As recentes imagens da Cinemateca Brasileira em chamas em São Paulo nos remetem a todas as vezes em que instituições culturais desapareceram nas cinzas no Brasil – o Museu Nacional em 2018, o Museu da Língua Portuguesa em 2015 –, como se algum prenúncio estivesse sendo dado para os terríveis acontecimentos políticos que se desenrolaram no Brasil desde então. Em novembro de 2017 chamas também foram acesas contra a cultura e o conhecimento no nosso país quando a teórica lésbica Judith Butler veio ao Brasil para ministrar uma conferência no Sesc Pompeia durante o evento “Os Fins da Democracia”. Na época, grupos contrários à vinda de Butler ao país organizaram abaixo-assinados e uma manifestação em frente à instituição. Os revoltosos portavam bandeiras do Brasil, cartazes contra Lula, FHC, a ONU, as “ideologias de gênero”, cartazes com a inscrição “– Butler + Família” e “Menino nasce Menino”; mas a protagonista do ato era uma grande boneca vestida de bruxa com o rosto da filósofa colado, portando um grande chapéu pontudo, vestindo um soutien rosa por cima do vestido preto e uma capa rosa. A boneca foi incendiada aos gritos de “FORA BUTLER”; e urravam contra a retirada da inocência das crianças que seria provocada por uma suposta “ideologia de gênero”. Uma imagem ficou muito marcada, remetendo-nos às fogueiras da inquisição: a boneca representando a sapatão filósofa pegando fogo e uma mão segurando um crucifixo apontada para o rosto de Butler em chamas.
O fogo serve à dinâmica cisheteropatriarcal e branca como símbolo e instrumento da supressão de corpos inadaptáveis e dissidentes: como os corpos das mulheres insubmissas, donas de seus saberes e de seus corpos, suprimidos pela Santa Inquisição; a queima de livros do instituto do sexologista alemão Magnus Hirschfeld (que havia construído tolerância e comunidade para pessoas LGBT no contexto da República de Weimar) por soldados nazistas; a marcação de animais explorados com emblemas do poder; a expropriação de terras indígenas; o incêndio das nossas florestas e biomas; e a destruição de um mundo onde a vida pulsa em todas as suas múltiplas, potentes e belas manifestações.
Mas nossos corpos ardem. Arder é um sinal de que podemos deter o saber do fogo como forma de constituição subjetiva insubmissa. Pegar o fogo com as mãos. Fogo na buceta. Fogo no cu. Quais os caminhos percorridos pelo fogo em nossos corpos? Quais usos fazemos do fogo como práticas de liberação e de afirmação da vida? Afinal, sem fogo não há vida. E nós sabemos dessa máxima e nos apropriamos dessa máxima.
Neste artigo, pretendo elaborar uma reflexão acerca das piropoéticas do fogo a partir de dois acontecimentos político-culturais protagonizados por mulheres lésbicas: as ações públicas e performáticas do grupo de ação política direta estadunidense The Lesbian Avengers, que atuou no país nos anos 1990, retratadas no filme Lesbian Avengers Eat Fire Too (1993), de Sue Friedrich, e o filme Retrato de uma Jovem em Chamas (2019), da diretora francesa Céline Sciamma. Como é possível pensar poeticamente e politicamente o fogo a partir de suas (re)apropriações por lésbicas artistas e ativistas? O que o corpo lésbico e o pensamento lésbico podem queimar? De que nos servem estrategicamente as chamas do fogo? São perguntas que encetam caminhos ao pensamento, e não respostas definitivas.
1. Lésbicas que comem fogo
Um grupo de seis mulheres resolveram se reunir certo dia em Nova York, nos Estados Unidos, por partilharem um incômodo por conta de certa ausência e invisibilização de questões lésbicas no ativismo em torno da questão do HIV/AIDS – que naquele momento era uma grave pandemia global – e no próprio ativismo homossexual. A partir desse encontro foi criado o Lesbian Avengers, um grupo de ação direta focado na visibilidade e sobrevivência lésbica. O grupo, como consta no “About” de seu site, planejava suas ações para causar “um impacto visual e tinha comitês de mídia dedicados à divulgação e ‘propaganda’. The Lesbian Avenger Handbook [O manual das Lesbian Avengers] oferecia um guia passo a passo sobre como atrair a atenção da imprensa, da grande mídia e da mídia lésbica e gay, incluindo até exemplos de comunicados à imprensa”.[1]
O nome “Lesbian Avengers” [Vingadoras Lésbicas] é uma clara referência e uma mistura de reversão e deboche ao grupo de super-heróis The Avengers [no Brasil, Os Vingadores]. O quadrinho foi criado em 1963 por Stan Lee, Jack Kirby e Dick Ayers para a editora Marvel Comics, com o objetivo de fazer concorrência com a DC Comics, que havia lançado a sua Liga da Justiça em 1960. Os Avengers originais eram uma equipe ou uma espécie de clube que tinha como objetivo “combater vilões que nenhum herói conseguiria combater sozinho”, juntando, para isso, o Homem de Ferro, Hulk, Homem-Formiga, Vespa e, em sua quarta edição, um novo membro, o Capitão América. O grupo foi recrutado a serviço do governo dos Estados Unidos para combater forças cósmicas malignas – um grupo de homens brancos (um deles às vezes verde) e uma mulher-inseto, cumprindo a cota da mulher sexy, salvando o mundo do mal.
Para o governo e a sociedade norte-americana dos anos 1990, gays personificavam o mal, por serem vistos como propagadores de desvios morais e de uma doença mortal e até então sem cura, e as lésbicas eram colocadas em um certo “ponto cego”[2] da discursividade na estrutura heteronormativa de organização do mundo ocidental. A superinvisbilidade funciona como um superpoder para as Vingadoras Lésbicas, já que de onde menos se espera surge a revolta, a insurgência e a rebelião – um grupo que combate os vilões do cisheteropatriarcado que nunca poderiam ser combatidos por uma lésbica sozinha.
No início do documentário Lesbian Avengers Eat Fire Too (1993), dirigido por Sue Friedrich, vemos os registros em vídeo de uma das primeiras ações públicas do grupo em Nova York, em setembro de 1992. As ativistas estão reunidas perto do Queens. O quadro escolar do 24º distrito havia rejeitado um currículo multicultural que estava sendo aplicado na época, justamente porque o currículo continha tópicos em que seriam apresentadas as identidades de gênero e orientações sexuais múltiplas presentes na sociedade. Usando instrumentos de sopro e percussão, saem em marcha tocando uma “polca lésbica” com uma enorme faixa rosa onde está escrito “TEACH ABOUT LESBIANS” [ensinem sobre lésbicas], e com balões da mesma cor com a inscrição “Ask About Lesbian Lives” [perguntem sobre vidas lésbicas], que levam para distribuir às crianças da escola. Ao chegarem à porta da escola, os pais desviam da banda e das manifestantes e retiram raivosos os balões das mãos dos pequenos, que os pegam com entusiasmo da mão das ativistas. Podemos observar de cara que as estratégias de luta dessas vingadoras são bastante distintas da força física e dos superpoderes dos super-heróis tradicionais.
Em 1992, um homem gay branco e uma mulher lésbica negra sofreram um ataque de skinheads no estado do Oregon, nos Estados Unidos. Os skinheads tacaram coquetéis molotov na casa deles, que pegou fogo, e os dois foram queimados vivos. O Lesbian Avengers havia surgido, conforme já mencionado, nesse mesmo ano, e a ideia da criação tem sido creditada à cubana Ana Simo, que crescera na França e havia participado dos eventos de Maio de 68.[3] Ana Simo estava revoltada com as políticas conservadoras que dizimaram os grupos de resistência nascidos nos anos 1960 no EUA, e os anos 1990 estavam muito violentos sobretudo para lésbicas, mulheres e pessoas não brancas.
O Lesbian Avengers prontamente organizou uma marcha que visibilizasse o incêndio e o assassinato de Hattie Mae Cohens e de Brian Mock. Essa marcha também está retratada no documentário Lesbian Avengers Eat Fire Too. Segundo consta no site do Killer Queens Podcast:
Em 26 de setembro de 1992 em Salem, Oregon, Hattie Mae Cohens e Brian Mock estavam em seu apartamento com seus amigos. A maioria das pessoas no apartamento estava dormindo quando duas bombas incendiárias entraram pela janela. Essas eram bombas rudimentares feitas de garrafas cheias de gasolina e acesas. Todos os amigos escaparam do apartamento em chamas, mas não Hattie Mae e Brian. Eles morreram queimados no apartamento do porão que chamavam de casa.
Hattie Mae era uma afro-americana de 29 anos que se identificava como lésbica.
Brian era um homem branco de 45 anos, supostamente deficiente, que se identificava como gay.[4]
O documentário nos mostra cenas das ativistas marchando em protesto contra a brutalidade do assassinato de Cohens e Mock e contra o silenciamento midiático e social em torno do caso. As Lesbian Avengers carregavam tochas feitas com galhos de árvore grosseiras, partindo da região do Greenwich Village, e como ponto final da caminhada um memorial que haviam construído como forma de manifestação pública do luto. O caminho até o memorial foi tumultuado. As ativistas enfrentaram violência policial, além de muitos policiais que tentavam dispersar a manifestação e tomar-lhes as tochas e seus cartazes à força.
Ao chegarem ao ponto final da marcha, elas leram um manifesto que dizia coisas como:
Nós do Lesbian Avengers construímos esse memorial. Isso representa o nosso medo. Isso representa o nosso luto. Isso representa a nossa raiva. E isso consagra nossa intenção de viver plenamente. Assim como somos. Onde quer que estejamos. Nós tomamos o fogo da ação em nossos corações. [enquanto acendiam uma pequena tocha] E nós o colocamos em nossos corpos. E nós estamos aqui e agora. Para que isso seja conhecido, estamos aqui. E aqui nós vamos ficar. Nosso medo não nos consome. O fogo deles não irá nos consumir. [uma sapatão abaixa e embebeda sua tocha com querosene – a sapatão que lia o manifesto acende ambas as tochas com a boca. O fogo vai sendo transmitido e reproduzido de tocha em tocha, cada uma acende a tocha da outra com a boca e então todes engolem o fogo de suas tochas].
A ativista negra e lésbica Marlene Colmbun narra os acontecimentos:
Nós decidimos erigir um memorial para eles. Na semana do Halloween. Que era uma semana péssima em relação à violência gay e lésbica em NY. E nós pensamos: “Bem, nós vamos ficar aqui.” E nós passamos a semana ali. E isso foi uma nova experiência para a maioria de nós. Nós superamos o medo que tínhamos de confrontar o desconhecido. De passar a semana na rua. A maioria de nós superou esse medo. Apesar de cada ação que fazemos ser carregada de preocupação e perigo. Nós sempre tratamos de superar isso. E nos sentimos mais felizes e fortes por isso.
O Lesbian Avengers foi o grupo responsável por organizar, em 1993, a primeira Dyke March dos Estados Unidos. Como protesto contra a invisibilidade lésbica da “Parada Gay” que aconteceria no dia seguinte, elas conseguiram recrutar 20 mil lésbicas para marcharem até a frente da Casa Branca. Elas formaram um paredão de sapatões na frente do paredão de seguranças da casa presidencial e COMERAM FOGO novamente. Os registros desse evento se tornaram as imagens mais emblemáticas do grupo. Comer fogo acabou se tornando um símbolo do coletivo e o seu grito de guerra se consagrou: “O fogo deles não vai nos consumir. Nós tomamos esse fogo e o tornamos nosso”.
Em A psicanálise do fogo (1994), Gaston Bachelard descreve os mecanismos de descobertas do fogo pela humanidade. O medo do fogo produzido por raios, as árvores das florestas pegando fogo, até o clímax, em que o homem põe uma madeira contra o buraco de outra madeira e, friccionando, produz a faísca necessária para que a chama surja entre as folhagens secas. O fogo seria, então, filho da madeira – “mas antes de ser filho da madeira, o fogo é filho do homem” (Bachelard, 1994, p. 39). Bachelard faz então uma longa associação fálica do surgimento do fogo: o pau que entra na fenda e por fricção produz o fogo passa a ser visto portador de um erotismo falocêntrico pelo imaginário psicanalítico do fogo produzido pelo autor. Para as lésbicas, a fricção é de outra ordem, é da ordem do “corpos atritáveis” (Azevedo, 2020), é da ordem da desobediência. As vingadoras lésbicas roubam o fogo dos homens.
Bachelard aponta como em diversos mitos, de diversas sociedades, assim como no mito de Prometeu, o segredo do fogo é roubado por um homem, um pássaro, ou algum outro pequeno animal. No entanto, em outros mitos menos conhecidos, são as mulheres que descobrem a arte e o poder do fogo: “em outras ocasiões, mulheres se batem: ‘ao final, uma das mulheres quebrou seu bastão de combate e dele imediatamente saiu fogo’” (Bachelard, 1994, p. 33). “O fogo é também produzido por uma velha, que ‘sacia sua raiva arrancando dois pedaços de pau e esfregando-os violentamente um contra o outro. Várias vezes a criação do fogo se associa a uma violência similar. O fogo é o fenômeno objetivo de uma raiva íntima, de uma mão que se enerva” (idem, p. 55).
A teórica Ann Cvetkovich (2003), analisando a performance da banda punk Tribe 8 no Michigan Womyn’s Music Festival em 1994, evento acusado de ativar gatilhos de traumas sexuais das espectadoras por cortarem um dildo em uma performance barulhenta de rock, observa que as “reações tradicionais de minorias sexuais ao trauma são o fetiche e a fantasia” e ainda que “as possibilidades subversivas de repetição com uma diferença, que foram valorizadas nas discussões de butch-femme, drag e outras práticas culturais queer, portanto, fornecem a base para rituais de cura e performances”. Os aspectos negativos do trauma, nessas práticas culturais, são acolhidos, e não recusados. Isso “desafiaria a própria hipótese repressiva, tão central para a autoajuda e discursos terapêuticos” (Cvetckovich, 2003, p. 88-89).
As vingadoras lésbicas desafiam essa hipótese repressiva do trauma ao pegar o fogo que nos assassina e fazê-lo sumir em suas bocas, no interior de seus corpos. Ao engolirem o fogo, em um ato quase erótico, elas subtraem a chama, mas também a tomam para si. O fogo, como simbologia ambivalente entre vida e destruição, é reapropriado por elas, como uma forma de dizer: “nós lidamos assim com o nosso luto, com o nosso medo, mostrando para vocês que eles não nos derrubam”. Elas acolhem esse medo, fazem dele um sentimento e um afeto que fazem parte da constituição subjetiva lésbica como uma potência desafiadora da existência.
A pirofagia se torna então um gesto poético e performático de reversão da opressão – e de alto impacto. O luto e o trauma do perigo de suas existências, o medo de serem queimadas vivas por skinheads, se tornaram motores de ação e de um gesto poderoso. As lésbicas feministas e insubmissas, muitas vezes representadas como “dragões”, e que no passado eram queimadas em fogueiras da inquisição como bruxas, e que ainda são queimadas por fundamentalistas cisheterobrancos, agora engolem e neutralizam a violência com seus corpos. Elas detêm o saber do fogo. Comem o poder do inimigo e tomam a sua força para si. Essa é sua vingança. Como as bruxas.
2. Lésbicas sob a luz do fogo
Faço um salto até 2019, ao filme Retrato de uma jovem em chamas, da cineasta lésbica francesa Céline Sciamma. O filme é ambientado no século XVIII e narra a história de uma pintora chamada Marianne, que tem como objetivo pintar de forma secreta o retrato de Heloïse, jovem que vive enclausurada em uma casa numa praia deserta. O retrato teria como destino as mãos de um jovem rapaz italiano, um marido “arranjado” contra a sua vontade. Heloïse está se recuperando do luto da irmã, que cometeu suicídio, se jogando de um penhasco. A narrativa indica que esse suicídio tenha sido motivado também pelo desespero diante da iminência de um casamento arranjado contra a sua vontade.
Nas primeiras cenas do filme Marianne chega de barco à casa de Heloïse com o corpo e as roupas molhadas do mar, porque teve que salvar algumas telas que tinham caído na água. Com a ajuda de uma governanta, ela despe suas roupas e seca as telas ensopadas, seus cabelos e seu corpo sentada na frente de uma lareira recém-acesa. A cena mostra seu corpo nu, sentado no chão, enquanto acende um cachimbo para fumar um tabaco para relaxar da viagem.
O fogo da lareira, das velas, do fumo e de fogueiras atravessa as cenas e compõe a fotografia do filme de Sciamma. As cenas internas e noturnas são sempre uma espécie de breu iluminado por chamas, e é sob a meia-luz quente e delicada do fogo que suas vidas se manifestam em sua potência. E o fogo que dá tom ao título, o retrato em fogo, é o centro dessa potência.
É importante ressaltar que Sciamma está jogando com a tradição do retrato na pintura e o conceito de retrato autônomo. Jean-Luc Nancy, em seu livro Le regard du portrait, nos oferece inúmeras definições do retrato, inclusive a de Jean-Marie Pontévia, que em seu Écrits sur l’art (1986) diz que “O retrato é um quadro que se organiza em torno de uma figura” que exclui do seu entorno toda a exterioridade (Nancy, 2000, p. 13). O retrato autônomo deveria nos trazer um “sujeito sem expressão”. Esse sujeito seria o do primeiro quadro que Marianne pinta de Heloïse, e que ela reprova, sob argumento de que seria sem vida. Marianne responde ao alerta reprovativo de Heloïse pondo fogo nesse primeiro retrato. Nesse ponto, Sciamma rompe com essa tradição e com a mirada patriarcal, como já observado há pouco, a do observador racional de um objeto passivo. As chamas consomem essa mirada e a destroem, transformam-na em cinzas.
É nesse novo jogo de gestos e olhares, que se estabelece dentro da lógica de equilíbrio de poderes proposta pela diretora,[5] que o novo quadro (e uma nova mirada) começa a ser pintado das cinzas. Um retrato vivo, um retrato preenchido por gestos, memórias, significados e, sobretudo, segredos aquecidos pelo fogo. O segredo se torna um artifício delicado e sensível no interior da narrativa. Um secredo ou um íntimo perceptíveis e endereçados para uma espectadora específica, a espectadora lésbica. A sensibilidade lésbica nos arma com o olhar apurado para ver onde só nós podemos enxergar, um segredo da escuridão, sob a luz de velas que iluminam o que só nós conseguimos ver.
O segredo atravessa a narrativa de forma contundente, e sempre sob as chamas. A governanta da casa engravida e precisa abortar. As três vão, então, ao encontro de uma velha senhora que detém saberes ancestrais das ervas e que havia lhe dado alguns chás para tentar interromper a gravidez. É noite, e após o encontro elas se reúnem em torno de uma fogueira, com outras mulheres de classes subalternizadas, que partilham tradições de mulheres em torno do fogo. A governanta anuncia que mesmo após o chá ainda está grávida e que precisará fazer o aborto. No escuro elas continuam se divertindo, entoando cânticos ritualísticos e tomando bebidas alcoólicas, sem a presença de homens. A música que entoam diz em latim “fugere non possum” (“elas vêm voar”), e é ao som desse canto de liberação e num ambiente marcado pelo continuum lésbico que elas se olham sem as amarras sociais e se deixam apaixonar. A própria Sciamma escreveu a letra: “Eu escrevi as letras em latim. Eles estão dizendo, ‘fugere non possum’, que significa ‘eles vêm voar’”. “É uma adaptação de uma frase de [Friedrich] Nietzsche, que diz basicamente: ‘Quanto mais alto voamos, menores parecemos para aqueles que não podem voar’.” Entre seus olhares está a grande fogueira, e cinzas em chamas atravessam o escuro da noite levadas pelo vento como pequenos vagalumes. É nesse momento que Heloïse começa a se afastar da fogueira e a barra de seu vestido é tomada pelo fogo, na cena que ilustra o cartaz oficial do filme. Depois desse momento, elas se abrigam numa caverna escura, na praia gelada que margeia o terreno da casa de Heloïse, e se beijam.
O que nós, mulheres, também podemos enxergar no filme é o processo da ruína da heterossexualidade compulsória,[6] que se dá no e através do olhar. Heloïse é obrigada a se casar com um homem que nunca viu, e Marianne é a primeira mulher que conhece que não tem essa mesma obrigação, por ser de outra classe social. Marianne apresenta outra possibilidade de existência. Através da ferida desse encontro, e do isolamento dessas mulheres, numa microcomunidade sem homens e autoridades, a compulsoriedade perde o sentido e surge o desejo e o enamoramento entre duas mulheres que se miram.
Nancy suspeita que “toda pintura é talvez figura e olhar” (Nancy, 2000, p. 27) – um olhar não mais de um objeto mas de uma figura-sujeito, em toda a sua intimidade, em sua interioridade, em sua superfície e em sua interioridade, essa figura que foi olhada, nos olha e nos endereça seus segredos. Nós trocamos olhares íntimos e em relação de equilíbrio de poderes com o filme-retrato, assim como Heloïse e Marianne. Jacques Derrida, em um livro inteiramente dedicado a Nancy, intitulado Le toucher: Jean-Luc Nancy (2011), fala dessa troca de olhares: “quando nossos olhos se tocam, isso faz dia ou isso faz noite?”, e que olhar é comparável aos lábios, ao toque. Um toque quente no escuro. Sob a luz do fogo.
Termino este artigo na direção de uma piropoética lésbica. Pensando em como lésbicas podem voar ao pegar para si o fogo. Num gesto de reinscrição do mito de Prometeu, a lésbica não rouba o fogo do Olimpo para dá-lo aos homens, mas rouba o fogo dos homens para fazer de seu corpo um corpo quente que pulsa em afirmação da vida. Das Lesbian Avengers a Heloïse e Marianne, proponho um pensamento lésbico em chamas. Não interessado (de forma simplista) apenas em queimar o patriarcado, mas em tomar em si o fogo, e inscrever em si a dor, o trauma e o luto, como uma nova possibilidade de existir para além dos perigos que a vida nos endereça.
* Adriana Azevedo é professora substituta de Teoria Literária na UFRJ e doutora em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC-Rio. É também editora e idealizadora da Filipa Edições e traduziu o livro Eu odeio os homens, de Pauline Harmange, da editora Rosa dos Tempos.
Referências
AZEVEDO, Adriana. “Corpo atritável ou uma nova epistemologia do sexo”. In.: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org.). Pensamento Feminista Hoje: Epistemologias do Sul Global. Rio de Janeiro: Editora Cobogó, 2020.
BACHELARD, Gaston. A psicanálise do fogo. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
CVETKOVICH, Ann. An Archive of Feelings: Trauma, Sexuality and Lesbian Public Cultures. Durhan & Londres: Duke University Press, 2003.
FRIEDRICH, Sue. The Lesbian Avengers Eat Fire Too. Estados Unidos, 56min, 1993.
NANCY, Jean-Luc. Le regard du portrait. Paris: Éditions Galilé, 2000.
SCIAMMA, Céline. Retrato de uma jovem em chamas. França, 2h 2min, 2019.
Notas
[1] Disponível em: http://www.lesbianavengers.com/about.shtml. Acessado em 22 de agosto de 2021.
[2] Para entender melhor a noção de “ponto cego” em relação à existência lésbica, ver The Straight Mind (1978), de Monique Wittig.
[3] “Early in ’92, Ana Simo, frustrated at lesbian invisibility, and in particular how lesbians were being erased from the NY Rainbow Curriculum battle, approached Sarah Schulman about starting a lesbian direct action group, ‘A group totally focused on high-impact street activism, not on talking,’ Ana said.” (Disponível em: http://www.lesbianavengers.com/about.shtml. Acessado em 29 de agosto de 2021.)
[4] “On September 26th, 1992 in Salem, Oregon, Hattie Mae Cohens and Brian Mock were at their apartment with their friends. Most of the people in the apartment were asleep when 2 firebombs came crashing in through the windows. These were crude bombs made from bottles filled with gasoline and set on fire. While the friends all escaped the fiery apartment, Hattie Mae and Brian didn’t. They burned to death in the basement apartment they called home. Hattie Mae was a 29-years-old African American woman who identified as a lesbian. Brian was a 45-year-old, reportedly disabled, white man who identified as gay”. Trecho traduzido livremente da reportagem do site Killer Queens Podcast. Disponível em: https://www.killerqueenspodcast.com/the-murders-of-hattie-mae-cohens-and-brian-mock/. Acessado em 29 de agosto de 2021.
[5] Céline Sciamma fala em “equilíbrio de poderes” em entrevista ao canal Collider Videos, ao lado das atrizes Adèle Haenel e de Noémie Merlant. Disponível em: <https://youtu.be/iNQTfl2lEnI>, acessado em 17 de fevereiro de 2020.
[6] Da qual a irmã de Heloïse escapou na única saída que encontrou, o suicídio, atirando-se de um precipício (como em Thelma & Louise, clássico de 1991).