que eu lia.

BR: E o erótico na poesia?

AF: Não sei, acho que a minha poesia pode ser levemente aproximada do erótico, mas um erótico que também é meio amoroso. Nesse meu último livro eu tenho um poema, acho que vários poemas, que não sei se são eróticos, mas que são sobre o corpo da mulher. Não sei se você está se referindo a alguma coisa em particular.

BR: Acho que é corpo mesmo. Corpo da mulher, o olhar que contempla, o olhar feminista. Acho que o erótico passa por isso tudo.

AF: Pensando no último livro, eu tenho um poema sobre tetas caídas. No Rio Grande do Sul a gente fala “teta”. Acho até que dá para dizer “peito”, mas normalmente em Pelotas a gente fala “teta”. E tem um outro poema que é muito em código que é… Ah não, vou deixar assim, ele é muito em código, mas tem a ver com o sexo lésbico. Entendedores entenderão.

AA: Eu queria fazer uma pergunta dialogando com tudo que a gente está falando até agora. Fiquei lembrando que na performance sua com a Juliana na Audio Rebel tinha umas zines. E aí acaba sendo inevitável pensar na ligação entre a capa dessa edição da Companhia das Letras [Canções de atormentar] com o Riot Grrrl, movimento punk feminista. Vocês já pensaram nessa relação entre as tetas caídas, os pentelhos brancos e as “Canções de atormentar”, essa sereia que se rebela contra o marinheiro?

AF: [O título] Canções de atormentar foi por causa dessa série que eu escrevi sobre as sereias, e para fazer um jogo com a canção de ninar, uma canção para não dormir, para deixar a pessoa meio atormentada. Originalmente os marinheiros. Mas eu tenho um grande apreço por essa coisa do punk e por esse “faça você mesmo”. Os zines são totalmente isso. Quando estava fazendo faculdade nos anos 1990 fazia zines também, que cortava com estilete, colava e levava para o xerox e era uma grande alegria fazer. Os zines que a gente fez foram todos cortados um pouco antes de ir para a cópia, um pouco antes também de passar o som. Na ida para o lugar onde ia se apresentar a gente passava num xerox. Eu acho que as pessoas gostavam disso também, os zines foram um grande sucesso. A gente vendeu todas as cópias, vendia tudo. Eu acho que tem muito espaço para fazer zine ainda, edições independentes.

JB: Vou juntar duas perguntas em uma. Você falou sobre esse projeto de um texto em prosa em primeira pessoa. Quando eu li um primeiro poema seu, “Laranjal” [de Canções de atormentar], fui convocada a essa ideia memorialista, a um passeio pela infância, a menina depois de 16 anos, então eu não sei se já tem, em alguma medida, um traço dessa escrita de memória no poema. Essa é a primeira questão, e a segunda é que eu te ouvi na Faculdade de Letras da UFRJ relatando que escreveu Um útero do tamanho de um punho para falar sobre coisas que você queria ter lido. Queria saber se nesse livro de agora se encontra presente também a busca por experiências esplêndidas, a possibilidade de vivenciar e de experimentar novas possibilidades e vivências.

AF: É uma pergunta bem ampla, Jucilene. Vou tentar responder, mas vou começar lá pelas primeiras coisas que você me perguntou. O livro novo tem a ver com essa série, mas ela é bastante sobre o entorno, sobre o meu pai lavando o carro na entrada da garagem, sobre o cara que lutava kung fu na praia. Acho que sobretudo o que tem em comum [com o poema] é o lugar onde as coisas acontecem, elas começam nessa praia que se chama Laranjal, lá em Pelotas, no sul do Brasil.

Eu acho que a infância sempre é um lugar de onde você vai tirar as coisas mais loucas. Tem um livro que eu gosto bastante de um artista visual chamado Joe Brainard que se chama I Remember (1975), vocês conhecem esse livro? Ele é só um livro de frases, e todas começam com “I remember”. E ele fica no meio: “ah, me lembro do primeiro cigarro que eu fumei”, “eu me lembro da primeira vez que eu vi um pacote de camisinhas”. Enfim, a partir dessas lembranças ele vai puxando as coisas. Ele não fala só assim: “vi um pacote de camisinha”, ele fala mais coisa: a marca era tal, sobre onde viu. Acho que puxar essas coisas da infância sempre produz uma sensação. E eu tive uma infância bastante esquisita, então acho que tem muita coisa lá.

E a outra coisa que você falou sobre sensações, eu acho que sim, que, se a gente se colocar, se estiver disponível para as coisas acontecerem, isso acaba fazendo com que a gente escreva e produza coisas mais interessantes. Tanto é que talvez as coisas que a gente escreve que têm mais impacto são escritas quando a gente está sob uma forte emoção. Ou quando a gente está apaixonado, ou quando a gente perdeu alguém, quando alguma coisa aconteceu que te revira. Se você se dispuser a isso acho que você vai acabar escrevendo com uma energia diferente. Eu acho que tem a ver com isso. Por que a gente escreve, o que move a gente, que tipo de emoção ou sentimento nos move na hora de escrever? Voltando lá no início, amor, ódio, mas certamente alguma coisa a mais acontece para a gente querer escrever um poema.

BR: Mas quando você muda [para a prosa], que é aquilo a que você está se propondo, é uma outra voz que vai falar. Na prosa, o fundamental dessa emoção, pelo que você está apresentando, já se foi. Quando você faz um poema sobre uma emoção ou quando você vai narrar hoje alguma coisa que você já viveu, não faz diferença?

AF: Acho que totalmente faz diferença, mas você pode de repente entrar num fluxo de escrita que é influenciado por algum tipo de emoção quando você está contando isso. Não sei, certamente alguém deve ter estudado isso, eu só fico aqui intuindo, tentando me aproximar de alguma coisa que eu acho que me move…

BR: Eu acho que não tem um material vasto sobre isso não. Isso é uma coisa que eu estou muito preocupada, com essa voz das mulheres que escrevem em primeira pessoa. Que voz é essa?

AF: Essa coisa de eu ter que procurar o tom para contar essa história e também certas escolhas de não romancear, de não pegar a minha história e transformar numa história de ficção, que eu vou mudando para tornar as coisas mais interessantes. Porque acho que tem muitos casos de pessoas que escrevem – como é que se chama isso? Quando é autobiográfico, mas também é ficção?

BR: Autoficção! Não, não se trata de autoficção.

AF: Porque, por exemplo, a Vivian Gornick escreveu aquele livro lá muito bom e que saiu há pouco tempo, acho até que foi pela Todavia… Afetos ferozes. Numa entrevista ela chegou a falar que criou alguns personagens para o livro, que teve diálogos com pessoas que não existiam. Que ela criou diálogos e criou personagens. Ela foi questionada, e disse que achou que isso foi um recurso que ajudou a contar a história. Então é uma escolha que você faz, eu na verdade não quero fazer autoficção. Mas também outra questão que aparece é você ter certa responsabilidade com as pessoas que são de verdade e aparecem no que você está contando. São coisas com as quais estou tendo que lidar. Por exemplo, meu pai e minha mãe já morreram e eles aparecem muito nessa história, às vezes eu acho que eles não concordariam com algumas coisas que estou falando, mas enfim. São muitas questões que para mim poderiam até aparecer em alguns poemas, mas que [na prosa] contêm um outro modo de pensar.

Lucas Bandeira: Angélica, já vi você falar mais de uma vez que o poeta e a poeta funcionariam como uma antena do que está se passando. E eu queria entender um pouco mais essa imagem, que no seu caso funciona de uma maneira muito clara por causa da força que seus livros tiveram para uma geração toda de escritores, de poetas, principalmente poetas mulheres, mas acho que não só.

AF: Então, quem é que falava que o poeta era a antena da raça? Era o Ezra Pound. Poderíamos atualizar a sua frase para: “O poeta é a antena da praça”. Acho que tem um elemento mesmo de antena. A Inês Lourenço, aquela poeta portuguesa, numa entrevista fala que a palavra “vate” tem a mesma raiz de vaticínio, que os poetas conseguiriam antecipar as coisas que estão por vir. Não estou dizendo que eu faço isso, mas eu acho que por me dedicar a isso acabo desenvolvendo uma sensibilidade para os acontecimentos.

LB: Uma escuta, não é?

AF: É, eu acho que é por aí, acho que a gente tem uma relação com o mundo e com a linguagem que é bem acentuada. Acho que talvez seja uma capacidade de percepção do mundo mesmo, que é uma coisa que você sempre tem que estar desenvolvendo. Acho que a antena pode parar de funcionar se você não se colocar no modo de escuta e de observação, de tentar ficar aberta. Tem a ideia de uma “mente de principiante” que vem do zen budismo. Eu gosto bastante da ideia de que, se você se considera sempre um principiante, por mais tempo que tenha de ofício, sempre pode ter a cabeça de alguém que está vendo a coisa pela primeira vez, o que é muito difícil. Tentar refrescar o olhar, tentar refrescar a cabeça, tentar “desviciar” a mente e o olhar. Porque a gente sempre acaba indo pelos mesmos caminhos de pensamento, não é? Tem um cara, o Michael Pollan, que escreveu um livro sobre psicodélicos, Como mudar sua mente, e ele fala que a nossa mente está sempre acostumada a ir pelos mesmos caminhos. Você pode imaginar um morro coberto de neve e as pessoas começam a descer de trenó, daqui a pouco todas as pessoas vão descer pelo mesmo caminho de trenó. Então nosso pensamento costuma ir sempre pelos mesmos caminhos. Ele fala que os psicodélicos ajudam a mudar isso. Acho bem na moda falar sobre psicodélicos, mas, do pouco que eu sei, eu sei que é verdade. Acho que é tentar manter a cabeça boa para esse tipo de transação com as coisas que estão acontecendo. Acho que faz parte para mim do que interessa em ser uma pessoa que escreve.

AGC: A gente não tocou no tema do feminismo. Gostaria que você falasse um pouco sobre a sua relação com a poesia argentina, já que foi lá que você primeiro teve contato com um feminismo orgânico, de combate, um feminismo do dia a dia que foi tematizado no livro Um útero é do tamanho de punho (2012). Além disso, o poema que dá nome ao livro foi composto para uma amiga que abortou na Cidade do México. Lá, no hospital mexicano, umas católicas ficavam mostrando fotos de fetos mortos às mulheres que iam abortar. Gostaria que você comentasse sobre o impacto que esta experiência teve na sua escrita. 

AF: A poesia argentina mudou tudo para mim. Em 2006, que foi quando eu fiz a minha primeira leitura em público, lá na Casa das Rosas, eu conheci um poeta argentino, o Cristian de Nápoli, e ele naquela mesma noite me convidou para participar de um festival que organizava em Buenos Aires, chamado Salida al Mar. Eu fui e ele me apresentou um monte de poetas que eu não conhecia e que comecei a ler. Fui morar na Argentina no ano seguinte, morei lá dois anos e meio. Acho que eu tenho muita afinidade com a poesia argentina. Lembro que uma das primeiras coisas que o Cristian me perguntou foi se eu conhecia a Susana Thénon, e eu acabei traduzindo a Ova completa dela, que saiu pela Editora Jabuticaba em 2019. Mas mudou tudo para mim também porque o que encontrei lá era muito diferente do que eu estava vendo e vivendo no Brasil. Eu ter ido morar na Argentina e ter tido amigas que se consideravam feministas foi muito importante para mim, porque no Brasil eu não tinha nenhuma amiga feminista. Eu tinha amigas que diziam “não sou feminista, mas…”, e hoje elas são super feministas, mas em geral eu tinha muita amiga que passava pano para machismo, muito amigo machista também, e eu sempre achava muito estranho. Certas coisas aconteciam e eu perguntava: “Bom, vai ficar por isso mesmo?”, e “Eu tenho que rir dessa piadinha?”. As coisas mudaram muito no Brasil e nossa, eu nem sou a pessoa mais feminista que conheço hoje.

Falando do México, porque, enfim, eu sou lésbica, eu não me relaciono com homens, então a possibilidade de eu ficar grávida sem querer não existe. Meu relógio biológico a essa hora já era, já passei da idade, mas o fato de você acompanhar alguém que está passando por essa situação não é uma coisa que fica só na teoria, você vê e sente o que está acontecendo. Afinal, quem é que manda no teu corpo? Quem é que vai te autorizar a fazer certos procedimentos? Tem que passar por uma série de instâncias de autorização para você poder decidir alguma coisa sobre o seu corpo. Isso é que foi importante para mim, eu presenciar a violência de você ter tomado uma decisão, uma decisão difícil, de repente ninguém te apoiou, mas você vai lá e ainda tem que lidar com pessoas religiosas que chegam tentando te dissuadir com fotos de fetos e depois ficavam com megafones na frente do centro de saúde. Na Cidade do México o aborto é (ou pelo menos era naquela época) legalizado.[1] Foi uma experiência muito louca e eu fiquei com vontade de escrever sobre isso e acabei fazendo. Acho que foi o poema mais longo que eu escrevi.

BR: Para terminar, gostaria que você falasse sobre a experiência de ser lésbica na Alemanha. Quando você irá tomar coragem para voltar para o Brasil?

AF: Eu estou sendo lésbica basicamente aqui em casa, não tive contato com outras lésbicas além da minha namorada, mas acho que a coisa é bem mais avançada aqui. Mas eu só fico no achismo mesmo, porque não sei. Mas eu me sinto bem segura aqui. Acho que as pessoas aqui não são muito de demonstrar afeto em público, mas quando eu demonstro afeto em público não me sinto ameaçada, e acho que isso é uma grande coisa. Quanto a voltar para o Brasil, não é nem que falte coragem, sinto muita saudade da minha casa, do meu apê lá em São Paulo. Mas eu acho que por enquanto a gente vai continuar em Berlim. Eu estou fazendo uma série de leituras, tudo que eu não fiz durante a pandemia estou fazendo este mês. Quero tentar fazer mais contatos e melhorar o meu alemão. Estou estudando alemão todos os dias, a minha intenção é tentar traduzir algo do alemão. Tem vários motivos para continuar aqui por algum tempo, mas a gente vai voltar sim. A gente deve voltar no mais tardar em 2023. Dependendo do resultado das eleições a gente volta antes, mas vamos ver.


* Beatriz Resende é editora da Revista Z Cultural; Augusto Guimaraens Cavalcanti é escritor e faz pós-doutorado pelo PACC/Letras/UFRJ com bolsa da Faperj; Jucilene Braga é doutoranda do Programa de Ciência da Literatura da UFRJ; Adriana Azevedo é professora substituta de Teoria Literária na UFRJ; Lucas Bandeira é editor executivo da revista e faz pós-doutorado no PACC/Letras/UFRJ, com bolsa da Faperj.

 

Nota

[1] Desde 2007 é permitida na Cidade do México a interrupção da gravidez de até 12 semanas. Em setembro de 2021, a Suprema Corte mexicana descriminalizou o aborto no país. (N.E.)

FOTOGRAFIA E MEMÓRIA: ENTREVISTA COM MIRIAM MOREIRA LEITE

Miriam Moreira Leite foi uma das feministas mais brilhantes da geração que viveu a segunda onda sob a pressão da ditadura. Seus estudos sobre imagem e narrativa se tornaram fundamentais porque faziam perceber a mão pesada do patriarcado sobre as mulheres em retratos de família e textos dos viajantes no século XIX. Além disso, Miriam fez um resgate triunfal de Maria Lacerda de Moura, militante anarquista nascida em 1877, crítica ferrenha da moral sexual burguesa e defensora da educação sexual dos jovens, do amor livre, do divórcio e da maternidade consciente.Mas o que me parece mais importante na carreira de Miriam foi, de fato, ser a pioneira em estudar a imagem com uma perspectiva feminista. Precisamos conhecer e aprender com Miriam, que foi uma amiga cheia de amor, cuidado e delicadeza. Miriam foi pesquisadora visitante do PACC quando éramos ainda CIEC – Coordenação Interdisciplinar de Estudos Contemporâneos.

Saudade grande dessa amiga genial.

Heloisa Buarque de Hollanda
curadora da seção Vale a Pena Ler de Novo

Em 2008, Miriam Lifchitz Moreira Leite completou 82 anos de idade. Sua reflexão sobre a questão das imagens e da memória tem inspirado e influenciado muitos pesquisadores do campo das Ciências Humanas, justamente pela sua capacidade de provocar outras reflexões, provocar outros olhares. Partindo desta inquietude, própria à obra de Miriam, sentimos ser este um momento privilegiado para rever sua obra e biografia, procurando retraçar os caminhos de suas escolhas e inquietações. Neste movimento, produzimos um documentário no qual buscamos praticar a metodologia criada por Miriam em suas pesquisas: mobilizando a memória a partir das imagens e, assim, tecendo sua biografia. Neste percurso, nos debruçamos sobre o material produzido pela autora, sua pesquisa sobre a feminista Maria Lacerda de Moura e suas caixas e álbuns de fotografias pessoais. Desta forma, nasceu Caminhos da memória – Miriam Moreira Leite (2008, 35 min), vídeo dirigido pelas autoras desta entrevista, o qual compõe a Série Trajetórias nas Ciências Sociais, produzido no âmbito do Projeto Temático Alteridades, Construções da Realidade e Expressões Culturais do Mundo Sensível, financiado pela Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP (2003-2007).

Publicamos aqui uma entrevista produzida neste contexto em que a autora nos brinda com importantes elaborações sobre a imagem, em especial a respeito das relações entre fotografia e memória[1]. Cabe dizer que, em sua trajetória acadêmica, Miriam reflete sobre as construções da realidade social nos livros de história, produz um importante estudo sobre as imagens do Brasil presentes na literatura produzida pelos viajantes e o seminal estudo sobre a estrutura da representação da família a partir de imagens fotográficas, entre outros.[2] A entrevista aqui apresentada é um pequeno fragmento da profundidade que há no trabalho e na biografia de Miriam.

Andréa: Como apareceu a ideia de trabalhar com fotografias? Como é que a fotografia entrou na sua vida de trabalho?

Miriam: Eu sempre gostei muito de olhar álbuns e verifiquei, vendo álbuns de famílias de origens muito diferentes, que as figuras eram muito parecidas. Havia uma semelhança muito grande entre as fotografias de um álbum e de outro, não propriamente da fisionomia das pessoas, mas da posição, da maneira e da frequência com que tiravam retratos. Isso que me orientou para fazer uma coleção, exatamente, de retratos de filhos e de famílias de imigrantes para São Paulo, em um período em que a pose era um problema, quer dizer, a pose era muito longa, porque o filme era muito lento. Então, realmente isso era um fator identificável e que fazia com que todas fossem meio parecidas. As pessoas todas precisavam ficar retas, olhando de cara para a câmera, de frente e cansadas de tanto esperar. Então eu fiz essa reunião de fotos de família e a partir daí eu fiquei examinando o que a fotografia trazia e o que não trazia.

Para mim foi extremamente útil perceber que, em vários momentos, no caso de algumas fotografias que são muito repetidas, você acaba não vendo mais, justamente porque é muita repetição. Tanto que, no fotojornalismo, as pessoas recorrem a elementos extremamente exóticos para chamar a atenção, porque senão a saciedade da percepção é muito grande, e você acaba não vendo aquela coisa que se quer mostrar. O próprio retrato de família, de uma, duas gerações colocadas em fileiras e, frequentemente, os mais velhos bem no meio e as crianças sentadas na frente, foi colocado, até por um dos estudiosos de fotografia, como exemplo de uma fotografia invisível, pois como todo lugar tinha, você acabava não vendo. O que também me chamou a atenção é que a questão da pose acabou se tornando um sinônimo de retratar, porque fazia parte da fotografia você estar sendo observado, então você ficava numa atitude de quem está sendo visto.

Francirosy: Você considera Retratos de família[3] um livro de metodologia de análise de imagem?

Miriam: Eu tenho impressão de que é um ponto de partida. Na verdade, cada tipo de fotografia tem uma lógica própria. Eu até pensei em fazer, primeiro, de um grupo pequeno que seria a família, depois, de um grupo médio de festas, ou o movimento social, e depois, de grandes grupos, como os comícios e revoluções. Essa última ideia não vingou na medida em que você acaba não vendo a expressão das pessoas, você acaba tendo a ideia de um mundo de pessoas que você acaba não enxergando e nem podendo tirar nada dali. No caso, por exemplo, de outro trabalho com o qual eu colaborei, que foi Retratos de carnaval,[4] realmente existe uma outra maneira, apesar de todos serem redutíveis a retratos de família. Isso fez com que eu insistisse nele, porque, inclusive, nos retratos de carnaval, existe a família que aluga o carro para o ‘corso’ e aquilo se torna um salão que, de certa maneira, é uma forma privada de festa. E, a partir daí, também as famílias de projeção acabavam pondo seus retratos nas revistas ilustradas, e o retrato que era uma questão privada e apenas exibido para as pessoas de dentro da casa ou amigos passou a ser uma coisa pública. Todos esses elementos da fotografia acabaram aparecendo nesse trabalho – sempre à procura de um equilíbrio entre aquela visão imediata que você tem do conteúdo da fotografia à primeira vista e a falta de percepção quando você não consegue mais ver a fotografia, dada a sua repetição.

Francirosy: E, neste ponto, você fala dos quatro vetores…[5]

Miriam: Na verdade, a fotografia exige muito mais do que um texto escrito para sua revelação, porque você precisa levar em conta tanto o produtor da foto, como as pessoas retratadas, aquilo que as pessoas retratadas gostariam que aparecesse, quer dizer, elas realmente fazem uma pose daquilo que elas querem que apareça e aquilo que o fotógrafo acha que melhora o seu produto, de maneira que existe uma porção de ângulos que você precisa levar em conta para conseguir extrair da fotografia aquilo que não é imediatamente visível.

Francirosy: O que me chama bastante atenção no Retratos de família é a maneira como você conseguiu articular tanto os autores da História, da Sociologia, da Antropologia e da Psicologia. Isso foi um caminho que você acabou optando para a análise dessas imagens, dessas fotografias, ou essas referências foram aparecendo?

Miriam: Elas foram aos poucos aparecendo. Uma coisa, por exemplo, que eu tive de usar sempre foi a questão da percepção visual que é muito estudada pela Gestalt,[6] a psicologia da forma, que tenta entender a forma e o fundo, e tudo isso aparece na fotografia. Para você poder ver o que está na foto, você precisa ver o que está no foco e o que está em torno, que é uma das técnicas da Gestalt. No caso, por exemplo, da Antropologia Visual, o trabalho que a Margareth Mead e o Bateson fizeram em Bali[7] foi um trabalho que me inspirou muito, na medida em que eles procuraram perceber como uma criança adquire sua forma de ser balinesa. Aí eu percebi que a fotografia é principalmente sobre o espaço e, para você obter a dimensão do tempo, você precisa construir esse tempo. Precisa ter várias fotografias, em vários momentos, para obter a dimensão do tempo. Isso é verdade não só para o caso das crianças que iam crescendo, que iam adquirindo formas de vida e comportamento, como também para qualquer fotografia. É preciso ter várias fotografias, tiradas em vários momentos, para você poder compreender o que é aquilo. A fotografia isolada é muito difícil de ser analisada, você precisa de uma sequência que te revele o conteúdo.

A fotografia por si não fala. É preciso que os fotografados revelem a sua identidade, quando tiraram, por que tiraram, o tipo de recurso que tinham. No caso do Retratos de família, eu tive que fazer entrevista com todos eles, porque muitos deles me revelaram também um outro elemento muito importante: que a memória da fotografia é muito diferente da memória de um texto escrito. A sua memória é feita através de uma convocação de outras imagens parecidas. É dessa forma que você consegue compreender aquela imagem. E no caso, por exemplo, desse meu arquivo fotográfico de famílias de imigrantes, eu tive a oportunidade de ter depoimentos, tanto de descendentes como às vezes dos fotógrafos que tinham tirado essas fotografias. E assim, as lembranças que eles tinham e a revelação dessas lembranças me permitiram perceber o que era aquela fotografia.

Francirosy: Você lembra de alguma história interessante que você ouviu mostrando essas fotografias? Você se deparou com algum silêncio?

Miriam: Isso apareceu no exame dos álbuns. Os álbuns tinham realmente algumas ‘cruzinhas’ em baixo, que às vezes revelavam que a pessoa que estava organizando queria aparecer ou, por outro lado, algumas eram recortadas. Demorou um pouco para eu entender o que isso queira dizer. Na verdade, alguns casos eram pessoas que eram malvistas na família ou que pretendiam afastá-las da família, então elas retiravam do retrato. Depois eu percebi que, em alguns casos, elas retiravam das fotografias (que é uma diminuição, uma redução da realidade, ela nunca é só uma reprodução), elas retiravam aquilo para colocar em relicários. O relicário em camafeus ficava mais próximo das pessoas, de maneira que são movimentos praticamente opostos e que são revelados por um ato que você só vê manuseando não só a fotografia como os seus invólucros, que são os álbuns ou até, às vezes, caixas de sapatos.

Andréa: Como você reuniu o arquivo de fotos de família?

Miriam: Foi uma coisa inteiramente empírica, não foi, digamos, uma coisa representativa. Eram pessoas do meu convívio, que se interessaram pelo trabalho e que eram descendentes de imigrantes, aliás, em São Paulo, você encontra uma quantidade bastante variada dessas pessoas. E elas me emprestaram os seus álbuns, alguns, uma quantidade enorme, alguns, algumas fotografias. A reunião delas eu uniformizei, reproduzindo todas no mesmo tamanho, no mesmo tipo, porque havia tamanhos muito diferentes, fotografias pintadas também, coisas que eram muito difíceis de você comparar, e a comparação é a base do trabalho. Então foi necessário fazer esse arquivo provisório com o qual eu trabalhei. Depois eu apresentava o arquivo que eu tinha feito para as pessoas, que me falavam daquilo que lembravam da fotografia.

Andréa: Você não reapresentava os álbuns delas, você mostrava a organização que você fez do material?

Miriam: É, porque aí elas tinham o afastamento do material, que permitia que a memória funcionasse melhor, porque aquelas que elas viam sempre acabavam sendo esmaecidas da sua memória. Esses experimentos que eu fiz de percepção visual contaram com o depoimento das pessoas retratadas e, também, em assessorias que eu dei às pessoas que queriam trabalhar com fotografias. Elas traziam núcleos diferentes de fotografias, e a gente tentava classificá-las e tentava ver até que ponto a gente conseguia extrair delas o que elas não tinham de aparente ou o que elas tinham de latente. Assim como no texto escrito você precisa fazer uma crítica para aceitá-lo, na imagem é da mesma maneira, você precisa fazer essa crítica externa e interna. A externa você verifica o tipo de conservação, onde foi conservado. A interna é essa visão de cada um, porque as pessoas estão lá, a posição em que elas ficam, por quê é que elas são assim e aquelas que são mais comuns, o que leva as pessoas a tirarem foto do nenemzinho de bruços e nuzinho. Também existem as coisas que não são fotografáveis, por exemplo, não se tira fotografia de banheiro. Aliás, hoje em dia, nos filmes, tem aparecido muita gente em banheiro, mas é uma coisa muito recente, até pouco tempo o banheiro era interdito à máquina fotográfica.

Ana: Existem dois aspectos diferentes: uma coisa é trabalhar com a imagem como objeto de pesquisa e outra é como forma de construir um diálogo com seu interlocutor, o sujeito que você está estudando. As fotografias acionam as memórias, como você discute essa relação entre imagem fotográfica e memória?

Miriam: Na verdade, acabou ficando para mim que o retrato é um instante congelado da memória. A memória é um processo muito dinâmico, e o retrato é uma fixação de um momento. Mas, a memória que você tem é a fixação de vários momentos sucessivos. É verdade que eu trabalhei muito, não com uma história da família pelo retrato, mas com o retrato como um instrumento de percepção e forma de compreensão da imagem fixa. A imagem móvel, como o cinema e a televisão, traz toda uma série de outros problemas que eu não tratei, porque aí entra uma questão de como o tempo é resolvido, a sequência das cenas. E na foto não, a foto fica parada e ela é aquela só e aquele momento único, e tem essa vantagem que você pode olhar quantas vezes quiser e ir tirando, aos poucos, tudo aquilo que você pode tirar da contemplação. A imagem móvel passa muito depressa, você perde muita coisa. Estou tendo agora a experiência de ver vários filmes várias vezes, e a quantidade de coisas que você perde é muito grande, tanto que é muito difícil dizer que você lembra de cena a cena. Já a fotografia permite essa análise muito mais profunda, e em alguns casos essa análise é obtida por uma ampliação da fotografia, porque a fotografia é redução da realidade. Você pega uma coisa de três dimensões e reduz para duas e, também em relação à chapa e aos negativos, ela é diminuta. Nesse sentido, a ampliação às vezes é necessária para você ampliar o seu olhar. Naquele filme Blow up, o Antonioni[8] se aproveitou dessa condição do fotógrafo diante de alguma coisa que ele não vê e que, a partir de várias ampliações e de dias de contemplação, ele consegue entender que ali atrás está um homem morto.

Andréa: Você disse que a pose tinha uma questão prática, que a pessoa tinha de ficar parada muito tempo porque o filme era lento, mas também a questão da escolha, da composição do quadro, porque posar deste jeito, os objetos que se escolhem, por exemplo, criança com cavalinho, a paisagem pintada no fundo. Você chegou a pensar neste rol de significados que compõe o quadro?

Miriam: Isso acontecia muito na fotografia de imigrantes, em que eles tentavam, não só na sua roupa como também na imagem de fundo, apresentar um lugar distinto, ou plantas, móveis antigos, retratos também, retrato dentro do retrato e depois a roupa domingueira com que eles se apresentavam para serem fotografados. Tudo isso eram maneiras para se apresentar e poder exibir, para as pessoas que ficaram na terra ou para as outras pessoas da família, como eles estavam bem. Uma outra dificuldade desses retratos é a diferença. Você não consegue distinguir a classe social e econômica dos fotografados, porque eles procuram melhorar muito as suas imagens. Eu tenho um retrato de um antigo marceneiro com a mulher, e os dois têm uma pose e uma postura que você tem a impressão que eles são da nobreza, isso dificulta muito, é um dos limites da fotografia.

Andréa: Você falou que a fotografia também serve como troca de significados entre as pessoas…

Miriam: Porque, na verdade, a fotografia tem também a qualidade de ser objeto de culto dos antepassados, aqui eles estão e continuam presentes, mas é também uma forma de exibição, que é também uma maneira de você mostrar, para os outros, quem você é. Isso existe muito, tanto entre os imigrantes como nos outros. Havia muitos fotógrafos que tinham fantasias de outros lugares ou fantasias muito bonitas e que eles forneciam para os fotografados para que eles pudessem tirar as fotografias.

Ana: Lembro de um artigo que você produziu há algum tempo que se chamava “Atirei no que vi, acertei no que não vi” (Leite 2002:193-202), em que você comentava as poses de mulheres publicadas em revistas femininas, mas você comentava também como a mulher não deveria ser fotografada, poses que não se deveriam mostrar, pensando em representações sobre a mulher…

Miriam: Não é que não deveriam, mas as mulheres não gostavam, por exemplo, de ser retratadas naquele afogamento de tarefas intermináveis que a mulher tinha. Ela precisava se preparar para tirar a fotografia, mesmo quando a pessoa queria tirar na sua cozinha, ela dizia: não, eu preciso limpar, eu preciso arrumar. Era uma necessidade muito grande, porque aquilo fica fixo, você na memória pode apagar, mas na fotografia ela é fixada, ela é a imagem.

Andréa: E o que foi que você não viu e que você acertou, com esse trabalho das imagens das mulheres nas revistas femininas?

Miriam: Como eu estava muito interessada em fazer retratos de grupos, então de cara eu descartei fotografias individuais, mesmo porque as individuais são muito mais difíceis de analisar, você precisa de uma sequência muito grande de fotos da mesma pessoa para conseguir ter a análise. Então eu inicialmente descartei essas fotografias, existem muitas de primeira comunhão, por exemplo, também de pessoas mortas e todas essas eu inicialmente descartei, mas depois eu verifiquei que havia vários elementos que essas fotografias podiam me trazer, na medida em que eu poderia compará-las com mulheres de outros grupos, por exemplo, as mulheres e as imigrantes em geral, elas não sorriem, elas não têm do que sorrir, estão sempre muito sérias e muito preocupadas sempre. E o sorriso para a máquina é uma coisa da classe alta que depois foi se generalizando.

Francirosy: Eu tenho uma curiosidade, Miriam, já que a gente está conversando sobre fotografias, sobre memória. Hoje a gente não tem mais álbum, depois da câmera digital você fotografa tudo, você arquiva um monte de CDs que você demora quinhentos anos para olhar de novo e você se afoga nessas quinhentas mil fotos. Outro dia eu me deparei com uma imagem que eu não conseguia nem lembrar quando nós tiramos, quem tirou, mas a foto existe, ela está lá no meio das quinhentas mil fotos digitais que estão lá arquivadas. Eu tenho os álbuns até uma certa idade, o primeiro álbum de cada um. O primeiro filho a gente fotografa muito, o segundo diminui e o terceiro quase nada… Mas com a câmara digital, isso mudou, você fotografa qualquer respirada da criança hoje em dia, ele mexeu o dedinho você fotografa. Será que isso muda na análise da imagem? E a gente não faz mais ampliações como fazia antes, de uma ou outra, às vezes você até esquece, só tem em CD mesmo…

Miriam: Você olha muito menos o CD do que você olha uma fotografia, ele exige recursos mecânicos que a fotografia não exige. Houve um filme, eu não me lembro muito bem o nome, mas que as pessoas que tinham retratos de família eram seres humanos, os outros não tinham.[9] Essa é uma referência a isso que você está dizendo, mas as pessoas não vão usar o CD como usavam a fotografia, é uma outra coisa.

Andréa: É que a gente ainda não sabe como vai ser, porque estamos em uma fase de transição. É muito difícil, a gente se perde e perde as fotografias, porque quando a gente tinha que revelar, a gente era obrigado a fazer essa seleção, olhar, escolher, escolher a ordem que você vai pôr no álbum. É um relacionamento físico…

Miriam: E o tempo que você leva com ela é muito maior.

Andréa: Há um elo entre você e a fotografia impressa e aquelas imagens lá no computador parecem não criar elos…

Miriam: Elas não exigem de você nem seu tempo, nem sua atenção.

Francirosy: A gente cria álbuns virtuais, por exemplo, no Orkut. Então fotos mais recentes estão lá e outras mais antigas também. Você vai montando esses álbuns virtuais, mas é um outro tipo de relação, e essa garotada hoje em dia é muito rápida. Não tem nem a preocupação de guardar…

Miriam: Eu acho que a própria relação com o tempo dos mais jovens é diferente, é uma necessidade de velocidade que a gente não tinha, as coisas eram mais compassadas. E agora a coisa fica muito difícil de você adaptar um comportamento que era essencial, das famílias, pelo menos de classe média e alta, para as coisas de hoje. Hoje você consegue ter uma câmera digital até razoavelmente barata. E a fotografia tradicional exige muito mais de tempo, de dinheiro e de atenção.

Ana: Queria voltar um pouquinho à pesquisa sobre Maria Lacerda de Moura. Durante as gravações do vídeo, fizemos uma viagem para Guararema (São Paulo), quando fomos fazer uma segunda entrevista com a Dona Norma Campagnoli, e você levou fotografias dos pais dela, dos tios… Era um segundo encontro que tínhamos com ela. No primeiro encontro, ela havia sido muito seca, lacônica e, nesse segundo encontro, a partir do momento em que você entregou as fotografias, ela passou a contar muitas histórias, que era o que a gente estava buscando e não tínhamos encontrado até então…

Miriam: A fotografia é um instrumento de pesquisa fundamental, quer dizer, é possível que você chegue a não ter mais, mas em todo caso é muito importante. Nesse trabalho da Olga Von Simon sobre o carnaval nas primeiras décadas do século XX, ela usou o método frequentemente com os chefes de escolas de samba, as próprias fotografias deles que ela reunia e depois apresentava para eles dizerem o que eles tinham na memória sobre aquilo que estava ali.

Ana: Nessa situação com a Dona Norma, ela contou a infância, a história do tio, a partir daí a gente pode reconstruir um pouco do que foi aquela comunidade de Guararema. Interessante como a foto remeteu a esse outro tempo, as histórias dos antepassados, a infância…

Miriam: Pois é, mas dentro disso que estamos examinando, eu acho que daqui a pouco vai ser um instrumento que não vai ter mais, vamos ter que recorrer a outras formas de evocação da memória.

Andréa: A fotografia para você também serviu como um procedimento metodológico para evocar a memória?

Miriam: Foi, sem dúvida! Tanto que todas aquelas fotografias que vocês filmaram são todas fotografias de minha família e que me trouxeram vários momentos da minha vida que tinham se apagado.

Andréa: O que despertou que você tinha deixado apagar?

Miriam: Vimos fotos de umas tias com nenê no colo, que era um tempo em que eu estava muito longe delas…, mas eu tinha um entusiasmo por elas. São umas coisas assim, momentos de emoções que passaram e que voltam com a fotografia.


* Miriam Lifchitz Moreira Leite (1926-2013) formou-se em Ciências Sociais e História, pela Universidade de São Paulo (1947), tendo sido uma das fundadoras do NEMGE – Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre a Mulher da USP, em 1985 – desde 1998 participava do GRAVI – Grupo de Antropologia Visual (LISA – USP). Realizou seu pós-doutorado pela Eastman Foundation-KODAK (1990), foi professora-doutora de pesquisa em imagem do Laboratório de Imagem e Som em Antropologia da USP. Dedicou-se a várias áreas do conhecimento, entre elas: gênero, família, fotografia e memória. Publicou 15 livros, mais de 30 artigos em revistas especializadas, contos, poemas e outros textos.

 

Artigos

LEITE, Miriam Lifchiz Moreira. 2003. “Janela da Alma”. Cadernos de Antropologia e Imagem, 15(2):177-180.

______. 2002. “Atirei no que vi e acertei no que não vi”. Gênero, 2(2):193-202.

______. 2002a. “Luce Fabri e o anarquismo contemporâneo”. Revista Brasileira de Sociologia da Emoção.

______. 2002b. “Trajetória de uma rebelde”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 415:85-97.

______. 2000. “Mulheres viajantes no século XIX”. Cadernos Pagu, 15:129-143.

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______. 1995. “A longa espera”. Revista da Biblioteca Mario de Andrade (Imagens de Mulher), 53:77-82.

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______. 1994a. “Memória da Faculdade de Filosofia (1934-1994)”. Revista do Instituto de Estudos Avançados da USP, 22:167-177.

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______.1993a. “Fontes históricas e estilo acadêmico”. Estudos Feministas, 1(1):83-95.

______.1993b. “Ritual revestido: o retrato de casamento”. Encontros com a Antropologia: identidade, imigração, memória, 1:39-44.

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______.1991. “Retratos de casamento”. Novos Estudos Cebrap, 29:182-189.

______.1990. “Uma construção enviesada: a mulher e o nacionalismo”. Ciência e Cultura (SBPC), 42(2):144-149.

______.1981. “Literatura de viagem: características de uma documentação”. Notícia Bibliográfica e Histórica, XIII (104):212-229.

______.1978. “Bibliografia anotada sobre a mulher brasileira”. Ciência e Cultura (SBPC), 30(1):24-31.

______.1975. “O Ensino de história no primário e no ginásio (cinco anos depois)”. Revista de História USP, 103:627-637.

 

Livros:

LEITE, Miriam Lifchiz Moreira; FELDMAN-BIANCO, B. (eds.). 1998. Desafios da imagem (Fotografia, iconografia e vídeo nas ciências sociais). 2ª ed. Campinas: Papirus.

LEITE, Miriam Lifchiz Moreira. 1997. Livros de viagem (1803-1900). 1ª ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ.

______. 1997a. GUT: o ritmo vivaz. São Paulo: EDUSP.

______. 1997b. Diário do Barão E.de Langsdorff (1824-1825). 1ª ed. Campinas: Unicamp; Manguinhos: Fundação Oswaldo Cruz.

______. 1995. Pedagogia da Imagem e Imagem da Pedagogia. 1ª ed. Niterói, UFF: Faculdade de Educação da UFF.

______. 1994. “Caetano de Campos: fragmentos da História da Instrução Pública em São Paulo”. 1ª ed. São Paulo: Associação de ex-alunos do IECC, vol. 1.

______. 1993. Retratos de Família (Leitura da Fotografia Histórica). 3ª ed. São Paulo: EDUSP-FAPESP.

LEITE, Miriam Lifchiz Moreira; SIMSON, O. V. (eds.). 1992. Reflexões sobre a pesquisa sociológica. 1ª ed. São Paulo: Textos CERU 3.

LEITE, Miriam Lifchiz Moreira. 1991. A infância na história do Brasil. 1ª ed. São Paulo: Contexto.

______. 1984. A condição feminina no Rio de Janeiro século XIX. 3ª ed. São Paulo: HUCITEC/Pró-Memória/INL.

______. 1984. Outra face do feminismo: Maria Lacerda de Moura. 1ª ed. São Paulo: Ática.

LEITE, Miriam Lifchiz Moreira; MOTT, M. L.; APPENZELLER, B. K. 1982. A mulher no Rio de Janeiro no século XIX. 1ª ed. São Paulo: Fundação Carlos Chagas.

LEITE, Miriam Lifchiz Moreira. 1980. Iniciação à história social contemporânea. 3ª ed. São Paulo: Cultrix.

______. 1969. O ensino de história no primário e no ginásio. 3ª ed. São Paulo: Cultrix.

 

Capítulos de livros publicados:

LEITE, Miriam Lifchitz Moreira. 2002. “Aspectos do Segredo”. In: FUKUI, Lia (org.). Segredos de família, p. 61-69. 1ª ed. São Paulo: Annablume; NEMGE; FAPESP.

______. 2001. “Morte e fotografia”. In: KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. (org.). Imagem e memória (ensaios em antropologia visual), p. 41-50. 1ª ed. Rio de Janeiro: Garamond.

______. 1999. “O opaco e a transparência no texto visual”. In: ECKERT, Cornélia; MONTEMOR, Patrícia (orgs.). Imagem em foco (novas perspectivas em antropologia), 105-114. 1ª ed. Porto Alegre, RS: Editora da UFRS.

______. 1999a. “Trabalho em andamento” In: KOSMINSKY, E.V. (org.). Agruras e prazeres de uma pesquisadora: ensaio sobre a sociologia de Maria Isaura Pereira de Queiroz, p. 69-76. 1ª ed. São Paulo-Marília: Unesp-Marília-Publicações; FAPESP.

______. Revista ANTHROPOLÓGICAS, ano 13, vol. 20(1+2), 2009, p.354.

______. 1999b. “Prefácio ao Diário da baronesa E.de Langsdorff (1842-1843)” in: Diário da baronesa E.de Langsdorff (1842-1843). 1ª ed. Florianópolis, SC: Editora Mulheres.

______. 1998. Maria Paes de Barros. In: MOURA, Carlos Eugênio Marcondes de. (org.). A vida cotidiana em São Paulo no século XIX. 1ª ed. São Paulo: Ed. Unesp.

______. 1998a. “Imagem paradigmática no passado e no presente”. In: SAMAIN, Etienne (org.). O fotográfico, p. 35-40. 2ª ed. São Paulo: HUCITEC; CNPq.

______. 1997. “A infância no século XIX”. In: FREITAS, Marcos Cesar de. (org.). História social da infância no Brasil, p. 19-52. 3ª ed. Bragança Paulista: USF-IFAN; Cortez Editora.

______.1997a. “Mulheres viajantes no século XIX”. In: SCHPUN, Mônica Raisa. (org.). Gênero sem fronteiras, p. 35-44. 1ª ed. Florianópolis, SC: Editora Mulheres.

 

Notas

[1] Entrevista realizada pelas antropólogas Andréa Barbosa, professora adjunta do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Paulo, Ana Lúcia Marques Camargo Ferraz, realizando pós-doutorado no Departamento de Antropologia da USP e membro do Grupo de Antropologia Visual (GRAVI/USP) e do Núcleo de Antropologia da Performance e do Drama (NAPEDRA/USP), e por Francirosy Ferreira, bolsista PRODOC no Instituto de Artes Unicamp, pesquisadora do GRAVI (Grupo de Antropologia Visual) e do NAPEDRA (Projeto Temático – Antropologia da Performance: Drama, Estética e Ritual). Publicada na revista ANTHROPOLÓGICAS, ano 13, vol. 20(1+2): 339-354 (2009).

[2] Veja lista das principais publicações da autora ao fim desta entrevista.

[3] Moreira Leite, Miriam. 1993. Retratos de Família. São Paulo: EDUSP. Prêmio Jabuti.

[4] Miriam faz referência à Tese Brancos e negros no carnaval popular paulistano – Tese de Doutorado de Olga Von Simon (FFLCH/USP, 1989).

[5] Ver Moreira Leite (1993:161).

[6] Ver Moreira Leite (1993:162).

[7] Balinese Character, a photographic analysis. New York: New York Academy of Sciences, 1942.

[8] Referência ao filme Blow up, depois daquele beijo, de Michelangelo Antonioni, Inglaterra/Itália, 1966, 114 min.

[9] O filme referido é Blade Runner, o caçador de androides, Ridley Scott, EUA, 1982, 116 min., onde num mundo habitado por homens e androides, só os primeiros tinham memória, essa encarnada pelas fotografias de família.

RACISMO/ANTIRRACISMO


Esperamos, com o conjunto de artigos e relatos desta edição, estimular reflexões e críticas que imprimam continuidade a mais um ciclo de reinterpretação da sociedade brasileira, a partir do movimento antirracista global.

A largada para esta tarefa, dada em 1922, apresentou o mestiço e o mulato como símbolos de arrefecimentos mediadores do racismo e indeléveis marcadores da excepcionalidade da raça brasileira, em oposição à ideia de mestiçagem como deficiência ungida pelo racismo científico e seu corolário, o projeto eugenista. Hoje, a agenda identitária é contrastante àquela. Neste 2021, antessala do centenário de 1922 e sua celebração da modernidade, expande-se, consistentemente, por toda porosidade social, um dilúvio de posicionamentos antirracistas a desconstruir dissimulações racializantes e a expor o arraigado e desavergonhado racismo sistêmico brasileiro.

Instalado em todas as esferas da vida social, o racismo no Brasil, desde a Conferência de Durban, em 2001, passa a solicitar inovadoras políticas institucionais, corporativas, públicas e estruturais no seu combate: no mundo corporativo, de onde saem promessas de rigorosas políticas reparadoras e não somente inclusivas; no universo da mídia, que sofre com as inúmeras críticas desde dentro da própria produção e dos elencos agentes e atores que a constituem; no campo do jornalismo, onde um permanente combate aponta na direção de um letramento racial de seus profissionais; no universo escolar, através de avançadas e permanentes desconstruções de atitudes racistas, até há bem pouco tempo naturalizadas. No campo acadêmico, assistimos à quebra da invisibilidade global das contribuições de cientistas negras e negros nas áreas duras, como matemática, física e biologia, e nas humanidades, como a sociologia, antropologia, psicologia, história, há pouco tempo exclusivamente canonizadas por imagens brancas. Ou ainda, a virada epistêmica estimulada pela massiva presença de alunos negros nos campi acadêmicos a induzir a de-colonialidade de professores (majoritariamente brancos), a reavaliação da natureza do conhecimento, no caso, incluindo as contribuições de pesquisadores africanos e asiáticos. Cabe reiterar o avassalador destaque na ficção nacional, que tem promovido uma profusão de novos autores a revitalizar as narrativas sob o modelo das escrevivências e o imaginário da espancada nação.

Assim, mesmo em face a este contexto contemporâneo diariamente ameaçado pelo autoritarismo e arrasado em suas conquistas sociais, com abundantes notícias de racismos e feminicídios, a resistência criadora se manteve. E é com esta motivação que  este dossiê se apresenta com o propósito de reforçar o combate ao racismo antinegro e a ampliação da rede de diálogos que expanda a percepção e interdição do Apartaide no Sul Global.

 

Julio Cesar de Tavares
Curador do dossiê

 

Além do dossiê temático, a Revista Z Cultural publica, nesta edição, textos que dialogam com o presente e com a temática do racismo e do antirracismo por meio da pesquisa sobre a literatura escrita e falada, as artes plásticas e a arte urbana. Outros ensaios e narrativas selecionados dialogam com o tema da Covid-19, já abordado em dossiês da revista (números 1 e 2/2020), mas que continua presente na vida de pesquisadores e leitores. Também publicamos uma entrevista com Jeferson Tenório, autor do romance O avesso da pele (2020), e, na seção “Vale a pena ler de novo”, uma conversa de 1979 com Lélia Gonzales, pioneira do feminismo negro no Brasil.

Este número da Revista Z Cultural marca o início do Laboratório de Estudos Negros criado no PACC/Letras/UFRJ e coordenado por Katia Costa-Santos e Julio Cesar de Tavares. Agradecemos ao Instituto de Pesquisa e Estudos Afro-Brasileiros pela cessão da imagem que ilustra este número, Efraín Bocabalístico: Oxossi-Xangô-Ogum, de Abdias Nascimento. Esperamos, com este número, contribuir para a construção de uma constelação crítica sobre racismo e antirracismo e sobre sua relação com a produção e a vida cultural.

Revista Z Cultural

 

A EXPERIÊNCIA NEGRA TRANSNACIONAL E A DESCOBERTA DO APARTAIDE BRASILEIRO 


Este artigo é uma reflexão sobre a colonialidade e a experiência transnacional afro-brasileira através da solidariedade à população negra na África do Sul, em sua luta contra o Apartheid – Apartaide, em português –, e a relação dessa com o crescimento do antirracismo no Brasil. O esforço da luta anti-Apartaide conduz afro-brasileiros a um processo substancial de reconhecimento de si, não somente pela cor da pele, mas como afrodescendentes, partícipes da diáspora africana, vivendo sob semelhante opressão e integrantes do movimento panafricano. Deste modo, o movimento não somente reforçou a consciência racial e a desconstrução do paradigma brasileiro de democracia racial que, desde então, tem ampliado o entendimento da prática racista no Brasil como embutida em um alto nível de comportamento dissimulado e funcionando como um tipo de Apartaide personificado. Entronizado nas mentes e conectado através das ações e comunicação entre pessoas, a colonialidade se mantém viva e mais forte nesse momento contemporâneo do que fora antes, perpetuando-se como máquina colonial em permanente repetição de gestos, imagens e atitudes que engatilham a cognição racista. Neste contexto, os meios e as tecnologias de comunicação e informação cumprem um papel significativo e paradoxal, tornando a experiência transnacional um desafio ao racismo vernáculo, transformando corpos e conhecimentos em lugares de atitudes de contestação e modelação para um novo projeto de pedagogias da civilidade.

 

 

Introdução

O presente texto foi inspirado pela 4a. Conferência do Apartheid Archives Project, ocorrida em 2014, na Universidade de Pretória, África do Sul, organizada e dirigida pelos professores de psicologia da Universidade de Witwatersrand, Norman Duncan e Garth Stevens. O Apartheid Archives Project é uma proposta colaborativa de pesquisas focada nas estórias e narrativas dos sul-africanos das camadas pobres sobre as experiências vividas por eles com o racismo durante o período do regime institucional do Apartheid (1948/1961). A premissa do projeto, criado em 2008 é, sobretudo, tornar-se um fórum dos diferentes setores marginalizados social, política e economicamente, cujas histórias de vida raramente são incorporadas à história dominante. Outro aspecto crucial a ser considerado diz respeito aos efeitos e significados das experiências da exclusão racial, não necessariamente através da gravação dos relatos para constituição de uma coleção de lamentos mas, principalmente, como um modo de promover o engajamento reflexivo e teórico sobre as implicações destas experiências de maneira que se possa pensar as suas consequências pessoais e coletivas, interrogando intelectual e politicamente o compartilhamento delas na composição do imaginário nacional na África do Sul.

Tal aspecto oferece a possibilidade de intervenção para a constituição de um arquivo de memória vívida, uma inspiração para toda a diáspora africana. O modelo de constituição de acervo com grande capacidade de articulação com a sociedade na coleta de relatos concernentes a um período de sofrimento num regime de exclusão racial com seus traumas pedagogicamente disciplinadores oferece um formato gestor que une o setor público, a sociedade civil e o mundo acadêmico, que faz do Apartheid Archives Project um case de inovação acadêmica no campo da tecnologia social com repercussões por toda a Diáspora Africana nas Américas. Desse modo, identifico a experiência do Arquivo do Apartaide como um exemplo que acadêmicos e ativistas antirracistas brasileiros poderiam promover para a institucionalização da memória sobre o racismo, no que estimularia tanto os pensamentos divergentes-desviantes como reflexões sobre políticas públicas e defesa da memória das populações atormentadas e traumatizadas cognitivamente pelo racismo.

Um projeto com o espírito do Arquivo do Apartaide representa um ato de resgate do espaço institucional no Brasil, tendo como propósito retirar a reflexão sobre o racismo da arena nebulosa onde foi colocada e trazê-la para um ambiente de luz. Num sentido próximo a esse, podemos usar técnicas de cooperação internacional que podem ser implementadas como atividades acadêmicas. Tais ações podem, também, ser combinadas com a disseminação cooperativa do conhecimento, gerando, nesse sentido, um Patrimônio da Diáspora Africana que combine a memória dos aspectos intangíveis da identidade africana transnacional com a memória material propriamente dita.

Motivado por essa agenda apresento, aqui, um conjunto de “casos históricos” por mim selecionados como relevantes na trajetória do estado brasileiro. O propósito é promover uma meditação sobre o significado das experiências contidas naqueles “casos” e, nos quais, o negro participou permanentemente – evocado ora como paciente, ora com agente, quer pela diferença que instalara (e, portanto, engendrando a exclusão), quer para realizar o seu apagamento na história. Nesta apresentação dos fatos/eventos se investigará o impacto político que permanecerá num contexto da imaginação nacional e transnacional, bem como a sua relevância em relação à memória e às experiências da população negra no Brasil.

No desdobramento de nossa análise tenciona-se demonstrar como se manifestam os elementos da ontogênese dos regimes de poder implementados pela autocracia racial e suas políticas cognitivas de dominação e colonialidade. Autocracia esta que se argumentará como assemelhada ao regime do Apartheid instalado (e derrubado) na África do Sul, como modelo exitoso de crueldade e aniquilamento. Demonstra-se que se faz presente em formato mais eficiente em terras brasileiras, pois alcança completa naturalização e incorporação no afeto e na emoção dos hábitos – habitus – cotidianos. No contrapelo a dispositivos tais, chamo a atenção para a importância dos recursos pedagógicos voltados para a civilidade contra o colonial, uma formulação da desconstrução da política engendrada pela naturalidade com que o Apartaide brasileiro silenciosamente circula pela alma popular através do entretenimento e da cordialidade.

Globalidade: a força impulsionadora do internacional

A força dos acontecimentos internacionais no impulso da política no Brasil, em especial, àquelas originadas no campo vital das populações afro-brasileiros é bastante reconhecida. Neste cenário destaca-se o caso do Apartheid sul-africano e as guerras anticoloniais na África como referências políticas e psicolinguísticas, isto porque interferem na organização do vocabulário antirracista transnacional no Brasil, que tem sido pouco notado e raramente mencionado. Esta é uma evidência de que o processo de consciência das subjetividades opressoras ocorre entre inúmeros indivíduos nas mais diferentes populações e impulsiona a disseminação da solidariedade internacional que se multiplica na naturalização de noções e conceitos que, saídos de seu universo vocabular, circulam sem qualquer referência à sua origem ou etnohistória.

No caso do Brasil, essa solidariedade tem ocorrido nos dois sentidos: primeiro, como um exercício de solidariedade humanitária internacional, particularmente contra o racismo e, segundo, como um reforço para o reconhecimento da força da presença do continente africano na cultura política brasileira. Na verdade, a literatura histórica contemporânea tem demonstrado que a África Atlântica sempre esteve presente na cultura econômica, política e cultural brasileira. E a solidariedade anti-Apartaide, junto com a solidariedade à independência dos povos africanos na luta anticolonial foi, apenas, mais um capítulo desta saga que configura o tecido da solidariedade atlântica e internacional dos povos negros no Brasil e nas mais diversas nações. Destacamos uma lista significativa de fatos que narram a presença do Brasil desde as guerras de Angola, no século XVII, até o Black Lives Matter, no século XXI. Fatos que são fios condutores de uma imensa tessitura histórica que adquire visibilidade e denota a existência de uma rede transnacional, de longa duração, em luta pela emancipação da população afrodiaspórica, que, desde então, permanece ativa até os dias presente.

O primeiro fato/evento remonta ao ano de 1648, precisamente ao dia 9 de maio, quando Salvador Correia de Sá, governador do Rio de Janeiro e leal vassalo do Rei de Portugal, reuniu em sua residência capitães de mar e de guerra, capitães de galeões e de navios da Armada para os preparativos visando um assalto a Angola. A armada, composta por uma frota de 12 navios (quatro adquiridos às suas próprias custas) e 1200 homens, dos quais 900 embarcados através de uma colaboração entre Correia de Sá e os homens mais ricos da cidade, em prol da defesa dos seus interesses (Cadornega, 1972, p. 3). Alegava o acordo que a perda de Angola para os holandeses, diante das investidas sobre o império colonial português, prejudicaria diretamente o povo do Rio de Janeiro. Como iniciativa contrária, Sá decidiu arrecadar contribuições que chegaram a 60.000 mil cruzados da época, inclusive oriundas de Ordens religiosas, em especial, a Ordem de São Bento. Com este investimento pode toda a frota deixar o Rio e rumar até Luanda e lá aportar em agosto de 1648.[1]

Com a presença militar da Armada do Rio de Janeiro em costas africanas para garantir a riqueza da burguesia colonial portuguesa, o tráfico de africanos escravizados e o comércio das Índias Orientais, podemos afirmar que a Costa Atlântica da África dependeram da presença militar e mercenária dos brasileiros recrutados pelo Governo do Rio para a derrota dos holandeses na África e o estabelecimento do comércio triangular entre a burguesia colonial do Rio de Janeiro, a Coroa portuguesa e os interesses comerciais na costa africana. Por isso, toda a costa atlântica do Brasil permaneceu sob o jugo de Portugal na segunda metade do século XVII. E, após derrota dos franceses, ingleses e, por fim, dos holandeses, o oceano Atlântico se transformou em um grande lago para a manutenção do grande mercado de escravos e transporte de mercadorias para as Américas.

Nessa aliança reconhecemos que vigorou também um modelo horizontal de solidariedade no âmbito colonial, alcançada em pleno século XVII, por meio de agentes dos poderes dominantes, exclusivamente na defesa dos objetivos da administração colonial e dos interesses particulares. Todavia, percebe-se que outras formas de cooperação foram possíveis e distintas daquelas mencionadas, e, sobretudo porque motivadas por um sentimento de solidariedade claramente anticolonial, e que constituíram as insurreições marcantes na história do Brasil pela passagem do século XVII ao XVIII. Todas, em grande parte, resultantes da ação de fluxos de forças internacionais.

O segundo caso em destaque é a Conjuração Baiana de 1798. Explosão popular com excepcional presença negra na liderança dos alfaiates da cidade de Salvador, Bahia. Nesse levante, a influência das revoltas abolicionistas negras haitianas foi fortemente relevante, entre outras influências. As revoltas haitianas resultaram, anos depois, na independência do Haiti e no desafio à França de Napoleão.

O terceiro caso a ilustrar a lista ocorreu em 1836, quando do levante dos Malês, novamente na cidade de Salvador, sob a influência dos africanos islâmicos na cidade soteropolitana. Aqui fica visível a união dos africanos muçulmanos aquecendo a luta pela abolição. Até então, Haiti e Islã haviam protagonizado a arquitetura das revoltas que emularam acontecimentos em regiões de alta densidade negra, como Salvador àquela época, com 82,5% de população negra na cidade.

O quarto caso é fruto de estudos em andamento, dirigidos pelo historiador Eduardo Silva (2020), que aponta para uma rede de alianças entre africanos continentais e diaspóricos ao longo dos séculos. Uma demonstração exemplar ocorre com a abolição da escravatura, em 1888, quando da comemoração por negros expatriados das Américas e estabelecidos no Benin e na Nigéria. Houve nesta celebração uma “grande festa” que começou no Largo do Paço (Praça XV), por volta das 15hs do dia 13 de maio, e atravessou o Atlântico, por intermédio de sinais do telégrafo, reaparecendo na Colônia Britânica de Lagos, no dia seguinte, registrada em língua yourubá como a “Jubilee Aguda”, em tradução, “a grande festa dos brasileiros”.

O quinto diz respeito ao movimento abolicionista brasileiro, marcadamente influenciado pelo movimento abolicionista dos negros nos Estados Unidos. Prova intrigante disso está na descoberta de uma rede secreta de proteção para escravos fugitivos, semelhante aos abolicionistas clandestinos. Uma rede similar a clandestina Underground Railroad dos Estados Unidos, ou seja, uma rede de indivíduos e organizações cujo objetivo principal era minar e destruir as bases operacionais do sistema escravista no Brasil (cf. Silva, 1997).

O sexto caso aparece com a formação da Frente Negra Brasileira, em setembro de 1931, com sede na Casa de Portugal, no bairro da Liberdade, em São Paulo. Esta marcante iniciativa foi incrivelmente inspirada no apoio de Marcus Garvey a toda capacidade de mobilização negra nas Américas, quando surgiram novas ondas de configuração efetiva de uma rede transnacional.

O próximo, o sétimo caso, aconteceu ao final da Segunda Guerra Mundial quando testemunhamos surgimento do Teatro Experimental Negro. Em diálogo com as lideranças do Movimento pelos Direitos Civis dos Estados Unidos, o TEN – Teatro Experimental Negro – tornou-se o coração do moderno Movimento Negro Brasileiro. Foi no contexto do TEN que ocorreu o primeiro gesto racista no Brasil de repercussão internacional. Fato este que se tornou explícito, em 1951, quando Katherine Durham, dançarina e antropóloga afro-americana, denunciou o racismo brasileiro, ao ser impedida de ingressar pela porta de hóspedes e ser forçada a entrar pela porta dos fundos do Hotel Esplanada, em São Paulo, no caso, exclusivamente reservada aos serviçais, pois naquele hotel os negros não eram aceitos como hóspedes. Esse ato específico tornou-se a primeira visualização pública e internacional do racismo no Brasil. Em resposta aos inúmeros protestos, foi declarada a primeira Lei contra o racismo: Lei Afonso Arinos.

O caso a seguir deve ser considerado o oitavo na conexão internacional Brasil-África e a sua diáspora, ao longo dos séculos. O impacto resulta da grande rede emergente a partir das alianças direta com líderes do Movimento dos Direitos Civis dos Estados Unidos, mas também com os Panteras Negras, Muçulmanos Negros, os Pan-africanistas, a luta anticolonialismo (especialmente nas colônias portuguesas) e o Movimento AntiApartaide. Essas articulações reunidas, formam uma constelação de fatores que embasaram os paradigmas do moderno Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial no Brasil MNUCDR. Tais acontecimentos auxiliam na explicação do porquê a emblemática chegada de Mandela, em 1991, tornou-se tão relevante no Brasil. O impacto desta luta no imaginário e na mentalidade da liderança afro-brasileira promoveu uma recepção histórica que nunca havia sido seriamente considerada pelo sistema de empoderamento branco no Brasil. O acontecimento ocorreu na década de 90, quando o país passou por um grande período de catarse nacional após o impeachment do presidente Color de Mello. Com o fim de uma alta inflação crônica, um tetra mundial futebolístico e o início da edificação de políticas públicas antirracistas com forte afirmação da presença do negro na formação social do Brasil.

Localidade: processos globais criam consequências locais específicas

A disseminação de semelhantes experiências globais em diferentes locais tornou as distâncias geográficas entre as localidades irrelevantes. Fato este que favorece também a circulação de ideias e subjetividades ocidentais que favorece a experimentação e disseminação de conceitos como o de direitos humanos, consumo, tecnologia da informação, música pop, ideologias nacionalistas e assim por diante. Na verdade, esse conjunto de dispositivos pode também ser descrito como parte da difusão da globalização e, desse modo, como expressão do poder do fluxo de capital internacional, da pandemia da AIDS, do tráfico de drogas, armas, mulheres e crianças, do crescimento das redes acadêmicas transnacionais e dos movimentos migratórios. Não obstante a existência de redes de longa distância ligadas ao comércio, trocas estrangeiras e conflitos políticos que datam desde os primórdios da humanidade, há que se destacar que a velocidade e o volume deste fluxo moderno de pessoas, bens e informações não encontra precedentes históricos.

E, desta maneira, passa-se do desafio emergente para o entendimento tanto da dor que emana deste fluxo de vidas num processo movente de pessoas para a ação, como da dor que expande a compreensão das especificidades da luta racial em nível local. E é num contexto como este que as lutas antirracistas globais e locais estão sempre conectadas, o que demonstra o fato de que a globalização não necessariamente implica no desaparecimento de culturas locais. Ao contrário, as duas lutam com imprevisíveis e, frequentemente, resultados muito criativos. No geral, a globalização recente removeu barreiras de região e redefiniu cultura como um processo fluído de integrações parciais ao invés de sistemas estáveis com significados demarcados. Decorre daí o termo glocalização: uma ideia proposta para ressaltar o componente local do processo de globalização.

Ao longo da história das populações negras na diáspora (Américas, Europa e Ásia), inúmeras experiências estimularam a possibilidade de unir todos os afrodescendentes ao redor do planeta. Por mais que as tradições adaptadas e reinventadas tenham sido reprimidas, apagadas ou aniquiladas em cada um daqueles continentes e, apesar das diferentes origens socioculturais marcantes entre elas, em qualquer um dos continentes nos quais foram assentadas, os africanos e seus descendentes iniciaram um processo de reinvenção e recriação da memória cultural por meio da preservação dos vínculos que fortalecessem as ritualizações de suas identidades. Aspectos mais frequentemente encontrados na música (a síncope ou ritmo forte), na dança (nos movimentos assimétricos), na culinária, na fitoterapia (conhecimento da flora e fauna tropicais), na expressão religiosa, na organização familiar e na criação de uma estética de intensidade.

E mesmo que a maioria tenha deixado o continente de modo involuntário, uma boa parte deles regressou para a África, voluntariamente. Isso ocorreu com frequência no século XIX quando inúmeros negros no Novo Mundo, em especial saídos do Brasil, das Índias Ocidentais e dos Estados Unidos, optaram por reconstruir suas vidas na pós-escravidão em localidades outras, por meio da travessia de regresso. O resultado, notadamente em regiões da Costa Oeste da África, como Benin, Nigéria e Camarões, indica a presença de afro-brasileiros com residência nas comunidades africana e que foram nominadas como Agudás (Guran, 1999) e Tabons (Schaumloeffel, 2008). O caso da Libéria é digno de citação, pois fora fundada em 1816 por filantropos norte-americanos e proclamou a sua independência em 1847, antes da Guerra Civil dos Estados Unidos. Esses territórios formam comunidades com identidades fortes e suas identidades estão centradas em suas origens fora da África, mas incluindo a identidade africana. Esta outra face do transnacionalismo é um exemplo marcante desta evocação da identidade em um ambiente de diversos valores no qual floresceram em meio a dispersão, ao exílio e ao surgimento da consciência multinacional dos afrodescendentes.

Uma visão transnacional e omnidirecional da cultura negra moderna aflui com mais intensidade em tempos de globalização. Esta transnacionalidade reúne práticas globais expressas numa operação analítica que firma conceitos como os de diáspora africana, panafricanismo e ressurreição africana. Isso conota um elevado nível de percepção da unidade existente entre os deslocamentos e as diferenças entre as experiências, no que reforça a contribuição da África negra na luta contra a opressão. Da mesma forma que partes individuais do corpo se unem formando uma única unidade, o sentimento da diáspora africana contém uma constelação de práticas individuais que, em uníssono, atribuem sentido à presença e à origem do mundo em que vivemos. O que encontramos nos escritos que imprimem mais vigor e articulação na tessitura da diáspora é uma ênfase na complementaridade das tradições reinventadas pelos africanos nas Américas com àquelas residentes no próprio continente africano.

Na América do Sul, a análise comparada dos estudos diaspóricos mostra que a dimensão globalizada da experiência ativista e da consciência política dos afrodescendentes sul-americanos se ampliou e impediu que houvesse um ocultamento dos elementos africanos. Contrariamente, estas experiências atuaram na libertação da política identitária na América Latina. O eixo principal tem sido a luta contra a violência antinegra e seu corolário, o sentimento de dor e humilhação diante da persistente negação da humanidade, cidadania e soberania para as pessoas e à população negra com um todo. Simultaneamente, cresce a relevância dos elementos identitários na diáspora e nas expressões mundiais de verossimilhança na liberação de grupos afros, em larga escala, por todo o continente. A revisão do currículo do sistema educacional no Brasil, que torna obrigatório o ensino de História e Cultura da Diáspora Africana, criou um contagioso perigo para a supremacia epistêmica eurocêntrica em toda a América Latina. Este ‘novo currículo’ está quebrando com aquele Apartaide ao estilo brasileiro, para o qual não haveria espaço que permitisse o conhecimento da África, em especial, em um país com praticamente 54% de afrodescendentes na população de 210 milhões. Na América do Sul, podemos destacar cerca de 150 milhões de residentes herdeiros diretos da cultura africana, o que representa 30% da população de todo o continente, principalmente no Brasil, na Colômbia e na Venezuela. Por séculos mantidas sob condições de exclusão e dominação por meio de políticas de limpeza étnica (embora na maioria dos casos não claramente explícitas), essas populações sobreviveram e por causa das condições impostas, ocupam os índices econômicos e sociais em níveis mais baixos e sofrem com a indignidade, negação cultural, injustiças cognitivas e desrespeito, decorrentes da privação de direitos.

A banalidade com que a elite brasileira trata as situações do mundo da vida e a vida como um todo no dia a dia da nação, situações que, frequentemente, circundadas por estereótipos, discriminações, feminicídios, supremacismo, genocídio e conluio colonial, tem provocado como decorrência uma extraordinária naturalização da violência e da perversidade, se enquadrando na radical ideia de colonialidade do poder (Quijano, 2000). Expressão cunhada por Anibal Quijano, a colonialidade corresponde a permanência dos dispositivos e das pedagogias da crueldade que organizam as estruturas de poder e dos jogos hegemônicos sobreviventes e herdados pelo colonialismo, expandido por todo o tecido social das Américas. Persistente ao atravessar todas as instituições por meio da corrupção, do autoritarismo, do controle do trabalho, da sexualidade, da racialização e de um genocídio ampliado bem como pela permanente invenção e exclusão do outro – do diferente, do não-branco – como iminente inimigo. Constata-se, assim, que, toda esta população potencialmente inimiga encontra-se submetida a formas de vida derivadas da colonialidade, “apartadas” e abandonadas à sua própria sorte, sem qualquer efetiva e sistemática responsabilidade do Estado.

Singularidade: ontogênese do branqueamento

O que é único no caso do Brasil e, em certa medida, característico do mundo dos falantes de língua latina é essa qualidade específica, precisamente localizada na linguagem, que promulga a classificação racial por um processo peculiar de dissimulação ao multiplicar as nominações da racialização. Ao multiplicar a condição do não-branco, criam-se também roteiros sociais que estabelecem uma conexão significativa entre o discurso proferido e a construção de supostos mundos, que se imaginam diferentes, ao redor do eixo racial branco que é, então, invisibilizado. Mas estes universos criados são anômalos porque são fakes. Fala-se em mulatos, mestiços, caboclo, curiboca, moreno, marrom, mas não se fala de branco nem de negro como se fossem categorizações marginais e se destaca o que não é branco como se fossem posições intermediárias ou, então, posições que ainda não chegaram lá (branco), mas esperançadas pelas expectativas de melhorias do que deixou de ser (negro). Para compreendermos o que mencionamos, basta olharmos para a forma como os brasileiros utilizam denominações como: mestiçagem, miscigenação, mulato, trigueiro (pardo) e jambo. Notamos que tais palavras adicionam um ar de apelo imaginário na busca do desejo de ser visto como especial pelo que a elas se adequam. Assim, semanticamente, essas categorias nos remetem à ilusão, alimentada por não-brancos, de que quanto mais distante se está da “aparência negra, ou da dos índios, menos negro ou índio nos tornamos”, o que estabelece a salvação da condição de se alcançar a posição de ser reconhecido como “um quase-branco, branco”. Este é o objetivo final da miscigenação: atestar a possibilidade da proximidade branca e o distanciamento negro.

Como em Fanon (2008, p. 34), todo povo colonizado (em especial o negro antilhano) deve tomar posição diante da linguagem de uma nação civilizadora. Quanto mais assimilar os valores culturais da metrópole, mais o colonizado escapará de sua selva. Quanto mais ele rejeitar sua negridão, seu mato, mais branco será.  Esse fenômeno comum que dá formas ao mundo percebido imprime nele uma projeção imaginativa da presença e das experiências corporais, percebidas e enfatizadas por antropólogos, linguistas e psicólogos sociais, como uma das funções cruciais da linguagem que é aproximação dos humanos da realidade que ela para ele(a)s é capaz de constituir. Nela muitas metáforas relacionadas ao corpo das pessoas são extraídas e ordinariamente utilizadas. Tais categorizações sociais imprimidas numa cadeia de palavras-chave operam com as estruturas das experiências físicas e simultaneamente com a das operações mentais (Johnson, 1987).

Tendo essa ideia em mente, a miscigenação tornou-se uma metáfora crucial e um acessório indispensável na alegoria da reconstrução da identidade nacional no Brasil do século 20. A ideia emerge como um dispositivo para a dissolução da tensão entre a supremacia branca e a repressão racial. Ao mesmo tempo, aparece como uma forma mais liberal de lidar com o problema gerado pelas afinidades eletivas promovidas por um oceano de estereótipos relacionados aos afrodescendentes.

É interessante refletir sobre o fundamento cultural da metáfora. Antropólogos, linguistas e psicólogos sociais acreditam que a presença da metáfora nas operações de linguagem reflete paralelamente a manifestação das estruturas mentais e das ações de certos modelos culturais. Nesse sentido, as metáforas se manifestam como “projetos culturais compartilhados subjetivamente que funcionam na intenção de evocar, interpretar experiências e orientar ações e práticas em vários domínios, incluindo eventos, instituições e objetos mentais e físicos” (Gibbs, 1999). Os modelos culturais podem ser entendidos, assim, como representações da cosmovisão de uma sociedade, refletindo suas crenças, seus atos, suas formas de falar sobre o mundo e sobre as suas experiências.

Visto pelo ângulo da linguagem, a ideia da miscigenação, alcança, então, a possibilidade de ser percebida como fruto de uma trama psicocultural de apurada presença, bastante comum no ambiente comunicativo de origem latina e cujo produto torna-se uma peça indispensável no quebra-cabeça do jogo da linguagem racial no âmbito da língua latina, em que o produto (a ideia evocada pela enunciação) é uma condição étnica de soma zero, fruto da reprodução da estrutura pós-colonial do século XX.

Reconhecemos que as culturas em ambientes urbanos funcionam interrelacionadas. Circulam em torno das bordas e dos limites das suas referências últimas, ao mesmo tempo em que dialogam com outros sistemas culturais, reunindo-se a eles em autorreferência. É impossível contestar a existência de conexão intercultural, fusão e absorção em tal ambiente. No entanto, a alardeada atitude de mistura que a imaginação nacional pressupõe e reproduz quando meditamos sobre o mestiço ocorre, por um lado, sem alusão e reconhecimento dessas diferenças étnico-culturais que a compõem. Tampouco as implicações raciais que a nominação da mistura permanentemente indica. Por outro lado, não há incorporação ou validação dos saberes que constituem o sistema cultural do outro, porém sob uma espécie de exclusão cordial e disfarçada. Tal padrão de negação do outro sistematicamente nega o ato de negar, o que está sendo negado e o porquê foi negado. Funciona como habitus[2] tipicamente forjado pela expressão trágica do trauma racial no Brasil, bem como em toda a América Latina. Ora, no Brasil, esse jeito muito local que permite contornar as barreiras culturais para que se siga com a discriminação sem confronto foi batizado de racismo à brasileira ou racismo cordial. O racismo cordial engendra e permeia todas as esferas da sociedade pública, civil e política que, de maneira um tanto conspícua e às vezes como iniciativas puramente involuntárias, pode ser interpretado como uma ferramenta absorvida e reproduzida de forma não verbal. Embora muitas vezes seja considerada uma habilidade cognitiva negativa que apenas compensa as desigualdades e, portanto, não traz nada mais para as pessoas (nem esperança espiritual, nem ganhos materiais); sendo, tão somente, uma habilidade técnica para resultados momentâneos (Tavares, 1998).

A partir dessa irradiação de metáforas sobre o mestiço e seu corolário — o racismo de apagamento — a cultura, a sociedade e o nacionalismo brasileiro estimulam que surja, como efeito, a ideia de um “homem cordial” cunhado por Sergio Buarque de Holanda (1963). A esta chave identitária, “homem cordial”, simultaneamente crítica e fundamental para uma ideologia da nação, une-se a rede de categorias e expressões compostas pelo marco da excepcionalidade de uma raça brasileira. Construção cultural que organiza o jogo discursivo responsável pela irradiação de uma gama de tropos que remetem à modernidade e à identidade nacional. Incluem-se ideias como “Antropofagia” (canibalismo cultural), a mais importante desenvolvida ao enfatizar as ideias modernistas do poeta Oswald de Andrade que definiu o conceito dominante e radical do “Movimento Antropofágico” no “Manifesto Antropofágico”,[3] em 1928. A antropofagia desempenhou, na sociedade brasileira, um papel metafórico análogo à ideia de “Melting Pot” nos Estados Unidos. Porém, diferentemente do caso dos Estados Unidos, a Antropofagia Brasileira implicou na incorporação de uma atitude semelhante à da colonização portuguesa, sustentando a própria Antropofagia cultural. Simultaneamente, enquanto era sinônimo de multiculturalismo e metáfora para a canibalização, a antropofagia sombreava e corporificava a cultura afro-brasileira sem reconhecer as fontes (culturais) negras e a cidadania. Ou seja, a antropofagia ajudou a incorporar críticas literárias de vanguarda, mas excluiu a afirmação política de qualquer narrativa ética antiocidental – anti-branca e anti-europeia – que marcasse definitivamente o início do projeto anticolonial nos anos dezenove, vinte e trinta. Esse realinhamento indica o que faltava (e falta ainda) ao Brasil desde aquele momento: o processo de descolonização cultural e cognitiva.

Na esteira das consequências da nova estratégia nacional de modernização na regulação dos regimes de poder, outras ideias foram as de um “ bom senhor de escravos” elaboradas por Gilberto Freyre (1964). Todos esses tropos configuram um arranjo muito criativo, agem como palavras-chave com o propósito de apoiar categorias como “mestiçagem”, “miscigenação” e, sobretudo, “cultura do povo”, fortes paradigmas gestados na década de 1950.

Tendo recebido 4 milhões de africanos que foram escravizados durante quatro séculos, o Brasil hoje tem a segunda maior população de negros do mundo e a maior população de negros da diáspora africana. Isso foi confirmado no último censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), que registrou que 51% dos 200 milhões de habitantes do país se declararam pardos ou negros, para um total de 90 milhões indivíduos auto identificados como afrodescendentes.[4] Provenientes de várias regiões e nações da costa Central e Oriental de África (Bongo, Benguela e Angola), da Costa da Mina (Ajuda) e de Moçambique, Cacheu e Cabo Verde, os africanos que desembarcaram nas Américas semearam a diversidade, a imensidão e o vigor da cultura africana na diáspora (Karash, 1987).

Diante do predomínio da população negra, a política do Império brasileiro, no século XIX, desenvolveu disposições para conter o crescimento populacional de mulatos, crioulos e africanos. Além de ignorar a presença dos afrodescendentes como parte da política genocida, o estímulo à imigração estrangeira, aliado ao ideário da miscigenação, foram as alternativas daquele período tomadas pela governança para o país ser invadido pela maioria negra, os iminentes “negros terror”. Todas essas ações realizadas constituíram o início da doutrina brasileira de “embranquecimento” da população, que levou à chegada de 2,7 milhões de europeus (portugueses, espanhóis, italianos e alemães) aos portos brasileiros de 1884 a 1913.

Após a implantação da República, em 1889, os mecanismos institucionalizados de exclusão não paravam de aumentar; tampouco a população afrodescendente e a disseminação das manifestações culturais a ela vinculadas. O Brasil se tornou o grande repositório da experiência da diáspora africana nas Américas, embora desterritorializado e vivendo como um elenco social sob a sociedade capitalista.

Ontogênese dos Regimes de Poder: Apartaide e colonialidade

A experiência brasileira com a abolição da escravatura demonstra, em primeiro lugar, que a abolição não trouxe liberdade mental ao povo emancipado. Ao contrário, preservou as estruturas sutis instituídas pelo colonialismo e propagadas num modus vivendi do cotidiano nacional brasileiro. Se por um lado, é fato que a independência política não garante autonomia do pensamento, por outro, o pensamento autônomo é fruto da mentalidade moderna do humanismo ocidental, com a sua ideia de homem universal modelado a partir do sujeito-colonizador e centrado na noção de humanidade distante das ex-colônias.

Com essas ideias o design da sociedade brasileira ganha assentamento no tripé formado na virada do século XIX/XX, quando da articulação da medicina, engenharia e direito como linhas de força na configuração do saber e poderes. Todavia, ao considerarmos a presença da mídia, vê-se que ela funciona como um dispositivo de transmissão na cadeia dos interesses dos proprietários e gestores dos sistemas de TICs, atuando como instâncias de mediação e veiculação dos interesses dos demais dispositivos e das suas próprias estratégias. É nesse sentido que a mídia, pela intensidade dos fluxos de poder contemporâneos, adiciona àquele cluster de dispositivos, não podendo ser vista exclusivamente para entretenimento, informação e promoção das catarses coletivas. A máquina midiática passa a compor a quarta peça do aparato. Ressalte-se que seus dispositivos incluem o poder do sistema de visualização e a blindagem cognitiva como forma de filtragem das materialidades críticas ao sistema.

Destes quatro “pilares” emergem os fundamentos da agenda educacional e, portanto, dos agentes da reprodução da cultura colonial na sociedade brasileira. Por intermédio desse grande aparato – medicina, engenharia, direito e a veiculação midiática (inicialmente através do rádio e, mais contemporaneamente, pelas tecnologias visuais: cinema, televisão, vídeo, internet) – são difundidas reificações pelos mitos integrados à coletividade e pela difusão de um pensamento social impregnado pela nostalgia colonial com pouco ou nenhum espaço para a crítica à natureza destas referidas formulações, quer às políticas da esquerda, quer à direita. Embutido nele existe o sistema de controle dos atritos étnico-raciais por meio de um jogo contratual, virtualmente instalado como representação apolítica de pessoas de cor ou não brancos. Como, então, garantir a emissão referências de subjetividades a promover a ilusão da igualdade e da autoconfiança dos indivíduos, se as mesmas referências morais que atribuem nossos direitos, saberes e liberdades na sociedade civil são criadas “para” e “por” “pessoas sem cor”, ou seja, pelos brancos? Este é o mecanismo crucial da colonialidade do poder (Quijano, 2003) que consiste em manter a máquina colonial funcionando no campo da produção de subjetividades e com as engrenagens cognitivas de outrora.

Nessa discussão, a tecnologia de comunicação obviamente tem uma agência relevante ao instalar a ideologia da visualização. Encontramo-nos com processos interativos e relacionais estruturados pela tecnologia da comunicação e promovidos por meio da ação de grupos étnicos, que, nesse contexto, conduz a relação entre mídia e representação para a propagação de estereótipos com surpreendente resultado das fake News. Um dos aspectos mais extraordinários a emergir nesse contexto de reprodução dessa ideologia é a estratégia de invisibilização, artifício dos mais utilizados no jogo de poder em qualquer cultura. Essa estratégia faz uso de mecanismos para apagar a presença visível, memória e representação dos sujeitos. Trata-se do processo de geração de indiferença para com aqueles considerados socialmente indesejáveis. Os indesejáveis geralmente se concentram econômica e culturalmente fora do contrato racial. A ideia de um contrato racial é uma chave analítica desenvolvida por Charles Mills (1997), ao reconhecer os atos de fala presentes nas normas morais e físicas produzidas pela mídia e, portanto, responsável pela estrutura de sentido, pelos condutores de comunicação, pelos geradores de linguagem e de imagens que mascaram a realidade. Sob estas condições, as imagens midiáticas tornam-se ferramentas de inclusão/exclusão, tanto quanto o são a estigmatização de grupos étnico-raciais não representados na mídia.

Letramento Racial e Nova política cognitiva

Para a reversão deste processo urge a instalação de uma política de letramento racial que restitua a crítica e a capacidade analítica da audiência e dos telespectadores por intermédio de uma engenharia da des-invisibilização (Tavares, 2010) sistêmica e de des-blindagens do processo cognitivo. Tal engenharia deve ser considerada uma ferramenta cognitiva contra o modo protocolar de se existir em sociedade chancelado pelo contrato racial. Sua origem remonta à memória racista, patrimonial, autoritária e senhorial de escravos presente na mentalidade brasileira que nos condena a perceber o mundo de modo banal e regulado por formas de vida informadas por supremacistas brancos (Buck-Morss, 1993).

Com os argumentos até aqui apresentados verificamos quão tímida é a mídia na sua diversidade, fato que é confirmado pela obrigatoriedade de programações e produções inclusivas de etnias negras como exigência estabelecida pela Conferência de Durban, em 2001. Foi de Durban que saiu o impulso para o fortalecimento da luta antirracista brasileira quando da proposta de políticas de compensatórias por meio de práticas de ação afirmativa. Essas práticas aceleraram a desconstrução do atual sistema racial, especialmente com a promulgação da Lei brasileira nº 10.639, de 2003, que instituiu a política de sistema de cotas para cargos públicos federais, estaduais e municipais, especialmente para os afrodescendentes.

Ao atacar diretamente a mídia e o sistema universitário, em sua conivência velada com o contrato racial, as políticas de ação afirmativa redimensionaram e redirecionaram as discussões internas nas instituições e nas mentes do Brasil. Se pensarmos na verdadeira influência social da mídia – como um veículo responsável por narrar a forma como a nação estabelece e projeta significados – não podemos isentá-la de escrutínio nem de questionamento mais profundo, pois entenda-se a cultura midiática como um território imaginário e pervasivo (especialmente por meio do sistema de transmissão de televisão), desempenhando um papel poderoso no ofício de representação do trabalho[5] e consolidando, assim, os mecanismo de naturalização (pela ausência e/ou subordinação da imagem do negro) da segregação social e a forma singular de Apartaide instalado no Brasil e no Sul Global. Um ataque ao vocabulário midiático poderia ser dirigido a duas demandas: (1) seria atacar a mentalidade do poder, segundo Mignolo (2003), o colonialismo cognitivo. Isso resultaria na redução das formas injustiças de representação da presença dos sujeitos, fato inerente à percepção da cultura do outro, quase sempre apagado em sua diversidade, práticas e saberes. Uma vez neutralizada e relativizada essa injustiça deslocando-se este modo de ver o outro, o profissional da comunicação deve usar uma linguagem que reforce e reconheça a diversidade; (2) construir um novo ambiente de comunicação e um sistema de retratação da realidade que promovesse a autoconfiança, as conquistas do diferente, suas contribuições para a positividade do estado de coisas vivido e o respeito próprio de modo a neutralizar o Apartaide visual, isto é, a segregação perpétua na forma de visualizar o mundo e a disseminação de estereótipos.

Dito isso, fica mais precisa a consideração do racismo como um sistema social. Não se trata de um ato isolado e individual de um indivíduo execrar o outro pela cor da pele, que é a forma mais generalidade e mais mundana de se classificar o racismo. Mas, sobretudo, considera que o fato de excluir um outro por um indivíduo que se crê em posição de supremacia é fruto da ação daquele sistema social engendrado em um determinado corpo representante dos privilégios dos que gozam do controle dos recursos das mais distintas estruturas do poder humano (econômicos, emocionais, intelectuais, políticos, institucionais etc.) impondo uma forma de organizar a vida das pessoas, a política, o espaço territorial, a cultura, o imaginário. É uma forma de ver e de viver, amparada por práticas excludentes, cotidianas e mundanas, geradora de benefícios e oportunidades para quem ela favorece. O racismo se encontra intensamente enraizado e banalizado em sua prática ao longo dos séculos. O uso da linguagem excludente em um gesto puramente natural se transsubstancializou-se na comunicação cotidiana e se consolidou como uma forma de vida. É particularmente verdadeiro no que tange à maioria da população preta e parda (negra) no Brasil, que o racismo está diretamente ligado aos efeitos da escravidão e do colonialismo. Sendo que, no Brasil contemporâneo, o desenvolvimento de uma crítica social consistente deve possuir processos antirracistas que considerem como o racismo se manifesta, em todas as suas variáveis e versões.

A mídia, principalmente em sua componente audiovisual, jamais escapou desse processo (Sodré, 1999). É por isso que pode ser convertida no oposto e, em seguida, usada como um dispositivo para criar uma mentalidade cívica e profissional, voltada para a justiça social, humanismo antirracista e inclusão (Tavares e Freitas, 2003). Por sua relevância, a mídia eletrônica, quando utilizada como arma antirracista, pode quebrar a espiral de reprodução da estrutura de injustiça social presente nas visões estereotípicas de mundo, classificações, hierarquias e conceitos de realidade que não promovam o julgamento positivo ou a avaliação. A atuação do profissional no campo da mídia, do educador e do crítico cultural nesse quadro deve ser ampla, pois a mídia eletrônica se infiltra seu conteúdo na consciência coletiva. Por outro lado, também é capaz de gerar alianças extremamente significativas junto aos agentes capazes de produzir novas linguagens e meios de representação.

A principal tarefa desses críticos é a do letramento e a do desmonte das blindagens cognitivas que produzem e reproduzem os estereótipos. Entendo que blindagens são efeitos de um processo secular de camuflagem e dissimulação dos conflitos e injustiças mediante uso de metáforas, metonímias e atos de fala. As blindagens promovem mecanismos de linguagem e reproduzem os bloqueadores que cegam e apagam da memória, do campo visual e da experiência como função de um processo de reconhecimento e/ou afirmação que configuram as blindagens cognitivas. Esse fato linguístico é uma manifestação atualizada de denegação no campo do gesto social e da corporeidade. Apontado inicialmente por Freud em “Denial” (Die Verneinung), em 1925 e entendido em psicanálise[6] como o processo pelo qual um indivíduo, mesmo gerando seus próprios desejos, pensamentos e sentimentos, até aqui reprimidos, continua a se defender renunciando ao que lhe pertence, a denegação alude a recusa em reconhecer o que já é um fato estabelecido no mundo exterior.

Um bom exemplo do cotidiano brasileiro pode ser identificado no conceito estético da música popular. Deste ponto de vista opositivo e nacionalista, os estrangeirismos desempenham o papel de dominação cultural por forças externas quando do uso de palavras inglesas para designar um determinado gênero musical: “Black music”, por exemplo. É importante destacar que, neste específico caso, no Brasil, o uso daquele termo inglês que designa um determinado gênero musical cumpre um papel amenizador, e por isso suportável esteticamente no enfrentamento cognitivo da independência étnica e racial. O uso da expressão em inglês funciona como uma espécie de escudo cognitivo que expressa a recusa em enunciar o termo apropriado em português, “música negra”, que não soaria bem e implicaria num ato de fala que redirecionaria a atitude e o comportamento do sujeito, funcionando como uma atividade cognitiva marcadora de uma identidade interditada. Assim, a expressão em inglês “Black music” soa exótica, mas não tão forte como se fosse dita em português: “música negra” que, conceitualmente evoca um campo de sentido bem distinto. Trata-se de uma escolha explícita em não usar uma linguagem que aluda e promova a presença e a consciência da diversidade racial e da subalternidade. Trata-se de um preconceito étnico e racial no próprio ato de linguagem que como um escudo promove a negação pelo impedimento da vocalização daquilo que pode se constituir em obstáculos ontológicos à identificação e à análise da cultura e/ou ideologia racial brasileira como elementos obstrutores de uma ideologia de nação.

O Apartaide incorporado

O impacto transnacional da luta contra o Apartheid se manifestou na cultura política antirracista implementada no Brasil. E foi sentida desde as guerras anticoloniais pela independência dos países africanos do ultramar português, como nas campanhas de solidariedade à luta contra o Apartheid sul africano, ao final dos anos 70 e início dos anos 80, acompanhadas por uma forte pedagogia política conduzida pelos ativistas dos direitos humanos e do antirracismo.

Durante os anos da ditadura militar no Brasil, a história da África do Sul e da África como um todo era totalmente desconhecida. A partir da compreensão de como funcionava o racismo na África do Sul, com fortes apoios judiciais e institucionais, inicia-se um incipiente exercício de comparação do Apartaide com os estatutos e protocolos do racismo no Brasil. O fato de não haver uma legislação óbvia ou claramente racista (a constituição brasileira nega e condena o racismo), ao mesmo tempo em que os indícios da existência de racismo se avolumavam, verificou-se o quanto existia de incorporação e submissão de nossas vidas a um modo sistêmico de racismo que se estabelecera virtualmente, porém ancorado profundamente em nossas experiências reais.

Tal exercício de autorreflexão, exclusivamente elaborado por intelectuais orgânicos à luta antirracista, reforça a tese de que a luta contra o Apartaide proveu o surgimento de uma perspectiva comparada do Apartaide da África do Sul com o do caso brasileiro. Como consequência deste estímulo à reflexão focada na complexidade da experiência racial brasileira, amplia-se a percepção crítica sobre a formação racial no Brasil. Antes havia uma reflexão sobre o sistema racial dos Estados Unidos, mas, naquele momento, a África do Sul fornecia um novo panorama de referência. Os mais argutos críticos do racismo fortaleceram a percepção de que haveríamos que lidar com a formação de um campo de análise para compreender o Brasil no que, hoje, poderia ser denominando de “Apartaide incorporado”, significando o mesmo que Apartaide naturalizado.

O encobrimento e a negação do racismo no cotidiano brasileiro expressam as normalizações das estruturas vivas desse processo manifesto em gestos, palavras e atos de linguagem. Enquanto os brasileiros ainda se encontram em processo de compilação de material significativo sobre essa nova percepção expressada em termos teóricos, já se encontra disponível na memória antirracista um inegável material empírico no que diz respeito ao fenômeno. A experiência de luta e solidariedade antirracista transnacional abasteceu nosso idioma com o conceito do Apartaide e toda a irradiação de sentidos dele proveniente, ampliando, assim, a mentalidade e a percepção crítica brasileira ao racismo. O uso deste conceito como ferramenta na operação metafórica aproximou as forças e agentes dominantes do trauma e do sofrimento no psiquismo dos brasileiros que se inicia nos Comitês de Luta Contra o Apartaide, criados por militantes do Movimento Negro nos anos setenta/oitenta. Naquele período, a demonstração de solidariedade e o compartilhamento de conhecimentos e ações sobre o racismo, em várias outras partes do mundo, contribuíram para o avanço do estado de consciência panafricana, imprimindo energia no ativismo negro brasileiro e, desde então, destacando a importância da luta global e das ilusões das fronteiras nacionais nas narrativas antirracistas.

O registro efetivo desta elaboração a partir de um campo de militância, advindo das vozes e letras das lideranças mais destacadas naquela conjuntura de transição política no Brasil: Abdias do Nascimento (2017) e Lélia Gonzalez[7]. A associação do racismo brasileiro ao discurso teatral da democracia racial como um tipo disfarçado de Apartaide torna-se um extraordinário marcador da articulação internacional da supremacia branca (absolutamente transparente nos dias atuais com as articulações da nova ultradireita) presente nos inúmeros discursos de intervenção de Lélia, em especial, a designação de racismo por segregação denegada (na América Latina, devido ao modus operandi da colonização ibérica) e o racismo por segregação explícita (conforme a tradição africânder, ou seja, anglo-germânica-flamenga). Cabe destacar que minhas conversas com Lélia Gonzalez, Abdias do Nascimento e minha militância na formação do MNUCDR, àquele período foram, definitivamente, intrigantes para que se constituíssem em mim, paradigmas centrais sobre esta reflexão dirigida ao Apartheid brasileiro. Efetivamente, trata-se de mais uma tentativa para a implementação de uma pedagogia de-colonial capaz de aprofundar e ampliar a consciência racial, social e de gênero e, por conseguinte, o olhar crítico sobre o futuro e o projeto de Brasil.

Em defesa da Pedagogia Cívica – estímulo para um pensar crítico

Com a globalização, apesar da enorme riqueza para poucos e a ampliação da miséria para muitos, o acesso à informação aumentou. Sob este ponto de vista, a globalização possui um lado positivo. Nele, expõe-se a riqueza cultural das populações e o sofrimento, o sacrifício e o apagamento de memórias em consequência da perversidade da supremacia branca ocidental. Porém, apesar do conteúdo de todos esses investimentos, poucos formam os resultados conseguidos para reforçar projetos que promovam a autoestima das minorias e dos desvalorizados social, econômica e historicamente. Os movimentos populares em grande parte, parecem tomar este rumo, superando obstáculos de forma autônoma e por meio de ações civis. Temos assistido durante a pandemia uma ampla mobilização autossustentada, ancorada em iniciativas comunitárias, não governamentais, como a CUFA, o Gerando Falcões, a Frente Nacional Antirracista, promovendo um fenômeno participativo que não pode ser ignorado e cujo enfrentamento de baixo para cima tem garantido, com relativo sucesso, a redução do sofrimento nas populações brasileiras fragilizadas. E, em articulação nacional promovem algo de velho e de novo: a prática do/no concreto erguendo uma frente nacional, o movimento Panela Cheia Salva contra a fome. Antes política pública, hoje articulação de base não-governamental, até mesmo a mobilização local conduzida independentemente por grupos religiosos, como o Terreiro de Candomblé Ketu Ilê Omo Nidê, em Jacarepaguá, com o Projeto Ajeum, que distribui quentinhas para população sem-teto, sob a liderança da Yalorixá Nádia de Omulu.

Tal mentalidade exige um intenso trabalho no campo da desconstrução de traumas, estereótipos, repressões e estigmas e a reconstrução da capacidade de compreensão e escuta do diferente. A cultura escolar e as propostas educacionais em vigor sob condição histórica pós-colonial, por mais incerto que seja o futuro, é agora o momento oportuno para repensar a superposição de múltiplos aparatos eivados pela colonialidade: o poder, o saber e o ser da existência humana. Reflexão que deve resultar em ação mental que revele o respeito ao Outro, entendido como pessoa e cidadão e o reconhecimento das formas de vida em condições de subalternidade e exclusão como potentes formas de existência e imaginação.

Uma ruptura na retórica colonial “ultramarina” implica no desmonte da própria identidade do luso-tropicalismo e de sua herança “cordial”: a prática prevalecente de enganosas interações sociais que reinam por toda extinta zona de dominação portuguesa que embora coexista sob condição pós-colonial, ainda se encontra carente de uma pedagogia plural e intercultural. Daí, a urgência da tarefa de atingir a meta de libertação cívica e desconstrução dessas algemas para todos os indivíduos. Este é um momento para a Pedagogia Cívica estimular a civilidade baseada na transmissão de conhecimentos originários em várias fontes. O alvo desta pedagogia é a promoção dos direitos e da consciência dos cidadãos através do pensamento crítico e de atitudes que revelem e ultrapassem estigmas, estereótipos e discriminações de qualquer ordem.

A pedagogia cívica (Tavares, 2009) deve ser entendida como um exercício de promoção coletiva da transmissão de saberes de uma cultura a partir de suas noções mais básicas de vida em comum. O objetivo de um projeto pedagógico cívico é estabelecer os fundamentos, os valores e os princípios que irão convencer a nação de que o Brasil deve pertencer a todos os brasileiros e ser reconstruído sobre a base de um sistema educacional baseado no comportamento e no intercâmbio de todas as práticas e visões de mundo que reforcem o participativo, a dádiva e a cooperação. Esse deve ser o objetivo de um plano político-pedagógico para além da escola e que amplie o letramento crítico por todo o panorama territorial da nação. Tão somente interferindo de forma radical no regime de visualidades e atitudes contribuiremos para o fortalecimento da cidadania e dos direitos básicos das pessoas, reconhecendo o conhecimento e as culturas da esmagadora maioria dos que são desprezados como povo. E, sobretudo, a prática do mutirão, o contrário de tudo que encerra o entendimento de civilidade à essa preservação narcísica da vigente prática monocultural, focada e destacada como única relevância de conhecimento, estética, comportamento e pensamento. Como consequência reproduz, indefinidamente, a exclusão da linguagem e dos sentimentos que sobrevivem nas tradições subnacionais, étnica e raciais. É esta visão supremacista de civilidade que reproduz linguagens e sentimentos baseados na visão sempre restaurada de uma elite retrógrada, conservadora, autoritária e reacionária que sustenta o paroxismo do Apartaide brasileiro.


* Julio Cesar de Tavares é professor do Departamento de Antropologia da UFF e coordenador do Laboratório de Etnografia e Estudos e Comunicação, Cultura e Cognição (LEECCC/PPGA/UFF) e do Laboratório de Estudos Negros (LEN/PACC/Letras/UFRJ).

 

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Notas

[1] Archive of Colonial History, # 641, Box 2, Rio de Janeiro, e Cadornega (1972, p. 3).

[2] Significando o que Bourdieu (1977, p. 72) designa como habitus, isto é, ato que funciona como um “sistema de disposições duráveis”. Nesse modelo, os gestos, ações ou as categorias da fala definem (e são definidas) por habitus, estilo e ritmos de ser. Eles podem se tornar marcadores étnicos, raciais, culturais e nacionais de autorreferencialização na/da vida cotidiana das pessoas. Como componente do modelo cultural, os habitus modelam sistemas de comunicação individual e coletivos produzindo enquadramentos sociais.

[3] “Oswald semiotiza esta narração para mostrar a cultura dos Caetés absorvendo a cultura europeia e, portanto, elaborando as bases de uma ontologia primitiva da invenção poética de Oswald de Andrade bem como a base do aparato de conceitualização radical do movimento modernista no Brasil” (Tavares, 1998, p. 169).

[4] Para maiores detalhes ver IBGE, 2013.

[5] Cf. Hall, 1997a e 1997b. Em ambos os trabalhos, Hall desenvolve uma extensa crítica ao conceito tradicional de representação e o leva a algo mais próximo da noção de “ideologia” em Marx e “imaginário” em Édouard Glissant.

[6] Eu me refiro a Freud (2011). Ver também Laplanche e J. B. Pontalis (1988).

[7] Entrevista de Lélia a Patrulhas ideológicas (Holanda e Pereira, 1980), republicada nesta edição da Revista Z Cultural. Ver também Gonzales, 2020.

CORPO, AFETO, RASURA: APROPRIAÇÕES DA ADVERSIDADE


(prólogo)

O convite do Museu de Arte do Rio para A costura da memória, retrospectiva de Rosana Paulino com 140 trabalhos recolhidos ao longo de 25 anos, ofereceu ao público uma “conversa de galeria” com a artista e os curadores da Mostra, Valéria Pícolly e Pedro Nery, na sua abertura.

As pessoas presentes na tarde de 13 de abril de 2019 mostravam duas linhagens de apreço: estavam no MAR galeristas, curadores, críticos, professores e pesquisadores das artes que atuam no Rio de Janeiro, atestando a importância da artista no campo, em todos os sentidos privilegiado, das artes visuais; a expressiva maioria do público interessado na conversa, entretanto, era composta por jovens negros, principalmente por mulheres negras, atraídas pela oportunidade ainda rara de compartilhar, no espaço nobre de um museu, um acontecimento que indubitavelmente lhes diz respeito: o trabalho pessoal e coletivo da “costura da memória” – um desafio cotidiano para a população negra brasileira.

Com muito mais pessoas do que cadeiras disponíveis no vão livre do Museu, mais de dois terços dos presentes se acomodou com naturalidade pelo chão e ouviu atentamente a exposição gentil e didática da artista. Rosana Paulino é uma mulher de voz pausada, falou de si e de sua arte como indissociável de um exílio estético, da experiência de crescer no exterior dos cânones da beleza que se aprecia e de estudar, ao longo de anos, um arquivo de imagens no qual não se enxergava; destacou seu interesse pela “manualidade” (como diz), que aprendeu na família de mulheres, do fascínio, desde criança, pela caixa com os retratos da família e, mais longamente, explicou como “a fotografia negativou todo um grupo social” e organizou o seu trabalho em três “linhas de pesquisa”: o que é ser mulher, o que é ser uma mulher negra e, mais recentemente, a vida, como a biologia a constituiu. Foi longamente aplaudida.

Aberta a palavra ao público, muitas mãos negras se levantaram imediatamente, mas a palavra foi concedida a um senhor branco bem vestido, cercado por outras pessoas ligadas ao meio artístico predominantemente brancas, numa ilha de cadeiras na ponta frontal esquerda, próxima à entrada da sala.

Falava o curador, crítico e historiador da arte Paulo Herkenhoff, que foi o primeiro Diretor Cultural do MAR, onde estávamos. Sobre seu trabalho no MAR declarou, em entrevista ao jornal A Tarde em 2016, em tom de balanço de gestão, “que museus precisam produzir esforços de inclusão. Ter acessibilidade conceitual – seja através de textos de parede ou do trabalho de mediadores (…).”[1]  Em Manobras Radicais[2] publicado em 2006, Herkenhoff e Heloisa Buarque de Hollanda haviam apresentado a obra de Rosana Paulino valendo-se de fortíssima imagem-objeto, a “gargalheira”, para simbolizar os constrangimentos a que o campo artístico submete o olhar e a sensibilidade dissonante da artista negra (Herkenhoff; Hollanda, 2006).[3] Em 2016, o crítico publicou também Mulheres do Presente, a clareza entre as sombras, onde reúne obras de artistas dos últimos 50 anos, com o intuito declarado de  rasurar os limites instituídos da história da arte brasileira. No ano seguinte, em 2017, foi curador da “Invenções da Mulher Moderna, para além de Anita e Tarsila”, no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, que expôs a trajetória de mulheres que desafiaram convenções e limites nos séculos XIX e XX no Brasil, no campo estético ou social, resultado de pesquisa desenvolvida por décadas.

Este perfil me parece capaz de legitimar e dimensionar a intervenção mediadora do crítico e curador na “conversa de galeria”, elogiosa a propósito da exposição que estava sendo inaugurada e, principalmente, minuciosa, didática e retrospectiva, ao traçar uma nobre genealogia de mulheres artistas brasileiras até Rosana Paulino.

Decorridos os primeiros minutos da intervenção que só os próximos ouviam com clareza por conta da péssima acústica do ambiente, a inquietação se espalhou e cresceu no público. Provavelmente poucos ali sabiam quem falava e menos da metade o ouvia, mas a fala prosseguia, olímpica e bem fundamentada, enquanto do público, sem agressividade mas com vozes cada vez mais firmes, ouvia-se o pedido: ‘a pergunta!’, ‘por favor, a pergunta, senhor!’ Dispensava-se – com clareza e bons modos – aquela mediação.

O episódio não foi grave, mas é emblemático dos nossos dias e da emergência incontornável na cena artística, política ou intelectual de um outro regime de distribuição das vozes e do protagonismo. Nada mais compreensível do que aquela disputa pelo espaço de fala entre o público que queria perguntar (queria ouvir a artista), e a voz autorizada do crítico-curador, convicta da urgência de legitimar e expor, aos presentes, a posição destacada da artista no cânone das artes visuais no Brasil.

Dito de outra forma, a tensão na antessala da mostra resultava do completo desencontro entre, de um lado, a premência do acontecimento atual, a exposição da obra de uma mulher negra que se deseja conhecer, ou com quem aquele público predominantemente jovem e negro, pleno de inquietações politicas e estéticas, deseja aprender, e por isto compareceu à “conversa da galeria” antes de entrar na exposição, e, do outro, a voz da autoridade e a força da sistematização intelectual, da regularidade do acontecimento, ou seja, a sua apreensão crítica e historiográfica dentro do sistema de correlações e hierarquias que compõe o campo das artes visuais. Para uns, a maioria, a oportunidade singular, extraordinária, de se ver, de encontrar na obra o próprio corpo, em um regime de imagens diverso da sequência de visões de si imposta no cotidiano do racismo, que os desqualifica e violenta; principalmente, a chance de partilhar, por todos os espaços do Museu, corpo e memória. Para o campo das artes, o reconhecimento da artista, a apreciação técnica e a sua inserção numa série (arte brasileira contemporânea), através de uma subsérie identificada pelo gênero (mulheres artistas), certamente silenciado seu fulcro: arte negra ou, ao menos, arte afro-brasileira.

A intervenção da artista ao final do pronunciamento foi breve e fez uma recomendação cabal: agradeceu comovida a homenagem e se dirigiu ao público, para dizer que todos devemos aprender a ouvir o que os outros precisam dizer, acrescentando após brevíssima pausa retórica: todos devemos também saber quando podemos falar.

Rosana Paulino (São Paulo,1967) é artista visual, educadora, curadora e, como a maioria dos artistas negros e negras de sua geração, tem formação acadêmica e titulação específica na linguagem que trabalha. É doutora em Artes Visuais pela ECA, a Escola de Comunicação e Artes da USP, e especialista em gravura pelo London Print Studio. A isto se deve parte da sua atividade paralela e permanente de reflexão sobre a própria obra. Outra instigação forte para mediar com assiduidade o próprio trabalho, creio, é política, dada a triste excepcionalidade da fruição das artes visuais negras pela maioria a população brasileira.  A exposição das suas “costuras da memória” no MAR teve como subsídio, além da conversa introdutória, a exibição, numa pequena sala, de vídeos sobre a obra e de muitos depoimentos da artista. Este artigo trará, em coerência, sempre que possível, a palavra de Rosana Paulino ao lado das minhas.

*

Eu queria lidar de forma mais
contundente com o fato de ser negra,
e isso a fotografia me dava.
Rosana Paulino

Com suportes e técnicas diversificados e às vezes pouco convencionais, Rosana Paulino faz esculturas, desenhos, gravuras, aquarelas, bordados, colagens, fotografias e instalações, usando materiais triviais da jornada familiar de uma classe média racializada, pobre e urbana – argila, retalhos de tecidos, fios, linhas, lãs, contas, velhos retratos. Nisso podemos ler a sua inscrição numa forte perspectiva de gênero. Na manipulação desses resíduos da vida cotidiana e sua transformação em obra está a “manualidade” das mulheres com quem conviveu, à qual se referiu na abertura da exposição e destaca sempre que é necessário explicar o próprio trabalho.

Na tradição ocidental do valor, artefatos e materiais são também hierarquizados por gênero: agulhas, linhas, tecidos, tesouras, costuras, bordados e cerâmicas estão associados às mulheres e ao âmbito artesanal e doméstico, assim como pinceis, canetas, óculos, papel impresso e qualquer engenho de reprodução de imagens estão associados aos homens. Tanto os objetos artísticos possuem “gênero” quanto a grande divisão artístico-cultural moderna separou e hierarquizou, com eficaz sistema classificatório, as ‘artes maiores’ como a pintura ou a escultura, onde prevaleceram os homens e nas quais vida pública, sentimentos nobres, privados ou coletivos, e abstrações são expressos, em contraste simétrico com as ‘artes aplicadas’, ‘baixas’ ou ‘menores’, que não derivam do cérebro ou da imaginação, e sim das mãos e da necessidade, as ‘artes manuais’, por consequência delegadas às mulheres, presas ao corpo, ao domus, aos afetos, ao bem estar. 

Desde os anos de 1970, mulheres artistas, instigadas pelo feminismo, operam contra as práticas de discriminação de gênero e impõem ao campo dominante das galerias e museus, como realização artística, objetos como obras têxteis ou bordados, referidos à vida doméstica e vistos como essencialmente femininos.

“Bastidores[4], trabalho de Rosana Paulino datado de 1997, como algumas de suas intérpretes têm já apontado, também é herdeiro da operação artístico-feminista da insurreição dos materiais; vale-se de pedaços de tecidos claros, bastidores, linha e agulha. Entretanto, a série tem forte antagonismo com a domesticidade das toalhas de mesa, guardanapos e pequenos tecidos bordados, retirados por Miriam Schapiro[5] de seu contexto familiar de classe média americana e exibidos como obras de arte, em uma mostra tornada um marcador emblemático.

No trabalho da artista brasileira a rasura e a dimensão racial se impõem. Rosana Paulino imprime em tecido retratos 3×4 de mulheres negras da família e no pano tensionado, enrijecido pela moldura do bastidor, sutura, com pontos grosseiros, desordenados, sobrepostos e agressivos, seus olhos, bocas, garganta. A manualidade rompe os limites do doméstico, da vida familiar e da história pessoal, para servir à denuncia de violências passadas e presentes, desde a imagem insistente da escrava Anastácia, atada a uma máscara de flandres, às fotografias de jovens negros apreendidos e amarrados, a boca colada com fita adesiva para não gritarem, que a mídia nos exibe. Nos rostos rasurados – ou suturados, como faz questão de repetir –, compõe seu grito contra a continuidade nunca resolvida das práticas escravistas e a aliança eficaz, ativa, entre racismo, violência de gênero e feminicídio no país.

Afirma Rosana Paulino, como propósito de sua arte,

pensar em minha condição no mundo por intermédio de meu trabalho. pensar sobre as questões de ser mulher, sobre as questões da minha origem, gravadas na cor da minha pele, na forma dos meus cabelos. gritar, mesmo que por outras bocas estampadas no tecido ou outros nomes na parede. este tem sido meu fazer, meu desafio, minha busca.[6]

A artista pode ser inserida em uma periodização pouco explorada entre nós, intelectuais acadêmicos brancos. Os nomes na parede mencionados no trecho citado acima são uma alusão a seu trabalho anterior, a instalação “Parede da memória”, o primeiro com reconhecimento amplo, em 1994, no auge dos anos finais do século XX.

Nascida em 1967 em São Paulo, a artista cresceu entre aos impactos da emergência – na cena artística, no debate político e nos meios de comunicação – de movimentos, grupos artísticos e demandas políticas da população negra brasileira. Marcam o ‘espírito da [sua] época’ a consolidação do grupo editorial Quilombhoje, de escritores que estavam publicando desde 1978 os Cadernos Negros; a fundação do Geledés, Instituto da Mulher Negra (1988), por Sueli Carneiro; a Maria Mulher, organização de mulheres negras criada em 1987 e seguida de outros coletivos surgidos do I Encontro Nacional de Mulheres Negras, também em 1988, no calor do debate sobre o Centenário da Abolição. Trata-se de um contexto de lutas em que se multiplicavam as organizações das mulheres e o movimento feminista passava a ser criticado pela dominância branca e de classe média das suas militantes; no plano da cultura musical ocorre na mesma década o surgimento do RAP, um fenômeno político-musical naquele momento encabeçado pelos Racionais MC’s (1989), que alardearam os assassinatos de jovens negros e pobres nas periferias brasileiras e o nexo entre racismo, miséria e violência.  A década de 1990 foi também o momento das discussões sobre globalização, identidade e multiculturalismo, quando o termo diáspora passou a designar simultaneamente projeto político, projeto estético e projeto acadêmico, para confrontar e transvalorar as noções de raça, identidade étnica, território e cultura nacional.

“Parede da memória” é uma instalação composta por Rosana Paulino a partir de 11 fotografias de família, impressas em tecido para formar pequenas almofadas quadradas de cerca de cinco centímetros, costuradas a mão, com delicado ponto dente de cão ou ponto caseado, usado nas costuras domésticas antes da popularização das máquinas Singer; os pequenos objetos com corpo e rosto se multiplicam em milhares de unidades. São como patuás que compõem uma “parede” e tem simbologia relevante para a cultura afro-brasileira como elemento de proteção. Para Rosana Paulino, a obra diz a quem a observa:

você pode ignorar um desses elementos, uma dessas pessoas nas ruas, mas não pode ignorar essa quantidade de pares de olhos sobre você (…). Colocando essas onze fotografias de família dentro desse formato, é como se eu colocasse o meu grupo étnico sob o cuidado, sob proteção. É como se eu protegesse toda a minha ancestralidade[7]

Mas a dimensão afro-religiosa da ancestralidade visível neste trabalho – em contraste com parte significativa da produção de artistas negros e negras entre nós – não é central, não é temática, embora constitua uma espécie de tangência, frequentemente a ‘sustentar’ obras da artista ou a organizar os elementos que as compõem, como uma sintaxe compartilhada.

Rosana Paulino reconhece a influência de artistas afro-brasileiros anteriores a ela, mas diz ter buscado um caminho mais coerente com o seu contexto social.

As artes visuais negras no Brasil historicamente são muito ligadas ao religioso – desde o Barroco ao Modernismo e, em alguns casos, ainda hoje. Acho que esse campo de produção do religioso era de certo modo permitido aos sujeitos negros. (…) No meu caso, que venho da periferia de São Paulo, da Freguesia do Ó, e que ouvi Racionais MC’s na adolescência, qual é a herança negra que estava ao meu redor? Não era a dos cultos afro-brasileiros. Isso obviamente não é nenhuma crítica a esses artistas. Quero enfatizar que não estou imersa nesse universo como eles estavam. Então, como me encontro? Quais são as minhas referências?[8]

*
Conforme narrou na “conversa de galeria” no MAR e vem repetindo em depoimentos, entrevistas e escritos seus, bem como evidenciam os desdobramentos recentes de sua obra, Rosana Paulino foi literalmente atropelada pela fotografia de uma mulher negra nua, de frente, costas e perfil em 2010, no cruzamento de dois fortes interesses seus: a fotografia, desde o álbum de família aos registros da escravidão, e a Biologia através dos compêndios antigos da “História Natural”. Naquele ano, viu pela primeira vez alguns registros fotográficos da Coleção Luis Agassiz realizados por ocasião da Expedição Thayer no Brasil, na segunda metade do século XIX.

Em 2010, historiadores da USP organizaram no Centro Universitário Maria Antonia, em São Paulo[9], a exposição intitulada Rastros e raças de Louis Agassiz: fotografia, corpo e ciência; Fotografias da Expedição Thayer de Louis Agassiz, que no mesmo ano foi incorporada à 29ª Bienal de Artes de São Paulo e exibiu, pela primeira vez no Brasil, 40 das cerca de 200 fotografias que estão sob a guarda do Peabody Museum, da Universidade de Harvard. Essas fotografias permaneceram por muito tempo inéditas ou com circulação restrita, provavelmente devido a seu conteúdo constrangedor: são retratos nus, de corpo inteiro, da população africana do Rio e de tipos mestiços da população de Manaus.

Recupero esta informação porque, como Rosana Paulino – embora com intensidade e amplitude obviamente diversas – também a mim impactou em 2010 a visão da crueza minuciosa dos registros racialistas do final do século XIX, contemporâneos, aliás, aos prognósticos do Conde de Gobineau[10] que esteve no Rio de Janeiro na mesma década que Agassiz e igualmente privou da intimidade com o Imperador Pedro II e a elite pensante brasileira.

O zoólogo suíço Louis Agassiz esteve no Brasil entre 1865-1866. Defensor do poligenismo e da teoria da degeneração das raças, veio para conhecer o que denominava um “paraíso racialista”. Pretendia recolher provas materiais tanto de exemplares das diferentes raças que conviviam no país quanto da degeneração racial produzida pelo seu “mulatismo”. Contratou no Rio de Janeiro o fotógrafo Augusto Stahl – “Photographo da Casa Imperial” – e lhe encomendou daguerreótipos de africanos escolhidos como amostras de “tipos raciais puros”. As fotografias foram feitas de acordo com as demandas de registro científico e fisionômico de negras e negros, retratados despidos, de frente, de costas e de perfil.

O registro fotográfico é contemporâneo tanto ao auge da exploração colonial no século XIX e da demanda de conhecimentos que a subsidiasse quanto de uma nova compreensão de ciência, fundada na materialidade das evidências, quanto, ainda, da urgência da apropriação, classificação e controle da diversidade dos corpos e das diferenças entre normalidade e anormalidade. Capaz de congelar o imprevisível através da fixação de imagens do que se desejava conhecer e difundir, o registro visual produziu documentos cruéis da diferenciação e da inferiorização do outro, objeto da conquista colonial e da exploração escravista. Muitos corpos nus foram registrados por Stahl numa sequência de imagens que parece fazê-los girar diante dos olhos do observador, favorecendo uma visão circular, ininterrupta, que os priva de toda intimidade e segredo.

Augusto Stahl, Série de daguerreótipos de africanos, classificados como “tipos raciais puros”. Rio de Janeiro, 1864 (Coleção Louis Agassiz)
Augusto Stahl, Série de daguerreótipos de africanos, classificados como “tipos raciais puros”.
Rio de Janeiro, 1864 (Coleção Louis Agassiz)

 

São fotografias de corpos negros obrigados a pousar contra um fundo liso, sem qualquer acréscimo que possa ancorá-los em alguma forma de humanidade. Este é o paradoxo e a potência perversa das imagens feitas por Augusto Stahl, para comprovação das teses racialistas de Agassiz: dissociados das formas próprias do existir  (postura corporal individualizada, referências de espaço, vestuário, adereços, paisagem), os corpos negros de mulheres e homens retratados parecem hipertrofiar a semelhança das partes reconhecíveis e comuns a todo corpo humano, acintosamente expostas, e, ao mesmo tempo, fundar uma instransponível distância e diferença, com a negação cabal de sua humanidade e individualidade. “Quem os contempla hoje se defronta acima de tudo com a sua inquietante vulnerabilidade e tristeza” (Cunha, 2014).

Escrevi a frase final do período acima há alguns anos, para uma palestra que fiz sobre as imagens de pessoas negras que nos foram legadas por viajantes estrangeiros do século XIX, fortemente afetada pela série Agassiz. Esta repercussão em mim, que provavelmente se faz sentir em todos que as contemplam, é a via, o caminho de que disponho para vislumbrar a violência do impacto sofrido por uma mulher negra diante das fotografias. A propósito, disse Rosana Patrício: “Quando eu me deparo com aquelas imagens, eu falo: vou estudá-las porque elas me causam um incômodo profundo”[11].

As fotografias da coleção se tornaram parte de diversos experimentos da artista e resultaram, três anos depois, nas imagens que compõem Assentamento (2013), um ponto de inflexão na sua obra, que marca um deslocamento da memória familiar expandida para a exploração e o confronto com memória racial instituída – ou do “racismo científico”, como diz – compondo uma perspectiva radicalmente outra, a meu ver inédita, para a articular memória e ancestralidade.

Os assentamentos integram o universo litúrgico e ritual mais restrito dos cultos afro-brasileiros. Embora sumariamente referidos como ‘representação’ de um orixá na fisicalidade do mundo, na perspectiva matriz iorubana o assentamento (igbá) é um continente (originalmente seria uma cabaça) com os conteúdos específicos da divindade. Ao mesmo tempo, o assentamento é território e é ponte, elo, ligação entre mundos, depositário da continuidade àiyé-òrun, em práticas religiosas que, alerta Machado (2018, p.48.), “envolvem visões de mundo em que o material e o imaterial, o visível e o invisível não se dão como domínios separados um do outro, mas como imanentes entre si”.

Assentamento[12], instalação concebida por Rosana Paulino, é formada por múltiplos elementos e linguagens e, como em sua montagem original, ocupou um espaço exclusivo da retrospectiva tanto na Pinacoteca de São Paulo em 2018 quanto no MAR em 2019: um permanente ruído de mar, pequenas fogueiras armadas sobre paletes no chão, onde pedaços de braços se misturam a gravetos, e telas que exibem vídeos com imagens de mar. Em meio a esta composição visual e sonora estão, em total destaque, três reproduções de fotografias da coleção Agassiz que registram uma mesma mulher.

Várias intervenções foram feitas sobre as fotografias, ampliadas até alcançarem o tamanho real (a artista conta que se colocava de pé ao lado da mulher nua, até que chegasse a um tamanho satisfatório). Algumas reproduções foram cortadas horizontalmente e remontadas – suturadas grosseiramente – com fios e pontos ásperos, sem que as partes do corpo tivessem a continuidade original, o que impõe às imagens um suplemento de deformação e ressalta, grifa, a sua agressividade. Mais uma vez, o trabalho de Rosana Paulino evoca a continuidade da violência sobre os corpos de mulheres negras que é urgente interromper, mas, ao mesmo tempo, é preciso resgatar e reelaborar, para construir a própria memória. “Para entender como esse país é assim, eu vou naquelas imagens, mas não basta ir até a imagem do Agassiz. Tenho que saber todo o contexto histórico. E a partir dele criar uma imagem que rebata essa narrativa que foi feita”, ela afirma.

Rosana Paulino é uma mulher negra, como milhões de outras mulheres negras brasileiras, cuja existência está histórica e existencialmente conectada aos corpos de africanos escravizados, fotografados despidos de roupas e de humanidade por um naturalista europeu no século XIX, imbuído da convicção científica em sua inferioridade e de sua perversa contribuição à composição racial da população do Brasil, através da mestiçagem. A grandeza do trabalho desassombrado da artista está em nos assegurar – em nos fazer ver – que esse acervo da barbárie ocidental é também uma efetiva e palpável ancestralidade, com a qual nós, brancos e negros, precisamos lidar, em diferentes perspectivas de apreensão.

Rosana Paulino, Assentamento, detalhes.

 

Como em “Parede da memória”, na minuciosa transformação dos retratos de família em patuás, amuletos de proteção que aproximam o fiel de seu orixá e, portanto, estão no domínio dos relicários, das relíquias – da religação – , na instalação Assentamento se encontra o mesmo ímpeto ou o mesmo fundamento, para a proposição visual do elo, da religação com a ancestralidade e elaboração de um memorial, que tem três vértices: formas rituais africanas, corpos negros escravizados plasmados pelo racialismo e a potência autoral e atual da elaboração da memória. Um assentamento, quando contemplado entre as “Pedagogias das encruzilhadas” por Luiz Rufino,

“vigora e ressignifica a vida (…), imanta e reverbera as energias que lhe foram consagradas, afetando diretamente aqueles que com ele estabelecem relações. Lá [no assentamento] se estabelecem e se potencializam os vínculos entre os tempos presentes e os tempos ancestrais” (Rufino, 2018, p.13).

Assentamento e outros trabalhos posteriores de Rosana Paulino se distinguem no panorama da arte visual afro-brasileira contemporânea, mais frequentemente alimentada por dois planos referenciais: a reconstrução diaspórica da ancestralidade africana através da tematização da experiência e da iconografia religiosas afro-brasileiras, ou, em outra vertente, as vivências negras em confronto direto com as violências do racismo e da exclusão secular da população afro-diaspórica. A obra de Rosana Paulino, sem se deixar conter em qualquer dessas duas vertentes composicionais, agrega-as de modo original. A religiosidade de matriz africana lhe oferece estruturas de composição, uma sintaxe negra reconhecível, mas, desde Assentamento [13], o foco ou o cerne dos trabalhos está na dimensão mais eficaz e, paradoxalmente, menos abordada do racismo: seu fundamento na epistemologia moderna, como estruturante do conhecimento ocidental e da própria ocidentalidade, como ciência no século XIX, e estruturante da biopolítica eugênica peculiar aos estados nacionais modernos até o presente.

O trabalho de intervenção plástica que Rosana Paulino realiza nos abomináveis daguerreótipos de Augusto Stahl constituem um gesto perlaborativo de alta potência reversiva. A artista visual recupera as imagens como memória de uma violência que está inscrita, enquanto memoria étnico-racial, em seu corpo de mulher negra, e as reelabora, rasura os arquivos do racialismo e do racismo, corta, desmonta, costura, remonta, sem deixar que se restaure a integridade visual.  Principalmente, desenha sobre as imagens plasmadas. Do presente, a artista insere breves narrativas ou tênues figurações de vida – um coração que sangra, um útero, um pequeno feto, raízes – que instalam, nos corpos negros fotografados, signos do que lhes foi retirado. Rosana Paulino sem atenuar ou contemporizar a violência extrema da qual descende, gesta a própria ascendência, como se realizasse um movimento simultaneamente maternal e filial, traz para perto de si, acolhe os corpos nus bestializados e os abraça, cuida, cura, concedendo-lhes e a si mesma, com delicadíssimos traços e bordados em lã macia, o que desde sempre lhes é recusado: coração e útero, interioridade, afeto, linhagem e raízes. Este é o seu assentamento.

“Eu sou artista visual. Não sou da literatura, da história, da sociologia. Então trabalho isso através de imagens”, afirma Rosana Paulino. Disse também, na “conversa de galeria” na abertura da exposição do Mar, que “trabalha na chave da homeopatia, onde uma imagem cura outra”.



* Eneida Leal Cunha
é professora da PUC-Rio.

 

Referências

ANTONACCI, Célia Maria. Rosana Paulino: enunciações poéticas e arte africana  contemporânea. Rebento, São Paulo, n. 6, p. 272-291, maio 2017.

CUNHA, Eneida Leal. “Negras imagens”. XII International Congress of the Brazilian Studies Association (BRASA), London: King’s College, August 2014.

HERKENHOFF, Paulo; HOLLANDA, Heloísa Buarque. Manobras Radicais. São Paulo: Centro Cultural Banco do Brasil, 2006.

MACHADO, Felipe. “Da terra como do mundo: candomblé e pensamento simbólico representativo”. In. Dança e ritual: do sagrado ao cênico. (Tese de Doutoramento) Rio de Janeiro; PUC-Rio, 2018.

RUFINO, Luiz, Revista Periferia, v.10, n.1, p. 71 – 88, Jan./Jun. 2018.

 

[1] Entrevista com Paulo Herkenhoff publicada no caderno “Muito”, do jornal A Tarde, Salvador, 16/11/2015, com o título “Museu fechado à elite não serve ao Brasil, diz Herkenhoff”. Disponível em https://atarde.uol.com.br/muito/noticias/1726923-museu-fechado-a-elite-nao-serve-ao-brasil-diz-herkenhoff

[2] O livro deriva da exposição coletiva com o mesmo título, com curadoria dos autores, realizada entre agosto e outubro de 2006 no CCBB de São Paulo, que reuniu trabalhos de 60 mulheres artistas, entre elas, Rosana Paulino.

[3] Chamava-se gargalheira a coleira de ferro ou madeira com que se castigavam escravos; no presente é uma coleira de pregos usada para controlar cães, que lhes impede a livre movimentação.

[4] Bastidores, imagem transferida sobre tecido, bastidores de madeira e linha de costura, 30 cm de diâmetro, 1997.Este, como todos os demais trabalhos de Rosana Paulino referidos aqui estão disponíveis para visualização online e podem ser localizados pelo título e respectiva data.

[5]  Em Anonymous Was a Woman, Miriam Schapiro (1976, Brooklyn Museum, New York) escolheu uma série de objetos consideradas inferiores, por pertencerem ao âmbito do feminino e do doméstico, e os exibiu como objetos artísticos.

[6] Site da artista. Disponível em http://www.rosanapaulino.com.br/blog/2009/07/ Acesso em março de 2019.

[7] Rosana Paulino, depoimento a Nexo, para série de matérias “sobre colonização, diáspora, escravidão, raça e gênero”, realizada  por Juliana Domingos de Lima (2018) Disponível em https://www.nexojornal.com.br/expresso/2018/12/27/Como-entender-o-Brasil-a-partir-de-5-obras-de-Rosana-Paulino. Acesso em março de 2019.

[8] Vitor Rosa. Conversa com Rosana Paulino: O corpo é uma questão política”. C&America Latina.Disponível em http://amlatina.contemporaryand.com/pt/editorial/researcher-and-artist-rosana-paulino/. Acesso em março 2018.

[9] A exposição foi parte da programação do Ciclo Roger Casement: Viajantes na Amazônia dos Séculos XIX e XX, coordenado pelas Profas. Laura Izarra e Maria Helena Machado.

[10] O diplomata francês Joseph Arthur Gobineau (1816-1882), autor do Essai sur l’inégalité des races humaines (1855), esteve no país em missão diplomática entre 1869-1870 e publicou, em 1874, o artigo intitulado “L’émigration au Brésil”, onde postulava a urgência da vinda de imigrantes arianos capazes de sanear  a mestiçagem e assegurar a sobrevivência da população, segundo ele destinada à extinção em cerca de dois séculos.

[11] Rosana Paulino, depoimento transcrito por André Reina em “Sutura da arte no tecido social”. Disponível em https://medium.com/revista-bravo/rosana-paulino-e-a-sutura-da-arte-no-tecido-social-brasileiro-9bdb7f744b4e . Acesso em março 2019.

[12] Assentamento, impressão digital sobre tecido, desenho, linóleo, costura, bordado, madeira, paper clay e vídeo. Dimensão variável, 2013.

[13] Veja-se, por exemplo, O amor pela ciência (impressão digital sobre tecido e costura, 29 x 58 cm, 2016) e Atlântico vermelho (impressão digital sobre tecido, recorte, acrílica e costura, 127 x 110 cm, 2017), entre outros.

“SEU PASSADO, UMA SEPULTURA SEM EPITÁFIO”: SAGA DE UMA RAÇA OU UMA NÃO RAÇA RACIALIZADA


É comum, em debates sobre racismo e colonialismo, lembrar a “herança” da escravidão. Como o terrível das relações sociorraciais nesse período se metamorfoseia em várias violências hoje, não necessariamente físicas, mas que tocam fundo quem as sofre, como o desprezo ao de pele escura, a sua consideração ou desconsideração como humano, o desdém à sua capacidade e trabalho, como o doméstico, que, codificado como servir, é naturalizado como coisa de gente tida como inferior. Gente que antes era tratada na chibata, merecendo castigos como o tronco, agora para reconhecer o “seu lugar” é tratada de forma ríspida, sem direitos e necessidades.

Dantes os escravos tinham que fazer! Mal serviam a janta iam aprontar e acender os candeeiros, deitar-lhes novo azeite e colocá-los no seu lugar… E hoje? É só chegar o palitinho de fogo à bruxaria do bico de gás e… caia-se na pândega! Já não há tarefa! Já não há cativeiro! É por isso que eles andam tão descarados! Chicote! chicote, até dizer basta! que é do que eles precisam. Tivesse eu muitos, que lhes juro, pela bênção de minha madrinha, que lhes havia de tirar sangue do lombo!
(Diálogo entre duas sinhás em O Mulato [Azevedo, 2020].)

Os sindicatos de trabalhadores domésticos hoje dispõem de um triste repertório de testemunhos que ilustram tal “herança”, a naturalização do maltratar, do desprezar, do que seria tido como próprio ao trabalho doméstico remunerado, o servir e a ambígua relação entre depender e menosprezar tal serviço, o que também, costuma-se frisar, viria sendo escancarado com a pandemia, mas que não necessariamente é novo.[1]

Mas, além da prosopopeia de brancos que se acham os humanos, os superiores, e por aí desqualificam os negros, os não brancos, e que por dinâmica do racismo estrutural se institucionalizem situações que não oportunizam mudanças de tal estado de desigualdades sociorraciais, não se considera a necessidade de reparações materializadas em oportunidades para um digno viver e mobilidade para o povo negro. É bem incipiente o debate do que se vem nomeando por branquitude, o que se confunde com o sutil processo de reprodução da supremacia branca. Considera-se que a branquitude se realiza por privilégios, o que pede desvendar práticas e silenciamentos, pedindo autocríticas de nós, que nos declaramos antirracistas, quanto a formas de ser, nos comunicar com o outro, a outra, o povo de cor preta, e com eles/elas traçar estratégias de reparação que lhes pareçam mais convenientes. De fato, não é fácil uma ressocialização que implique a crítica de privilégios, estando em sociedades racialiazadas por hierarquias.

Uma das reparações que cobram urgência é quanto ao silêncio sobre histórias de tantos e, não ao azar, recontar a da colonização de acordo com vivências em relações sociais. O sentido da raça nessas e para a modernidade é um dos princípios fundadores da perspectiva decolonial e, nessa, do conceito de colonialidade do poder (ver Quijano, 2005 e Segato, 2015 sobre esse conceito). Ora, tal silêncio contribui para a reprodução tanto de justificativas para racismos, como o desprezo pelo tido como não humano, já que inferiorizado, quanto para subjetividades interrompidas, quando o povo negro tem sua história apagada.

Primeira edição de <em>O Mulato</em> (1881), de Aluísio Azevedo, disponível na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin.
Primeira edição de O Mulato (1881), de Aluísio Azevedo, disponível na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin.

Foi lendo O Mulato, de Aluísio Azevedo, sobre a ambiência colonial da província do Maranhão de 1832, que me dei conta de outra herança terrível aos não brancos, aos não descendentes dos colonizadores por pai e mãe. A herança de não ter passado, não saber quem foram os/as ancestrais, o que contamina muitas vezes aqueles que não se dão conta de que também são o outro, nem tão brancos como pensado, ou melhor, se dão sim, quando em terras estrangeiras são tratados de forma paternalista, ou invisibilizados.

No romance, o personagem Raimundo vivia bem, autoestima alta, pois o pai, fazendeiro branco, dono de escravos, por culpa ou afeto, lhe pusera nos melhores colégios da Europa. Ele, apesar de ter sido chamado de “macaquinho” no colégio em Lisboa, por conta da boa vida e privilégios da fortuna paterna, não se dera conta da sua desintegração, de que ele era um outro, não da terra, não da raça dos colonizadores. Considerava-se inclusive superior, já no Maranhão, aos provincianos fazendeiros, ricos donos de negócios, orgulhosos de sua ascendência portuguesa, a qual sonham projetar em descendência, e às irascíveis sinhás. Raimundo criticava o perverso trato aos escravos e curtos horizontes cognitivos daquela gente, tão distantes dos “civilizados” europeus. O “Mulato” suspirava saudoso pelos tempos na Europa. Estamos em 1832, tempos em que, segundo Aluísio Azevedo, os/as das classes poderosas chamavam os negros de “sujos”, e os mestiços de “cabras”, considerando esses não apenas como inferiores, mas culpados de todos os males que lhes podiam advir, já que tidos como de “mau caráter” e portadores de “má sorte”.

Pois bem, ao ter seu pedido de casamento com a prima branca negado pelo tio, por ser “pessoa de cor”, “filho de uma escrava com um senhor”, Raimundo espanta-se ao ser chamado de mulato. Começa a traduzir os sinais de desprezo e indiferença que lhe chegavam nas reuniões da Casa Grande, onde era tolerado. Começa a sentir mais forte a dor de perguntas que, se antes o incomodavam, não chegavam a doer: Quem era ele? Qual a sua história? Quem era a sua mãe?

Raça é criação dos colonizadores, frisa Aníbal Quijano, um dos principais autores do pensamento decolonial, questionando como se nos chega a história da modernidade, a emancipação das “trevas” pelo iluminismo, uma invenção dos cultos europeus, assim omitindo as trevas impostas aos povos colonizados, justificadas pelo mito fundador da colonização/escravidão: humanos, cultos europeus, a civilizar incultos, não humanos nativos, gente de cor. A colonialidade do poder, conceito de Quijano, se afirma inclusive por subjetividades cúmplices.

Até ser nomeado “mulato”, Raimundo não se dera conta, graças a seu lugar de classe, jovem de posses, como era socialmente enquadrado, inferiorizado entre os de igual fortuna, sua marca de raça.

Mulato! Esta só palavra lhe explicava agora todos os mesquinhos escrúpulos, que a sociedade do Maranhão usara para com ele. Explicava tudo: a frieza de certas famílias a quem visitara; a conversa cortada no momento em que Raimundo se aproximava; as reticências dos que lhe falavam sobre os seus antepassados; a reserva e a cautela dos que, em sua presença, discutiam questões de raça e de sangue; a razão pela qual D. Amância lhe oferecera um espelho e lhe dissera: “Ora mire-se!” a razão pela qual, diante dele, chamavam de meninos aos moleques da rua. Aquela simples palavra dava-lhe tudo o que ele até aí desejara e negava-lhe tudo ao mesmo tempo, aquela palavra maldita dissolvia as suas dúvidas, justificava o seu passado; mas retirava-lhe a esperança de ser feliz, arrancava-lhe a pátria e a futura família; aquela palavra dizia-lhe brutalmente: Aqui, desgraçado, nesta miserável terra em que nasceste, só poderás amar uma negra da tua laia! Tua mãe, lembra-te bem, foi escrava! E tu também o foste! — Mas, replicava-lhe uma voz interior, que ele mal ouvia na tempestade do seu desespero; a natureza não criou cativos! (Azevedo, 2020).

Toca fundo a expressão de Aluísio Azevedo pensada por Raimundo em frente a um túmulo no cemitério da fazenda que fora do pai, que ele supõe ser da mãe escrava: “seu passado uma sepultura sem epitáfio”. Um túmulo com uma lápide em branco ou em negro?

Somos memória, e se não as temos? O reconhecimento da linhagem nos enraíza, colabora em alinhar ou desalinhar projetos. Em todas as etnias africanas muito se cultua a ancestralidade.[2] Tutano de medula que sustenta subjetividades e comunidades. São eles e elas, os/as ancestrais, que eram reis e rainhas na África, caçadores, livres, que identificam por língua e rituais próprios que o/a escravizado/a tem uma história que vai além do cativeiro; que tornaria o presente suportável pois se tem um passado-idealizado, não importa, de feitos heroicos que legitimam pensar em transcendência e ultrapassar tempo passado e futuro em danças e batuque seus; que resistiram às chicotadas dos sinhôs e das sinhás; que construíram os quilombos e que dão força para rebater o desprezo, a desumanização, pois doam outra herança, que fala de uma humanidade singular, relembrada nas estórias que chegam dos mais velhos. Os/as ancestrais amalgamam pertença, sugerindo que, com os/as iguais, a luta fundacional por descolonizações é possível.

Ancestralidade e memória são conceitos que se entrelaçam quer em busca por identidades individualizadas, quer com orientação coletiva. Por exemplo, são parte de distintos corpos teóricos sobre comunidade étnica.[3]

Também na literatura sobre memória se enfatiza a relação entre o individual e o coletivo. Michael Pollak, sociólogo com reconhecidas pesquisas e ensaios teóricos sobre problemas da identidade social em situações-limite, em conferência dada no Brasil em 1987, intitulada “Memória e identidade social”, lembra que:

A priori, a memória parece ser um fenômeno individual, algo relativamente íntimo, próprio da pessoa. Mas Maurice Halbwachs, nos anos 20-30, já havia sublinhado que a memória deve ser entendida também, ou sobretudo, como um fenômeno coletivo e social, ou seja, como um fenômeno construído coletivamente e submetido a flutuações, transformações, mudanças constantes (Pollak, 1992, p. 201).

Corpo e alma são decepados quando memórias são sequestradas. Mas bastaria ao “Mulato” encontrar sua mãe, uma escrava enlouquecida, que no romance vaga pela fazenda onde tanto sofrera, para, em busca individual, mais conhecer sobre sua ancestralidade e resgatar identidade? Com que coletividade, os quase pretos e não muito brancos, haveria que se juntar para sua construção identitária? Como reconstruir a história de uma herança escrava, se a história é contada pelos vencedores e não pelos vencidos. No romance, não ao azar, muito se sabe sobre o pai branco, rico fazendeiro descendente dos colonizadores portugueses, como viveu, quem era, como morreu. Tinha nome e sobrenome: José da Silveira. Sobre a mãe, Domingas, algumas linhas sobre sua vitimização por torturas pela ciumenta sinhá, sua dor de mãe e enlouquecimento:

Estendida por terra, com os pés no tronco, cabeça raspada e mãos amarradas para trás, permanecia Domingas, completamente nua e com as partes genitais queimadas a ferro em brasa. Ao lado, o filhinho de três anos, gritava como um possesso, tentando abraçá-la, e, de cada vez que ele se aproximava da mãe, dois negros, à ordem de Quitéria [a sinhá], desviavam o relho das costas da escrava para dardejá-lo contra a criança. A megera, de pé, horrível, bêbada de cólera, ria-se, praguejava obscenidades, uivando nos espasmos flagrantes da cólera. Domingas, quase morta, gemia, estorcendo-se no chão. O desarranjo de suas palavras e dos seus gestos denunciava já sintomas de loucura (Azevedo, 2020).

“Seu passado, uma sepultura sem epitáfio”. A saga do “Mulato” é a saga de uma raça ou uma não raça racializada para a qual, entre as reparações que lhe são devidas, estão histórias de vidas sem lápides.


* Mary Garcia Castro é professora visitante do UFRJ/IFICS/PPGSA, professora aposentada Universidade Federal da Bahia e pesquisadora da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais/Brasil.

 

Referências

AZEVEDO, Aluísio. O Mulato. Clássicos de Aluísio Azevedo. Nostrum Editora. Edição do Kindle, 2020 [1881].

CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Cultura com aspas e outros ensaios. São Paulo: UBU, 2017.

CASTRO, Mary Garcia. Gênero e etnicidade, conhecimentos de urgência em tempos de barbárie, Revista ODEERE, v. 3, n. 6, 2018, p 80-101.

OYEWUMI, Oyeronke. African Gender Studies: A Reader. Nova York: Palgrave MacMillan, 2005.

POLLACK, Michael. Identidade e memória, Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, 1992, p. 200-212.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (org.). A colonialidade do saber: Eurocentrismo e ciências sociais, perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: Clacso, 2005.

SEGATO, Rita L. Aníbal Quijano y la perspectiva de la colonialidad del poder. In: SEGATO, Rita. La crítica de la colonialidad en ocho ensayos y una antropología por demanda. Buenos Aires: Prometeo, 2015.

 

Notas

[1] Ver entrevistas de diretoras da Federação Nacional de Trabalhadores Domésticos (https://fenatrad.org.br/).

[2] Ver distintos artigos em Oyewumi, 2005.

[3] Sobre etnicidade, ver, entre outros, Carneiro da Cunha, 2017 e Castro, 2018.

A FICÇÃO DE LANGSTON HUGHES E A ANTIGA FANTASIA DO RACISMO


O presente artigo parte da coletânea de contos The ways of white folks, publicada em 1934 pelo escritor afro-norte-americano Langston Hughes. Nessa análise, a representação da cultura negra do Harlem é tida como fio condutor da leitura entre os contos “The blues I’m playing”, “Rejuvenation through joy” e “A good job gone”, cujas traduções apresentadas são autorais e inéditas. Assim sendo, este estudo mapeia a ambígua relação de fascínio e estranhamento causada em pessoas brancas de Nova York por manifestações culturais da negritude, interpretadas como “exóticas” e “selvagens”. Essas narrativas, lidas aqui como episódios ficcionais de racismo, servem como práticas que perpetuam a cisão colonial. Para tanto, o referencial teórico é, principalmente, constituído pelos apontamentos de Frantz Fanon, Grada Kilomba, Lélia Gonzalez e Achille Mbembe.

Em 2017, acabara de ser lançado o sucesso de bilheteria Get out, suspense norte-americano que se debruça sobre as intolerâncias raciais dos Estados Unidos. Aclamado pela crítica e vencedor do Oscar de melhor roteiro original, o diretor Jordan Peele foi o primeiro afro-americano a vencer essa categoria no mais conhecido prêmio do cinema mundial. No longa, há uma cena em que amigos de uma família branca, impressionados com o namorado negro da jovem filha, observam o homem com estranhamento e êxtase, perguntando-lhe sobre suas habilidades esportivas, seu condicionamento físico, seus hábitos de dança e, com o alívio cômico do absurdo, questionam seu desempenho sexual poucos segundos depois de vê-lo pela primeira vez.

É esse o momento em que o roteiro sintetiza um aspecto incontornável em quaisquer narrativas que pretendam investigar a relação entre branquitude e negritude no mundo ocidental: a construção do Outro pelo discurso. Existe uma linguagem a operar como estereótipo, fetiche e fantasia que sustenta, no cenário contemporâneo, a compreensão, ainda colonial, que se tem do sujeito negro no Ocidente. Discuti-la, nesse sentido, é pensar como essa linguagem opera na elaboração de um certo exotismo “primitivo”. Afinal, como explicita Aimé Césaire (2010, p. 110): “a Negritude foi uma revolta contra aquilo que eu chamaria de reducionismo europeu”.

Reduzidos à imagem fácil do fetiche, do exótico e do selvagem, requisitamos, assim, a ideia de que o negro não se constrói como um sujeito em si, mas como uma fantasia branca no intuito de suprir a necessidade de um certo imaginário ocidental (Kilomba, 2019).

O cerne da presente discussão está, portanto, na ideia de construir o que é diferente como o “não eu”, isto é, o elemento permeado por uma incógnita que deve ser afastada do enunciador, o qual procura se proteger do risco de ser confundido com esse corpo outro. Surge, então, a premissa de diferenciação colonial, em sua acepção de objeto exótico.

No caso do sujeito negro no mundo ocidental, essa espécie de ícone encantado é um corpo marcado por hipersexualização, vitalidade e extraordinária força física, o que nos faz perceber que, no senso comum, como ironiza Lélia Gonzalez (1984, p. 231), o “branco não trepa, mas comete ato sexual e que chama tesão de necessidade”.

Logo, cria-se um discurso hegemônico segundo o qual, para ecoar as ideias de Frantz Fanon (2008), o preto é sempre associado à força, à brutalidade, ao sexo, ao instinto animal e ao pecado. Nesse panorama, o movimento de construção desse corpo é ambíguo, dado que também passa pelos discursos de medo, crime, violência e corrupção. Em suma, a negritude foi tecida no imaginário ocidental como a brutalidade selvagem e irracional que, no século XVI, carecia de Deus e no XIX carecia de civilização. Por isso, nas palavras de Achille Mbembe (2014, p. 194), “o Negro representa o instinto sexual não domesticado”.

O preto, assim, torna-se a cor de corpos irracionais, incontroláveis, transgressores e compulsivos. Sob essa lógica, reproduz-se exaustivamente a ideia de que o sujeito negro, que, afinal, sequer recebe o status de sujeito, é clandestino e, por isso, desperta desejo, sem jamais deixar de causar medo. Afinal, como escreveu Lilia Moritz Schwarcz (2012, p. 18) em seus estudos sobre racismo no Brasil, a própria ideia de um “Novo Mundo” é, desde a sua gênese, baseada na estigmatização dessa alteridade, marcada “por suas gentes com costumes tão estranhos”.

Os “costumes estranhos” de que nos fala a antropóloga é uma faceta absolutamente contemporânea do racismo ao pensarmos a relação ainda estigmatizada que religiões, músicas e traços físicos associados à negritude ainda possuem no imaginário Ocidental. Basta pensarmos, por exemplo, na diferença de tratamento entre a mitologia greco-romana e as narrativas divinas de origem africana. Essa discussão, no entanto, é antiga e, com a vitalidade dos clássicos, o escritor norte-americano Langston Hughes (1902-1967), ainda não descoberto por leitores brasileiros, muito pode nos ensinar sobre o uso da literatura como ferramenta antirracista.

Embora consagrado como poeta fundamental da Renascença do Harlem, Hughes foi também ficcionista e dramaturgo. Em suas obras, o norte-americano perseguiu como poucos as temáticas oriundas da violência racista da primeira metade do século XX, como as leis de segregação racial dos Estados Unidos, os linchamentos contra homens negros e, como é o caso que aqui nos interessa, o enquadramento através do qual a sociedade branca de seu tempo enxergava (e ainda enxerga em tantos casos) a cultura negra.

Portanto, partindo da coletânea de contos The ways of white folks, publicada originalmente em 1934 e ainda sem tradução no Brasil, pretendemos ler algumas narrativas em torno do jazz, do blues e de outras manifestações tipicamente afro-norte-americanas, propondo também algumas traduções inéditas para fragmentos de seus textos. Nessas histórias, que aqui servirão como episódios ficcionais de racismo, Langston Hughes evidencia um projeto até hoje necessário e perpetuado em nossa geração por artistas como Jordan Peele e pela sua cinematografia.

Langston Hughes em sua máquina de escrever. Disponível em: https://beinecke.library.yale.edu/article/legacy-langston-hughes-lives-strong-fifty-years-after-his-death.
Langston Hughes em sua máquina de escrever. Disponível em: https://beinecke.library.yale.edu/article/legacy-langston-hughes-lives-strong-fifty-years-after-his-death.

 

Assim, preocupamo-nos com o esforço teórico contemporâneo seguido por pensadores como Grada Kilomba (2019), cuja obra tanto enfatiza a urgência de que se criem configurações inéditas de conhecimento, às quais serão vinculadas novas formas de poder. Tal perspectiva se coaduna, incontornavelmente, ao pensamento de teóricas da segunda metade do século XX e do início do XXI, como a indiana Gayatri Spivak (2010), cuja principal obra discute a violência epistêmica da colonização, e a norte-americana bell hooks, que tanto se debruçou sobre a antítese existente entre sujeitos e objetos. Com base nisso, somos instigados a pensar na posição central que o tema da subjetividade exerce nessa discussão. Afinal, como nos lembra Butler (2017, p. 54), “parte do problema da vida política contemporânea é que nem todo mundo conta como sujeito”.

Adotando tal ponto de vista, concordamos com Fanon (2008) ao afirmar que o negro se conhece em terceira pessoa e, em vista disso, a busca pela subjetividade representa um conflito consigo e com o mundo que a nega. Tal aprisionamento, então, manifesta-se em diversos tentáculos cruéis e complexos do racismo. A partir de um primitivismo tenta-se construir a negritude.

Mural feito no Harlem, em Nova York, em homenagem ao artista de Jazz John Birks “Dizzy” Gillespie. A obra é assinada por Marthalicia Matarrita e Brandan Bmike Odums.
Mural feito no Harlem, em Nova York, em homenagem ao artista de Jazz John Birks “Dizzy” Gillespie. A obra é assinada por Marthalicia Matarrita e Brandan Bmike Odums. Disponível em: http://www.notacrime.me/harlem#dizzie-gillespie.

 

Dito isso, na melancólica melodia afro-norte-americana, a literatura de Langston Hughes preocupa-se com um imaginário de ordem cultural no que se refere à arte negra. Em vários casos, a negritude é sintetizada a partir do blues, tratado em sua ficção como um charme diferenciado e inusitado para pessoas brancas. Trata-se do Outro que, dessa vez, será formulado como o “não eu”, sendo também objeto de estranhamento e de fascínio.

A partir de tal perspectiva, abordaremos primeiro o conto “The blues I’m playing”. O enredo da narrativa tem como ponto de partida Dora Ellsworth, uma rica viúva branca de Nova York que não teve filhos e dedica seu tempo, assim como sua fortuna, a jovens artistas. Com a recomendação de um crítico de arte que lhe era próximo, Dora Ellsworth conhece Oceola Jones, uma jovem pianista negra no Harlem. Encantada com a performance da menina, a rica mulher branca decide investir em sua carreira musical, amparando-a financeiramente.

Ela fez uma nota mental de que devia ir até lá [Harlem] algum dia, pois nunca havia visto aquela parte preta de Nova York; e agora que tinha uma aprendiz negra realmente deveria saber algo sobre esse universo. Ellsworth não conseguia se lembrar de ter conhecido uma única pessoa negra antes em toda a sua vida, então achou Oceola fascinante. E tão negra quanto ela própria era branca (Hughes, 1990, p. 106, tradução minha).[1]

Como se vê, o Harlem surge como um terreno exótico a ser explorado, recurso frequente na obra de Langston Hughes. A invasão ao desconhecido se dá, nesse ínterim, sob a lógica da fetichização que fascina. A pele negra de Oceola, assim como seu talento ao piano, satisfazem o imaginário de Dora Ellsworth, seduzindo-a para os mistérios do Harlem. Essa sedução, no entanto, não supera o estigma, visto que os estereótipos racistas de uma pretensa sofisticação fazem com que a investidora da jovem pianista, ao saber que ela mora com o namorado e o ajuda com dinheiro, queira tirá-la de sua região. Isso é demonstrado na conversa entre Ellsworth e Ormond Hunter, o crítico de arte que recomendara Oceola: “‘Eu tenho que tirar essa menina do Harlem’, disse Mrs. Ellsworth, ‘imediatamente. Eu acho que lá é ainda pior que Chinatown.’ \ ‘Ela deve mesmo ficar numa atmosfera mais artística’, concordou Ormond Hunter.”[2]

Adiante no conto, a viúva consegue convencer Oceola a sair do Harlem, enviando-a para estudar em Paris por dois anos. Como se sabe, a ida para a Europa, traço comum entre a juventude artística norte-americana da época de Langston Hughes, foi característica basilar de autores como Fitzgerald, Gertrude Stein e Ernest Hemingway. Cabe lembrar, por isso, que Hughes também teve essa experiência na juventude, embora de maneira absolutamente precária, com dinheiro limitado para quaisquer necessidades imediatas. Não é gratuita, como se percebe, então, a presença do deslocamento para Paris em seus contos.

Em Paris, Oceola Jones sente-se deslocada diante das conversas entre intelectuais do meio artístico, entende-se como outsider àquele universo. Afinal, para a jovem, a arte não tem o papel redentor que muitos atribuem, sendo incapaz de reverter as mazelas da segregação racial.

Se você quer tocar piano, pintar quadros ou escrever livros, vá em frente! Mas por que falar tanto sobre isso? Montparnasse era ainda pior que Village nesse aspecto. E o que dizer dos negros cultos falando que a arte acabaria com a segregação racial, que a arte poderia salvar a raça e impedir linchamentos! ‘Fala sério!’ disse Oceola (Hughes, 1990, p. 112-3, tradução minha).[3]

Quando o namorado de Oceola retorna à cena, ela decide se casar com o rapaz, o que desperta a indignação de Ellsworth: “Você poderia estremecer as estrelas com sua música, Oceola. (…) Mesmo assim, você prefere cavar sua própria cova. A arte é maior que o amor”.[4]

De volta ao Harlem após longo tempo e sucesso nos palcos da Europa, a pianista deseja voltar para as vivências com as quais estava habituada: “Eu tô separada do meu povo há muito tempo’, disse a menina, ‘Eu quero viver no meio deles de novo’.”[5]

Isso, porém, causa o desespero de sua investidora. Percebendo que seu projeto havia ruído, a rica viúva branca desiste do talento de Oceola e conclui a narrativa perturbada com os blues tocados no piano da jovem. Todo seu investimento havia sido pensado para formá-la com base no cânone europeu, na chamada música erudita. Incomodada pelo blues, Hughes constrói uma cisão a partir da mulher branca que se fascina com o charme do Harlem, mas não o aceita como manifestação cultural à altura de seu dinheiro.

A menina no piano ouviu a mulher branca dizer: ‘Foi para te ensinar isso que eu paguei milhares de dólares?’ \ ‘Não’, respondeu simplesmente Oceola. ‘Isso aqui já era meu… escuta! … Como é triste e alegre. Melancólico e feliz — é a risada e é o choro’ (Hughes, 1990, p. 122, tradução minha).[6]

Casar-se, portanto, coaduna-se à última cena em que, contrariando Ellsworth, Oceola abraça suas raízes, tocando blues. A jovem não se deixou colonizar, recusou o enquadramento a ela atribuído, desobedecendo a mulher branca que, a princípio com ótimas intenções, mostra-se no desejo de controlá-la. É nisto, em última instância, que se baseia a colonização: o controle de corpos, vontades e talentos. Como o escreve Fanon (1968, p. 32), ao pensar a relação entre colônia e cultura, “o colono só dá por findo seu trabalho de desancamento do colonizado quando este último reconhece em voz alta e inteligível a supremacia dos valores brancos”.

É importante citar, também, a fala de Oceola ao ser questionada sobre o que havia aprendido na Europa. “Isso é meu”, responde a menina, demonstrando sua recusa. Ainda que sua incentivadora tenha dedicado milhares de dólares para que a jovem se aperfeiçoasse no piano, estava fadada a não entender os seus blues, não poderia ensinar algo que não lhe pertencia. Do alto de seu apartamento em Nova York, Ellsworth não entende a contrastante relação de melancolia e felicidade da música negra, pois o Harlem continuaria sendo o misterioso terreno incógnito cujas ruas estreitas esconderiam o mistério do exotismo “selvagem”.

Dessa maneira, ainda caminhando pelas fascinantes ruas do Harlem, encontramos outro episódio de interesse para nossa discussão no conto “Rejuvenation through joy”. Nesse enredo, Langston Hughes discute um movimento de apropriação e mercantilização da negritude. Trata-se da história de Eugene Lesche, um palestrante motivacional interesseiro e caricato que ganha fortunas com suas falas sobre a felicidade. Tendo como cliente a elite de Nova York, após o sucesso de seu ciclo de palestras, o homem inicia um empreendimento chamado “Colony of Joy”, ou seja, uma “Colônia da Alegria”, ou, como preferimos traduzir aqui, uma “Colônia da Felicidade”.

Para realizar seu plano, no entanto, Lesche precisava de elementos que despertassem a genuína felicidade em seus clientes, o que só poderia ser feito através de um instinto que, para o personagem e seus fiéis seguidores, era “natural” e “primitivo”. Isto é, só seria possível vender a felicidade para a elite branca de Manhattan através da cultura negra:

O homem primitivo nunca se senta em cadeiras. Olha pros índios! Olha pros negros! (…) Eles vivem pelo movimento, pelo gingado, pela música, pela alegria! (Lembra daquela minha palestra, ‘Os negros e a felicidade’?) (Hughes, 1990, p. 71-2, tradução minha).[7]

Nessa perspectiva, tendo em vista que o conceito de apropriação cultural tem sido muitas vezes utilizado de forma irresponsável e precipitada, partimos das considerações do antropólogo Rodney William (2019). Segundo o pensador, esse fenômeno, para além da superficial discussão hoje presente nas redes sociais, reflete, na verdade, a vontade de consumir, por parte da elite, produtos “exóticos”. Afinal, o cerne dessa questão precisa, invariavelmente, passar por um aspecto de mercado, devido ao qual as culturas estigmatizadas são convertidas em produto e espetacularizadas por seu suposto exotismo rentável.

Na lógica do colonizador, uma vez expropriado de seu território, um povo perderia também a propriedade de sua cultura. O capitalismo representa a continuidade dessa lógica e muitas vezes se apropria dos elementos de uma cultura, produzindo-os em larga escala, comercializando e obtendo lucros extraordinários sem reverter absolutamente nada aos integrantes dessa cultura (William, 2019, p. 39).

Logo, caso decidamos manter esse debate no plano individual, o resultado será um círculo vicioso que nunca dará conta desse complexo fenômeno cultural, limitando-se a evidências anedóticas.

A rigor, a grande questão da apropriação não reside na prática de usar turbante, dreads, tranças, cocares ou qualquer outro elemento cultural, mas no fato de adotá-los sem a menor consciência de que seus significados estão para além da estética, ou seja, possuem um valor simbólico, seja religioso ou de crença, seja de status ou posição social, em suas respectivas comunidades. Evocam uma história de luta e resistência que merece consideração e respeito (William, 2019, p. 145).

É disso, portanto, que trata o conto de Langston Hughes, “Rejuvenation through joy”. Na narrativa é descrito esse exato processo, dado que Lesche acumula fortunas em sua colônia com decoração africana, cantores contratados do Harlem e “a melhor música, o jazz, o jazz primitivo de verdade, direto da África”.[8]

Não por coincidência, o personagem tem sua valiosa ideia ao voltar de uma temporada em Paris. Sendo assim, se para a juventude negra o retorno para a casa é atravessado tantas vezes pelo trauma, para Lesche, por sua vez, torna-se uma oportunidade de enriquecimento fácil.

Com o passar do tempo e o estrondoso sucesso de seu negócio, o protagonista passa a ser adorado por seus clientes como um líder espiritual, detentor da fórmula secreta para a verdadeira felicidade:

Quando eles terminaram, o movimento, a música e a voz de Lesche fizeram com que se sentissem todos calorosos e próximos da terra. Era como se nunca quisessem deixar a Colônia da Felicidade ou ficar longe de seu grande líder novamente (Hughes, 1990, p. 91, tradução minha).[9]

Estimulando a dependência de seus discípulos, os preços aumentam, assim como as filas de clientes implorando por uma dose da felicidade “primitiva” vendida por Lesche. A negritude, reproduzindo um princípio colonial, vira um produto a ser explorado e vendido: “um jeito garantido de ganhar dinheiro seria juntar uma banda de jazz com um retiro espiritual e deixar rolar assim – um ritmo negro e almas felizes”. [10]

Há, então, uma lógica de mercado denunciada por Langston Hughes, cuja ficção, tão fortemente atual, ajuda-nos a pensar no processo hoje comum de transformação de pautas sociais em produtos a serem comercializados em larga escala.

Junte-se a tudo isso as especificidades do capitalismo e da sociedade de consumo e não será difícil concluir que a manutenção da dominação e do lucro como demandas prioritárias revela como as questões econômicas, num mercado cada vez mais desumano, direcionam o mundo moderno (William, 2018, p. 37).

Sob outro prisma da mesma discussão, o livro The ways of white folks possui também o conto “A good job gone”, narrativa na qual Mr. Lloyd, um homem branco de muitas posses, conhece no Harlem uma jovem negra chamada Pauline. Encantado com a beleza da jovem, que de tudo diferia das mulheres brancas com as quais estava acostumado a se relacionar, o homem fica patologicamente fascinado por ela, perseguindo-a quando Pauline revela não estar mais interessada em tê-lo por perto.

Nesse enredo, a figuração do Harlem surge como a terra negra por excelência, cujo mistério exótico e sensual atrai o homem branco. É interessante perceber, então, que o ficcionista reconstrói aqui a balança colonial, representada, dessa vez, pelo explorador branco que, na tentativa de desbravar o Harlem, não aceita a rejeição.

‘Esse branco desgraçado!’, ela disse. ‘Só porque te pagam, ficam achando que são teu dono. Nenhum homem branco vai ficar mandando em mim não. Eu dou umas risadas com eles, aí já acham que eu tô gostando. Que inferno, eu sou lá do Arkansas, lá esses caras fazem linchamento dos pretos no meio da rua. Como é que eu vou gostar desse povo? (Hughes, 1990, p. 65, tradução minha).[11]

No excerto selecionado, chama a atenção a relação de posse que Mr. Lloyd tenta exercer sobre Pauline, a qual, ousadamente, recusa seu domínio. Surge também a questão dos linchamentos na fala da personagem, realidade que, como já mencionamos, é recorrente na ficção de Langston Hughes. Ao final da narrativa, após perseguir Pauline pelas ruas do Harlem e não conseguir encontrá-la, Mr. Lloyd torna-se o colonizador branco que não suporta a derrota. Isso se materializa no conto pela insanidade que o acomete. Sem ter a mulher negra para si e desconhecendo por completo seu paradeiro, o rico homem branco de Nova York perde suas faculdades mentais diante da recusa de Pauline.

O chauffeur me disse ontem que ele surtou de vez. Às vezes, acha que é um garanhão perseguindo uma égua, às vezes vira um leão. Coitado, preso numa daquelas celas acolchoadas! Ele era um cara maneiro quando estava com a cabeça no lugar (Hughes, 1990, p. 68, tradução minha).[12]

Utilizando a terminologia de Judith Butler, esse enquadramento de um certo exotismo negro é, portanto, ponto fundamental na investigação dos contos de Langston Hughes. Por conseguinte, eis um ângulo na composição dos corpos negros: o discurso colonialmente tecido no projeto de desumanização da negritude. Assim, este breve estudo da narrativa do autor norte-americano nos ajuda a desvelar as camadas complexas que o racismo possui, uma vez que ainda está enraizado entre nós como linguagem.

Com Frantz Fanon, nesse sentido, aprendemos a ver além das máscaras brancas em uma cisão colonial que ainda nos circunda. Com Aimé Césaire, entendemos do que se trata a Negritude em sua violenta construção discursiva. Presentemente, com Grada Kilomba, Achille Mbembe e nossos contemporâneos, aprendemos que ainda há muito pela frente se pretendemos vislumbrar uma sociedade mais democrática e menos racista. Indubitavelmente, então, com a união de todas essas vozes, enxergamos no blues de Langston Hughes e nas coloridas paredes do Harlem uma fantasia da qual não nos livramos e contra a qual faz-se necessário se posicionar.

Por fim, delineando um desfecho deste percurso que aqui cogitamos entre corpos, linguagens e vivências, deixamos nossa saudosa lembrança a Chadwick Boseman (1976-2020), ator que, dentre seus diversos importantes papéis, deu a milhões de crianças negras ao redor do mundo a possibilidade de incorporarem o heroísmo de que nossa geração tem estado profundamente necessitada. Boseman foi o famoso Pantera Negra nas telas, ecoando o lema “Wakanda forever” para todos que entendem a linguagem como um campo de batalha necessário. Langston Hughes não conheceu Wakanda, mas criou em sua obra uma atemporal resistência para vozes até hoje atravessadas pela violência do estereótipo, do enquadramento e do reducionismo.

Hughes nos deixou em 1967 vítima de um câncer. Boseman, com a coincidência trágica que por vezes a vida toma de empréstimo da ficção, partiu em 2020 também vítima de câncer. Ambos, todavia, nos ensinam que a morte pode ser contornada pela potência da linguagem. É dever das vozes que ficam manter viva a memória dos que entre nós já não mais estão. Seja no Harlem, seja em Wakanda, sonhar é preciso.

Foram necessários cinco séculos para que chegássemos até aqui. Que seja a nossa, portanto, uma geração de alforriados.


* Gabriel Chagas é doutorando em Literatura Comparada na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É professor da educação básica e tem mestrado em Letras pela mesma instituição. Em 2020, publicou o artigo “Eu também sou América: pensando a consciência racial norte-americana a partir de Langston Hughes e Walt Whitman”, na Revista Garrafa (UFRJ).

 

Referências

BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.

CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre a Negritude. Belo Horizonte: Nandyala, 2010.

FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.

GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984, p. 223-244.

HUGHES, Langston. The ways of white folks. Nova York: Vintage classics edition, 1990.

KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Lisboa: Antígona editores refractários, 2014.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Nem preto nem branco, muito pelo contrário: cor e raça na sociabilidade brasileira. São Paulo: Claro Enigma, 2012.

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Tradução: Sandra Regina Goulart Almeida, Marcos Pereira Feitosa, André Pereira Feitosa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

WILLIAM, Rodney. Apropriação cultural. São Paulo: Pólen, 2019.

 

Notas

[1] “She made a mental note that she must go up there [Harlem] sometime, for she had never yet seen that dark section of New York; and now that she had a Negro protegee, she really ought to know something about it. Mrs. Ellsworth couldn’t recall ever having known a single Negro before in her whole life, so she found Oceola fascinating. And just as black as she herself was white” (Hughes, 1990, p. 106).

[2] “I must get her out of Harlem,’ said Mrs. Ellsworth, ‘at once. I believe it’s worse than Chinatown.’ \ ‘She might be in a more artistic atmosphere,’ agreed Ormond Hunter.” (Hughes, 1990, p. 107-8).

[3] “If you wanted to play the piano or paint pictures or write books, go ahead! But why talk so much about it? Montparnasse was worse in that respect than the Village. And as for the cultured Negroes who were always saying art would break down color lines, art could save the race and prevent lynchings! ‘Bunk!’ said Oceola.” (Hughes, 1990, p. 112-3).

[4] “You could shake the stars with your music, Oceola. (…) And yet you propose to dig a grave for yourself. Art is bigger than love.” (Hughes, 1990, p. 121).

[5] “I’ve been away from my own people so long,’ said the girl, ‘I want to live right in the middle of them again” (Hughes, 1990, p. 118).

[6] “The girl at the piano heard the white woman saying, ‘Is this what I spent thousands of dollars to teach you?’ \ ‘No’, said Oceola simply. ‘This is mine. … Listen! … How sad and gay it is. Blue and happy — laughing and crying’.” (Hughes, 1990, p. 122).

[7] “Primitive man never sits in chairs. Look at the Indians! Look at the Negroes! (…) They live through motion, through movement, through music, through joy! (Remember my lecture, ‘Negros and Joy?’)” (Hughes, 1990, p. 71-2).

[8] “the best music, jazz, real primitive jazz out of Africa” (Hughes, 1990, p. 84).

[9] “When they had finished, the movement, the music, and Lesche’s voice, made them feel all warm and close to the earth, and as though they never wanted to leave the Colony of Joy or to be away from their great leader again.” (Hughes, 1990, p. 91).

[10] “a sure way to make money would be, combine jazz band and a soul colony, and let it roll from there – black rhythm and happy souls.” (Hughes, 1990, p. 80).

[11] “A white bastard!” she said. “Just because they pay you, they always think they own you. No white man’s gonna own me. I laugh with ‘em and they think I like ‘em. Hell, I’m from Arkansas where the crackers lynch niggers in the streets. How could I like ‘em?”. (Hughes, 1990, p. 65).

[12] “The chauffeur told me yesterday he’s crazy as a loon now. Sometimes he thinks he’s a stud-horse chasing a mare. Sometimes he’s a lion. Poor man, in a padded cell! He was a swell guy when he had his right mind.”  (Hughes, 1990, p. 68).

 

A VOLTA DOS MORTOS-VIVOS E A COVID-19: NECROPOLÍTICA NA PANDEMIA


A política de poder sobre o corpo negro

“Ontem a Serra Leoa/ A guerra, a caça ao leão/ O sono dormido à toa/ Sob as tendas d’amplidão/ Hoje… O porão negro, fundo,/ infecto, apertado, imundo/ Tento a peste por jaguar”. Em seu poema O navio negreiro, Castro Alves (1868-70) narra o confinamento dos negros escravizados e a perda de sua antiga vida. A poética do autor abolicionista evidencia práticas segregacionistas do passado que se repetem no presente. Desta vez, não em relações de poder físico, em que há donos de escravos e povos escravizados, mas através de um poder socialmente construído, direcionado à mesma raça-cor.

Diante da Covid-19, e da quarentena que se alastrou junto dela, é preciso lembrar das favelas e periferias que já sobrevivem ao isolamento e à exclusão social, da precariedade no setor da saúde, além da morte do corpo negro por violência policial. Castro Alves, infelizmente, descreve em seu poema os navios negreiros, mas também a favela negra, suas casas apertadas e infectadas.

E tal correlação não é aleatória. De acordo com Mbembe, “a política de raça, em última análise, está relacionada com a política de morte”. Neste contexto, excluir uma parte da população mais pobre e racializada é uma decisão tão determinante para a sobrevivência dessa população quanto a escravidão em si. “Com efeito, em termos foucaultianos, racismo é acima de tudo uma tecnologia destinada a permitir o exercício do biopoder, ‘aquele velho direito soberano de morte’” (Mbembe, 2018, p. 18).

A soberania de Mbembe, essa capacidade de definir quem importa e quem não importa, quem é “descartável” e quem não é, é uma herança histórica e cultural, como explica Fanon (2008, p. 105) “Eu era ao mesmo tempo responsável pelo meu corpo, responsável pela minha raça, pelos meus ancestrais”. Em seu livro, mais especificamente no texto “A experiência vivida do negro”, Fanon aponta a pele negra como “uma mácula” que o evidencia na sociedade e automaticamente o coloca às margens. Seja com o olhar assustado do branco, seja com os fetiches que envolvem o corpo negro, seja com a ignorância do Estado diante das suas necessidades.

Essa consciência instaurada no corpo e na mente de Fanon não é aleatória, como apontado anteriormente. O indivíduo negro é colocado ao nascer em precariedade; sua vida, socialmente falando, passa a “valer menos” do que a dos corpos brancos ao seu redor. Trazendo Foucault (2018, p. 210) para a conversa, “a totalidade do indivíduo não é amputada, reprimida, alterada por nossa ordem social, mas o indivíduo é cuidadosamente fabricado, segundo uma tática das forças e dos corpos”.

Mas esse exercício de poder pretende, de alguma forma, se mostrar aleatório sobre o indivíduo. Mostrar, de alguma maneira, que a culpa por essa evidência social é dele e não do Estado que o coloca às margens. Isso fica muito claro, no texto de Fanon (2008, p. 125), quando ele diz: “Eu sou culpado. Não sei de quê, mas sinto que sou um miserável”.

A “culpa de ser negro” é o motivo da sua morte. Seja pela falta de cuidados sanitários básicos na favela; seja pela bala perdida ou pela violência social. Essa rixa socialmente estabelecida entre brancos e negros é, nesse enredo, “culpa de ser negro”. É essa culpa que o coloca como corpo vigiado e vigilante sobre a própria forma de existir. Sobre o que usa, como anda e como se porta.

Mbembe nega essa culpa, essa crença de que o sujeito é o principal autor do seu próprio significado. Até porque o corpo negro não possui autonomia suficiente para tal. O autor se preocupa com as formas de soberania cujo projeto central é a desumanização dos corpos e populações humanas. Colocando-os em uma guerra política em que torna a existência desses corpos dispensáveis e descartáveis. “Se considerarmos a política uma forma de guerra, devemos perguntar: que lugar é dado à vida, à morte e ao corpo humano (em especial o corpo ferido ou morto)? Como eles estão inscritos na ordem de poder?” (Mbembe, 2018, p. 6-7).

Nesse questionamento, podemos perceber novamente a presença de Fanon, que narra, no fim de seu texto, o encontro de seu irmão com um “estropiado da guerra do Pacífico”. O ex-combatente diz: “Aceite a sua cor como eu aceito o meu cotoco; somos dois acidentados”. Logo depois, Fanon reitera o pensamento do homem: “Eu sou dádiva, mas me recomendam a humildade dos enfermos” (Fanon, 2008, p. 126).

A necessidade dessa relação entre “culpa” e “negritude” existe, em parte, porque algumas pessoas lucram imensamente com a dominação dos outros. Bell Hooks, em Olhares negros, diz que, mesmo não existindo mais uma dicotomia senhor de escravo e escravo, ainda existe um sistema que “promove a dominação e submissão” (Hooks, 2019, p. 48).

Esse “lucro” aparece nas relações fetichizantes entre o corpo branco e o corpo negro; em espaços de trabalho, onde pessoas negras podem receber menos e em que políticas afirmativas são apontadas como “racismo reverso”;[1] no olhar marginal que sempre coloca a negritude como algo perigoso e correlacionado ao violento. Todas essas práticas não apenas põem a existência negra como marginal, mas a branquitude como central na sociedade em que está inserida. “Dentro da cultura das commodities, a etnicidade se torna um tempero, conferindo um sabor que melhora o aspecto da merda insossa que é a cultura branca dominante” (Hooks, 2019, p. 57).

Essa introdução ao tema, à primeira vista, pode parecer redundante, mas é essencial para se entender as práticas e relações com o racismo construídas no longa A noite dos mortos-vivos (1968). Elas marcam e delimitam como o corpo de Ben foi e ainda é entendido e consumido pelos espectadores. Suas interpretações, como veremos a seguir, vão do dispensável até o necessário como sacrifício para a sobrevivência da branquitude e são um paralelo claro quando colocadas lado a lado com a Covid-19 e o distanciamento social.[2]

Sobrevivendo A noite

Ben (Duane Jones), em A noite dos mortos-vivos (1968), termina uma noite apocalíptica olhando com esperança para um grupo de humanos que, assim como ele, sobreviveu a um ataque de zumbis. No entanto, é nesse momento em que o escritor e roteirista, George A. Romero, lembra o espectador de que os Estados Unidos, na época da produção e subsequente lançamento do filme, estão mergulhados em conflitos raciais. Então Ben é baleado na cabeça.

Duane Jones como Bem em A noite dos mortos-vivos, de George Romero (1968). (Domínio público)
Duane Jones como Bem em A noite dos mortos-vivos, de George Romero (1968). (Domínio público)

Para Coleman (2018, p. 189), “a morte de Ben foi chocante, mas talvez tenha sido um dos momentos mais realistas do filme, já que ele é morto pelos seus ‘inimigos naturais’, os policiais e caipiras de Pittsburgh”. Mas a morte de Ben também pode ser interpretada como uma reprimenda severa contra o personagem. Isso porque Romero apresenta ao espectador uma inversão de papéis sociais naquela pequena casa em reforma, assim como uma inversão de papéis biológicos do lado de fora, ao pôr os mortos de volta à vida. Dentro daquelas paredes, Ben está com o seu “inimigo natural”, entendido aqui como o pai de família e homem branco, Harry.

Harry possui todo e total controle sobre sua esposa e a filha doente, que logo descobrimos ter sido mordida por um dos “mortos-vivos”. Já Ben toma o controle da casa, cria planos, estratégias, e tem uma constante necessidade de liberdade que as paredes da casa lhe tiram.

Repetidamente, o espectador e os demais personagens são postos no meio do embate do homem branco e do homem negro. Ambos têm visões importantes sobre o assunto “sobreviver”, mas não conseguem ver a utilidade do outro pelo (1) desespero da morte literalmente batendo à porta e (2) pelo racismo. Harry não apenas ignora e chama o plano de Ben de “arriscado” e “idiota”, mas se recusa a ajudá-lo de qualquer forma. Ben, por outro lado, insiste, tenta conversar e, quando não vê solução, deixa que Harry “se vire com a filha e mulher dele”. “As ansiedades raciais são realçadas quando Ben faz algo que nunca havia sido feito por um personagem negro em um filme de terror: Ben derruba Harry com uma pancada, o levanta e bate nele de novo, deixando Harry ensanguentado e com hematomas” (Coleman, 2018, p. 187). Mas, antes disso, Ben mostra que a situação em que está inserido já lhe tirou de uma dinâmica social “branco x negro” comum, em que o branco domina e subalterna o negro.

Ao encontrar na casa Barbara, que foi levada até o local após ver o irmão assassinado por uma “daquelas coisas” – como Ben se refere aos mortos-vivos –, Ben toca em seus braços, fala diretamente com ela, pede sua ajuda e, em vários momentos, grita com a mulher catatônica, que passa a maior parte do filme jogada no sofá.

Ironicamente, a única pessoa que parece percebê-lo como um semelhante é Tom, o “caipira”, e em alguns momentos a namorada de Tom, Karen. Tom convence Karen a ajudar Ben a arranjar gasolina para seu carro e tentar partir para um lugar mais seguro. Devido a casualidades que nenhum dos personagens poderia prever, o plano termina na morte de Tom e Karen, na explosão do carro e no retorno de um Ben chocado para a casa.

Por um momento, Harry pensa em deixar Ben trancado para o lado de fora, mas esse pensamento apenas resulta em mais conflito. Coleman explica que, até aquele momento, 1968, era raro que algum tipo de filme mostrasse um homem negro batendo em um branco. E, pelo decorrer do enredo, era ainda mais difícil acreditar que Ben era o herói da trama e que teria alguma possibilidade de sair vivo da história.

O que acontece no fim, como já foi dito anteriormente, é que Ben sobrevive à noite, mas morre pelas mãos de seu “inimigo natural”. A derrota de Ben acontece em dois momentos distintos: (1) quando Harry, o homem branco, se nega a ajudá-lo em seus planos para sobreviver, obrigando Ben a se esconder no porão e ver a casa ser invadida por zumbis; e (2) quando as tensões raciais enfim eclodem e um desconhecido, também branco, atinge uma bala em sua cabeça.

Esse receio latente da morte pelas mãos de uma autoridade branca pode ser percebido no dia a dia da comunidade negra, mas é, em resumo, uma resposta histórica (não apenas) à diáspora africana, à escravidão e ao racismo estrutural. Achille Mbembe (2018, p. 146) narra essa falta de liberdade como uma “morte em vida”. A soberania, do branco, no caso, é “a capacidade de definir quem importa e quem não importa, quem é ‘descartável’ e quem não é”.

No filme Corra! (2018), de Jordan Peele, essa situação racial é vista na pele do personagem desde o encontro com os pais de sua namorada até os momentos finais. Mas, como Peele planejava, o longa toma um rumo muito diferente. Ao contrário da “realidade” abordada em A noite dos mortos-vivos, em Corra! Jordan busca um final “lúdico” e talvez “otimista” para uma realidade que já tirou tudo do protagonista, Chris Washington. Que já tirou tudo do público negro experienciando o longa. Chris vive mais um dia para voltar para casa.

Sob a mira da arma, Ben, Chris e tantos outros corpos negros parecem possuir o status de “mortos-vivos”:

propus a noção de necropolítica e necropoder para explicar as várias maneiras pelas quais, em nosso mundo contemporâneo, as armas de fogo são dispostas com o objetivo de provocar a destruição máxima de pessoas e criar “mundos de morte”, formas únicas e novas de existência social, nas quais vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes conferem o estatuto de “mortos-vivos” (Mbembe, 2018, p. 71).

É curioso pensar que a sobrevivência e a morte de Ben se dão porque ele é, em parte, semelhante aos seus novos inimigos, os zumbis. Nesse novo “mundo de morte” elaborado em A noite…, Ben cresceu cercado pelo status de “morto-vivo” ao ser minado de sua liberdade por ser um homem negro, crescido nos anos 1960, em uma década em que o movimento negro ainda tentava ganhar espaço revolucionário.

Característica que também evidencia um subtexto de conflito racial entre brancos e negros na relação de vivos e mortos em A noite dos mortos-vivos. O medo de uma revolução negra, que faria o branco “pagar” pelos anos de escravidão, estava presente. Políticas segregacionistas, como pintar o corpo negro como marginal, entre outras práticas sociais, eram uma prova disso.

Quatorze anos antes, o livro Eu sou a lenda colocaria um protagonista homem, branco e culto diante da criação de uma sociedade em que ele se torna o “anormal”. “Naquele momento, pensou: eu sou o anormal aqui. Normalidade era um conceito de maioria, um padrão de muitos e não o padrão de apenas um homem” (Matherson, 2016, p. 170). No livro, seguimos a solidão angustiante de Robert Neville em um mundo assolado por um vírus “vampiro” que transforma alguns seres humanos em zumbis e outros em uma nova forma de vida inteligente, que promete recriar a sociedade humana do zero.

Patterson lê Eu sou a lenda como uma tentativa insegura de superar angústias raciais, na qual os vampiros seriam uma representação pouco disfarçada dos afro-americanos. Como ela escreve, o romance “contém em suas entrelinhas um significado racial pungente que torna ‘diferenças raciais e vampirismo sinônimos’” (Clasen, 2015, p. 181).

“Vampiros” aqui são uma metáfora para “o outro, a mãe, o subalterno, o limítrofe, a pulsão de morte, o falo, a vagina, o capitalismo, a colonização, a sexualidade feminina, a sexualidade amorfa” (Clasen, 2015, p. 181). Assim como, de certa forma, também o “morto-vivo” se torna uma metáfora para o “outro”. Ben se afasta do conflito racial, cria novas relações de poder com os brancos com quem divide o espaço, mas também com os seres semelhantes a ele de forma metafórica. Isso porque, como diria Mbembe (2018, p. 29), Ben viveu “uma forma de morte-em-vida”.  A cor de sua pele marca como ele é “descartável” para a sociedade na qual está inserido. Mas, por outro lado, também marca a capacidade física e psicológica de sobreviver a uma catástrofe inimaginável, mas com um final que confronta uma realidade injusta.

Esse status de “morto-vivo” fica ainda mais aparente na cena dos créditos. Através de fotos granuladas, vemos corpos serem carregados até uma pira e serem queimados em uma fogueira. O corpo de Ben está entre eles. Ele é levantado por um gancho de carne e jogado para junto de braços e pernas de zumbis.

A cena traz tantas memórias e conexões a brutalidade contra afro-americanos nos anos 60. Como a ocorrida contra Mack Charles Parker, acusado de estuprar uma mulher branca e, consequentemente, assassinado e linchado por um grupo de homens brancos (Powell, 2009, p. 28; tradução minha).

Dezoito anos depois da estreia de A noite…, Barbara diria no remake do filme (1990): “Eles somos nós e nós somos eles”, ao se deparar com uma cena semelhante. Após ver os “caipiras”, como são descritos anteriormente no filme, se divertirem às custas do corpo de um zumbi, Barbara olha chocada para o que a sociedade parece ter se tornado. Mas, no trabalho original de Romero, percebe-se que o diretor estava tentando mostrar uma cena que poderia ser encontrada na realidade. Podemos ver isso na própria escalação dos “caipiras”, que eram homens, policiais, pessoas da vida cotidiana de Pittsburgh:

o desgosto que o público é levado a sentir em relação aos personagens é aumentado e se transforma em desprezo real e ódio quando fica entendido que se trata de pessoas reais dos fundões de Pittsburgh. Além disso, em entrevistas, embora Romero seja cuidadoso para não alienar aqueles que tanto o ajudaram ao se voluntariar para o filme, ele admite não “ter feito muita coisa” para dirigir a atuação dessas pessoas, já que a “fantasia metafórica confronta uma realidade mal filtrada” (Coleman, 2018, p. 188).

Pode-se traçar um paralelo muito claro sobre a forma como o corpo de Ben é tratado após a sua morte e o poder da execução pública descrito por Foucault (2018, p. 52): “Um corpo liquidado, reduzido à poeira e jogado ao vento, um corpo destruído parte por parte pelo poder infinito do soberano, constitui o limite não só ideal, mas real do castigo”. Ben, mesmo sem Romero ter consciência disso, é castigado por mudar as relações de poder naquele pequeno espaço, assim como os zumbis são castigados por modificarem a ordem natural e biológica das coisas e, por sua vez, também podem ser lidos como um castigo ou “pesadelo” criado pelo e para o homem branco dessa modernidade. O medo de uma revolta.

Esse “mundo de soberania” (Mbembe, 2018, p. 15), onde se decide quem deve viver ou morrer, é revisitado por Romero em seus três filmes seguintes – Despertar dos mortos (1978), Dia dos mortos (1985) e Terra dos mortos (2005) – e todos, em algum grau, são construídos ou despedaçados a partir de um confronto racial ou social.

Em Despertar dos mortos, por exemplo,

Grupos de oficiais da SWAT, predominantemente brancos (uma versão urbana dos “caipiras” mostrado em Noite), atravessam cortiços, pouco se importando em distinguir zumbis dos residentes humanos negros e não brancos dos prédios: “Acabe com todos os porto-riquenhos e os crioulos de uma vez!”. Uma violenta limpeza racial/étnica e de zumbis começa quando os residentes se recusam a sair de sua casa conforme ordenado (Coleman, 2018, p. 193).

Quando os grupos de sobrevivência já estão formados, em algum momento, as relações raciais parecem interferir nas relações sociais. Em Dia dos mortos, Sarah é constantemente “humilhada” pelos militares com quem divide espaço, sua opinião sendo posta de lado por ser mulher e objeto de desejo dos homens. Assim como o personagem negro, John, que prefere viver “isolado” para não precisar conviver e aturar as atitudes machistas e racistas dos militares.

Em seus filmes, Romero constantemente cria esse novo grupo – composto majoritariamente por homens brancos – de “caipiras” apresentados em A noite. Decerto, eles são uma lembrança ácida de que, mesmo com uma inversão social completa, a branquitude ainda é utilizada como uma forma de poder social.

“O ponto principal em relação a Ben [A volta dos mortos-vivos], Peter [Despertar dos mortos] e Jon [Dia dos mortos] é que todos eles possuem controle sobre seus corpos, conseguem usá-los para sobreviver, sabem como fazer coisas com eles” (Dyer, apud Coleman, 2018, p. 198). Essa presença corporal vai além da construção dos personagens e de encontro à negritude deles, suas dores e formas de existir em uma sociedade que já os oprime. E é essa mesma presença e segurança de si que faz com que Harry, os “caipiras” e os militares vejam neles um perigo.

Ele [Romero] descreve diversos níveis de racismo, de um grupo que cuida dos seus objetivos e é cético em relação à presença de um homem negro em sua casa e sua família; grupo tão definido que não vê a diferença entre matar um zumbi ou um homem negro inocente (Powell, 2009, p. 29; tradução minha).

Nesse contexto de terror, para um corpo negro, o medo não estaciona na possibilidade de os mortos voltarem à vida, mas no que pode surgir na luz da manhã, no farol do carro, no som da sirene. “A noite é escura (negra), mas a luz do dia traz outro mal na forma da multidão (branca)” (Coleman, 2018, p. 189).

A “morte em vida” do corpo negro

Com essa análise, já é possível perceber que a morte de Ben em A noite dos mortos-vivos não é acidental. Seu corpo ser jogado junto aos dos “zumbis” é equiparar a sua luta, resistência e existência à de um morto-vivo. Pois sua existência social também era vista e entendida de tal maneira. Como um fardo que, hora ou outra, teria que terminar essa “morte em vida”, fosse pela mão do “branco salvador”, surgido na manhã; fosse por sua existência ser negligenciada por entidades sociais e políticas; fosse de forma natural.

Esse processo de desumanização pode ser percebido historicamente, sofrido não apenas pelo corpo negro, mas por qualquer um que a estrutura política entenda como um “inimigo”, um “outro” social e temporalmente estabelecido. Como visto na Revolução Francesa e na Segunda Guerra Mundial:

Segundo Enzo Traverso, as câmaras de gás e os fornos foram o ponto culminante de um longo processo de desumanização e de industrialização da morte, sendo uma de suas características originais a de articular a racionalidade instrumental e a racionalidade produtiva e administrativa do mundo ocidental moderno (a fábrica, a burocracia, a prisão, o exército). Mecanizada, a execução em série transformou-se em um procedimento puramente técnico, impessoal, silencioso e rápido. Esse processo foi, em parte, facilitado pelos estereótipos racistas e pelo florescimento de um racismo de classe que, ao traduzir os conflitos sociais do mundo industrial em termos racistas, acabou comparando as classes trabalhadoras e “o povo apátrida” do mundo industrial aos “selvagens do mundo colonial” (Mbembe, 2018, p. 21).

Esse embate entre Sociedade e Estado parece ser o que produz a noção de um “corpo social periférico” passível de morte. E o que parece manter essa noção viva, diferente de outras construções do “outro”, é uma herança da escravidão, “que pode ser considerada uma das primeiras manifestações da experimentação biopolítica” (Mbembe, 2018, p. 27).

E, quando passamos a falar sobre igualdade, liberdade, propriedade e comunidade em relação ao Estado moderno, para Partha Chatterjee (2004), estamos falando da história política do capital. Essa relação e essa produção de indivíduos periféricos são moldadas a partir de uma visão de classe social, raça, gênero e sexual, em algumas instâncias.

Uma evidência dessa relação de poder é o resultado da pesquisa que coloca o Brasil como “o país que mais mata transexuais no mundo” (Germano, 2016), mas também o que mais procura pornografia transexual no Redtube. Em um contexto social, uma grande parte desses corpos presentes na pornografia e nessas listas de óbito é preta. Tanto por não terem estrutura econômica e se colocarem nas ruas para ganhar dinheiro, quanto por serem duplamente marginalizados, como pessoas negras e LGBT+.

Essa relação de poder sobre esse corpo “afeminado” e preto evidência o “mundo da soberania”, descrito por Bataille. Um mundo

no qual o limite da morte foi abandonado. A morte está presente nele, sua presença define esse mundo de violência, mas, enquanto a morte está presente, está sempre lá apenas para ser negada, nunca para nada além disso. O soberano […] é ele quem é, como se a morte não fosse… Não respeita os limites de identidade mais do que respeita os da morte, ou, ainda, esses limites são os mesmos; ele é a transgressão de todos esses limites (Bataille, apud Mbembe, 2018, p. 15).

Nele, esse corpo marginalizado é consumido pela mesma população que o mata. O corpo travesti e preto tem sua identidade consumida pelo e para o prazer do “soberano”, aqui entendido como o branco, mas, fora da tela do computador, dos vídeos pornôs, sua existência é negada, desrespeitada e transgredida.

E tais práticas vão se instaurando socialmente de diversas formas, mas parecem sempre expor esses dois lados da moeda, “soberano” e “submisso”. Lenin Pires também coloca tais práticas em pauta ao estudar a forma como o Estado entende e interage com camelôs e vendedores ambulantes:

Estamos lidando com uma forma sofisticada de exercício de poder, onde não estabelecer um padrão é, por excelência, o padrão que permite, vez por outra, o recrudescimento de formas violentas de lidar com cidadãos que, a priori, são precários em sua própria existência (Pires, 2017, p. 310).

Essa existência a priori do próprio indivíduo pode ser entendida nas práticas que o Estado e os indivíduos soberanos mantêm sobre esses cidadãos “precarizados”. Surgem nos pormenores que vão além do Direito teórico e escrito e transparecem nas palavras, entonações e tratamento desses corpos. Na violência policial, por exemplo.

A produção de violência descabida contra o corpo negro, seja na ficção ou realidade, é uma forma de manter esse sistema presente, mesmo tanto tempo após a Diáspora Africana:

Da escravidão em diante, os supremacistas brancos reconheceram que controlar as imagens é central para a manutenção de qualquer sistema de dominação racial. No ensaio “Identidade cultural e diáspora”, Stuart Hall enfatiza que podemos entender bem o caráter traumático da experiência colonial ao reconhecer a conexão entre dominação e representação (Hooks, 2019, p. 33).

Mesmo que, no enredo de A noite dos mortos-vivos, Ben tenha sido “confundido com um zumbi”, o final trágico do herói – que nas palavras de Jordan Peele (2017) “é um homem que vive em constante medo por ser negro, então o desafio de sobreviver a ‘noite’ é um para o qual ele está preparado” (Wilkinson, 2018; tradução minha) – tem um contexto racial que perpassa a década de 1960 e consegue ser posto em paralelo com o corpo negro e a letalidade da Covid-19 em 2020. Em específico, um caso que despertou a revolta do movimento negro durante a pandemia, o assassinato de George Floyd.

Quando George Floyd, um homem negro de Minneapolis, Estados Unidos, foi preso por dois policiais após uma resposta a um chamado dizendo que um homem tentava usar cartões falsos em uma loja de conveniência, o maior risco para ele parecia ser a pandemia, que já se seguia por mais de um mês.

Mas o que aconteceu foi que Floyd foi algemado e posto no chão, com o joelho de um dos policiais, Derek Chauvin, um homem branco, pressionando seu pescoço. A certa altura do vídeo feito por uma testemunha, George pede para que “não o mate” e diz: “Não consigo respirar”. A frase que marcou os subsequentes protestos foi uma das últimas ditas por George.

Durante os três últimos minutos, de um vídeo de dez, a vítima, George, ficou imóvel no chão, mas os policiais não fizeram nenhuma tentativa de revivê-lo; pelo contrário, Chauvin manteve o joelho no pescoço de Floyd. A injustiça no caso de Floyd é gritante e, ao ser posto em paralelo com Ben, não é difícil perceber que, para o corpo negro, existem perigos ainda maiores que um vírus. No meio de uma quarentena, o mais “comum” no interior dos Estados Unidos parece ser a morte de um negro sob a mão de um policial branco.

Esse reflexo da violência contra o corpo negro em meio à pandemia não se concentra apenas nos Estados Unidos. Segundo dados da gestão João Doria (PSDB), governador de São Paulo, publicados no Diário Oficial, o número de “mortes decorrentes de intervenção policial” envolvendo a Polícia Militar paulista subiu 54,6% em abril de 2020, em comparação com os meses anteriores deste mesmo ano. Nesse período, a quarentena contra o coronavírus já estava em vigor no Estado.

No mesmo período, em março e abril, 290 pessoas morreram no Rio de Janeiro em operações policiais, número de vítimas que equivale a um terço dos mortos pela política norte-americana em todo o ano de 2019 (Gortázar, 2020). O alto número de mortes traz um questionamento à tona: o que é mortal no corpo negro diante de um vírus letal?

Na resposta a esta pergunta, nomes como João Pedro, Igor, George, Breonna, entre outros, formam uma lista de vítimas que contam uma história parecida.

Igor Rocha Ramos, por exemplo, era negro, tinha 16 anos e vivia no Jardim São Savério, periferia da zona sul de São Paulo. Às 13h15 de 2 de abril de 2020, ele furou o isolamento social para comprar pão de cachorro-quente e um maço de cigarro para a mãe. Cerca de vinte minutos e um tiro na nuca depois, o jovem entrou para o contingente de pessoas mortas durante ações da Polícia Militar de São Paulo.

Já João Pedro Matos Pinto, de 14 anos, foi morto com um tiro na barriga após uma operação conjunta da Política Federal e da Política Civil no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, no Rio de Janeiro, no dia 18 de maio. Sequestrado por um helicóptero do Corpo de Bombeiros, o jovem desapareceu por horas e foi encontrado apenas na manhã do dia seguinte pela família no Instituto Médico-Legal de Tribobó, na mesma cidade.

Tais mortes deram início a uma onda de protestos que se espalhou pelo mundo. Nas redes sociais, o movimento foi impulsionado pela hashtag #VidasNegrasImportam. Bandeiras antirracistas e de combate à violência policial estiveram presentes em atos sociais e políticos. Tudo isso, novamente, em meio a uma pandemia. Em São Paulo, as manifestações terminaram com a PM usando balas de borracha e bombas de gás lacrimogêneo para a dispersão – ação posteriormente aprovada pelo governador João Doria para separar “vândalos de manifestantes”.

Toda a descrição desse panorama político e social de enfrentamento diante de uma injustiça serve, principalmente, para fazer o paralelo entre o Estado e o “Outro”. Esses parâmetros foram aqui estabelecidos historicamente ao colocar o corpo negro em um espaço culturalmente “perigoso” e foram reforçados durante a pandemia, a ponto de os negros – mesmo com a recomendação de um isolamento social pelas autoridades e embora os crimes em geral tenham diminuído – ainda serem vítimas de um racismo estrutural e subsequente morte.

Nas palavras de Ben, em A noite dos mortos-vivos: “Eles irão nos pegar, não importa onde estejamos”. O que Ben descreve é o medo de uma minoria perseguida, um medo que acomete até mesmo o autor deste artigo em meio a um distanciamento social.

Parece que, tanto na tela do cinema quanto na realidade, em um estado de calamidade, algumas “prioridades sociais” não se adaptam à situação. Pelo contrário, a presença delas parece continuar forte no imaginário coletivo, ou até mesmo se intensifica. No mundo de A noite…, por exemplo, a manhã trouxe a normalidade da morte de Ben, mas também a salvação da sociedade moderna. Os homens brancos armados até os dentes são, em algum aspecto, os mantenedores da ordem social já estabelecida. Na concepção deles, os mortos irão continuar mortos e os negros sem poder garantir a própria vida.

Considerações finais

O intuito deste breve ensaio é colocar em paralelo o longa-metragem de George A. Romero e a presença política e social do corpo negro diante da Covid-19. O motivo de produzir uma análise como esta, da ficção para a realidade, é encontrar semelhanças com conflitos sociais da década de 1960, mostrar que o corpo negro está em uma posição de risco em meio à quarentena e que ainda é necessário debater as práticas segregacionistas que levam à morte desses corpos.

O movimento Black Lives Matter e todos os seus semelhantes são práticas imprescindíveis para demonstrar que não é apenas “uma morte”, “um caso”, “um ocorrido”. Pelo contrário, são atitudes racistas que permeiam a vida de corpos negros, seja no Brasil, seja nos Estados Unidos. Este artigo pretende o mesmo: apontar que não é apenas um marcador geográfico que separa situações tão incômodas, mas também marcadores temporais e até ficcionais.

Trazer Ben para o debate é mostrar que a luta contra o genocídio do corpo negro não é recente. A partir dessas interpretações e eventos, é importante questionar quais são as “prioridades sociais” diante de uma calamidade global como tem sido a Covid-19. Muito menos que resultados, esta análise pretende questionar, documentar e exercitar teorias em busca de descolonizar o pensamento e produzir, por fim, práticas antirracistas. Ou melhor, questionamentos antirracistas.


* Junno Sena, 24, é escritor, ilustrador, jornalista e mestrando em antropologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Teve textos publicados na revista Cult e no portal Geledés.

 

Referências

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CHATTERJEE, Partha. The Politics of the Governed: Reflections on popular politics in most of the world. Columbia University Press, 2004.

CLASEN, Mathias. Apocalipse vampiro: uma crítica biocultural de Eu sou a lenda. In: MATHESON, Richard. Eu sou a lenda. São Paulo: Aleph, 2015.

COLEMAN, Robin R. Means. Horror Noire. São Paulo: DarkSide, 2018.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.

FOUCALT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 2018.

GERMANO, Felipe. Brasil é o país que mais procura por transexuais no RedTube; e o que mais comete crimes transfóbicos nas ruas, SuperInteressante, 18 de fevereiro de 2016. Disponível em: https://super.abril.com.br/comportamento/brasil-e-o-pais-que-mais-procura-por-transexuais-no-redtube-e-o-que-mais-comete-crimes-transfobicos-nas-ruas/. Acesso em: ago. 2020.

GORTÁZAR, Naiara Galarraga. Mortes em operações policiais aumentam no Brasil apesar da quarentena, El País. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-06-02/mortes-em-operacoes-policiais-aumentam-no-brasil-apesar-da-quarentena.html. Acesso em: agosto, 2020.

HOOKS, Bell. Olhares negros: raça e representação. São Paulo: Elefante, 2019.

MATHESON, Richard. Eu sou a lenda. São Paulo: Aleph, 2016.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: n-1, 2018.

PIRES, Lenin dos Santos. Precários e perigosos: possíveis relações entre formalidade e informalidade em processos de administração de conflitos no Rio de Janeiro. In: GLEDHILL, John; HITA, Maria Gabriela; PERELMAN, Mariano. Disputas em torno do espaço urbano: processos de [re] produção/construção e apropriação da cidade. Salvador: EDUFBA, 2017.

POWELL, Henry. One Generation Consuming the Next: The Racial Critique of Consumerism in George Romero’s Zombie Films. Maine: Colby College, 2009.

WILKINSON, Alissa. George Romero didn’t mean to trackle race in Night of the Living Dead, but he did anyway. Vox, 22 jul. 2017. Disponível em: https://www.vox.com/culture/2017/7/22/15985492/night-of-living-dead-movie-week-george-romero-zombies-get-out-jordan-peele?__c=1. Acesso em 2 mai. 2021.

 

Referências cinematográficas

PEELE, Jordan. Corra, 2017.

ROMERO, George A. A noite dos mortos-vivos, 1968.

ROMERO, George A. Despertar dos mortos, 1978.

ROMERO, George A. Dia dos mortos, 1985.

SAVINI, Tom. A noite dos mortos-vivos, 1990.

 

Notas

[1] Vide o caso do programa de trainee só para negros da Magazine Luiza em 2020 e sua repercussão, interpretado por alguns como “racismo reverso” e “excludente”.

[2] Medidas adotadas para limitar o convívio social com o objetivo de reduzir a propagação de determinadas doenças, no caso, a COVID-19.

ACUÍRLOMBAMENTO E CURA EM UM POEMA DE TATIANA NASCIMENTO


I.

Cada uma de nós está aqui agora porque de alguma forma compartilhamos um compromisso com a linguagem e com o poder que tem, e com recuperar a linguagem que foi usada contra nós. Para a transformação do silêncio em linguagem e ação é vital e necessário que cada uma de nós defina e avalie sua responsabilidade nessa transformação e reconheça seu papel como vital dentro deste processo. Para aquelas de nós que escrevemos, é necessário examinar não só a verdade do que dizemos, mas também a verdade da linguagem que usamos para dizê-lo.

Esta passagem é trecho do ensaio A transformação do silêncio em linguagem e ação, que compõe o primeiro capítulo dos Diários do câncer, de Audre Lorde, publicado em 1980. Este relato visceral ainda não foi traduzido integralmente para o português, tive acesso a ele através da tradução para o espanhol feita por Gabriela Adelstein, publicada pela editora Ginecosofia. Em Diários do câncer, a poeta lésbica afro-americana Audre Lorde narra a experiência de ser diagnosticada com câncer de mama, ter seu seio direito amputado e lidar com a proximidade da morte. Li este primeiro capítulo pela primeira vez em português como um ensaio isolado, mas no contexto do diário, o texto ganhou uma força que me moveu a organizar este texto que se inicia.

Para lidar com a consciência da mortalidade aguçada pelo câncer, Audre utiliza a escrita como um agente que transforma a dor em potência, o medo em ato de afirmação da vida, e o silêncio em linguagem. Ela o faz mergulhada no desejo ávido e vital de conhecer a si mesma e ao seu corpo, narrando a sua história desde um ponto de vista autodefinido e de uma agenda própria, ocupando o lugar de autoria sobre sua própria vida. Em suas palavras, no diário de 29 de dezembro de 1978, “faz meses que quero escrever um texto significativo sobre o câncer: como afeta minha vida e minha consciência como mulher, como lésbica negra, feminista, mãe, amante, poeta, toda a que sou”. Ou ainda no diário de 20 de agosto de 1980, “Descobri que lutar contra o desespero (…) significa ensinar, sobreviver e lutar com o recurso mais importante que tenho: eu mesma, e desfrutar desta luta”.

Faço o mesmo que Audre Lorde e me reconheço como o recurso mais importante que tenho. Toda que sou, a potência advinda do autoconhecimento elaborado por uma mulher negra, se realiza na intersecção de lugares identitários marcados, historicamente legados à inferiorização, desumanização, invisibilização e ao silenciamento. A categoria “mulher”, pretensamente universal, é tantas vezes limitada à agenda de mulheres brancas cis e heterossexuais, não acolhendo as agendas e conhecimentos produzidos por mulheres negras, lésbicas e heterossexuais, alvos da violência epistêmica.

O epistemicídio, termo cunhado por Boaventura dos Santos, aponta para a produção de inexistências (portanto, silêncios) nos domínios do conhecimento científico e filosófico ocidental. Segundo o sociólogo, há um desperdício de experiências e um empobrecimento no horizonte do conhecimento advindo de uma lógica totalizante e homogeneizante, que elege como conhecimento válido apenas o paradigma eurocêntrico, excluindo práticas sociais e saberes que não se encaixam ou submetem a esse sistema de pensamento. Assim, “Há produção de não existência sempre que dada entidade é desqualificada e tornada invisível, ininteligível ou descartável de um modo irreversível. O que une as diferentes lógicas de produção de não existência é serem todas elas manifestações da mesma monocultura racional” (Santos, 2002, p. 12).

As mulheres negras, lésbicas e heterossexuais, são muitas vezes lançadas em “uma espécie de vácuo de apagamento e contradição ‘sustentado pela polarização do mundo em negros de um lado e mulheres do outro’”, como formula Grada Kilomba (2019). Por que o epistemicídio é eficiente e atroz, o apelo de Audre Lorde é crucial e estratégico. É preciso que mulheres negras lésbicas e heterossexuais (assim como também os homens negros) assumam um compromisso com a linguagem e seu poder, produzindo conhecimento dissidente e fazendo circular ideias que rompam com a lógica universalista ocidental que ameaça embranquecer e falocentrar tudo que toca.

Foto de Emilia Silbertein
Foto de Emilia Silbertein. Disponível em: https://www.revistaamazonas.com/2020/03/11/tatiana-nascimento-a-discussao-do-transfeminismo-redefine-a-nocao-da-mulheridade-de-uma-forma-mais-justa-horizontal-ambigua-e-complexa/

 

É importante para intelectuais negras “recuperar a linguagem que foi usada contra nós”, descolonizando-a. Imbuída deste compromisso está a intelectual lésbica negra Tatiana Nascimento. Poeta contemporânea brasiliense, Tatiana é responsável pela editora Padê, que publica livros artesanais de poetas negras e LGBTQI+. Tem 5 livros de poema publicados, dentre eles: esboço (2016), lundu, (2016), mil994 (2018), Oriki de amor selvagem: todos os poemas de amor preto (ou quase) (2020), pela Padê, e 07 notas sobre o apocalipse ou poemas para o fim do mundo (2019), pela editora Ksa 1 e Garupa. Acredito que Tatiana Nascimento, que traduziu muitos ensaios de Audre Lorde, guia sua escrita pela busca da “verdade da linguagem”, ou seja, no sentido de elaborar uma escrita capaz de traduzir o silêncio em linguagem e ação.

II.

A escrita de Tatiana Nascimento se coloca em estado fronteiriço à oralidade, tensionando a distinção entre oral e escrito, criando muitos trocadilhos e se valendo de ambiguidades que advém da combinação de sons, do registro coloquial e da sintaxe da fala. São poemas que pedem para ser lidos em voz alta, para serem postos para vibrar, animados por um corpo. Este aspecto performático dos textos é bastante explorado por Tatiana, que produz vídeos e apresentações em que performa seus poemas. Em poema sem título de Lundu, este aspecto performático em que a voz está latente na escrita se revela através de versos curtos e rápidos:

diz/faço qualquer trabalho, y m/eu amor de volta
todo dia

quizila contenção quebranto
forca / camisa de força / sexo à força
fórceps. ou
cesárea
(sem-injeção)
interrupção
a serviço do patrão
(pra filha dele tem legalização)
basta
rdo
mar
pardo
(pra gente é)
negação
disjunção
retenção no complexo de
contenção quizila quebranto com
tensão
com
pleição
cor:
tição
ferrão
marcadura
queimadura
pele borbulha
raça impura
ferradura
mula. a cavalo dado não se olha
dentadura
dentição
dente-de-leite
ama-de-leite
amarelo-azeite
azeite… dendezeiro… deleite:
farofa, ebó, padê!
(tô falando de cocaína não tá?)
Laroyê,
midádicumê?
chuta não que eh macumba
eh o quê? enfeite?
eh seita? aceite:
neh enredo não
neh folclore não
nem eh possessão,
eh religião.
uma ala no sambódromo
basta
ria? tava bom pra catarse
do delírio coletivo?
eh primitivo? eh
feitiçaria?
(cabia num capítulo da tua tese na antropologia?)
fantasia: carnaval carniçal
bambuzal
urubuzal
filial da sucursal
do inferno colonial “eu vim
porque me roubaram”
me venderam porque
me compraram
me doeram
dor… arran
caram
dor
mares de banzo
navegaram
dor
me odiaram
dó?
chicotearam
atearam fogo? também
no terreiro de iaiá.
sopra um vento, Oyá,
que livrai-nos do mal do
esquecimento
de quem?
os santos malditos diriam
amém?
rindo por dentro
fingindo
espanto? quebranto… quizila…
Ifá, com você,
eu vim do mar
do amar
gor eu podia saber de cor
a dor
me chamar de errante
me ceder ao feitor
eu podia ser só
matéria turva
memória podrejante em rio-curva
mas mais:
sou carne crua
línguafiada
mente assentada
y pele… pele! agô,
minha
Pele: tu, es-
cura
alimenta de um tanto minhas fundura…
quebranto… quizila? banzo.
quelê / acalanto / roncó / irê:
Orí forte > plexo convexo >
Ofá rumo:
sorte
calmaria
tecnologia ancestral
y força

axé, princípio vital fim y meio,
é força
é que de onde que eu vim é assim: cê deita a cab
eça bem pra trás y parece que tudo é só azul
de beira a beira [v. 9]

(Nascimento, 2017, pp. 42-45)

 

Da banalidade dos anúncios de trabalhos espirituais que prometem trazer de volta a pessoa amada, o poema toma como ponto de partida uma referência à episteme afro-diaspórica disseminada nas paisagens urbanas do Brasil. Para tratar do mal que assola a vida das mulheres negras, fazer e desfazer (diz/faço) trabalhos: o poema se oferece ele mesmo como um trabalho espiritual, um ebó (oferenda) que apela aos orixás e pede para que o amor e a capacidade de amar voltem. “Ifá, com você,/ eu vim do mar/ do amar”. Ifá, segundo Abimbola, é “òrisà da adivinhação e da sabedoria, foi encarregado do uso do conhecimento para a interpretação do passado, do presente e do futuro e também para a ordenação geral da terra” (apud Santos, 2012, p. 187). Além de Ifá, orixá do oráculo, também são invocados Exú e Oyá.

Na abertura do poema, os verbos dizer e fazer são um o espelho do outro (diz/faço), de modo que a palavra é colocada em estado dinâmico de ação, apontando para o modo de funcionamento das palavras nos rituais de candomblé. Segundo Juana Elbein dos Santos (2012, pp. 50-51), nos rituais nagô,

a palavra é atuante, porque é condutora do poder do àse. A fórmula apropriada, pronunciada num momento preciso, induz à ação. A invocação se apoia nesse poder dinâmico do som. Os textos rituais estão investidos desse poder. Recitados, cantados, acompanhados ou não de instrumentos musicais, eles transmitem um poder de ação, mobilizam a atividade ritual. O oral está a serviço da transmissão dinâmica.

A escrita de Tatiana Nascimento flerta com a oralidade através do uso intensivo da paranomásia, que constrói uma narrativa fragmentada pela associação vertiginosa de palavras de som semelhante, que fluem rápidas como em um transe. Além disso, a coloquialidade, o uso do “y” como conectivo e o uso de elementos do código escrito das redes sociais (“eh primitivo? eh”) suscitam a oralidade em seu dinamismo sonoro.

Nesse sentido, o poema se desenvolve como uma espécie de ritual de cura necessário diante do contexto árido de violência e de mazelas sociais produzidas por uma sociedade racista, machista e homofóbica. Esta cura, que busca restaurar a vida afetiva das mulheres negras, atravessa uma dimensão ancestral de compreensão e intervenção no presente.

Percorrendo os males que limitam e precarizam a vida das mulheres negras (os quebrantos, contenções e quizilas), são listadas situações de opressão que atravessam diferentes tempos, como a execução (forca), a internação em clínicas psiquiátricas (camisa de força) e o estupro (sexo à força), colocados lado a lado no mesmo verso (4° verso). Em seguida, se desdobram imagens da violência obstétrica, como a do parto à forceps, da cesárea sem injeção e do aborto clandestino, que sujeitam as mulheres ao risco de morte, à criminalização e ao encarceramento. Embora, no Brasil, todas as mulheres estejam sujeitas a este tipo de violência, as mulheres negras e não-brancas são as mais afetadas.

As violências relacionadas à intersecção entre gênero, raça e classe lançam as mulheres negras ao destino de gerarem o “mar pardo” e a “raça impura”, resultado dos abusos sexuais a que foram submetidas desde a Casa Grande, e que continuam a acontecer sob o jugo dos patrões. O poema traz uma perspectiva sobre a miscigenação avessa à lógica da convivência harmoniosa entre as raças, na qual acreditam os defensores da democracia racial, sinalizando que a cor parda é marca e memória da violação dos corpos das mulheres negro-brasileiras. Nos versos, a associação da cor negra com um vocabulário próprio da lida com animais, em especial, cavalos, remete ao modo como a branquitude via e ainda vê as pessoas negras, como menos humanas, logo mais tolerantes à dor e aos maus tratos.

cor:
tição
ferrão
marcadura
queimadura
pele borbulha
raça impura
ferradura
mula. a cavalo dado não se olha
dentadura.

O dito popular “a cavalo dado não se olha os dentes” é reformulado, fazendo lembrar do gesto dos compradores de escravos que, nos mercados, escolhiam comprar as/os africanas/os que apresentassem dentes em melhor estado. A memória da desumanização também está concentrada na palavra mula, da qual derivam as palavras “mulata” e “mulato”, empregadas para nomear os mestiços gerados a partir de relações interraciais entre brancos e negros. A mula é a fêmea do burro, fruto do cruzamento entre animais de raças diferentes (o jumento e a égua). A objetificação do corpo associada à animalização se desdobra na imagem da ama de leite, a mãe preta que cuidava dos filhos da Casa Grande em detrimento dos seus próprios. A obra Seios com leite e sangue II – ama de leite, de Rosana Paulino, dá uma imagem desta memória ainda inscrita nos corpos das mulheres negras e de seus descendentes. Dos múltiplos seios inflados de veias, tais quais as mamas de alguma fêmea não humana, escorrem fios dessa história de violência e sobrevivência das mulheres negras no Brasil colonial. Leite e sangue, fontes da vida, figuram perversamente como rastros da exploração e escravização perpetradas pelo racismo.

Disponível em: https://www.rosanapaulino.com.br/
Disponível em: https://www.rosanapaulino.com.br/

Porém, no poema, é a imagem da mãe ponto de virada que abre o caminho do sagrado e da liberdade para o povo negro. A ama de leite transforma-se no amarelo azeite extraído do dendezeiro, árvore sagrada para o povo iorubá, que materializa a presença das entidades sobrenaturais. Segundo Odé Kileuy e Vera de Oxaguiã (2009, p. 218), “trazido da África, o dendezeiro veio junto com os escravos, carregando consigo todos os simbolismos e propriedades que possuía em sua terra. Planta primordial dentro de uma casa de candomblé, é árvore que serve a vários orixás e de quem tudo se aproveita”. No poema, o dendezeiro representa uma alteração no curso das violências coloniais e possibilita afirmação da vida, posto que guarda a memória do ritual, aciona a presença dos orixás e de uma epistemologia afro-diaspórica. À Oyá, orixá feminino dos ventos que fazem viajar sementes, rainha dos raios e mãe dos espíritos dos ancestrais, chamados Eguns, o poema pede que livre do maior mal: “sopra um vento, Oyá,/ que livrai-nos do mal do/ esquecimento”. Contra os males trazidos pela árvore do esquecimento, se insurge a memória de árvores e entidades sagradas, estratégias de resistência à desumanização.

As violências do presente, que inauguram o poema, deslizam em um contínuo histórico-temporal para as imagens do passado, que não estão estagnadas, mas em estado dinâmico, como que sob ação dos ventos insurgentes de Oyá: “eu podia ser só/ matéria turva/ memória podrejante em rio-curva/ mas mais:/ sou carne crua/ línguafiada/ mente assentada”. É graças a este dinamismo que surge a possibilidade de conexão com uma “tecnologia ancestral”, com o axé, todo um sistema filosófico não ocidental que lutou contra as investidas epistemicidas. A demonização e a exotização das religiões de matriz africana, reduzidas a estereótipos, dramatizam a violência epistemicida no poema: “atearam fogo? também/ no terreiro de iaiá”; “chuta não que eh macumba/ eh o quê? enfeite?/ eh seita? aceite:/ neh enredo não/ neh folclore não/ nem eh possessão,/ eh religião./ (…)/ eh primitivo? eh/ feitiçaria?/ (cabia num capítulo da tua tese na antropologia?)”. Como já afirmado anteriormente, o epistemicídio é uma arma de dominação política. O modo do poema combatê-lo é proporcionando para o público-leitor negro um canal de contato com a ancestralidade e também um olhar crítico sobre o “inferno colonial” que permanece anacronicamente atual.

Tatiana Nascimento não se restringe a denunciar a violência racista, misógina e homofóbica, dedicando-se a anunciar novas perspectivas de futuro para a população negra, atitude que vai compor o seu conceito de “cuírlombismo”, que parte dos conceitos de “quilombo”, de Beatriz Nascimento, e “quilombismo”, de Abdias Nascimento, para chegar a uma nova formulação atravessada pelas questões de gênero. Em suas palavras:

…assentar nossa poética em aqueerlombamento acuírlombamento foi outra jornada: entender o remontar-se/recriar-se pelas palavras como um fazer mítico-político, reinvenção não só apesar do silenciamento colonial htcissexualizante mas contra ele y (mais importante pra mim) a partir de nossas próprias narrativas ancestrais, desenterradas da memória que as histórias mal-contadas guardam, brotá-las na pungência de nossos corpos e desejos. De Erzulie Danton a vera verão, y além: reorganizando nossa própria história, narrativa, subjetividade desde a assunção da ancestralidade diaspórica sexual-dissidente. (…) lavrar resistência negra lgbtqi como exercício de liberdade, expansão do sentido tradicional de “resistência”. refundar a noção de literatura negra, vista apenas como combativa, de denúncia do racismo, idealizada em modelos de “homem negro” e “mulher negra” binário-htciscêntricos, questionar esse jeito de fazer, ler, compreender literatura negra no qual dor, sofrimento, heroísmo, revolta, heterociscentralidade seriam temas dominantes (Nascimento, 2019, pp. 13-15).

Desde esta concepção cuírlombista, o que era silêncio na língua da colonização é transformado em linguagem e ação, em epistemologia sobrevivente ligada ao desejo de viver e gozar a dor e a delícia de ser o que se é.


Heleine Fernandes é carioca, nascida e criada na favela da Rocinha. Pesquisadora de Poesia Contemporânea Negra-Brasileira do Laboratório Estudos Negros, pertencente ao Programa Avançado de Cultura Contemporânea – PACC/UFRJ. Professora Doutora em Teoria Literária pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Autora do livro “A poesia negra-feminina de Conceição Evaristo, Lívia Natália e Tatiana Nascimento”, publicado pela editora Malê.

 

Referências

KILEUY, Odé e OXAGUIÃ, Vera de. O candomblé bem explicado (Nações Bantu, Iorubá e Fon); [organização Marcelo Barros]. Rio de Janeiro: Pallas, 2018.

KILOMBA, Grada. Memórias da plantação – Episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

LORDE, Audre. Los diarios del cancer. Chile: Ginecosofia, 2019.

NASCIMENTO, Tatiana.  Lundu, 2° edição. Brasília: Padê editorial, 2017.

NASCIMENTO, Tatiana. Cuírlombismo literário: poesia negra LGBTQI desorbitando o paradigma da dor. Pandemia. São Paulo: n-1 edições, 2019.

SANTOS, Boaventura de Souza. “Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências”. Revista Crítica de Ciências Sociais, 63, Outubro 2002. Disponível em http://www.boaventuradesousasantos.pt/media/pdfs/Sociologia_das_ausencias_RCCS63.PDF. Acessado em janeiro de 2019.

SANTOS, Juana Elbein dos. Os Nagô e a morte: Pàde, Àsèsè e o culto Égun na Bahia; traduzido pela Universidade Federal da Bahia. Petrópolis: Vozes, 2012.

 

MORRO DE PÁSCOA


O quarto quente, impiedosamente iluminado pela luz abrasiva do sol, mostra que um novo dia chegou ao morro. Vozes vêm de algum cômodo da casa, junto com o cheiro de café. Na verdade, são sussurros, falas incompreensíveis. A menina só, que habita o quarto quente e iluminado, não parece feliz em acordar, em despertar, para aquele primeiro dia de sua vida sem o seu rebento. Como se acorda e se vive num dia assim? Ela não sabe. E nem se importa em aprender, por ora. Dormir apenas, é o que deseja.

Quando engravidara aos quinze anos, várias eram as experiências parecidas que havia à sua volta. Todas as suas conhecidas, de todas as idades, tinham alguma coisa a lhe dizer, ensinar e a fantasiar sobre o assunto. Pessoas desconhecidas também sempre lhe ofereciam pareceres não requisitados. E a menina ouvia, a todas e a todos. Ouvia de coração aberto, pois achava bonita a atenção que passara a receber das pessoas, estimuladas por sua grande “barriga de menino”.

A realidade de sua jovem experiência de vida era que as pessoas falavam, e falavam, e falavam muito, o tempo todo, mas poucas pessoas, entre as que conhecia, realmente conversavam.

Conversar era algo que lhe parecia coisa de gente muito velha – tipo, coisa de gente de uns 40, 50 anos, pensava. Ou coisa de gente que quisesse fazer filho com alguém, soubera.

Foi assim que se encantou pelo homem que fez um filho nela, como acusava sua mãe: ele a chamou para conversar. Aliás, toda vez que a via, ele a convidava, do seu jeito, para uma conversa. Dizia, “vem cá pra mim te dá uma ideia. Na moral”. Na primeira vez que o menino chamou, a menina foi no susto, por medo de não ir. Depois foi se acostumando e gostando da atenção que recebia, e de seu novo status entre suas colegas, exatamente por causa daquelas conversas que vinham tendo aos olhos de todos – e como olhavam!

A real daquela interação é que a menina era toda ouvidos, enquanto o menino falava. Sua fala era um misto de flerte, autopromoção, ameaça, desabafo, teatro. É isso: o jogo de comunicação que tinham era marcado por uma teatralidade, uma dança, um teatro de oprimidos – diríamos, ao observá-los de longe. E ele vociferava:

– Tu tem quantos anos? Estuda ainda? Qual é o baile que tu gosta? Tu desfila? Sua mãe deixa? Tu dorme fora? Tem aula amanhã? Vai chegar que hora da escola? Vai pra escola com quem? Já fumou baseado? Posso te esperar amanhã? Ciúme de quem? Vai ficar de bobeira?! Ouviu o que eu falei?! Quantos meses? Já sabe, né? Precisa de quanto? Já foi no médico? Que que tua coroa disse? Já sabe se é menino? Tá sentindo dor? Quem vai te levar pro hospital? Tá com medo? Tu liga pra avisar quando já tiver acabado tudo? É menino? Como é o moleque? Lembra do nome que falei pra tu, se fosse menino? Tem alguém pra te trazer? Já tirou os pontos? Quem tá contigo? Quer vim pro baile? Cadê a camisa nova dele, que eu mandei ontem? Dá pra mim dormir aí hoje? Tá tranquilo por aí? Sua coroa tá ligada? Quando tu vai vim me visitar? Tá sabendo que tu tem que vim, né?! Vai trazer ele? Tá sabendo que num vai pra baile porra nenhuma, né? Recebeu a grana pro ovo de Páscoa dele? O que que houve?! Quem?! Fala, porra!

Estampidos. Gritos. Correria. Sangue. Tumulto. Choros. Gritos. Desespero.

Dor. Flores. Multidão. Choros. Vizinhos. Dor. Repórteres. Jornal. Televisão. Fotógrafos.

Abril. Cemitério. Procissão do menino morto. Páscoa sem ressurreição. Dor. Maternidade interrompida. Felicidade rompida. Felicidade clandestina abortada. Dor. E a implacável e infalível luz do sol.

Hoje, dia 1 pós-perda, ninguém se aproxima. As pessoas não têm nada além de lágrimas para oferecer à menina. Elas não tocam suas lágrimas, como tocavam a sua barriga de menino, ou o rostinho de seu recém-nascido – Ryan, como ordenara o pai.

Todos a observam de longe. Desde a hora da desgraça que todos temiam esbarrar na dor da menina. E a dor que sentia era muito mais profunda do que seus familiares e vizinhos pudessem imaginar – o que os espantava. Dores de perdas daquele tipo, por ali, sempre lhes pareceram aguardadas, profetizadas, condenadas. Por isso chorava-se, gritava-se, e seguia-se com a vida, sem que ninguém visse mais a dor de quem perdeu alguém abatido à luz do sol. Às vezes acontecia, é verdade, de alguma mãe ficar tantã. Mas geralmente a vida seguia, e logo.

A dor da menina de vinte anos lhes parecia a dor de quem não sabia que se morre também no nosso ventre, na nossa casa, no nosso quintal. Mesmo que seja num Domingo de Páscoa – fosse o que fosse a tal Páscoa –, quando isso vai além dos chocolates-com-brinquedos-dentro.

É que ninguém sabia. Ninguém sabia que, com o seu menino, a menina vinha aprendendo muitas coisas naqueles recém-exterminados quatro anos.

Com Ryan, a primeira coisa que a menina aprendeu foi a amar.

Conhecera, finalmente, aquele amor que via nas novelas. Talvez fosse maior que o das novelas, acreditava ela. O seu era um amor tão grande, por seu menino, que sentia seu coração inchado, tomado, ocupado, satisfeito.

E o trabalho que lhe diziam que teria, e que passou a ter com aquele ser amado, fora tão grande que tomara todo o seu tempo e interesse. Aquela vida que dependia da sua libertou-a da necessidade juvenil e tirana de estar no baile todos os domingos. Libertou-a da saga de fim de semana para chegar às praias, mantidas cada vez mais distantes. Libertou-a ainda das vexaminosas revistas corporais que sofria para entrar no presídio nos dias das exigidas visitas ao pai do menino.

E a menina também tinha passado a ter, para tudo, perguntas. E a que mais usava e que a libertava era: – Mas com quem eu vou deixar o Ryan?

Enquanto seu interlocutor, suas colegas e outros incomodados se eximiam da resposta, a menina e seu menino seguiam cultivando aquele novo espaço, onde nem a bola de fogo que torrava o morro os atingia. O bom, pensava ela, era que o lugar que os dois construíram não tinha atrativos para mais ninguém. Cuidados com menino e trabalhos de mãe não interessavam às pessoas. Menina com filho é invisível – aprendera.  Menina preta com filho preto não interessa a ninguém – descobrira.

Compreendera também, à sua maneira, que menina-mãe preta de filho preto de pai preto-preso podia, sim, ser livre na sua sina – sina para quem os olhava, pois para ela era liberdade.

Liberdade de ser mãe de amor, sem temores. Sim, amor sem temor. Cuidado sem obrigação. Cuidado de amor.

E de repente…

Num dia pós-terror, depois de ter seu corpo trêmulo retirado de cima do corpo perfurado e congelado de seu menino preto-lindo – sobre o qual intuitivamente espalhara-se para o aquecer e proteger do passo seguinte – a menina se via de volta àquela prisão conhecida.

A falta do menino a devolvia a tudo aquilo de que escapara com ele. Os murmúrios que agora vinham lá de longe, aquecidos pelo sol desumano, confirmavam que, sim, o menino não a levara com ele, apesar de seus apelos para que ele a levasse, para que a libertasse consigo.

A menina preta invisível voltou só para os holofotes, de novo refém da vida, até que outra explosão aconteça dentro da prisão onde voltara a viver sem o amor que a havia libertado.

Despertando nesse novo dia de sua vida, de mãe menina-preta de menino preto-morto, já sabia, no coração, que ninguém saberia como ensiná-la a lidar com a falta da vida do seu preto-menino, com a falta da liberdade gerada em seu útero de menina preta ignorada.

A bola de fogo impiedosa arrancava-a do minúsculo quarto sem ar, e a devolvia às entranhas do morro acostumado a triturar meninas pretas sem amor. E ela foi. Meio morta, mas foi.

Indiferente. Inconsciente. Translúcida. Preta.[1]


* Katia Costa-Santos é professora de culturas e literaturas da Diáspora Negra, com ênfase no Brasil e nos Estados Unidos; tradutora, escritora, contista; pesquisadora da vida cultural privada dos sambistas cariocas; idealizadora do curso itinerante Mulheres Negras & Escrita: Reflexão e Produção Textual; e cocoordenadora do Laboratório Estudos Negros do PACC/UFRJ.

 

Nota

[1] Fabulação inspirada na foto (e no fato) da cobertura da morte do menino Ryan em Madureira, no Rio de Janeiro, em 27 de março de 2016, atingindo por um tiro durante um tiroteio entre traficantes na Favela do Cajueiro. A fotografia é de Fabiano Rocha, fotógrafo do Jornal Extra e da Agência O Globo.

A REVOLUÇÃO DAS COISAS: RITUAIS CAMPONESES, VIOLÊNCIA RACISTA E A DESCONSTRUÇÃO DO FALOCENTRISMO


Tradução e a desnaturalização da linguagem[1]

Os camponeses cuja história pesquisei nos anos 1970, na Amazônia Legal, estado do Maranhão, não sabiam que havia várias línguas no mundo e, quando descobriram, ficaram perplexos (Soares, 1981). Assombraram-se mais ainda quando expliquei que nossa língua também é incompreensível para os outros. Que nós sejamos ignorantes diante da riqueza do mundo, tudo bem, somos capazes de aceitar nosso lugar, de suportar nossa fragilidade. Mas que alguém não entenda o que nós falamos, isso já é demais, ultrapassa todos os limites. É um absurdo inadmissível, está além da compreensão.

Eles pensam que o sentido do que dizem é transparente. A prova é a própria fala. Afinal, cada um entende o que diz, e os outros membros de nossa comunidade dão sinais de que também entendem, porque respondem e agem de acordo com o sentido comunicado. Acontece que, se alguém não consegue compreender o que falamos, é porque a transparência só funciona para nós, para nossa comunidade, o que quer que isso signifique. É como se eles estivessem descobrindo a pluralidade dos mundos. Há mundos que não vemos, porque são invisíveis para nós. Esse fato para eles é óbvio e não perturba. Só que esses outros mundos, para eles perfeitamente aceitáveis, são frequentados por espíritos, não por seres humanos de carne e osso. O incrível, inverossímil, fabuloso é descobrir que existem outros mundos povoados por seres humanos, que a qualquer momento podem se encontrar conosco, como os espíritos, mas sob condições muito especiais: nós os vemos, eles nos veem, mas não os entendemos, nem eles a nós.

Parece alguma coisa trivial, mas não é.

E tem a história da água. O exemplo que um membro do grupo trouxe sempre me pareceu significativo. Ele me perguntou: “Quer dizer que, se um cristão passar em minha porta e pedir um copo d’água, não vou dar, porque não vou entender?”

Se o diálogo universal estiver prejudicado, as relações entre as pessoas vão sofrer a tal ponto que será sacrificado até mesmo o gesto mais elementar de compaixão e hospitalidade. Cristão para eles recobria o universo dos humanos.

Atenção, aqui, para o uso da categoria cristão como sinônimo de humanidade. Talvez seja esta suposição que fique abalada com a multiplicidade das línguas, com o fim da transparência de todos diante de todos. A unidade deixa de existir. A grande unidade do mundo e dos humanos, cuja imagem talvez seja parte fundamental desse próprio mundo. A unidade desaparece. Os fundamentos que mantêm a integridade do universo estão ameaçados.

Para exorcizar essa ameaça, o povo de Bom Jesus recorria a um dispositivo muito interessante: o investimento ritualizado em uma categoria não discursiva, como se seu desejo oculto e inconsciente fosse aniquilar qualquer risco de desestabilização dos pilares de sua identidade social e política: o mastro festeiro, garantia de unidade do grupo e do mundo. E tudo isso prescindindo das palavras, essas traiçoeiras armadilhas que nos deixam a um passo da desnaturalização do que somos, percebemos e acreditamos.

O mastro: festa camponesa na Amazônia e resistência política

Bom Jesus, em 1978, era uma comunidade camponesa formada por aproximadamente cinco mil negros, herdeiros de escravos, que se mantinham unidos e resistiam com sucesso ao processo de subordinação político-econômica dos trabalhadores rurais. Por isso, o grupo constituía um caso atípico numa região marcada pela expropriação das terras, promovida, com violência, por grileiros e latifundiários. A cultura, a afirmação étnica e a formação da identidade especificamente política (ainda que referida à luta pela terra comum e por autonomia no trabalho) eram peças-chave para a compreensão da singularidade histórica do grupo. Os pontos altos da vida cultural eram as festas. Um dos “festejos” mais aguardados, na comunidade de Bom Jesus, é a “busca do mastro”, que ocorre no dia 15 de dezembro (a partir deste ponto passo a empregar os verbos no presente). Todo ano, por um processo em que concorrem disposição pessoal e anuência coletiva, um membro idoso do grupo assume o papel respeitável e ambicionado de “dono do mastro”.

O mastro é o marco de um ciclo de festividades, cujo ápice é o Natal e a conclusão, a “festa de reis”, dia 6 de janeiro. É o marco, o símbolo, e sua fixação no centro do povoado dá início à cadeia de preparativos, já vividos como pequenas festas.

Nas semanas que antecedem o esperado 15 de dezembro, o “dono” procura, nas matas internas a Bom Jesus, um “pau”, isto é, um tronco em condições propícias. Basicamente, ele deve ser alto, razoavelmente retilíneo, não muito pesado e o mais liso possível, quer dizer, com poucos e finos galhos, obstáculos desagradáveis e trabalhosos à sua preparação. Aí começa a argúcia do “dono”. Uma vez escolhido o mastro, ele fará segredo do engenho de sua arte ou do sucesso de sua missão.

O dia 15 amanhece com fogos anunciando o ponto de partida rumo ao Natal e, imediatamente, o início dos festejos comunitários nomeados “busca do mastro”.[2] Depois de cumpridas as tarefas cotidianas, mais ou menos às 16 horas e 30 minutos, reúnem-se na casa do “dono” todos os interessados em participar da expedição. Bebem cachaça, cantam, contam histórias jocosas, piadas, falam obscenidades, brincam uns com os outros. Munem-se de instrumentos de trabalho, de uma garrafa (uma única garrafa serve a todos) de cachaça, e saem em direção ao local indicado pelo “dono”. Na saída do povoado uma mulher passa a integrar a equipe, até aqui exclusivamente masculina. Ela carrega uma bandeira que estampa a imagem de São Benedito e acompanha os homens silenciosa e aparentemente indiferente. Muitos saem de suas casas para assistir à partida, saudada com o espocar de fogos, enquanto os retardatários ainda chegam da roça.

Todo o percurso é marcado por manifestações jocosas de alegria, irreverência recíproca, goles da garrafa conduzida pelo “dono”, cantos, brincadeiras corporais, mimetização de brigas e confraternizações regadas a cachaça e júbilo. É um clima intenso de exaltação lúdica, vivido com feliz excitação.

Desde a saída do povoado de Bom Jesus – o “dono do mastro” é sempre de Bom Jesus – até o fim da festa, em pleno centro do povoado, o pesquisador experimentou, pela primeira vez em seu período de convívio com o grupo, a neutralização de sua presença, a diluição de sua identidade.

Alguns quilômetros adiante, em plena mata, relativamente densa, o “dono” desfaz a expectativa e apresenta com orgulho seu achado. Espraiam-se expressões de aprovação e, sempre com o espírito embriagado, de ludicidade agressiva e carinhosa –na impressão do pesquisador –, inicia-se a empresa de corte e polimento do “mastro”, contando com o entusiasmo e a dedicação coletivos. Em cerca de trinta ou quarenta minutos a tarefa está concluída e forma-se uma fila indiana, isto é, os homens dispõem-se numa fila reta para que todos possam compartilhar a responsabilidade pelo transporte do tronco, que se estende, assim, sobre os ombros de uns quinze homens, substituídos pelos outros, mais ou menos dez, periodicamente. Na saída da mata reencontra-se a mulher com a bandeira, que não havia penetrado na teia escura das árvores.

A volta repete a situação da ida, com a diferença apenas de grau de ousadia nas brincadeiras e na intensidade de emoções investidas. A bebida, o ritmo crescente dos cantos e das imputações jocosas compatibilizam-se com as diversas etapas da missão. Há uma sincronização entre nível de intensidade em que é vivida a experiência e momento do ritual, num sentido contínuo e progressivo.

A posição da mulher se distinguia da do pesquisador somente pelo fato de ela portar um elemento pertinente ao sistema e assumir, por isso, uma função codificada. De resto, seu comportamento distante e imperturbável, respondendo na mesma moeda à indiferença com que era tratada – o que se refletia na liberdade total de vocabulário e ação, não costumeira diante de mulheres –, era equivalente ao do pesquisador, por ter sido esquecido como tal e por não se sentir em condições de participar como se fosse um membro do grupo.

Quando a expedição se aproxima do povoado, ouvem-se fogos e os sons provocados pela agitação do carnaval que aguarda o “mastro”. Aglomerações das famílias esperam a turma precedida pela bandeira de São Benedito. Recebem-na e cercam-na em sua trajetória interna ao povoado, pontuada pela visita a todas as casas, uma a uma, a começar pela venda. Todos estancam ante a porta dianteira de cada residência, cantando e brincando, esforçando-se por conquistar uma pontinha que seja do “mastro”. O “dono” do mastro o introduz pela porta, auxiliado pelos transportadores, e repousa sua parte superior e mais pontiaguda sobre um banco de madeira disposto pelo “dono da casa” na sala, de modo a acolher o insigne objeto visitante. Pede, a seguir, o “dono do mastro”, em conjunto com o coro livre de vozes alegres, ao anfitrião momentâneo uma contribuição no valor de cinco cruzeiros – valor de dezembro de 1978 (cerca de 25 cents ou ¼ de dólar) –, destinada à compra de cachaça, que será primeiro parcialmente consumida e depois amarrada ao topo do tronco. O comportamento invariavelmente reproduzido pelo doador-anfitrião é de vergonha, constrangimento, mesclado a um tom farsesco e correspondente ao clima geral em que o “dono da casa”, centro provisório do drama, manifesta impressões de que está honrado e explorado, e pechincha, entre risos, sua contribuição, a qual, ao se efetivar, provoca ruidosas comemorações. Os anfitriões participam de todo o rosário de visitas, cada um mudando de papel quando o cortejo atinge sua residência: deixam de carregar o “mastro” e passam a recebê-lo, assumindo o posto episódico de interlocutor ritual do “dono do mastro” e da comunidade portadora do “mastro”.

Uma vez fechado o círculo das visitas, a caminhada coletiva se transforma, quase imperceptivelmente, em procissão, ao surgirem as primeiras canções de inspiração religiosa e as primeiras velas sobre a cabeça de mulheres – expressivas de pagamento de promessas –, paralelamente à maior circunspecção dos participantes e ao direcionamento mais linear e regular conferido ao curso da caminhada. A região atravessada pela procissão margeia por fora o círculo das casas em que se estrutura o povoado, marcando uma espécie de retorno marginal rumo ao ponto de chegada, o local de soerguimento do “mastro”, situado na frente da porta frontal da capelinha, núcleo de convergência obrigatória de todas as procissões organizadas na área vizinha ao povoado.

Nesse estágio não há mais visitas, nem sequer casas nas bordas do leito da caminhada. Não obstante, o “dono do mastro”, acompanhado do líder religioso – responsável pela conservação da capela e pelo comando dos cantos e orações coletivas –, continua encabeçando o grupo, à frente do “mastro”. Enquanto o deslocamento não tinha características eminentemente religiosas, durante o período da coleta de fundos e das visitas, ele se postara junto às portas atravessadas pelo tronco e desfiara uma série de canções alternadas por refrãos e improvisos.

A procissão novamente se torna aglomeração jocosa, alegre e descontraída, quando atinge o ponto previamente indicado e preparado – o buraco já tinha sido escavado e serve anualmente à fixação do “mastro” –, e não chega a penetrar na capela. Volta-se a beber fartamente e inicia-se a confecção da copa do “mastro”, composta de um maço de relva, uma garrafa de cachaça, um cacho de banana e da bandeira de São Benedito. O tronco é erguido em meio a fogos e celebrações ruidosas. Somente nesta fase o líder político assessora o “dono do mastro” na orientação das tarefas e participa mais diretamente das comemorações e das bebidas conjuntas, ainda que jamais se envolva em torneios jocosos, recusando-se a esquecer a dignidade de sua posição.

Plantado o “mastro”, já é noite, a comunidade se separa para as refeições, o banho, e volta a se reunir mais tarde no “tambor de crioula” e na reza coletiva organizada na casa de um membro do povoado.

A primeira parte do ritual, isto é, a fase que comporta a ida e a volta do mato, e o corte e dilapidação do tronco, problematiza basicamente o trabalho.

A fase subsequente da “busca do mastro” tematiza as relações entre o individual e o coletivo, o privado e o público, a partir das atitudes que cercam as visitas do “mastro”. O indivíduo participa das tarefas conjuntas, acompanhando de fora a série de visitas, até tornar-se o centro das ações quando entrar em sua casa e receber a ponta do “mastro”, oferecendo-lhe um banquinho e contribuindo para a bebida coletiva. Nesse instante o indivíduo passa a existir como tal a partir do reconhecimento do grupo, ou seja, a individualidade é legitimada pela integração comunitária e se institui através da sanção coletiva. Ser um indivíduo nesse contexto significa pertencer, assumindo aí um lugar, comungando sua identidade social, tornando-se, plenamente, um negro e uma negra de Bom Jesus.

A visita repete um modelo único: entra na residência apenas a parte superior do “mastro”, guiado por seu “dono”, que se posta exatamente na porta, fazendo a mediação entre os de fora, a comunidade, e os de dentro, a família e, especialmente, o “dono da casa” – o líder religioso fica próximo à porta, mas sem avançar tanto. O interlocutor do grupo, este representado pelo intermediário – o “dono do mastro” representa o grupo porque o “mastro” será símbolo de unidade, por suas características totalizante e sintética, conforme se verá –, é o indivíduo “dono da casa”, preferencialmente, e também a unidade doméstica, por conseguinte. Portanto, o estatuto da individualidade passa pela inserção não só no grupo, mas também numa unidade doméstica, sendo a primeira mediada pela segunda e esta mediada pela primeira, o que articula individualidade-unidade doméstica-grupo num trinômio indissolúvel. Observe-se que cada termo é dependente do sistema triangular, tornando-se impensável e incapaz de ser socialmente experimentado dissociado do conjunto, o qual, evidentemente, não compromete o grau indispensável de autonomia de cada face do triedro.

Quando assisti à sequência das visitas, impressionou-me a carga erótica nos atos conjuntos de empurrar o “mastro” pela porta, casa adentro. A penetração do “mastro” era realmente vista e experimentada pelos atores do ritual como um momento altamente erótico, em que um pênis coletivo estabelecia uma verdadeira cópula com os agentes de uma unidade familiar.

Esse fato confirma plenamente as indicações analíticas sugeridas. A expressão cópula não foi empregada arbitrariamente. Afinal, ela designa, além do ato sexual, a fixação de uma relação entre dois elementos, apontando para uma conjunção. Cópula, no caso, interliga organicamente público e privado, individual/doméstico e comunitário, estabelecendo uma reciprocidade de determinações fundamental para a atualização da solidariedade e da comunhão social-identitária, preservadas autonomias das unidades combinadas e definidas pela combinação.

Quando o “mastro” é replantado no meio do terreno central do povoado, margeado pelas casas, a questão colocada é a da fronteira natureza-sociedade, sem que as outras oposições, primordiais nas demais etapas, deixem de estar também, de algum modo, presentes. A árvore é agora recriada, reconstruída com as marcas da sociedade, a saber, o cacho de banana – produto econômico fundamental –, a bandeira de São Benedito (um santo negro) – identidade étnica e religiosa –, a cachaça – representante por excelência do domínio do lazer – e a relva, ocupando o lugar da natureza, neste ecossistema resumido. Nesse instante a árvore que foi retirada da mata ganha um novo aspecto e um novo sentido.

O “mastro”, entidade una e indivisível, irredutível, congrega no processo de sua confecção social e de seu soerguimento, que culmina com a concepção definitiva da copa, representantes de quatro esferas essenciais na vida do grupo, indissociáveis no fluxo da vida cotidiana: economia (trabalho e riqueza); religião (código que rege relações sociais e relações entre a sociedade e a natureza – morte, vida, doença, saúde); lazer (brincadeira, diversões, namoros, jogos, elaboração das relações sociais e produção de vínculos); natureza (interlocutor por excelência da sociedade em seu esforço de afirmação e sobrevivência).

A unificação dos domínios transforma o “mastro” numa categoria cultural supradiscursiva, numa categoria ritual fenomênica, numa coisa-imantada de sentido, num objeto-categoria, reificando a invenção e seus instrumentos supremos, não para cristalizá-los, mas para permitir a vivência de seus desdobramentos sociais integralmente, a partir de sua instituição objetiva democrática. O “mastro” deixa de ser mero símbolo para agir como mediador (o mediador conjuga, quem conjuga impõe sintaxes não previstas pela imanência do léxico, e quem produz combinações e articulações sintáticas cria significados, produz sentido) e gerador de símbolos.

Tal unificação não esvazia especificidades e autonomias, apenas as articula, submetendo-as a uma unidade de fundo, uma lógica unívoca, sustentada e gerida, neste caso, pela elaboração e reprodução da identidade do grupo, que de certo modo homogeneíza e torna transitivos os diversos campos da experiência social.

Sem pretender dar conta de toda a riqueza semântica do material etnográfico, poder-se-ia concluir ressaltando o caráter totalizante e sintético deste empreendimento comunitário, cumpridor de um importante papel de elaboração cognitiva e afetiva das práticas e crenças fundamentais desta sociedade. Possibilita a experiência (e o reforço) da unidade do grupo, arma-chave de resistência às pretensões predatórias de “barões” e seus aliados. A pequena sociedade de Bom Jesus resume em algumas horas o drama de sua reprodução enquanto grupo e indivíduos.

Uma declaração de Sr. Edésio (o líder político) demonstra a clareza da percepção sobre o lugar e a função de festejos como a “busca do mastro”. Em suma, ele diz lamentar uma eventual resolução da “questão das terras” pela via individualista (a distribuição individualizada dos títulos de propriedade), entre outros motivos, porque o “povo” ficaria definitivamente privado da convivência, da solidariedade comunitária e das festas, momentos essencialmente comunitários – o que não quer dizer que não haja tensões e conflitos até violentos, mas estes se subordinam à lógica da reprodução da identidade do grupo. Se estas confissões revelam uma aproximação entre festas, tal como são realizadas em Bom Jesus, e vida comunitária, denunciam, por outro lado, uma realidade fundamental: festas são realizações políticas, verdadeiros exercícios de formulação e divulgação de determinada versão sobre o que seja efetivamente o povo de Bom Jesus. Fornecendo estruturas de plausibilidade, criando condições de aceitabilidade de certa construção da identidade e definição do real (Berger e Luckmann, 2014), os dramas rituais dos festejos convertem-se em aparelhos informais de hegemonia no plano interno, instrumento considerável na ampliação das bases sociais do projeto comunitarista, e em contra-aparelhos de hegemonia, abrindo uma frente ideológica de resistência, responsável por uma espécie de guerra de posições, nos termos de Gramsci. Aí está, infiltrando-se sub-repticiamente, o passageiro obrigatório da experiência social camponesa, também presente na esfera dos festejos, do lazer e da brincadeira: a luta pela terra e contra a expropriação e a opressão de classe, através de suas mediações e com o peso de seus desdobramentos.

O poste: rolezinhos, linchamento e a subversão da ordem geopolítica

No dia 31 de janeiro de 2014, cerca de trinta rapazes em quinze motos cercaram quatro adolescentes na avenida Rui Barbosa, no bairro carioca do Flamengo, aparentemente sob pretexto de que pareciam suspeitos. Dois meninos abordados conseguiram fugir. Os outros dois viram uma pistola 9mm com um dos motoqueiros e não correram. Foram espancados. Um deles fugiu. Seu parceiro de infortúnio, um adolescente negro, foi amarrado pelo pescoço a um poste (outro mastro, aqui cumprindo função simbólica invertida, como veremos), onde o deixaram nu, sangrando como uma presa abatida. Os justiceiros foram embora. Logo surgiram mais notícias sobre a gangue de motoqueiros. Outros jovens pobres foram surrados e deixados nus, sob ameaça de linchamento. Enquanto batiam em suas vítimas, os motoqueiros as acusavam de terem cometido roubos e outros delitos. Os sinais parecem claros, mesmo que não fossem conscientes. Por que amarrar pelo pescoço a um poste? Por que deixar a vítima nua? Havia mensagens nessas escolhas. E elas só poderiam ser compreendidas no contexto marcado pelos rolezinhos e pela disseminação do ódio.

Os quase linchamentos não foram casos isolados. Todo ano há linchamentos no Brasil. A novidade estava no cruzamento entre o espaço e o tempo em que ocorreram esses episódios: na zona sul do Rio de Janeiro, área afluente da cidade, no auge da febre dos rolezinhos.

Encontros de jovens da periferia de São Paulo em postos de gasolina, de madrugada, nos fins de semana, ou em estacionamentos de supermercados, já ocorriam havia algum tempo. Eram os “gritos por lazer”, como diziam os participantes, ávidos por divertimento tão escasso em zonas áridas, desprovidas de programas acessíveis e atraentes. Mas em 8 de dezembro de 2013 a turma inovou: cerca de seis mil jovens reuniram-se no Shopping Metrô Itaquera. Segundo membros ativos do grupo, foram dar um rolezinho naquele espaço de lazer e consumo da classe média. Houve tumulto, o shopping fechou uma hora e meia mais cedo, clientes e lojistas temeram violência, alguns relataram furtos, mas a administração negou que tivesse havido delitos, muito menos o alegado arrastão. O medo atrapalhou o passeio das famílias e a rotina do estabelecimento, mas nada relevante foi reportado à autoridade policial. A situação era esdrúxula, porque, a rigor, não havia nada de errado e, portanto, nada a fazer para impedir que jovens pobres ocupassem espaços na cidade que também lhes pertenciam, ainda que não costumassem frequentá-los. Em certo sentido, sem que houvesse uma norma explícita que vetasse sua presença, aquela nova experiência trazia à tona barreiras imaginárias. A visita inesperada causava incômodo. Os dois lados percebiam a sutileza do que estava acontecendo. Sim, os eventos eram grandiosos, faziam muito barulho, mas o gesto que mudava as peças no tabuleiro era sutil e tocava cordas delicadas da sensibilidade nacional. Os meninos e as meninas compreenderam que as ocupações tornar-se-iam atos políticos: era como se reafirmassem seus direitos sobre os espaços públicos, dos quais os pobres e negros sempre estiveram excluídos no Brasil.

Foi assim que os rolezinhos se tornaram uma brincadeira bastante séria e tocaram o nervo de um dos maiores tabus brasileiros: o racismo, recalcado sob a ideologia da democracia racial. A tolerância existe desde que uns fiquem de um lado e outros, de outro, apartados geograficamente, nos shoppings, nos ambientes usualmente frequentados por uns e por outros. As desigualdades sociais e econômicas garantiam essa distância, isolando, canalizando ou sublimando tensionamentos. A avalanche de mudanças substantivas das duas últimas décadas levou a maioria a sentir-se valorizada e fortalecida, fazendo-a adotar a linguagem dos direitos, seja como consumidor, seja como cidadão. Crimes racistas começaram a ser denunciados e tratados com seriedade. Pela primeira vez na história do país, numerosos contingentes de jovens negros chegaram à universidade e eles não estavam mais dispostos a levar desaforo para casa. Referências à elite branca, antes uma caricatura exótica, passaram a marcar as conversas dos segmentos politicamente mobilizados da sociedade. O primeiro rolezinho foi um sucesso midiático e garantiu o êxito da convocação para o seguinte, que reuniu duas mil e quinhentas pessoas no Shopping Internacional de Guarulhos, região metropolitana de São Paulo, no dia 14 de dezembro de 2013. A sequência de atos pode ser vista como o rompimento performático de muros simbólicos que apartavam pobres e ricos, promovendo mudanças na geopolítica convencional, elitista e racista. Animados com o entusiasmo com que eram acatadas as convocações pelas redes sociais, assim como pela intensidade das reações que as incursões suscitavam, os jovens não recuaram.

Os rolezinhos eram pacíficos e lúdicos, mas assustavam. A continuação dos rolezinhos precipitou declarações duras por parte das associações de lojistas e o governo estadual paulista foi instado a reprimir com severidade aquelas brincadeiras. Elas estavam perturbando os consumidores, afastando-os dos shoppings e custando caro ao comércio. No dia 11 de janeiro, a polícia militar não hesitou em recorrer a balas de borracha e gás lacrimogêneo para dispersar a aglomeração dos jovens no Shopping Metrô Itaquera, que fora palco do primeiro episódio da série. Um jovem acabou sendo detido. Dois roubos e dois furtos foram registrados. Naquele mesmo dia, haviam sido marcados rolezinhos em outros shoppings paulistas. Os estabelecimentos interpelaram a Justiça, requerendo a proibição dos eventos. Difícil era definir as regras do jogo. Como filtrar os admissíveis? Pela idade? Cor e vestimenta seriam indicadores inconstitucionais. Pelo número? Só funcionaria se os milhares chegassem todos de uma vez. Como distinguir entre consumidores e visitantes dispostos a participar da performance, a qual, aliás, resumia-se a estar nos espaços escolhidos em grande número, eventualmente cantando as canções mais apreciadas? Curiosamente, partícipes do rolezinho eram também consumidores. Não havia depredações, crimes, violência. Por que e com base em quais critérios proibir a entrada?

O primeiro rolezinho do Rio de Janeiro só seria convocado para o dia 19 de fevereiro de 2014. Mesmo assim, no Rio, sabia-se tudo sobre os rolezinhos e falava-se bastante a respeito, uma vez que jornais, revistas, rádios e TVs cobriram em detalhes o que acontecia em São Paulo. Outros estados começavam a assistir a eventos semelhantes. O exemplo paulista era contagioso. As condições estavam dadas para que a experiência se alastrasse.

Portanto, quando o adolescente negro foi espancado e abandonado nu, amarrado pelo pescoço a um poste, o mastro do martírio, os rolezinhos estavam presentes no repertório cotidiano da mídia e do imaginário social. Eram muito fortes as imagens de jovens negros deslocando-se como populações errantes em ondas migratórias para dentro dos templos do consumo da classe média, os shoppings centers, atravessando limites que antes talvez fossem considerados intransponíveis. Não que antes os jovens pobres e negros fossem proibidos de entrar e passear nos shoppings. Como os preços e o ambiente não lhes eram, digamos, familiares, sua presença não era significativa. Entrando em grande número, punham uma lente de aumento sobre sua presença, tornando-a um fato público notório. A geopolítica do surdo apartheid nacional estava sendo desestabilizada. Paredes haviam sido postas abaixo por efeito da redução das desigualdades e do novo protagonismo assumido pela juventude das periferias. Esta mobilidade assombrava muita gente. Quando os trinta motoqueiros atacaram os adolescentes no Rio de Janeiro, era esse o quadro de fundo, mesmo que nada disso fosse verbalizado. Os justiceiros cariocas amarraram o menino no poste para dramatizar sua fixação territorial, criando um contraponto às ondas migratórias, ao nomadismo que desconhece fronteiras de classe e de cor, à errância que ignora a geografia social estabelecida pela tradicional distribuição de poder. Enlaçaram-no pelo pescoço para privá-lo de voz, e sabemos que a voz é o meio mais importante de afirmação da natureza humana. Voz articula a linguagem e a linguagem constitui o sujeito, dota-o de subjetividade, dignidade e direitos. A nudez corresponde à privação dos signos mais elementares de pertencimento à sociedade, as roupas. O jovem negro foi reduzido ao corpo sem voz, desprovido de movimentos e linguagem – subjetividade, dignidade, direitos e inserção social. A agressão ao adolescente foi uma resposta brutal aos rolezinhos, paradoxalmente demonstrando seu profundo sentido histórico. As sociedades mudam como animais trocam de pele. No Brasil, a velha epiderme não cederia sem resistência.

Se o mastro, em Bom Jesus, operava como uma categoria supradiscursiva, um objeto-categoria, proporcionando a experiência da unidade do grupo e da integração cósmica multidimensional, articulando, sob a égide da unidade, da harmonia, trabalho-lazer-religião-natureza-política-indivíduo-sociedade, o drama selvagem do linchamento põe no centro de seu dispositivo gerador de sentido um poste: o mastro que aqui funciona como operador da fixação territorial, da reificação das desigualdades, do apartheid social e do racismo estrutural da sociedade brasileira. Outro indicador desse papel funesto é o fato de que o poste está onde o puseram e onde permanecerá. É um elemento fixo do cenário ritual. Por outro lado, o mastro de Bom Jesus migra da mata para o centro da aldeia por obra do esforço coletivo. É móvel. O deslocamento dá-se enquanto está em marcha o ritual, como sua parte estratégica, no tempo do próprio ritual.

Material de desconstrução: a explosão congelada e o falocentrismo estilhaçado

Cold Dark Matter: an exploded view, de Cornelia Parker.
Cold Dark Matter: an exploded view, de Cornelia Parker.

Matéria escura e fria: uma visão explodida [Cold Dark Matter: an exploded view], de Cornelia Parker, realizada em 1991, que figura na coleção da Tate Gallery, em Londres. A obra combina madeira, papel, plástico, metal, cerâmica, tecido e arame. Trata-se de instalação magnífica, magnética, que sobrepõe o estupor da catástrofe ao encanto da beleza sublime, leve, suspensa, típica de um móbile. Combinam-se fragmentação e unidade, deslocamento veloz centrípeto e corporeidade íntegra imóvel, alusiva a uma ordem centrífuga. A imagem atraente de repouso e aconchego, como de uma luminária doméstica harmoniosa, que aquece e preenche o ambiente, corresponde também à confusão de tralhas, lixo e pedaços de demolição. Há humor, ressaltado pela autora, referindo-se à própria inspiração original da obra: a linguagem dos quadrinhos quando retratam explosões e violência. Ousaria sugerir que há também, não importa se consciente ou inconscientemente, citação a Zabriskie Point (1970), de Michelangelo Antonioni: objetos de consumo explodem em câmera lenta. O formato circular remete a autonomia, perfeição, autossuficiência, mas as sombras projetadas em todo o ambiente por luzes multidirecionais aludem à cacofonia de excessos, sobras, vazios, assimetrias, subordinando o humor à desordem assustadora, ou a beleza à ruína. O contraponto impõe-se de imediato: a alquimia da obra transforma o apocalipse na origem explosiva do universo, morte em nascimento. O circuito é incessante: a obra transfere o movimento e a incerteza a quem a contempla, furtando-se ante qualquer esforço de apreensão.

Em Cold Dark Matter, a madeira sobressai, pedaços de pau espetam o ar, apontam para todos os lados. O trabalho da desintegração está congelado, o processo de desagregação está retido. O movimento está preso na moldura esférica da forma.

Coloquemos o mastro e o poste para conversar com a visão explosiva de Cornelia Parker. Ante o mastro camponês amazônico, a instalação britânica sentencia: a unidade não é mais possível, nem a social, nem a cósmica. Céu e terra não cabem mais em um mesmo objeto, inconsútil e apaziguador. O alto e o baixo não se ligam por um tronco comprido, plantado e erguido no centro do povoado. A articulação entre as esferas da vida cotidiana não pode mais ser representada por um objeto-categoria que interpela a fragmentação, submete-a à sua ordem e evoca a identidade sob a égide de uma montagem falocêntrica. A acoplagem possível é a do convívio entre os pedaços (a metonímia dos paus), não a do encaixe de peças destinadas a completar a forma, não o jogo mimético entre o buraco escavado no chão e a imponência ereta do mastro. Na instalação de 1991, cada peça porta o que à outra falta. Em Cold Dark Matter, os pedaços portam a falta e são excessivos, não se complementam, são intransitivos, não constroem juntos uma mensagem: fazem circular estilhaços de sentidos contraditórios. Entretanto, embora refratária a sínteses e à unidade, a obra opera a representação de um tempo cético e marcado por contradições, que se caracteriza por afirmar-se rebelde à representação. Representa o irrepresentável, sendo este paradoxo aspecto estratégico de nosso tempo. O contraste com o mastro e com o poste, e a explosão presumida do que era uno em pedaços, sinaliza a resistência ao falocentrismo e, nesse sentido, a manifestação feminina. A explosão enquanto origem da vida também alude ao feminino. Até certo ponto, a impossibilidade da representação não passa da falência do falocentrismo, tradicionalmente confundido com a própria matriz da representação: o jogo de correspondências é assimétrico e toma como referência o homem – confundido com a espécie –, o Deus, o poder, o Pai. A unidade remete ao poder, amálgama entre as partes. E o poder, no mundo europeu que herdamos, foi predominantemente masculino. O homem foi o fiador do sentido e do saber, medida de todas as coisas. Cold Dark Matter propõe a beleza de todas as coisas em revolução permanente, sem qualquer insinuação ideológica trivial.

O poste opera reassegurando a ordem posta em risco pelos rolezinhos – ou, por analogia, pelas migrações na Europa e em outras partes do mundo (o imaginário globalizou-se). Os linchadores recorreram ao poste para fixar sua vítima e enviar um sinal claro: deslocamentos, não; a geopolítica interna brasileira, racista e desigual, não poderia ser subvertida. O grau de violência corresponde à magnitude da insegurança dos algozes. Parece evidente que a ordem a ser defendida com beligerância criminosa não é apenas socioeconômica e política, mas também aquela que identifica os gêneros e a sexualidade por contrastes e classificações unidimensionais. Ou seja, o poste funciona também como suporte do falocentrismo ameaçado.

Cold Dark Matter explode o poste, manda-o para o espaço aos pedaços. E em sua silhueta esférica – mesmo porosa, vazada, lacunar, falhada – anula a possibilidade de assentar um ponto de fixação, uma referência segura e constante, assim como um ponto de vista sub specie aeternitatis (a razão), além da história e da cultura, a partir do qual fosse possível identificar, com precisão absoluta, o belo, o justo e o verdadeiro. Uma linguagem refratária ao falocentrismo não coloca o feminino no centro, não tem centro. O feminino enquanto par do masculino é apenas uma projeção falocêntrica.

Um mastro move-se (é movido) para ligar as pessoas, tecendo uma rede integradora, celebrando o convívio, o prazer e a vida: Bom Jesus, 1978. Um mastro fixo, o poste, serve para separar as pessoas e bloquear a mobilidade, que reinventa a geopolítica brasileira, de cores e classes: Rio de Janeiro, 2014.

Há um diálogo tácito entre objetos através do tempo, se abrirmos espaço para recepcioná-lo, interpretativamente, aproximando configurações culturais diferentes e momentos históricos distintos, construídos e experimentados em linguagens diversas. Coisas-categoria imantadas de sentido e, sobretudo, operacionais, isto é, que fazem coisas, produzem efeitos, como os atos de fala, os performativos. Coisas-categoria inscritos em dramas específicos, funcionando mais do que apenas como cenário e coadjuvantes. As coisas, por sua forma e participação ritual, pensam, interrogam, propõem um vocabulário estético-político que redefine a problemática da tradução.[3]

Na medida em que subtraímos o substrato antropomórfico e antropocêntrico dos componentes do drama, e deixamos as coisas circularem, elas podem, atuando, contar sua própria história, emendando a nossa e abrindo para nós novas perspectivas. A opacidade dos objetos é impenetrável, tanto quanto sua “fala” é inatural. Todos os humanos estamos de fora do circuito da comunicação. Contudo, as coisas são eloquentes, e o mundo urbano contemporâneo, irrepresentável mas aberto a intervenções criadoras, nas festas populares e na arte, não é cristão.

Para finalizar, me permito uma reflexão complementar. Não há equivalência nos símbolos, salvo em matemática. O regime da representação é uma esteira esticada pela tração exercida por tensionamentos. Por isso, a noção de correspondência, que tacitamente conforma a teoria popular da representação (e não apenas popular), é misleading (traiçoeira, enganosa, capciosa, falsa). A matriz da assimetria inscrita nas bipolaridades e nos dualismos é a relação entre gêneros: ela é necessariamente, porque historicamente, assimétrica, ou seja, falocêntrica. O feminino não é o oposto, o inverso simétrico, a contraparte, o outro em igualdade de condições do masculino; mas o outro subalterno, o outro posterior subordinado ao eixo masculino, susbsumido pela categoria “homens”. Não por acaso a palavra por muitos séculos foi sinônimo de humanidade (ainda é, em tantas falas). Em outras palavras, o feminino é o oposto complementar do masculino, não o contrário. Isto é, há o homem e a mulher, o masculino e o feminino, não a mulher e o homem. A primazia está posta na temporalidade do enunciado. Temporalidade implica negação da reversibilidade. Quer dizer: importa saber quem vem primeiro na asserção, e a escolha não é aleatória. Quem vem primeiro rege a relação. A anedota bíblica da costela e a masculinidade de Deus fundam essa assimetria, constitutiva das “equivalências diádicas”. A psicanálise e certa antropologia identificaram o fenômeno, mas tenderam a naturalizá-lo. O que farão as mulheres para libertar-se da regência do masculino? Elas dirão. Ou melhor, já disseram, já o estão dizendo. Basta dispor-se a ouvir, contemplar e ler. Cold Dark Matter é um exemplo.


* Luiz Eduardo Soares é escritor, antropólogo, professor visitante da UFRJ e ex-professor da UERJ, do IUPERJ e da UNICAMP. Publicou vinte livros, dos quais os mais recentes são Desmilitarizar: segurança pública e direitos humanos (Boitempo, 2019), O Brasil e seu Duplo (Todavia, 2019) e Dentro da noite feroz: o fascismo no Brasil (Boitempo, 2020).

 

Referências

BERGER, Peter; LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade. Petrópolis: Editora Vozes, 2014.

SOARES, Luiz Eduardo. Campesinato: ideologia e política. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

 

Notas

[1] Agradeço a Paul Heritage e André Piza o convite para publicar a tradução deste artigo, sob o título “Things think of us: translation, festa, social movements, violence and art”, em HERITAGE, P.; STROZENBERG, I. The Art of Cultural Exchange; translation and transformation between the UK and Brazil (2012-2016).1 ed. Delaware e Málaga: Vernon Press, 2019, p. 95-110. A versão original permanecia inédita até a presente publicação. Sou grato a Beatriz Resende pela generosa acolhida na Revista Z Cultural. Outra versão da análise dos rolezinhos foi publicada em meu livro O Brasil e seu duplo (Todavia, 2019).

[2] A descrição da festa constitui versão modificada de parte do capítulo “Contraponto ritual às representações externas” em Campesinato: ideologia e política (Soares, 1981).

[3] Agradeço a Luiz Camilo Osório a leitura generosa, inteligente e criativa. Sua sugestão de incluir, no conjunto das intervenções estético-sociais analisadas, a obra Fantasma, de Antonio Manuel, é peciosa. Pretendo segui-la, no futuro próximo.

CARTA ÀS MULHERES QUE SE INCOMODAM


A ideia inicial era escrever uma carta às mulheres negras e periféricas para que nos aproximássemos através de todos os inconvenientes a que somos submetidas. Chamo de inconvenientes o que poderia ser nomeado como um grande conjunto de dores, mas não quero começar recortando as nossas existências.

Contudo, ao pensar que nossa aliança deveria se dar pela identidade, dei-me conta do quão frágil é essa noção de pertencimento, embora sejam inegáveis os nossos atravessamentos; somos múltiplas, muitas, diversas. Por essa razão, ampliei o meu corpo destinatário.

Companheira preta, periférica, suburbana; sei o quanto a raiz de suas dores vem de seus antepassados milenares, de “sua mil avó”. Aprendemos a ser desdobráveis, a fazer malabarismos, nos fizeram crer que éramos fortes, que sentíamos menos dor, que precisávamos de menos anestesia para parir, que podíamos trabalhar mais e dormir menos, comer menos, sorrir menos, gozar menos. Ensinaram-nos a falta. Sei também o quanto nos recusamos a assimilá-la, não era natural e nós bem o sabíamos.

Como dizem os teóricos do afropessimismo, o tempo deve ser entendido como acúmulo de episódios, o futuro é antecipado pelo passado e deste não podemos abrir mão, não conseguimos.

O trabalho escravo executado, sem clemência, durante o longo período da colonização, forjou uma falsa noção de que somos predestinadas a isso, de que nosso lugar é a cozinha das casas grandes, suas áreas de serviço. Hoje, ainda cuidamos de casas que já nem são tão grandes, mas que ainda exigem que outras mãos as conservem limpas. O trabalho sujo, literalmente aquele que remove a sujeira, ainda tem a nossa  cara. Por quê? Por que ainda somos maioria entre as profissionais terceirizadas, precarizadas, mal pagas, violentadas em nossas aptidões? Por que ainda temos que cuidar dos filhos dos outros, renunciando ao tempo que poderíamos dedicar a nós e aos nossos, filhos ou irmãos?

Não bastasse esse violento ataque à nossa subjetividade, ainda somos marginalizadas em uma sociedade que não nos permite viver com saúde, tranquilidade e educação. A escola dos nossos filhos é a mais pilhada, falta o piso novo, a parede pintada, faltam professores bem pagos motivados a ensinar. Não querem uma educação libertária que desperte a enorme massa operária em um levante contra a opressão. Sobram trocas de tiros e balas achadas, tantas crianças correndo ou abaixadas para tentarem sobreviver às operações.

Chamam nossas comunidades de áreas de risco, rotulam nossos corpos com um invisível adesivo, indicando perigo e confusão. Sei o quanto é difícil dormir com um filho ainda na rua, o quanto dói que não se possa alimentar os sonhos dos meninos e das meninas que ainda não entendem o drama e projetam, às vezes, em vão. Querem ser artistas, médicos, advogados, empresários em um sistema que programa o contrário, projeta para eles o cárcere, o abandono, a exclusão. O que fazer com um filho que sonha, para o qual queremos infância, adolescência, que se torne um cidadão? E não me venha falar de meritocracia, não me fale das poucas histórias de superação. Todos esses casos pinçados servem para justificar o grave quadro que estrutura nossa atual condição.

Tem tanta coisa sem sentido… Temos grupos de mães que perderam seus filhos para a violência do estado. Bizarro! Há uns anos, um secretário de segurança do Rio de Janeiro afirmava que era preciso quebrar alguns ovos para fazer uma omelete. Os ovos eram os corpos negros e pobres que moravam nas comunidades. A sociedade aceitou fazer essa omelete… Por quê?

Esse grupo de mães deveria ser formado por todos os tipos de mulheres: as que ainda não perderam seus filhos, as que não convivem com o risco de perderem seus filhos pela violência estatal, as que não têm filhos, as que não terão… Deveria ser formado por todos que se indignam – homens, mulheres, aqueles que não se identificam com esse rótulo binário. Todos, sem exceção. Todavia, convoco aqui o protagonismo das mulheres por acreditar em uma nova forma possível de organização, por acreditar em novas poéticas, novas políticas, novas razões.

Entendo a força de um patriarcado que foi institucionalizado como instrumento de opressão. Entendo que haja tantas mulheres que não vivem o que vivemos, mas que podem e devem se comprometer, se incomodar, se envolver. É possível que tenhamos sentido raiva de termos sido ou ainda sermos exploradas por aquelas que não deveriam nos ofender. Tal raiva legítima deve ser reelaborada, para buscarmos força e encontramos armas, para que possamos vencer. É preciso estarmos atentas às aliadas, é preciso mais do que palavras, é preciso ação, é preciso querer.

Paulina Chiziane, em seu contundente testemunho intitulado “Eu, mulher… por uma nova visão de mundo”, questiona os mitos originários, em diferentes culturas, que marcavam a mulher como símbolo da culpa, do erro, da falha. Éramos sempre o problema da fundação. Ela se perguntava se, no lugar de um deus, tivéssemos uma deusa, haveria efetiva inversão. Conclui que só isso não garantiria nada, e é bem verdade, não é só o sexo é a atitude, não é só a palavra, é responsabilidade acumulada, parceria agregada que nos fariam destruir essas lógicas de opressão.

Íamos juntas, mulheres, no plural, com todas as particularidades que essa palavra arbitrária pode conter. Entendemos que mudar é uma escolha política essencial. Aí, veio a pandemia, um evento inesperado atravessando um presente já tão distópico. As diferentes realidades se impõem, enquanto umas estão isoladas, outras continuam “no corre”, driblando faltas, tiros e patrões, ferramentas de um sistema que insiste em nos anular, nos aniquilar, nos separar…

Contudo, ainda hoje temos as redes, as palavras, os textos, as atitudes solidárias para nos aproximarem. Já aprendemos a coser, a nos aliar. É preciso alimentar o incômodo, não banalizar os absurdos, que devem ser vistos como ferida aberta em cada corpo, sem sarar, sem que as possamos olvidar. A empatia tem que ser arma feminista, se não o for, não há revisão epistemológica que nos faça vencer. É preciso criar teorias e atuar nas práticas, em uma colcha gigante, crescente, formada por pedaços distintos que não podem se romper.

Às que se incomodam, deixo o convite, uma convocação à prática, à escuta, à necessidade de ampliar as pautas, de nos vermos. O constrangimento é parte do processo, ele nos mostra quem está junto, quem está perto, o que há de concreto e o quanto devemos sonhar. Na pandemia e, apesar dela, numa parceria sem tréguas, vamos? É fundamental se incomodar…


* Jucilene Nogueira é professora de Língua Portuguesa do CEFET-RJ, doutoranda em Ciência da Literatura pela UFRJ e membra do Laboratório de Teorias e Práticas Feministas do PACC-Letras da UFRJ.

GRAFITES LITERÁRIOS: POESIA NA CIDADE


A arte de grafitar

Esse artigo busca jogar luz nas manifestações efêmeras de grafite, realçando seus significados, abrindo espaço para o discurso urbano, através de escritos em diversas superfícies da cidade. A partir do hábito de errâncias na cidade, começo a perceber uma intensificação de certas manifestações textuais, ainda que de diversas naturezas, as quais inicialmente não se encaixavam no conceito tradicional do grafite. Partindo da necessidade de olhar mais detalhadamente para o que está acontecendo na cidade do Rio de Janeiro, percebi que havia uma outra linguagem de grafite, e que este precisava de uma definição que desse conta de suas especificidades. Foi quando emergiu o seguinte pensamento: se a cidade é um livro aberto, os grafites textuais podem ter significados literários. Daí surgiu o nome “Grafite Literário” (GL). Os GLs são manifestações que emergem de forma poética e política, inseridos no sistema da arte e a(r)tivismo próprio da cidade contemporânea. Assim, ao longo desse artigo, vou utilizar a sigla GL para me referir aos textos inscritos nos muros da cidade, com mensagens de diversas naturezas, sejam políticas, literárias ou poéticas, produzidos com várias técnicas, tais como xilogravura, impressão digital, xerox, tinta spray, estêncil.

Cabe lembrar que, na história, o hábito de grafitar data do período pré-histórico, como é o caso das pinturas rupestres, encontradas nas paredes e tetos das cavernas, verdadeiras representações artísticas que simbolizavam um modo de vida da época.

No século XX, a prática de grafitar muros e paredes com inscrições de teor poético ou político ganham força em maio de 1968, na cidade de Paris, com os movimentos da contracultura. Naquele ambiente, jovens descrentes com o rumo do capitalismo e usando tinta spray rasgam o verbo para falar e expressar nos muros da cidade sua insatisfação. Essa prática percorre o mundo e, como não poderia deixar de ser, o artista acompanha e age nesse processo. Jean-Michel Basquiat, em Nova York, é um exemplo (Figura 1). Seus grafites têm uma forte contestação política, representado o que acontecia mundialmente naquele momento histórico.

Figura 1: Basquiat em ação no centro de Nova York em 1981. Fotografia de Edo Bertoglio. Disponível em: https://saopaulosao.com.br/conteudos/recomendados/3473-retrospectiva-de-jean-michel-basquiat-1960-1988-com-80-obras-chega-ao-brasil-pela-primeira-vez.html#.
Figura 1: Basquiat em ação no centro de Nova York em 1981. Fotografia de Edo Bertoglio. Disponível em: https://saopaulosao.com.br/conteudos/recomendados/3473-retrospectiva-de-jean-michel-basquiat-1960-1988-com-80-obras-chega-ao-brasil-pela-primeira-vez.html#.

Os grafites se expandem e se tornam presença marcante no cenário cultural no mundo inteiro. Eles ocupam o epicentro da arte urbana, utilizando técnicas de pinturas sofisticadas, aplicadas em tamanhos gigantescos nas grandes empenas dos prédios, muros e outras superfícies pela cidade. Ao longo desse processo, o grafite ganha reconhecimento no campo da arte e participa como elemento cultural nas reestruturações urbanas, ou nas chamadas requalificações urbanísticas nas cidades pelo mundo todo. No Rio de Janeiro não foi diferente, onde podemos ver, no Porto Maravilha, na região portuária, o trabalho produzido pelo muralista Eduardo Kobra (Figura 2), que mostra uma imagem figurativa com vários elementos da nossa cultura, marcando presença num ambiente recém-restaurado.

Figura 2: Boulevard Olímpico do Porto Maravilha, na região portuária, trabalho de Eduardo Kobra. Disponível em: https://diariodorio.com/o-maior-grafite-do-mundo-e-no-porto-maravilha-feito-pelo-kobra/.
Figura 2: Boulevard Olímpico do Porto Maravilha, na região portuária, trabalho de Eduardo Kobra. Disponível em: https://diariodorio.com/o-maior-grafite-do-mundo-e-no-porto-maravilha-feito-pelo-kobra/.

A partir dessas premissas, mas na contramão dessas experiências urbanas, encontramos também uma outra linguagem nos muros e paredes da cidade, que pulveriza um discurso importante para ser apreendido e ouvido, e que, como já delineei acima, são textos e/ou mensagens difundidas pelos GLs. Buscando realçar a importância desse discurso urbano, é importante observar que os GLs não estão inseridos numa agenda urbana de culturalização, portanto não se encontram nas soluções das ditas “cidades criativas” (Seldin, 2015, p. 54). Eles são manifestações espontâneas, que surgem da produção feita por artistas, mas também por outros profissionais, que utilizam o espaço da cidade para expor e apresentar seu trabalho, pensamento e/ou questionamentos que marcam a vida do citadino.

Os GLs ainda guardam uma rebeldia e irreverência que se situam no contexto performático de ações efêmeras e rápidas, frente aos impedimentos legais de uso dos muros ou paredes da cidade. Os GLs têm em sua natureza artística, mesmo que informalmente, uma base literária, que se aproxima de pensamentos poéticos, de manifestação política e/ou de posicionamento nos enfrentamentos sociais, em contraposição aos interesses neoliberais que nosso país vem enfrentando nos últimos tempos.

Um exemplo importante na história da cidade do Rio de Janeiro é o Profeta Gentileza (Figura 3), que, nas suas errâncias, ganhou destaque, transformando uma série de muros cinza a céu aberto em poesia, com frases e mensagens de amortização que são ícones da cidade – “Gentileza Gera Gentileza”. Sua ação artística influenciou a vida e o cotidiano dos citadinos nos anos 1980, fazendo circular pelo espaço urbano um discurso repleto de significações, sentidos, memória, numa fala heterogênea e simbólica. Gentileza escreveu o conhecido “Livro Urbano”,[1] que são mensagens grafadas ao longo das 56 pilastras do viaduto do Caju, na zona portuária do Rio de Janeiro, participando ativamente em um momento importante de abertura política no país (Yado, 2016, p. 19).

Figura 3: Profeta Gentileza. Disponível em: https://www.revistaprosaversoearte.com/gentileza-gera-gentileza-profeta-gentileza-jose-datrino/.
Figura 3: Profeta Gentileza. Disponível em: https://www.revistaprosaversoearte.com/gentileza-gera-gentileza-profeta-gentileza-jose-datrino/.

Há vagas

Tomemos como outro exemplo o GL lambe-lambe[2] (Figura 4) de autoria do artista Marcelo Oliveira, cujo título do trabalho é “Há vagas”. O conteúdo do GL descreve a imagem de uma mulher negra, numa posição que faz referência a um tipo de escultura popular muito comum de ser encontrada no interior de Minas Gerais, conhecida como “Namoradeira na janela”, complementado pelo seguinte texto: “Precisa-se / Procura-se – uma moça confiável e sem vícios, que trabalhe fora para morar em casa de família.”

Figura 4: Há vagas (lambe-lambes em xilogravura, tinta guache e fitas adesivas, 96x66cm, 2017), Marcelo Oliveira, rua Primeiro de Março / Praça XV, RJ. Imagem fornecida pelo próprio artista.
Figura 4: Há vagas (lambe-lambes em xilogravura, tinta guache e fitas adesivas, 96x66cm, 2017), Marcelo Oliveira, rua Primeiro de Março / Praça XV, RJ. Imagem fornecida pelo próprio artista.

Assumindo esse GL como uma ação de “Arte A(r)tivismo” no contexto do espaço urbano, ele traz à cena a procura por moça “negra”, sem vícios para morar em casa de família, na mesma linguagem dos anúncios de jornal de compra e venda de escravos no séc. XIX. O anúncio (Figura 5) é um exemplo que põe em destaque “precisa-se comprar uma escrava sem vícios e que saiba cozinhar” – sem vícios era uma exigência muito comum entre os senhores de escravos na época.

Figura 5: Precisa-se comprar uma escrava de meia idade sem vícios (...). Propaganda de jornal datado de 8 de fevereiro de 1879. Disponível em: http://desacato.info/os-repugnantes-anuncios-de-escravos-em-jornais-do-seculo-19/.
Figura 5: Precisa-se comprar uma escrava de meia idade sem vícios (…). Propaganda de jornal datado de 8 de fevereiro de 1879. Disponível em: http://desacato.info/os-repugnantes-anuncios-de-escravos-em-jornais-do-seculo-19/.

Diante do exposto, percebe-se uma preocupação com a questão da escravidão e do racismo ainda presente nos dias atuais. Os dados não mentem. No Brasil, em 2017, 75,5% das vítimas de homicídios foram indivíduos negros, cerca de 43 negros a cada 100 mil habitantes, ao passo que a taxa de não negros é de 16 a cada 100 mil habitantes (IPEA, 2019). Passados quase dois séculos da abolição, nossa sociedade ainda não superou o trauma da escravidão. Marcelo está atento e, por meio do seu trabalho, dá voz a uma imensa população excluída e marginalizada quando diz em entrevista a esta pesquisadora o seguinte:

Existe um inconformismo no ar, um desejo por mudanças que não são atendidos pelas vias legais. Então, vejo que essas intervenções buscam as frestas, as brechas, resta-nos assim a desobediência civil. O sentimento de urgência, o grito contido nos impele a agir. Temos muito a dizer.[3]

Colocadas essas questões, aqui podemos distinguir dois campos epistemológicos a serem analisados: um refere-se à ação artística aplicada no espaço urbano, portanto no contexto da cidade, e o outro aos aspectos políticos e sociais que demarcam esse tipo de manifestação dita como “Arte A(r)tivismo”. A cidade na contemporaneidade se tornou o lugar de manifestações artísticas, assumindo propriedades intrínsecas da própria obra, evocando a mediação do discurso como parte do processo criativo, conforme afirma Cocchiarale, e se deparando com uma autonomia da arte, cuja produção se expande para os espaços urbanos, atuando no campo estético, mas também no campo ético-político (Cocchiarale, 2007, p.184, 187).

No campo estético, esse GL tem uma característica de ter sido produzido em xilogravura, impresso em papel, uma técnica tradicional, que utiliza como suporte a madeira, mas, nesta imagem, o artista se apropria também de tinta guache e fita adesiva como recursos para a composição. O resultado visual é bem diferente dos grafites produzidos com tinta spray, dando uma qualidade e refinamento ao trabalho. Vale destacar que normalmente esses GLs são fixados em vários lugares da cidade e em grandes áreas de circulação, com o objetivo de levar a mensagem a um maior público.

Sob esse olhar, percebemos uma relação íntima entre arte e cidade que tem emergido no campo do urbanismo como um amplo recurso para análises e estudos do ambiente urbano. É interessante observar que, nesse campo, são várias as reflexões. Nelson Brissac Peixoto afirma que a arte, assim como a filosofia, é modo de habitar a cidade, e nesse sentido a arte não existe na cidade, ela é a cidade, enquanto a cidade reflete a si mesma – ela apresenta o estado do tráfego de interesses, paixões, pensamentos, tudo aquilo que envolve nossa experiência urbana (Peixoto, 2006, p. 488).

Essa experiência urbana, no caso do GL, é uma manifestação que marca uma forma de agir, em que o artista, por meio de suas práticas, enfatiza as relações sociais, tornando-se um mediador social, ativando, mesmo que temporariamente, o convívio, em alguns casos como um etnógrafo de microestratégias de territorialização, em outros interferindo em pequenas táticas no habitat, evocando situações rápidas e perturbadoras, pequenos ruídos na entropia urbana (Florido, 2011).

Inserido numa multiplicidade de sensações e percepções da vida, do mundo e de sua própria condição humana, o artista aberto para o processo de criação passa por muitos estágios e experiências, que demandam uma capacidade de se inserir numa dinâmica de interação constante consigo mesmo e com o público. Acompanhando todo o processo histórico das cidades e os percursos da arte, o artista, frente às constantes demandas e desejos, vai percorrer caminhos de camadas complexas, às vezes sozinho ou em grupos, coletivamente. Desde os anos 1980, uma série de mudanças redesenham o circuito da arte em decorrência das novas pressões da economia neoliberal e da ordem mundial global, com reflexos também no Brasil (Basbaum, 2013, p. 22).

Esta é uma situação que exige do artista uma produção de arte que requer operar com vetores de um campo ampliado, que abre ao entrecruzamento das diversas áreas do conhecimento, num panorama transdisciplinar, sem prejuízo de sua autonomia e especificidade enquanto prática da visualidade. Segundo Ricardo Basbaum, o artista se move num território de paisagem não natural, com ações precisas, ao mobilizar instabilidades do campo cultural, lugar que permite problematizações, conflitos, paradoxos, por meio de uma inteligência plástica e de uma rede de relações entre muitos pontos de oposição (Basbaum, 2013, p. 27).

Vista por esses processos, no entrelaçamento dessas questões e na produção do trabalho artístico, emana uma emergência na visualização, na busca de olhar os GLs num campo ampliado e sob um contexto, segundo o teórico da cultura visual Nicholas Mirzoeff, que abre espaço para o despertar do “direito ao olhar”. Um direito, porém, não meramente como uma questão de visão, mas como uma ação que no nível pessoal começa adentrando os olhos de alguém para expressar amizade, solidariedade, ou amor de forma mútua, cada um inventando o outro, caso contrário ele falha. O direito a olhar reivindica autonomia, não individualismo ou voyeurismo, mas pleiteia uma subjetividade e coletividade políticas (Mirzoeff, 2016, p. 746).

Encontro poesia lendo suas linhas

Trazendo para o universo poético literário (Figura 6), a cidade do Rio Janeiro recebeu uma série de GLs do poeta Jaime Filho,[4] produzidos em impressão digital sobre papel colorido, cuja mensagem tem uma linguagem de amorização, fruto da sua vontade de levar poesia para a cidade, como ele mesmo diz em entrevista a essa pesquisadora:

Nos anos que morei na capital carioca, espalhei meus poemas e frases pela cidade do Rio de Janeiro com o intuito de levar poesia e arte ao público mais comum: aquele cidadão que, voltando do trabalho em meio a uma estressante rotina diária, se depara com um poema colorido em alguma parede cinza qualquer, que pra ele era só mais um lugar comum até então, e talvez isso alivie a tensão de todo um dia naquele momento; também pelo amor que descobri que tenho pela cidade maravilhosa; colar lambes em qualquer parte da cidade faz eu me sentir também, de certa forma, parte dela (Jaime Filho, 2020).

“Encontro poesia lendo suas linhas” (Lapa) “Saudade é tatuagem na pele da alma” (Rua Argemiro Bulcão, próximo ao largo da Prainha) “Paz Amor Poema e Jujuba” (Rua Imperatriz Leopoldina)
Figura 6: GLs do poeta Jaime Filho. Imagem 1: “Encontro poesia lendo suas linhas” (Lapa); imagem 2: “Saudade é tatuagem na pele da alma” (Rua Argemiro Bulcão, próximo ao largo da Prainha); imagem 3: “Paz Amor Poema e Jujuba” (Rua Imperatriz Leopoldina). Fotos fornecidas pelo poeta Jaime Filho
 

Investigando os poemas desses GLs, percebemos como a cidade, a rua, de fato é um grande livro aberto, lugar de discurso, aberto para o devir. Henri Lefebvre afirma que a rua é o lugar (topia) do encontro, sem o qual não existem outros encontros possíveis nos lugares determinados (cafés, teatros, salas diversas). Ele percebe a rua como um teatro espontâneo, se vê como espetáculo, espectador e às vezes como ator, e diz que nela efetua-se o movimento e a mistura sem os quais não há vida urbana, mas segregação estipulada e imobilizada. Ele ainda argumenta que a rua é um lugar da palavra, lugar de trocas das palavras e signos, e ainda diz que a palavra pode tornar-se selvagem e inscrever-se nos muros, escapando das prescrições e instituições (Lefebvre, 2002, p. 29-30).

A poesia do Jaime Filho reflete esse escapamento das instituições. Nesse sentido, podemos perceber que, no poema “encontro poesia lendo suas linhas”, que nos lembra um haicai, curto e numa linguagem direta e simples, ele abre espaço para pensar o corpo do outro (aqui esse corpo não é necessariamente o corpo materializado, mas pode ser o corpo subjetivo), não como posse, mas como direito a olhar subjetivamente, inspirando um modo de viver coletivamente na cidade. O poema “saudade é tatuagem na pele da alma”, colocado propositalmente ao lado do mosaico de azulejo, em homenagem a Marielle Franco, ecoa a potência de que ela jamais será esquecida. A pele da nossa alma está impregnada do horror que foi o assassinato dela, tal qual as tatuagens que os judeus tiveram sem seus corpos, marcados como gado na Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial. É impossível esquecer tamanhas violências. Já o poema “Paz Amor Poema e Jujuba” traz um frescor ao coração, uma imagem delicada de se estar com o outro, uma potência de alegria e doçura. Sempre que encontro esse poema no centro da cidade, começo a sorrir. É um instante em que outras preocupações se apagam, e o gosto da jujuba emerge, lembrando sempre da minha infância.

Nos parece, então, que a rua evidencia esse lugar de troca com o outro, é o espaço de experiência urbana de alteridade, que questiona a pacificação do espaço público produzida por falsos consensos esterilizantes de consumismos, ou de atravessamento do tempo pela aceleração do trânsito e das pessoas nas suas buscas quase infinitas de um sonho.

Segundo Franklin Leopoldo e Silva, nossa sociedade é marcada pelo narcisismo, em que existe uma separação profunda, um abismo, entre o eu e o outro, características éticas muito comprometedoras da nossa civilização, e isso reforça preconceitos de toda natureza (Silva, 2017). Ele ainda enfatiza, inspirado em Emmanuel Lévinas, a necessidade de uma ética da alteridade e faz as seguintes perguntas:

Como seria uma ética em que o princípio da moralidade fosse o outro e não o eu, em que ele me constituísse como realidade ética e não eu a ele? Como seria o mundo em que eu dependesse do outro, e não o outro de mim? (Silva, 2017).

Franklin responde que existem vários aspectos em que isso é colocado na nossa contemporaneidade, e um deles é a ecologia. Com a ecologia, existe uma tentativa de fazer com que o eu veja o mundo a partir do outro, ou seja, pergunta ele novamente: como será o mundo daqui a duzentos anos se continuarmos a explorá-lo dessa forma? Haverá mundo para os outros? Se não houver mundo para eles será que eu não sou responsável por essa catástrofe? A partir daí, não seria o caso de adquirir certa consciência ecológica para preservar o mundo para os outros? Nestse sentido, o que está em pauta no aspecto ecológico é valorizar o outro mais que a mim mesmo e viver mais em relação ao outro, ou pelo menos tentar um equilíbrio (Silva, 2017).

Sob essas perspectivas, os poemas do Jaime Filho são um esforço de ecologia, que percorrem tanto o caminho ilustrado por Lefebvre, no uso do espaço urbano, como as questões de alteridade colocadas por Franklin Leopoldo e Silva, contra todas as dificuldades de um poeta motoboy, que luta nas entranhas das ruas, rasga o verbo nas paredes e muros da cidade. Ele se envolve e envolve o outro nesse discurso, aproximando-se de si e do outro, não como apropriação, mas na liberdade da passagem efêmera de um errante.

A cidade como Epifania Literária[5]

A cidade pós-industrial é onde se aplica com mais propriedade aquilo que entendemos como espaço urbano, cujo conceito está intrinsecamente ligado à sua relação com a sociedade. Nesse sentido, a concepção do espaço como produto social, não como objeto, mas como um conjunto de relações – ou seja, não concebido como passivo ou vazio –, pois o espaço em sua interação social intervém na própria produção, organizando o trabalho produtivo, os fluxos de matérias primas e de energias, numa grande rede de distribuição (Lefebvre, 2000, p. 7).

Hoje vivemos num mundo veloz e de fluidez constante, aparecendo no imaginário e na ideologia como se fosse um bem comum, uma fluidez para todos, no dizer de Milton Santos (2010, p. 83). Tudo gira em torno de uma competitividade, com fortes embates entre os diversos atores, sustentada numa globalização baseada proeminentemente nas técnicas de informação. O papel das finanças ganha destaque na reestruturação dos espaços geográficos, forçando uma compartimentação, que se choca com o movimento geral da sociedade, produzindo “uma verdadeira esquizofrenia”, em que os lugares escolhidos beneficiam vetores da racionalidade dominante (Santos, 2010, p. 80).

A cidade moldada nesses procedimentos globalizantes, em especial a cidade do Rio de Janeiro, emerge de conflitos e tensões, frente a produção simbólica da cidade a serviço dos megaeventos (Copa do Mundo e Olimpíadas), que impulsionam espaços gentrificados e disneyficados, que escondem e homogeneízam os gostos, com consequências na apropriação do espaço público e na formação da cidadania (Sánchez e Guterman, 2016, p. 220).

Talvez seja uma ousadia qualificar a cidade como uma epifania libertária, mas postos essas transformações e os desafios sociais impregnados de discursos, a exemplo do livro urbano do Profeta Gentileza e dos GLs aqui apresentados, nos parece adequado, na perspectiva apresentada neste artigo, incide sobre o espaço urbano uma qualidade literária, nas diversas camadas que moldam a vida na cidade.

A palavra epifania tem sua origem etimológica no grego epiphainein, “manifestar”; raiz em phainein, “mostrar, fazer aparecer”.[6] Nesse sentido, pode-se entender a cidade como lugar de manifestação literária, abrindo espaço para tornar legível ao outro a escrita reservada somente aos livros e/ou às mídias eletrônicas. Os GLs aqui apresentados são poemas que deixam de ocupar um lugar de objeto e se transformam em experiências, práticas, ações, refugiadas em territórios absolutamente refratários, viralizadas nos espaços da cidade, inseridas na arte da guerrilha urbana, infiltradas em territórios diversos, descoladas de uma apresentação tradicional dos livros, das livrarias, ocupando o espaço do simbólico (Penna, 2017).

Trazendo a reflexão de João Camillo Penna, de que não existe uma essência da poesia, que ela não precisa ser reconhecível para ser poesia, e que nem precisa assemelhar-se a traços que reconhecemos como poesia (Penna, 2017), podemos entender que a poesia atravessa diversas narrativas. Inspirado no pensamento de Christophe Hanna (2003, p. 9), Penna afirma que, na poesia contemporânea, o poema não significa, não tem sentido, nem um valor estético acima de tudo; ele visa a um impacto político, com a intenção de agir de forma direta sobre a sociedade.

Se a poesia contemporânea tem a possibilidade de agir diretamente sobre o social, ela cumpre o papel de ativar pensamentos, podendo alterar nossa percepção da realidade e como nos relacionamos com as pessoas e com a vida. Então, ela passa a ser um instrumento de revelação, ainda que efêmero, prolongando a atenção e seu significado ao leitor. Ao sorrir para um poema na cidade, ativamos outros estados de ser. Assim, podemos afirmar que os GLs são um esforço de posicionamento do artista frente a esse sistema global complexo, na tentativa de encontrar um lugar de afeto na cidade, que emerge desse “artista poeta” numa constante reflexão, ativando constantemente percepções outras do sensível.


* Ana Prado é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia/HCTE/UFRJ. Formada em arquitetura e urbanismo, com experiência em projetos de urbanização de favelas, e artista visual com atuação em gravura, fotografia e pintura, com várias exposições no Brasil e exterior.

 

Referências

BASBAUM, Ricardo. Manual do artista – etc. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2013.

COCCHIARALE, Fernando. O espaço da arte contemporânea. In: PESSOA, Fernando; CANTON, Katia (org.). Sentidos na/da arte contemporânea: seminários internacionais. Rio de Janeiro: Museu Vale do Rio Doce, 2007, p. 180-189.

HANNA, Christophe. Poésie Action Directe. Paris: Romainville/Calaméo, 2003.

LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002.

PEIXOTO, Nelson Brissac. Arte & Cidade. In: FERREIRA, Gloria. Crítica da arte no Brasil: temáticas contemporâneas. Rio de Janeiro: Ed. Funarte, 2006.

SÁNCHEZ, Fernanda; GUTERMAN, Bruna. Disputas simbólicas na cidade maravilhosa: atores, instrumentos e gramática territorial. In: VAINER, Carlos; BROUDEHOUX, Anne Marie; SÁNCHEZ, Fernanda; OLIVEIRA, Fabricio Leal de (org.). Os megaeventos e a cidade: perspectivas críticas. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2016.

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2010.

SELDIN, Claudia. Da capital de cultura à cidade criativa: resistências a paradigmas urbanos sob a inspiração de Berlim. Tese (Doutorado em Urbanismo). Programa de Pós-Graduação em Urbanismo da Faculdade da Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2015.

YADO, Thaís Harumi Manfré. Sentidos no espaço urbano: os dizeres de Gentileza dentro e fora da cidade. Tese apresentada ao Centro de Educação e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), 2016.

 

Documentos eletrônicos

FLORIDO, Marisa. Transformações na prática artística: entre a rua e o ateliê: o artista e a cidade. Curso livre de História da Arte, Pinacoteca do Estado, vídeo parte1, julho de 2011. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=f1SpEwnSD5k>. Acesso em: 21/11/2019.

MIRZOEFF, Nicholas. O direito a olhar. Revista Educação Temática Digital-ETD. Campinas, v. 18, n. 4, p. 745-768, 2016. Disponível em: http://dx.doi.org/10.20396/etd.v18i4.8646472

IPEA. Atlas da violência: 2019. Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo. Disponível em:

<http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=34784&Itemid=432>. Acesso em: 21 nov. 2019.

PENNA, João Camillo. O Dispositivo Questions Théoriques. Publicado no blog. Disponível em: < https://joaocamillopenna.files.wordpress.com/2017/03/dispositivo-questions-thecc81oriques-versacc83o-para-leitura.pdf >. Acesso em: 27 jul. 2020.

SILVA, Franklin Leopoldo e. Lévinas: ego e distanciamento. Entrevista concedida em vídeo e publicada no site da Casa do Saber. Disponível em:< https://www.youtube.com/watch?v=uxWBzOVQ6-o>. Acesso em: 20 jun. 2020.

 

Notas

[1] Livro Urbano é o nome que se dá aos escritos que o Profeta Gentileza deixou nas pilastras do viaduto no Caju, Rio de Janeiro (Yado, 2016, p.19).

[2] Nome dado pelo próprio artista Marcelo Oliveira ao seu trabalho.

[3] Marcelo Oliveira concedeu entrevista a essa pesquisadora, que ainda será publicada na tese de doutorado.

[4] Jaime Filho é motoboy de profissão, redige seus poemas entre um frete e outro, tirando das alegrias e frustrações cotidianas da rotina áspera da capital fluminense inspiração para escrever. “Daquelas Tardes no Leblon” é seu primeiro livro, uma antologia com poemas que reúne parte de sua obra. Disponível em: https://www.frutosdapoesia.com/nossos-autores e no seu Instagram @epifania.literaria.

[5] Este subtítulo é uma apropriação amorosa do nome do Instagram de Jaime Filho, @epifania.literaria.

[6] Fonte: https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/epifania/.

PODE O MARGINAL FALAR EM TEMPOS DE PANDEMIA?


Introdução

Em meio ao isolamento social, o home office trouxe soluções para uma parte mais beneficiada dos trabalhadores e as aulas online se tornaram realidade para a parcela privilegiada de estudantes. As redes sociais ofereceram diversas vantagens para a sociedade, o uso de ferramentas como Facebook, Instagram e Twitter serviram de suportes para o consumo de cultura, entretenimento e comunicação, e mesmo não se tratando de uma realidade nova, ganharam inéditas força e roupagem ao se adaptarem ao mundo dominado por um vírus.

No período de distanciamento social, muitas práticas de lazer se adaptaram ao virtual, como shows de artistas, encontros com amigos, além dos modos de consumo remodelados. As mídias sociais se tornaram, ainda, o meio mais rápido e fácil para conscientização e informação sobre o coronavírus, além de suporte para expor nossas dúvidas, medos e incertezas sobre esse novo tempo. De certa forma, o digital é o “novo buraco escavado no chão pela explosão. Ele é o bunker onde o homem e a mulher isolados são convidados a se esconder, ao mesmo tempo trincheira, entranhas e paisagem lunar” (Mbembe, 2020, on-line).

A arte também se adaptou. Museus disponibilizaram passeios virtuais por suas galerias, artistas investiram em shows online com uma frequência nunca vista antes, encontros com intelectuais em sites de reuniões virtuais tornaram workshops e palestras, antes realizados presencialmente, novamente possíveis. Mas como se mantêm os cenários de expressões artísticas que lidavam com o público físico em sua manifestação?

Slam das Minas RJ

A expressão poética conhecida como slam é performada a partir da voz e do corpo de poetas, construindo uma batalha com a coparticipação do público. Uma performance transgressora é elaborada em batalhas de rimas feitas por corpos marginais, onde a arte se beneficia da curiosidade presente no público sob a figura abjeta ali disposta como artimanha para a sua propagação. Feito em locais públicos, o slam desperta a curiosidade do povo que passa e não resiste o olhar e a atenção para aquelas vozes. É a partir dessa estratégia que a mensagem de uma minoria se multiplica. No Rio de Janeiro, o slam das minas RJ ocupou ao longo dos seus 3 anos de existência os mais diversos espaços da cidade e pôde ser encontrado nos transportes públicos, em praças ou centros culturais em diferentes bairros e periferias do Rio de Janeiro. Em uma conversa comigo, no ano de 2018, a slammer Andréa Bak[1] relatou a importância dos espaços públicos para a realização das batalhas de slam: “queremos atingir o trabalhador que está voltando do trabalho, o estudante que está voltando da escola, e fazer com que assim a gente roube um pouquinho da sua atenção, levando ele a descobrir o verdadeiro sistema, a partir do nosso corpo e do que a gente fala” (Bak, 2018, p. 24).

Fonte: Página do facebook do slam das minas RJ
Fonte: Página do facebook do slam das minas RJ


Andréa Bak no slam das minas RJ

Os corpos marginais cariocas vêm sendo constantemente apagados ao longo da história, e coletivos como o Slam das Minas RJ abrem espaço para a proliferação dessas vozes pela cidade. As batalhas de slam são momentos de reuniões de corpos dissidentes que trocam experiências, manifestam seus sentimentos e desejos, e tecem estratégias de enfretamento e luta contra o sistema opressor do Estado. Essas reuniões possibilitam a ocupação de espaços que sempre foram negados aos marginalizados, uma chance de falar mais alto que a voz que a tenta calar. Sobre a arte produzida pelo Slam das Minas, Conceição Evaristo esclarece que através do slam produzido pelos corpos femininos surge uma expressão provocada por um discurso que “precisa e busca expor as incertezas, as injustiças, o enfrentamento do dia a dia do povo. Uma linguagem para contar em versos, as malesas, as incertezas e, também, para celebrar as alegrias de quem tem pouco ou nenhum espaço para dizer” (Evaristo, 2019, p.14). Mas como tornar possível a continuidade ativa dessa expressão artístico-política em tempos de covid-19? Como tática para permanecer na ativa durante a pandemia, o Slam das Minas RJ criou a “Quarentena Poética”, projeto que buscou levar para o público, a partir das redes sociais, um vídeo de slam diferente por dia, ao longo de três meses.

Quarentena Poética

A partir de sua conta com mais de 16 mil seguidores no Instagram (@slamdasminasrj), o slam das minas RJ iniciou o projeto “Quarentena Poética”, que junto de lives e batalhas ao vivo tornou possível a continuidade do trabalho do movimento artístico carioca no período de isolamento social. A “Quarentena Poética” consistiu na publicação diária de pequenos vídeos, postados na plataforma IGTV dentro da rede social Instagram, gravados por poetas de suas casas. Os vídeos seguem, na grande maioria, os mesmos padrões estabelecidos em batalhas de slam das minas convencionais, como exemplo, declamações que giram em torno de um a três minutos, sem uso de adornos, sem edições ou cortes, com a participação de poetas mulheres cis ou trans, homens trans e pessoas não binárias, agêneros, transmasculines e transfeminines[2]. Os vídeos, que iam desde poemas já conhecidos pelo público e outros lançados especialmente no projeto, eram postados diariamente por meio de um revezamento entre poetas regulares do slam das minas RJ (Andréa Bak, Gênesis, Mota Tai, Rainha do Verso e Tom) e poetas convidades, somando 88 poemas ao longo de três meses, de 16 de março até 11 de junho.

Buscando compreender a importância que há na produção poética marginal em tempos de pandemia, passei a analisar as estratégias usadas pelo Slam das Minas RJ para manter suas vozes ecoando nesse período em que, aqueles que detêm o poder, usam de todas as tecnologias para apagar a identidade de corpos subalternos. Ao longo de três meses do projeto, poetas expuseram seus sentimentos mais profundos, suas conquistas, pequenas alegrias, angústias e incertezas, e um desejo ardente de revolta e revolução; narrando o cotidiano subalterno em tempos de pandemia e denunciando velhos e novos projetos de extermínio instaurado contra o corpo marginal no ano de 2020.

Historicamente, os movimentos de rua cumpriram esse papel de revelar os problemas de um governo e lutar por mudanças: basta lembrarmos das gigantescas manifestações após a morte de Marielle Franco em 2018, as passeatas pela educação em 2019 ou os recentes protestos antirracistas e antifascistas em 2020. A arte sempre foi uma forma de conhecimento do mundo e a poesia produzida pelo slam das minas RJ, com suas dimensões menores, possui maior poder de flexibilidade e pode ser produzida em um período curto, estando, assim, adaptável aos temas e problemas do seu tempo. Fez-se possível, portanto, que notícias que saíram ao longo do isolamento pudessem ser abordadas no projeto, trazendo reflexões sobre a dessensibilização contra a vida do outro, além de propor formas de combate a necropolítica fortemente consolidada na cidade carioca durante a pandemia. O slam das minas RJ, a partir do projeto na rede social, encontrou uma solução para prosseguir espalhando arte e poesia em tempos turvos, caminho construtivo, se pensarmos que a invisibilização do corpo subalterno lança pessoas para fora da condição humana, onde a arte e a literatura se tornam importantes ao dar linguagem a esse trauma tão profundo e difícil de articular (Kilomba, 2020).

“Proteção é utopia”

Pesquisas comprovaram que, em meio à pandemia instaurada no Brasil, as mortes por covid-19 cresceram mais entre a população negra que entre a branca. Dados do governo, divulgados no mês de maio de 2020 pelo Ministério da Saúde apontaram que, em 4 semanas, mortes de pretos subiram de 32,8% para 54,8%. Na cidade do Rio de Janeiro, os bairros que acumulam maior número de pretos acumularam também mais mortes. Campo Grande (Zona Oeste carioca), bairro com 50% de sua população composta por negros, em abril já havia ultrapassado Copacabana (Zona Sul), bairro de classe média-alta que antes ocupava o topo do ranking de mortes pelo novo coronavírus. A pandemia não é democrática. Ao passo que Pamela Carvalho (2020) explicava que a pandemia da desigualdade nos forçou a ver que a morte e a vida têm valores diferentes de acordo com a origem e raça de quem vive e quem morre, a slammer Bione mandava a real nas últimas estrofes do slam “Gravando de dentro de casa enquanto minha mãe não está nela”:

Quarentena é privilégio
proteção é utopia
pra quem pega busão
metrô ou a fila da padaria.
Pra quem não tem água em casa
quem trabalha todo dia
já que não vai ser paga sozinha
a conta de energia.

E tá faltando energia
pra quem vive cheio de fé
pois pegar a pandemia
é coisa que ninguém quer.
E em meio a desigualdade
a minha indicação é
quem tem como: fica em casa
quem não tem:
que se proteja como puder.
axé.

Bione (dia 28)[3]

“A bala sempre acerta um sujeito”

“…E não é qualquer de qualquer jeito, sempre acerta um preto” (Shaira, 2020)[4]. A slammer Shaira evidencia em seus versos a dura realidade que o preto favelado enfrenta diariamente, e nas periferias do Rio de Janeiro a situação da pandemia é duplamente difícil. Existe uma angústia gerada nesses corpos dos riscos causados à saúde pelo novo vírus e da necessidade de lidar com condições precárias para obedecer às ordens de isolamento social, levando em conta as questões como saneamento básico insalubre, escassez de água (o que impede a higienização adequada contra o vírus), carência de itens básicos para alimentação e limpeza, superlotação nas casas de família e falta de emprego (muitos membros dessas famílias perderam seus trabalhos ou os exerciam de maneira informal). Além disso, os moradores das favelas cariocas enfrentavam o medo de morrer nas mãos da força policial, que mesmo em meio à pandemia, não dava trégua e seguia cumprindo o exercício do biopoder, ou seja, sua licença para matar (Mbembe, 2016).

No ano de 2020, o Rio de Janeiro teve o maior número de mortes por policiais em 22 anos, 741 mortes apenas nos cinco primeiros meses do ano, sendo 78% dessas mortes de pessoas pretas e pardas. No dia 18 de maio de 2020, João Pedro, menino de 14 anos, foi baleado enquanto brincava no quintal da casa do seu tio, durante uma ação policial na favela da Mangueira em São Gonçalo.[5] A notícia da morte do menino só foi notificada no dia seguinte. A vida negra não importa, o corpo periférico não vale nada, João Pedro foi morto, teve sua casa invadida, sua vida abatida, seu corpo levado sem o consentimento ou ciência de seus familiares. Não podemos esquecer das outras crianças assassinadas em 2020 nas favelas, como Ana Carolina (8 anos), João Vitor (14 anos), Luiz Antonio (14 anos), Kauã Vitor (11 anos). Quando a violência nas comunidades tira a vida de uma criança, ela mutila violentamente todo um povo. Andréa Bak descarrega essa dor nos primeiros versos do seu poema “A bala”:

Eu senti
Senti a bala
A bala com a criança
Senti a bala na criança
A bala que a mãe sentiu
Sentimos
E a favela gritou.

Andréa Bak (dia 13)

No dia 20 de maio de 2020, durante uma ação social de entrega de cestas básicas às famílias carentes na Cidade Deus, outro jovem foi morto pela PM. João Vitor, de 18 anos, foi baleado e morto na frente dos moradores. O educador e conselheiro tutelar, presente no momento da ação, Jota Marques, comentou nas redes sociais: “Estamos cansados. A gente não tem direito de entregar comida, a gente não tem direito a cuidar dos nossos. A gente não tem direito a nada”; e em seu slam Tom Grito desabafou sobre a morte de mais um jovem pela mão do estado[6]:

A justificativa da polícia é que eram criminosos e vendiam plantas proibidas.
As famílias negam, os coletivos testemunham.
Criminalização da solidariedade na pandemia.

Tom Grito (Dia 77)

O Estado fecha os olhos para a população periférica, o governo impede que esse povo ajude os seus, a pátria amada mata sem pena. Para David Harvey (2020), vivemos uma epidemia que exibe todas as características de uma pandemia de classe, gênero e raça, sendo o novo coronavírus apenas uma nova tecnologia que os órgãos responsáveis pela segurança no país usam para auxiliar o extermínio da população pobre, preta e favelada, acarretando numa limpeza étnica daqueles que dependem de assistência pública para sobreviver (Castro, 2020).

A bala perdida do estado
Não se perdeu
A bala disparada pelo feitor
Se alojou
A bala mirada exterminou
A bala abateu
E não foi sem querer
sem um porquê
A bala sempre acerta um sujeito
E não é qualquer
De qualquer jeito
Sempre acerta um preto
João Pedro
Cheio de sonhos interrompidos por homicidas
Pelo ódio do estado e dos policiais genocidas
E não é coincidência NÃO
É projeto de higienização
De um país desgovernado
Pobre
Pobre de nós
Os descartados dessa nação.

Shaira (dia 80)

“O Brasil virou uma República fascista militar”

Desde o início da epidemia no Brasil, o presidente Bolsonaro se mostrava contra a suspenção dos setores não essenciais, além de um menosprezo pelas milhares de mortes de brasileiros pela doença. Enquanto o Brasil alcançava posições cada vez mais altas entre os países com maiores números de casos de coronavírus, o presidente debochava em entrevistas: “E daí? Quer que eu faça o que? Eu sou o Messias, mas não faço milagre”. Em outro momento, mesmo sem qualquer eficácia comprovada, Bolsonaro insistia na produção massiva de cloroquina e zombava: “Quem é de direita toma cloroquina, quem é de esquerda toma tubaína”[7].

Em diversas ocasiões, o líder de atitudes genocidas se mostrava despreocupado com a saúde da população, seja em seu discurso ou por meio de encorajamento para que seus eleitores fossem às ruas em passeatas em seu apoio, participando em muitas delas e chegando a interagir fisicamente com os eleitores. Enquanto fazia piada com as mortes do seu povo, Bolsonaro se mostrava disposto a adotar medidas provisórias em apoio aos empresários e contra o trabalhador, como exemplo da tentativa com a MPV 936/2020, que flexibilizava a redução proporcional de jornada de trabalho e de salário, e a suspensão temporária do contrato de trabalho. Ações que comprovavam que um Estado igual ao nosso não é apenas gestor da morte, mas também ator contínuo de sua própria catástrofe e cultivador de sua própria explosão (Saflate, 2020).

No dia 28 de maio de 2020, George Floyd, trabalhador preto, foi morto nos Estados Unidos por um policial que manteve o joelho sobre seu pescoço por mais de oito minutos. O crime gerou uma mobilização no país, levando milhares de manifestantes para as ruas norte-americanas para lutarem pelas vidas pretas. Uma revolução histórica se instaurou ao longo do último final de semana de maio, onde a delegacia em que o assassino trabalhava ardeu em chamas e o presidente Donald Trump precisou se esconder em um bunker enquanto manifestantes ocupavam a entrada da Casa Branca.

Manifestação antirracista no RJ em junho de 2020 / Fonte: Ricardo Moraes/Reuters
Manifestação antirracista no RJ em junho de 2020 / Fonte: Ricardo Moraes/Reuters

A fagulha chegou no Brasil e, no domingo do dia 31 de maio, brasileiros foram para as ruas manifestar-se a favor da democracia e contra o extermínio policial. No Rio de Janeiro um policial apontou um fuzil para um jovem preto desarmado, enquanto no Estado vizinho, em São Paulo, a PM escoltou tranquilamente uma mulher branca bolsonarista com um taco de beisebol nas mãos.  No domingo pela manhã, Bolsonaro participou de um ato a a favor de si mesmo, cavalgando entre a multidão sem máscara e cumprimentando seus apoiadores, que entre suas reivindicações pediam o fim da quarentena e a reabertura dos negócios.  Enquanto o presidente debochava da fragilidade da população e passava por cima de recomendações médicas (e até de seus próprios ministros), o povo preto lutava pelo simples direito à vida, e junto do povo estava a slammer Carmen Kemoly; expondo sua verdade para que todos pudessem ouvir nos versos do seu poema “Pandemônio”:

O Brasil virou uma República Fascista Militar
Povo preto, vamos raciocinar
Se não é o nós por nós que têm nos mantido vivos
Da cultura periférica à agricultura familiar
Presta bem atenção nessa Nano, Biotecnologia
E depois tu vem me dizer
Se esse negócio de vírus e vacina
Num é golpe pra nos robotizar
Mas quem é que luta não estando presente?
E já ceifaram a vida de tanta gente
Gritamos Cláudia Presente, João Pedro, Ágatha, Marielle Presente
E enquanto eu escrevia essa poesia
Miguel foi morto pela patroa de sua mãe, Sinhazinha, Racista e Negligente
Não vai sobrar nem a cor da minha gente
Pra identificar que essas cenas, essas cenas não são de suspense
É gente da minha gente, é vida real
Mas pra eles nós nunca nem fomos gente, é surreal!

Carmen Kemoly (dia 84)

“Quarentena é privilégio”

Por que o entregador de comida ainda está trabalhando mesmo que isso cause mais riscos de contato com vírus do que alguém que recebe a comida por encomenda? Para Judith Buttler (2020), relações de poder como essa tornam evidente as diferenças raciais e geopolíticas do sofrimento que ficam ainda mais evidenciadas com o vírus. Esses mesmos empresários que protegeram o presidente e gritaram a plenos pulmões pelo fim da quarentena, são aqueles que não se importam com os pobres, não enxergam os subalternos como humanos, e sim como máquinas, números, burros de carga. A classe média bolsonarista que participou desses movimentos negacionistas não se importa com a dor dos outros, porque é ela quem causa a dor no outro. Rainha do Verso evidencia realidade do trabalhador em seu slam “trabalhador levanta de madrugada”, a slammer narra a relação de poder entre o empregado e o patrão, denunciando condições de trabalho que beiram a escravidão, realidade de inúmeros subalternos que enfrentam problemas de locomoção na cidade para servir um discípulo de senhor de engenho na zona sul, que não aceita liberar o funcionário durante a pandemia, mesmo que isso possa custar uma vida. Ao mesmo tempo em que o homem branco desce de seu apartamento na zona sul para fazer sua caminhada matinal em meio à pandemia, o preto entregador de comida carrega seu fardo sobre as costas, trabalhando para sustentar a si e a sua família. Não existe escolha para o periférico, é enfrentar a doença ou perder o emprego, a pandemia intensifica a luta que contrastam o capitalismo e suas desigualdades sistêmicas (Butler, 2020).

Patrão passa férias na gringa
E passa pra favela
O vírus do mal
É muito alto pra nós
O preço que se paga pela moral
Quarentena é privilégio
Pra quem tem como pagar
Pobre apenas entrega pra Deus
porque a sua cura é trabalhar.

Rainha do Verso (dia 11)

“O Brasil não tem presidente!”

Na pandemia do covid-19, Bolsonaro encontrou a oportunidade perfeita de exercer a “Política do Choque” estudada por Naomi Klein (2017, on-line). Segundo essa autora, a “Política do Choque” é uma tática brutal e recorrente, usada por governos de direita:

Após um episódio chocante, como uma guerra, um golpe, um atentado terrorista, uma crise do mercado, um desastre natural, eles exploram a desorientação do público para suspender a democracia e implementar políticas radicais para enriquecer os mais ricos às custas dos mais pobres (Klein, 2017).

Se engana quem pensa que só agora Bolsonaro começou a trabalhar com essa artimanha; toda sua trajetória no mandato foi orientada por meio do caos, mas a pandemia mundial instaurada em 2020 criou o solo perfeito para que suas inúmeras tentativas se tornassem bem-sucedidas. Entre os princípios para enfrentar a “Política do Choque“, observa-se a necessidade de saber o que está por vir.

No começo de 2020, o ex-secretário da cultura, Roberto Alvin, reproduziu uma fala nazista em um vídeo para as redes sociais e já não é de hoje que o presidente inflama manifestações que pedem o AI-5, intervenção militar ou fechamento do congresso. Em maio, em uma live para suas redes sociais, Bolsonaro bebeu um copo de leite (prática que já vem sendo adotada por diversos movimentos neonazistas para simbolizar uma tal “supremacia branca”), mas é claro que o surgimento de tantos símbolos que flertam com ideologias supremacistas poderia ser apenas uma coincidência vinda de um governo e um líder que já fez diversos discursos racistas publicamente, mas será?

Da mesma forma, em manifestações pró-Bolsonaro já não é mais raro encontrar apoiadores com bandeiras e cartazes que fazem apologia ao neonazismo, sem demonstrar sinais de intimidação. À medida que isso acontece, fica cada vez mais evidente a hostilidade do presidente e seus simpatizantes com a imprensa, descredibilizando e ofendendo jornalistas a cada oportunidade, estimulando os atos violentos por parte de seus seguidores, que passaram a linchar e agredir jornalistas durante manifestações. Em tempos onde a liberdade de expressão caminha cada dia por uma linha mais tênue, Luiza Ramão publica o slam-manifesto “Quarentena: um devaneio-dúvida-indagação” denunciando as atitudes e decisões tomadas por Bolsonaro. Precisamos nos manter atentos a essas mensagens para quando chegar o momento, não sermos pegos de surpresa.

Porque óbvio: o brasil não tem presidente.
porque um homem que menospreza e ri da morte de dezenas de milhares de brasileiros não pode ser presidente.
um homem que autoriza a devastação da maior floresta do mundo enquanto o país desmorona na pandemia não pode ser presidente.
um homem que não propõe uma medida de contensão da doença e despede dois ministros da saúde não pode ser presidente.
um homem que tenta a todo custo enfiar goela abaixo, por interesses financeiros, um remédio que a ciência já vetou, não pode ser presidente.
um homem que patrocina a milícia, que manipula a polícia federal e protege seus filhos com recursos públicos não pode ser presidente.
um homem que faz apologia à tortura, à supremacia branca, ao estupro, à violência contra a mulher e à homofobia.
um homem que ameaça fechar o STF, o Congresso, o Senado.
um homem que se elege através de fakenews, robôs e perfis falsos:
não pode ser presidente.

Luiza Romão (dia 87)

“Depois de abrir sua mente, abre sua boca”

O último ponto da doutrina do choque debatida por Klein aponta a necessidade em propor uma alternativa ousada, em que devemos atacar a raiz dessas crises que se tornam cada vez mais frequentes, propondo e lutando por novos modelos, baseados na justiça racial, econômica e de gênero. A partir dessa definição, torna-se claro o papel e a importância do slam das minas RJ na luta contra a invisibilização dos corpos que não importam.

Através dos slams publicados durante a “quarentena poética”, artistas expuseram a verdade grotesca que dominaram a política brasileira durante a pandemia, e propuseram modelos de intervenção; convidando as centenas de milhares de pessoas que as acompanham pelas redes sociais a participar de uma luta onde não existe isenção, ou você está disposta a abrir a porta ou você não se importa. O slam das minas RJ juntou mais de 40 vozes, que chegaram a alcançar mais de três mil pessoas em um único vídeo. São gritos ecoando de um grupo que está se preparando para arrombar a porta.

Mas como impedir que algo pior aconteça? Para Grada Kilomba (2020), precisamos construir uma nova linguagem, revendo nossos vocabulários e imagens, isso, porém, só é possível quando as estruturas do poder são transformadas, quando a população afro-brasileira ganha acesso às estruturas e às posições de poder. Para impedir o que está por vir e provocar as transformações necessárias, precisamos ouvir alertas como o da Andréa Bak, que no slam “Cara abre a porta”, ordena:

Cara abre a porta!
Abre a porta
Abre a porta desse território que se chama Brasil
Vê o que tá acontecendo na América Latina
Vê o que tá acontecendo na Europa
Por que o Brasil tá silencioso, calado?
Não tá acontecendo nenhum derramamento de petróleo invadindo mais de 10 estados destruindo o nosso mar?
Não acabou a destruição de mais de 80 por cento da Amazônia não?
Não tá sendo dizimado o pouco de terra indígena que sobrou?
Não tem gente na Cidade de Deus tendo a casa invadida às 8 horas da manhã por um policial que empurra a porta antes de perguntar se tem gente em casa?
Não tá acontecendo nada não?
Por que o Brasil tá assim?
Por que o Brasil tá calado?
Tá tudo bem? Tá tudo normal?
Abre a porta
Depois de abrir a porta abre seu olho
Depois de abrir seu olho abre sua mente
Depois de abrir sua mente abre sua boca
Levanta dessa cadeira
E vai pra rua fazer alguma coisa.

Andréa Bak (dia 81)

O que você quer ver?

Quando se está exposto diariamente às agressões vindas de todos os lados, é impossível não sair ferido de alguma forma. Ninguém tem superpoderes, escudo de aço ou pele impenetrável. Como se manter forte fisicamente e mentalmente na luta diária contra a invisibilização do seu corpo e sua voz? Durante todo o período de projeto, o slam das minas RJ contribuiu com o debate de estratégias de combate e enfrentamento; e denunciou as inúmeras violências cometidas contra os corpos subalternos. Porém, ativistas marginais estão cansados de tomarem, sozinhos, a frente de batalha para serem agredidos, presos, mortos. Artistas marginais estão cansados de serem chamados para preencher uma “pauta política” quando marcas, mídias ou influencers querem lucrar e lacrar com bandeiras de black lives matters. Atores pretos não querem ter os seus repertórios reduzidos a papéis de empregados ou histórias sobre racismo e escravidão, pintores subalternos não querem só botar na tela suas lágrimas de dor, assim como slammers não querem ter que sangrar para receberem aplausos. Afinal, já dizia Allan da Rosa (2016, on-line): “Miséria populista é escrever apenas pra agradar. Tentação já tradicional da arte preta, compreensível de sul a norte após a escravidão oficial, é se enrugar e ressecar no chavão militante”.

O que vocês querem ver? Sangue!
O que vocês querem ver? Sangue!
Estamos condicionados, direcionados a falar sobre as dores.
Enumeradas e aplaudidas pelos jurados, pelo público ou pela pessoa que te contratou.
Engana-se quem acha que estou reclamando dos sistemas das notas

tô falando que é foda sangrar 3 minutos toda hora.
Vocês devem tá de sacanagem?

Porra, eu nem me via em nada, até acreditar que somos a movimentação, ação dessa geração.

Preparando, adubando o terreno para verdadeira reparação.

Moto Tai (dia 83)[8]

“No dia que uma poesia de amor ganhar…”

Em íntimo contato com os poemas dispostos na “Quarentena poética” nos esbarramos com uma rica e heterogênea produção artística nas letras dos poemas que afloram das mais diversas cenas, como a violência policial, irregularidades do governo, luto, dificuldades do isolamento, agressão à mulher, trabalhos precários. Mas também da liberdade do corpo feminino, sexo, a beleza do corpo preto, o poder da poesia, autoconhecimento e em proporção grandiosa, o amor.

Os poemas de slam nasceram e cresceram na luta contra a invisibilização dos corpos que não importam; e nessa luta, está o desejo de compartilhar todos o seu repertório através da expressão artística. Das 88 produções publicadas no projeto, grande parte dialogava diretamente com o discurso do amor, presenteando os seguidores com versos que abordavam desde o culto da paixão de Anaya em “nenhuma predefinição é bem-vinda”:

Te completo, te divido
saiu nas cartas
traçado destino
e no final ainda vai ser sobre eu e você.
Um beijo.

Anaya (dia 24)

A saudade de Moto Tai nos versos de “Eu queria te abraçar e abracei o travesseiro”:

Eu queria te abraçar e abracei o travesseiro.
Queria te tocar e me toquei de fora para dentro
pensando nos seus dedos.

Gozei no silêncio, no vazio.
E sabia que se fosse com você,
seria imensidão de sensações
da galáxia de prazer que tem em nós.

Moto Tai (dia 15)

 

Até as desilusões da Bak em “Como que cê diz que me ama assim?”:

Escutei para tentar te entender
Escrevi, gritei, falei pra você me compreender
Mas o teu limite da mente não tinha passagem
Estagnado, limitado só via barragem.

Andréa Bak (dia 05)

Mas por que criações com essas abordagens são apagadas ou desvalorizadas, muitas vezes dentro do próprio ambiente de slam? Renata Lopes evidencia o esvaziamento que ocorre na recepção das produções marginais ao dizer que o silenciamento ligado à produção de arte afro-brasileira é a compreensão de que “o pensamento ocidental ora invalida, ora atribui novos significados a tradições e epistemologias que coexistem com ele, deslocando esses sistemas de conhecimento para uma posição marginal dentro de sua construção narrativa” (Lopes, 2016, p. 45).

Quando Grada Kilomba (2020) fala da necessidade em mudar as estruturas, ela não diz apenas do sistema político, mas também das nossas atitudes e do que tomamos como verdade absoluta. Existe uma necessidade urgente em acabar com visões reducionistas do trabalho realizado por artistas subalternos. A identidade marginal é apagada não apenas quando a polícia mata ao invadir favelas e mirar no primeiro preto que encontra, ou quando o governo, intencionalmente, priva o povo periférico do acesso a educação e saúde. Estamos todos sujeitos a praticar a invisibilização marginal no nosso dia a dia.

E no auge do seu privilégio, quanta literatura vinda da margem você tem na sua estante ou no seu kindle? E nas suas playlists do celular, toca música produzida por preto? Nós invisiblizamos o corpo subalterno toda vez que aprisionamos um artista marginal em caixinhas vedadas e separadas; onde só acessamos a produção dessa turma para preencher uma necessidade de se fazer parte de um movimento social (porque é legal, até certo ponto, ser militante). Mas não adianta vir levantar seu cartaz de “vidas negras importam” ou estilizar suas redes sociais com efeitos chamativos e chocantes. Não adianta, porque se você não está disposto a dar espaço para artistas marginalizados narrarem seus projetos, alegrias e amores (também naqueles momentos em que tudo está aparentemente bem) e vibrar juntos as suas conquistas; então você é apenas um número ocupando espaço e brincando de militar, e na nossa luta nós não precisamos dessa gente. Com a “Quarentena Poética”, o slam das minas RJ fez um convite aberto para aqueles que desejam, verdadeiramente, vibrar a luta marginal, celebrar o amor dos corpos subalternos livres de preconceito e gritar junto quando tentarem nos silenciar, porque um marginal só aceitará ser calado quando for para beijar, e no slam “Bicho pegando, clima quente, quase 2 da manhã”, Agnes María já mandou a dela:

O nosso movimento é negro, minha preta, por isso te beijo em praça pública
seguro tua mão firme na rua e com os pés no chão tocamos a lua
Com direito a clique da Bleia para eternizar
Eu agarrada em ti, paro de te beijar
Te encaro e confesso que não quero soltar
E tu pede pra eu não soltar
E jeito que cê fala faz eu me arrepiar.

Agnes María (dia 37)

Conclusão

A “Quarentena Poética” foi uma estratégia brilhante e eficaz de manter o trabalho, realizado ao longo dos últimos três anos pelo slam das minas RJ nos mais diversos espaços da cidade, ativo durante o período de isolamento social. A iniciativa realizada através de uma rede social, tornou possível o encontro de mais de 40 poetas com o numeroso público do slam das minas no Instagram; proporcionando trocas de experiências, relatos e o desabafo de quem diariamente luta contra o apagamento de sua identidade, além de servir como canal de denúncia contra os diversos ataques cometidos contra a população periférica, que se intensificaram com a chegada da pandemia.

A autora Silvia Federici relata o medo muito presente nos movimentos artístico-políticos, de que os detentores do poder “se utilizem da pandemia, do nosso medo de morrer (que é muito forte, muito legítimo) para continuar nos isolando e desmantelando nossos protestos” (Federici, 2020, on-line). Projetos como a “Quarentena Poética” são importantes armas de combate contra essas tentativas de destruição de propostas e protestos realizados por corpos marginais, visto que, a partir do compartilhamento de ideias, vivências e mecanismos de pertencimento, é possível unir e fortalecer um grupo que está disposto a lutar.

A “Quarentena Poética” trouxe ainda uma importante reflexão sobre como a arte produzida por corpos subalternos é reduzida a uma única perspectiva, esvaziando todos as outras possibilidades de produção artística dessas vozes. Para participar efetivamente de um combate contra a invisibilização dos corpos marginais, é importante não apenas enxergar os mecanismos usados pelo governo para exterminar a população marginalizada, mas também dar chances para que esses corpos ocupem todos os espaços que historicamente lhes foi negado, seja para clamar por revolução ou para recitar todo seu amor. Porque o coronavírus é só mais um forma de matar desenfreadamente corpos subalternos, e em tempos obscuros é importante entender que nesse sistema opressor somos substituíveis e por isso precisamos nos apoiar, para que possamos lutar, juntes mais essa luta, resistir, viver e, depois de tudo isso, seguir batalhando (O. César, 2020).

O slam das minas RJ criou um veículo onde estará disponível, para quem quiser ver e para que as próximas gerações possam ver, os relatos de artistas marginais sobre esse momento histórico no Brasil, expondo as declarações políticas que flertaram com o fascismo e o racismo e os inúmeros projetos políticos destinados ao apagamento do corpo subalterno durante a pandemia do coronavírus no Brasil. Ficará assim fixada a ação da juventude ativista que não compactuou com esse governo e lutou bravamente contra ele.


* Guilherme dos S. Ferreira da Silva é mestrando em Ciência da Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, e atualmente, pesquisa sobre produção poética negra e periférica na luta contra a invisibilização dos corpos marginais na cidade do Rio de Janeiro.

 

Slams citados ao longo do artigo:

AGNES MARÍA. Bicho pegando, clima quente, quase 2 da manhã. 2020. Disponível em: https://www.instagram.com/p/B_NKBgdp-co/. Acesso em 20 de junho de 2020.

ANAYA. Nenhuma predefinição é bem-vinda. 2020. Disponível em: https://www.instagram.com/p/B-vAyBEpsWe/. Acesso em 10 junho de 2020.

BAK, Andréa. A bala. 2020. Disponível em: https://www.instagram.com/p/B-SKm7IJ4HM/. Acesso em 18 Junho de 2020.

BAK, Andrea. Cara abre a porta. 2020. Disponível em: https://www.instagram.com/p/CBBTUJsJF5T/. Acesso em: 20 junho de 2020.

BAK, Andréa. Como que cê diz que me ama assim. 2020. Disponível em: https://www.instagram.com/p/B99XXBlJ2yL/. Acesso em 20 maio de 2020.

BIOME. Gravando de dentro de casa enquanto minha mãe não tá nela. 2020. Disponível em: https://www.instagram.com/p/B-4sbTcJT0y/. Acesso em 20 junho de 2020.

KEMOLY, Carmen. Pandemônio. 2020. Disponível em: https://www.instagram.com/p/CBJWCUppxbs/. Acesso em 18 junho de 2020.

MOTO TAI. Eu queria te abraçar e abracei o travesseiro. 2020. Disponível em: https://www.instagram.com/p/B-XV0gUpopZ/. Acesso em 20 maio de 2020.

MOTO TAI. O que vocês querem ver?. 2020. Disponível em: https://www.instagram.com/p/CBG-ay3pGbv/. Acesso em 20 de maio de 2020.

RAINHA DO VERSO. Trabalhador levanta de madrugada. 2020. Disponível em: https://www.instagram.com/p/B-M9xxHp5e5/. Acesso em 25 maio de 2020.

RAMÃO, Luiza. Quarentena: um devaneio-dúvida-indagação. 2020. Disponível em: https://www.instagram.com/p/CBRsDc0J0VX/. Acesso em 20 junho de 2020.

SHAIRA. A bala perdida do estado não se perdeu. 2020. Disponível em: https://www.instagram.com/p/CA_A__oJjWz/. Acesso em: 22 junho de 2020.

TOM GRITO. Meu amigo cozinheiro postou a foto de uma receita no facebook. 2020. Disponível em: https://www.instagram.com/p/CA3Es0sJZtz/. Acesso em 29 junho de 2020.

Referências

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BUTLER, Judith. Traços humanos na superfície do mundo. Em: #PandemiaCrítica. N° 42. São Paulo: n-1 edições, 2020.

CARVALHO, Pâmela. Pandemia de desigualdades. Em #PandemiaCrítica. N° 60. São Paulo: n-1 edições, 2020.

CASTRO, Eduardo Viveiros de. O que está acontecendo no Brasil é um genocídio. Em: #PandemiaCrítica. N° 70. São Paulo: n-1 edições, 2020.

CEZAR, João Marcelo de O. Corpos que (não) importam enchem o lago de sangue. E ele está ali com seu jet ski. Em: #PandemiaCrítica. N° 83. São Paulo: n-1 edições, 2020.

EVARISTO, Conceição. Prefácio. In: DUARTE, Mel. Querem nos calar: poemas para serem lidos em voz alta. São Paulo: Editora Planeta, 2019.

FEDERICI, Silvia. Capitalismo, reprodução e quarentena. Em: #PandemiaCrítica. N° 58. São Paulo: n-1 edições, 2020.

HARLEY, David. Política anticapitalista em tempos de corona vírus. 2020. Tradução de:
Cauê Seigner Ameni. Em: https://jacobin.com.br/2020/03/politica-anticapitalista-em-tempos-de-coronavirus/. Acesso em 10 de junho de 2020.

KILOMBA, Grada. Entrevista proferida no site da CNN Brasil. São Paulo. Junho, 2020. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/2020/06/06/o-brasil-e-uma-historia-de-sucesso-colonial-lamenta-grada-kilomba. Acesso em: 08 de junho de 2020.

KLEIN, Naomi. Como resistir à doutrina do choque de Donald Trump. The Intercept Brasil. 15 de Jun 2017. Disponível em: https://theintercept.com/2017/06/15/como-resistir-a-doutrina-do-choque-de-donald-trump/. Acesso em 05 de junho de 2020.

LOPES, Renata. Território silenciado, território minado: contranarrativas na produção de artistas afro-brasileiros contemporâneos. In: Territórios: artistas afrodescendentes no acervo da pinacoteca. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2016.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. Arte & Ensaios. Revista do ppgav/eba/ufrj; n. 32. 2016.

MBEMBE, Archille. O direito universal à respiração. Em: #PandemiaCrítica. N° 20. São Paulo: n-1 edições, 2020.

MARQUES, Jota. Ele faleceu. Estamos cansados. A gente não tem direito de entregar comida, a gente não tem direito a cuidar dos nossos. A gente não tem direito a nada. Rio de Janeiro, 20 de mai 2020. Twitter: @jotamarquesrj. Disponível em: https://twitter.com/jotamarquesrj/status/1263227354668769281. Acesso em: 10 de junho 2020.

ROSA, Allan da. Literatura preta, periférica? Carícia ao nosso leitor já cansado de porrada ou chamar pro mel de labirintos incertos?. Revista O Menelick Segundo Ato. Set de 2016. Disponivel em: http://www.omenelick2ato.com/artes-literarias/literatura-preta-periferica-caricia-ao-nosso-leitor-ja-cansado-de-porrada-ou-chamar-pro-mel-de-labirintos-incertos. Acesso em: 01 de julho de 2020.

SAFATLE, Vladimir. Bem-vindo ao estado suicidário. Em: #PandemiaCrítica. N° 04. São Paulo: n-1 edições, 2020.

[1] Andréa Bak faz parte de um grupo de rap chamado Nefetaris Vandal, só de mulheres, onde abordam a diáspora do povo negro, das mulheres e da comunidade LGBTQIA+. Ela conheceu o slam em 2017, ano em que batalhou pela primeira vez no Slam das Minas RJ. Hoje em dia Bak é uma das organizadores do movimento no RJ.

[2] O slam das minas é um importante espaço de empoderamento desses corpos, visto que, em batalhas de slam abertas para todos os gêneros, por exemplo, pode rolar algum tipo de opressão ou apagamento por parte do homem, seja ela direta ou indireta.

[3] Os poemas declamados nos vídeos são transcritos e postados na legenda do Post no Instagram.

[4] “A bala perdida do estado não se perdeu”, slam por Shaira publicada no projeto “Quarentena Poética”, 2020.

[5] João Pedro recebeu um tiro na barriga e foi levado de helicóptero pelos policiais sem nenhum aviso aos seus familiares, que logo começaram uma campanha nas redes sociais a procura do menino.

[6] “Meu amigo cozinheiro postou a foto de uma receita no facebook”, slam por Tom Grito publicada no projeto “Quarentena Poética”, 2020.

[7] Posteriormente, no mês de julho, Bolsonaro foi diagnosticado com covid-19 e seguiu insistindo na fabulação de uma suposta eficácia da Cloroquina, chegando a produzir vídeos para as redes sociais tomando o medicamento.

[8] “O que vocês querem ver?”, slam por Moto Tai divulgado no projeto “Quarentena Poética”, 2020.