A canção popular brasileira, ao longo do século XX, consolidou-se como manifestação cultural de elevado valor estético e de evidente força política. Além disso, tornou-se fonte preciosa de representações e reflexões em torno da realidade social do país, em suas mais diversas peculiaridades e contradições. Desde os anos 1960, as discussões que conduziram da bossa nova ao tropicalismo geraram farto acompanhamento crítico-teórico por parte do jornalismo especializado, mas também do empenho intelectual dos próprios artistas e, por fim, dos estudos acadêmicos.
Por se tratar de um objeto híbrido, a canção popular passou a ser estudada no âmbito da literatura, da música e das ciências sociais, abrindo caminho para um campo teórico específico e transdisciplinar, do qual se ocuparam nomes como Augusto de Campos, Luiz Tatit, Santuza Cambraia Naves e José Miguel Wisnik. A partir daí, começaram a proliferar trabalhos acadêmicos sobre os gêneros musicais e sobre os grandes cancionistas do século XX, gerando um consistente arcabouço teórico para os estudos da canção.
No entanto, neste momento, é fundamental que nossos olhos também se voltem para o cancioneiro do século XXI. Nesse sentido, é preciso refletir sobre a complexidade do cenário atual: os novos meios de produção, propagação, legitimação e circulação do objeto canção; o estabelecimento de um novo cânone de cancionistas populares a partir das contemporâneas discussões estéticas e identitárias; o retorno dos álbuns, dos vinis, dos EPs e dos singles como objetos estéticos íntegros; a inserção da canção contemporânea no contexto das novas (e das velhas) tensões políticas e sociais; e, por fim, a própria produção recente dos artistas que se consagraram ainda no século passado.
Pensando nisso, o Núcleo da Canção do Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC-UFRJ) vem desenvolvendo, desde 2016, o projeto Escuta, que recebe na universidade artistas contemporâneos, escuta seus discos e conversa sobre questões importantes da canção popular do Brasil, principalmente, em nossos tempos. Para essa coletânea, escolhemos justamente a edição especial de fechamento do primeiro ano de entrevistas (em setembro de 2017), na qual ouvimos um álbum de Bruno Cosentino, que além de artista, é também um pesquisador da canção e um dos idealizadores do projeto. A conversa foi conduzida por mim (Rafael Julião) e pelo professor e poeta Eucanaã Ferraz e serve de exemplo (com alguma dose de metalinguagem) dessa atividade que temos desenvolvido no PACC.
A primeira entrevista do ciclo me deu a oportunidade de conhecer a obra de Luís Capucho, de discos como Cinema Íris e Poeta maldito. Desde então, venho mantendo interesse por seu trabalho e, neste contexto, achei cabível publicar algumas reflexões sobre sua obra musical (e também literária). A questão da voz, central para a compreensão de Capucho, é também tema de Leonardo Davino, em seu texto revelador sobre a vocoperformance de Juçara Marçal. O artigo é um exemplo claro de como o pensador da canção deve deslizar entre zonas diferentes do conhecimento, como a filosofia, a literatura, a estética, a música, a história, e também circular com naturalidade entre diversos estratos da cultura, indo do erudito ao popular, do cult ao pop, circulando por todas essas áreas, desfazendo suas hierarquias e harmonizando suas particularidades.
Esse trabalho crítico podemos observar também no artigo de Carlos Gomes sobre o compositor pernambucano Siba, que nos leva ao maracatu e à cultura do Nordeste do país, revelando sua qualidade poética e, especialmente, sua força política. A canção como conjugação de vetores estéticos e políticos é também assunto de Vanubia Close e Samile Cunha, que refletem sobre a Elza Soares do século XXI e a narrativa que faz de si e da música, ao ser intérprete e curadora das canções que canta. Nesse texto, o lugar de onde se fala e que narrativa produzimos sobre nós é um bom convite à reflexão. Do “Rap da felicidade” de Elza, vamos ao rap de Mano Brown, que Marcos Lacerda nos aponta como um mestre da composição, em sua inventividade formal, e também em seu lugar de pensador da cultura brasileira. A voz do artista vem de um espaço singular de visão, trazendo miradas muitas vezes desconcertantes sobre a realidade do país, sempre postas em sua dicção particular.
A questão das narrativas sobre a canção popular (e suas implicações políticas e culturais) é o assunto de Gustavo Mouro, que pensa na linha de tensão entre a tendência pós-moderna de problematização das narrativas e as interfaces dessas narrativas com o mundo real, por seu poder de retratá-lo, mas também por sua potência de fecundá-lo. Já Augusto Cavalcanti nos convida a pensar a produção de Cazuza e Arnaldo Antunes, paradigmática do rock nacional surgida nos anos 1980, tanto a partir de sua inserção no desenvolvimento da canção popular de massas ao longo da segunda metade do século XX, mas também sob o influxo das recentes discussões estéticas e políticas. Assim, a pós-modernidade não atua só sobre os artistas do presente, mas também sobre os olhos que miram os artistas do passado.
Enfim, a coletânea deseja ser um chamado de atenção para a força presente da canção popular do Brasil, e o que ela nos revela de gesto estético e de dimensão política, apresentando-se como objeto necessário e complexo, que carece de muitos lugares de olhar. Trata-se, antes de tudo, de um convite para a escuta das vozes que permanecem transformando em som e lançando luz sobre a vida deste país e de todos nós.
Rafael Julião (PACC/UFRJ) e Bruno Cosentino (PACC/UFRJ)
Organizadores