Ano XIII 0201
2º semestre de 2018
dossiê
Tempo de leitura estimado: 13 minutos

A FORMA E A INVENÇÃO NA POÉTICA DA CANÇÃO DE MANO BROWN

Resumo: Mano Brown é uma das referências centrais para a música popular brasileira nas últimas décadas, especialmente através das suas canções com o grupo Racionais MCs. A excelência e o nível de inventividade formal da sua poética o coloca na condição de um dos principais poetas da canção brasileira, talvez o último dos grandes mestres da composição em canção popular.

Palavras-chave: Música; invenção; poesia.

Abstract: Mano Brown is one of the central references for Brazilian popular music in the last decades, especially through his songs with the group Racionais MCs. The excellence and level of formal inventiveness of his poetry puts him in the condition of one of the main poets of the Brazilian song, perhaps the last of the great masters of the composition in popular song.

Keywords: Music; invention; poetry.

Mano Brown em 2014 (Foto: Daryan Dornelles/Divulgação)
Mano Brown em 2014 (Foto: Daryan Dornelles/Divulgação)
Fonte: https://portalrapmais.com/mano-brown-diz-que-fas-nao-merecem-um-novo-album-do-racionais/

Mano Brown é, certamente, um dos artistas mais importantes da música popular brasileira em todos os tempos. E não só. A sua inteligência poética o coloca na condição de um pensador da cultura, aquele que aponta balizas, orienta o caminho, persuade, redimensiona o debate público, através de entrevistas ou mesmo falas em meio aos shows. Ele ocupa hoje um papel análogo ao de artistas da canção como Tom Jobim, Caetano Veloso, Chico Buarque, Milton Nascimento, Raul Seixas e, numa dimensão menor, Cazuza, Renato Russo e Chico Science. Mano Brown é um artista que criou uma linhagem própria na música popular brasileira, no mesmo nível dos nossos maiores artistas e pensadores da cultura. O fato de ser oriundo das classes trabalhadoras precarizadas, diferentemente de todos estes artistas, diz muito da sua importância histórica, ao lado da excelência da sua obra artística. Nela, há um senso de totalidade e não de fragmentação. Não se trata de uma perspectiva específica, associada a uma realidade específica, como erroneamente é apresentada em muitas análises, mas de um olhar artístico e crítico totalizante, do lugar do Brasil no espírito do mundo e do espírito do mundo para além do Brasil, tendo a arte – com sua autonomia relativa em relação à sociedade e à política – como mediadora complexa, através de um refinado trabalho estético-formal.

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O pensamento acompanha a poesia da canção. Ambos potentes e afiados. A maturidade poética e a forma complexa e lúcida com que delineia a relação entre estética e política vem desde o primeiro momento, ainda nas primeiras canções e entrevistas. Holocausto urbano, o primeiro álbum do Racionais Mcs, já era radicalmente inovador dentro do ambiente da canção popular de início da década de 1990, com o ocaso das bandas do chamado “Rock Nacional” e do movimento punk e pós-punk; a emersão de novas movimentações profundas da música popular brasileira com o advento da axé-music; a nacionalização da música sertaneja; o fenômeno dos grupos de pagode romântico e o desenvolvimento ainda regional do funk carioca. O Hip Hop brasileiro nasce neste contexto. Sua complexidade e força derivam daí. Os álbuns posteriores, Escolha seu caminho (1992), Raio X do Brasil (1993), Sobrevivendo no inferno (1997), Nada como um dia após um outro dia (2002) e Cores e valores (2014), deram sempre um passo à frente no contexto poético e musical em que foram lançados. A relação com a MPB dos artistas de classe média da década de 1960 é apenas lateral e só posteriormente vem gerar algumas sugestões de aproximações, com o muito culto Criolo. Em outras palavras, o mais importante da sua grande obra é a relação com um processo histórico e social associado a um contexto em que a inteligência e a vitalidade da música popular brasileira se deslocam para a criação feita pela e para as classes trabalhadoras precarizadas. Ela não é devedora, nem deriva, em nenhum aspecto, das grandes obras e movimentações culturais da classe média da década de 1960, porque abre uma nova fenda, como um clarão, complexo, denso, vigoroso, consistente, cuja potência e força artística começa a ser medida e pensada. E também cria grandes obras, como a do Racionais MCs, de KL Jay, Edy Rock, Ice Blue e Mano Brown.

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Sobrevivendo no inferno é um clássico e representa a maturação estético-formal de uma ruptura ainda sem precedentes na história recente da música popular feita no Brasil. Representa aqueles momentos em que a arte feita no Brasil concentra as tensões formais, sociais e políticas do momento, e consegue ser, pelo alcance artístico, atemporais. O espanto diante da audição de Sobrevivendo no inferno dentro da sua obra só é comparável à audição de Cores e Valores, a misteriosa suíte poético-sonora lançada em 2014. Entre os dois álbuns, algumas das melhores canções feitas em língua portuguesa, como “Racistas otários” e “Pânico na zona sul” (Holocausto urbano, 1990) “Homem na estrada”, “Fim de semana no parque” e “Mano na porta do bar” (Raio X do Brasil), “Capítulo 4 versículo 3”, “Fórmula mágica da paz”, “Diário de um detento” (Sobrevivendo no inferno, 1997), “Jesus chorou”, “Vida Loka II”, “Eu sou 157”, “Da ponte pra cá” e “Negro drama” (Nada como um dia após um outro dia, 2002). E, em alguma área imprecisa, “Mil Faces de um homem-leal” (Carlos Mariguela) (2012) – mediadora entre a extensão narrativa complexa de “To ouvindo alguém me chamar” (Sobrevivendo no inferno, 1997) e as experimentações de síntese em “Finado Neguin” (Cores e valores, 2014).

Capa de Cores e valores, 2014
Capa de Cores e valores, 2014
Fonte: https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/noticia/2014/11/Racionais-MC-s-voltam-com-musicas-curtas-e-influencias-modernas-em-Cores-Valores-OUCA-4650367.html

A capa de Cores e valores é pedra bruta. A arte é terrível, cruel e difícil. A imagem de símbolos que remetem ao modo como filmes de terror fazem parte do imaginário cultural popular; a figura do palhaço que se parece aqui com um sátiro zombeteiro de algum lugar perdido nas ilhas de Samos, Lesbos, imerso ainda num caos originário de pulsão difusa e potência ameaçadora, na aurora da razão; a roupa de gari; a metáfora do assalto que se relaciona com a mesma imagem do clipe da obra-prima “Mil faces de um homem leal”, no qual o Racionais MCs, ao lado do imenso Dexter, tomam de assalto a rádio nacional (a música popular brasileira) para cantar uma poesia afiada, pesada e estranha, com inteligência formal e capacidade de fazer soar o som de palavras e sílabas recheadas de vertigens e quebras súbitas de sentido. “Mil faces de um homem leal” é uma canção que vale por muitos discos de canção.

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O labirinto de figuras de linguagem atravessa e molda as canções de Mano Brown. O domínio formal é impecável e profundamente inventivo. A poesia que chega ao coração da linguagem e nasce do espaço impreciso do som das palavras que ainda não ganharam sentido, que ainda não se embrenharam na trama do significado. O labirinto das formas chama para a decifração do enigma que nunca se apresenta na sua totalidade. O som das palavras, a junção entre som e sentido, a palavra como canção, a música das esferas. A aproximação do enigma. Cola-se a boca na borda do Ser.

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Uma obra de depuração formal da linguagem da canção. Depuração que exige um trabalho permanente, como a confecção demorada de um belo afresco, com suas delicadezas não reveladas explicitamente, que exigem do apreciador o tempo da percepção, da contemplação, da audição repetida, extensa, que vai fazendo aparecer camadas de sentido, tramas sonoras, jogos entre palavras e sílabas, movimentações lancinantes do som em intervalos mínimos de silêncio. Da lapidação sonora e orientação clara da narrativa em “Homem na estrada” para a explosão de narrativas dispersas que se agrupam como estilhaços, sem uma ordem prévia, nem um molde claro, de “Finado Neguin”, a sua obra vai se constituindo fibra a fibra, de ponta a ponta. “Amor distante” e “Boa noite SP”, já sob uma ambiência sonora mais orgânica, misturam ordenações narrativas extensas com variações dispersas de palavras e sons.

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Além do contexto e da estrutura formal, é interessante delimitar também o quadro de referência cultural e artístico do Racionais Mcs e de Mano Brown. Ele é bem diferente do quadro de referência dos artistas da MPB culta da década de 1960. Os principais artistas, intelectuais e lideranças políticas são outros como Malcolm X, Mariguela, 2Pac, Jorge Ben, Guilherme Arantes, Spike Lee, Tim Maia, Arlindo Cruz, Cassiano, geram uma nova ambiência estética, cuja força vem de um outro lugar e é nela que reside a sua sofisticação, complexidade, densidade, inteligência e potência. Ela criou uma linhagem própria, com seus mitos, suas legendas e selecionou, de forma consciente, as suas afinidades eletivas.

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Como artista-pensador Mano Brown também se aproxima de pensadores do Brasil, ou melhor, da sociedade brasileira na sua dimensão concreta, imanente, terra-a-terra. Há na sua poética e nas entrevistas que vêm fazendo constantemente uma preocupação e um senso de responsabilidade sobre o destino do país, em especial, das classes trabalhadoras precarizadas. Longe do universalismo postiço da pequena-burguesia culta, que se acredita detentora de um ethos universal, Mano Brown traz para o campo do pensamento crítico uma outra dimensão, mais complexa e real. Não há mistificação pequeno-burguesa. Não há esteticismo superficial, tentando se passar por alta cultura de vanguarda. Há um pensamento afiado que enovela afirmações e negações, e não nega a dúvida.

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A música popular brasileira bambeia, desde que a canção é canção, entre dois polos. O primeiro é o da contradição sem conflitos, que resulta numa lógica de conciliação de classes; o segundo é o da explicitação dos conflitos, que conduz a uma negação de qualquer forma de conciliação, abre uma fenda e traz à tona singularidades inconciliáveis. A canção e o pensamento de Mano Brown estão no segundo polo. E avançam, arrastando o primeiro. Boogie Naipe, seu álbum solo, é a ponte que sintetiza provisoriamente os dois polos. Cores e valores abre um novo caminho, radicalmente experimental, com sílabas quebradas, traços sonoros, vozes anônimas, como sátiros delirantes vagando no crepúsculo do Ocidente. As figurações que se constroem na sua poética em geral são ameaçadoras e indefinidas, de feições nietzschianas: “Talvez eu seja um sádico, anjo ou mágico, juiz ou réu, um bandido do céu, malandro ou otário, padre sanguinário, franco atirador se for necessário, revolucionário, insano, ou marginal, antigo e moderno, imortal, fronteira do céu com inferno.”

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Na origem não era o samba. Na origem era a multiplicidade de gêneros e subgêneros. Não há linha evolutiva, nunca houve. Há linhagens paralelas que, ora convergem entre si, ora divergem radicalmente. Quando divergem, se sobrepõem. Quando convergem animam modulações. O tropicalismo foi uma procura por convergência, com um centro balizador: o próprio tropicalismo. Transformou-se rapidamente num parâmetro a um só tempo importante, inevitável, mas também profundamente dogmático e datado. O Clube da Esquina realizou a divergência como convergência e, por isso, superou o tropicalismo. Belchior trouxe à canção mais inventiva a materialidade e a beleza de veludo da vida real, muito além dos delírios e virtuosismos autorreferentes das vanguardas pequeno-burguesas. O rapaz latino-americano da sua canção é o mesmo da canção “Capítulo 4 versículo 3”: Sons, palavras são navalhas.ALira paulistana foi uma afirmação da divergência radical, por isso gerou inovações formais profundas e abriu uma fenda. Clara Crocodilo e Black Navalha descendo a ladeira da memória até o vale do anhangabaú. O Hip Hop do Racionais MCs ampliou essa fenda.

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Existe uma fortuna crítica sobre os Racionas Mcs. Um tanto irregular, com certas exceções. Entre elas, podemos destacar aqui o trabalho de Walter Garcia e de Francisco Bosco. No primeiro, a canção do Racionais representa não só um apuro formal com o uso complexo de figuras de linguagem, como na alta poesia, ou a intenção de apresentar uma perspectiva política, social e estético-formal do jovem negro das periferias; mas sobretudo uma visão estruturante da violência – em diversos níveis – como expressão da sociedade brasileira, com alto nível de reflexividade e articulação, e a capacidade de aliar tema e expressão. No segundo, o caminho é praticamente o mesmo: o Racionais representa o último grande acontecimento da cultura brasileira na medida em que expressa a voz de trovão anticordial que coloca no primeiro plano da sua sofisticada poética a negatividade da experiência estética e política da sociedade brasileira.


* Marcos Lacerda é doutor em Sociologia, foi diretor do Centro de Música da Funarte e publicou em livro o volume de “Música” da coleção Ensaios brasileiros contemporâneos, uma antologia com alguns dos melhores ensaios sobre canção e música no Brasil, com autores como Roberto Schwarz, José Miguel Wisnik, Luiz Tatit e Cacá Machado, entre outros.

Referências

BOSCO, Francisco. A voz e a música do Racionais MCS. Revista Cult: Dossiê 25 anos de Racionais MCs. No 192, 2014.

GARCIA, Walter. “Ouvindo Racionais MC’s”. Teresa, revista de Literatura Brasileira. No 4/5. São Paulo, 2004. p. 166-180.

GARCIA, Walter. “Diário de um detento’: uma interpretação”. In: NESTROVSKI, A. (org). Lendo música. São Paulo: Publifolha, 2007. p. 179-216.

GARCIA, Walter. “Elementos para a crítica da estética do Racionais MC’S (1990-2006)”. Ideias, 7, 2013, p. 81-110.

KEHL, Maria Rita. “A fratria órfã: o esforço civilizatório do rap na periferia de São Paulo”. In: KEHL. M. R. (org.). Função fraterna. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000. p. 209-244.

KEHL, Maria Rita. “O lamento de Mano Brown”. Reportagem. Ano IV. No 38. Belo Horizonte, nov., 2002. p. 31-32.

Teperman, Ricardo. Se liga no som: as transformações do rap no Brasil. São Paulo: Claro Enigma, 2015.

ZENI, Bruno. “O negro drama do rap: entre a lei do cão e a lei da selva”. Estudos avançados. V. 18. No 50. São Paulo, 2004. p. 225 241.

Referências discográficas

Racionais MC’s. Holocausto urbano. São Paulo: Zimbabwe, 1990.

Racionais MC’s. Escolha seu caminho. São Paulo: Zimbabwe, 1992.

Racionais MC’s. Raio-X do Brasil. São Paulo: Zimbabwe, 1993.

Racionais MC’s. Sobrevivendo no inferno. São Paulo: Cosa Nostra, 1997.

Racionais MC’s. Nada como um dia após outro dia. São Paulo: Cosa Nostra, 2002.

Racionais MC’s. Cores e valores. São Paulo: Cosa Nostra / Boogie Naipe / X-File Records, 2014.