Escrevi a tese de doutoramento Pirilampo das africanidades: políticas públicas para o livro, leitura, literatura e bibliotecas no Brasil (governo federal 2013-2015) durante os meses pandêmicos de janeiro a março de 2021. Uma experiência traumatizante, como o doutorado costuma ser para muita gente.
Mas o que, exatamente, me mortificou? O prazo, o acossamento do prazo que os colegiados praticam com estudantes. A meu ver, trata-se de um ritual hierárquico e de prazer masoquista, do tipo “vamos jogá-las na fogueira e elas se viram”, ou, “vamos jogar no fogo e observar como se viram”. Algo insano, desumano e de mão única, porque, a qualquer problema do orientador ou da banca, o prazo pode ser dilatado com tranquilidade, a despeito de atrapalhar a pontuação do departamento nos órgãos de fiscalização de desempenho acadêmico. Durante o processo, amigos me contaram de prorrogações sucessivas de até seis meses contabilizadas da data da entrega feita pelo estudante até o momento da defesa devido a questões da banca, todas aceitáveis e compreensíveis, por suposto.
O garrote do tempo pandêmico impunha perguntas dilacerantes: E se eu adoecesse? Teria paz para me cuidar ou essa pressão desesperadora baixaria de vez minha imunidade e me levaria à morte em menos tempo? E as pessoas que dependiam de mim? Mesmo sem gerar renda durante aqueles meses dedicados à tese, eu precisava continuar depositando o dinheiro delas. E se mais alguém da família fosse intubado? E se outros amigos morressem? E se eu pirasse com tudo aquilo e tivesse um bloqueio na escrita, se não conseguisse produzir o número diário de páginas ao qual havia me determinado? Cheguei a conversar sobre essas questões com o orientador e apresentei exemplos de pessoas amigas matriculadas em outras universidades que conseguiram prorrogações a perder de vista. Ele, de maneira serena, parceira e cautelosa, desfiou exemplos de jubilamento muito próximos, experimentados por orientandos de orientadores famosos e respeitados.
Eu não me permiti pôr em risco tantas estações da minha vida investidas no processo e obedeci ao garrote do tempo do colegiado do departamento em que estudava. Concluí a tese, mandei para a revisão e depois a entreguei ao orientador no período exigido. É lógico que a defesa não aconteceu na primeira data prevista, só um mês depois.
Por essas e outras não tive qualquer alegria com esse trabalho e sequer ao concluí-lo, nem mesmo alívio. Foi mais uma coisa do rol das coisas que são feitas porque precisavam sê-lo.
Como agora é o momento de capitalizar a tese e o título acadêmico, conto a vocês que a tese tem o “formato novo” que Eduardo Oliveira, meu orientador, me desafiava a criar durante as reuniões de orientação. Eu respondia com silêncios reticentes de desesperança e descrédito. Ele sugeria coisas, a escrita de um romance sobre o tema de pesquisa, por exemplo, e olhava nos meus olhos buscando respostas. Eu evadia. Em algumas de nossas conversas cheguei a dizer que queria mesmo fazer um trabalho convencional, que a criatividade eu exercitava na minha produção literária. Na verdade, temia desgastes previsíveis e desnecessários. Fiquei surpresa quando, no exame de qualificação, ele voltou ao tema de maneira muito suave, e continuou a fazê-lo nas duas derradeiras reuniões de orientação.
Eis que um dia, acordei com a ideia de escrever a tese em formato de cartas, dirigidas ao orientador, à banca de avaliação, ao DMMDC (Doutorado Multi-Institucional e Multidisciplinar em Difusão do Conhecimento, da Universidade Federal da Bahia), às pessoas que formulam e fazem a gestão das políticas públicas do setor do livro, leitura, literatura e bibliotecas no Brasil, e ao público leitor. Cartas que tiveram notas de rodapé, referências bibliográficas e, acima de tudo, um caminho argumentativo que produziu sínteses narrativas, aspecto para o qual Eduardo Oliveira chamava a atenção de todos os seus orientandos rumo à modelagem de uma boa tese.
É um trecho dessas cartas, a de número 03 – “Uma pesquisadora encarnada e as memórias que a conectam ao seu tema de pesquisa: africanidades nas políticas públicas para o livro, leitura, literatura e bibliotecas (PPLLLB) – governo federal (2013-2015)”, que trago para este ensaio, no espírito de destacar o que fiz de mais importante e realmente significativo durante o período do doutorado, meus livros.
Conto-lhes, prezadas leitoras e leitores, que ouvi recorrentemente duas perguntas em eventos literários durante os anos do doutoramento: 1) Como a escritora se adaptou à escrita acadêmica?, e 2) A escrita acadêmica atrapalhou a escritora?
À primeira pergunta, costumava responder assim: Durante o tempo do doutoramento escrevi quatro artigos e os submeti a revistas acadêmicas. Dois foram aceitos e publicados e dois foram rejeitados. Quando recebi a avaliação das negativas, concordei completamente. Se fosse eu a avaliar os textos, também os desaprovaria.
Quanto à segunda contestação, o processo do doutorado como um todo não chegou a atrapalhar a escritora de maneira substancial. Eu o comecei com a determinação de que cumprir componentes curriculares e pesquisar um tema não obstaria minha carreira literária. De maneira colateral, eu pretendia também contribuir para impulsionar a produção discente do DMMDC, em resposta a conversas tidas com meu orientador sobre essa expectativa em relação a certos perfis, como o meu. Tenho certeza de tê-lo feito e tenho imensa alegria em documentar, no Currículo Lattes do período 2015-2020, diversas palestras, entrevistas, artigos, produção de material multimídia, cursos, oficinas, publicações no exterior (Alemanha, EUA, Espanha (Catalunha), Itália, França), centenas de crônicas publicadas na imprensa eletrônica e, até mesmo, uma coleção de roupas[1] inspirada em livro escrito por mim.
A maior alegria, entretanto, foi ter publicado 11 livros (8 inéditos e 3 reedições) no período do doutoramento (2015-2020). Estes foram os títulos:
- Sobre-viventes! (crônicas. Pallas, 2016. Esgotado).
- Canções de amor e dengo (Poemas. Me Parió Revolução, 2016. Esgotado).
- # Parem de nos matar! (Crônicas. Ijumaa, 2016. Esgotado).
- O homem azul do deserto (Crônicas. Malê, 2018).
- Um Exu em Nova York (Contos. Pallas, 2018).
- Exuzilhar: melhores crônicas de Cidinha da Silva (Crônicas. Kuanza Produções, 2019).
- Pra começar: melhores crônicas de Cidinha da Silva, vol.2 (Crônicas. Kuanza Produções, 2019).
- Kuami (romance infantil. Jandaíra, 2ª edição, 2019).
- # Parem de nos matar! (Crônicas. Jandaíra; Kuanza Produções, 2ª edição, 2019).
- Oh, margem! Reinventa os rios! (Crônicas. Oficina Raquel, 2ª edição, 2020).
- Movimento de Mulheres Negras e Feminismo Negro no Brasil: uma memória (Ensaio. n-1, 2020).
Tenho também me empenhado em construir uma história editorial da escritora negra que sou. Ou seja, me interessa documentar todos os meus passos, processos, aprendizados, conquistas e estratégias para existir de maneira vitoriosa no mercado. Este é um dos principais legados que intento deixar para as novas gerações; a documentação da minha carreira literária[2]. Seguindo esse espírito, também registro nesta carta e nesse espaço tão importante, as tiragens dos meus 19 livros publicados que perfazem 227,2 mil cópias em circulação. Saliento que alguns livros têm recebido novas edições por editoras diferentes, nesses casos, a última editora mencionada é a que detém os direitos patrimoniais nesse momento.
Título | Gênero | Editora | Ano 1ª edição | Número de edições | Número de reimpressões | Número de copias |
Ações afirmativas em Educação: experiências brasileiras | ensaio | Summus (SP) | 2003 | 01 | 02 | 6.000 |
Cada tridente em seu lugar | crônicas | Mazza Edições (MG) | 2006 | 01 | 03 | 4.000 |
Você me deixe, viu? Eu vou bater meu tambor! | crônicas | Mazza Edições (MG) | 2008 | 01 | —— | 1.000 (ESGOTADO) |
Os nove pentes d’África (PNLD Literário 2020) | novela | Mazza Edições (MG) | 2009 | 01 | 07 | 17.548 (varejo)
+156.678 (PNLD) |
O mar de Manu | Conto para crianças | Kuanza Produções (SP) | 2011 | 01 | —– | 2.000 |
Kuami | Romance para crianças | Nandyala(MG) / Jandaíra (SP) | 2011 | 02 | 01 | 4.000 |
Oh, margem! Reinventa os rios! | crônicas | Selo Povo (SP) / Oficina Raquel (RJ) | 2011 | 02 | —— | 2.000 |
Racismo no Brasil e afetos correlatos | crônicas | Conversê (RS) | 2013 | 01 | ____ | 1.000 (ESGOTADO) |
Baú de miudezas, sol e chuva | crônicas | Mazza Edições | 2014 | 01 | 01 | 2.000 |
Africanidades e relações raciais: Insumos para Políticas Públicas na área do Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas no Brasil | ensaios | Fundação Cultural Palmares (DF) | 2014 | 01 | —— | 1.800 (ESGOTADO) |
Sobre-viventes! | crônicas | Pallas (RJ) | 2016 | 02 | 01 | 5.000 |
Canções de amor e dengo | poemas | Me Parió Revolução (SP) | 2016 | 01 | —– | 1.000 (ESGOTADO) |
# Parem de nos matar! | crônicas | Ijumaa (SP) / Kuanza Produções / SP e Jandaíra (SP) | 2016 | 02 | 03 | 9.328 |
O homem azul do deserto | crônicas | Malê (RJ) | 2018 | 01 | 01 | 3.000 |
Um Exu em Nova York (Prêmio Biblioteca Nacional, 2019) | contos | Pallas (RJ) | 2018 | 01 | 02 | 6.500 |
Exuzilhar – melhores crônicas de Cidinha da Silva, vol.1 | crônicas | Kuanza Produções (SP) | 2019 | 01 | —– | 2.000 |
Pra Começar – melhores crônicas de Cidinha da Silva, vol.2 | crônicas | Kuanza Produções (SP) | 2019 | 01 | —– | 1.000 |
O teatro negro de Cidinha da Silva | dramaturgia | Aquilombô (MG) | 2019 | 01 | —– | 500 |
Movimento de Mulheres Negras e Feminismo Negro no Brasil: uma memória | ensaio | N-1 (SP) | 2020 | 01 | —— | 1.000 |
Total | 10 cronicas; 01 poemas; 03 ensaios; 01 romance; 01 dramaturgia; 01 novela; 02 contos | 13 editoras | 227.264 |
Um detalhe importante é que alcancei esses números raros mesmo publicando por editoras pequenas e médias, as chamadas editoras independentes[3]. Ainda não tenho publicações nos conglomerados editoriais regidos por capital internacional ou em editoras grandes de capital nacional[4].
Outro destaque são os 156.678 exemplares de Os nove pentes d’África, adquiridos pelo FNDE – Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, via política pública de formação de acervo nas escolas públicas brasileiras, o PNLD Literário, Programa Nacional do Livro e do Material Didático, edição 2020. Trata-se de ter uma obra selecionada por um dos maiores programas de distribuição de livros do mundo. Isso abre muitas portas e potencializa as vendas governamentais nos níveis estadual e municipal principalmente, pois o selo PNLD é uma chancela significativa para as secretarias de educação de cidades de menor porte.
Isso faz crescer a importância da autora no cenário editorial, em âmbito interno das editoras pelas quais ela publica. A Mazza Edições, por exemplo, levou 13 anos para tomar a decisão de inscrever um livro meu (tenho três títulos publicados pela editora) no PNLD. Quando finalmente o fez, a equipe estimou que o livro venderia entre 80 mil e 100 mil cópias. Eu estimei 200 mil cópias e trabalhei para atingir essa meta. Ficamos em 156.678 exemplares. Mas nem mesmo diante desse resultado, que causou surpresa, a editora decidiu inscrever outro de meus livros publicados por ela no PNLD 2021 dedicado ao ensino médio, para o qual meus outros títulos seriam totalmente adequados.
Inscrever um livro no PNLD implica uma complexa tarefa. É exigido um imenso e detalhado material de apoio, que inclui vídeos, manual do professor, versões para pessoas cegas ou com baixa visão e versões em audiovisual, ou seja, uma configuração de suporte técnico-didático que será escrutinada por um pequeno exército de avaliadoras e avaliadores, recrutados nas melhores universidades brasileiras.
Caso os livros inscritos sejam aprovados, passam a compor uma lista de livre escolha a ser enviada a todas as escolas brasileiras inscritas no FNDE. As escolas definirão internamente como escolherão os livros. Nesse processo, vemos de tudo: escolas que perdem o prazo de escolha; escolas que têm processos intensos e participativos de discussão entre professores; escolas que deixam a escolha nas mãos de um pequeno grupo de docentes ou mesmo de um indivíduo. Houve dois ou três docentes que me disseram: “escolhi seu livro, qual outro título você indica”?
* Cidinha da Silva (MG) publicou 19 livros, que contam com 227,2 mil exemplares em circulação, entre eles: Um Exu em Nova York (Prêmio Biblioteca Nacional, 2019) Os nove pentes d’África (PNLD Literário 2020) e # Parem de nos matar!. Organizou duas obras fundamentais para o pensamento sobre as relações raciais contemporâneas no Brasil, Ações Afirmativas em Educação: experiências brasileiras (2003) e Africanidades e Relações Raciais: insumos para políticas públicas na área do livro, leitura, literatura e bibliotecas no Brasil (2014). Tem publicações em alemão, catalão, espanhol, francês, inglês e italiano. É curadora de Almanaque Exuzilhar (Youtube), conselheira da Casa Sueli Carneiro e doutora em Difusão do Conhecimento.
Notas
[1] Refiro-me à Coleção De amor e dengo, roupas criadas e confeccionadas pelo designer de vestuário Renato Carneiro, inspirada no meu livro de poemas, Canções de amor e dengo (2016).
[2] Distingo carreira literária de projeto literário, mas avalio que os dois são fundamentais e complementares. O projeto literário abriga meu propósito como escritora, minha ética e opções estéticas, minha memória, referências, temas, ferramentas de trabalho com a língua. A carreira é a roupagem organizada e profissional que adoto para consolidar o projeto literário, para alcançar metas e objetivos e grafar meu nome no mercado editorial e na historiografia literária do país.
[3] O tamanho das editoras pode ser mensurado em termos de faturamento, dimensões e qualidade do catálogo, número de títulos lançados por ano e número de exemplares produzidos, resguardando-se as diferenças de tamanho dos mercados editoriais, por exemplo, o que é considerado uma pequena editora num país como a França que tem largo e consolidado mercado editorial, pode ser uma editora média no Brasil que tem um mercado editorial menos robusto. Se você tiver interesse em conhecer pequenas editoras negras e periféricas brasileiras pode assistir ao conjunto de entrevistas que realizei no programa-web Almanaque Exuzilhar, especialmente a 9ª edição https://www.youtube.com/watch?v=x7M-DaNvVeo, na qual entrevistei as editoras Oralituras, Selin Trovoar, Marginália, Figura de Linguagem e Arolê Cultural, e a 12ª edição, na qual converso com a poeta e editora tatiana nascimento sobre a Padê Editorial, entre outros temas https://www.youtube.com/watch?v=PQpbkHZvFL8 .
[4] Tenho dois contratos assinados com a Autêntica, uma das mais consistentes e prolíficas editoras brasileiras de capital exclusivamente nacional, mas os livros ainda não saíram, as tiragens desses livros pactuados não estão contempladas nessa tabela, o que aumenta ainda mais a importância desses números.