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Cinema e Esportes: Diálogos | de Victor Andrade de Melo*

Introdução

No ano de 1999, às vésperas de um novo século, o cineasta Marcelo Masagão lançou “Nós que Aqui Estamos por Vós Esperamos”, um filme-memória onde procurou, a partir de recortes biográficos (reais e ficcionais, de personagens notórios e de pessoas pouco conhecidas), traçar uma síntese do século XX. Em uma das seqüências, Masagão compara o movimento das pernas de Garrincha, ao driblar seus adversários, com o famoso bailado de Fred Astaire, em uma de suas performances cinematográficas. Um verdadeiro pas-de-deux.

Olympia, filme de Lei Reifensthal

Não parece exagerado afirmar que o cineasta, de alguma forma, compara a paixão e o fascínio causados por dois expoentes de manifestações culturais de grande importância no século que passou: o cinema e o esporte. Masagão escolheu um astro dos musicais, um dos gêneros cinematográficos mais populares, e um ícone do futebol, sem dúvida o esporte mais difundido em todo o mundo. Astaire e Garrincha fazem parte do imaginário e ocupam lugar de importância no século que passou: de certa maneira são heróis de uma época.

Cinema e esporte, na verdade, estão entre as linguagens mais acessadas no decorrer do século XX, não somente nos seus espaços específicos (as salas de projeção e os estádios), como também em função da ação dos meios de comunicação, que nelas investiram por se tratarem de produtos de grande penetração popular: “El deporte y el cine son las dos principales ofertas de ocio del siglo XX y constituyen hoy los principales contenidos – en tiempo de emisíon y audiencias alcanzadas – de la industria audiovisual en el mundo entero”. [2]

Em todas as redes de televisão aberta podemos identificar uma farta programação de filmes e uma grande oferta de programas esportivos. É difícil encontrar algum jornal ou revista de grande circulação que não possua sessões específicas dedicadas tanto ao cinema quanto ao esporte. Isso se dá a tal ponto que é comum observarmos que atores/atrizes e atletas hoje são tratados em grau de igualdade, como estrelas, por tais mídias.

take do filme Garrincha, Alegria do Povo, de Joaquim Pedro de Andrade

Vale lembrar o espaço que os grandes eventos de ambos ocupam nos meios de comunicação, notadamente os Jogos Olímpicos e as Copas do Mundo de Futebol, que geram os maiores índices de audiência mundial, e os festivais de cinema, destacadamente a entrega anual do Oscar (premiação concedida pela Academia de Artes Cinematográficas de Hollywood).

No Brasil não é diferente: dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) demonstram que cinema e futebol constituem-se em preferências como forma de diversão fora de casa (e não dificilmente também dentro dos lares) em grandes e médios centros urbanos e suburbanos, onde se concentra 75% de nossa população. [3]

Haveria então maiores relações entre esporte e cinema? Não é novidade a discussão sobre as representações de determinados temas/assuntos em filmes. Já temos reflexões, publicadas em livros e periódicos, sobre negros [4] , homossexuais [5] , o sertão [6] , a mulher [7] , entre outros. Contudo, poucas e parciais têm sido as discussões sobre os relacionamentos entre esporte e cinema, notadamente no Brasil, o que parece surpreendente tendo em vista o importante espaço que as práticas esportivas ocupam na formação da cultura e da identidade nacional.

No que se refere às relações entre esporte e cinema, outras considerações devem ser observadas. Não estamos falando de uma simples representação de uma temática por uma linguagem. Obviamente que o esporte é uma temática, entretanto, mais do que isso é também uma linguagem.

Bernard Jeu é um dos autores que defende essa idéia, procurando apresentar os elementos que compõe uma “gramática” do fenômeno esportivo. Para ele, trata-se de identificar nesta prática social a primazia de uma razão poética, o que vem a ressaltar a importância do imaginário para a consolidação de sua presença, de sua importância e de sua popularidade. Explicitamente, ao falar da poética e do esporte, afirma o autor:

O esporte não se sentirá estranho, ele que é freqüentemente perseguido, vivido, representado como uma fabulosa história, com seus heróis mitológicos, os campeões (…) Daí a necessidade de uma estética do esporte. Ele é comunicação e criação.[8]

Jean-Claude Carrière reforça essa compreensão acerca da existência de uma “gramática” do esporte ao tecer uma comparação com a “gramática” do cinema:

É bem provável que um espectador inexperiente, privado de imagens desde o nascimento e subitamente convidado a assistir um filme atual, não conseguisse ver nada – mesmo que conhecesse o idioma – além de um monstruoso embaralhamento do tempo, exatamente como um extraterrestre num estádio de futebol não faria a menor idéia do que estava acontecendo no jogo. Sem conhecer as regras, sem ter os hábitos de espectadores, ele provavelmente veria todos os jogos como um mesmo jogo repetido incessantemente, enquanto sabemos que, de um jogo para outro, é impossível encontrar dois instantes exatamente idênticos .[9]

Assim sendo, parece que podemos pensar em um diálogo entre duas linguagens. Como se estabeleceram tais encontros no decorrer da história? Haveria maiores semelhanças entre o esporte e o cinema enquanto manifestações culturais tão importantes e influentes no decorrer do século XX?

Este artigo tem por objetivo desvendar como se estabeleceram de forma complexa os relacionamentos e similaridades entre esporte e cinema a partir do momento de gênese das duas linguagens, ou, para ser mais preciso, no momento em que surgem os primórdios de uma sociedade que valoriza o entretenimento e as vivências públicas de lazer, instantes iniciais da constituição de uma indústria cultural; no momento da “invenção da vida moderna”, fazendo uso da expressão do livro organizado por Leo Charney e Vanessa Schwartz. [10]

Este esforço de reflexão pode contribuir para o campo dos Estudos Culturais ao trazer uma nova luz para melhor compreendermos o papel da imagem na constituição da sociedade moderna, reafirmando que isso não se deu somente a partir do cinema: outras manifestações também estavam envolvidas nesse processo, inclusive o esporte.

A grande contribuição do cinema foi potencializar esse processo de valorização da imagem, ao ampliar o seu alcance em vários sentidos. Contudo, não forjou sozinho um modus operandis, mas dialogou e construiu sua atuação em conjunto com outras linguagens. Isso pode ser observado com a dança, com a música, com a literatura, entre outras. O que se pretende é discutir como se deu esse processo com o esporte.

Assim, pretende-se chamar a atenção para a necessidade de melhor considerarmos o esporte como objeto de reflexão, concedendo-lhe o espaço que merece por sua importância no decorrer do século XX.

Mais ainda, busca-se discutir uma dimensão que vem sendo somente parcialmente abordada: os aspectos estéticos do fenômeno esportivo. Ao chamar a atenção para as relações entre arte e esporte, identificamos também uma forma de ampliar a compreensão sobre sua presença social. Como bem afirma Jeu:

A arte e a literatura são para o esporte uma sociologia indireta, uma psicanálise, um testemunho (…) A investigação da presença do esporte na arte nos interessa na medida em que nos esclarece sobre a identidade do esporte e sobre o papel do imaginário na constituição das relações esportivas (…) O esporte não é simplesmente o indício de uma sociedade lúdica (ignorada ou tolerada), mas a sociedade lúdica percebida e descrita pelos meios da arte, em um quadro de expressão de sua valorização pela sociedade global. [11]

Este artigo pretende ainda trazer contribuições para os estudos históricos, já que intenta identificar os vestígios do esporte no interior das teias e redes sociais, se alinhando com as iniciativas relacionadas à história cultural. Em certo sentido, é um esforço de promoção de uma “arqueologia” social desta prática.

Esporte, cinema, modernidade

(…) quero destacar que o apelo da imagem não pode ser explicado com base unicamente em práticas econômicas da modernidade. Esse apelo deve ser entendido também pelo reposicionamento da imagem em meio às complicadas práticas discursivas e semióticas que a enquadram. Venho defendendo a tese de que o padrão-imagem resulta do poder de que dispõe a imagem para intervir intersemioticamente, o poder de se transformar em uma moeda comum capaz de unificar o caos discursivo que caracteriza as abstratas e complexas formações sociais da modernidade. [12]

Para começar a discutir as relações entre cinema e esporte, deve-se destacar o fato de que ambos, mesmo possuindo raízes anteriores, são fenômenos típicos da modernidade, se organizando no âmbito de uma série de mudanças culturais, sociais e econômicas observáveis desde o fim do século XVIII, crescentes no decorrer do século XIX e consolidadas na transição e no decorrer do século XX. Não surpreende o fato de que o cinema e os Jogos Olímpicos tenham surgido na mesma época (1895 e 1896, respectivamente) e no mesmo lugar: França, país-chave para entender um novo estilo de vida que estava sendo gestado. [13]

Tanto o cinema quanto o esporte devem ser compreendidos no âmbito do crescimento das cidades enquanto arenas de circulação de mercadorias e a conseqüente construção de uma cultura eminentemente urbana, onde se destacavam as buscas e vivências de lazer. Com isso, observa-se o crescimento das preocupações com o público, com o consumidor, com o corpo como elemento de consumo e de notável atenção e visibilidade.

Além disso, o desenvolvimento científico, uma destacada dimensão a ser encarada quando nos referimos à transição dos séculos XIX e XX, marca a velocidade e a fugacidade como importantes parâmetros de consideração, que impeliam à busca de mecanismos de preservação, de fixação, perante a uma certa perplexidade com a cada vez mais tênue fronteira entre a realidade e suas representações, em uma sociedade que, por tudo isso, tem a imagem como importante elemento de construção.

O esporte se organiza anteriormente ao cinema, já no fim do século XVIII, estabilizando seus sentidos e significados no final do século XIX. [14] Em certo sentido, o cinema é anterior ao cinema; ou melhor, a primeira projeção pública, promovida pelos irmãos Lumière, deve ser entendida no âmbito de um conjunto de ações bastante longínquas de tentativas de captação e exibição da imagem em movimento, onde se destaca o século XIX pelo enorme número de invenções e inovações. [15] Há que se considerar então que:

A cultura moderna foi “cinematográfica” antes do cinema. Este foi apenas um elemento de uma variedade de novas formas de tecnologia, representação, espetáculo, distração, consumismo, efemeridade, mobilidade e entretenimento – e, em muitos aspectos, não foi nem o mais convincente nem o mais promissor. [16]

O esporte e o cinema do final do século XIX devem ser entendidos tanto a partir da idéia de processo quanto na sua ocorrência específica adequada às características peculiares daquele momento histórico, dialogando entre si e com outras manifestações artísticas inseridas no mesmo contexto. Por exemplo, com o cartaz, uma nova forma pública de artes plásticas, que se desenvolveu com força na Paris do século XIX.

Marcus Verhagen [17] demonstra as polêmicas acerca dessa nova mídia, tanto no que se refere a sua validade como arte, quanto às questões ligadas a moralidade pública, informando que foi um produto típico de uma sociedade que valorizava o entretenimento. Podemos destacar que entre as opções de lazer que faziam uso do cartaz para atrair público se encontravam hipódromos, divulgando suas corridas de cavalos, e clubes de remo, convocando a população para as regatas. Os Jogos Olímpicos, em suas origens e até os dias atuais, também sempre foram divulgados fazendo uso de belos cartazes. O esporte, enfim, estava plenamente articulado com as dimensões que marcaram aquele período.

Esporte, cinema, corpo: controle e objetividade

As relações entre cinema e esporte podem ser encaradas, entre outras coisas, no contexto do desenvolvimento de idéias acerca da necessidade de se “desvendar” e de se “controlar” o corpo, buscas constantemente identificadas no decorrer do século XIX.

João Luiz Vieira [18] sugere que não é mera casualidade o fato de que o cinema fora inventado no mesmo momento em que se comemorava a descoberta dos raios X. Desde o século XVIII se observava uma mudança paulatina na relação da prática médica com o corpo. De algo pouco conhecido, ele vai sendo transformando em um objeto legível, traduzível em imagens que poderiam ser expressas em palavras. Se uma nova relação e consideração para com o corpo estavam sendo construídas, um novo sistema de regulação, de disciplinarização, se fazia necessário.

Não por acaso, em função dessas novas preocupações, podemos identificar muitos médicos envolvidos com as origens dos métodos ginásticos e com pesquisas utilizando o esporte como aplicação e/ou preocupação central. Na Alemanha, Suécia, Dinamarca e França, foram os responsáveis pelo desenvolvimento do que eram consideradas práticas adequadas de uso corporal para manutenção da saúde. Eram os responsáveis pelo receituário acerca do que poderia ou não ser executado. No Brasil, não foi diferente: entre as teses apresentadas às Faculdades de Medicina do Rio de Janeiro, Salvador e Recife, muitas eram as dedicadas à Educação Física e ao esporte.

Não é de se estranhar tais envolvimentos. Como o corpo (e seu desvendar, o mais preciso possível) passa a ser uma preocupação denotada para os médicos, as atividades físicas se constituem em um excelente laboratório para seus estudos, ao mesmo tempo que permitiam o difundir de suas considerações “higiênicas”, algo que de forma alguma estava desconectado de uma forte base moral, de controle, de exercício de poder.

Para Vieira, a aceitação unânime do potencial de contribuição do cinema (e da imagem) para a medicina expressava uma compreensão de que seria de grande utilidade para garantir a objetividade das análises: “é uma ética do autocontrole, como conseqüência da recusa em cair na tentação de intervir entre a natureza e a representação almejada pelos cientistas e pesquisadores”. [19] A natureza subjetiva dos sentidos poderia, supostamente, ser afastada pela utilização das imagens que não “mentiam”.

A questão da objetividade por certo também esteve presente nas ligações entre esporte e cinema, no uso de imagens pelas diferentes instâncias componentes do campo esportivo. Como somente os sentidos (notadamente a visão) eram utilizados para a definição dos resultados, havia muitas polêmicas sobre os reais vencedores das competições esportivas. Com o uso da imagem, tais problemas poderiam ser, também supostamente, facilmente solucionáveis. Bastava-se fotografar e/ou filmar as provas para fossem sanadas as possíveis e comuns dúvidas.

Por isso, bem precocemente os recursos de captação de imagens foram introduzidos nas pelejas esportivas, sem que necessariamente tivessem eliminado todos os problemas, pois logo se percebeu que os ângulos de captação (os quais poderíamos denominar de “planos”, se quisermos utilizar a linguagem cinematográfica) podem ser mais subjetivos do que apressadamente pode-se imaginar.

Até os dias de hoje as polêmicas permanecem. Na última Copa do Mundo de Futebol (2002) ficou famoso o episódio em que praticamente todos os jornalistas do mundo afirmaram que o árbitro errara em uma situação polêmica de jogo, fazendo uso para tal de diversas fotografias e takes tomados aproximadamente do mesmo ponto de vista. Até que surge uma foto tirada de outro ângulo, de outro plano, demonstrando que a decisão do árbitro era perfeita.

Outra discussão comum é a possibilidade de utilização do vídeo-tape pelos árbitros em partidas de futebol. Muitos argumentam que tal uso (como ocorre já nas partidas de futebol americano) atrapalharia a dinâmica do jogo e estragaria um dos grandes atrativos do esporte: a polêmica.

Nélson Rodrigues, brilhante cronista, apaixonado por futebol e tricolor doente, exclamou certa vez, quando afirmava que o Fluminense não fora beneficiado pelo árbitro, mas assistira uma imagem que demonstrava o contrário: “o vídeo-tape é burro!”. Sua posição de ressalva ao uso da imagem fica ainda mais clara quando comenta uma partida entre Brasil e Inglaterra, quando os locutores de rádio propagaram que fora um belo jogo, enquanto as imagens demonstravam o oposto:

E o patético é que, quinta-feira, o vídeo-tape de Brasil X Inglaterra nos dera uma versão deprimente do escrete. O povo não sabia como conciliar as duas coisas: o delírio dos locutores e a exata veracidade da imagem. Após a batalha de ontem, eu vi tudo. A verdade está com a imaginação dos locutores. E repito: a imaginação está sempre muito mais próxima das essências. Ao passo que o vídeo-tape é uma espécie de lambe-lambe do passeio público, que retira das pessoas toda a sua grandeza humana e esvazia os fatos de todo o seu patético. [20]

De acordo com Vieira, os médicos acabavam relegando aos pacientes [21] um papel cada vez menos ativo, buscando afastar a subjetividade dos exames e da clínica a partir da utilização de recursos de imagem. Antes, dependiam quase que exclusivamente dos relatos dos indivíduos para tomarem as decisões julgadas necessárias; com os avanços científicos, as imagens é que deviam “falar” objetivamente o procedimento que deve ser tomado.

A utilização de imagens, no decorrer do tempo, também trouxe modificações na postura do observador da prática esportiva. Referindo-se ao papel da torcida, Nicolau Sevcenko [22] recupera a origem da palavra (torcer-se, contorcer-se, remoer-se, contrair-se) para argumentar que se trata de uma função ativa. É o torcedor uma das principais atrações do espetáculo esportivo. É ele que polemiza, influencia, se posiciona.

Nélson Rodrigues constantemente também exaltava o poder da torcida e sua influência na dinâmica dos jogos. Chamava a atenção para o fato de que o torcedor pode até parecer um “pobre-diabo, indefeso e desarmado”, mas isso não passa de ilusão. No fundo, ele tem grande poder, possuindo “armas” próprias.

A posição de Bertold Brecht também parece muito interessante. Ao teorizar sobre saídas para redimensionar o teatro, o poeta e dramaturgo vislumbra uma esperança no público que comparece aos eventos esportivos. Com isso, não propõe que sejam conquistados para o teatro aqueles espectadores, nem tampouco que peças sejam montadas em instalações esportivas, mas sim que se mude a própria natureza da atividade teatral, para que se possa envolver um público que se entusiasme intensamente com o espetáculo, sem que perca uma certa postura de distanciamento. [23]

Para Brecht, isso já acontecia com o esporte: o torcedor é ativo, mas consegue manter um elevado grau de distanciamento ao julgar, tomar posição perante as partidas assistidas:

Acontece que tal parece ser a situação do teatro atual: os atores não se sentem muito bem em sua pele: como “responder” a um público apático? Veja-se o contraste com o público de uma arena de esportes; estas “panelas de cimento” comportam “quinze mil pessoas de todas as classes e com todos os perfis, o público mais inteligente e mais correto do mundo”. [24]

Ressalvas merecem ser feitas a partir de um olhar contemporâneo. Se antes o torcedor dependia basicamente dele mesmo para tomar posicionamentos perante o que estava sendo assistido, a atual utilização de imagens nos espetáculos esportivos acaba por, de alguma forma, retirar um pouco de seu papel definidor, diminuir um pouco o seu papel ativo.

O recurso do video-tape e seus desdobramentos (tira-teimas, programas que calculam “exatamente” o que ocorreu) acabam por ser apresentados como a “verdade”, o objetivo, o “científico”, deixando a opinião do torcedor para o campo da “doxa”. Com isso não se está a afirmar que o uso de imagens “estragou” a prática esportiva, mas a chamar a atenção para as mudanças que foram ocasionadas. Mudanças paulatinas, multifacetadas e cada vez maiores. Como exemplo claro, pode-se lembrar das constantes modificações nas regras de determinados esportes, como no caso do voleibol, para que o jogo se torne mais adequado à transmissão televisiva.

Existe um número enorme de imagens e programas esportivos nas televisões de todo o mundo. O esporte é agora levado para dentro dos lares. Todos têm acesso a um discurso aproximado acerca da prática, mesmo que persistam as polêmicas. E ainda que consideremos o papel ativo do torcedor, não devemos negligenciar o alerta de Pierre Bourdieu, que nos faz lembrar que estamos nos referindo a uma tensão constante na construção de sentidos e significados acerca das práticas sociais:

(…) sem dúvida é pela separação estabelecida entre os profissionais, virtuoses de uma técnica esotérica, e os leigos, reduzidos ao papel de simples consumidores, e que tende a se tornar uma estrutura profunda da consciência coletiva, que ele (esporte) exerce seus efeitos políticos mais decisivos: não é apenas no domínio do csporte que os homens comuns são reduzidos aos papéis de torcedores, limite caricatural do militante, dedicados a uma participação imaginária que não é mais do que a compreensão ilusória da despossessão em benefício dos experts. [25]

Os torcedores são sim ativos, mas lidam com estruturas bastante fortes de convencimento, simultaneamente e em diferentes graus rechaçadas e incorporadas. O importante é entender que a possibilidade de difusão rompeu o limite claro entre o público e o privado, envolveu ainda mais mulheres, famílias, filhos (algo que já era observável anteriormente nas instalações esportivas), mas estabeleceu um acesso mediado pelos “especialistas” a partir de uma idéia de objetividade.

Os “especialistas” em esporte existem desde o início da prática esportiva moderna: jornalistas, comentaristas, cronistas, entre outros. No início, como o esporte era uma manifestação nova, recém estruturado, com uma gramática específica, ocupavam o papel de “tradutores”, responsáveis por passar para o grande público as peculiaridades da nova prática. Com o passar do tempo, sua função permaneceu ativa, mesmo que com sentidos diferenciados. Não há programa esportivo de televisão ou caderno de esportes nos jornais que não disponha de alguns desses profissionais.

Nélson Rodrigues, mesmo que sempre reconhecendo a atuação ativa dos torcedores, chegou a identificar em suas crônicas uma mudança sensível na sua postura, posição que bem se articula com sua irritação com a utilização do video-tape. Ao comentar, no ano de 1955, a postura da torcida em partidas realizadas na década de 10, afirmava:

Naquele tempo tudo era diferente. Por exemplo: a torcida tinha uma ênfase, uma grandiloqüência de ópera. E acontecia esta coisa sublime: quando havia um gol, as mulheres rolavam em ataques. Eis o que empobrece liricamente o futebol atual: a inexistência do histerismo feminino. Difícil, muito difícil achar-se uma torcedora histérica. Por sua vez, os homens torciam como espanhóis de anedota . [26]

Resumindo esta discussão entre resistência e adequação, podemos fazer uso das palavras de Miriam Hansen:

(…) se quisermos compreender o que houve de radicalmente novo e diferente na modernidade do século XX, temos também de reconstruir o apelo libertador do “moderno” para um público de massa – um público que era, em si mesmo, tanto um produto quanto uma vítima do processo de modernização. [27]

Esporte, cinema, corpo: espetacularização

A preocupação com o corpo, segundo Leo Charney, tem forte relação com o clima de hiperestimulação que caracterizou a modernidade na transição dos séculos XIX e XX. A mudança na forma de vivenciar o tempo acabou por valorizar as respostas de natureza sensorial, corpórea:

Dizer que não podemos reconhecer o presente no instante da presença não é dizer que o presente não pode existir. É simplesmente dizer que ele existe como sentido, experimentado, não no reino do catálogo racional, mas no reino da sensação corporal. Essa possibilidade de um presente sensório como antídoto à alienação da modernidade foi o caminho tomado na modernidade.[28]

Articulado com as dimensões anteriores identifica-se um claro processo de espetacularização do corpo, observável denotadamente a partir do final do século XIX. João Luiz Vieira procura trabalhar tal constatação entendendo as relações entre medicina e cinema naquele contexto, encontrando inclusive similaridades na organização espacial e nos sentidos desejados: “Tanto o espetáculo da lição de anatomia, como o cinema, possuem, como terreno comum, o discurso da investigação e da fragmentação do corpo”. [29]

Ao aprofundar sua discussão sobre a relação que o cinema estabeleceu com o corpo, o autor é enfático:

O corpo como atração encontra-se assim presente desde os primórdios do cinema, constituindo-se em sua maior atração, conforme o termo empregado por Tom Gunning (1995). Desde os primeiros tempos, o cinema foi antropomórfico, materializando na tela imagens do corpo humano que agradavam os espectadores. A história do cinema demonstra quanto buscamos prazer ao ver o corpo humano projetado numa tela, quanto nos identificamos com esse duplo projetado. [30]

Aí se encontram elementos que ajudam a pensar as relações entre cinema e esporte. Se o corpo sempre foi a maior atração no cinema, ele também o era no âmbito da prática esportiva, destacadamente depois que o esporte passou a abandonar seu caráter pronunciado de jogo de azar, onde se destaca o remo como esporte que sucede o turfe nas preferências populares, antecedendo o enorme interesse pelo futebol. [31]

No final do século XIX, cada vez mais os corpos musculosos em movimento seriam o grande motivo de atração que conduziria os espectadores aos eventos esportivos. O esporte também era procurado pelo prazer de ver corpos “projetados” (nos gramados, campos, quadras).

Vieira nos lembra ainda que desde as origens do cinema há um denotado interesse e um bom número de filmes que representam seres superdotados. O que eram os estádios se não palcos onde seres “superiores” desafiavam os limites humanos, se aproximando de deuses? Basta lembrar como o Barão Pierre de Coubertin recuperou de maneira bastante estratégica os mitos da antiguidade grega na elaboração de sua proposta para os Jogos Olímpicos modernos. Cinema e esporte juntos celebrariam a modernidade e suas idéias de velocidade, eficiência, produtividade. E cultivariam muitos heróis.

Para a prática esportiva, a chegada da imagem foi bastante útil para a consolidação de seus elementos: heroísmo, superação, coragem, grandiosidade. A imagem foi fundamental para permitir que os “feitos esportivos” pudessem ser definitivamente registrados, preservados e exibidos em grande escala: relembrar, “to record”, o recorde como dimensão central para a continuidade da prática do esporte; é ele que permite lembrar que a necessidade de superação é constante.

Há um ponto de articulação clara entre cinema e esporte no momento de construção da sociedade moderna: “a percepção na vida moderna tornou-se uma atividade instável e o corpo do indivíduo moderno, um tema tanto de experimentação quanto de novos discursos”. [32]

Vejamos só como uma definição de cinema, de Jean Epstein, pode ser tranqüilamente utilizada para o esporte:

Epstein concebia o filme (o esporte) como uma cadeia de momentos, uma colagem de fragmentos que produzia não um fluxo uniforme de atenção, mas altos e baixos repentinos e imprevisíveis. Nesses trancos de atenção o espectador recolheria momentos de pura imersão na imagem. Para Epstein, essa fotogenia indefinível marcou a especificidade do cinema (do esporte) como uma forma de arte única da experiência moderna.[33]

A definição de Epstein tem alguns limites claros. Primeiro porque deixou de discutir adequadamente a importância do som, até mesmo porque naquele momento as películas ainda eram mudas. A invenção do cinema sonoro modificou bastante sua dinâmica e foi na ocasião motivo de grandes polêmicas. É óbvio que cinema é luz, imagem, mas nos dias de hoje não podemos esquecer do importante papel da música, da trilha, dos ruídos.

Além disso, Epstein deixa de considerar outras formas de “arte” também basicamente sedimentadas na fotogenia, como é o caso do esporte. Não é esse aspecto que vai marcar o cinema como “experiência única”, isso marcava o conjunto de linguagens, marcava uma época. Vale destacar que a espetacularização do corpo pode ser observada em muitas outras formas e locais de diversão típicos no final do século XIX, como no necrotério (uma grande atração na Paris do fim do século XIX), nos panoramas e nos museus de cera. [34]

Epstein argumentava ainda que a grande marca do cinema era sua indefinibilidade e instabilidade: sua essência dependia de sua intangibilidade e de sua capacidade de propiciar sensações, não de uma narrativa clássica. Identicamente podemos pensar no esporte: não há uma narrativa tradicional, mas um conjunto de imagens que despertam fortes emoções; imagens absolutamente intangíveis, ainda mais instáveis e indefiníveis, pois não há nenhuma forma de roteiro pré-estabelecido para seu desenvolvimento. Epstein acreditava que o cinema é basicamente movimento. Não o seria também o esporte?

Não estou com isso afirmando que esporte e cinema sejam iguais. Entretanto, mesmo se tratando de linguagens diferentes, creio que seja possível identificar entre elas muitas semelhanças, notadamente no contexto típico da modernidade. Além das já elencadas, podemos ainda pensar na organização espacial de estádios e cinemas, enquanto locais que isolam parcialmente e momentaneamente os indivíduos do “mundo real”; podemos identificar que as narrativas dos espetáculos de ambas as linguagens possuem protagonistas, antagonistas, heróis, uma seqüência inesperada de ações (embora sempre haja previsões ou suposições anteriores), perdedores e ganhadores, incentivados por um público que acredita no poder de sua influência.

Não surpreende então que, em “A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica”, Walter Benjamim tenha comparado diretamente o esporte ao cinema, argumentando que de certa maneira construíram um sentido geral de pertencimento, uma proximidade entre artistas e público, uma sensação no público de que ele pode também tomar parte e se posicionar perante o espetáculo. Afirma Benjamim:

A técnica do cinema assemelha-se à do esporte no sentido de que nos dois casos os espectadores são semi-especialistas. Basta, para nos convencermos disso, escutarmos um grupo de jovens jornaleiros, apoiados em suas bicicletas, discutindo resultados de uma competição de ciclismo. No que diz respeito ao cinema, os filmes de atualidades provam com clareza que todos têm a oportunidade de aparecer na tela. Mas isso não é tudo. Cada pessoa, hoje em dia, pode reivindicar o respeito de ser filmado. [35]

Esporte, cinema, corpo: representações

Nesse mesmo estudo, no item “Exposição perante as massas”, Benjamim dedicou ao esporte algumas linhas de reflexão. Argumenta o autor que antes mesmo do cinema e do rádio, o esporte já funcionava como fator de promoção pública, algo potencializado na modernidade, quando políticos, astros e atletas ocupam espaços similares no panteão social:

O rádio e o cinema não modificam apenas a função do intérprete profissional, mas também a função de quem se representa a si mesmo diante desses dois veículos de comunicação, como é o caso do político. O sentido dessa transformação é o mesmo no ator de cinema e no político, qualquer que seja a diferença entre suas tarefas especializadas. Seu objetivo é tornar “mostráveis”, sob certas condições sociais, determinadas ações de modo que todos possam controlá-las e compreendê-las, da mesma forma como o esporte o fizera antes, sob certas condições naturais. Esse fenômeno determina um novo processo de seleção, uma seleção diante do aparelho, do qual emergem, como vencedores, o campeão, o astro e o ditador. [36]

Ao comentar tal ensaio, Alexandre Fernandes Vaz afirma:

(…) é curioso, mas de forma nenhum inusitado o aparecimento do esporte como exemplar fenômeno que interessa à arqueologia de uma modernidade e suas expressões: à direita, com o fascismo, à esquerda, com o comunismo, ambos enredados com as novas condições de reprodução, inclusive e principalmente do material artístico. [37]

Quais papéis esporte e cinema ocupam na indústria do lazer e do entretenimento? Como têm se constituído enquanto espetáculos que possuem similaridades e como compõe uma sociedade onde o espetáculo é valorizado? As possibilidades técnicas de reprodutibilidade marcam o estabelecimento de uma nova relação dos indivíduos e da sociedade para com as obras de arte e com as diversas linguagens como um todo, algo que envolve profundamente tanto o cinema quanto o esporte.

Ao construir suas reflexões sobre a construção do que chama “sociedade do espetáculo”, Guy Debord identifica que o espetáculo constitui-se em um modelo dominante na sociedade. Assim sendo: “o espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social, mediada por imagens”. [38] O autor acredita que se cria uma idéia de que a realidade aparece no espetáculo e de que o espetáculo é o real.

Nada mais adequado para pensarmos em cinema e esporte. Ambos se constituem em verdadeiros simulacros de realidade, mesmo que estejam efetivamente longe da concretude da vida. Jean-Claude Carrière [39] procura demonstrar, dando exemplos em diversos filmes, o quanto o cinema cria uma realidade que não condiz com o real, mas que é assim encarada em função de uma rede de imagens por demais densa, que nos cerca de maneira muito intricada, estimulando uma certa indolência e sonolência.

Mesmo que permaneçam ativos os indivíduos, não me parece possível negar a força das imagens em um mundo que transitou do “ser” para o “ter” e rapidamente avança para o “parecer”: “o espetáculo, como tendência a fazer ver (por diferentes mediações especializadas) o mundo que já não se pode tocar diretamente, serve-se da visão como o sentido privilegiado da pessoa humana”. [40]

A utilização de imagens e a entrada do esporte nos lares por meio da televisão trazem ainda uma questão que deve ser cuidadosamente considerada: a potencialização do consumo. Se tivermos em conta o número de patrocinadores que a todo instante ocupam as transmissões esportivas, podemos fazer um paralelo com o papel que os catálogos de venda em domicílio ocuparam no início do século XX:

O catálogo como uma forma de esfera pública estava especificamente atado à mercantilização – ele chegava aos lares de sujeitos isolados, e, ao inspirar uma articulação de desejo, os tornava consumidores. Ao serem representados metonicamente por seus formulários de pedido, eram impelidos para uma arena mais ampla de consumo. [41]

O principal é que possamos compreender que cinema e esporte constituem-se em poderosas representações de valores e desejos que permeiam o imaginário do século XX: a superação de limites, o extremo de determinadas situações (comuns em um século onde a tensão e a violência foram constantes), a valorização da tecnologia, a consolidação de identidades nacionais, a busca de uma emoção controlada, o exaltar de um certo conceito de beleza, tudo isso esteve constantemente presente nos filmes e nas competições organizadas no decorrer do século que passou, e por certo continuará presente neste que começa.

Rick Altman adequadamente situa as relações e os papéis ocupados por esporte e cinema na consolidação de imaginários no decorrer do século XX, já que suas “celebridades” de alguma forma conseguem ultrapassar as fronteiras de classes e permitem que o contato visual (imagem) substitua a presença física:

Em uma sociedad capitalista, los consumidores no se limitan a aceptar lo que se les ofrece. Su elección de productos es uma fuente de placer, orgullo e incluso de identidad. De ahí que los géneros, los deportes y las estrellas ocupen um lugar tan destacado em el firmamento del siglo XX. Todo su poder emana de los usuarios, que necesitan la identidad – aunque sea imaginaria – que estos fenômenos proporcionan. [42]

José Luiz Ruiz bem resume as confluências entre esporte e cinema:

El deportista seduce la imaginacion de las sociedades modernas – cuya máxima expresión es el Cine – porque proporciona una versión actualizada del héroe clásico, capaz de suplantar al caballero medieval, al héroe bélico e incluson al incontrolable aventurero moderno, reconvertido y civilizado, acotándole un campo de riesgo controlado. Si el Cine es la transfiguración tecnológica moderna de las artes plásticas clásicas – la Escultura, la Pintura – y es capaz de integrar casi todas la demás, el Deporte es el más plástico (y por lo tanto cinemático) de los juegos/inventos sociales del hombre contemporáneo (…). Y, al tiempo – como sabe bien la fórmula Hollywood , el Cine tiene que emocionar y divertir. Pues bien, nada en el mundo se mueve tanto, emociona tanto y divierte tanto (a millones) como el Deporte. Excepto el Cine. Los dos, Cine y Deporte, aunque capaces también de alienarnos y volvernos contra nostros mismos, como toda actividad que se desnaturaliza, son el mejor ejercicio, imaginário y real, respectivamente, que hemos inventado para encontrar y ampliar nuestra propia medida humana. [43]

Vejamos como Charney e Schwartz se referem ao cinema no contexto da modernidade, uma definição que poderia ser sem problema algum aplicada ao esporte:

Tratava-se de um produto comercial que era também uma técnica de mobilidade e efemeridade. Foi uma conseqüência e uma parte vital da cultura urbana que se dirigia a seus espectadores como membros de um público de massa coletivo e potencialmente indiferenciado. Era uma forma de representação que foi além do impressionismo e da fotografia, encenando movimentos reais (…). Era uma tecnologia destinada a provocar respostas visuais, sensuais e cognitivas nos espectadores que estavam começando a se acostumar aos ataques de estimulação.[44]

Enfim, esporte e cinema ao mesmo tempo em que expressam representações, princípios, sentidos e significados constantes no século XX, também foram fundamentais na consolidação destes. Isso se exponencia quando relembramos o espaço que ocupam na vida cotidiana de grande parte da população.

É importante lembrar do importante papel que hoje ocupam alguns atletas, tanto quanto atores e atrizes, como, por exemplo, Ronaldo Nazário (Ronaldinho) e Michael Schumacher, que receberam até mesmo o título de embaixadores da ONU e da UNESCO, tal a sua penetrabilidade nos mais diferentes países. Aliás, ainda falando do poder de penetração do esporte, curiosamente há mais países filiados à FIFA e ao COI do que à ONU.

Considerados como celebridades, não surpreende, por exemplo, que Pelé e Muhamed Ali tenho sido fotografados por Andy Warhol em sua célebre série “Polaróides”. A forte presença social e o aspecto plástico do esporte têm sido constantemente explorados em propagandas (de produtos esportivos ou não) e já chamou a atenção de muitos artistas, das mais diferentes linguagens.

O esporte já foi tematizado por artistas plásticos (como Rubem Gerschman, Cândido Portinari), literatos (como Machado de Assis, Arthur Azevedo, Raul Pompéia, Carlos Drummond de Andrade, Paulo Mendes Campos), músicos (como Noel Rosa, Geraldo Pereira, Chico Buarque, Pixinguinha, entre muitos outros exemplos, nos mais diferentes ritmos), dramaturgos (Oduvaldo Viana) e por cineastas (Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Oswaldo Caldeira).

Alguns dados à guisa de conclusão

Com tantos pontos de contato, não surpreende que tantos filmes tenham sido produzidos tendo o esporte como tema. Desde os primórdios do cinema, ainda quando as iniciativas documentais superavam as ficcionais, as emoções desencadeadas pelas competições esportivas já eram captadas pelas lentes das primeiras câmeras. O esporte esteve mesmo de alguma forma envolvido no desenvolvimento técnico anterior à exibição da primeira sessão pública de um filme. [45]

Estima-se que mundialmente cerca de 4000 filmes já tenham sido produzidos dedicados ao esporte, alguns ocupando espaço importante na história cinematográfica:

Ora, o cinema – como imagem em movimento que exclui e inclui, potencializa o olho humano, que educa os sentidos para a experiência moderna, como afirma Benjamim – não poderia prescindir do movimento corporal como um de seus privilegiados temas (…) À potencialização do corpo corresponde a potencialização da imagem. [46]

Inicialmente, o esporte era filmado por ser mais uma das práticas comuns no gosto popular. Por isso identificamos tanto o boxe sendo tematizado nos primórdios do cinema norte-americano, nosnickelodeon, muito procurados notadamente pelos imigrantes e membros da classe trabalhadora daquele país.

Lembra-nos Cohen: “A exemplo do que ocorre com os gêneros cotidianos do século XIX, os primeiros curtas-metragens denotam o verdadeiro fascínio pela vida cotidiana” [47] . O novo mundo era exibido nas telas que ocupavam as feiras e lojas abertas nas novas cidades cada vez maiores, e dele fazia parte o esporte, notadamente o boxe, um dos símbolos culturais norte-americanos.

Posteriormente, contudo, sem que deixasse de ser encarado como divertimento do homem comum, o tema, compreendido enquanto símbolo de progresso passa a ser inserido em preocupações de cunho nacionalista (ligadas à construção de identidades, algo bastante notável nos Estados Unidos e na Alemanha no período do nazismo), envolvido com formulações de cunho moral (notável na realidade norte-americana e européia) ou encarado como estratégia de formação política (identificável claramente nas iniciativas de cinema operário realizadas no período da República de Weimar, Alemanha). Ora era tratado a partir de uma perspectiva progressista, como em “Kuhle Wampe ou A quem pertence o mundo?”, filme cujo roteiro esteve sob a responsabilidade de Bertold Brecht, ora do ponto de vista conservador, como em “Olympia”, de Leni Riefensthal. [48]

No decorrer dessa longa relação, podemos identificar atores que também eram atletas e participavam de competições esportivas; atores representando papéis de atletas, técnicos e/ou dirigentes; atletas que se tornaram atores ou representaram papéis em filmes; e muitos foram os cineastas que incorporaram o esporte em suas produções.

Houve também muitas inovações cinematográficas, tanto técnicas quanto artísticas (fatores certamente articulados), desenvolvidas a partir da necessidade de melhor captar as peculiaridades do esporte, como, por exemplo, o tamanho da película (no caso dos pioneiros filmes de boxe) e em casos de tomadas de planos originais (onde podemos citar as experiências de Leni Riefenstahl e mesmo de Joaquim Pedro de Andrade, em “Garrincha, Alegria do Povo”). [49]

As primeiras imagens cinematográficas brasileiras onde aparece o esporte podem ser encontradas já no final do século XIX. Inicialmente eram curta-metragens e cenas em cine-jornais [50] . No que se refere à longa-metragens nacionais, identificamos que em 62 filmes o esporte é o tema central ou ocupa lugar de grande importância como pano de fundo, em 64 ocupa um importante espaço e em 77 é de alguma forma citado, mesmo não sendo central: um total de 203 filmes. [51]

Entre tais películas, mais de 100 tem cenas dedicadas ao futebol, esporte de maior popularidade no Brasil. Destacam-se também o surfe (8 filmes), o automobilismo (8 filmes) e o turfe (8 filmes). Também foram retratados o atletismo, o boxe, a capoeira, o judô, a natação, o remo, o rodeio, o tênis, entre outros.

Os estilos dos filmes são os mais variados: documentários, dramas, aventura, comédia, desenho animado e até filmes de sexo explícito. Entre os cineastas, alguns podem ser destacados: Antônio Calmon, Antônio Carlos Fontoura, Anselmo Duarte, David Neves, Eduardo Escorel, Humberto Mauro, Joaquim Pedro de Andrade, Oswaldo Caldeira, Nélson Pereira dos Santos, Paulo César Saraceni, Roberto Farias, Ugo Giorgetti.

Esses dados são importantes indicadores, contudo, mais do que ver o esporte como tema, interessa-nos mesmo as similaridades das linguagens. Assim, concluo este artigo com uma citação de Leo Charney sobre o papel do cinema na modernidade. Tomo a liberdade de, entre parênteses, colocar a palavra esporte, para expressar minha sensação de que este não foi menos importante do que aquele no forjar dos modus vivendis da modernidade:

Acima de tudo foi essa forma de experiência em movimento que ligou a experiência do cinema (do esporte) à experiência da vida diária da modernidade. A experiência do cinema (do esporte) refletiu a experiência epistemológica mais ampla da modernidade. Os sujeitos modernos (re)descobriram seus lugares como divisores entre passado e futuro ao (re)experimentar essa condição como espectadores de cinema (de esporte). Passado e futuro confrontaram-se não em uma zona hipotética, mas no terreno do corpo. Essa alienação fundamentou-se e surgiu da aspiração moderna para apreender momentos fugazes de sensação como uma proteção contra sua remoção inexorável. A busca para localizar um instante fixo de sensação dentro do corpo jamais poderia ser bem-sucedida.[52]

*Victor Melo é Professor do Programa de Pós-Graduação em História Comparada/IFCS e da Escola de Educação Física e Desportos. Coordena o Projeto “Esporte e Arte: Diálogos”. Pesquisador do Programa Avançado de Cultura Contemporânea. Bolsista de Produtividade em Pesquisa/CNPq. Publicou Futebol por todo o mundo: diálogos com o cinema. FGV, 2006 e O esporte vai ao cinema. Senac Nacional, 2005, entre outros.

NOTAS


[1] Este estudo foi realizado como parte da pesquisa “Representações do Esporte no Cinema Brasileiro”, realizada com incentivos do Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq) e da Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). Tal pesquisa foi desenvolvida no Programa de Pós-Doutorado do Programa Avançado de Cultura Contemporânea/UFRJ.

[2] RUIZ, José Luis. La unión de dos ofertas culturales del siglo XX. Sevilha. 2002. Disponível em:http://www.festivaldesevilla.com.

[3] MURAD, Maurício. “Futebol e cinema no Brasil 1908/1998”. In: COSTA, Márcia Regina da e colaboradores. Futebol: espetáculo do século. São Paulo: Musa Editora, 1999. P. 7

[4] RODRIGUES, José Carlos. O negro brasileiro e o cinema. Rio de Janeiro: Pallas, 2001.

[5] MORENO, Antônio. A personagem homossexual no cinema brasileiro. Rio de Janeiro: Eduff/Funarte, 2002.

[6] CCBB. Miragens do Sertão. Rio de Janeiro: CCBB, 2002.

[7] KAPLAN, E. A mulher e o cinema: os dois lados da câmera. Rio de Janeiro: Rocco, 1995.

[8] JEU, Bernard. Analyse du Sport. Paris: PUF, 1992. P. 20.

[9] CARRIÈRE, Jean-Claude. A linguagem secreta do cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995. P. 114.

[10] CHARNEY, Leo; SCHWARTZ, Vanessa (orgs.). O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac & Naify Edições, 2001.

[11] JEU, Bernard. Op.cit. 21.

[12] COHEN, Margareth. “A literatura panorâmica e a invenção dos gêneros cotidianos”. In: CHARNEY, Leo; SCHWARTZ, Vanessa (orgs.). Op.cit.P. 315.

[13] ASCANI, Franco. Olympic Games and the cinema. Atenas: Mimeo, 1996.

[14] BOURDIEU, Pierre. “Como é possível ser esportivo?” In: Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1993.

[15] MANNONI, Laurent. A grande arte da luz e da sombra. São Paulo: Senac/Editora Unesp, 2003.

[16] CHARNEY, Leo, SCHWARTZ, Vanessa (orgs.). Op.cit. P. 20.

[17] VERHAGEN, Marcus. “O cartaz na Paris fim-de-século: ‘aquela arte volúvel e degenerada'”. In: CHARNEY, Leo; SCHWARTZ, Vanessa (orgs.). Op.cit.

[18] VIEIRA, João Luiz. “Anatomias do visível: cinema, corpo e a máquina da ficção científica”. In: NOVAES, Adauto (org.). O homem-máquina: a ciência manipula o corpo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

[19] Idem. Ibidem. P. 319.

[20] RODRIGUES, Nélson. À sombra das chuteiras imortais: crônicas de futebol. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. P.90. Crônica publicada no jornal O Globo de 14 de junho de 1962.

[21] Vale destacar o uso do termo paciente. Segundo o dicionário, uma das definições é: “resignado, conformado”. É um termo bastante relacionado à passividade.

[22] SEVCENKO, Nicolau. “A capital irradiante: técnica, ritmos e ritos do Rio”. In: Idem.(org.). História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. V.3.

[23] Este posicionamento de Brecht está relacionado ao seu entendimento da relação sujeito-objeto no teatro e sua proposta de abandono de uma compreensão em que o público é considerado passivo enquanto o espetáculo é ativo.

[24] BORNHEIM, Gerd. Brecht: a estética do teatro. Rio de Janeiro: Graal, 1992. P. 72. As palavras entre aspas são citações do próprio Brecht.

[25] BOURDIEU, Pierre. Op.cit. P. 145.

[26] RODRIGUES, Nélson. À sombra das chuteiras imortais: crônicas de futebol. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. P. 9. Crônica “Flamengo Sessentão”, publicada em Manchete Esportiva de 26 de novembro de 1955.

[27] HANSEN, Mirian Bratu. “Estados Unidos, Paris, Alpes: Kracauer (e Benjamim) sobre o cinema e a modernidade”. In: CHARNEY, Leo; SCHWARTZ, Vanessa (orgs.). Op. Cit. P. 502.

[28] CHARNEY, Leo. “Num instante: o cinema e a filosofia da modernidade”. In: CHARNEY, Leo; SCHWARTZ, Vanessa (orgs.). O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac & Naify Edições, 2001. P. 286.

[29] VIEIRA, João Luiz. “Anatomias do visível: cinema, corpo e a máquina da ficção científica”. In: NOVAES, Adauto (org.). Op.cit. P. 322.

[30] Idem, Ibidem, p. 324.

[31] MELO, Victor Andrade de. Cidade Sportiva. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2001.

[32] CHARNEY, Leo. Op.cit. P. 21.

[33] Idem, Ibidem, p. 395. As observações entre parênteses são de minha autoria.

[34] Idem, Ibidem, p. 456.

[35] As versões em português mais conhecidas deste texto podem ser encontradas no livro de José Lino Grunnewald (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1966) e na coleção Os pensadores (Abril Cultural). Trata-se da segunda versão do artigo escrita por Benjamim. Neste livro, trabalhei com a primeira versão do artigo, disponível em: http://www.virginiagil.hpg.ig.com.br/Benjamin(HR).htm

[36] Idem. Ibidem.

[37] VAZ, Alexandre Fernandes. Esporte e modernidade: notas sobre crítica escritura histórica em Walter Benjamim. Lecturas – Revista Digital, Buenos Aires, ano 5, n.26, 2000. Disponível em: www.efdeportes.com
Vaz informa que Benjamim chegou a tecer comentários sobre o esporte e sobre os Jogos Olímpicos nas notas preparatórias deste importante estudo, não desenvolvidas, contudo, nas suas duas versões finais.

[38] DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. P. 14.

[39] CARRIÈRE, Jean-Claude. A linguagem secreta do cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.

[40] DEBORD, Guy. Op.cit. p.22.

[41] KELLER, Alexandra. “Disseminações da modernidade: representação e desejo do consumidor nos primeiros catálogos de venda por correspondência”. In: CHARNEY, Leo; SCHWARTZ, Vanessa (orgs.). Op.cit.P. 234.

[42] ALTMAN, Rick. Los géneros cinematográficos. Barcelona: Paidós Comunicación, 2000. P. 258.

[43] RUIZ, José Luis. Op. Cit.

[44] CHARNEY, Leo. Op. cit. p. 31.

[45] MELO, Victor Andrade de. Esporte e cinema: diálogos. Rio de Janeiro: UFRJ, 2004. Relatório de Pesquisa (Pós-Doutorado em Estudos Culturais). Disponível em www.ceme.eefd.ufrj.br/cinema.

[46] VAZ, Alexandre Fernandes. Esporte e modernidade: notas sobre crítica escritura histórica em Walter Benjamim. Lecturas – Revista Digital, Buenos Aires, ano 5, n.26, 2000. Disponível em: www.efdeportes.com

[47] COHEN, Margareth. “A literatura panorâmica e a invenção dos gêneros cotidianos”. In: CHARNEY, Leo; SCHWARTZ, Vanessa (orgs.). Op.cit. P. 341.

[48] MELO, Victor Andrade de; PERES, Fabio de Faria. O esporte vai ao cinema. Rio de Janeiro: Editora Senac, 2005.

[49] MELO, Victor Andrade de. Esporte e cinema: diálogos. Op. Cit.

[50] Uma lista das imagens pioneiras pode ser encontrada em www.lazer.eefd.ufrj.br/esportearte.

[51] A lista completa desses filmes pode ser encontrada em www.lazer.eefd.ufrj.br/esportearte.

[52] CHARNEY, Leo. Op. Cit. P. 405.