O presente artigo parte da coletânea de contos The ways of white folks, publicada em 1934 pelo escritor afro-norte-americano Langston Hughes. Nessa análise, a representação da cultura negra do Harlem é tida como fio condutor da leitura entre os contos “The blues I’m playing”, “Rejuvenation through joy” e “A good job gone”, cujas traduções apresentadas são autorais e inéditas. Assim sendo, este estudo mapeia a ambígua relação de fascínio e estranhamento causada em pessoas brancas de Nova York por manifestações culturais da negritude, interpretadas como “exóticas” e “selvagens”. Essas narrativas, lidas aqui como episódios ficcionais de racismo, servem como práticas que perpetuam a cisão colonial. Para tanto, o referencial teórico é, principalmente, constituído pelos apontamentos de Frantz Fanon, Grada Kilomba, Lélia Gonzalez e Achille Mbembe.
Em 2017, acabara de ser lançado o sucesso de bilheteria Get out, suspense norte-americano que se debruça sobre as intolerâncias raciais dos Estados Unidos. Aclamado pela crítica e vencedor do Oscar de melhor roteiro original, o diretor Jordan Peele foi o primeiro afro-americano a vencer essa categoria no mais conhecido prêmio do cinema mundial. No longa, há uma cena em que amigos de uma família branca, impressionados com o namorado negro da jovem filha, observam o homem com estranhamento e êxtase, perguntando-lhe sobre suas habilidades esportivas, seu condicionamento físico, seus hábitos de dança e, com o alívio cômico do absurdo, questionam seu desempenho sexual poucos segundos depois de vê-lo pela primeira vez.
É esse o momento em que o roteiro sintetiza um aspecto incontornável em quaisquer narrativas que pretendam investigar a relação entre branquitude e negritude no mundo ocidental: a construção do Outro pelo discurso. Existe uma linguagem a operar como estereótipo, fetiche e fantasia que sustenta, no cenário contemporâneo, a compreensão, ainda colonial, que se tem do sujeito negro no Ocidente. Discuti-la, nesse sentido, é pensar como essa linguagem opera na elaboração de um certo exotismo “primitivo”. Afinal, como explicita Aimé Césaire (2010, p. 110): “a Negritude foi uma revolta contra aquilo que eu chamaria de reducionismo europeu”.
Reduzidos à imagem fácil do fetiche, do exótico e do selvagem, requisitamos, assim, a ideia de que o negro não se constrói como um sujeito em si, mas como uma fantasia branca no intuito de suprir a necessidade de um certo imaginário ocidental (Kilomba, 2019).
O cerne da presente discussão está, portanto, na ideia de construir o que é diferente como o “não eu”, isto é, o elemento permeado por uma incógnita que deve ser afastada do enunciador, o qual procura se proteger do risco de ser confundido com esse corpo outro. Surge, então, a premissa de diferenciação colonial, em sua acepção de objeto exótico.
No caso do sujeito negro no mundo ocidental, essa espécie de ícone encantado é um corpo marcado por hipersexualização, vitalidade e extraordinária força física, o que nos faz perceber que, no senso comum, como ironiza Lélia Gonzalez (1984, p. 231), o “branco não trepa, mas comete ato sexual e que chama tesão de necessidade”.
Logo, cria-se um discurso hegemônico segundo o qual, para ecoar as ideias de Frantz Fanon (2008), o preto é sempre associado à força, à brutalidade, ao sexo, ao instinto animal e ao pecado. Nesse panorama, o movimento de construção desse corpo é ambíguo, dado que também passa pelos discursos de medo, crime, violência e corrupção. Em suma, a negritude foi tecida no imaginário ocidental como a brutalidade selvagem e irracional que, no século XVI, carecia de Deus e no XIX carecia de civilização. Por isso, nas palavras de Achille Mbembe (2014, p. 194), “o Negro representa o instinto sexual não domesticado”.
O preto, assim, torna-se a cor de corpos irracionais, incontroláveis, transgressores e compulsivos. Sob essa lógica, reproduz-se exaustivamente a ideia de que o sujeito negro, que, afinal, sequer recebe o status de sujeito, é clandestino e, por isso, desperta desejo, sem jamais deixar de causar medo. Afinal, como escreveu Lilia Moritz Schwarcz (2012, p. 18) em seus estudos sobre racismo no Brasil, a própria ideia de um “Novo Mundo” é, desde a sua gênese, baseada na estigmatização dessa alteridade, marcada “por suas gentes com costumes tão estranhos”.
Os “costumes estranhos” de que nos fala a antropóloga é uma faceta absolutamente contemporânea do racismo ao pensarmos a relação ainda estigmatizada que religiões, músicas e traços físicos associados à negritude ainda possuem no imaginário Ocidental. Basta pensarmos, por exemplo, na diferença de tratamento entre a mitologia greco-romana e as narrativas divinas de origem africana. Essa discussão, no entanto, é antiga e, com a vitalidade dos clássicos, o escritor norte-americano Langston Hughes (1902-1967), ainda não descoberto por leitores brasileiros, muito pode nos ensinar sobre o uso da literatura como ferramenta antirracista.
Embora consagrado como poeta fundamental da Renascença do Harlem, Hughes foi também ficcionista e dramaturgo. Em suas obras, o norte-americano perseguiu como poucos as temáticas oriundas da violência racista da primeira metade do século XX, como as leis de segregação racial dos Estados Unidos, os linchamentos contra homens negros e, como é o caso que aqui nos interessa, o enquadramento através do qual a sociedade branca de seu tempo enxergava (e ainda enxerga em tantos casos) a cultura negra.
Portanto, partindo da coletânea de contos The ways of white folks, publicada originalmente em 1934 e ainda sem tradução no Brasil, pretendemos ler algumas narrativas em torno do jazz, do blues e de outras manifestações tipicamente afro-norte-americanas, propondo também algumas traduções inéditas para fragmentos de seus textos. Nessas histórias, que aqui servirão como episódios ficcionais de racismo, Langston Hughes evidencia um projeto até hoje necessário e perpetuado em nossa geração por artistas como Jordan Peele e pela sua cinematografia.
Assim, preocupamo-nos com o esforço teórico contemporâneo seguido por pensadores como Grada Kilomba (2019), cuja obra tanto enfatiza a urgência de que se criem configurações inéditas de conhecimento, às quais serão vinculadas novas formas de poder. Tal perspectiva se coaduna, incontornavelmente, ao pensamento de teóricas da segunda metade do século XX e do início do XXI, como a indiana Gayatri Spivak (2010), cuja principal obra discute a violência epistêmica da colonização, e a norte-americana bell hooks, que tanto se debruçou sobre a antítese existente entre sujeitos e objetos. Com base nisso, somos instigados a pensar na posição central que o tema da subjetividade exerce nessa discussão. Afinal, como nos lembra Butler (2017, p. 54), “parte do problema da vida política contemporânea é que nem todo mundo conta como sujeito”.
Adotando tal ponto de vista, concordamos com Fanon (2008) ao afirmar que o negro se conhece em terceira pessoa e, em vista disso, a busca pela subjetividade representa um conflito consigo e com o mundo que a nega. Tal aprisionamento, então, manifesta-se em diversos tentáculos cruéis e complexos do racismo. A partir de um primitivismo tenta-se construir a negritude.
Dito isso, na melancólica melodia afro-norte-americana, a literatura de Langston Hughes preocupa-se com um imaginário de ordem cultural no que se refere à arte negra. Em vários casos, a negritude é sintetizada a partir do blues, tratado em sua ficção como um charme diferenciado e inusitado para pessoas brancas. Trata-se do Outro que, dessa vez, será formulado como o “não eu”, sendo também objeto de estranhamento e de fascínio.
A partir de tal perspectiva, abordaremos primeiro o conto “The blues I’m playing”. O enredo da narrativa tem como ponto de partida Dora Ellsworth, uma rica viúva branca de Nova York que não teve filhos e dedica seu tempo, assim como sua fortuna, a jovens artistas. Com a recomendação de um crítico de arte que lhe era próximo, Dora Ellsworth conhece Oceola Jones, uma jovem pianista negra no Harlem. Encantada com a performance da menina, a rica mulher branca decide investir em sua carreira musical, amparando-a financeiramente.
Ela fez uma nota mental de que devia ir até lá [Harlem] algum dia, pois nunca havia visto aquela parte preta de Nova York; e agora que tinha uma aprendiz negra realmente deveria saber algo sobre esse universo. Ellsworth não conseguia se lembrar de ter conhecido uma única pessoa negra antes em toda a sua vida, então achou Oceola fascinante. E tão negra quanto ela própria era branca (Hughes, 1990, p. 106, tradução minha).[1]
Como se vê, o Harlem surge como um terreno exótico a ser explorado, recurso frequente na obra de Langston Hughes. A invasão ao desconhecido se dá, nesse ínterim, sob a lógica da fetichização que fascina. A pele negra de Oceola, assim como seu talento ao piano, satisfazem o imaginário de Dora Ellsworth, seduzindo-a para os mistérios do Harlem. Essa sedução, no entanto, não supera o estigma, visto que os estereótipos racistas de uma pretensa sofisticação fazem com que a investidora da jovem pianista, ao saber que ela mora com o namorado e o ajuda com dinheiro, queira tirá-la de sua região. Isso é demonstrado na conversa entre Ellsworth e Ormond Hunter, o crítico de arte que recomendara Oceola: “‘Eu tenho que tirar essa menina do Harlem’, disse Mrs. Ellsworth, ‘imediatamente. Eu acho que lá é ainda pior que Chinatown.’ \ ‘Ela deve mesmo ficar numa atmosfera mais artística’, concordou Ormond Hunter.”[2]
Adiante no conto, a viúva consegue convencer Oceola a sair do Harlem, enviando-a para estudar em Paris por dois anos. Como se sabe, a ida para a Europa, traço comum entre a juventude artística norte-americana da época de Langston Hughes, foi característica basilar de autores como Fitzgerald, Gertrude Stein e Ernest Hemingway. Cabe lembrar, por isso, que Hughes também teve essa experiência na juventude, embora de maneira absolutamente precária, com dinheiro limitado para quaisquer necessidades imediatas. Não é gratuita, como se percebe, então, a presença do deslocamento para Paris em seus contos.
Em Paris, Oceola Jones sente-se deslocada diante das conversas entre intelectuais do meio artístico, entende-se como outsider àquele universo. Afinal, para a jovem, a arte não tem o papel redentor que muitos atribuem, sendo incapaz de reverter as mazelas da segregação racial.
Se você quer tocar piano, pintar quadros ou escrever livros, vá em frente! Mas por que falar tanto sobre isso? Montparnasse era ainda pior que Village nesse aspecto. E o que dizer dos negros cultos falando que a arte acabaria com a segregação racial, que a arte poderia salvar a raça e impedir linchamentos! ‘Fala sério!’ disse Oceola (Hughes, 1990, p. 112-3, tradução minha).[3]
Quando o namorado de Oceola retorna à cena, ela decide se casar com o rapaz, o que desperta a indignação de Ellsworth: “Você poderia estremecer as estrelas com sua música, Oceola. (…) Mesmo assim, você prefere cavar sua própria cova. A arte é maior que o amor”.[4]
De volta ao Harlem após longo tempo e sucesso nos palcos da Europa, a pianista deseja voltar para as vivências com as quais estava habituada: “Eu tô separada do meu povo há muito tempo’, disse a menina, ‘Eu quero viver no meio deles de novo’.”[5]
Isso, porém, causa o desespero de sua investidora. Percebendo que seu projeto havia ruído, a rica viúva branca desiste do talento de Oceola e conclui a narrativa perturbada com os blues tocados no piano da jovem. Todo seu investimento havia sido pensado para formá-la com base no cânone europeu, na chamada música erudita. Incomodada pelo blues, Hughes constrói uma cisão a partir da mulher branca que se fascina com o charme do Harlem, mas não o aceita como manifestação cultural à altura de seu dinheiro.
A menina no piano ouviu a mulher branca dizer: ‘Foi para te ensinar isso que eu paguei milhares de dólares?’ \ ‘Não’, respondeu simplesmente Oceola. ‘Isso aqui já era meu… escuta! … Como é triste e alegre. Melancólico e feliz — é a risada e é o choro’ (Hughes, 1990, p. 122, tradução minha).[6]
Casar-se, portanto, coaduna-se à última cena em que, contrariando Ellsworth, Oceola abraça suas raízes, tocando blues. A jovem não se deixou colonizar, recusou o enquadramento a ela atribuído, desobedecendo a mulher branca que, a princípio com ótimas intenções, mostra-se no desejo de controlá-la. É nisto, em última instância, que se baseia a colonização: o controle de corpos, vontades e talentos. Como o escreve Fanon (1968, p. 32), ao pensar a relação entre colônia e cultura, “o colono só dá por findo seu trabalho de desancamento do colonizado quando este último reconhece em voz alta e inteligível a supremacia dos valores brancos”.
É importante citar, também, a fala de Oceola ao ser questionada sobre o que havia aprendido na Europa. “Isso é meu”, responde a menina, demonstrando sua recusa. Ainda que sua incentivadora tenha dedicado milhares de dólares para que a jovem se aperfeiçoasse no piano, estava fadada a não entender os seus blues, não poderia ensinar algo que não lhe pertencia. Do alto de seu apartamento em Nova York, Ellsworth não entende a contrastante relação de melancolia e felicidade da música negra, pois o Harlem continuaria sendo o misterioso terreno incógnito cujas ruas estreitas esconderiam o mistério do exotismo “selvagem”.
Dessa maneira, ainda caminhando pelas fascinantes ruas do Harlem, encontramos outro episódio de interesse para nossa discussão no conto “Rejuvenation through joy”. Nesse enredo, Langston Hughes discute um movimento de apropriação e mercantilização da negritude. Trata-se da história de Eugene Lesche, um palestrante motivacional interesseiro e caricato que ganha fortunas com suas falas sobre a felicidade. Tendo como cliente a elite de Nova York, após o sucesso de seu ciclo de palestras, o homem inicia um empreendimento chamado “Colony of Joy”, ou seja, uma “Colônia da Alegria”, ou, como preferimos traduzir aqui, uma “Colônia da Felicidade”.
Para realizar seu plano, no entanto, Lesche precisava de elementos que despertassem a genuína felicidade em seus clientes, o que só poderia ser feito através de um instinto que, para o personagem e seus fiéis seguidores, era “natural” e “primitivo”. Isto é, só seria possível vender a felicidade para a elite branca de Manhattan através da cultura negra:
O homem primitivo nunca se senta em cadeiras. Olha pros índios! Olha pros negros! (…) Eles vivem pelo movimento, pelo gingado, pela música, pela alegria! (Lembra daquela minha palestra, ‘Os negros e a felicidade’?) (Hughes, 1990, p. 71-2, tradução minha).[7]
Nessa perspectiva, tendo em vista que o conceito de apropriação cultural tem sido muitas vezes utilizado de forma irresponsável e precipitada, partimos das considerações do antropólogo Rodney William (2019). Segundo o pensador, esse fenômeno, para além da superficial discussão hoje presente nas redes sociais, reflete, na verdade, a vontade de consumir, por parte da elite, produtos “exóticos”. Afinal, o cerne dessa questão precisa, invariavelmente, passar por um aspecto de mercado, devido ao qual as culturas estigmatizadas são convertidas em produto e espetacularizadas por seu suposto exotismo rentável.
Na lógica do colonizador, uma vez expropriado de seu território, um povo perderia também a propriedade de sua cultura. O capitalismo representa a continuidade dessa lógica e muitas vezes se apropria dos elementos de uma cultura, produzindo-os em larga escala, comercializando e obtendo lucros extraordinários sem reverter absolutamente nada aos integrantes dessa cultura (William, 2019, p. 39).
Logo, caso decidamos manter esse debate no plano individual, o resultado será um círculo vicioso que nunca dará conta desse complexo fenômeno cultural, limitando-se a evidências anedóticas.
A rigor, a grande questão da apropriação não reside na prática de usar turbante, dreads, tranças, cocares ou qualquer outro elemento cultural, mas no fato de adotá-los sem a menor consciência de que seus significados estão para além da estética, ou seja, possuem um valor simbólico, seja religioso ou de crença, seja de status ou posição social, em suas respectivas comunidades. Evocam uma história de luta e resistência que merece consideração e respeito (William, 2019, p. 145).
É disso, portanto, que trata o conto de Langston Hughes, “Rejuvenation through joy”. Na narrativa é descrito esse exato processo, dado que Lesche acumula fortunas em sua colônia com decoração africana, cantores contratados do Harlem e “a melhor música, o jazz, o jazz primitivo de verdade, direto da África”.[8]
Não por coincidência, o personagem tem sua valiosa ideia ao voltar de uma temporada em Paris. Sendo assim, se para a juventude negra o retorno para a casa é atravessado tantas vezes pelo trauma, para Lesche, por sua vez, torna-se uma oportunidade de enriquecimento fácil.
Com o passar do tempo e o estrondoso sucesso de seu negócio, o protagonista passa a ser adorado por seus clientes como um líder espiritual, detentor da fórmula secreta para a verdadeira felicidade:
Quando eles terminaram, o movimento, a música e a voz de Lesche fizeram com que se sentissem todos calorosos e próximos da terra. Era como se nunca quisessem deixar a Colônia da Felicidade ou ficar longe de seu grande líder novamente (Hughes, 1990, p. 91, tradução minha).[9]
Estimulando a dependência de seus discípulos, os preços aumentam, assim como as filas de clientes implorando por uma dose da felicidade “primitiva” vendida por Lesche. A negritude, reproduzindo um princípio colonial, vira um produto a ser explorado e vendido: “um jeito garantido de ganhar dinheiro seria juntar uma banda de jazz com um retiro espiritual e deixar rolar assim – um ritmo negro e almas felizes”. [10]
Há, então, uma lógica de mercado denunciada por Langston Hughes, cuja ficção, tão fortemente atual, ajuda-nos a pensar no processo hoje comum de transformação de pautas sociais em produtos a serem comercializados em larga escala.
Junte-se a tudo isso as especificidades do capitalismo e da sociedade de consumo e não será difícil concluir que a manutenção da dominação e do lucro como demandas prioritárias revela como as questões econômicas, num mercado cada vez mais desumano, direcionam o mundo moderno (William, 2018, p. 37).
Sob outro prisma da mesma discussão, o livro The ways of white folks possui também o conto “A good job gone”, narrativa na qual Mr. Lloyd, um homem branco de muitas posses, conhece no Harlem uma jovem negra chamada Pauline. Encantado com a beleza da jovem, que de tudo diferia das mulheres brancas com as quais estava acostumado a se relacionar, o homem fica patologicamente fascinado por ela, perseguindo-a quando Pauline revela não estar mais interessada em tê-lo por perto.
Nesse enredo, a figuração do Harlem surge como a terra negra por excelência, cujo mistério exótico e sensual atrai o homem branco. É interessante perceber, então, que o ficcionista reconstrói aqui a balança colonial, representada, dessa vez, pelo explorador branco que, na tentativa de desbravar o Harlem, não aceita a rejeição.
‘Esse branco desgraçado!’, ela disse. ‘Só porque te pagam, ficam achando que são teu dono. Nenhum homem branco vai ficar mandando em mim não. Eu dou umas risadas com eles, aí já acham que eu tô gostando. Que inferno, eu sou lá do Arkansas, lá esses caras fazem linchamento dos pretos no meio da rua. Como é que eu vou gostar desse povo? (Hughes, 1990, p. 65, tradução minha).[11]
No excerto selecionado, chama a atenção a relação de posse que Mr. Lloyd tenta exercer sobre Pauline, a qual, ousadamente, recusa seu domínio. Surge também a questão dos linchamentos na fala da personagem, realidade que, como já mencionamos, é recorrente na ficção de Langston Hughes. Ao final da narrativa, após perseguir Pauline pelas ruas do Harlem e não conseguir encontrá-la, Mr. Lloyd torna-se o colonizador branco que não suporta a derrota. Isso se materializa no conto pela insanidade que o acomete. Sem ter a mulher negra para si e desconhecendo por completo seu paradeiro, o rico homem branco de Nova York perde suas faculdades mentais diante da recusa de Pauline.
O chauffeur me disse ontem que ele surtou de vez. Às vezes, acha que é um garanhão perseguindo uma égua, às vezes vira um leão. Coitado, preso numa daquelas celas acolchoadas! Ele era um cara maneiro quando estava com a cabeça no lugar (Hughes, 1990, p. 68, tradução minha).[12]
Utilizando a terminologia de Judith Butler, esse enquadramento de um certo exotismo negro é, portanto, ponto fundamental na investigação dos contos de Langston Hughes. Por conseguinte, eis um ângulo na composição dos corpos negros: o discurso colonialmente tecido no projeto de desumanização da negritude. Assim, este breve estudo da narrativa do autor norte-americano nos ajuda a desvelar as camadas complexas que o racismo possui, uma vez que ainda está enraizado entre nós como linguagem.
Com Frantz Fanon, nesse sentido, aprendemos a ver além das máscaras brancas em uma cisão colonial que ainda nos circunda. Com Aimé Césaire, entendemos do que se trata a Negritude em sua violenta construção discursiva. Presentemente, com Grada Kilomba, Achille Mbembe e nossos contemporâneos, aprendemos que ainda há muito pela frente se pretendemos vislumbrar uma sociedade mais democrática e menos racista. Indubitavelmente, então, com a união de todas essas vozes, enxergamos no blues de Langston Hughes e nas coloridas paredes do Harlem uma fantasia da qual não nos livramos e contra a qual faz-se necessário se posicionar.
Por fim, delineando um desfecho deste percurso que aqui cogitamos entre corpos, linguagens e vivências, deixamos nossa saudosa lembrança a Chadwick Boseman (1976-2020), ator que, dentre seus diversos importantes papéis, deu a milhões de crianças negras ao redor do mundo a possibilidade de incorporarem o heroísmo de que nossa geração tem estado profundamente necessitada. Boseman foi o famoso Pantera Negra nas telas, ecoando o lema “Wakanda forever” para todos que entendem a linguagem como um campo de batalha necessário. Langston Hughes não conheceu Wakanda, mas criou em sua obra uma atemporal resistência para vozes até hoje atravessadas pela violência do estereótipo, do enquadramento e do reducionismo.
Hughes nos deixou em 1967 vítima de um câncer. Boseman, com a coincidência trágica que por vezes a vida toma de empréstimo da ficção, partiu em 2020 também vítima de câncer. Ambos, todavia, nos ensinam que a morte pode ser contornada pela potência da linguagem. É dever das vozes que ficam manter viva a memória dos que entre nós já não mais estão. Seja no Harlem, seja em Wakanda, sonhar é preciso.
Foram necessários cinco séculos para que chegássemos até aqui. Que seja a nossa, portanto, uma geração de alforriados.
* Gabriel Chagas é doutorando em Literatura Comparada na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É professor da educação básica e tem mestrado em Letras pela mesma instituição. Em 2020, publicou o artigo “Eu também sou América: pensando a consciência racial norte-americana a partir de Langston Hughes e Walt Whitman”, na Revista Garrafa (UFRJ).
Referências
BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.
CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre a Negritude. Belo Horizonte: Nandyala, 2010.
FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.
GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984, p. 223-244.
HUGHES, Langston. The ways of white folks. Nova York: Vintage classics edition, 1990.
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Lisboa: Antígona editores refractários, 2014.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Nem preto nem branco, muito pelo contrário: cor e raça na sociabilidade brasileira. São Paulo: Claro Enigma, 2012.
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Tradução: Sandra Regina Goulart Almeida, Marcos Pereira Feitosa, André Pereira Feitosa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
WILLIAM, Rodney. Apropriação cultural. São Paulo: Pólen, 2019.
Notas
[1] “She made a mental note that she must go up there [Harlem] sometime, for she had never yet seen that dark section of New York; and now that she had a Negro protegee, she really ought to know something about it. Mrs. Ellsworth couldn’t recall ever having known a single Negro before in her whole life, so she found Oceola fascinating. And just as black as she herself was white” (Hughes, 1990, p. 106).
[2] “I must get her out of Harlem,’ said Mrs. Ellsworth, ‘at once. I believe it’s worse than Chinatown.’ \ ‘She might be in a more artistic atmosphere,’ agreed Ormond Hunter.” (Hughes, 1990, p. 107-8).
[3] “If you wanted to play the piano or paint pictures or write books, go ahead! But why talk so much about it? Montparnasse was worse in that respect than the Village. And as for the cultured Negroes who were always saying art would break down color lines, art could save the race and prevent lynchings! ‘Bunk!’ said Oceola.” (Hughes, 1990, p. 112-3).
[4] “You could shake the stars with your music, Oceola. (…) And yet you propose to dig a grave for yourself. Art is bigger than love.” (Hughes, 1990, p. 121).
[5] “I’ve been away from my own people so long,’ said the girl, ‘I want to live right in the middle of them again” (Hughes, 1990, p. 118).
[6] “The girl at the piano heard the white woman saying, ‘Is this what I spent thousands of dollars to teach you?’ \ ‘No’, said Oceola simply. ‘This is mine. … Listen! … How sad and gay it is. Blue and happy — laughing and crying’.” (Hughes, 1990, p. 122).
[7] “Primitive man never sits in chairs. Look at the Indians! Look at the Negroes! (…) They live through motion, through movement, through music, through joy! (Remember my lecture, ‘Negros and Joy?’)” (Hughes, 1990, p. 71-2).
[8] “the best music, jazz, real primitive jazz out of Africa” (Hughes, 1990, p. 84).
[9] “When they had finished, the movement, the music, and Lesche’s voice, made them feel all warm and close to the earth, and as though they never wanted to leave the Colony of Joy or to be away from their great leader again.” (Hughes, 1990, p. 91).
[10] “a sure way to make money would be, combine jazz band and a soul colony, and let it roll from there – black rhythm and happy souls.” (Hughes, 1990, p. 80).
[11] “A white bastard!” she said. “Just because they pay you, they always think they own you. No white man’s gonna own me. I laugh with ‘em and they think I like ‘em. Hell, I’m from Arkansas where the crackers lynch niggers in the streets. How could I like ‘em?”. (Hughes, 1990, p. 65).
[12] “The chauffeur told me yesterday he’s crazy as a loon now. Sometimes he thinks he’s a stud-horse chasing a mare. Sometimes he’s a lion. Poor man, in a padded cell! He was a swell guy when he had his right mind.” (Hughes, 1990, p. 68).