Um dos maiores problemas que as feministas têm enfrentado ao longo do tempo está na sustentação de nome que nos designa, qual seja, feminismo. Heloisa Buarque de Hollanda, em declarações públicas, disse que achava terrível a resistência que a palavra causava, mas que, de fato, via grande afastamento de parte das mulheres, em especial, as periféricas, por causa do horror que repercutia na coletividade a palavra “feminismo”. Sim, representações hostis fizeram do feminismo uma palavra que apavora e, sem dúvida, essas representações são fruto das produções simbólicas, imaginárias, discursivas que o patriarcado operou enquanto sistema linguístico.
As igrejas e suas formas de entender e explicar o princípio do mundo e a disseminação de sua moral, ao lado da linguagem entendida como neutra, para carregar esses valores favorecem a incompreensão do termo e do sentido histórico nele contido. O que chamamos de misoginia se efetiva hoje no processo de produção dessa incompreensão, na desinformação e confusão em torno da temática de gênero e tudo que ela aborda. O patriarcado, enquanto uma das faces do capitalismo, é um sistema comprometido em difundir o discurso de ódio às mulheres e outras minorias políticas, da mesma forma com que o racismo partilha da operação do capitalismo para garantir seu discurso de ódio aos negros e a outras etnias não brancas.
O feminismo tem um potencial epistemológico radical não só pela ação política nele implicada, mas também porque carrega o sentido da luta epistemológica contra o patriarcado. Acredito que a luta atual do movimento feminista plural passa, necessariamente, a ser uma luta que briga para dizer seu próprio nome. E, a partir da afirmação de sua própria existência, segue sendo atacada pelo sistema de opressão e vigilância vigente. Ouso afirmar que dizer-se feminista é, portanto, uma declaração de participação no enfrentamento ao patriarcado e não é à toa que o feminismo, assim como gênero, sejam termos utilizados contra suas próprias signatárias. Ao pautar a insubmissão das pessoas ao sistema heteronormativo branco e capitalista, a máquina de produção linguística do patriarcado transforma o problema que o feminismo cria para ele em um problema para as feministas. A violência patriarcal implica não apenas a força física ou verbal, mas todo um jogo retórico e de inversão de sentidos.
A misoginia, enquanto discurso de ódio, afeta a imagem das mulheres e das lutas feministas em favor do círculo vicioso entre violência verbal e simbólica próprias à dominação patriarcal. Se agentes da discursividade misógina usam o “feminismo” em contextos ofensivos (como o termo “feminazi”, muito popular aqui no Brasil), nessa esteira, o que o sistema consegue é que muitas mulheres passem a abominar o feminismo e outras tantas jamais se sintam seguras e confortáveis para afirmarem-se como feministas. Se, de um lado, algumas pessoas permanecem alheias à análise concreta da realidade, de outro, não querem adotar em suas vidas uma expressão desabonadora que pode vir a prejudicá-las. Se ser mulher ou ser um corpo inadequado ao patriarcado implica a misoginia, já que o patriarcado cria o feminino como um outro a ser abatido, ser e dizer-se feminista implica a possibilidade de ser alvo da misoginia duas vezes.
Não consigo parar de pensar que não é só o termo feminista que sofre com a perversidade sistêmica. Nós, as feministas, sofremos os mesmos preconceitos das mulheres em geral, e nessa matemática atrevo-me a dizer que as mulheres não feministas também sofrem preconceitos como se feministas fossem. Porque a violência patriarcal não coloca no alvo tão somente a sobrecarga política oriunda da palavra maldita, o feminismo, muito pelo contrário; a palavra “mulher” também faz parte da episteme violentada pelo patriarcado; o próprio objeto da misoginia está no corpo dissidente, neste caso, no da fêmea da espécie humana ou, melhor dizendo, das mulheres. Mulher seria, então, um dos termos marcadores de fracasso social, tanto assim que servimos como ofensa, na máxima “só podia ser mulher”, ou ainda, quando fugimos do enquadramento, na outra máxima “nem parece uma mulher”. Ou seja, enquanto corpo ou palavra, as mulheres não conseguem sair do alvo nem enquanto sujeitos mesmos de seus corpos, muito menos enquanto sujeitas de sua ação política enquanto autodeclaradas feministas. O patriarcado trabalha nas duas vertentes para impedir o gesto performativo da autoafirmação, que torna alguém dono de si, ou seja, dono de seu próprio corpo. A misoginia desempenha um papel fundamental nesse processo, impedindo o feminismo como uma mediação necessária para a produção da consciência acerca do direito ao corpo.
Para além do preconceito estrutural construído pela modernidade, que está ligado à palavra, é visível que a operação patriarcal tem buscado evitar que a luta das mulheres avance, e este é o escopo da ação de silenciamento. Usando o preconceito reiterado, atualizado, o patriarcado consegue produzir uma rejeição à luta fundada na rejeição ao termo usado para expressar a luta. Se dizer é fazer (Butler, 2021), a fala violenta é ação em si mesma, mas também incitação a violências materiais e físicas que criam e recriam condições simbólicas e concretas em um círculo vicioso. A misoginia é parte fundamental da pragmática do discurso falogocêntrico; entendendo o patriarcado estruturado com uma linguagem própria, à medida que também estrutura a própria linguagem em um movimento dialético, a misoginia garante a ordem simbólica, conceitual e moral, ou seja, as próprias condições de possibilidade do patriarcado diante das ameaças que ele sofre por parte dos que se negam à sua exigência de submissão.
No contexto atual, a misoginia é o discurso oficial, e as mulheres e os corpos dissidentes divergentes passam a ser vistos como uma fraqueza ou um erro da natureza; se assim é, só posso dar péssimas notícias, pois nós, mulheres feministas, não passamos de um duplo erro da natureza e, com a força da nossa atuação, estamos disputando para que nossa existência também não seja considerada um erro da cultura. Feministas seriam, sem dúvidas, as bruxas da contemporaneidade e portadoras de algo antinatural: sua insubmissão. Acho que dá para ver um exemplo da misoginia didática quando pensamos no ódio a livros como O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir, com sua crítica às mulheres que apoiam o inimigo, e sua teoria do seu “caráter inessencial”, no patriarcado, diante do caráter essencial dos homens.
A misoginia, como atitude da linguagem, sempre foi providencial na organização da violência para que ela funcione efetivamente de maneira orquestrada. Ela está presente quando se associam mulheres à natureza: na imagem da natureza, no que se diz da natureza, e no prisma usado para se construírem discursos sobre as mulheres. A situação de fala não é, portanto, um simples tipo de contexto, algo que pode ser facilmente definido por seus limites espaciais e temporais (Butler, 2021, p. 15), pois ser violentado pelo discurso é perder o contexto, é não entender onde se está. A redução da imagem da mulher e sua ligação à natureza, por meio do discurso, faz com que a certeza de espaço seja abalada. Toda qualidade preferida ligada a um dado da natureza nos coloca em posição subjugada. Mas é claro que essa falta total de agência foi e é reiterada pelo patriarcado, tornando-o eficiente em providenciar espaços de insegurança para as mulheres. Esses espaços geram mais violência quando nossos corpos estão soltos, avulsos, sem localização conhecida, e a violência é uma metodologia de separação aplicada às mulheres e aos corpos que deseja controlar ou descartar. O poder é uma metodologia criada entre os homens para garantir sua coesão, segurança e proteção, algo que as mulheres não devem usar segundo as normas do sistema patriarcal. Se as mulheres usarem a confiança umas nas outras como metodologia, o sistema sustentado na diferença hierárquica entre homens e mulheres pode ruir.
O feminismo é um operador teórico-prático, que pode funcionar como dispositivo de combate à ordem patriarcal, mas desmontar a máquina misógina é como desativar um programa de pensamento, que orienta o comportamento dos corpos, porque o patriarcado é o verdadeiro articulador do pensamento misógino, que orienta a ação na direção do favorecimento dos sujeitos privilegiados dentro do sistema capitalista. O ódio ao feminismo está ligado ao sistema capitalista de forma compulsória submetendo os corpos e os dispositivos de linguagem.
Em uma tentativa de entender o paralelo entre linguagem e o sistema patriarcal, imaginemos o seguinte: mulheres sofrem com o patriarcado em geral; pessoas trans têm problemas burocráticos, legais e sociais a enfrentar com o seu “nome social” frente ao lugar do “nome” que lhes foi dado pela família em sua estrutura patriarcal; o feminismo enfrenta com seu nome, nomenclatura designada, um problema criado pelo patriarcado. Talvez seja possível tal comparação para fins de entendimento do que considero uma questão de gênero ou um problema linguístico: o feminismo, como expressão carregada de incômodo, trabalha na mesma lógica que uma pessoa trans ou um corpo de mulher no mundo patriarcal; por ser considerado um termo inadequado, o feminismo luta pelo reconhecimento de sua dignidade enquanto termo. Sendo assim, acredito que o problema do nome na cultura patriarcal sempre foi um problema de gênero. Todo problema de gênero é linguístico, mas também performativo. Pesa sobre os corpos violentados pelo patriarcado a proibição de dizerem quem são e como se veem por meio de suas próprias palavras sob pena de atingirem, de maneira manifesta e provocativa, a condição de sujeito, deixando de ser objetos do patriarcado. Entre o nome próprio e a biografia, e entre o nomear a si mesmo e o poder de definir uma autobiografia, avança a política da verdade feminista ou uma ética feminista de promoção de uma política de verdade.
A violência exercida nos corpos considerados abjetos pelo sistema patriarcal tem correspondência na violência que se faz à teoria produzida por mulheres, teorias que disputam a epistemologia e tentam reduzir o patriarcado a somente mais uma teoria. Essas teorias, que estão em rota de colisão com o sistema, ficam na mira da artilharia patriarcal, de um lado, pelo apagamento acadêmico, contra o qual as teóricas feministas vêm lutando, e, de outro, por fundamentalistas que atacam a prática feminista, organizando-se para persegui-la.
Atualmente, existe um campo de batalha em torno da expressão “ideologia de gênero”, e talvez este seja o melhor exemplo do que está em jogo. A artimanha pela qual a citada expressão utiliza uma definição conceitual para combater aquelas estudiosas e todo o campo de estudos de gênero tornou-se popular no Brasil, inclusive em meios escolares. Com que intuito? A pesada violência conceitual contra teóricas, pesquisadoras, estudantes, escritoras, a reflexão, a ciência, o mundo acadêmico e a escola adquiriu ares de verdade em um movimento de populismo patriarcal. Nessa guerra, talvez possamos dizer que estamos assistindo a um retorno da caça às bruxas, sendo “gênero” a nova bruxaria. É bom que a gente se lembre de que o uso distorcido e falacioso da expressão “ideologia de gênero” passou a ser comum a partir de uma Conferência Episcopal da Igreja Católica ocorrida em 1998 em Lima, no Peru. O tema da referida conferência foi A ideologia de gênero – seus perigos e alcances. E de volta à cena, a operação religiosa ocupa seu lugar de nortear contra quem o conjunto da sociedade deve se preocupar, quem deve ser combatido e quem está a serviço de forças obscuras. Da perspectiva da igreja católica, cria-se uma espécie de monopólio epistemológico sobre o tema da sexualidade a partir da ideia de uma natureza sexual que o termo gênero vem questionar. O conceito de gênero passa a ser entendido, do ponto de vista religioso, como uma ameaça.
O gesto da autoafirmação, dizer e contar a própria história, assume o mesmo lugar de sujeito que o herege e a “bruxa” tinham na Idade Média. Dizer-se feminista torna-se uma ousadia e, no extremo, uma heresia pela qual a pessoa é demonizada. Nomear-se é um gesto de empoderamento. Aquele que nomeia é dono do poder simbólico sobre o outro na ordem do discurso. O que está em jogo é, ainda e mais uma vez, o problema da autoridade que implica a “autorização” para dizer o que ou “quem” se é. E esse aspecto diz respeito a um problema mais que verbal: o modo pelo qual algo entra na ordem da linguagem e adquire existência no mundo humano movido pela máquina da linguagem. Pois é, não é possível desconsiderarmos o patriarcado como também um dispositivo que tem, nos termos gênero e sexo, peças de sua engrenagem para promover a dominação. O feminismo tem tentado mostrar que o funcionamento dessa máquina, movida pelo “princípio de identidade masculino” e pela “política da identidade patriarcal”, precisa ser freado. Nesse processo, a epistemologia feminista cumpre um papel fundamental, e acaba sendo tratada como alvo permanente do ódio do opressor.
A invasão das Américas, ou a “descoberta” do mundo novo, pode nos ajudar a entender a política da linguagem colonizadora em analogia com a política da linguagem patriarcal. O caráter de negação da existência de seres humanos antes dos descobridores/invasores é notório quando estudamos a nossa história, mas a negação do outro é parte intrínseca do caráter de dominação presente na política colonial. “Índio” foi o nome dado aos seres humanos encontrados por aqui, e a nomeação do outro está implicada na política da colonização própria à história das Américas. A posse da terra descoberta/invadida foi feita também através de atos de linguagem. A atitude verbal é o que permite a ação da “posse” sobre o Outro. As palavras proferidas nas cerimônias servem à legitimação da propriedade e acobertam o crime de apropriação indébita, para dizer o mínimo, do mesmo modo que os discursos cerimoniais de sedução romântica que fizeram sucesso no período do amor cortês acobertam violências sobre corpos femininos sob alegação de “conquista”. Conquistar a terra e conquistar a mulher fazem parte de uma retórica colonial de dominação, que era feita por homens; entendido assim, posso dizer que o repertório de conquista faz parte de uma retórica de dominação patriarcal.
Nessa trilha, é possível entendermos o porquê, um pouco mais à frente, de os discursos jurídicos de “legítima defesa da honra” e “crime passional” servirem para acobertar crimes de feminicídio, por exemplo. O destino das mulheres ou das terras conquistadas é a sujeição ao homem e/ou a morte, ou seja, sujeição à normatividade estética e política do patriarcado ou a morte literal. A relação entre o poder patriarcal e a violência que ele produz para se perpetuar desemboca em simbolismos e práticas de feminicídio, seja na literatura, no cinema ou na vida.
A docilização e submissão produzidas na matriz de subjetivação feminina têm relação direta com a morte à qual as mulheres estão condenadas. A perseguição às mulheres e a violência contra elas são sustentadas pelo discurso misógino; para docilizar as pessoas marcadas como mulheres, foi inventado o conceito de “feminino”. O feminino é o termo usado para salvaguardar a negatividade que se deseja atribuir às mulheres no sistema patriarcal como uma coisa inofensiva. Parece-me que a produção epistemológica da colonização e do patriarcado se utilizam de métodos e objetivos idênticos; a colonização é epistemológica e patriarcal, assim como o patriarcado é uma forma de colonização baseado em uma epistemologia da dominação. Ela se dá sobre pensamentos e corpos, sobre o espírito e a matéria, sobre a cultura e a natureza e sobre as mulheres e os territórios. Penso no patriarcado como um dispositivo com regime epistemológico e afetivo amparado na linguagem. Dentro deste dispositivo, podemos entender ou enxergar o machismo e a misoginia como um dos jogos de linguagem que exerce um controle calculado nas ideias, nos conceitos, nos textos e nas palavras para o controle dos corpos. Então vai ficando óbvio que todo o controle dos corpos precisa e passa pela linguagem e também pela língua e, ao longo da história, as instituições que dominam a linguagem dominam o corpo.
A necessidade de nomear, lá na descoberta do mundo novo, nos mostra uma forma de pensar, de se emocionar e de agir, que se funda no princípio de identidade masculina e funda com ele uma matriz subjetiva, cuja principal ação é a marcação do outro com o objetivo de submetê-lo. Tal gesto linguístico aparece e reaparece mostrando seu caráter originário e constitutivo do patriarcado colonial ou da colonização patriarcal. Definições tais como “mulher”, “homem”, “macho”, “fêmea”, “hermafrodita”, “sexo”, e toda uma terminologia que escapa à criação feminina e feminista, fazem parte da necessidade de apreender com palavras, e depois com elas hierarquizar a ação ou mesmo a própria vida. Todas as palavras importam, e em nenhum regime as palavras ocupam papéis neutros. Em última instância, isso pode querer dizer que nenhuma palavra está isenta dos jogos de poder, violência e colonização. Embora poder e violência estejam entrelaçados intimamente, e a violência possa ser exercida sem palavras, o poder precisa muito mais delas. Comumente, as mulheres são lançadas na violência e afastadas do poder. A consciência feminista não pode ser solipsista ou universalista como é a consciência patriarcal. Desse modo, proponho que estejamos atentas à intimidade entre diálogo e feminismo na superação dos jogos de poder utilizados pela linguagem patriarcal, bélica e devoradora.
Tomando o diálogo como um operador feminista, que nos permite estabelecer ligações entre os modos de pensar e fazer feministas, levando em conta nossas singularidades, penso que ele, o diálogo, poderá ser um facilitador da ascensão feminista para práticas emancipadoras e transformadoras do momento em que estamos inseridas. O feminismo conecta uma pluralidade de mundos. Em um trecho chamado “A Conversação” de seu livro Metafísica da juventude, Walter Benjamin aborda as potências do diálogo ao fazer a seguinte pergunta: “Como conversavam Safo e suas amigas?”. Essa pergunta se constrói no contexto de um elogio do silêncio que, na visão de Benjamin, as mulheres reconheceram muito melhor do que os homens. Levando em conta a oposição silêncio e diálogo, que surge nessa pergunta, e entendendo que o silêncio também é parte do diálogo no ato de linguagem, em uma relação dialética, acredito ser o silêncio parte fundamental da alegoria metodológica do que se produz em termos de uma potência feminista. Não acredito que este movimento benjaminiano aconteça à toa, pois Benjamin evoca Safo distante das conversas socrático-platônicas e desloca a atenção sobre o diálogo socrático para o desconhecido, complexo e misterioso diálogo entre as mulheres.
O diálogo é o pano de fundo de toda textualidade filosófica e literária das quais as mulheres sempre estiveram excluídas. Por exemplo, no diálogo O Banquete, de Platão, existe uma cena em que as mulheres devem se retirar para que a conversa filosófica comece a ter lugar. Trago para este texto mais dois conceitos que podem nos ajudar a entender melhor o lugar das mulheres nesta antimonologia. Dialogicidade e polifonia, conceitos que encontrei em Bakhtin: a “multiplicidade de vozes e consciências independentes” apresentam o feminismo mais como uma multiplicidade de visões, de questões e, sobretudo, de singularidades que se expressam construindo o seu campo de ação do que como uma visão unitária sob a qual devem se encaixar os discursos, as teorias e as práticas feministas. O feminismo passa a ser um espaço aberto de diálogo ou um diálogo aberto diante das regras instituídas pelo patriarcado.
O feminismo pode até continuar carregando o mal-estar de ser quem se pretende em termos de nomeação. Realmente, não existe feminista que não seja vista com olhos de condenação ou mesmo uma figura da mulher que age contra a natureza. Mas também é preciso que estejamos cientes de que o horror causado por essa palavra é proporcional à sua força. O feminismo sempre foi uma fala inadequada, porque ele é uma fala de mulheres de todas as formas e tipos, bem como de seres que escapam às denominações do patriarcado. Diante do discurso patriarcal, ele mesmo uma ideologia e um fundamentalismo, o feminismo é uma forma dialógica e uma nova episteme. A sua história é a história da luta contra a opressão epistemológica administrada pela misoginia enquanto prática astuciosa da razão patriarcal.
O embate do feminismo é também o de ressignificar corpos e palavras subjugados por uma ordem injusta, que se sustenta pela produção de um discurso de violência. Não existiria patriarcado sem misoginia. Seja imaginária, simbólica ou física, a violência é o destino das mulheres e de todos os seres inadequados à heteronormatividade traçada pelo patriarcado. Nunca houve nada mais eficaz nos processos de subjugação, e por isso podemos dizer não apenas que o poder é um dispositivo, mas que a violência é um dispositivo quando se trata de mulheres. E, mais do que isso, ela é um método que foi introjetado na forma de pensar e de sentir dos sujeitos envolvidos. Coloco minha esperança de que, contra a opressão patriarcal ancorada em seu discurso, o diálogo feminista possa ser um caminho de emancipação das mulheres e dos corpos dissidentes.
* Drica Madeira é doutora em Ciência da Literatura/UFRJ e pesquisadora do PACC – Letras/UFRJ com bolsa FAPERJ Pós-Doutorado Nota 10.
Referências bibliográficas
BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. Tradução Sergio Milliet 2 ed – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009. 2v.
BENJAMIN, Walter. Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do humana. In: Jeanne – Marie Gagnebin (Org.). Escritos sobre mito e linguagem (1915 – 1921). São Paulo: Editora 34, 2011, p. 212 -156
BUTLER, Judith. Vida precária: os poderes do luto e da violência. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.
______. Relatar a si mesmo: Crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
______. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
______. Discurso de ódio: Uma política do performativo. Editora Unesp, 2021.
HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Pensamento feminista hoje: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019.
PINHO, Isabela. Tagarelar (schwätzen): itinerários entre linguagem e feminino. Minas Gerais: Ed. Relicário; Rio de Janeiro: Ed. PUC-rio, 2021
Certa vez, quando eu era ume mere trabalhadore sapatão assalariade em um prédio comercial no Rio de Janeiro, eu fui à cantina do prédio tomar um café no balcão e fiquei conversando com a atendente. Eu usava uma roupa de trabalho tipicamente “masculina”: uma calça de alfaiataria, uma t-shirt preta, cinto e sapatos de couro preto recém-engraxados. Era um momento em que eu começava a ter uma relação saudável e criativa com a minha identidade de gênero, e estava me sentindo muito bem com o meu corpo – apesar de ainda não saber muito bem o que eu era, ou o que estava me (trans)tornando. Um médico que tinha consultório no mesmo prédio onde eu trabalhava abriu a porta da cantina e se sentou ao meu lado. Era um senhor de cabelos brancos, por volta de uns setenta anos. Ele puxou papo comigo e conversamos por alguns minutos. Em algum momento ele perguntou: “você está em qual série?” e eu fiquei um pouco espantade e respondi: “meu senhor, eu já tenho até doutorado, como assim qual série?”. Eu vi o seu rosto mudar para uma expressão incógnita, pasmo. Ele então tossiu limpando a garganta e com sua curiosidade médica questionou: “Os seus irmãos também são assim, sem barba?”. Eu olhei para a atendente com quem eu conversava diariamente, e trocamos um sorriso cúmplice, e eu olhei novamente para a entidade médica e respondi: “Não, eles têm barba”. Finalmente entendi o motivo de toda a entrevista: o médico achava que eu era um rapaz adolescente, e ao se dar conta de que eu era mais velhe, ele não concebeu outra possibilidade a não ser uma espécie de característica genética familiar que me levasse a não produzir barba e a ter uma aparência de um homem jovem. Agradeci gentilmente à atendente pelo café, me despedi do médico e o deixei com sua pulga atrás da orelha, enquanto eu me dirigi ao elevador para retornar ao meu trabalho.
Eventos como esse são constantes na minha rotina, e eu comecei a perceber que o meu corpo falava comigo, ele interagia com os outros corpos e me mostrava que ele estava em fuga constante, que ele escapava ao inteligível, que ele estava em êxodo das possibilidades que a metafísica platônica ocidental concebia para ele (e os saberes médicos ocidentais). Meu corpo ocupa uma brecha que hoje eu chamo de sapatransnão-binárie ou sapatão não-binárie, ou de simplesmente não-binárie. Sou um corpo de fronteira, um corpo que não está lá-nem-cá, um corpo que está lá & cá. A partir dessa percepção, percebi que há uma possibilidade de escapar dos gêneros binários nas micro-relações cotidianas.
Antes de falar sobre a emergência do termo sapatão não-binárie ou sapatrans não-binárie no Brasil contemporâneo, considero interessante fazer uma breve genealogia do termo sapatão para que entendamos os caminhos que nos trouxeram até aqui e para que possamos compreender as contingências socioculturais e políticas que fazem com que esse seja um assunto que tem gerado bastante polêmica dentro dos círculos lésbicos e feministas do país.
No Brasil temos a figura da “sapatão”, ou “mulher-macho”, que faz parte de um imaginário social popular. A sapatão é percebida no nosso território cultural como a lésbica que possui uma expressão de gênero que passeia por entre os gêneros e que desafia os comportamentos cisheteronormativos próprios das mulheres no mundo patriarcal. A origem do termo é incerta. No Brasil imperial, os portugueses já eram chamados dessa forma, talvez por utilizarem tamancas com grossos solados. Posteriormente os usos do termo para designar lésbicas com características de gênero ambíguas se tornaram mais corriqueiros. De acordo com o portal lésbico “Um outro olhar”:
Várias têm sido as apostas na etimologia da palavra, lembrando que os portugueses aqui em nosso país, na época da Independência, também eram chamados de sapatões, talvez em referência aos grossos tamancos que costumavam usar. A versão mais conhecida para a suposta origem da palavra é a de que lésbicas teriam os pés maiores do que os das héteros por natureza ou por usarem sapatos masculinos que lhes davam a impressão de ter pés maiores. De fato, contudo, não se sabe ao certo qual a origem do termo, mas sobre quem o popularizou não resta dúvida: foi o velho guerreiro, Abelardo Barbosa, o Chacrinha, com a marchinha de carnaval Maria Sapatão, divulgada em seu programa Discoteca do Chacrinha (Buzina do Chacrinha, Cassino do Chacrinha), programa que durou, em diferentes versões, dos anos 50 aos anos 80. Maria Sapatão foi o maior sucesso do Carnaval de 1981.[1]
A marchinha de carnaval citada é amplamente conhecida e impactou o imaginário cultural brasileiro desde o seu lançamento. A letra narra a forma como a sapatão vive uma vida dupla: de dia vive uma vida de mulher, e à noite expressa toda a sua masculinidade:
Maria Sapatão
Sapatão, Sapatão
De dia é Maria
De noite é João
Maria Sapatão
Sapatão, Sapatão
De dia é Maria
De noite é João
O sapatão está na moda
O mundo aplaudiu
É um barato, é um sucesso
Dentro e fora do Brasil
Apesar de aparentar ser uma celebração da sapatão, a música geralmente era cantada de forma satírica. A sapatão não estava na moda, nem era um barato e um sucesso no Brasil. Ela é invisibilizada, sofre lesbofobia, violência e estupro corretivo para “virar mulher”. Por conta da marchinha e da sua repercussão, o termo passou a ser visto de forma pejorativa pelo movimento lésbico brasileiro em ascensão a partir dos anos 1980. A palavra melhor aceita internamente entre os coletivos e círculos sociais eram lésbica ou “entendida”[2].
Além disso, é preciso ressaltar a dimensão higiênica do termo “lésbica”. A figura da lésbica se cristaliza a partir dos anos 1990 como um termo politicamente correto, típico da expressão da sexualidade de mulheres brancas, femininas, “que amam mulheres”. A sapatão é associada a sujeitos racializados, que vivem nas periferias, e que sofrem menos aceitação social por engendrarem expressões corpóreo-discursivas que desafiam as expressões de gênero bem aceitas pela branquitude cisheteronormativa.
No entanto, o termo sapatão foi ressignificado e reafirmado algumas décadas mais tarde, por jovens lésbicas ativistas, sobretudo a partir do ano de 2015, quando no Rio de Janeiro surgiu o grupo de ocupação de espaços urbanos e praças Isoporzinho das Sapatão, do qual fiz parte da idealização e produção no primeiro ano. O Isoporzinho, como chamamos informalmente, era uma forma de lésbicas se reapropriarem de iniciativas de jovens que lutavam contra a austeridade econômica que levava a cidade do Rio de Janeiro pré-olímpica a se tornar uma cidade cara para a diversão e lazer. Como as bebidas alcoólicas e a entrada em festas privadas em casas noturnas estavam caras demais, grupos se reuniam com isopores térmicos e levavam as próprias bebidas para praças para consumo próprio. Foi quando surgiu esse termo “Isoporzinho”, que se referia a encontros produzidos inicialmente por pessoas heterossexuais (e dos quais hoje poucos se lembram). O Isoporzinho das Sapatão surgiu nesse contexto, também da necessidade de baratear os “rolês”, mas também de construir espaços de socialização lésbica, que são bastante raros. Foi nesse momento que o termo “sapatão” começou a ter um efeito positivo para a identidade de jovens lésbicas, que ainda tinham resistência de usá-lo, movimento parecido com o que aconteceu no inglês com o termo queer.
Em contrapartida, com a maior aceitação do termo sapatão, a palavra passou também a perder algumas conotações. Por exemplo, passou a se referir menos a pessoas que têm uma vivência mais fronteiriça dos gêneros, e começou a se tornar apenas um termo menos higienizado para se referir às homossexuais mulheres do que “lésbica”. Sapatão foi se tornando uma identidade política que ajudou os corpos de mulheres não-heterossexuais a terem mais visibilidade social, mais impacto político, mas perde grande parte da sua disrupção de gênero. É muito comum hoje, no Brasil, lésbicas femininas brancas se referindo a si mesmas como sapatão.
Ao mesmo tempo, como consequência da visibilidade e negociações culturais que combatiam as imagens “negativas” de pessoas LGBTs nas representações audiovisuais – e que viam as sapatões masculinas como imagens negativas para representar as lésbicas –, as sapatonas gênero-dissidentes começaram a rarear e a se tornarem um corpo marginalizado. Isso colaborou bastante para que a palavra sapatão fosse reapropriada por corpos femininos dentro da vivência lésbica brasileira, com um certo afastamento do seu antigo sentido.
Por conta disso, está em emergência no Brasil uma nova identidade política contemporânea, a sapatrans não-binárie, ou sapatão não-binárie – que pode ser relacionada ao que Audre Lorde descreve como “identidades hifenizadas”, ao se referir a mulheres racializadas na diáspora, como as afro-alemãs (Lorde, 2017).
No artigo “A emergência da cultura e da crítica cultural”, Eneida Leal Cunha (2009, p. 73) nos oferece significações dicionarizadas da palavra “emergência”: “ato de emergir, de vir à tona; situação grave, momento crítico, contingência; dispositivo de segurança que deve ser acionado em situações difíceis; combinação inesperada de circunstâncias imprevistas (ou que delas resulta) e que exigem ação imediata; o que se torna claro e compreensível, o que aparece, se expressa ou se manifesta em determinado momento.”.
Cunha propõe um adensamento do termo através do uso do termo ‘emergência’ recuperado por Michel Foucault, que mapeia em Nietzsche, mais precisamente, em sua Genealogia dos Valores, alguns termos dos quais ele se vale se negando a noção de origem como sinônimo de verdade, pureza, etc:
Como um bom discípulo do mestre que se declarava mais filólogo do que filósofo, Foucault coleciona e interpreta os termos utilizados por Nietzsche para desconstruir a idéia de origem. Proliferam, na Genealogia da Moral e em outros trabalhos, palavras como “começo” (Geburt), “proveniência” (Herkunft), “emergência” (Entestehung), cuja significação não é equivalente entre si, no sentido de que não são permutáveis nem são sinônimos de origem. Constata assim que o termo “emergência” aparece quando Nietzsche se refere ao ponto de surgimento de um valor ou de um conceito, que se produz em um determinado estado de forças; ou à entrada em cena de forças recalcadas, confinadas no silêncio dos bastidores. Nesta perspectiva, a emergência é sempre um lugar de enfrentamento e de afrontamento, de embate entre forças dominantes e forças dominadas, e, portanto, não pode ser compreendida como o ponto inaugural de alguma coisa nem como uma continuidade, mas como efeito de deslocamentos, reposicionamentos ou inversões. Para Nietzsche, a cada momento da história, o que é dominante fixa um ritual, ou seja, um conjunto de obrigações, direitos, marcas e regras, destinado a assegurar uma atribuição de sentido e de valor. Por isto, conclui Foucault, a história de uma palavra ou de uma coisa é a história das forças que delas se apoderaram, é a história de suas significações ou de suas interpretações (Cunha, 2009, p. 73)
A emergência da identidade sapatão não-binárie se aloca nesse lugar de disputas de forças, de reposicionamentos do termo “sapatão”, e de um tensionamento crítico duplo bastante frutífero tanto com o movimento trans quanto lésbico. As sapatões gênero-dissidentes são “forças recalcadas”, que sempre estiveram aí, mas que estão insurgindo neste momento para resistirem e se negarem a se colocar como ponto-cego dentro do próprio movimento LGBTQIA+.
No caso das identidades de gênero contemporâneas brasileiras, podemos tomar também como exemplo e atravessamento para o surgimento da sapatão não-binárie, o termo “bixa travesti”, conceito criado pela cantora, apresentadora, atriz e multiartista Linn da Quebrada. Linn desloca o termo “bicha” – que por muito tempo foi utilizado para se referir pejorativamente a homens gays no Brasil, e com o mesmo movimento que sapatão, passa a ser usado por homens gays brancos masculinos de forma ressignificada e positiva. “Bicha” passa a ser escrita com “x” por Linn, para se diferenciar do termo higienizado “bicha”, e o conjuga com “travesti”, uma identidade cultural brasileira que se refere a mulheres trans. Bixa-travesti é uma identidade cultural da encruzilhada, que ocupa as fronteiras das formas de identificação inteligíveis tanto por parte de uma sociedade cisheteronormativa branca, quanto por parte do movimento LGBTQIA+ hegemônico.
Tanto as sapatrans não-bináries, quanto as bixas travestis, são corpos que desafiam as concepções do norte global sobre identidades trans, que por vezes enrijecem as possibilidades de vivenciarmos nossos corpos de forma livre e criativa dentro das narrativas de transição e das fórmulas do antes e depois. Essas identidades não se comportam dentro de um conceito de trânsito que se encerra em um deslocamento de “Male to Female” ou “Female to Male”, mas se alocam nesse lugar de fronteira, ficam atravessados no meio do caminho. Somos como os corpos de fronteira de Gloria Anzaldua:
tenho cultura porque estou participando da criação de uma outra cultura, uma nova história para explicar o mundo e a nossa participação nele, um novo sistema de valores com imagens e símbolos que nos conectam um/a ao/à outro/a e ao planeta. Soy un amasamiento, sou um ato de juntar e unir que não apenas produz uma criatura tanto da luz como da escuridão, mas também uma criatura que questiona as definições de luz e de escuro e dá-lhes novos significados. (Anzaldúa, 1987)
Somos corpos que amassam os binários em uma possibilidade nova, somos como as criaturas de um bestiário. Criaturas que não desatam de si o aspecto da monstruosidade, da ininteligibilidade. Somos corpos que fundam uma nova epistemologia e uma nova possibilidade de mundo, de vida, e de processos subjetivos. Somos como a falha de Jack Halberstam em A Arte Queer do Fracasso (2021).
A arte queer do fracasso é, conforme a descrição do próprio autor em sua introdução, “um passeio fora do confinamento do saber convencional e dentro de territórios não regulamentados do fracasso, da perda e do ‘inadequar-se’, [que] precisa fazer um longo desvio para evitar disciplinas e caminhos habituais do pensamento” (Halberstam, 2020, p. 28). É uma construção de um pensamento que parte da perda como potência, e o fracasso como lugar constitutivo e frutífero, através de uma perspectiva que se esquiva do otimismo neoliberal – que se manifesta em “positivismos tóxicos” na cultura contemporânea -, e da chamada “alta teoria”. Halberstam inicia seu livro se perguntando qual é a saída para o dualismo entre uma resignação cínica e o otimismo inocente. O que ele propõe é um entre-lugar, um “in-between”. Esse entre-lugar faz parte de um novo modo de relação que ele propõe não só com o pensamento ou a política, mas com a vida, a cultura, o conhecimento e o prazer.
Sapatrans não-bináries desafiam a concepção de que gênero e sexualidade são espécies distintas que se alocam em gavetas separadas. Para a sapatrans não-binárie, a sexualidade e o gênero são uma continuidade. Sapatrans é um resgate da potência disruptiva de gênero das nossas ancestrais que usavam sapatos masculinos, ternos, frequentavam bares e rompiam com as expectativas de gênero de corpos de pessoas designadas socialmente e juridicamente como mulheres. Sapatrans não são mulheres que amam mulheres, são trans e sapatão. Porque há uma filiação a um circuito cultural, político, de desejo a uma cena sapatão: sejam festas, referências, alianças, amizades, etc; etambém a uma cena e um circuito trans*. Só que não há para es sapatrans não-bináries a necessidade de se (homo)normatizarem. Sapatrans não-bináries passeiam em ambos os circuitos (lá e cá) e não consideram ser “sapatão” as “mulheres que gostam de mulheres”, sapatão é uma forma de estar no mundo e viver o corpo que burla as concepções cisheteronormativas.
A categoria sapatão como um conceito político que também diz respeito a uma identidade de gênero. Como as ‘butches’ da cultura estadunidense, o equivalente às caminhoneiras no Brasil – pessoas que constroem seus corpos e subjetividades em um lugar fronteiriço de gênero. As sapatões ou caminhoneires não são somente uma orientação sexual, mas quando falamos delus, por muitas vezes, também temos em mente pessoas que manifestam uma vivência de deslocamento de masculinidades e feminilidades. “As lésbicas não são mulheres”, então, serve às sapatões não-bináries como uma identidade política insurgente, como uma possibilidade que se abre para uma constituição identitária e subjetiva de liberdade. O que retira, além disso, as sapatões de uma certa dependência de suas identidades ao “amor romântico” – dependência que é fruto do machismo. Sapatões não existem só em par, mas existem também em suas existências livres, que navegam no entre-lugar dos binarismos engessados. Daí violências nos banheiros, o estupro corretivo, a invisibilização se dar no cinema, na mídia, nas ruas, sobretudo em relação a esses corpos.
Alguns problemas político-identitários se abrem quando concebemos a existência de sapatrans não-bináries. Uma pessoa que se relaciona com pessoas sapatrans continuam sendo lésbicas? Este é um debate que tem sido produzido de forma bastante categórica e acalorada quando falamos de corpos trans se relacionando com gays ou lésbicas. Tenho sugerido que pensemos os corpos não-heterossexuais como corpos livres para escolherem suas identificações. Não importa se minha companheira continuar se identificando como uma lésbica, porque sei que para ela ser lésbica é uma identidade política que não se limita a uma ideia de “ser mulher” de acordo com a cisheteronormatividade (“as lésbicas não são mulheres”). As lésbicas rompem com esse sujeito engessado do feminismo hegemônico e branco. Um corpo de encontro com outro corpo não precisa necessariamente definir a sua identidade. As produções subjetivas são singulares. Eu não me sinto deslegitimade ao namorar uma lésbica. Acredito que nos encaminhamos para que as identidades sejam provisórias, estratégicas, e dizem muito mais respeito ao nosso trânsito pelo mundo e aos posicionamentos que escolhemos diante do mundo.
O meu processo subjetivo só depende de mim e do meu auto-cultivo, dos meus processos internos e da forma como nego as estabilidades que a sociedade insiste em impor aos nossos corpos. Ser sapatrans não-binárie pode ser percebide como um corpo-enqueerzilhado, para tomar emprestado o termo cunhado pelas pesquisadoras Alessandra Brandão e Ramayana Lira no artigo “Corpas-enqueerzilhadas e alianças insólitas no cinema brasileiro” (2021), ao analisarem como é a aparição dos corpos LGBTQIA+ nos curta-metragens brasileiros contemporâneos produzidos por minorias sexuais e de gênero. Brandão e Lira são
Mobilizadas por uma perspectiva crítica da interseccionalidade, [e se apoiam] na lúcida e revigorante releitura do conceito feita por Carla Akotirene (2019; 2018). A autora ressalta a matriz de pensamento negro que constrói as bases para a formulação do termo antes mesmo de ser cunhado, em 1989, por Kimberlé Crenshaw, no contexto dos estudos de direito nos Estados Unidos. Akotirene também mapeia o percurso teórico e crítico do termo ao longo dos anos, situando-o ao mesmo tempo no âmbito do feminismo negro e da cultura afro-brasileira e diaspórica. Procura, com isso, descolonizar as percepções hegemônicas da interseccionalidade, asseverando que é “da mulher negra o coração do conceito de interseccionalidade” (2019, p. 24). Uma vez que a interseccionalidade é lida em sua dimensão histórica e geopolítica, Akotirene o localiza na complexidade da ferida colonial e do trânsito transatlântico das populações que foram forçadas à escravidão nas Américas. É, portanto, um conceito crivado de ancestralidade, uma “ferramenta ancestral”, como sugere a autora (2019, p. 25), reconhecendo “Exu, divindade africana da comunicação, senhor da encruzilhada e, portanto, da interseccionalidade” (2020, p.20). […] Akotirene recorre à encruzilhada como “o lugar multideterminado dos trânsitos de raça, classe, gênero, sexualidade, fluxos e sobreposições de acidentes identitários” (2019, online). (Brandão e Lira, 2021, p. 58 e 59).
Brandão e Lira propõem uma justaposição entre queer e encruzilhada, como uma recusa do queer para uma apreensão normativa ou de redução identitária e a encruzilhada como “um espaço que acolhe simultaneidades de existências e temporalidades diversas” (Idem, 2021, p. 59). A encruzilhada é um espaço propício para o afloramento dos corpos des sapatrans não-bináries e para o seu auto-cultivo nem-lá-nem-cá, ou com os pés tocando múltiplos terrenos ao mesmo tempo. Um lugar de cruzamento que desafia o pensamento branco e eurocêntrico maniqueísta com sua organização binária.
Talvez seja inconcebível até mesmo para o imaginário de minorias sexuais e de gênero existências que desafiam a concepção corrente do que é uma sapatão. É possível a sapatão ser trans? É possível a justaposição da sapatonice com a transidentidade? Sapatrans não-bináries se alocam na encruzilhada entre masculinidade e feminilidade, entre identidade de gênero e sexualidade. A vivência trans não apaga a vivência sapatão desse corpo. Não é um processo evolutivo se reconhecer trans para es sapatrans não-bináries – passado e presente coexistem nos corpos que não precisam escolher entre passado e futuro.
Jack Halberstam em Masculinidad Femenina (2008), elabora o termo “butch transgênero” que pode nos servir para a compreensão da emergência de outros gêneros trans no contemporâneo, e de possibilidades múltiplas de constituição de si para corpos fora dos binômios de gênero. Quando Halberstam pensa o corpo de butchs transgênero, o autor desafia também uma concepção limitada de masculinidade lésbica que produz uma noção de “graus de masculinidade”, dentro de um contexto norte-americano. Estes graus sugerem que existe uma progressão da masculinidade lésbica que obedece a etapas: androginia butch suave butch stone butch butch transgênero FTM. É uma progressão que vai do não masculino ao muito masculino. Pensar os corpos dessa forma ainda nos deixa limitades a uma percepção binária dos gêneros, como se o corpo transmasculino das butchs e sapatões estivessem em um processo de transição que vai chegar um dia na completa transição para homem trans, e que ainda não são legitimamente trans. As fronteiras bem demarcadas entre sapatão e trans, sapatão e lésbicas, servem a quem? Essa guerra de fronteiras é interessante para os processos subjetivos e para uma prática de liberdade dentro dos movimentos LGBTQIA+ ou só servem para produzir engessamentos identitários? Não estou deslegitimando as identidades de homens trans ou lésbicas, mas abrindo a possibilidade para outras formas de existência que podem ser vividas e construídas pensando os corpos para fora dos binários instituídos nas nossas concepções acerca do esquema sexo-gênero.
Halberstam percebe que corpos de butchs/sapatões podem ter um sentimento de transitividade de gênero em relação à sua corporeidade, à sua subjetividade sexual e na legitimação de seu gênero. Esse sentimento pode ser percebido nas vivências de sapatões não-bináries brasileires. Em uma recente reportagem sobre a emergência de identidade sapatão não-binárie no Brasil, feita pela revista digital AzMina, intitulada “Sapatão não-bináries não é só sobre amar mulheres”, escrita por Helena Bertho e publicada em 26 de agosto de 2021[3], ume des entrevistades, Bê Carobinieri, contexta a percepção política que coloca o corpo da sapatão somente como um corpo de mulher que ama mulheres:
“Nos meus 29 anos, mesmo não sendo uma mulher, eu tive uma experiência na sociedade enquanto sapatão. Muitas pessoas reduzem sapatão a duas mulheres, ambas com vaginas, se relacionando afetiva e sexualmente. Mas na minha experiência pessoal eu vivi algo diferente. A sociedade me atravessou como sapatão desde criança. Muito antes de andar de mãos dadas com mulher na rua, as pessoas gritavam pra me ofender, me chamando de sapatão. Sapatão pra mim, muito mais do que com quem eu me relaciono, tem a ver com como eu fui socializada, minhas pautas políticas, a comunidade onde eu cresci e me formei”
Bê contexta a percepção higienizadora e normativa de que o corpo da sapatão existe apenas quando “ama uma mulher”, e coloca sua subjetividade em um lugar de existência plena, que atravessa a sociedade e sofre violências mesmo quando o trânsito social não envolve uma relação afetiva. Não depende de estar de mãos dadas com uma mulher ou trocar afetos com mulheres para o corpo da sapatão sofrer ofensas. Uma sapatão não-binárie em encontro com a cidade sofre lesbofobia ou transfobia? Ou é um ajuntamento das duas violências, já que a violência acontece por conta do deslocamento que seu corpo produz nas performatividades de gênero aceitas e inteligíveis pela sociedade cisheterocentrada? Acredito que esse é um desafio para as nossas reflexões políticas e para pensarmos uma sociedade possível para esses corpos.
Com a emergência dessas identidades, e a divulgação de que há sapatões que se identificam como não-bináries, têm surgido cada vez mais relatos de violências epistêmicas e exclusões dentro de espaços de socialização e culturais lésbicos brasileiros. Recentemente, em São Paulo, Formigão, ume poeta e escritore que se identifica como sapatão não-binárie e também foi entrevistade pela reportagem de AzMina pregressamente citada, divulgou em suas redes sociais que iria participar dos ensaios de um bloco de carnaval conhecido da cidade de São Paulo, chamado Siga Bem Caminhoneira, e exclusivo para lésbicas. Formigão conta que entrou em contato com as organizadoras pelo Whatsapp e que elas haviam informado o local do ensaio em uma região central da cidade. Elu, que é uma pessoa negra e periférica, precisou gastar dinheiro de passagem e se deslocar para o local do encontro. Ao chegar, as organizadoras não tiveram uma boa receptividade com seu corpo transmasculino, e o informaram que elu não poderia participar do ensaio porque elas não sabiam ainda como tratar pessoas que se identificam como sapatrans ou sapatão-não-bináries dentro de espaços de socialização feitos por e para lésbicas. O relato de Formigão nas redes sociais viralizou e teve um largo alcance (chegou a ser censurado pelo Instagram), e uma parcela significativa das pessoas que interagiram com o post de retratação do bloco[4] transmitiram que a percepção de uma continuidade entre orientação sexual e identidade de gênero tem sido algo mais bem aceito dentro da comunidade, a exemplo deste comentário de @lillianntorqueti:
“Na moral, as mina tem o direito de fazer a festa do jeito que quiserem, mas, é de observar que a festa delimita orientação sexual e não gênero, é interessante o grupo dialogar isso para ser mais acertivo em relação ao que não quer em sua festa. Pois um trans masculino pode ter orientação sexual lésbica, desse modo estaria pertencente ao rolê. Se nunca pensaram nisso meninas, chegou a hora de pensar. Esse vídeo de quem se sentiu excluído também foi um pouco de quero biscoito, podia ter dialogado de outra forma, pois também criou um ataque a comunidade lésbica e BI do rolê. Faltou e está faltando bom senso dos dois lados.”
É interessante que, mesmo não concordando com o fato de que a organização da festa precisa aceitar a presença de Formigão, o comentário citado expõe de forma bastante assertiva que lésbicas podem ser transmasculinas. É cada vez mais visto como legítimo pela comunidade LGBTQI+ brasileira que sapatões podem se identificar como trans. Como diz Formigão em um poema de sua autoria publicado em suas redes sociais: “Sapatão é ser humano / Sapatão é ser um mano.”
Com uma maior visibilidade de sapatrans não-bináries nas redes sociais nos últimos anos, os debates sobre apagamento da ancestralidade sapatão masculina, apagada pela (homo)normatização do movimento lésbico, faz com que influenciadores estejam resgatando a memória de sapatões que desafiavam o binário de gênero no passado e que são, hoje, um ponto cego dentro da pouca visibilidade lésbica na mídia, nas festas jovens, e nas pouquíssimas personagens de séries, filmes, novelas. @raizdomato é o instagram de ume influenciadore sapatão não-binárie indígena da etnia potyguara que em 27 de novembro de 2021 fez um post intitulado “Movimento transmasculine não-binárie e memória lesbi” na sua rede. O texto dizia o seguinte:
Sempre existiram pessoas de identidade masculina e não-binária em espaços lés-bi. Não apenas isso, faz parte da produção intelectual lésbica afirmar a lesbianidade como um lugar fora do binário de gênero. O próprio feminismo/movimento de mulheres não aceitava lésbicas/caminhoneiras/pessoas de buceta que não se adequavam à cisheteronormatividade, pois es consideravam uma ameaça, predadoras, doentes. A real é que na prática e teoria espaços exclusivos para mulheres e lesbianidade/caminhoneirice são coisas que se anulam. A memória lésbica é repleta de pessoas que romperam com a mulheridade e ignorar isso é um processo de higienização e apagamento. Os movimentos lés-bi AINDA são repletos de pessoas que se afastam, questionam, transicionam da mulheridade. Essas pessoas constroem o movimento diariamente, mas sua expulsão segue sendo frequente. A repetição da frase “o que um homem quer fazer num espaço de mulheres” releva como não processam o significado de transmasculino e não-binárie, muito menos o percurso dessas existências. Traidorys da mulheridade, desertorys da cisheteronorma, corpas monstras ininteligíveis, bucetas que não cumprem sua função patriarcal-colonial. Isso é memória lés-bi.[5]
O movimento de resgate de memória que sobrepõe passado e presente, faz com que novas possibilidades se abram para as identidades trans não-bináries no contemporâneo. A emergência de identidades hifenizadas dentro do movimento LGBTQIA+ brasileiro é um sinal de que há uma resistência epistêmica acontecendo no seio desses movimentos, que são atravessados pelo pensamento decolonial, produzido por intelectuais não-branques que fazem parte de minorias sexo-gênero. É um momento de muita importância para imaginarmos novas formas de existir no mundo, e de vislumbrarmos que os corpos podem ser livres e encarnar essa liberdade na forma como se auto-cultivam.
A internet tem sido uma espécie de laboratório de trocas e de produção de saberes e de resistência epistêmica para sapatões não-bináries. É um território possível, sobretudo no contexto da pandemia de covid-19, para produção de redes, comunidades, e apoio, legitimando, assim, a existência de subjetividades em trânsito e em constante (re)construção. “A transição é para sempre”, como diz a faixa criada pelo artista Miro Spinelli. A transição é um processo que não acaba, não nos leva a lugar nenhum, a não ser a nós mesmes, em um infinito inacabamento de si.
* Dri Azevedo é doutore em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC-Rio, professore substitute do Departamento de Ciência da Literatura da UFRJ, integrante do Laboratório de Teorias e Práticas Feministas da UFRJ. É autore do livro Reconstruções queers: por uma utopia do lar (2022).
Referências
ANZALDÚA, Gloria. Borderlands/La Frontera: The New Mestiza San Francisco: Aunt Lute Books, 1987.
BERTHO, Helena. “Sapatão não-bináries não é só sobre amar mulheres”. Revista Azmina, 26 de agosto de 2021. Disponível em: < https://azmina.com.br/reportagens/sapatao-nao-binaries-nao-e-so-sobre-amar-mulheres/>. Acessado em 04 de fevereiro de 2021.
[2] É possível conhecer mais sobre como lésbicas brasileiras se autonomeavam no Documento Especial: Televisão Verdade, programa jornalístico brasileiro criado e produzido pelo jornalista Nelson Hoineff, apresentado pelo ator Roberto Maya e exibido (este episódio) pela extinta Rede Manchete.
“Muito feminina” aborda a homossexualidade feminina. Reportagem de Bernadete Duarte. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=_Mt1aw3a4_E>. Acessado em 02 de fevereiro de 2022.
[3] Disponível em: < https://azmina.com.br/reportagens/sapatao-nao-binaries-nao-e-so-sobre-amar-mulheres/>. Acessado em 04 de fevereiro de 2021.
Sergio Adriano H é um artista negro de Santa Catarina, que nasceu em Joinville, em plena ditadura militar, em 1975. Filho de um pai branco e uma mãe preta, cresceu naquela cidade superando muitos obstáculos sociais e lutou pelo seu direito de sonhar além das expectativas de sua família. Conquistou o título de mestre em filosofia em 2016, pela Faculdade São Bento, São Paulo, e Licenciatura em Artes Visuais em 2005, pela Universidade da Regional de Joinville, SC. Atualmente vive e trabalha entre Joinville e São Paulo. Sergio Adriano H sempre reafirma sua origem como forma de luta e resistência: “Eu sou um artista nascido em Joinville, eu sou de Santa Catarina. Eu pontuo muito isto para que as pessoas tenham essa referência de que existem pessoas pretas nesse estado tão branco” (H Adriano, 2023). Em sua produção, Sérgio vem questionando as “verdades apresentadas” a ele desde que começou a se compreender como um corpo negro crescendo dentro de uma sociedade estruturalmente racista. A partir desse lugar de exame profundo das suas vivências, Sérgio Adriano H toma para si a palavra a fim de colocar sua percepção de temas como identidade racial, violência, invisibilidade e apagamento social. Seu trabalho, exibido em mais de 140 exposições individuais, coletivas e salões, vem sendo premiado e reconhecido nacionalmente e tem ganhado visibilidade no exterior. Sua biografia foi incluída no livro Construtores das Artes Visuais: Cinco Séculos de Artes em Santa Catarina (Boppré, 2014).
As imagens e todas citações do artista que integram esse ensaio visual são partes de uma entrevista com Sérgio Adriano H concedida à artista visual e mestranda Dalva França de Assis e sua orientadora Dra. Silvana Macêdo, em abril de 2023. Esta entrevista, ainda não publicada, integrará a dissertação de mestrado de Dalva França de Assis acerca das violências simbólicas contra corpos negros nas artes visuais e mídia contemporâneas, em desenvolvimento no PPGAV-UDESC.
O que me deu o poder do sonho foram as artes, a arte me tirou da passividade de responder perguntas e me colocou como formulador. Essas perguntas me levaram a questionar a verdade apresentada, e questionar essa verdade me levou ao conhecimento, e o conhecimento me levou à felicidade. Aprendi a sonhar e o sonho me fez artista. Então quando alguém vê uma obra minha é para fazer esse caminho que eu fiz, um caminho no qual eu fui salvo. Eu sempre penso que assim como eu fui salvo pelas artes, eu posso salvar outras pessoas através da minha arte. Se o médico cuida das pessoas com remédio, eu cuido das pessoas com arte e o meu cuidar com arte é levar a pessoa a sonhar, porque quando você perde o poder do sonho, ou você não sabe sonhar, ou estão aplicando em você o racismo estrutural.
Eu devo ter ganhado um livro lá pelos 12 anos de idade, de uma prima minha que era do Rio de Janeiro, a Rose. Era sobre os direitos universais em forma de desenho. Esse livro me alfabetizou porque os desenhos me levaram a entender o que estava escrito ali. […] Na arte também tem as palavras da moda. Tudo tem as palavras da moda e uma das coisas que eu me mais me preocupo é de como conversar com o senhor que deixa a rua limpa e a senhora que está indo para limpar a sua casa em um nível que não seja raso e que seja entendido por elas. Como transformar o meu repertório intelectual e artístico plausível para todes e conversar com uma pessoa que, mesmo sem saber ler (porque o analfabetismo ainda existe em nossa sociedade), consiga através da observação das minhas imagens de arte transformar em uma experiência significativa. Na minha obra – Ordem e Progresso – da série Justiça I de 2018 tem a imagem da justiça e na boca dela tem um martelo que é um martelo de carne que você usa na cozinha. Como fazer que uma pessoa analfabeta consiga associar esse martelo à nossa justiça e se questionar sobre o nosso sistema judiciário? Essa não-palavra, é a palavra-imagem enquanto se acha que seja o que ela pode ser. Essa é a minha grande questão, porque para mim a palavra é tão importante quanto a imagem.
Então, quando eu vou tratar das questões do feminino, elas estão ligadas à afetividade. Por exemplo, há uma história por trás do pente de cabelo que aproprio: a minha irmã mais velha jogava handebol nas competições escolares municipais por um colégio público. Ela jogava muito bem e uma escola particular lhe ofereceu uma bolsa de estudos porque eles queriam ganhar a competição municipal. Então, ela foi estudar nessa escola particular e ela era a única menina negra. Para minha irmã parecer mais com as crianças da escola, a minha mãe pegava um pente de ferro, esquentava no fogão e passava no cabelo da minha irmã para alisar. Todo dia eu via a minha mãe fazendo isso com o cabelo da minha irmã. Quando você passa o pente quente no cabelo dá um cheiro de queimado, mais que isso: às vezes a minha mãe fazia errado e encostava o pente no couro cabeludo e a minha irmã ficava com queimaduras. Então, quando eu fui tratar sobre a estética feminina, desse racismo que perpassa o cabelo, era sobre essa afetividade que acontecia em casa, era essa estrutura na qual a minha irmã foi criada e tinha que se submeter para estudar no colégio particular. Quando eu vou fazer essa obra, que é sobre a beleza feminina, eu coloco um pente em cima do livro Como se tornar bela e tem uma trança gigante com cabelo sintético e liso, estilo cabelo de Rapunzel. É sobre essa ótica, então eu tenho esse cuidado, de tratar um fato que tem a ver com o meu cotidiano e afetividade do meu entorno, é a experiência que eu tive. Então, não é uma coisa solta, eu não vou pegar alguma coisa do feminino que está longe da minha experiência. E aí, vou pensar sobre a trança que está no meu trabalho: a trança foi feita por uma mulher africana daqui do centro de São Paulo, fui eu quem pediu para ela fazer esse trabalho, expliquei para o que era. Ao agregar isso no meu trabalho, eu sempre digo que meus trabalhos não são soltos, todos eles se ligam em pontos, e essa estrutura toda tá dentro de uma redoma de vida que você vê e pode modificar.
Eu penso que deveríamos ter letramento racial. Porque qual é a questão dessas pessoas de não entenderem a sua cor, gênero, raça e classe social? E não entender que eles não estão dentro dos privilégios, estou falando de um homem e uma mulher negra não combaterem o racismo ou discriminação? A minha mãe por exemplo, falava para eu não ficar muito tempo na praia porque eu ficava muito mais preto do que já era. Ela falava: “Não vai ficar tucum – tucum é uma frutinha que é verde e quando amadurece, fica preta (essa fruta tem apenas no Sul) – e na cabeça da minha mãe que estudou até a quarta série, ela achava que quanto mais preto eu ficava, mais eu ia ser discriminado. Mas ela não tinha letramento racial para conseguir transformar o que realmente ela queria dizer sobre a cor do tucum e dizer para eu conseguir combater o racismo, porque ela não tinha força para combater o racismo. E aí quando você entende que, ao se apropriar do letramento racial, de classe, gênero e raça, você combate o racismo. Quando você foi adestrado socialmente, porque existem muitas pessoas que foram adestradas, e quando há esse adestramento você manda a pessoa sentar e ela se senta, ou seja, se eu digo a ela que não existe racismo e ela concorda com esse senso comum que foi incutido no pensamento: não existe racismo e ponto. Tem pessoas que são pretas, mas, não se acham pretas porque elas vivem em locais em que o entorno não as deixa sentir que são pretas, este é o racismo recreativo. Então o que é o racismo recreativo? São piadas de humor que incomodam quem tem a sua cor enquanto consciência; quando você não tem a cor enquanto consciência continua sendo racista e vê o racismo apenas como humor. Então eu acho que é isso que temos que passar para o Brasil: uma educação que toque nesses assuntos e que as pessoas saibam qual é o papel delas e onde elas se ocupam na sociedade.
Eu tenho certeza de que a morte não é só física, mas é moral, social, então devemos prestar atenção nos números no Brasil, quantas pessoas negres tem problemas mentais e se você for pesquisar vai ver que a quantidade maior é de pessoas negres; não são de brancos. E por que isso? Isto está ligado ao cotidiano, está ligado ao racismo. Por isso que eu falo que ela não é só moral, é social. Quando eu não tenho os códigos de comportamento é uma morte social, quando não eu não tenho vocabulário do lugar é uma morte social. Eu vou dar um exemplo porque que um homem negro apanha no Rio de Janeiro por 15 minutos e ninguém faz nada ou uma família tá indo pro batizado leva 80 tiros de fuzil no Rio de Janeiro, e é banal, ou por que que todos os chanceleres mundiais vão ao pico na Suíça onde caiu um avião com 80 europeus e faz a homenagem, o Papa vai lá também. E por que um navio com cinco mil Imigrantes afunda e ninguém fala nada? Porque que esses Imigrantes estavam vindo da África, são negros. Então o descarte do corpo negro em sociedade é gigantesco, por isso quando eu vejo o aumento das questões de violência contra esses corpos, tudo está ligado a essa política de valorização da branquitude, para mim está tudo muito ligado a isso e que a gente continua aí na mesma. Cinco séculos se passaram e continua a mesma coisa; e a gente continua com a imagem do Debret na cabeça. A pintura dos negros apanhando e pronto. Por que que uma mulher branca que é técnica de vôlei pode bater em homem negro, na semana passada, como se ele estivesse preso no tronco, sabe? Então eu vejo muitas dessas ligações, a imagem tá muito presente no nosso cotidiano, a imagem colonial, essa missão artística francesa que veio para o Brasil e retratou a botânica, ótimo! Mas por outro lado, também retratou os negros como se fossem animais e aí essa branquitude continua vendo a gente nesse lugar.
Quando eu vou fazer essa série PÁTRIA ArMADA que eu uso a Bíblia e dicionários, todos esses elementos ainda continuam matando pessoas, eles matam de um jeito que é invisível e permitem matar. Isso acontece porque você não vê as igrejas se manifestarem em nenhum momento contra essa quantidade de corpos negros mortos. Se a cada 23 minutos um homem negro morre no Brasil, quantas mulheres negras a mais são violentadas? A quantidade de violência contra corpos femininos negros é muito maior, não tem essa estatística precisa. Em São Paulo a polícia não quer mais colocar a etnia no boletim de ocorrência. São esses apagamentos que você não consegue ver quem está sendo fuzilado na sociedade, quem foi morto pela polícia. Isso é uma forma de apagamento, então, e aí, você vai linkar que o governo e sociedade tão juntas num pacto, juntamente com esses outros movimentos.
Um dos pontos de start foi quando fui para Maceió pesquisar sobre a “quebra do Xangô” que aconteceu em 1912; e como a esquerda estava na frente, a direita falou que era porque a esquerda estava usando magia negra e por isso a Igreja Católica autorizou a quebrar os lugares de matriz africana e matar negres, fui até lá para entender essa história e a do quilombo Palmares. […] Esse foi o primeiro território livre do Brasil, onde eles se uniram para combater os bandeirantes. Quando fui entender esse sistema pensei: estou precisando fazer uma série gigante sobre esse descolonizar cor e corpos. Porque o título ali é descolonizar cor e corpos, tem uma jogada de palavra dentro do título que é uma coisa que eu faço muito. E depois fui para residência no Armazém [Coletivo Elza, Sambaqui, em Florianópolis] e o que fui fazer na residência? Entre N coisas que eu fiz, uma série eu fiz com cobertor de moradores de rua e com a faixa escrito “DEsCOLONIZAR” em vermelho (as letras do título estão maiúsculas e o “s” em minúsculo). Depois vem essas transformações de cortar o “s” com X e ir para outros lugares. A foto-performance foi no Sambaqui, onde Dom Pedro chegaria, em uma rua em Santo Antônio de Lisboa, a primeira rua calçada de Santa Catarina, e quem calçou essa rua foram os corpos escravizados, e a primeira etapa é questionar isso. Depois vou para Porto Alegre na Praça dos Enforcados que foi renomeada como Praça da Harmonia, e não se conta a história de 16 negros que foram enforcados nesse lugar. Depois vou para o Parque das Redenções que tem a ver com a guerra Farroupilha onde eu estou com uma lança na mão fazendo uma alusão aos lanceiros que eram os escravizados e foram para a guerra lutar acreditando que ganhariam a liberdade se voltassem, essa foi a promessa feita a eles. Lutaram descalços, porque os negros não usavam sapatos, escravizados não podiam usar sapatos. Eu fiz uma lança que é uma lança de cana de açúcar.
Então quando vou para o palácio Cruz e Souza, coloco meu corpo na escadaria de mármore branco. Quando estou só com um cobertor em um Sambaqui e tem uma foto do entorno com duas canas em forma de arco, como um portal. Então quem é esse ser? Quem é essa pessoa nesse lugar? Quem é esse que está chegando? O comportamento, a postura, a indumentária como um cobertor fazem essa alusão. Essa é uma série na qual estou trabalhando muito, e pretendo levar para o Rio de Janeiro e Curitiba, onde tem a Igreja do Rosário. Estou construindo esse pensamento do país, conectando informações sobre o Palmares e a chegada no Rio de Janeiro evidenciando o sul do país, onde os resquícios coloniais são mais presentes.
* Dalva França de Assis é mestranda em Artes Visuais na Universidade do Estado de Santa Catarina (PPGAV-CEART), com graduação em Artes Visuais pela Universidade do Estado de Santa Catarina (2019). Professora de arte da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, tem experiência na área de Artes, com ênfase em pintura e Graffiti. Colaboradora da Casa de Apoio à Mulher Helenira Preta na cidade de Mauá.
* Silvana Barbosa Macêdo é PhD Fine Arts (2003) e MA Fine Arts (1999) pela Northumbria University, Newcastle, UK. Fez pós-doutorado pela UCS/CNPq e é professora efetiva da Universidade do Estado de Santa Catarina, com experiência na área de Artes, com ênfase em pintura e multimeios, investigando principalmente ambientalismo e feminismos.
Referências
BOPPRÉ, F. et al. Construtores das Artes Visuais: Cinco Séculos de Artes em Santa Catarina – Volume 2. Florianópolis: Tempo Editorial, 2014.
ADRIANO, Entrevista ainda não publicada, concedida a Dalva França de Assis e Silvana Barbosa Macêdo, em 17 de abril de 2023.
1. Até que a ventania revele os contornos de uma arquitetura[1]
É tarefa exigente acolher os testemunhos de moradores da Maré sobre a violência armada e seus impactos, fazendo-os ressoar para além de truísmos, glosas e análises projetivas de conceitos previamente formulados, que muitas vezes funcionam como preconceitos. O que se oferece aqui é apenas o movimento na direção desse acolhimento, nem por isso isento de riscos, uma vez que as boas intenções não garantem fidelidade aos compromissos da consciência. Quanto ao primeiro passo não resta dúvida: é preciso escutar, outra e outra vez, apurando a recepção ao que se diz e ao que se cala, levando em conta os contextos interlocucionários e históricos, apreendendo os dinamismos estruturais na mediação performática da linguagem, deixando-se interpelar em todos os registros possíveis pelas manifestações reunidas em entrevistas e depoimentos, de tal modo que as senhas para a decodificação provenham dos próprios autores e das próprias autoras dos discursos coletados. O que se sabe com certeza é que abordar analiticamente uma comunidade criativa implica aproximar-se de uma constelação extraordinariamente complexa, cambiante e contraditória de percepções, afetos e práticas.
Além dos percalços típicos aos mais diversos segmentos das classes subalternas na sociedade brasileira, sobredeterminados pelas presenças insidiosas e combinadas do racismo e do patriarcalismo, acrescentam-se, em nosso caso, conflitos armados entre grupos civis e confrontos sangrentos provocados por incursões policiais. Sobre esse conjunto tenso de fatores incidirão a pandemia e seus impactos econômicos, intensificando o desemprego crônico, o desalento, a precarização do trabalho, a expansão da informalidade em condições críticas e o empobrecimento. Não por acaso os efeitos da Covid se distribuem desigualmente, em prejuízo dos mais pobres, sobretudo das mulheres e da população negra.
A equipe responsável pelo survey, no âmbito da pesquisa “Construindo Pontes”, para a qual esse texto pretende ser um suplemento, teve o cuidado de dividir a amostra em três segmentos, porque há três áreas na Maré nas quais, por hipótese, os moradores tenderiam a responder distintamente às questões relativas à exposição à violência armada: duas áreas onde se destaca a presença de grupos civis armados, ligados a dois diferentes comandos do tráfico de substâncias ilícitas, e uma em que atuam milicianos, cujas relações com as polícias são bem conhecidas, onde, portanto, não há incursões policiais. Os resultados confirmaram a hipótese, revelando diferenças significativas e consistentes não entre as áreas em que estão grupos do tráfico, mas entre essas e a terceira, na qual a influência da milícia bloqueia operações policiais. Ficou evidente que o fator decisivo na exposição traumática à violência armada é a brutalidade policial. Confrontos entre grupos civis são relevantes, provocam tiroteios e vítimas, produzem danos graves, mas o eixo de referência central é a relação com o Estado, o grande divisor de águas é a existência ou não de invasões policiais.
O recorte da pesquisa focalizou incidentes e sobressaltos provocados por armas e atos violentos, que interrompem expedientes, bloqueiam agendas, fecham comércio, cancelam aulas e atendimentos em postos de saúde, esvaziam ruas, interferem na circulação, ferem, mutilam, matam, abalam, aterrorizam, ameaçam e inscrevem acontecimentos dramáticos na memória coletiva, nas biografias e no curso dos dias.
Os eventos atravessados por tragédias são pontuações que inscrevem a descontinuidade com potencial traumático no fluxo incessante do tempo vivido. Em alguns casos, os relógios param, prendendo à dor as vítimas diretas e indiretas.
Por isso mesmo, o cotidiano torna-se uma conquista e uma construção.[2] Reconciliar-se com o cotidiano corresponde a tocar a vida sem fixar-se no medo e no perigo, sem permitir que a insegurança roube a serenidade, a sanidade e a fruição de prazeres e afetos, abrindo espaço para a perspectiva de mudança. Reapropriar-se do cotidiano está longe de implicar rendição impotente ao intolerável ou denegação da realidade. Não significa acostumar-se ao inaceitável, mas retomar para si a vida, esta mesma posta em risco com frequência por confrontos entre grupos armados e incursões policiais. Mulheres e homens de todas as idades exercitam, antes e em certo sentido acima da cidadania, a guarda desse tesouro precioso que é o cotidiano a ocupar, reinventar e desfrutar. Reapoderar-se do cotidiano, guardá-lo, deve ser interpretado como uma realização que liberta, porque rompe com automatismos, adaptações reativas, ajustes funcionais à ordem da necessidade, normas e expectativas estabelecidas. Liberdade é uma categoria aplicável porque o cotidiano a ser conquistado, e guardado, não é um passado edulcorado a que se queira retornar e que deva ser restituído à comunidade. Não se trata do bem viver ideal nem de projeto político delineado, mas de uma possibilidade de convívio comunitário experimentado em tantos momentos autônomos relativamente à tensão e ao medo, celebrados de forma concentrada e intensa em rituais religiosos e festas, mas desfrutados também nos encontros prosaicos nas lajes e esquinas, nos botecos e nos becos, nos almoços de domingo, nos jogos e brincadeiras, na mansidão solitária da poeta, no enlevo musical, na onipresença redentora da música, na frugalidade que vale tanto, nos espelhos do salão de beleza, no alvorecer em paz, numa noite de amor.
Identificar, valorizar e guardar potencialidades inscritas na prática diária talvez constituam etapas de uma obra coletiva em construção, ensaio de uma modalidade embrionária de sensibilidade utópica: afinal, outra coisa está ali, além do que ostensivamente se dá a ver e saber. Por isso, os testemunhos tendem a nos interpelar sobrecarregados de mundos: a abundância emana do bulir com ambiguidades, contradições e lacunas, avançando e recuando entre ditos e não-ditos, explorando por tentativa e erro os limites da linguagem, excitando a imaginação criativa. Não é fácil divisar o que está na brecha entre atos, muros, linhas e silêncios, muito menos distinguir o que a realidade exclui (por incompatível com quaisquer condições de possibilidade) daquilo que ela recalca mas traz consigo, como a sombra fértil da negação que inscreve o movimento dialético no campo da história. Não é arbitrário que a palavra potência tenha passado a figurar com tanta assiduidade no léxico popular, sobretudo entre jovens que integram coletivos. Se não é simples divisar o que está na brecha, deduz-se quão exigente seria tomar posse do cotidiano, na medida em que tal apropriação implicasse o engajamento no esforço de saber de brechas e das sombras férteis dos fatos. Apropriar-se da vida cotidiana se revela, portanto, “uma busca e uma investigação”, como diz Cavell, citado por Veena Das, em um sentido diverso mas comparável ao nosso (cf. Cavell, 1987, apud Veena Das, op. cit.).[3]
A versão da Maré que vai aqui alinhavada é simplesmente a sequência editada de flagrantes dessa obra de libertação, ou melhor, desse empenho incansável em alcançá-la, da qual o desejo de arte, embora tão importante, está longe de ser a única evidência e para o qual a tenacidade de Sísifo talvez ofereça o modelo.[4]
Uma passagem inspiradora de Veena Das dialoga diretamente com temas que são também os nossos, a despeito das distâncias geográfica, histórica e cultural entre a Índia e o Brasil, entre a trajetória individual da mulher que a autora acompanha, Asha, e as trajetórias que se entrelaçam na Maré, entre a guerra com o Paquistão e os conflitos armados nas favelas cariocas:
(…) a memória da Partição (a sangrenta divisão dos territórios provocada pela guerra) não pode ser entendida, na vida de Asha, como uma posse direta do passado. Ela é constantemente mediada pela maneira em que o mundo está sendo habitado no presente. Mesmo quando parece que algumas mulheres tiveram uma sorte relativa porque escaparam à violência física direta, a memória corporal de estar-com-os-outros faz com que o passado cerque o presente como atmosfera. Isso é o que quero dizer pela importância de descobrir meios de falar sobre a experiência de testemunhar: que se nossa maneira de estar-com-os-outros tiver sido brutalmente estragada, então o passado entra no presente, não necessariamente como memória traumática, mas como conhecimento venenoso. Esse conhecimento pode ser enfrentado apenas pelo conhecimento através do sofrimento. Como diz Martha Nussbaum (1986:46): ‘Há uma espécie de conhecimento que funciona pelo sofrimento, porque o sofrimento é o reconhecimento apropriado do modo como a vida é nesses casos. E, em geral: captar seja um amor ou uma tragédia pelo intelecto não é suficiente para ter um conhecimento humano real’[5] (p. 35).
Um dos aspectos intrigantes dessa modalidade de conhecimento -e quanto a esse ponto Veena Das não necessariamente concordaria, porque seu pensamento é mais fiel a Wittgenstein do que o desdobramento aqui sugerido- poderia ser definido como a irredutibilidade às palavras, o que o situa, em certa medida, além e aquém da inteligibilidade, numa zona incerta entre conceitos, imagens e afetos, sem que por isso o situe fora da esfera do comunicável. Pelo contrário, esse conhecimento é quase inteiramente comunicação, embora prescinda de mediações, e até mesmo por delas prescindir. Mais do que comunicação, cujo modelo esquemático é triangular (emissor, receptor e mensagem), no sofrimento está-se em comum no comum (a mensagem não tem autonomia ou objetividade própria, que permita a seu respeito o juízo de agente externo ao dueto original: a comunicação é o encontro). Também por isso é reconhecimento: não porque se reencontre o vivido, mas porque é comunhão, (re)encontro com o Outro. As mães que perderam seus filhos para a violência policial, por exemplo, sustentam-se umas às outras e nada precisam dizer, sabem que as demais sabem o que quer que se precise saber para comungar a dor indizível. A perda de um filho não cabe em palavras e situa quem a sofre num ponto não localizável, materialmente, mas consabido por quem compartilha a experiência. Trata-se de um ponto de encontro duplo: ali a mãe (ou o pai, ou os irmãos – Antígona é irmã da vítima – usualmente a mãe é a protagonista) se encontra a si mesma e às companheiras de infortúnio. Justamente porque envolve o encontro consigo mesmo e com o Outro (e consigo enquanto Outro – o que desencadeia mudança, pois incita a tornar-se Outro), o conhecimento proporcionado pelo sofrimento é também (re)conhecimento. Dá-se uma dobra porque o sofrimento incorpora uma dimensão reflexiva: o sujeito “se encontra” significa, aqui, não o triunfo da razão ou da consciência, ou a superposição entre o ser e sua “essência”, mas a entrega desarmada à supremacia da dor, movimento que pode ser libertador caso seja uma etapa do trabalho do luto, etapa sucedida pela simbolização integradora, para cujo êxito é decisivo o compartilhamento. O luto se revelaria, assim, um processo comparável, em sua estrutura dramatúrgica, aos rituais de passagem: transita-se da perda dolorosa à aniquilação, e daí, amparada pelas parceiras, ao cotidiano, de volta à vida.
Referindo-se às perdas de Asha, Veena Das escreve: “Isso só poderia ser consertado permitindo a si mesma uma descida ao mundo ordinário, mas como se de luto por ele. A recuperação não estava em empreender uma vingança contra o mundo, mas em habitá-lo num gesto de luto por ele” (Veena Das, op. cit., p. 37 e 38). Lembremo-nos de que habitar o mundo é estar com, e entre, outras e outros. E a estabilidade implícita na permanência, que é um dos significados intrínsecos ao verbo habitar, aponta para o cotidiano. Esse é o horizonte da construção coletiva da liberdade, obra minúscula, volátil e interminável, fruto do modesto e imperceptível heroísmo de tanta gente que sofre, sobretudo mulheres negras nas periferias brasileiras. Nem resignação, nem imobilismo, nada a ver com falta de fibra e de luta, menos ainda com alienação e conformismo. Diante de nós está sendo erguido, no desfiar dos dias e das noites, um monumento invisível, tão majestoso quanto diáfano, que diz sim à vida e oferece à história a fertilidade do espírito e a inteligência do corpo. O novo mundo está em gestação. A chave para intuí-lo está na disposição de experimentar a empatia com o sofrimento alheio e abrir bem os olhos, apurar os ouvidos, admitir a própria ignorância e começar de novo, mais uma vez, até que a ventania revele os contornos de uma arquitetura.[6]
Além de conhecimento, reconhecimento e comunhão, o sofrimento pode ser entendido como a matriz do valor, o que ajuda a explicar o sentido desse ponto de encontro imaterial, elaborado no parágrafo anterior. O encontro se dá no valor e como valor, mobiliza uma ética que transcende epistemologias, métodos e racionalidades, uma ética que é morada, lugar comum que abriga e compreende (sendo continente, antes de ser conteúdo e cognição):
É o sofrimento que constitui o campo de uma experiência humana que, sendo radical e responsável pela inscrição de uma diferença matricial entre momentos do processo existencial ou entre formas de vida, e, não podendo dar-se a pensar ou a traduzir-se, intersubjetivamente, transforma-se em valor, isto é, na qualificação diferenciadora por excelência, independentemente dos conteúdos específicos aos quais se associe. O sofrimento, portanto, é a referência virtual do valor (Soares, 1993: p. 98).[7]
Se o sofrimento é um tipo de (re)conhecimento, talvez previna os mais calejados, e idosos, contra o medo -o que ajudaria a explicar resultados surpreendentes do survey: os mais velhos (dizem que) têm menos medo. Contudo, devemos avançar com cautela (e não só porque a velha geração masculina fora formada na contenção dos sentimentos e de sua exibição): esse paradoxal benefício do sofrer, o conhecimento, pode mergulhá-los no veneno tóxico que conhecer traz consigo. Acompanhemos o diálogo de Veena Das com Stanley Cavell:
Nesse ponto, minha análise do que é para Asha e para a irmã de seu primeiro marido trabalhar para superar esse conhecimento venenoso (refere-se ao) sentido de ser amaldiçoado ou ficar doente pelo fato do próprio conhecimento – isto é, de saber mais que os outros sobre as condições do conhecimento. O contexto dessa reflexão (evoca a ideia do) conhecimento como infectado e (…) tem a ver com todo o tema da desconfiança do cético nas relações, suas demandas por mais e mais provas – e, no entanto, o que pode curar essa condição não é mais conhecimento, mas o reconhecimento de que algumas dúvidas são normais e que a cura da suspeita não pode vir de dentro da própria suspeita (Veena Das, op.cit., p. 37 e 38).
A autora cita Stanley Cavell (1987:196-97), que veria nisso
a questão de aceitar ou rejeitar o conhecimento. Entretanto, assim como Cavell repetidamente aponta para a condição do sujeito moderno dentro do ceticismo (assinalado pela morte de Deus na filosofia), mostrando que a questão é historicamente situada, parece-me que vir a duvidar das relações que a Partição (na India) amplificou tem uma especificidade própria (assim como os confrontos bélicos na Maré têm suas particularidades). Isso só poderia ser consertado permitindo a si mesma uma descida ao mundo ordinário, mas como se de luto por ele. A recuperação não estava em empreender uma vingança contra o mundo, mas em habitá-lo num gesto de luto por ele (Veena Das, idem, ibidem).
Se o ceticismo de que trata a autora indiana diz respeito à especificidade da Partição, na Maré, a incredulidade corrosiva – que prostra, imobiliza, despolitiza e isola as vítimas indiretas da violência armada –, detectada em alguns casos, pode ser remetida às iniquidades cinicamente toleradas, preservadas e praticadas pelo Estado ao longo das décadas em que transcorreram as trajetórias biográficas dos moradores, imigrantes ou não (cf. Soares, L.E.,O Brasil e seu duplo, Todavia, 2019). Evidentemente, nem sempre a força psíquica e a solidariedade bastam para que os indivíduos resistam ao devastador sentimento de impotência para o qual não faltam motivos. Quando o sofrimento suscita conhecimento venenoso, a esperança desaparece e a aridez que a substitui é mortificante. Nesse sentido, a depressão é um subproduto da violência, sua extensão internalizada. No polo oposto estão os modos de percepção e os regimes afetivos desenvolvidos por membros de grupos civis armados, os quais, expostos a riscos extremos e perdas sucessivas de companheiros – sofrendo, portanto –, aparentemente são contagiados pelos efeitos deletérios do conhecimento tóxico, porém metabolizando o veneno de modo inverso àquele conducente à depressão. Em vez de se abaterem, assimilam, alguns, o veneno como combustível para uma vingança imaginária, infindável e impossível. Quando isso acontece, deixam de focalizar o andamento dos negócios e de agir para reduzir tensões em favor da fluidez do comércio. Passam a atuar sob a regência da vingança, prejudicando seu próprio mercado e elevando os riscos a que se expõem, como nos disse quem viveu na carne esse drama[8]. A obsessão por vingança condena o sujeito à prisão perpétua. Entende-se a revolta que cerca a dor da perda dos parceiros mortos em confrontos com as tropas policiais, porque entre elas estão alguns sócios dos negócios ilícitos, o que denota a hipocrisia dos slogans maniqueístas.
2. Virtudes da hesitação
Palavras que definem a Maré? A entrevistada, moradora que nasceu e foi criada no complexo de favelas da Maré, não hesitou:
Potência, resistência, alegria, força. Muitas coisas boas pra jogar você pro alto, porque, apesar de tudo, tem muita coisa boa. A gente não pode focar no que existe de ruim. Faz parte, é significativo, mas tem tanta energia boa aqui dentro, tanto sorriso, tanta vibração pra cima, que me traz muito mais a sensação de resistência e intensidade, força, do que me faz pensar em dor, tristeza, violência. Mudança, a Maré é isso, mudança, desejo. Mudança e desejo.[9]
Esse depoimento poderia abrir ou fechar o presente ensaio. E talvez bastasse, porque entre “potência” e “desejo”, a primeira palavra e a derradeira, o que é decisivo está presente, resumidamente. O sofrimento, as mazelas, a violência e as iniquidades não são subestimadas, muito menos negadas, estão lá, devidamente registradas no “apesar de tudo”, e no “que existe de ruim”. É o que demonstra o conjunto da entrevista, fazendo eco a muitas outras, nas quais não faltam menções a inúmeros problemas dramáticos, entre os quais o saneamento, a saúde, a educação, o acesso a direitos, bens e serviços.
A despeito da nitidez desse depoimento solar, em seu espírito, repleto de afetos positivos, e iluminador para a reflexão, o diálogo inclui momentos sombrios e hesitações que apenas atestam a sensibilidade, a acuidade analítica e a inteligência da entrevistada, mais fortes do que idealizações que acabam sendo, por sua própria natureza, unilaterais e reducionistas. Nossa interlocutora sabe o que são ansiedade e depressão, sentiu na pele seus efeitos, e a pele aqui remete à problemática do racismo, enquanto estrutura profunda que ordena a sociedade brasileira, historicamente, e se manifesta em múltiplas instâncias. É aí que se inscrevem as vivências traumáticas de que ela foi vítima, seja pela disseminação do preconceito na cidade, seja pela brutalidade das polícias que não esconde seu viés de cor e classe, e costuma ser letal.
Nossa interlocutora pondera, em outras palavras: Tem quem talvez não sinta medo e quem não fale para não ter de responder as perguntas seguintes, que decorreriam da primeira resposta. Há quem mascara os sentimentos e prefere não pensar – o mesmo acontece em outras áreas da vida, outros sentimentos também são calados. Nesse caso, o que existe é mesmo a dificuldade de expressar os sentimentos, o que também bloqueia a expressão dos pensamentos. Falar muito pode ser perigoso. Ao longo da vida na Maré, aprendi que: tenho boca e não falo, tenho ouvido e não escuto, tenho olhos e não vejo. É o reinado do silêncio. Falar demais é acusação gravíssima. Houve quem foi expulso e até quem morreu.
Embora enfatize que o alvo principal de seu temor são as polícias, ela relata cenas de violência protagonizadas por membros dos grupos armados. Cenas que nunca lhe saíram da cabeça. Teme agressões policiais a ela e, sobretudo, a seus familiares, assim como ao conjunto dos moradores, quando há operações policiais, em especial cita o medo de que sua casa seja invadida, depredada e roubada, porque é comum a pilhagem de residências por parte dos autodenominados agentes da lei: butim de guerra. Em seus próprios termos:
Nas incursões, tenho medo de um familiar estar na rua, medo de alguém ser atingido, poxa, fulano estava indo trabalhar e levou um tiro, isso é tão comum; medo de policiais invadirem minha casa, de policial fazer alguma covardia comigo, com meu esposo, que é negro, com algum familiar. Medo de encontrar a casa revirada, roubada.
As declarações de nossa entrevistada suscitam uma reflexão mais ampla sobre a relação entre as palavras e as coisas, a linguagem e os fenômenos, as categorias que descrevem a experiência e a experiência da descrição por meio de categorias, o testemunho e a consciência, o depoimento e a especulação crítica. O alcance vai além dos temas imediatamente contemplados. Aqui está um exemplo: ela conta que participa de um bloco, criado em 2006, cuja “proposta é romper as fronteiras imaginárias – imaginárias entre aspas, não é tão visível, é e não é”. A fronteira referida é a divisa que separa territórios sob domínio de facções rivais do tráfico. As questões são, entre outras: o que está visível?, o que não está visível?, e o que, mesmo visível, não deve ser reconhecido ou nomeado? O que não se deve ver, ouvir e falar? Quais os limites da percepção ou da atribuição de sentido? O que é inteligível, na realidade, e o que merece esse nome? Qual o limite da transgressão?
Tudo ganha ainda mais complexidade quando associado ao conteúdo da passagem que focaliza a delicada, difícil, desafiadora convivência com as fontes armadas do medo, internas e externas à comunidade, cuja presença aponta para a iminente emergência dos confrontos, isto é, para o potencial disruptivo que pulsa sob a ordem aparente do mundo, sempre à beira do colapso, portanto. Além da incerteza tensa, essa passagem trata da convivência com os embates sangrentos que deixam atrás de si, e na memória de cada pessoa, rastros de violência, cicatrizes, quando não feridas que não saram. Apesar desse quadro ser abordado pela entrevistada em clave compreensivelmente dramática, seu relato evoca também tesouros afetivos e éticos da comunidade, trazendo à baila episódios de solidariedade entre moradores, surpreendidos na chegada à Maré por incursões policiais, e a generosidade do acolhimento aos desprotegidos em meio a tiroteios. O desconhecido, em vez de inimigo, é irmão, irmã, parceira do infortúnio e fonte, não de medo, mas de suporte e confiança.
Quanto ao convívio com as fontes da violência e a iminência da erupção que agride e mata, as considerações de nossa interlocutora são refinadas e requerem escuta cuidadosa. As pessoas têm de focar outras áreas da vida, ela diz. A música, por exemplo, a família, o trabalho. “Não porque banalizaram, se acostumaram, ninguém se acostuma com armas na sua frente, mas também você enlouquece se pensar nisso dia e noite. Não tem como mudar, é o que as pessoas acham. Como denunciar? É arriscadíssimo. Não é fácil. Nem adiantaria.”
Assim como a divisa é uma “fronteira imaginária – imaginária entre aspas, não é tão visível, é e não é –”, também as fontes do medo são visíveis e reais, e não são: são reais quando precipitam a cadeia de acontecimentos violentos e deixam de sê-lo quando se recolhem ao campo das possibilidades não atualizadas. As fontes do medo são objeto: (1) de transfiguração na memória, de onde não podem ser simplesmente apagadas, mas podem ser elaboradas, desarmadas e resfriadas para que se reduza o risco de combustão (a insistência do real não simbolizável condena o sujeito ao retorno recorrente do episódio irradiador de sofrimento excruciante); (2) de sublimação, por meio da qual (2.1) são incorporadas como índice de instabilidade sistêmica, cuja energia sem finalidade contagia a realidade com o espectro de uma negatividade disruptiva ubíqua (o anverso da insegurança constante, irmã gêmea do medo, é a introdução no princípio de realidade da expectativa -eventualmente benigna- de mudança, em certa medida um correlato do desejo), e (2.2) são ressignificadas e deslocadas, ou transpostas para a esfera das narrativas coletivas e mitologias locais. Se a ordem é tão precária e se assenta na postergação de seu colapso, há um outro que se infiltra no monólito aparentemente impermeável das coisas como elas são, uma sombra imponderável mas perceptível que se mostra em dupla face: o que é pode não ser e os cativos do destino podemos nos tornar livres de amarras e protagonistas de outra história.
Uma película discursiva, intersubjetiva, conecta e envolucra falas e atos, insinuando-se, sutilmente, entre o que acontece, todos os dias, há tanto tempo, impondo-se às percepções, cujos efeitos não admitem ilusões, e aquilo que a comunidade se dispõe a nomear – sabendo-se que nomear é designar, descrever, reconhecer, mas também evocar. Portanto, recusar-se a nomear poderia implicar o engendramento da tessitura simbólica (aqui vale dizer, estética) que operaria o feitiço de promover a atenuação ontológica do indesejado e a gestação da mudança. Essa película poderia ser apresentada, metaforicamente, como a membrana (afetiva, política e estética) que protege o corpo social enquanto o organismo, a coletividade, prepara a troca de pele: a metamorfose que tem a força e o alcance da mutação.
Aquilo que soa ambíguo e impreciso em falas vacilantes – “é e não é” – talvez ganhe nitidez e relevância, interpretado sob esse prisma. Cabe sublinhar que são inúmeras as entrevistas qualitativas em que a presença do tráfico suscita a mesma hesitação aqui provocada pela divisa. Dizer taxativamente que algo é implica assumir o compromisso com essa existência, que a nomeação consagra e, politicamente, de algum modo, autoriza. Trata-se de um pacto de quem nomeia com o nomeado – nesse caso, com as fontes do medo –, pacto cujo preço é a insensibilidade para a fraqueza dessa demanda de realidade (demanda atendida pelo ato que nomeia), é a insensibilidade para a fraqueza dessa vontade de existência, dessa ambição de mundo. Quem nomeia com o desembaraço da certeza ante evidências furta-se a ver quão débil é o pleito por vir a ser de cada fonte do medo, as máquinas entrelaçadas (que se retroalimentam) do tráfico armado, das milícias e das polícias. Sim, porque o que “é” precisa “vir a ser” continuamente, “reiterar-se”, movimento que comporta o risco de desvio embutido em toda reprodução. O que aparece sob o modo de permanência é insistência reiterada. A dinâmica pode ser lida em chave ontológica, mas se apreende mais plenamente como formação do sujeito, configurando-se entre os limites e as exigências da economia psíquica e as vicissitudes da linguagem.
Assim, não é necessariamente por medo ou incoerência que tantos entrevistados e tantas entrevistadas oscilam entre admitir o medo e abjurá-lo, confirmá-lo e negá-lo, entre falar da divisa e dos tiroteios e calar, entre pronunciar carência e preenchê-la com a fartura de esperanças, afetos, virtudes, realizações e compromissos. Esses compromissos com raízes arcaicas, idealizadas ou não, com valores, origens e histórias comuns são provas de lealdade a homens e mulheres que construíram famílias, descendência e uma comunidade. E o que soa como subestimação da gravidade da violência talvez seja exercício de resistência. Resistência a aderir ao que é como realização plena do que pode ser, como se a versão atual da realidade, tão avara, iníqua e apequenada, esgotasse todas as possibilidades inscritas no real, excluindo potenciais não realizados mas contidos no que é.
Hesitar talvez corresponda a fazer reverberar os sentidos da realidade, suas implicações e contradições, para além dos recortes e mesmo da censura que os poderes em jogo tentam administrar. A película discursiva opera como o filtro solar que submete a luz a refrações, abrindo o espectro de cores e tonalidades. Não restringe a visão, amplia o campo do visível e matiza as imagens, introduzindo gradações e variações de outro modo neutralizadas pela intensidade dos raios. Não se trata de ser mais ou menos realista ou de adotar o relativismo como abordagem, reduzindo todo enunciado a escolhas legítimas e equivalentes. Trata-se de entender a estética aplicada nessas estratégias de composição das distintas camadas de sentido, conhecimento e afeto, amalgamadas nas percepções e nas experiências que as falas comunicam e silenciam. Talvez por isso tantos jovens valorizem a poesia e o Slam (os torneios de poemas falados) faça tanto sucesso. O Slam talvez circunscreva, ritualmente, e exponencie o trabalho da linguagem que a criatividade coletiva exercita cotidianamente para dar conta da sobrevivência física e mental, ante muitos percalços, e não se deixar atolar na areia movediça paralisante que alguns confundem com “a realidade” -realidade que, uma vez consagrada na epistemologia rudimentar da capitulação, torna-se profecia que se autocumpre.
Vale descer aos detalhes de alguns exemplos: a moradora lembra-se da cena bárbara que a marcou, um linchamento perpetrado por membros de uma facção armada, mas tampouco esquece a presença do marido a seu lado, que em seguida a acompanha de volta para casa, oferecendo sua companhia como apoio prático e mediação simbólica entre dois polos: de um lado, o indizível, perturbador e inassimilável, de outro, a materialidade plena de sentido da casa que, antes de ser a palavra que a descreve, acolhe, mais que representa, realiza o acolhimento e serve de guia e modelo para toda assimilação – de que a economia psíquica não prescinde para prevenir o trauma. A casa é inteligível e previsível, como a parceria amorosa e o histórico que a sustenta, como as relações familiares e suas reasseguradoras projeções prospectivas. O trajeto entre flagrar o linchamento e voltar à casa não apagou o evento brutal nem anestesiou a indignação e a repulsa. O trajeto deu-se em dupla dimensão, física e simbólica, as duas negociando entre si e se reforçando, mutuamente. Há o assassinato covarde e o amor, o espaço da irrupção do desvario e o abrigo que liga o passado ao futuro e concretiza o presente sob a forma de proteção, traçando forte separação, ética e afetiva, do abominável. Resta a vítima, desafortunadamente entregue a seu destino. Nada havia a fazer para salvá-la ou mitigar seus tormentos, por isso, era necessário impedir que a violência despedaçasse também a testemunha, seu espírito. Aprende-se que não se pode tudo, nem mesmo em nome da justiça, da compaixão, da piedade. Realidade é também o que resiste à vontade, sendo essa opacidade, a impermeabilidade, a crispação dessa diferença, outro componente a identificar na prática cognitiva. São lições de finitude que domesticam a culpa, cujo papel seria aqui exclusivamente corrosivo e autodestrutivo. Conflitos, desespero, impotência, tudo isso é verdadeiro, dói e requer labor consciente e inconsciente, ajuda e recursos simbólicos para ser elaborado, e nem sempre se consegue elaborar, como atesta o sofrimento psíquico tão disseminado.
As ambiguidades e hesitações – que podem ser, como vimos, muito mais do que adaptações subservientes a imposições (e ameaças veladas) dos poderes locais ou a chantagens policiais – geram embaraço grave para a ideologia (a versão da realidade que simula legitimidade e dissimula contradições), na medida em que abrem um hiato pelo qual se percebe, ou intui, o atrito entre o discurso hegemônico na sociedade (deixando em segundo plano as distinções entre credos e valores, que em geral não o abalam) e as condições que lhe conferem verossimilhança. A ordem discursiva dominante, aqui denominada ideologia, carrega conteúdos que justificam as relações capitalistas, excluem alternativas do campo de possibilidades e pressupõem um acordo indisputável (definitiva e irrevogavelmente consagrado) quanto às raízes supostamente ontológicas e indisputáveis do princípio de realidade, cuja implicação primordial é a crença mistificadora na transparência da linguagem.
A hesitação mostra e recolhe o que os nomes retratam. A hesitação os justapõe a outras palavras que desdizem o dito. Esse movimento é chave, porque sua matéria o é. Decide comportamentos e orienta avaliações. Constitui a realidade em seu eixo, ou a destitui e desestabiliza. A instabilidade semântica suspende o pressuposto matricial da ideologia e sua implicação primeira: a indisputabilidade do acordo quanto ao princípio de realidade e a transparência da linguagem. Dizer que algo é e não é desloca a referência do mundo (ingenuamente tomado como o depósito das coisas que são) para a dança da vida real permeável à ação, para o dinamismo intrínseco à história. O movimento que hesita torna-se a referência da enunciação. O performativo salta sobre o uso constativo da linguagem. Hesitar propõe aos afetos e à imaginação a hipótese de que a realidade seja um continente de possibilidades, entre as quais se incluiriam aquelas incompatíveis com a armadura politicamente consolidada pela modernização conservadora e autoritária de nosso capitalismo periférico. Aqui, vale a redundância, hesitar não designa a indecisão entre dizer e não dizer, mas o movimento ativo que formula uma contradição, atribuindo-a ao real, não a deficiências cognitivas. A coisa “é e não é” não porque quem enuncia o verbo não sabe se a coisa, efetivamente, é ou não é. A simultaneidade de ser e não ser é aquilo que é, porque o que é traz consigo, nesse caso, para além das evidências positivas, uma alteridade irredutível, que é potencialidade para a ação, que convoca a ação e inscreve a mudança no campo do real. Quando se fala em esperança, é dessa abundância do real, é desse mesmo excesso que se trata. Está aí isso que é e está aí, ao mesmo tempo, a negação disso que é, sendo essa segunda realidade aquilo que não se vê porque não se afirmou enquanto prática, e nem por isso deixa de ter presença pela mediação de seus efeitos, por antecipação ou potencialização. Se o enunciado fosse unilateralmente negativo, “a divisa não existe”, seria negacionista, delírio ou manipulação; se fosse exclusivamente positivo, “a divisa existe” – “o tráfico e o medo existem” seria o enunciado correspondente em outros depoimentos –, descreveria um fenômeno existente mas de um modo limitado e correndo o risco de reificá-lo, como se a divisa resultasse de uma necessidade à qual fosse irrealista (irracional) resistir, uma necessidade imperiosa que seria impossível transformar. A enunciação dupla é aguda porque recusa o negacionismo e a reificação. Nesse sentido, a enunciação é um gesto, uma pequena obra de arte viva que mobiliza conhecimento e política, especulação e ação, contemplação e protagonismo, epistemologia e estética.
Estamos prontos, agora, para refletir sobre o que nos diz a entrevistada a propósito da categoria “naturalização”, que ela comenta diretamente ou pela categoria análoga “banalização” – cujo diálogo tácito com Hannah Arendt não esgota os significados de seu emprego. Retomemos a passagem já citada: As pessoas não naturalizaram ou banalizaram, não “se acostumaram, ninguém se acostuma com armas na sua frente, mas também você enlouquece se pensar nisso dia e noite”.
Naturalização tem dois sentidos: (1) Reificação, processo em que automatismos alcançam tamanha autonomia que substituem deliberações, as quais implicam responsabilidades, ou as deslocam para que o império dos efeitos padronizados e previsíveis se reproduza sem mediações subjetivas ou intersubjetivas, o que se verifica na medida em que a objetividade (a realidade cristalizada) anula os sujeitos, subordinando-os à ordem das coisas. (2) Atribuição irrefletida e acrítica do estatuto de inexorabilidade à rotina, ou seja, a constatação resignada de que certas dinâmicas a princípio inaceitáveis têm curso contínuo na sociedade e que, mesmo permanecendo inaceitáveis, passam a ser consideradas inevitáveis, o que implica tácita autorização para sua continuidade e cria uma estrutura de realidade em que se admite conviver com o que, entretanto, não se aceita. Na prática, passa-se a aceitar o inaceitável, por força de acomodação supostamente realista aos supostos imperativos da necessidade. Transfere-se à ordem do inevitável, como a morte de quem vive, o que é obra humana, favorecendo – e justificando – sua continuidade. Por isso, esse “acostumar-se” com o abominável tem consequências práticas devastadoras. Ao fim e ao cabo, a resignação nos devolve à reificação. Em outras palavras, a resignação é um dispositivo afetivo-cognitivo-psicológico que atesta e coonesta a lógica da reificação, enquanto modo multifatorial de produção da realidade. É, portanto, a reificação matizada pela culpa; é a rendição e a pusilanimidade que ganham corpo. O viés psicanalítico talvez propusesse uma analogia entre o mecanismo da naturalização e a compulsão à repetição, o primeiro funcionando na vida coletiva como o segundo atua nas experiências individuais. A compulsão, reconhecida ao menos em seus efeitos e repelida no plano da consciência, é mais forte que a vontade, “toma o lugar” do sujeito, assume o protagonismo e se põe em prática.
Nossa interlocutora nega que a resignação cúmplice exista na comunidade. Vai além: afirma que não há hipótese de que haja espaço para esse “acostumar-se”, quando os atores sociais estão diretamente envolvidos, como vítimas diretas ou indiretas, potenciais ou reais. Sem pôr em dúvida a acuidade do que ela diz, que faz todo sentido e é corroborado pelo conjunto de dados reunidos na pesquisa, talvez fosse pertinente sugerir que modulássemos sua constatação, introduzindo um gradiente por meio do qual diferentes formas de “não-se-acostumar” pudessem ser identificadas e analisadas. Consideremos algumas variações que encontram correspondência na experiência empírica:
(A) Há quem se abale tão intensamente ao vitimar-se ou testemunhar atos de violência que lhe faltem forças para submeter a vivência à elaboração simbólica que a elabore e integre. Sem lugar e sentido, recalcada, expelida da órbita da economia psíquica, a brutalidade do real permanece extraviada como um meteoro explosivo. A qualquer momento, um toque fortuito no elemento desencadeador (cuja presença e função se revelam somente a posteriori) pode disparar a corrente insuportável de dor e assombro, provocando pânico, prostração depressiva, a asfixia anímica da angústia, a inquietação vertiginosa da ansiedade. Eis aí o trauma, um fenômeno de repetição, que se manifesta como o histórico de padecimento que o sucede, a síndrome do stress pós-traumático. Nesse caso, atitudes que parecem caber na expressão “acomodar-se” ao inaceitável, porque soam a indiferença ou expressam a negação de sua ocorrência (ignorando os fatos ou os apagando da memória), nada têm a ver com acomodação resignada.
(B) Há quem desenvolva a capacidade de deixar-se impactar por atos brutais, elaborando-os, resistindo a seus efeitos desestruturadores, integrando-os e os deslocando para o segundo plano administrável da consciência e da memória, graças ao equilíbrio psíquico-afetivo que já logrou cultivar e a narrativas poderosas que incluam e valorizem a autoconstrução de si dos sujeitos, sem prejuízo do reconhecimento da própria finitude e, portanto, sofrendo o medo e a insegurança mas sem paralisar-se. Como disse a entrevistada: “você enlouquece se pensar nisso dia e noite”. Há que erguer uma proteção, alguma dose de anestésico pode ser salutar. Nada a ver com ausência de empatia ou “alienação”.
(C) Outro personagem típico hipotético é aquele ou aquela que não renuncia à empatia, tampouco se dessensibiliza, mas adota estratégias de sobrevivência que são também recursos de saúde mental, as quais recomendam o estabelecimento de relações pragmáticas com os poderes locais, cujas decisões incidem sobre a vida comunitária. Não se trata de valentia ou covardia, nem de juízos morais, mas de avaliações racionais de correlações de força no cálculo da própria trajetória, que prescrevem palavras e gestos. Se há tirania, é preciso não se deixar destruir por ela até mesmo para ousar reduzir-lhe o potencial destrutivo. Injunções da sobrevivência não produzem acomodação, mas modalidades de disputa por sentido e liberdade que exigem negociação com os limites -esse processo delicado e tortuoso merece ser designado resistência.
(D) Há também quem, como nossa interlocutora, apure a sensibilidade e a inteligência o suficiente para inscrever o abominável numa dobra da realidade na qual o positivo (fáctico) e o negativo (potencialidades de mudança que inviabilizem o status de sua existência mesma) se sobrepõem, indistinguíveis, como se o que aconteceu (e acontece) ocupasse o limiar entre ser e não ser, ocorresse e não ocorresse, fosse visível e não fosse visível, inteligível e ininteligível, nomeável ou inominável. Não se trata da lógica do trauma nem da estratégia de negociação para sobreviver com vetos e ameaças dos poderes locais, calibrando as palavras, mesmo dentro de casa. Aqui, a hesitação e a ambiguidade, conforme já havíamos procurado demonstrar, inauguram uma epistemologia crítica (ativa em si mesma, enquanto discurso performativo) que dialoga (sem render-se a idealizações ou ao autoengano) com o desejo, a ética e a política, em sua acepção ampla e nobre: aposta-se que o futuro esteja embutido no presente (porque potencialidade é infusão de tempo no ser, ou a melhor definição do ser) e que a reiteração, sempre em curso, do que é (aquilo que é reitera-se para ser) pode ser interceptada, uma vez que a história (a avalanche de ações interconectadas mutuamente funcionais ou colidentes em busca de uma morfologia) não é destino e não oferece garantias ontológicas.
Aí estão algumas das modalidades de relação estabelecidas entre os sujeitos e a experiência da vitimização, seja ela direta ou indireta, atual ou virtual. Nem todos os tipos listados são mutuamente excludentes e podem suceder-se na biografia de um mesmo indivíduo. Por outro lado, a experiência que provoca, assusta, choca ou traumatiza nem sempre é a violência, entendida como ato físico de agressão ou grave ameaça. Há situações passageiras ou prolongadas, derivadas das desigualdades entre as classes (como o desemprego), do racismo estrutural (como o estigma que bloqueia o acesso ao emprego), da misoginia (que se traduz, no limite extremo, em feminicídio, mas se manifesta em iniquidades competitivas com os homens, no emprego ou mesmo no mercado informal), da homofobia ou da transfobia (que matam, mas também desempregam), situações que oprimem, humilham, causam o sentimento corrosivo de impotência, levam ao desamparo e ao desespero.
* Luiz Eduardo Soares é escritor, antropólogo, professor visitante da UFRJ e ex-professor da UERJ, do IUPERJ e da UNICAMP. Publicou mais de vinte livros, dos quais os mais recentes são Desmilitarizar: segurança pública e direitos humanos (Boitempo, 2019), O Brasil e seu Duplo (Todavia, 2019), Dentro da noite feroz: o fascismo no Brasil (Boitempo, 2020) e o romance Enquanto anoitece (Todavia, 2023).
Notas
[1] O presente ensaio reúne os dois primeiros capítulos de meu livro Maré e a longa gestação do novo mundo, publicado, em 2021, pelo People’s Palace Projects, no âmbito de sua parceria com a Redes da Maré, a Queen Mary University of London, os Departamentos de Serviço Social e Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ, e o Núcleo de Estudos em Economia da Cultura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS, com o apoio do Economic and Social Research Council e Arts and Humanities Research Council, através do Global Challenges Research Fund. Originalmente, o ensaio foi escrito como contribuição à pesquisa Construindo Pontes, coordenada por Paul Heritage e Eliana Sousa. Minha participação se deu no interior da equipe de cientistas sociais, dirigida por Miriam Krenzinger, para cujo relatório final também contribuí. Sou grato a Paul e Eliana pelo convite para participar da pesquisa, a tod@s @s colegas, por enriquecerem meu conhecimento sobre as comunidades, e muito especialmente a Natália Guindani e, sobretudo, a Miriam, pelo acompanhamento passo a passo de minhas análises e por inúmeras sugestões fundamentais. Devo a Miriam boa parte do que houver de positivo em meu texto – mas não lhe transfiro responsabilidade por meus eventuais equívocos. Nada teria sido possível sem a generosa disponibilidade de moradores e moradoras da Maré a compartilhar conosco suas reflexões, percepções e sentimentos. Sou grato a Paul Heritage também por sua leitura aguda, que propiciou correções e desenvolvimentos muito relevantes.
[2] Michel De Certeau (1998, original 1990) e Veena Das (2011, original 2007), em estudos primorosos que alcançaram o estatuto de clássicos, já demonstraram seu lugar estratégico na formação subjetiva e na tessitura das redes sociais. Certeau, Michel De – A Invenção do cotidiano; artes de fazer. Vozes, 1998 [Tradução: Ephraim Ferreira Alves] (L’Invention du quotidien; arts de faire. Gallimard, 1990). Das, Veena – “O ato de testemunhar: violência, gênero e subjetividade”, In Cadernos Pagu (37), julho-dezembro de 2011:9-41. [Tradução: Plínio Dentzien] (“The Act of Witnessing: Violence, Gender, and Subjectivity” In Veena Das, Life and Words: Violence and the Descent into the Ordinary, University of California Press, 2007).
[3] A obra de Stanley Cavell citada por Veena Das é Disowning Knowledge in Six Plays of Shakespeare. Cambridge, Cambridge University Press, 1987. Citar a apropriação que faz Veena Das da interpretação polêmica que Cavell propõe sobre a obra de Shakespeare não implica endossar sua leitura do grande dramaturgo. As teses de Veena Das valem por si mesmas.
[4] No ensaio memorável já referido, Veena Das nos dá régua e compasso, embora analisando uma realidade bastante diferente: “Essa imagem de voltar evoca não tanto a ideia de um retorno, mas uma volta para habitar o mesmo espaço, agora marcado como um espaço de destruição, no qual você deve viver outra vez. Daí o sentido do cotidiano em Wittgenstein como o sentido de algo recuperado. Como tornar tal espaço de destruição em seu próprio espaço, não por uma ascensão à transcendência, mas por um descenso ao cotidiano, é o que descreverei através da vida de uma mulher …” (p. 16)
[5] Nussbaum, Martha, The Fragility of Goodness: Luck and Ethics in Greek Tragedy and Philosophy. Cambridge University Press, 1986.
[6] Há extensa bibliografia nacional e internacional em torno de luto, memória, ritos de reparação e lutas de mães que perderam filhos de forma violenta em favelas, sobretudo assassinados por policiais, ou mortos por agentes de ditaduras. Seguem algumas referências importantes:
CATELA, L. S. Situação-limite e memória: a reconstrução do mundo dos familiares de desaparecidos da Argentina. São Paulo: Hucitec, Anpocs, 2001
CATELA, L. S. Rituais para a dor. Política, religião e violência no Rio de Janeiro. In: BIRMAN, P.; LEITE, M. P. (org.). Um mural para a dor: movimentos cívico-religiosos por justiça e paz. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004.
LEITE, M. P. As mães em movimento. In: BIRMAN, P.; LEITE, M. P. (org.). Um mural para a dor: movimentos cívico-religiosos por justiça e paz. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004.
LEITE, M. P.; BIRMAN, P. (Orgs.). Um mural para a dor: movimentos cívico-religiosos por justiça e paz. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004.
Algumas pesquisas focalizam intervenções estéticas nesse mesmo contexto, como a dissertação de Natalia Guindani:
GUINDANI, Natália. Arte e rituais de luto em contextos de violência: os trabalhos de denúncia e homenagem produzidos pelo coletivo Magdalenas por el Cauca – Colômbia. 2018. 144 p. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2018.
[7] A citação segue: “Explico: valor não se descreve; opera, sim, como ordenador de relevâncias ou como indexador de hierarquias, instituindo e circunscrevendo arenas ou espaços de investimento afetivo e imaginário (com dimensões cognitivas, simbólicas, expressivas e comunicativas) para conflitos entre escolhas ou entre alternativas excludentes de figuração da memória humana, as quais envolvem hesitações intensas, cuja tensão corresponde, segundo meu ponto de vista, à vivência mesma da moralidade. Definido como diferenciador mais importante para o juízo, moral e afetivamente concernido – vale dizer, existencialmente radicado -, o valor qualifica a vida humana, diferenciando-a, o que lhe atribui função ordenadora para os processos de significação e um duplo papel, mnemônico e prospectivo. Não há teleologias desprovidas de valor, ou que não nasçam, em alguma medida, do valor” (Soares, L.E., “O lugar do sofrimento humano no pensamento político moderno”, In Os dois corpos do presidente, Relume Dumará, 1993). (A primeira versão deste ensaio foi apresentada por ocasião do lançamento do livro Impacto da modernidade sobre a religião [editora Loyola], no Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ, dia 2 de setembro, 1992, em mesa-redonda que também contou com a presença dos professores José Jorge de Carvalho e Maria Clara Binguemer [coordenadora]. A presente versão foi apresentada em 22 de outubro de 1992, no âmbito do Grupo de Trabalho Religião e Sociedade, coordenado pela profa. Maria Helena Villas Bôas Concone, na reunião anual da ANPOCS, realizada em Caxambu, Minas Gerais. O artigo foi republicado em Legalidade Libertária. Lumen-Juris, 2006.)
Como é bem sabido, a antropofagia da qual fala Oswald de Andrade no manifesto de 1928 é um ritual que permite englobar no sistema cultural de uma tribo (no caso, os Tupinambás) os valores do inimigo. Uma atitude absolutamente revolucionária até hoje, se a compararmos com o nosso sistema de lidar com o adversário capturado: a nossa estratégia é a de isolar, confinar, encarcerar; em alguns casos suprimir; e, em todo caso, esquecer. Quanto mais potente for o nosso inimigo, tanto mais será preciso neutralizá-lo. Excluído e recluso. Ao contrário, na sugestão de Oswald, não se trata de neutralizar mas de utilizar, de incorporar ao invés de rejeitar. Dessa forma, não se dispersa nada do que, pertencendo a quem se é contrário, é potencialmente útil. Sobretudo, o sistema axiológico do inimigo não somente não é negado, mas é ressaltado. Lembremos que se trata de uma provocação, mas por trás de cada provocação há um desejo autêntico de subversão e de novos valores: por exemplo, o “matriarcado de Pindorama” parecia ser (e talvez ainda pareça) uma miragem aliciante, e isto muito embora possa não ter sido real.[1]
É usual indicar poucas obras que tenham seguido as indicações do manifesto oswaldiano (e nenhuma de Oswald, por sinal, a não ser o próprio Manifesto, que, não por acaso, se define Antropófago e não Antropofágico), e tais obras são, como se sabe, Macunaíma o herói sem nenhum caráter, de Mário de Andrade, Cobra Norato, de Raul Bopp, e, retroativamente, O Guesa errante, de Sousândrade. Substancialmente, por uma espécie de crase interpretativa, definiram-se como antropofágicas – ou antropófagas – as obras que de certa forma incorporaram as culturas indígenas.
Na realidade, observando bem, quatro anos antes do Manifesto antropófago, a Poesia Pau-Brasil já praticava a devoração da cultura europeia (inimigo sagrado) para criar quadrinhos nacionais. E, sem querer deformar um autor universal como Guimarães Rosa, vemos como Grande Sertão: veredas também se alimentou daquela cultura europeia que se encontra nos antípodas do mundo representado no romance: um texto brasilianíssimo, embora nutrido de saberes clássicos (não somente ocidentais), uma obra local e global, como indicou, entre outros, Ettore Finazzi Agrò (2001). Confirmando esta visão, Eduardo Sterzi (2022) acolhe Guimarães Rosa em seu ensaio recente sobre antropofagias.
E um estudo amplo e aprofundado sobre a reelaboração – frequentemente estereotipada – do conceito de antropofagia na cultura brasileira, desde a redescoberta do movimento nos anos 1950 até hoje, é oferecido pelo ensaio de Alessia Di Eugenio, La cultura della divorazione, estudiosa que ampliou suas pesquisas no exame da reapropriação indígena deste conceito, de certo modo inventado pelo colonizador branco a partir de sua própria visão das culturas locais.
Parece-me, porém, fundamental sublinhar que, no exame do fator antropofágico, deve-se entender como “inimigo” seja quem, antagonista e estrangeiro, é admirado (a cultura europeia, por exemplo), seja o inimigo interno (os conteúdos recalcados porque inadmissíveis). Neste caso, por exemplo, o ato de comer a própria tradição inimiga do progresso significa reconhecê-la ao mesmo tempo positivamente como criadora de progresso, carregando valores em seu próprio mundo na época em que se apresentara como novidade.
Se o moto da antropofagia literária pode ser superficialmente aproximado da mera prática da citação ou do pastiche (e neste caso as praxes pós-modernas o englobariam cabalmente), na realidade ele inclui uma segunda fase que é a do reuso, da profunda reciclagem, da metamorfose. E é através desta metamorfose que se amplia o cânone. O que era excluído agora chega a ser integrado, por um ato de vontade do artista que o resgatou.
Gostaria de propor uma reflexão ulterior que conduz ao conceito que eu definiria como “autofagia”, pelo qual quem é comido faz parte da mesma cultura de quem comeu. Observo, com efeito, que a cultura brasileira de hoje parece com frequência querer digerir a si mesma, não somente recuperando e re-ingerindo a tradição oposta à vanguarda, mas também, e especialmente, as partes mais indigestas do suposto “progresso”, tais como a escravidão, o subdesenvolvimento, a dependência ou a desigualdade social extrema, para tranformá-las numa mensagem ou um aviso para os tempos presentes.
Não se trata, portanto, da diferença aberta entre antropofagia endo e exocanibálica, porque não são as qualidades positivas dos antepassados que são ingeridas (como no endocanibalismo, ou endofagia), e sim as qualidades incômodas porém poderosas. Através da incorporação dos assuntos mais dissonantes – difíceis de serem incluídos no discurso literário ou artístico –, os momentos disfóricos não somente são mencionados e criticados, mas são encaixados no discurso criativo. O passado e o presente que incomodam serão reabsorvidos e replasmados.
Considerando bem, ainda, quando a Poesia Pau-Brasil repercorria (como diz o Manifesto homônimo) “toda a história bandeirante e a história comercial do Brasil” e apresentava casos e cenas de donos e escravos num tom ligeiro (talvez o humorismo pirandelliano, o tragicômico “sentimento do contrário”), estava digerindo o intolerável – porém real – passado colonial, não renegado mas sim corajosamente exibido no estilo antirretórico das vanguardas, ousando até o sorriso.
2. Desmascarar com ironia: a Canção do subdesenvolvido
Como para criar uma trilha sonora para estas considerações, quero trazer como primeiro exemplo a “Canção do subdesenvolvido”, de Carlos Lyra e Francisco de Assis, de 1962.
Nesta obra atuavam ambos os tipos de antropofagia descritos acima, os mesmos que se encontram em Pau-brasil: utilizavam-se os modos do inimigo externo (que neste caso é também um adversário econômico-político) para falar de um tema local negativo e presente desde sempre, porém tão visível que não era mais percebido: a dependência.
Fagocitando diversos estilos musicais tirados do mundo anglo-saxão, o mundo dos especuladores estrangeiros, uma melodia animada por um refrão alegre lembrava como o Brasil tinha sido explorado e vendido em várias fases de sua história, portanto procurava através do humor recuperar verdades indizíveis (o inimigo interno!) e conscientizar a população, de forma que a ironizada “vida nacional” se tornasse uma realidade conhecida por todos os que nela estavam ignaramente imersos. Vale ressaltar que a longa palavra “subdesenvolvido”, fonicamente pouco apta para ser musicada, é repetida inúmeras vezes no estribilho, de modo que quase perde o sentido, tornando-se normalizada assim como fora normalizada a realidade correspondente, sobre a qual os autores quiseram despertar a atenção.
3. Cantar o inaceitável: Noites do Norte
Sempre passando da ingestão do que pertence a outros para a ingestão do que é interno à própria cultura brasilieira, podemos mencionar uma canção insólita de Caetano Veloso, que já com o movimento da Tropicália nos acostumara com miscigenações antropófagas.
A canção “Noites do Norte” dá o título ao CD de 2000 dedicado à história e à cultura afrobrasileiras. Eis a letra:
A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil. Ela espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade; seu contato foi a primeira forma que recebeu a natureza virgem do país, e foi a que ele guardou; ela povoou-o como se fosse uma religião natural e viva, com os seus mitos, suas legendas, seus encantamentos; insuflou-lhe sua alma infantil, suas tristezas sem pesar, suas lágrimas sem amargor, seu silêncio sem concentração, suas alegrias sem causa, sua felicidade sem dia seguinte… É ela o suspiro indefinível que exalam ao luar as nossas noites do norte.
São as palavras de Joaquim Nabuco tiradas de sua célebe autobiografia intelectual, Minha formação, de 1900.
A música do Caetano para esta letra é bastante anômala, pois oferece uma melodia dificilmente memorizável, justaposta ao trecho de forma a não alterá-lo, mas sofrendo pela falta de ritmo desta prosa cheia, porém, de imagens poéticas. Apesar das dificuldades em adaptar o canto a um texto tão refratário, Caetano quis oferecer, para divulgá-lo, suas capacidades de cantor e compositor, para fazer transitar a mensagem para além do restrito círculo dos leitores do grande abolicionista. Sobretudo, engolindo e reexpondo o texto a um século exato de distância, Caetano nos fazia aceitar o inaceitável: a existência de uma nostalgia da escravidão, a presença liricamente transfigurada de mulheres e homens deportados no solo americano e destinados a uma vida de sofrimento, num trecho que começava pela palavra “escravidão” e elencava uma série de termos positivos: “suavidade”, “religião natural e viva”, “encantamentos”, “alegrias”, “felicidade”, para rematar com o luar.
A figura do inimigo interno acima definida foi aqui neutralizada, e pode ser desvelado o elemento que fora recalcado (em termos freudianos) pois moralmente condenável. Sobre escravos e escravidão pode-se falar também poeticamente, e não somente em termos de violência ou condenação. Mais adiante no texto, Nabuco falava de sua ama africana e do afeto para com a população negra. A complexidade da questão do legado afetivo do regime escravista, explicitada por Nabuco, é enfrentada e divulgada por Caetano numa operação preciosa. Uma reciclagem de grande efeito que ressalta o que existia e parecia inadmissível.
4. Relembrar palimpsestos violentos: Descobri que estava morto
Um terceiro exemplo, outra digestão que também durara um século.
Quando o jovem escritor João Paulo Cuenca recupera a posição política e cultural de Lima Barreto de forma direta e indireta no romance Descobri que estava morto (2016), não está somente exibindo um jogo literário, está apontando para o fato gravíssimo de que o governo do Rio de Janeiro (e metonimicamente do país) não aprendeu a lição da História, repetindo na cidade – ironicamente e às vezes sarcasticamente definida “olímpica” em vista dos Jogos de 2016 – a demolição das moradas pobres em prol de uma política ao mesmo tempo de “depuração” e de especulação mobiliária. O protagonista autobiográfico, que atravessa todas as camadas sociais num enredo tingido de romance policial, desde os festins dos jovens de sucesso até as áreas mais degradadas, está remapeando uma cidade que se rasura a si mesma. As observações paralelas sobre o atual violento programa político-militar do Choque de Ordem e sobre as muitas demolições do início do século XX (particularmente a do Morro do Castelo), acompanhadas estas últimas pelas coevas citações de Lima Barreto, nos lembram que já passamos por isto. Devorar o escritor incômodo e corajoso de um século atrás significa reavivar um passado escabroso de destruição que fora neutralizado por uma arquitetura moderna e modernista, como provavelmente seguirá acontecendo com as construções pós-modernas e pós-modernistas que cobrem elegantemente o extermínio dos pobres.
Mas eis que, devorado o passado para transformá-lo em lição, o escritor ousa exibir-se e mostrar sua insuficiência citando-se de forma sincera e desencantada, e, de alguma forma, autodevorando-se:
[…] no fim das contas, o movimento de encarecimento da cidade e as violações dos direitos humanos me incomodavam apenas o suficiente para eu me aproveitar disso num livro antes de me mudar de cidade e país.
Ou, pelo menos, esse era o meu plano.
(Cuenca 2016: 63).
5. Reexumar vidas do lixo: Lixo Extraordinário
Música, literatura, e um exemplo das artes visuais.
O artista e fotógrafo Vik Muniz conduz há tempo uma operação de releitura das ícones da cultura ocidental, reconstruindo tais obras com materiais insólitos de forma a apontar para uma reflexão sobre a nossa relação com uma realidade frequentemente fetichizada: chocolate, ketchup, diamantes, açúcar, retalhos de revistas. A operação talvez mais extrema é a que se encontra narrada no célebre documentário Lixo Extraordinário (2010), por si já um título antropófago que engole T.S. Eliot para chegar ao material incomum empregado por Vik para criar o objeto de sua fotografia, ou seja, o lixo do aterro de Jardim Gramacho (RJ), que foi descrito como o maior do mundo e que hoje não existe mais. Como é sabido, o vídeo emocionante relata a experiência de arte compartilhada com jovens catadores de lixo reciclável: Vik teve a ideia de recuperar alguns destes objetos descartados para reconstruir, em escala gigante, imagens artísticas que fizeram a história: a Repasseuse de Picasso, o Atlas de Guercino, a Morte de Marat de David ganham vida com os vultos das meninas e dos meninos catadores, resgatando-os do olhar que vê a eles mesmos como descartes. E as imagens são tão tocantes como é tocante a consciência de que atrás daquelas caras transfiguradas pelo resultado artístico há percursos humanos tão afastados de nós como tão em primeiro plano.
Como na ação antropofágica, temos aqui um movimento circular, que parte do reconhecimento do que é alheio (“Só me interessa o que não é meu”, diz o Manifesto oswaldiano) e de sua valorização para torná-lo próprio através de uma transformação radical, uma digestão, e devolvê-lo sob a forma de um valor agregado. Para cumprir até o fim esta ciclicidade, nesta como em outras operações (por exemplo, as Crianças de açúcar da ilha caribenha de St. Kitts), Vik doa parte dos lucros da venda das obras aos protagonistas com quem trabalhou. Nada mais próximo da arte da reciclagem, nada mais mágico do que a transformação do lixo em emoção e aviso.
6. Reafirmar pertenças ancestrais: Ori/cachoeira
Para variar, um pouco de teoria, um pouco de feminino.
Na teoria feminista de estudiosas afroamericanas e afrobrasileiras como Carla Akotirene, a pertença à cultura yoruba é reafirmada com convicção como uma forte herança ancestral e existencial que marca a maneira de se aproximar da realidade seguindo modos afins aos outros seres da natureza. Akotirene, enfrentando o ambiente asséptico da teoria literária, se define corajosamente em tal sistema como a “cachoeira”, que com suas afirmações cria “estrondos” à sua passagem, ou seja, tem um efeito de subversão. O choque epistemológico pode ser avaliado se imaginarmos comparar este lance a um(a) cientista que ponha em relação sua tarefa de descobridor(a) de novos terrenos com seu nascimento sob o signo de Áries. E em seu volume Interseccionalidade, de 2018, o primeiro agradecimento da estudiosa “pela firmeza da escrita” é justamente para seu Ori, a divindade pessoal (a “cabeça”) que norteia os indivíduos desde antes de nascer até depois a morte.
Saberes complementares, frequentemente menosprezados como irracionais e portanto irrelevantes e daí risíveis, são resgatados publicamente para gerar imagens poderosas e eficazes. Em vez de o irracional rebaixar a importância do aporte intelectual, o valor deste último é inserido num sistema que reavalia o que geralmente é descartado.
7. Nota à margem e conclusão moralizante
Uma nota à margem. O objetivo do prêmio Right Livelihood Award, criado pelo sueco Jakob von Uexkull e considerado por alguns um Nobel paralelo, é o de “ajudar o Norte a encontrar uma sabedoria que corresponda à ciência que possui, e o Sul a encontrar uma ciência que corresponda à sabedoria que possui”. Ou seja, para além da mecânica divisão Norte/Sul, por vezes simplificada e estereotipada, a mensagem é: aceitar a necessidade de integração.
Pequena moral, para concluir: se aprendéssemos com “o que não é nosso”, ou com o que é nosso mas não é reconhecido, os nossos saberes seriam talvez menos impotentes.
* Maria Caterina Pincherle é professora da Sapienza Università di Roma.
Referências
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CUENCA, J.P. Descobri que estava morto. São Paulo: Planeta, 2016.
DI EUGENIO, A. La cultura della divorazione: Antropofagia culturale, miti interpretativi ed eredità nel Brasile contemporaneo. Roma: Mimesis, 2021.
FINAZZI-AGRÒ, E. Um lugar do tamanho do mundo. Belo Horizonte: UFMG, 2001.
NABUCO, J. Minha formação. Rio de Janeiro: Record, s.d.
STERZI, E. Saudades do mundo: Notícias da Antropofagia. São Paulo: Todavia, 2022.
A revisão do modernismo paulista, que tomou fôlego com a efeméride dos cem anos da Semana de Arte Moderna de 1922, mas já vem sendo feita há décadas na academia, depende de um debate terminológico que não é fácil de fazer. Modernismo, modernidade, modernização e moderno – para não falar da noção mais que problemática de pré-modernismo – são quatro conceitos que parecem se referir à mesma ideia central, mas a ampla gama de significados dificulta a compreensão exata dos termos. São palavras que têm usos comuns e especializados diversos, conotações positivas e negativas, que podem se contradizer. No caso brasileiro, há ao menos dois usos que conformam uma constelação específica de significados com a qual sempre lidamos ao usar esses termos: primeiro, o uso no discurso da modernização, de caminho em direção à modernidade (de perfil ocidental), em oposição ao arcaísmo, oposição esta que atravessa o pensamento de autores progressistas e conservadores; segundo, a apropriação pelo Modernismo de 1922, que instituiu, para falar como Pascale Casanova (2002, p. 118), o meridiano que determina, no caso do sistema literário brasileiro hegemônico, o que é moderno, qual é o “presente incessantemente redefinido” a partir do qual autores, grupos, tendências, obras eram situadas, tivessem surgido antes ou depois de 1922.[1] Afinal, “moderno” vem, lembra Williams (2007), do latim modo, no sentido de “precisamente agora”, e é a partir desse “agora” que se traçou o que é moderno e o que é arcaico.
Modernidade em preto e branco: arte e imagem, raça e identidade no Brasil, 1890-1945, de Rafael Cardoso (Companhia das Letras, 2022), está inserido nessa onda de revisões dos modernismos e tem o grande mérito de chamar a atenção, na esteira do trabalho de Monica Pimenta Velloso (2010), para outro tipo de modernismo – termo cujo uso discuto mais à frente – que cronologicamente antecederia o movimento paulista de 1922. Esse modernismo, cuja capital era o Rio de Janeiro, ocorria nos bares, nos salões de carnaval, nas galerias de exposição, mas principalmente na imprensa, onde eram testadas novas formas de escrever, mas de maneira ainda mais destacada novas técnicas de desenho e de impressão, em linha com os avanços tecnológicos.
Aliás, é ao analisar as obras gráficas da época que Cardoso, historiador da arte, professor da Universidade Livre de Berlim e membro do Programa de Pós-Graduação em História da Arte da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, atinge melhores resultados analíticos, como no primeiro capítulo (“Coração das trevas no seio da metrópole moderna: favelas, raça e barbárie”), em que relaciona as representações das favelas e dos negros na iconografia da época – indo de Uma rua da favela (c. 1890), de Eliseu Visconti, às caricaturas de J. Carlos no final dos anos 1920 – com os movimentos de modernização, muitas vezes autoritários, do Rio de Janeiro.
Outro exemplo de bom resultado analítico é quando discute Boemia, quadro de Helios Seelinger de 1903. Aquela pintura, escreve Cardoso, é um “manifesto visual, anunciando um novo espírito artístico livre das amarras das convenções, tanto morais quanto pictóricas, e engajado na busca de liberdade e leveza, prazer e vivacidade”, além de registrar, na figura dos boêmios, a existência “de um grupo artístico concreto”, entre os quais estavam Gonzaga Duque, João do Rio, Luís Edmundo, Raul Pederneiras, K. Lixto e Seelinger. Apesar de, para o olhar da época, parecer “esboçada e mal-acabada”, e sua composição, “caótica e confusa” (Cardoso, 2022, p. 100), a pintura foi não apenas aceita como também premiada pelo Salão da Escola Nacional de Belas-Artes (Enba), o que mostraria uma abertura, já no começo do século XX, das instituições cariocas para as novas experiências artísticas europeias e para uma mistura entre tradição e modernidade e entre alta – Boemia tinha 103 por 189,5 centímetros, “grande demais para ser um quadro de costumes” (Cardoso, 2022, p. 102) – e baixa cultura – afinal, o quadro não apenas retrata uma cena boêmia, como nela estavam figuras populares como o caricaturista K. Lixto (Calixto Cordeiro) e o jornalista e escritor João do Rio.
Esse modernismo carioca, que não teria se comportado como movimento organizado, mas como um grupo difuso com práticas comuns disseminadas em meios intelectuais e profissionais, formado por escritores, artistas plásticos e jornalistas que tinham de trabalhar para viver, teria ainda lidado de maneira mais orgânica com a questão racial, incorporando pontos de vista mais variados e menos mitologizantes que o modernismo paulista. Isso porque, diferente de Paris ou Nova York, “o Rio de Janeiro é uma cidade onde o velho e o novo, o rural e o urbano, o sagrado e o profano desenvolveram maneiras únicas e peculiares de coexistir” (Cardoso, 2022, p. 35). Esse contato produziu um fenômeno – o samba e o Carnaval, “formas culturais específicas nascidas do contato entre as elites cariocas, ávidas por uma fantasia da Europa, e a pujante população constituída por imigrantes, migrantes e descendentes de pessoas escravizadas” (idem). Isso permitiu, segundo Cardoso, que “esse modernismo carioca carnavalesco tenha aberto espaço para incorporar artistas afrodescendentes como K. Lixto e um Arthur Timotheo [da Costa]”. Já o “modernismo paulista que o sucedeu – e, em grande medida, apagou sua memória – detinha uma relação bem diferente com temas de negritude” (Cardoso, 2022, p. 143).
Esse breve resumo mostra algumas das contribuições de Cardoso e alguns dos problemas de sua argumentação. A primeira, mais geral, é uma extensão do sentido do autodenominado “Modernismo” (um conceito que é, em si mesmo, questionável) de 1922 para outros grupos mais difusos, como o carioca. Afinal, como Cardoso dá a entender, e parece-me que de maneira acertada, o modernismo carioca não foi um movimento fechado, mas uma movimentação de atores do campo artístico e literário. A segunda é uma questão teórica que relaciona a prática cultural com o movimento histórico concreto: por que a literatura do modernismo paulista se transformou no “agora” literário, mas não ocorreu, por exemplo, com a música paulista?[2] A que problemas históricos essas produções responderam e por que o sistema literário, o sistema artístico e o sistema musical se formaram de maneiras diferentes? Em terceiro lugar, dialogando com as duas primeiras questões, está a relação entre essa modernização (no sentido de absorção, mesmo que transculturada, do “agora” ocidental da virada do século XIX para o XX), representada pelas reformas gráficas no Rio de Janeiro, e o processo de modernização conservadora, que constituiu uma possível constante da nossa história desde a independência.
Comecemos pela ideia de modernismo. Na introdução, Cardoso, com razão, critica uma ideia simples de continuidade e ruptura, que transformaria a história da cultura em algo unidirecional, quando ela deve ser vista como “fenômeno histórico disperso e diverso” (Cardoso, 2022, p. 16). A partir disso, ele propõe a ideia de “modernismos alternativos”, “outras correntes de modernização cultural em paralelo àquela geralmente conhecida”. No caso brasileiro, enquanto o cânone modernista veio das esferas elitistas da arte, esses modernismos alternativos “brotaram da cultura popular e de massa” (Cardoso, 2022, 17). Um dos problemas da instituição do Modernismo de 1922 como centro do cânone, portanto, é o apagamento de outras formas de arte que já rompiam com o academicismo do final do século XIX e do começo do XX, categorizadas como “pré-modernistas” por alguns críticos e historiadores. Como escreveu Beatriz Resende (2016, p. 16), o “cânone modernista terminou por se fazer responsável pelo esquecimento, pela desvalorização ou mesmo pelo desaparecimento de obras e autores que, já desvinculados do academicismo, do beletrismo, não chegaram, porém, às vezes por mera questão de calendário, a fazer parte do que se consagrou como Movimento Modernista”.
O problema aqui é que Cardoso acaba produzindo um esquema binário em que um modernismo vem antes do outro – ou seja, ele recai na história unidirecional que havia criticado –, e esse segundo não apenas se torna hegemônico como também é menos democrático do que o primeiro. Dessa forma, o livro parece instituir outro cânone, o que significa refazer o movimento de exclusão, algo que parece ser uma tendência de outros analistas críticos aos modernistas de 1922. Como termo de comparação, vejamos o que escreveu outro autor, o biógrafo e jornalista Ruy Castro (2021, p. 16), na introdução de As vozes da metrópole: uma antologia do Rio nos anos 1920: “desde 1920, o Brasil já tinha um escrete de escritores afiados na observação de sua época e que já escreviam brilhantemente em brasileiro, em todos os estilos correntes e em outros que, a partir dos anos 1920, seriam caracterizados como ‘modernistas’ (embora os autores do Rio, modestamente, fossem apenas modernos) […] sem dispensarem o humor e a leveza que são as marcas do Rio”.[3] Essa citação de Castro mostra como o uso livre e pouco específico de moderno, modernismo e modernização provocam confusão, sobre a qual falaremos mais à frente. Moderno, enquanto oposição ao antigo (ou ao clássico), não é algo exclusivo das vanguardas do século XX, nem da passagem do século XIX para o seguinte. Para mencionar um uso nas nossas letras, Antonio Candido lembra como Gonçalves de Magalhães justificava seu “repúdio do imaginário clássico” em 1833: “Outro deve ser o maravilhoso da poesia moderna; e se eu tiver forças para escrever um poema, não me servirei dessas caducas fábulas do paganismo” (Magalhães, apud Candido, 2017, p. 378). De forma semelhante, o que se chamou modernismo nas letras hispano-americanas se chamou “art nouveau, modern-style, liberty, jugendstil, sezessionsil” (Ramírez, 2016, p. xx). Um crítico como José Paulo Paes (2002) chegou a sugerir, a partir de Brito Broca e Flávio L. Moura, substituir o infeliz “pré-modernismo” por art nouveau ou “arte nova”, e Beatriz Resende sugere “literatura art-déco” para a produção carioca moderna dos anos 1920 a 1945 (Ferreira; Ernesto; Resende, 2014).
Sergio Ramírez, em sua introdução à obra seleta de Rubén Darío, propõe ainda uma segunda diferenciação, entre o modernismo decorativo e barroco finissecular, cuja figura principal é William Morris, ao modernismo invasivo dos anos 1920, que ele relaciona à Bauhaus e a Walter Gropius (Ramírez, 2016, p. xxi-xxii). Haveria, portanto, dois processos de modernização das artes, ambos com suas contradições: um de resistência à industrialização por meio do artesanato, mesmo que incorporando os novos materiais (Morris), e outro de despojamento (Gropius), entre os quais há tanto continuidade quanto ruptura.[4] No Brasil, a oposição toma outra forma: entre uma “arte nova” ou, mais à frente, “art-déco”, com grupos dispersos, ligada à profissionalização; de outro um Movimento Modernista, com revistas, manifestos e correntes mais ou menos definidas.
Parece-me, portanto, que há, no livro de Cardoso, uma contaminação (talvez inevitável, mas que não é tratada adequadamente) entre moderno (em oposição a arcaico ou clássico), modernismo (enquanto nome de um movimento específico de tentativa de modernização) e modernização (termo que trataremos mais à frente). Sigamos a argumentação. A modernidade carioca é descrita por Cardoso e por Castro em oposição ao modernismo paulista. De um lado, artistas e escritores profissionais, vindos de classes diversas, escrevendo para o público, tratando com organicidade a questão racial e surgindo também organicamente de uma cidade que era em si moderna e cosmopolita, cidade-luz – Ruy Castro (2019, p. 305) menciona que Albert Einstein teria dito, ao visitar o Rio em 1925, que “os brasileiros mataram a noite”. Do outro, artistas e escritores diletantes, saídos da elite cafeeira, escrevendo para os pares, abordando a questão racial de um ponto de vista abstrato, quando não racista, tentando desprovincianizar uma cidade ainda provincial e ao mesmo tempo querendo produzir uma arte não cosmopolita, mas nacional. Mencionando Monica Pimenta Velloso, Cardoso diz que o modernismo carioca é “assumidamente cosmopolita e menos primitivista do que seu equivalente paulista” (Cardoso, 2022, p. 23). No entanto, ao menos no que tange ao aristocratismo do movimento paulista, embora real, talvez também deva ser nuançado, como sugere Maria Arminda do Nascimento Arruda (1998). A citação é longa, mas a reproduzo:
A postura irreverente foi igualmente marca registrada de Oswald de Andrade, comportamento que lhe rendeu incontáveis dissabores e o relegou à posição de marginalidade em relação às instituições. No fim da sua vida, Oswald revelava a consciência agônica do seu distanciamento diante das instâncias de consagração cultural e de inserção institucional, o que o tornava um verdadeiro outsider na vida intelectual paulista. Diferentemente, vários membros do grupo carioca possuíam empregos públicos, entretinham colaboração permanente em jornais e revistas, criavam anúncios para o nascente mercado publicitário, cultivavam relações próximas com políticos, altos funcionários e empresários, que lhes rendiam financiamentos para a publicação das suas obras. Emílio de Menezes conseguiu até mesmo ser admitido na Academia Brasileira de Letras. Por isso, é desejável redimensionar a possível marginalidade desses intelectuais cariocas e, talvez, interrogar sobre a construção das autoimagens que proliferam entre os produtores culturais, sequiosos em se destacarem do conjunto dominante.
Para que o esquema de Cardoso funcione, é preciso criar algumas divisões onde não havia ou onde não eram tão claras, muitas vezes recorrendo a supressões de evidências ou ao menos a interpretações bem controversas. Menciono um caso específico. Ao falar da Antropofagia e, dessa forma, tratar das fases do modernismo,[5] Cardoso faz uma ótima análise da oposição entre primitivo e selvagem segundo o movimento liderado por Oswald de Andrade, assim como do seu vínculo com a psicanálise e da contradição entre a prática e o discurso antropofágico. No entanto, ao tratar da relação do grupo antropofágico com os demais subgrupos, afirma que, “dado o desgaste das relações entre Mário de Andrade e Oswald de Andrade, que foi da amizade para o antagonismo, seria temerário presumir qualquer continuidade entre os propósitos da Semana de Arte Moderna e da Antropofagia” (Cardoso, 2022, p. 206). Há aqui um salto argumentativo, que permite que o autor não leve em conta que os posicionamentos artísticos sempre são respostas tanto aos movimentos reais da sociedade quanto às disputas e tensões internas ao campo artístico (que é relativamente autônomo, como tão bem demonstra Pierre Bourdieu). Logo, mesmo que tenha havido ruptura pessoal entre os dois principais nomes do modernismo paulista, cabe ao historiador e ao crítico inquirir as movimentações reais dos atores. Desse ponto de vista, o que há é uma dialética sempre aberta entre ruptura e continuidade, como o próprio Cardoso sugere na introdução. Mas, afinal, o que permite que ele afirme não haver continuidade? Segundo ele, “as opiniões dos próprios antropofagistas”, como quando Oswald afirma que a Semana de Arte Moderna seria um “falso modernismo” (Cardoso, 2022, p. 201). Aqui o autor decide tomar ao pé da letra as afirmações dos atores, como se elas próprias não fossem posicionamentos em grande medida em reação a movimentações de outros atores dentro do campo artístico. Uma crítica das fontes ajudaria a ler com um grão de sal afirmações como a de Oswald.
A própria formação de grupos é uma resposta a essa dupla pressão sobre os atores, tanto externa (social, econômica e política) quanto interna ao campo artístico.[6] É interessante que, ao descrever Boemia, Cardoso chegue perto do tema ao notar que o quadro expressa a existência “de um grupo artístico concreto”. Essa afirmação poderia abrir espaço para outro tipo de investigação, de caráter mais sociológico, que levasse em conta a importância de grupos para a transformação estética e social, como mostrou Raymond Williams – autor citado por Cardoso – em relação ao Círculo de Bloomsbury (Williams, 2011, pp. 201-230), ou Bourdieu com os grupos realistas, naturalistas e impressionistas franceses (Bourdieu, 1996). No caso brasileiro, é o que Sérgio Miceli tem feito com o próprio modernismo, mais recentemente em Lira mensageira: Drummond e o grupo modernista mineiro (2022). Miceli é um bom exemplo – com acertos e erros, como qualquer pesquisa – de análise que busca trabalhar as mediações contraditórias entre os campos políticos e intelectuais na história do modernismo.
Por fim, para concluir esse tópico, a impressão que se pode ter é de que se quer instituir outro modernismo canônico, em que uma cidade substitui a outra, as artes gráficas, a crônica e a imprensa profissional substituem as artes plásticas, o quadro, a escultura e o livro. Mas, como sugere Maria Arminda Arruda (1998), “as discussões construídas em torno de primazias e de correntes hegemônicas são desnecessárias e podem até aludir a posições revalidadoras de disputas ingênuas”. O caminho de crítica ao cânone modernista talvez possa ser outro. Por um lado, é necessária “uma releitura [do modernismo] onde se dê uma efetiva abertura para a superação de fronteiras definidores e limitadoras”, como sugere Resende (Ferreira; Ernesto; Resende, 2014), levando em conta o trânsito não apenas entre tendências anteriores (como o simbolismo) e o modernismo, mas também entre autores, revistas e jornais identificados com um grupo ou outro. Por outro, dado que há relativa autonomia dos grupos carioca e paulista, é necessária uma releitura em que enxergaríamos em um modernismo a verdade do outro: no carioca, a explicitação da ligação entre arte moderna e mercadoria, relação esta relegada a segundo plano no Modernismo de 1922 por causa do diletantismo; no paulista, a explicitação da relação entre modernidade e escravidão, que no carioca muitas vezes era preterido diante da celebração cosmopolita da democracia que representariam a imprensa e a metrópole.[7] Talvez essa contradição entre dois modernismos (de muitos outros que poderiam ser elencados em Minas Gerais, no Sul ou no Nordeste) seja um caminho mais interessante para descobrir algo novo sobre nossas próprias contradições do que a escolha historicista de um caminho apenas como o da verdadeira (ou melhor) modernidade. Isso se considerarmos mesmo que faz sentido usar o termo “modernismo” para designar não apenas movimentos – uma vez, repito, que havia uma consciência da condição de movimento nos paulistas de 22, não nos cariocas antes dessa data –, mas grupos mais dispersos que promoveriam uma modernização das práticas artísticas e culturais.
Essa dicotomia reaparece quando Cardoso trata da relação de Mário de Andrade com a música, o que nos leva à segunda questão: o que torna uma prática cultural “nacional”? O autor parte de uma série de afirmações de Mário de Andrade sobre Sinhô para afirmar que o autor de Macunaíma sugeria que “ser carioca era ser distinto de ser brasileiro e, por extensão, [que] a capital da República não era representativa do Brasil” (Cardoso, 2022, p. 230). Diante da visão em ascendência “de que a mistura racial seria a maior característica da brasilidade”, característica simbolizada pelo Rio de Janeiro, Mário nutriria “algum paradigma exaltado de pureza cultural e étnica”, contrapondo “a atualidade degradada a um estado primevo de pureza” (Cardoso, 2022, p. 231). Por mais que a relação de Mário de Andrade com a identidade nacional seja complicada – aqui, vale a pena retomar o ensaio “Macunaíma e a ‘entidade nacional brasileira’”, de Leyla Perrone-Moisés (2007) –, as conclusões às quais o autor chega são contundentes demais para as evidências elencadas, que se concentram em poucos textos sobre Sinhô. Ainda mais quando o objeto de crítica é um autor com tantas flutuações quanto Mário de Andrade. Além disso, a crítica à defesa de Mário à gravação de música folclórica nos leva a ver como essa dicotomia leva a um binarismo: ou o cosmopolitismo de Sinhô, ou o primitivismo de Mário, como se a questão fosse determinar qual representa a nacionalidade ou o “agora” do sistema artístico brasileiro. E não uma questão de investigar a quê cada uma dessas práticas culturais responde, a quais pressões internas e externas do campo artístico, e como essas respostas rendem. Cabe ainda refletir quanto há, em Mário, uma crítica à centralidade do Rio de Janeiro na Belle Époque como uma espécie de “meridiano de Greenwich” do agora nacional. No artigo já citado, o autor de Macunaíma escreve que uma das conquistas do modernismo foi a “descentralização intelectual”, contribuindo para que a literatura alcançasse “estabilização normal no país”. E continua: “O movimento modernista, pondo em relevo e sistematizando uma ‘cultura nacional’, exigiu da Inteligência estar ao pardo que se passava nas numerosas Cataguazes” (Andrade, 2002, p. 272), numa referência ao grupo da revista Verde.
Vamos ao terceiro ponto. Embora toque na questão teórica na introdução, ao longo do livro Cardoso não define o que entende como “moderno”, termo que pode recuar até a querela dos Antigos e dos Modernos no século XVII, polêmica possibilitada por um processo que podemos chamar de modernização (estabelecimento de um capitalismo editorial). No Brasil, podemos dizer que há ciclos de modernização, no sentido de atualização das práticas sociais de acordo com a atualidade europeia e, depois, americana, isto é, com o “moderno”: após 1808; a partir de 1821, com a liberdade de imprensa; e assim por diante. Esses processos de modernização sempre foram contraditórios, baseados na manutenção ou no reforço da escravidão, na disputa entre oligarquias regionais, no fortalecimento da exploração da mão de obra assalariada.[8] A pergunta que fica é: qual é a contradição específica do modernismo carioca? Se o modernismo paulista teve uma relação com a oligarquia paulista – por meio do capitalismo editorial modernizante simbolizado pela família Mesquita e pelo mecenato –, quais são as relações entre o modernismo carioca (enquanto momento artístico, não movimento organizado), o grupo de artistas profissionais carioca, que estabelece uma autonomia relativa proporcionada pelo capitalismo editorial da capital da República e que se organiza em torno dos valores da art nouveau e da “civilidade” carioca, e as pressões exteriores ao campo artístico? De que maneira esse cosmopolitismo, em oposição ao nacionalismo paulista, responde a certa necessidade de ignorar, ali no centro de poder, o que havia de permanência de formas antigas de exploração em todo o país, enquanto se olhava para o que havia de moderno, de iluminado e de atual na capital? De que modo o gosto pela velocidade, pelas luzes e pelo prazer seria uma continuidade da “miragem compensadora” de que falava Candido (2023) ao tratar da opulência do parnasianismo?
Se o livro de Cardoso não pretende responder a essas perguntas, certamente acrescenta novas questões e nuances relevantes que podem e devem ser exploradas por pesquisadores. Apesar das imprecisões mencionadas e do que me pareceu uma insistência “em torno de primazias e de correntes hegemônicas”, Modernidade em preto e branco é uma contribuição importante para tentar complexificar a recepção contemporânea dos chamados modernismos e para reaproximar campos de estudo que ficaram por tempos afastados, como as artes gráficas e a literatura.
* Lucas Bandeira é editor da Revista Z Cultural e faz pós-doutorado no PACC/UFRJ, com bolsa da Faperj.
Referências
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ARANTES, Paulo Eduardo. Sentimento da dialética na experiência intelectual brasileira: dialética e dualidade segundo Antonio Candido e Roberto Schwarz. São Paulo: [s.n], 2021.
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Notas
[1] São inúmeras as histórias da literatura que se baseiam na premissa de que a literatura brasileira percorreu um caminho mais ou menos único até chegar à autonomia com o Modernismo de 22, tese que vai de Eduardo Portella (1971, p. 34), em texto 1963, para quem o percurso literário brasileiro se dividiria entre o longo início, a formação em curso e a plena autonomia, ao Antonio Candido de “Literatura e cultura de 1900 a 1945”, texto de meados dos anos 1950, que levanta a hipótese de que haveria dois momentos decisivos da dialética do localismo e do cosmopolitismo que seria como uma “lei de evolução da nossa vida espiritual”, o Romantismo e o Modernismo (Candido, 2006, p. 117-120). Para um apanhado das revisões do modernismo, ver Velloso, 2010, e Dealtry, Fischer e Leite, 2022.
[2] Hermano Vianna (2002, p. 29) trabalha essa questão, a partir de uma breve e instigante observação de Antonio Candido, em O mistério do samba, livro que completa 28 anos em 2023.
[3] Ver também Castro, 2019.
[4] Menciono um pequeno mas curioso momento dessa relação entre ruptura e continuidade no livro de Luiz Ruffato: em cartas ao grupo da revista Verde, Alcântara Machado insiste em que eles simplifiquem o aspecto gráfico da revista, em que ainda perduram, como o leitor pode ver nas capas reproduzidas no livro, elementos art nouveau (Rafatto, 2022, p. 98-99 e 170-182).
[5] Mário de Andrade (Andrade, 2002, 260, 265-266) fala de uma fase heroica, pré-1922, uma fase destruidora e uma fase construtora, em que entram de maneira mais clara o nacionalismo e, dessa forma, a questão racial.
[6] Em A revista Verde, de Cataguases, por exemplo, Luiz Ruffato (2022, p. 133) levanta a importância de publicações fora do Rio de Janeiro e de São Paulo, antes do surgimento da Revista de Antropofagia, em 1928, para a “divulgação das novas ideias modernistas num momento em que praticamente não havia um canal de expressão adequado nos grandes centros”. O livro de Ruffato também tem o mérito de, por meio de um estudo de caso, mostrar a importância das relações pessoais, tanto quanto dos posicionamentos políticos e estéticas, como determinantes das escolhas de filiação dos escritores mineiros às correntes do modernismo. Além disso, ele dá indícios da penetração do modernismo paulista em outros estados já em meados dos anos 1920.
[7] O próprio Mário de Andrade, em uma de suas autocríticas, afirma que, “socialmente falando, o modernismo só podia mesmo ser importado por São Paulo”, já que o “Rio era muito mais internacional”. Em um movimento argumentativo a princípio desconcertante, Mário continua: “É mesmo de assombrar como o Rio mantém, dentro de sua malícia vibrátil de cidade internacional, uma espécie de ruralismo” (Andrade, 2002, p. 258-259). O modernismo é paulista, segundo Mário, porque lá havia uma aristocracia rural – oposta à burguesia carioca – que ao mesmo tempo daria condições financeiras e se escandalizaria com o movimento. No “Rio malicioso, uma exposição como a de Anita Malfatti podia dar reações publicitárias, mas ninguém se deixaria levar” (Andrade, 2002, p. 259).
“Vários meses se passaram desde o momento em que comecei essa narrativa, em novembro. Levei bastante tempo para conseguir escrever porque não era nada fácil lançar luz sobre fatos esquecidos, talvez fosse mais simples inventar.” (Ernaux, Annie, 2021)
Todas as profissões têm cacoetes. Os jornalistas, como eu, têm a obsessão de achar um lead e um título nos textos que leem. Acho que hoje, mesmo que cada dia mais longe das matérias jornalísticas e mais próxima dos literários, ainda procuro um lead e um título para o que leio. Uma busca sem pretensão de encontrar um sentido absoluto para o texto, que me serve apenas como método para facilitar minha orientação nas obras da literatura contemporânea. É apenas uma estratégia para percorrer narrativas que abdicam do que o filósofo Jacques Rancière chama de racionalidade ficcional, dada pelo encadeamento de causas e efeitos que organizam um arranjo de eventos estruturante de uma certa realidade, e, que testado pela inversão das expectativas geradas por ele, produz as peripécias vividas pelas personagens (Rancière, 2010). Uma literatura marcada pela diluição da importância dessas peripécias em favor de escritas não lineares, híbridas, compostas por vários gêneros que transformam o romance em uma obra comprometida não apenas com a narração de uma história, mas também com um exercício autobiográfico do autor, que pretende unir arte e vida em sua escrita e dar a sua voz um caráter coletivo e crítico, abordando questões políticas e teóricas caras ao contemporâneo. Uma literatura que não se preocupa em traçar caminhos para o leitor e que se dedica a fazer seu próprio percurso na narrativa, como é o caso do romance Pagu no metrô, da escritora Adriana Armony, em busca de sua biografada, a escritora Patrícia Galvão, a Pagu.
Antes de deixar Rouen, vou visitar a célebre catedral, pintada por Monet entre 1892 e 1894. Por um longo período e várias estações do ano, o pintor traduziu em pontos de luz a mesma igreja, de vários ângulos, a cada vez diferente segundo o clima, a hora, e as sombras dos dias. Gostaria de pintar Pagu assim, não apenas com minhas palavras de escritora, mas também com as histórias, as decepções e esperanças que a atravessam, como leitora (Armony, 2022, p. 106).
Esse trecho do romance é a chave que proponho para a leitura de Pagu no metrô, o meu lead. Assim como o pintor Claude Monet, que instalou seu ateliê em frente à Catedral de Rouen, para observá-la em todas as suas possibilidades, Adriana mudou-se para Paris, onde morou no ano de 2019, em busca de dados sobre a permanência de Pagu na cidade nos anos de 1934 e 1935. Mas, ao contrário de Monet, que se postou diante da matéria da catedral, ela sabe que seu objeto não passa de um espectro em constante movimento, provocado pelas leituras e releituras de sua personagem ao longo de quase um século que as separa. A pesquisadora que precede a autora parece estar convencida de que a experiência em Paris de Pagu está perdida (“É então que me dou conta de que tenho pouquíssimos indícios do que se passou com Pagu em Paris em 1935” [Idem, p. 65]), e que a única tarefa possível à biógrafa é buscar os rastros da passagem da brasileira pela cidade, dispersos em arquivos franceses. Ela fará a biografia de sua personagem dessa letra morta, guardada nos arquivos e observada com a mesma paciência de Monet diante da Catedral de Rouen, que ela sabe não ser totalmente confiável (“Uma distração do funcionário, um carimbo equivocado, e as peças não se encaixam, e todo um castelo pode ruir” [Idem, p. 106]). Dar vida a Pagu como sua leitora, explorando todas as possibilidades de sua biografada sem a certeza dos biógrafos, exige que ela trabalhe a personagem por meio da ficcionalização do real, assim como as impressões de Monet produziram 30 telas diferentes de uma única catedral. O que ela entrega ao leitor é ficção composta pelos restos do real, que colhe em sua permanência em Paris. Real vivido em dois tempos, o dela e o de Pagu.
Restos que se interligam a histórias da própria autora e de suas conhecidas ou amigas e de mulheres que se relacionaram com a biografada na vida real ou na ficção produzida por ela. Mulheres que compõem uma única sujeita. Valho-me aqui da dubiedade desse neologismo sujeita, que, se por um lado dá a elas a condição de sujeito negada pelo patriarcado, por outro nos lembra a desqualificação imposta àquelas chamadas de sujeitas, sujeitinhas. As mulheres que não se assujeitam não são perdoadas. (“(Será que um dia conseguiremos superar a dicotomia santa-puta?)” [Ibidem, p. 79].) Pois é essa sujeita renegada pelo patriarcado – não importando se santa ou puta -, resultado da fusão de várias vozes femininas convocadas por Adriana para o romance, que constitui o corpo de mulher materializado no texto. Vozes, incluindo a da biógrafa, que gravitam em torno de Pagu. Vozes que reverberam na escrita e no corpo da autora, assim como na escrita e no corpo de Pagu. (“Posso imaginar como Patrícia se sentiu. Como muitas mulheres, também perdi um bebê. E tive outros, como Patrícia teria depois o seu. Rudá, seu menininho de cabelos dourados, com seu pijaminha, o polegar deformando a boca e a outra mão atrapalhada nos cabelos. Aquele que ela queria esmagar no seu seio, aquele que não devia conhecer aquela ternura criminosa. Eu me reconheço na Pagu de 14” [Ibidem, p. 11]) Uma sujeita que indica quando autora e personagem, ou, no caso estudado aqui, biógrafa e biografada, formam o mesmo corpo de mulher.
Na plataforma do metrô République, duas mulheres se encaram. Uma tem mais de 100 anos, a outra praticamente a metade disso. A centenária tem também 52, e ao mesmo tempo 24. A pesquisadora tem também 24 anos, caminha para os 52 e em um piscar de olhos ultrapassará os 100 (Ibidem, p. 126).
Um corpo coletivo, múltiplo, constituído em uma colagem que une fragmentos da vida de mais de 20 mulheres reais ou fictícias trazidas para o romance. Fragmentos que não são um sintoma da impossibilidade da linguagem, mas, sim, da impossibilidade de se recompor uma vida em uma narrativa teleológica. Assim, eles servem, como uma estratégia da escrita contemporânea, para compor uma rede de interconexões que problematiza o real, e que, no caso de Pagu no metrô, forma um sentido para a vida narrada, sem qualquer pretensão de reconstruir essa trajetória em seus detalhes. Um sentido dado por um vozerio de mulheres que compõe uma experiência marcada pela repressão, pela violência sexual, pela hipocrisia e pela invisibilidade vividas por Pagu. Adriana tece, assim, uma teia em torno de sua biografada, com o objetivo de dar visibilidade não apenas a mulheres que nunca foram vistas em suas múltiplas possibilidades, mas, sobretudo, à experiência daquelas que fizeram de suas vidas uma história de resistência à ordem de um mundo patriarcal. Mulheres que “produziram importantes rupturas e sucessivos deslocamentos no imaginário social, especialmente no que tange às questões da moral, da sexualidade e dos modelos de feminilidade e corporeidade que lhes deveriam ter servido de referência” (Rago, 2013, p. 35). Essas vozes femininas se agregam ao romance pela técnica da montagem, como uma forma de dublar ou redizer essas experiências, uma estratégia narrativa que Clara Schulmann (2022) vai identificar como comum na literatura contemporânea feminista.
Trata-se de ouvir vozes, isolando-as dos terrenos ou dos contextos em que elas puderam aparecer, para capturá-las de outro modo. O trabalho se parece portanto com uma forma de transcrição, eventualmente de montagem, de assemblage. A escrita faz nascer essa comunidade ao desenhar ligações de parentesco: como se eu tentasse dar existência a uma família improvável, que o tempo, as épocas e as disciplinas não pudessem separar (Schulmann, 2000, p. 14).
Pagu é a principal destas vozes. Musa dos modernistas paulistanos, é vista como uma femme fatale, que com sua beleza e poder de sedução nunca despertaria um sentimento puro (Galvão, 2020, p. 20), ou, ainda, que colocaria homens e famílias em perigo. (“Pagu chegou a ser inocentada numa sentença inusitada em que o juiz federal Bruno Barbosa propunha sua inocência, mas destacava o “poder de atração das mulheres revolucionárias” [Ibidem, p. 100]) Um estereótipo que Pagu não conseguiu se libertar nem mesmo quando saiu da prisão, durante o Estado Novo no Brasil, com 26 anos e apenas 44 quilos, e que acabou por obscurecer não apenas sua militância política e a literatura, mas, sobretudo, seu modo de existência marcado pela condição feminina e sua subjetividade. É a experiência dessa mulher que atrai o interesse da pesquisadora e biógrafa, que parece querer, acima de tudo, enxergar na militância política e na literatura dela a mulher que Pagu foi, como deixa claro ao comentar a participação de uma ala de feministas brasileiras em uma manifestação em Paris.
(Por que me esqueci do horário do cortejo? Me pergunto se não tenho ciúmes das moças que carregam os cartazes com a foto de Pagu, o meu cartaz; que empunham o mito talvez sem conhecer a sua história; sem ver as mil e uma mulheres dentro dela, suas contradições, sua complexa e humana beleza.) (Armony, 2022. p. 89).
Chego aqui com o lead e o título de que precisava para percorrer o texto e os caminhos que Adriana traça no romance, mas isso é apenas o começo. A primeira dificuldade que se apresenta a mim é como classificar a obra. Buscar essa classificação, mesmo sabendo que na literatura contemporânea isso é praticamente impossível, é uma forma de esmiuçar a escrita de Adriana, que, em sua busca pela história de Pagu na Paris dos anos 1930, se multiplica. Ela é ao mesmo tempo pesquisadora, biógrafa e ficcionista de um texto que mistura o relato do esforço da pesquisadora em recuperar os fatos do passado e o desejo da ficcionista em interligar a si própria e a biografada em uma rede de experiências feministas. O que seria então esse texto? Uma biografia? Um relatório de pesquisa? Um diário? Um ensaio? Um romance? É possível dizer, logo de saída, que a biografia que Adriana faz de Pagu não é como a que ela faria se fosse uma jornalista. Não vemos no texto o esforço de recompor a vida da biografada, oferecendo ao leitor o maior número possível de informações verificáveis. Aqui, Adriana é ao mesmo tempo autora e a personagem narradora, responsável por estabelecer interconexões entre os fragmentos que compõem a obra. Uma escrita que se filia, assim, a uma tendência contemporânea de deixar visível no texto um “rastro de pontos de tensão em um espaço/movimento de transformação incessante” (HOISEL. 2019, p. 33). Uma tensão que produz não apenas um efeito estético, formal, mas, sobretudo, um sentido para uma vida que não pode ser recuperada, assim como o crítico Silviano Santiago enxerga nos índices remissivos que criam várias entradas para a mesma biografia.
Amplia-se o relato propriamente biográfico de Vargas pelo recurso dos editores a remissões. Elas, uma a uma, introduzem cunhas sucessivas no verbete, fragmentando a grafia de vida predeterminada pela obediência à cronologia e pela sucessão linear dos fatos. As várias remissões ampliam o texto obediente à ordem do alfabeto, retrabalhando-o pelo processo de fragmentação e de dispersão da grafia de vida, com o fim de levar o leitor a conhecer a figura em pauta de maneira mais acidentada e incoerente. Ao mesmo tempo, leva-o a situá-la entre seus distantes e universais companheiros de ideias e de atuação no passado, no presente e no futuro (Santiago, 2015, p. 13).
Essas remissões são constantes no texto de Adriana, que recorre ao passado e ao presente, a Pagu, a si própria e a outras mulheres para construir a personagem que biografa, como se confessasse ser impossível constituí-la apenas com as fontes da memória coletiva ou individual. Admitir essa falha é, na prática, pôr em xeque a clássica divisão entre “as duas fontes de grafias de vida – a enciclopédia, de um lado, e a biografia e a ficção, do outro” (Santiago, 2015, p. 13). Em Pagu no metrô, está tudo junto e misturado. Pagu é real e ao mesmo tempo fruto da ficção de Adriana, assim como Violette Nozière, assassina do pai, o é para Pagu no conto “O dinheiro dos mutilados”, assinado por ela com o pseudônimo King Shelter. Nele, aparecem os personagens Violeta Cottot e Paul Crevel, uma fusão dos nomes dos surrealistas Paul Éluard e René Crevel (esse último quem apresentou a Pagu a história da assassina do pai abusador ocorrida um ano antes de sua chegada a Paris), e muitos elementos do crime que assombrou a cidade. As duas se alimentam do real para produzir ficção, mas há entre elas uma diferença de estilo e de época. Pagu, em sua escrita, faz o esforço dos ficcionistas modernos de apagar a persona real do texto, escondê-la “por trás da observação refinada e das frases compostas a duras penas, com vistas a uma ambição superior − a da criação de um ser de papel e em letras, autônomo, futuro e complexo personagem de ficção” (idem, p. 21). Já Adriana, como os contemporâneos, deixa expostos seus procedimentos de escrita para o leitor, ligando sua obra ao real, mesmo que lhe dê tratamento ficcional, como faz com o texto que encerra o romance em que narra o encontro da biografa e da biografada na Estação République, em Paris. A narração é marcada por uma temporalidade e uma espacialidade surreais, que tornam possíveis um encontro entre Pagu e Adriana em tempos e em lugares diferentes. Elas embarcam em Paris, passam por várias fases da vida, e desembarcam na Estação Carioca, no Rio de Janeiro, em 2022.
Os fragmentos que compõem a obra têm ainda uma função ética de buscar uma forma para o texto literário que o transforme em um documento político, sem, no entanto, empobrecê-lo esteticamente. O arquivo, onde textos e documentos de diversas origens e gêneros podem conviver, para, depois, serem amalgamados na obra pela experimentação formal da escrita contemporânea, é uma estratégia de uma literatura interessada em produzir espetáculos do real ou “realidade-ficção”, como definiu Josephina Ludmer (2013), e não mais em apenas criar um efeito de real na narrativa, como era a intenção das obras oitocentistas percebida por Roland Barthes (2012). “A mistura de gêneros ficcionais e documentais, a inclusão de documentos e imagens de arquivo, o jogo permanente com a identidade real do autor, são algumas das estratégias usadas pelos textos para produzir esses efeitos de realidade” (Gutiérrez. 2017, p. 15). É nesse terreno movente, em que se transformou a escrita literária contemporânea, que os textos híbridos se situam “na fronteira entre o ficcional e o documental experimentando permanentemente esses limites” (Idem, p. 14), e deixando à vista do leitor os procedimentos que desestabilizam o estatuto do ficcional, baseado na imaginação comprometida com o princípio da verossimilhança.
Um dos aspectos destacados na análise destas formas híbridas é que se constroem misturando o discurso ficcional (que não teria presunção de verdade, tal como definido por Costa-Lima) com outro tipo de discursos em que existiria essa presunção de verdade (como o ensaio, o discurso da crítica e da história literária e a autobiografia) (Ibidem, p. 49).
Adriana escreve nessa fronteira explorada por múltiplos escritores em textos híbridos, que dão aos autores um novo protagonismo, com as escritas autobiográficas ou de autoficção. Ela é leitora, pesquisadora, admiradora e cúmplice de Pagu, ao mesmo tempo que se propõe a ser sua biógrafa em um romance que narra um biografema da vida da modernista (Barthes, 2005): a experiência de Pagu em Paris nos anos de 1934 e 1935. O hibridismo de seu texto se materializa nas páginas finais do romance. O livro se encerra não com o fim da história, mas com anexos onde está listada “alguma bibliografia” a que autora recorreu na pesquisa; com os agradecimentos a quem participou de seu estágio pós-doutoral iniciado na UFRJ e terminado na Université Sorbonne Nouvelle – Paris 3; e com a reprodução de documentos consultados por ela. Anexos inusuais na literatura, que, no entanto, não surpreendem os leitores dos romances contemporâneos. A pesquisa de Adriana rende frutos que são registrados no romance, com os detalhes da permanência da modernista na cidade, marcada por uma intensa militância comunista que a levou à cadeia e ao risco de extradição. Entre as descobertas que a autora-pesquisadora fez nos arquivos franceses está uma foto inédita, tirada na ocasião da prisão pela própria polícia, e um prontuário de internação de Pagu em um hospital, decorrente de uma metrorragia, que a faz desconfiar ser provocada por um aborto ou de um mioma, mas que, ao fim, descobre ser sequela de um ferimento causado por uma tentativa de suicídio. Os dados, até então desconhecidos, são comemorados pela pesquisadora, mas quem se alimenta deles é a romancista.
Metrorragia (do grego antigo, metra, útero, + -rrahagia, fluxo excessivo): sangramento uterino excessivo fora do período menstrual.
(…)
(Um choque súbito: o nome do sintoma de Pagu contém o radical “metro”. Uma nova camada, inesperada, cobre o título deste livro.) (Armony, 2022, p. 114).
Sexo, útero, gravidez, aborto. Esses são temas que perpassam toda a narrativa do romance. O nome que Pagu usou em Paris parece aos olhos da biógrafa a fusão de muitas dessas situações. Leónie Boucher, ou, em português, Leonina Açougueira. Leonina era a parteira que recebeu todos os brinquedos que comprara para a filha que teria com Oswald de Andrade, o marido de sua “ídola Tarsila do Amaral”. Um feto que morreu depois que a genitora se jogou no Rio Pinheiros, onde “ficou uma hora lutando contra a correnteza” (Idem, p. 10). Açougueira, por sua vez, é uma alusão à forma como as aborteiras eram conhecidas em Paris. Adriana descobre a ficha de uma mulher chamada Léonie Boucher, condenada à prisão por um aborto ilegal, em suas pesquisas nos arquivos das prisões, outros dados, no entanto, mostram que essa Léonie não era Pagu. Mas a violência a que as mulheres que fazem um aborto estão expostas e a interdição ao prazer do sexo perpassam a narrativa. O sexo quase nunca aparece como um encontro de corpos movidos apenas pelo desejo. Ele cede lugar à luxúria do homem, exercida como um instrumento violento ou não de dominação das mulheres, e, nem mesmo a musa das vanguardas brasileiras conseguiu fugir a essa regra. Adriana reproduz no romance um trecho da carta que Pagu escreveu na prisão para Geraldo Ferraz, que viria a ser seu marido, falando do amadurecimento sexual como sendo uma das “páginas mais doídas” do relato da vida de sua biografada. (“Foi quando começou a compreender que o ato sexual poderia ser mais do que “uma carinhosa dádiva do meu corpo ausente” [Idem, p. 27]). Mas não é apenas Pagu que sofre na mão de homens narcisistas que não enxergam as mulheres com quem se relacionam. Quase todas as mulheres que Adriana reúne, inclusive ela, são ou já foram vítimas desses homens, inclusive a adolescente protagonista de Zazie no metrô, de Raymond Queneau, de onde vem a inspiração para o título do romance, que sofre um abuso sexual.
No entanto, o que une todas essas mulheres que gravitam em torno de Pagu no romance não é o sofrimento, mas um modo de vida que não diz respeito aos homens. Uma forma particular de existência, que Adriana está interessada em iluminar ao buscar os detalhes da permanência de Pagu em Paris. A autora mostra-se consciente da disputa política entre homens e mulheres, que está em torno do “controle do que significa ser mulher” (Rago, 2001, p. 59). (“Quando eu tinha 14 anos, a palavra feminismo evocava mulheres brutas queimando sutiãs, como bruxas. Algumas usavam botas pesadas e eram chamadas de sapatão. Mas havia as moças que tinham aproveitado para libertar os seios sob vestidos esvoaçantes.” [Armony, 2022, p. 84]) Recusar esse estereótipo e outros, como o da femme fatale, é afirmar o modo de existência das mulheres, o que, segundo Rago, é uma das questões centrais dos feminismos que têm se preocupado em “propor a construção de identidades femininas sob outras bases e parâmetros conceituais” (2001, p. 59). A literatura contemporânea, ao colar-se à vida e à experiência das mulheres, tem sido uma grande aliada do feminismo na recusa às formas de sujeição impostas a elas pelo patriarcado. Mais ainda em romper com o silêncio que lhes foi imposto pelo determinado patriarcado. As mulheres, enfim, à custa de muita luta travada ao longo do século XX conquistaram o status de testemunhas da história, papel que lhes era negado pelas sociedades tradicionais, que tinham o testemunho como “um dispositivo de controle dos corpos e da mente” (Seligmann-Silva in Rago, 2013, p. 19). Adriana, com sua Pagu no metrô, com certeza dá sua contribuição a essa luta. Como ela mesma diz, no fim do romance, “estamos vivos” (Armony, 2022, p. 130). Ouso apenas corrigir o gênero do sujeito do enunciado e falar com a voz aguda das mulheres: “Apesar de tudo, estamos vivas.”
* Luciana Conti é jornalista e doutoranda no Programa de Ciência da Literatura/ Letras/ UFRJ, com bolsa da Capes.
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Só escrevendo
Aguento
Esse dia a dia
Sem vento
Mas gosto do calor
Sol entrando pela casa
Céu azul
Infinito a ver
II
Céu de anil
Amanhece
Mas não adormeço
O azul vem
Substituindo a escuridão
Primeiro azul escuro
Azul profundo
Até vir o sol
E clarear o mundo
III
Escrever
Aliviar
Mexer nos abismos
Escavar
E pra fora
Jogar
Toda a inquietação
Em palavras
Transformar
* Vera Lins é professora titular da Faculdade de Letras da UFRJ e autora de Gonzaga Duque: a estratégia do franco-atirador (Tempo Brasileiro, 1991), Novos pierrôs, velhos saltimbancos (EdUerj, 2009), Ingeborg Bachmann (coleção Ciranda da Poesia, EdUerj, 2013) e Desejo de escrita (7Letras, 2013), entre outros livros.
Annie Ernaux abre a introdução de Écrire la vie, edição em um volume do conjunto de sua obra publicada até 2011, com a frase: “Escrever é um presente e um futuro, não um passado.” O futuro estava próximo, o prêmio Nobel, recebido em dezembro de 2022. O passado se torna presente pela escrita que olha para o futuro. Annie Ernaux olha para frente, não para trás.
O passado, nas narrativas que se ocupam fundamentalmente da própria vida, não são memórias, nem autobiografia. A razão fundamental para serem narrativas originais em seu formato está em se constituírem no que a própria autora chama de “biografia impessoal”. Os melhores recursos do ficcional podem estar presentes, assim como as observações sociológicas, a avaliação política do contexto em que os fatos da vida acontecem. Quando narra sua vida pessoal, as relações familiares, quando fala da mãe trabalhadora ou do pai que falava patois mortos, é a memória social da filha do povo que aparece. As obras que tratam de seu percurso intelectual traçam a trajetória da jovem do interior da França que precisa ir para Paris, para os grandes centros para se transformar na escritora que é.
Annie Ernaux prova que o pessoal, na vida de uma mulher, é político. A narrativa da violência do aborto clandestino a que se submete, memória mais do que pessoal, torna-se leitura tão importante quanto o discurso que Simone Weil faz em 1974, diante de um parlamento composto de apenas 2% de mulheres eleitas, em defesa da legalização do procedimento. O acontecimento, no entanto, tornou-se leitura ainda mais importante num Brasil que continua condenando o aborto.
Partilhamos das leituras combativas, dos relatos da filha de operários, dos testemunhos das desigualdades da ordem social, e tudo nos parecia coerente, quando nos chega a tradução de Passion simple (Paixão simples, trad. Marília Garcia, São Paulo: Fósforo, 2023).
O título é o primeiro desafio que se impõe à competente tradutora, a poeta Marília Garcia. Trata-se de uma simples paixão, que poderia se diferenciar de outras, mais complicadas? É apenas paixão, sentimento que exclui outros, como o amor? Melhor mesmo foi ter ficado com a complexa simplicidade: Paixão simples.
Atribuir a uma mulher, ou a qualquer pessoa, uma identidade fixa é sempre um erro. Os estudos biográficos frequentemente cometem tal equívoco, sobretudo quando os autores são incluídos nos grandes cânones, nacionais ou internacionais.
No pequeno romance, especialmente contundente por sua concisão, a mulher é outra. Nada do passado importa, as questões políticas desaparecem, nem família nem trabalho vêm ao caso. Só o que importa é a experiência de uma paixão arrebatadora. “Sentia que estava no direito de me opor a tudo o que atrapalhasse uma entrega sem limites às sensações e narrativas imaginárias da minha paixão.”
Um diplomata estrangeiro, casado e que a seu país deverá voltar, captura o corpo e o cérebro da mulher de meia idade, e a partir daí não existe espaço para nada mais em sua vida senão o estar com ele.
Andar pela cidade, fazer compras, escolher um vestido, assistir a um filme, tudo só tem sentido ao se relacionar com a paixão vivida. Desejá-lo é esperar pelo telefonema, pelo barulho do carro que chega, pelo sinal à porta. Não importa quanto tempo espere, desde que o homem chegue. E os corpos se encontrem, o gozo se repita. “Gastávamos um capital de desejo.”
Roupas e copos se espalham pelo chão como em músicas românticas, cenas de filmes de sessão da tarde, talvez com trilha sonora de Roberto Carlos. O intrigante para o voyeur que atravessa as páginas do romance é que nada soe brega, vulgar. Ao contrário, quem lê se reconhece timidamente em alguma lembrança.
Nada se oculta no relato da paixão: na presença, o sexo, na ausência, a masturbação.
A cada êxtase de preenchimento se sucede a dor da falta que a ausência deixa. Porque é paixão será efêmera e o amante se vai. Fica a escrita, e é aí que Annie Ernaux mostra sua genialidade, a escritora raríssima, só ombreada mesmo por outra francesa, Marguerite Duras.
Os franceses se gabam do número de prêmios Nobel de literatura recebidos: 16. A única mulher premiada foi Ernaux, em 2022. Duras só recebeu o Gouncourt, o maior prêmio francês, no final da vida, em 1984. Talvez porque a imagem que criam de seus homens não deixem os vaidosos críticos satisfeitos.
Para a narradora de Paixão simples, é muito pequeno o limite entre reconstituição e alucinação, entre memória e loucura. O texto escrito é, para ela, vestígio daquele outro texto, vivido. Diante dos julgamentos que virão, a mulher que se revelou da forma mais nua durante a paixão acredita que, sob a forma de romance, “as aparências estão a salvo”.
Complicado, isso de paixão.
* Beatriz Resende é professora titular da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro e editora da Revista Z Cultural.
Guimarães Rosa é conhecido por não dar entrevistas. Durante sua vida, mostrou-se exímio fugitivo de qualquer jornalista ou pesquisador. Essa entrevista, que encontrei numa visita à Graça Coutinho no Vale das Videiras, tornou-se, então, uma joia de acervo. Não que Graça Coutinho tenha tido alguma estratégia especial para fazer Guimarães ceder a uma entrevista. Foi simples. Graça era filha de Afrânio Coutinho, um intelectual de ponta que introduziu o New Criticism no Brasil e grande amigo do escritor, que sempre a levava ao Itamaraty em suas visitas a Guimarães. Aos 15 anos, Graça teve que fazer um trabalho de colégio com um autor brasileiro, e lembrou de procurar Guimarães, porque lhe parecia mais fácil. Essa é a origem desta raríssima entrevista com o gigante Guimarães Rosa feita por uma adolescente de 15 anos. Senti, na hora, que tinha de compartilhar isso com os leitores da Revista Z. Está aí. Se as perguntas são amadoras, as respostas traduzem em vários pontos a grandeza de nosso escritor maior. Heloisa Teixeira curadora da seção Vale a Pena Ler de Novo
Mobilizada pelos 80 anos de Guimarães Rosa, lembrei-me de uma entrevista que havia feito com o grande escritor brasileiro nos tempos de colégio. Eu tinha então 15 anos e o privilégio de conhecê-lo e de privar de seu convívio nas visitas que fazia a meu pai.
Tendo que entrevistar o escritor brasileiro para um trabalho de estágio de português, escolhi imediatamente a grande figura de Guimarães Rosa, que muito admiro e a quem me ligam laços afetivos muito fortes, pois ele me honra com sua amizade.
Fui encontrar o grande escritor, que consentiu em conceder-me a entrevista no seu gabinete do Palácio do Itamarati ou Ministério das Relações Exteriores, pois, como embaixador brasileiro, ocupa o posto de escritor de departamento de fronteiras.
O seu gabinete de trabalho tem as paredes todas recobertas de mapas de nossas fronteiras. Recebeu-me, como sempre, com a maior simpatia, pondo-me logo à vontade. Não posso esconder que estava muito encabulada, pois aquela seria a minha primeira experiência nesse tipo de trabalho, sem falar em que estava diante de um dos maiores escritores brasileiros de nosso tempo e de todos os tempos, criador de um universo de ficção autenticamente brasileiro.
Mas consegui vencer a minha inibição e passei a formular ao escritor as minhas perguntas, a que ia respondendo de mistura com palavras amáveis e relatos de episódios de sua vida de diplomata e escritor.
Graça Coutinho: Diplomata e escritor ao mesmo tempo, como prefere o senhor viver, como escritor ou como diplomata?
Guimarães Rosa: Como escritor (mas escritor retraído).
GC: Onde prefere viver, no estrangeiro ou no Brasil?
GR: No Brasil sempre! Só no Brasil me sinto em perfeito equilíbrio psicológico.
GC: Na sua vida de diplomata, que países conheceu? E quais os de que mais gostou?
GR: Morei quatro anos e meio na Alemanha, dos quais três durante a guerra; dois anos na Colômbia (Bogotá) e três anos em Paris. Tive posto diplomático nestes lugares. Visitei também muitos países da Europa. Gosto da Alemanha, da França, mas meu carinho especial é com Portugal, que é o encanto, e com a Itália, que é deslumbrante.
GC: Que cidade mais o encantou no mundo?
GR: No Brasil é Salvador e o Rio de Janeiro, e no mundo é Florença, Roma e Veneza.
GC: Descobri há pouco tempo que o senhor é médico. Por que deixou a carreira?
GR: Ora, porque eu queria ir a fora e conhecer o mundo. Deixei a medicina para fazer o concurso para o Itamarati e talvez, inconscientemente, para me dedicar à literatura.
GC: Chegou a clinicar?
GR: Cheguei. Formei-me em fins de 1930 e fui para a cidadezinha no interior de Minas chamada Itaguara, onde cliniquei durante dois anos. Era médico da roça. Ganhava para ir às fazendas. Em 1932, houve a revolução e fui chamado para prestar serviços médicos. Fiz concurso para capitão médico. Em começo de 33, fui mandado para o 9º Batalhão de Infantaria, como capitão médico em Barbacena. Em 34, fiz concurso para o Itamarati, tendo sido nomeado em julho desse ano. Fui nomeado cônsul de terceira classe e fiquei três anos e meio no Brasil; depois, fui nomeado cônsul de segunda classe e fui para Hamburgo, onde permaneci até 1942, quando o Brasil rompeu relações com a Alemanha.
Mais tarde fui para Bogotá, como segundo secretário da embaixada. Em 44, retornei ao Brasil, onde fiquei como chefe de gabinete do ministro João Neves da Fontoura.
Em 46, fui a Paris fazendo parte da delegação do Brasil à Conferência da Paz. Em 48 fui como primeiro secretário da Embaixada do Brasil para Paris. Lá fui promovido a conselheiro da Embaixada. Em 51, voltei para o Rio, a fim de chefiar novamente o gabinete do ministro.
Daí por diante, permaneci no Brasil, como ministro de segunda e agora de primeira classe (embaixador). Desde 1956 chefio o serviço de marcação de fronteiras.
GC: Recolheu da vida de médico alguma experiência para o escritor?
GR: Tudo o que nós vivemos serve de experiência. As lembranças misturam-se em nosso subconsciente e afloram mais tarde na obra.
GC: Quando começou a fazer literatura? Que o influenciou neste sentido?
GR: Comecei quando vim para o Rio, em 34. Em 35, escrevi um livro de poemas Magma, que obteve o prêmio da Academia em 36 e ficou inédito até hoje. Em 37, escrevi Sagarana, publicado somente em 46. Comecei a escrever movido pela saudade do interior de Minas.
GC: Quanto tempo levou escrevendo Sagarana?
GR: Escrevi em sete meses e retoquei-o em quatro. Da mesma forma Grande Sertão, apesar de muito maior.
GC: Sei que a publicação deste livro despertou um grande sucesso. Como o recebeu? E como se sentiu diante do êxito extraordinário de seu livro?
GR: Fiquei muito entusiasmado. Quem nunca comeu melado quando come se lambuza. Depois me fui acostumando.
GC: Como costuma trabalhar, e a que horas?
GR: Trabalho sem parar. Quando já tenho as ideias prontas. Prefiro, no entanto, trabalhar à noite.
GC: Gosta da vida social?
GR: Detesto. Gosto muito das pessoas, mas tenho horror à vida social. Não tenho paciência para aturá-la. Não gosto de frequentar a vida social, tenho logo vontade de escrever. Quando ando de ônibus estou sempre planejando algum trabalho. Concatenando ideias. Prefiro muito as montanhas ao mar. O campo agrada-me imensamente.
GC: Como ficcionista, qual a sua obra de que mais gosta?
GR: Eu gosto mais da história “Campo geral”, a primeira novela do livro Corpo de baile. Toda vez que releio esta história, enchem-me os olhos de lágrimas. Ela é assim mais forte do que eu, pois comove-me.
GC: O senhor trabalha lentamente as suas obras?
GR: Trabalho, porque eu retoco muito. Trabalho com “vagareza rapidez”, ou “rápida lentidão”.
GC: Quais os seus planos para o futuro? Tem algum livro em preparo?
GR: Eu não faço nunca planos. Mas, no momento, tenho um livro de novelas em preparo. Estou agora colaborando no jornal médico Pulso, que circula entre os médicos do Brasil inteiro.
Escrevo neste jornal contos de página e meia. Numa semana sai um artigo meu, na outra, um do Carlos Drummond de Andrade.
Acho o conto um excelente exercício de despojamento. Cada palavra tem de ser justa como um bordado delicado.
GC: Como vê o êxito de suas obras no estrangeiro, em traduções?
GR – Inesperado, uma surpresa que muito me comove, mas tive a sorte de ter excelentes tradutores. Vai sair este ano Sagarana em inglês, nos Estados Unidos, e a tradutora consultou-me muito.
GC: Como concilia o seu trabalho de diplomata e de escritor?
GR: Tirando muito o meu tempo de divertimento. Sacrifico os fins de semana, feriados e fico até tarde à noite.
GC: Quais os escritores brasileiros do passado e do presente que mais admira?
GR: Acho muito difícil responder assim, pois não tenho fanatismo por nenhum escritor do passado. Todos ensinam muita coisa. Machado de Assis, por exemplo, José de Alencar, Pompeia, Aluísio Azevedo. Ainda Bernardo Guimarães, o presente, faria uma longa lista. Entre muitos, poderia mencionar Monteiro Lobato, José Lins do Rego, não tenho preferência marcada. Na poesia, poderia citar Gonçalves Dias, Castro Alves, Alphonsus de Guimaraens e Bilac.
GC: Acha que a literatura brasileira já pode ser encarada como original e autônoma?
GR: Quase. Está fazendo força para isso.
GC: Qual o romance que mais admira na literatura brasileira?
GR: O Cortiço, de Aluísio Azevedo, e D. Casmurro, de Machado.
GC: Quais os livros da literatura universal que mais admira?
GR: A Divina Comédia (Dante), Os Irmãos Karamazov (Dostoiévski), A Ilha do Tesouro (Stevenson), Macbeth (Shakespeare), D. Quixote (Cervantes), Os Miseráveis (Victor Hugo), Dr. Fausto (Thomas Mann), A Relíquia (Eça de Queirós), Contos (Andersen).
Citei 9, pois é meu número de sorte. Ou então 7. Sou religioso e supersticioso.
GC: Qual a obra de arte universal que mais o impressionou?
GR: O que muito me impressionou foram: os quadros de Tintoretto, em Veneza, todos os de Velázquez e os quadros de Tiepolo.
GC: Que brasileiro mais o impressionou no passado como figura humana?
GR: Borba Gato – bandeirante paulista, genro de Fernão Dias Paes.
GC: Dos personagens da sua obra, qual o de que mais gosta?
GR: Maria da Glória (Corpo de baile), Miguilim (Corpo de baile), Manuelzão (Corpo de baile), Zé Bebelo (Grande Sertão), Manuel Fulô (Sagarana).
GC: Como se sentiu com a eleição para a Academia Brasileira de Letras?
GR: Honrado e feliz, como todo escritor teria que sentir.
Antes de me despedir, Guimarães Rosa me mostrou as diversas edições de suas obras em alemão, italiano, inglês e francês.
Estava terminada a entrevista, e eu me retirei encantada com o nobre ambiente daquele palácio e com a nobreza daquele grande espírito.
O número anterior dessa nossa Revista Z Cultural, lançado no segundo semestre de 2021, apresentou o Dossiê “Literatura e feminismo” sob a curadoria de Beatriz Resende, Carolina Correia dos Santos e Mariana Patrício. A chamada aberta a colaborações em torno do tema proposto despertou enorme interesse, resultando no envio de um número tão expressivo de artigos importantes que um só número não pôde dar conta do material recebido, todo de alta qualidade.
Diante da dificuldade que a seleção provocou, tomamos a decisão de publicar um outro número da Revista Z Cultural com o mesmo dossiê: “Literatura e Feminismo”. Reconhecemos, assim, a importância e a premência de se discutirem as relações entre a literatura e o feminismo, provocando o debate e trazendo a público novas perspectivas críticas sobre a literatura produzida por escritoras contemporâneas brasileiras, como propusemos em 2021.
No presente dossiê, publicamos quatro ensaios que tratam de diferentes aspectos da relação entre literatura e feminismo. Em “O que pode a literatura?”, Carolina Correia dos Santos parte de seu encontro com Cidadã: uma lírica americana, da poeta jamaicana Claudia Rankine, para elaborar uma possível ética da leitura, em especial da escrita biográfica, que nos “permite experimentar posições/identidades diversas”, no caso específico relacionadas ao racismo, tema do livro. “Contos, cantos e desencantos sobre a maternidade em romancistas do Brasil e da África”, escrito a quatro mãos por Mary Garcia Castro e Fernanda Leal, investiga “como a literatura escreve a maternidade e a mãe” a partir de quatro romancistas negras, as brasileiras Ana Maria Gonçalves e Conceição Evaristo, a ruandense Scholastique Mukasonga e a nigeriana Buchi Emecheta. Em um possível diálogo com o artigo de Correia dos Santos, aqui se trata de reconhecer na literatura o encontro com “subjetividades múltiplas”: “cada mulher é única, e consequentemente, cada mãe e cada maternidade que decola de materialidades inclusive simbólicas na economia política e cultura de cada tempo”. Em seguida, Juliana Gelmini analisa Risque esta palavra, de Ana Martins Marques, na qual discerne sinais de subversão do “lugar previsto para a escrita de autoria feminina”, com destaque para o recurso intertextual à memória literária, reescrevendo a história de Penélope, Ofélia e da Medusa. Por fim, Fabiana Carneiro descreve mais um encontro de leitura: a descoberta de As mulheres de Tijucopapo, de Marilene Felinto, no qual, escreve ela, “reconheci a minha herança”, fechando assim um itinerário de leituras que são também (re)conhecimento de identidades diversas.
Nas margens do literário, o dossiê publica dois relatos. Em “Uma escola para Alan”, Paul B. Preciado propõe, ao refletir sobre um caso de transfobia em Barcelona, na Espanha, uma escola que seja “mais atenta à singularidade do aluno do que à preservação da norma”. E, em “Ceci n’est pas une femme: a morte, o buraco negro e a donzela”, Pérola Milman parte de experiências pessoais para debater o lugar da mulher na ciência e como são construídas imagens conflitantes da mulher cientista. Fechando o dossiê, Mariana Meneguetti discorre sobre a construção do corpo – principalmente do corpo feminino – na arquitetura modernista por meio de análise contrapatriarcal da Casa das Canoas, residência do arquiteto Oscar Niemeyer entre 1953 e 1959.
Além do dossiê, reunimos neste volume poemas inéditos de Mar Becker e Julia de Souza, uma resenha de Bucareste-Budapeste: Budapeste-Bucareste, livro de Gonçalo Tavares, por Augusto Guimaraens Cavalcanti, e uma entrevista com a escritora angolana Yara Nakahanda Monteiro, autora de Essa dama bate bué!, romance que revisita a memória angolana da guerra civil e delineia seus rastros presentes na reconstrução do país.
Para reiterar a importância da relação entre literatura e artes visuais, identificada desde o número anterior, voltamos a pedir à artista Cristina Salgado uma de suas obras fortes, belas e provocativas centradas em figuras de mulheres.
A Cristina Salgado agradecemos por podermos usar na capa do presente número a obra Mulher fértil, 1986.
Na última véspera de Natal, Alan, um menino trans de 17 anos, morreu em Barcelona.[1] Ele havia sido um dos primeiros menores trans a obter uma mudança de nome em sua carteira de identidade nacional na Espanha. Mas o certificado não conseguiu superar o preconceito. A legalidade do nome não poderia superar a força daqueles que se recusaram a usá-lo. A lei não poderia superar a norma. Os constantes episódios de assédio e intimidação que ele sofreu durante três anos nas duas escolas onde estava matriculado o fizeram perder a confiança em sua capacidade de viver e o levaram ao suicídio.
A morte de Alan pode ser considerada um acidente dramático e excepcional. No entanto, não houve acidente: mais da metade dos adolescentes trans e homossexuais dizem ser objeto de agressão física e psicológica na escola. Não houve exceção: os maiores números de suicídio são registrados entre adolescentes trans e homossexuais.
Mas como é possível que a escola não tenha conseguido proteger Alan da violência? Digamos rapidamente: a escola é a primeira escola de gênero e violência sexual. A escola não só falhou em proteger Alan, mas também facilitou as condições de seu assassinato social.
A escola é um campo de batalha para onde as crianças são enviadas com seus corpos moles e futuros em branco, suas únicas armas: um teatro de operações em que uma guerra é travada entre o passado e a esperança. A escola é uma fábrica de machos e bichas, de bonitos e gordos, de espertos e idiotas. A escola é a primeira frente da guerra civil: o lugar onde se aprende a dizer que não somos como eles. O local onde os vencedores e os vencidos são marcados com um sinal que acaba por assemelhar-se a um rosto. A escola é um anel no qual o sangue se mistura com a tinta e no qual são recompensados aqueles que sabem fazê-los correr. Que importa quais línguas são ensinadas lá, se a única língua falada é a violência secreta e surda da norma. Alguns como Alan, certamente os melhores, não sobrevivem. Eles não podem se juntar a essa guerra.
A escola não é simplesmente um lugar de aprendizagem de conteúdo. A escola é uma fábrica de subjetivação: uma instituição disciplinar cujo objetivo é a normalização do gênero e da sexualidade. A aprendizagem mais crucial que se exige da criança na escola, na qual ela se baseia e da qual depende qualquer outra formação, é a de gênero. Essa é a primeira (e talvez a única coisa?) que vamos aprender lá. Fora da esfera doméstica, a escola é a primeira instituição política em que a criança é submetida à taxonomia binária de gênero pela constante demanda por designação e identificação normativa. Cada criança deve expressar um gênero único e definitivo: aquele que lhe foi atribuído em sua certidão de nascimento. Aquele que corresponde à sua anatomia. A escola potencializa e valoriza a teatralização convencional dos códigos de soberania masculina nos meninos e submissão feminina nas meninas, ao mesmo tempo em que monitora o corpo e o gesto, pune e patologiza todas as formas de dissidência. Justamente por ser uma fábrica de produção de identidade de gênero e sexual, a escola entra em crise ao se deparar com os processos de transexualidade. Os colegas de classe de Alan exigiram que ele levantasse a camisa para provar que não tinha peito. Eles o insultaram, chamando-o de maria sapatão (marimacho) ou recusando-se a chamá-lo de Alan. Não houve acidente, mas planejamento e concerto social ao administrar a punição ao dissidente. Não houve exceção, mas regularidade na tarefa realizada pelas instituições e por seus usuários de marcar aqueles que questionam sua epistemologia.
A escola moderna, como estrutura de autoridade e reprodução hierárquica do conhecimento, continua a depender de uma definição patriarcal da soberania masculina. Afinal, mulheres, minorias sexuais e de gênero, sujeitos não brancos e com diversidade funcional integraram a instituição escolar há pouco tempo: 100 anos se pensarmos nas mulheres, 50 ou até 20 se falarmos da segregação racial, dificilmente uma dezena se tratando de diversidade funcional. À primeira tarefa de fabricar a virilidade nacional, somam-se, depois, as tarefas de modelar a sexualidade feminina, de integrar e normalizar a diferença racial, de classe, religiosa, funcional ou social.
Juntamente com a epistemologia da diferença de gênero (que tem em nossos ambientes institucionais o mesmo valor que o dogma da divindade de Cristo tinha na Idade Média), a escola trabalha com uma antropologia essencialista. O tolo é um tolo, o queer, o queer. A escola é um espaço de controle e domínio, de escrutínio, diagnóstico e sanção, que pressupõe um sujeito unitário e monolítico, que deve aprender, mas que não pode e não deve mudar.
Ao mesmo tempo, a escola é a escola mais brutal e fantoche da heterossexualidade. Embora aparentemente assexual, a escola potencializa e estimula o desejo heterossexual e a teatralização corporal e linguística dos códigos da heterossexualidade normativa. Estes poderiam ser os nomes de algumas das disciplinas centrais em todas as escolas: “Princípios do machismo”, “Introdução ao estupro”, “Oficina prática sobre homofobia e transfobia”. Um estudo recente realizado na França mostrou que o insulto mais comum e degradante usado entre os alunos nas escolas era “bicha” (pédé) para meninos e “puta” (salope) para meninas. Não houve acidente na morte de Alan, mas premeditação da violência, continuidade do silêncio. Não houve exceção, mas uma repetição impune do crime.
Sabemos, pela revolução dos escravos no Haiti e pelas subsequentes revoluções afro-americanas, feministas ou queer, que existem pelo menos quatro maneiras de lutar contra as instituições violentas. 1) Sua destruição. Isso requer uma mudança radical nos sistemas de interpretação e produção da realidade. E, portanto, leva tempo. 2) A modificação dos seus estatutos legais. 3) A transformação que se dá por meio de seus usos dissidentes —embora aparentemente modestos, esta é uma das formas mais poderosas de destruir a violência institucional—. 4) Fuga, que, como insistiam Deleuze e Guattari, não é fuga, mas criação de uma exterioridade crítica: uma linha de fuga pela qual a subjetividade e o desejo podem fluir novamente.
Para acabar com a escola assassina, é necessário estabelecer novos protocolos de prevenção da exclusão e violência de gênero e sexual em todas as escolas e institutos. Todos: públicos e privados. Todos: metropolitanos e rurais. Todos: católicos e leigos. Todos. Não estou falando aqui da fantasia humanista da escola inclusiva (e de seu slogan “toleremos o diferente, integremos os doentes para que se adaptem”). Ao contrário, trata-se de deshierarquizar e desnormalizar a escola, de introduzir heterogeneidade e criatividade em seus processos institucionais. O problema não é a transexualidade, mas a relação constitutiva entre pedagogia, violência e normalidade. Não era Alan que estava doente. É a instituição, a escola, que está doente, e que deve ser curada submetendo-a a um processo que, com Francesc Tosquelles e Félix Guattari poderíamos chamar de “terapia institucional”. Salvar Alan teria exigido uma pedagogia queer capaz de trabalhar com a incerteza, com a heterogeneidade, capaz de aceitar a subjetividade sexual e de gênero como processos abertos e não como identidades fechadas.
Diante da escola assassina, é preciso criar uma rede de escolas em fuga, uma rede de escolas Trans-Feministas-Queer que acolham menores que estão em situação de exclusão e assédio em suas respectivas escolas, mas também todos aqueles que preferem a experimentação à norma. Esses espaços, embora sempre insuficientes, seriam ilhas restauradoras que podem proteger crianças e adolescentes da violência institucional, evitando que a história de Alan se repita. Uma escola Trans-Feminista-Queer funcionaria como uma heterotopia compensatória capaz de fornecer os cuidados necessários para permitir a reconstrução subjetiva e social de dissidentes político-sexuais e de gênero. Por exemplo, na cidade de Nova York, o instituto Harvey Milk funciona desde 2002 (em memória do ativista gay assassinado em 1978 em São Francisco) que acolhe 110 estudantes queer e trans que sofreram assédio e exclusão em seus respectivos centros de formação.
Quero imaginar uma instituição de ensino mais atenta à singularidade do aluno do que à preservação da norma. Uma escola micro revolucionária onde é possível promover uma multiplicidade de processos de subjetivação singulares. Quero imaginar uma escola onde Alan pudesse ter continuado a viver.
* Paul B. Preciado é um dos mais importantes filósofos e ativistas queer da atualidade. De sua autoria, foram traduzidos e publicados no Brasil: Um apartamento em Urano: crônicas da travessia (2020), Pornotopia: PLAYBOY e a invenção da sexualidade multimídia (2020), Testo junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica (2018) e Manifesto contrassexual (2015).
Este artigo parte de uma palestra feita a convite da Comissão Científica da SPRJ (Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro) para um evento, “Nuances dos afetos”. Assim, o texto se volta às questões que o evento parecia impor a mim, professora e pesquisadora de literatura. O que seria o afeto na literatura? Quando aconteceria? E, ainda mais produtivo para alguém atenta ao feminismo, o que é e como é ser afetada pela literatura?
De certa forma, este texto se volta também a uma pergunta que aparece, reiteradas vezes, nos escritos e aulas de Gilles Deleuze sobre o filósofo judeu nascido na Holanda, filho de portugueses, Baruch Spinoza: o que pode um corpo? Essa dupla investida – em afeto e corpo – na verdade é única. Ela acontece porque Deleuze está basicamente preocupado com os afetos, com o corpo afetado, com a potência do corpo. A pergunta, colocada de outra forma – do que um corpo é capaz? – é a problemática central da filosofia de Spinoza, segundo Deleuze. “Spinoza não faz nunca ‘moral’, diz, pela simples razão de que não se pergunta jamais que coisa se deve fazer. Ele se interroga sobre o que se pode fazer, sobre a potência. Uma ética tem a ver com a potência, jamais com o dever” (Deleuze, 2010, p. 58).[1]
Outro modo de colocar a pergunta central da filosofia de Spinoza, segundo Deleuze, é: qual é o poder de um corpo de ser afetado? A sabedoria, dizem, só chega com o conhecimento do poder de ser afetado que eu tenho sobre o meu corpo, superando os acasos dos encontros que me causam alegria ou tristeza. Superando as paixões.
Brevemente: Deleuze explica que um primeiro elemento para distinguir a ideia do afeto é que, enquanto a ideia representa alguma coisa, tem “realidade objetiva e formal”, o afeto é todo modo de pensamento que não representa nada, como a esperança, a angústia, o amor (os sentimentos). A ideia, prosseguimos, vem antes, cronológica e logicamente, tem primazia sobre o afeto; para amar, precisamos ter uma ideia daquilo que se ama. Por serem de naturezas diferentes, ideia e afeto são irredutíveis um ao outro.
Deleuze então diz que, para Spinoza, nós somos autômatos espirituais. Não somos nós a ter a ideias, mas são as ideias que se afirmam sobre nós. Assim, estamos constantemente expostos às ideias, mas não só. Estamos também em uma constante variação, “variação da força de existir”, “potência de agir”. Se encontramos alguém que nos faz feliz, nossa força de existir e nossa potência de agir aumentam. Quando encontro alguém que me entristece, a potência de agir é inibida e diminui. Assim, vou de um grau de perfeição (das ideias que os encontros suscitam) a outro. Variação contínua.
O afeto em Spinoza é uma variação contínua da força de existir, determinada pelas ideias daqueles (ou “daquilos”) com quem entramos em relação. O afeto é vida, é uma transição vivida de um grau de perfeição a outro graças às ações das ideias. O affectus é a variação contínua da potência de existir causada pelas ideias.
A alegria de um lado, a tristeza de outro. Alegria e tristeza são paixões fundamentais. “Ideias inadequadas” porque nos deixam à mercê, digamos, dos encontros casuais. Sair do domínio das paixões e entrar naquele das ações, “afetos ativos” e não passivos, demanda o pleno governo da potência de agir. Deleuze (2010, p. 58) pergunta: “se estamos condenados a este mundo, seremos capazes de abandonar os afetos passivos? Conseguiremos ultrapassar o mundo das ideias inadequadas?”
O que eu gostaria de discutir, a partir das lições que Deleuze faz sobre Spinoza (Lezioni su Spinoza), a partir dessa compreensão de afeto como variação da potência de agir e da força de existir, é a relação que a literatura pode estabelecer conosco, que espécie de encontro ela poderia ser ou, se quisermos pensar nos afetos ativos, que tipo de conhecimento podemos produzir a partir da literatura, do encontro com ela.
É evidente que essas são questões sem respostas – e espero não estar estragando o final para ninguém –, a literatura não tem essência nem função intrínsecas e não poderíamos, de modo algum, afirmar que ela necessariamente aumenta nossa potência de agir e nossa força de existir. Mas, então, o que pode a literatura?
Vou me dedicar a um passo da literatura contemporânea que, acredito, discute uma ética da literatura, evoca a potência da literatura, demonstra, de certa forma, que “escrever é também tornar-se outra coisa que não escritor”, como diz Deleuze (2011, p.17). Em um primeiro momento, testemunho a minha leitura, relato minha experiência com uma parte do livro da poeta jamaicana Claudia Rankine, Cidadã: uma lírica americana, e relato minha experiência com o racismo, tema do livro. Em um movimento posterior, disserto sobre uma ética possível para Cidadã. Penso que é através da filosofia feminista, de um pensar feminista sobre o relato, que conseguimos discernir uma ética para a literatura – especialmente, a biográfica –, instituição que parece não se conter em normas, subvertendo leis e deformando continuamente seus contornos[2].
*
O que gostaria de esboçar, aqui, é o modo como a parte II de Cidadã me afetou. Mas, como consequência e além disso, também acredito que o livro de Rankine seja uma espécie de dissertação sobre os encontros, sobre as paixões, os encontros casuais, portanto, e, acima de tudo, sobre como os maus encontros – aqueles que diminuem a potência de agir – parecem ser, via de regra, a maioria das opções para os corpos negros em sociedades racistas. A parte do livro de Rankine à qual me dedico é também dedicada a um corpo, negro, sim, como todas as outras partes, mas um belo corpo negro conhecido, o corpo de Serena Williams.
Por um lado, então, há a minha relação com o livro, minha contra-assinatura de Cidadã, e, aqui, já podemos adiantar uma coisa. Esta é uma relação que aumenta minha força de existir, minha potência de agir, e a evidência é este texto mesmo, esta minha comunicação. Fui capaz de produzir, de agir, a partir do livro. A leitura me gerou alguma tristeza, é verdade, mas cá estou eu escrevendo, lendo, dissertando sobre o livro, relacionando-o a outras leituras, expandindo meu… meu o quê? Meu conhecimento, claro. Mas há algo de perturbador nesta minha afirmação. O que perturba é dizer que algo que li e que é extremamente triste me motiva.
A questão sobre uma ética da literatura, ou sobre o que ela pode, é impraticável, impossível, e, ao mesmo tempo, não pode deixar de ser feita, reiteradamente. Se a literatura pode dizer tudo (Derrida), o que ela pode, realmente, dizer? Onde podemos chegar, a que conhecimento a partir do encontro com ela? E, finalmente, na melhor das hipóteses, quando o encontro com a literatura me ensina, se torna uma ideia-noção, segundo Deleuze e Spinoza, quando minha inteligência aumenta, o que posso contra o racismo? Como tornar-me alguma coisa além de leitora de Cidadã?
A parte II de Cidadã é um encontro provocante, ameaçador. Ele começa com a apresentação de um certo Henessy Youngman, youtuber cujo canal discute arte contemporânea. Rankine trata, especificamente, do seu vídeo sobre “como se tornar um artista negro bem-sucedido”. Ela aproveita o vídeo, que, em poucas palavras, sugere que um artista negro deve sempre parecer “raivoso” (assistindo, para isso, “o vídeo de Rodney King enquanto trabalha” [Rankine, 2020, p. 31]), para falar da raiva, mas de um tipo especial de raiva que o vídeo não aborda: “aquela construída através da experiência e da luta diária contra a desumanização”, escreve Rankine (2020, p. 32). Esse tipo de raiva, continua, “responde aos insultos e à tentativa de apagamento apenas para atestar a sua presença, e a energia necessária para provocar, reagir e afirmar é acompanhada por uma decepção visceral: a frustração ao perceber que nenhuma visibilidade vai alterar as formas como o indivíduo é percebido” (Rankine, 2020, p. 32). “Se esse discernimento cria um ser mais saudável, embora mais isolado, você não tem como saber” (Rankine, 2020, p. 33), conclui.
Essa raiva, o afeto-raiva, paixão triste, diríamos com Deleuze e Spinoza, raiva de gente insana, diz Rankine, é o que ela vê aflorar em Serena Williams enquanto assiste à final feminina do US Open de 2009: “Oh meu Deus, ela enlouqueceu, você fala para você mesma” (Rankine, 2020, p. 33).
“Como o corpo de uma mulher negra, vitoriosa ou derrotada, se parece em um espaço historicamente branco?” (Rankine, 2020, p. 34)
Rankine faz uma digressão e relembra, anos antes, quando os detratores – as relações nocivas ou os maus encontros pelos quais passou Serena – tomam a forma da árbitra de cadeira Mariana Alves. Relembra as cinco decisões erradas que tomou contra Williams, tirando-a do US Open de 2004 na semifinal. Bolas boas, como se diz no jargão do tênis, bolas boas que todos podiam ver. Uma delas: uma bola fora da adversária, tão fora que nem o sensor automático capaz de captar o fora incerto acionou: aquela bola fora era fora demais. Williams perde, é eliminada do torneio, mas “mantém a linha” e ganha elogios por seu “autocontrole”.
“Embora ninguém tenha dito nada explicitamente sobre o corpo negro de Serena, você não foi a única espectadora a pensar que ele era o que atrapalhava a visão de Alves em relação às linhas” (Rankine, 2020, p. 36). Rankine (2020, p. 34) menciona Zora Neale Hurston: “Eu me sinto mais negra quando jogada contra um fundo extremamente branco”.
Você se sente ultrajada por Serena.
Mas, diz Rankine (2020, p. 37), “o corpo tem memória. A carroça física puxa mais do que o próprio peso. O corpo é o limite que cada decisão questionável atravessa até a consciência – toda a resiliência ilimitada, convicta e inconfundível não apaga os momentos pelos quais passamos”.
Nosso encontro com Rankine e com Serena Williams está ficando “perigoso”. Estamos nos aproximando demais. Primeiro Rankine nos chama a todo tempo: você, você, você. Agora, essas orações com “nós”. De repente, a coisa toda é conosco, realmente. Nós procuramos os registros de vídeo da semifinal de 2004, lemos uma reportagem do New York Times, assistimos à cobertura televisiva dos episódios controversos em que Serena se mete novamente. Estamos indignadas. Nos sentimos ultrajadas por Serena.
Cinco anos depois, conta Rankine, Serena volta ao US Open. Serena não está jogando bem, mas está no jogo. Então, num momento crítico, a juíza de linha diz que Serena pisa na linha ao sacar. “O quê? O quê! Você está falando sério? Ela fala sério; ela viu uma falta com o pé, uma que ninguém é capaz de identificar apesar dos inúmeros replays” (Rankine, 2020, p. 38). Serena está jogando contra a belga Kim Clijsters.
“Eu juro por Deus que eu vou pegar essa porra dessa bola e enfiar pela porra da sua goela abaixo, tá me ouvindo? Juro por Deus!” Por mais ofensiva que seja a explosão dela, é difícil não aplaudi-la por reagir imediatamente ao ser jogada contra um fundo extremamente branco. É difícil não aplaudi-la por agir naquele momento, por lutar loucamente contra o suposto erro do seu corpo estar posicionado sobre a linha de saque (Rankine, 2020, p. 38-39).
A reação de Serena, agora, é lida como insana. Pelo “momento de alforria”, como coloca Rankine, ela paga com a perda da partida, uma multa de 82,5 mil dólares e um período probatório de 2 anos pelo Comitê do Grand Slam.
Rankine, então, desafia, ou, se quisermos, aprimora a questão filosófica de Spinoza. “O que pode um corpo?” torna-se mais complexo no mundo racista que, infelizmente, é o nosso. Também, por outro lado, se Serena foi acometida pela tristeza, paixão nociva, não podemos dizer que não há, nela, a potência de agir ou a força de existir.
Rankine (2020, p. 39) diz:
é difícil não pensar que se Serena perdeu o contexto ao abandonar todas as regras de civilidade, pode ser porque seu corpo, aprisionado por um imaginário racial, aprisionado pela descrença – que faz parte das regras de ser negra na América – está sendo governado não pela partida de tênis da qual ela participa, mas por um relacionamento fracassado que tinha se comprometido a funcionar de acordo com as regras.
É muito interessante a ideia de que o corpo de Serena Williams entra em uma relação que o desagrega, uma relação triste que, agora assim, olhando desse ângulo, diminui sua potência de agir: Serena foi, efetivamente, retirada do torneio e ficou dois anos em probatório. O que pode, assim, um corpo negro sob o racismo?
Em 2011, Serena volta ao US Open. E, de novo, uma árbitra a penaliza, dizem que dessa vez corretamente. Mas Serena sente. E “de novo” é a expressão que Rankine enfatiza, fazendo com que o peso da repetição também arque nossos ombros. “Cada olhar, cada comentário, cada penalidade equivocada aflora da história, a atravessam, tocando você” (Rankine, 2020, p. 42).
Ao voltar a Henessy Youngman, o youtuber, para comentar um vídeo em que ele explica que suas dicas para que um branco se torne um artista não funcionariam para um negro, Rankine (2020, p. 44) afirma: “qualquer relação entre um espectador branco e um artista negro se torna imediatamente uma relação entre pessoas brancas e um negro que é uma propriedade, o que foi uma situação legalmente autorizada uma vez há um tempo”. E, então, ao retomar Serena e sua vitória na Olimpíada de 2012, Rankine acerta o foco e conta que um repórter britânico diz à tenista em uma entrevista que havia ouvido que sua dança ao comemorar a vitória era a dança de uma gangue. Rankine: “Incrédula, Serena responde perguntando se ela parece um membro de uma gangue para ele. Sim, ele responde. Tudo uma piada…” (Rankine, 2020, p. 45).
O ponto é que Serena se torna mais contida depois de 2012 e até a escrita de Cidadã. Rankine elenca os comentários “elogiosos” que destacam sua maturidade, o fato de estar se parecendo mais e mais a Arthur Ashe (famoso tenista negro), a superação daquilo que pareceu “teimosia e rancor” e que era, na verdade, política: seu boicote, seu e da sua irmã, Venus, a um torneio no qual haviam sido agredidas por gritos e ofensas racistas. Rankine (2020, p. 46) diz: “Assistindo a essa nova e contida Serena, você começa a se perguntar se ela finalmente desistiu de exigir o melhor de quem a cerca”. Essa observação me faz pensar em uma espécie de vantagem que brancos teriam ao conviverem com negros, um privilégio, uma oportunidade. Então, a pergunta spinozista também se declina ao corpo branco: o que pode o corpo branco sob o racismo?
Segundo Rankine, o corpo branco é ambíguo, não é capaz de mais do que a ambiguidade. Duas semanas depois de Serena ter sido escolhida a jogadora do ano pela Associação de Tenistas Profissionais, a dinamarquesa Caroline Wozniack, eleita a melhor no ano anterior, imita Serena em um jogo não oficial.
A imagem e a atitude podem ser interpretadas de diversas maneiras, afirma Rankine, mas, nas suas palavras, Wozniack “finalmente deu às pessoas o que elas queriam o tempo todo, ao incorporar os atributos de Serena, e ao mesmo tempo deixar para trás sua ‘aparência de negona raivosa’” (Rankine, 2020, p. 47-48).
Cidadã nos convida a uma leitura, a uma contra-assinatura (Derrida), a uma cumplicidade, se quisermos, difícil de suportar. Por um lado, uma empatia visceral com o corpo negro, a possibilidade mesma de assumir-se negra, corpo negro, Serena Williams, ou a espectadora que a narradora encarna. Por outro lado, uma distância e uma impotência. O reconhecimento do racismo em nós cada uma das vezes em que Serena nos pareceu exagerar. E o reconhecimento de que o conhecimento talvez seja inócuo.
Rankine (2020, p. 32) diz que “nenhuma visibilidade vai alterar as formas como o indivíduo é percebido” e, de repente, para nós, os gritos de Serena Williams em uma das suas controvérsias, já depois de Cidadã, gritos de “não sou ladra, nunca fui”, ou, em inglês, never cheated in my life, fazem ainda mais sentido e esse sentido é terrível. Não pode mais ser uma piada, então, a resposta do jornalista de que ela se parecia uma gangster depois de ter celebrado sua vitória dançando passos de rap na quadra. Era uma piada. Com certeza Serena riu – e eu, de fato, vi inúmeras aparições do comentarista britânico Piers Morgan com Serena em uma relação muito amistosa. Era uma piada, mas era ambígua. A performance do corpo branco.
A ambiguidade do corpo de Wozniack, como coloca Rankine, “real e irreal”, a ambiguidade da sua atitude: homenagem? Só uma piada? Um corpo branco “irreal”, feito com toalhas, imitando um corpo negro; uma brincadeira ambígua. “Há muitos modos de ler a atitude da tenista dinamarquesa”, lembra Rankine. E o resultado é a estranha construção, sintática e referencial, que, segundo Rankine, expressa o desejo branco: “a imagem sorridente da loura e boazinha Wozniack posando como a melhor jogadora de tênis de todos os tempos” (Rankine, 2020, p. 48). Na ambiguidade da brincadeira o que também pode ser lido é a vontade de brancos de que a melhor tenista de todos os tempos não fosse a negra Serena Williams, mas uma branca, “loura e boazinha”.
*
O outro aspecto que chama nossa atenção no livro de Rankine e que nos remete à chance de pensar uma ética (da literatura) é sua escolha insistente por um “contar prosaico”, recontar uma série de episódios cotidianos narrados a uma interlocutora imediatamente recrutada à escuta. Essa característica não está presente somente na parte II, dedicada a Serena Williams, mas está espalhada pelo livro. A estratégia é e não é comum. Tampouco é facilmente determinável. Uma mulher, negra, conta a uma outra mulher, possivelmente negra – talvez a amiga, enunciada em tantos fragmentos –, algo que a aflige, um episódio mais ou menos recente da sua vida, do qual às vezes a outra mulher participa, inclusive. Enquanto conta, a narradora, claro, constrói certa cumplicidade com a interlocutora. Esta assume o lugar da narradora, é atravessada por suas histórias de modo a sofrer ela mesma o racismo narrado ostensivamente. A interlocutora, então, não só “escuta”, não só lê, ela é, imediatamente, lançada no mundo negro e feminino da narradora. Torna-se, ela mesma, ora sujeito ora objeto do livro.
Depois que aconteceu eu perdi as palavras. Não foi você quem disse isso? Você não disse isso para uma amiga íntima que no início da sua amizade, quando distraída, teria chamado você pelo nome da empregada negra dela? Você concluiu que vocês eram as duas únicas pessoas negras na vida dela. Eventualmente ela parou de fazer isso, ainda que ela nunca tenha reconhecido o lapso (Rankine, 2020, p. 15).
Em outros momentos, “você” é o outro, racista, às vezes homem. Mas não por todo o tempo – não por todo o tempo de um mesmo fragmento:
…ele diz a você que o reitor dele está fazendo ele contratar uma pessoa de cor quando existem tantos grandes escritores por aí. […] Por que você se sente à vontade em me dizer uma coisa dessas? […] Como sempre, você dirige direto passando pelo momento com a expectativa de que retirem o que foi dito anteriormente (Rankine, 2020, p. 18).
As modalidades que “você” assume, as diferentes posições que incorporam, dão conta dessa variação contínua da força de existir, que Deleuze explicava em Spinoza. Somos afetadas e o afeto é vida. Se ler Cidadã inclui uma relação ativa, uma escolha, a eleição deste e não de outro encontro, estamos vivendo plenamente os afetos ativos, aumentando nossa potência de existir. De novo, somos, de certa forma, gratas ao livro de Rankine, à força deste encontro que escolhemos e à energia encerrada nos seus relatos.
Além disso, parece que Rankine também faz uso de uma técnica feminista, de um método alternativo ao solipsismo em que pode incorrer a autobiografia encerrada na enunciação do eu.
O clamor por “você” da narrativa poética de Rankine não estabiliza a leitora – “você” como uma identidade fixa –, fazendo-a experimentar posições diversas e escapar do maniqueísmo do eu versus você, ou eu versus outra. A estratégia, no entanto, não gera mistura. A cada momento, a cada fragmento, sabemos bem quem é “você” e qual é ou quem representa a sua alteridade. Se nos tornamos a narradora, este é um momento preciso, circunscrito, que será superado por uma outra posição, logo adiante. É neste sentido que podemos aproximar Rankine daquela prática narrativa que a filósofa feminista Adriana Cavarero (2011) chama de “ética altruísta da relação”. “Por mais que você seja parecida e consoante, a sua história não é jamais a minha” (Cavarero, 2011, p. 120)[3], afirma. E, ainda, o reconhecimento da outra
não tem uma forma que possa se definir dialética, ou seja, não supera e nem salva o finito no movimento circular de uma síntese mais alta.[4] O outro necessário é, de fato, aqui um finito que permanece irremediavelmente um outro em toda a impermutabilidade, frágil e não passível de julgamento, do seu existir.
[…]
No horizonte do si narrável, o pronome da biografia não é, de fato, o ele/ela mas o você. Aquele que nos relata a nossa história fala a língua do você. Na cena narrativa compartilhada, o destinatário do relato e sua presença vencem sobre o papel clássico, no texto, do protagonista ausente (Cavarero, 2011, p. 120).
A exposição que alcança aquela que participa do relato, relatando-se ou relatando uma outra, necessariamente a insere em uma relação. Não há um “quem” que antecede a relação e que seria anterior ao relato e à exposição. Por outro lado, o que há é um estatuto ontológico do quem que, por ser exposto, relacional e altruístico, se volta inteiramente à exterioridade (Cavarero). Ao invés da repetição do mesmo, de uma identidade que gostaria de vincular-se a uma autoridade promovida pela enunciação do “eu” e da sua suposta interioridade, o relato que obedece à ética altruísta da relação é só exterioridade, depende do contexto e da outra para existir.
O que se vê em Cidadã é, ainda de acordo com Cavarero (2011, p. 114), “uma identidade que é, do começo ao fim, enredada em outras vidas – com exposições recíprocas e inúmeros olhares – e necessitada do relato da outra”. É desta forma que Rankine, como nas observações de Cavarero, desloca um humanismo moderno centrado no homem que não corresponde a um “quem” mas a um “o quê”: o que é homem? E não: quem é o homem?
A pergunta tipicamente feminista, profundamente contextualizada e relacional – “quem é?” –, desestabiliza a velha certeza individualista na qual o outro é, mais ou menos parecido ao mesmo, um ente com o qual se estabelecem regras de convivência (Cavarero), um ente, afinal, anteriormente definido que em nada interfere ou é influenciado pelo mesmo. A resposta à pergunta feminista, então, é estruturalmente instável, dependente da relação a partir da qual alguém é.
A cidadã americana que emerge das páginas escritas por Rankine, a identidade que surge, justamente, da sua lírica, do seu estranho poema lírico [i.e., tradicionalmente, expressão da subjetividade do poeta], clama incessantemente por você, como uma verdadeira condição de existência. Condição altruística na qual nos encontramos, individualmente provocados. É esta ética, acredito, que além de nos fazer deparar com um outro modelo de escrita biográfica, nos permite experimentar posições/identidades diversas, todas necessárias. Através de cada uma – não de todas ao mesmo tempo –, sofremos o racismo, sabendo, no entanto, que esta não é jamais a experiência da poeta. Proximidade e distância. Experiência individual, não individualista. Na convocação da outra, no encontro com Rankine e sua cidadã, me torno alguém diferente do que acreditava ser. E isso não é necessariamente mais confortável: posso ser racializada e racista; vítima, algoz e observadora. Me divirto e me incomodo. Quem sou? Sou aquela que surge da relação; também eu relatada por Claudia Rankine.
* Carolina Correia dos Santos é professora de Teoria da Literatura da UERJ.
Referências
CAVARERO, Adriana. Tu che mi guardi, tu che mi racconti. Filosofia della narrazione. Milano: Feltrinelli, 2011.
DELEUZE, Gilles. Cosa può un corpo? Lezioni su Spinoza. Trad. Aldo Pardi. Verona: ombre corte, 2010.
DELEUZE, Gilles. “A literatura e a vida”. Crítica e clínica. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34. p. 11-17, 2011.
DERRIDA, Jacques, ATTRIDGE, Derek. “This Strange Institution Called Literature: an Interview with Jacques Derrida”. Derek Atteridge (ed.), Acts of Literature. New York, London: Routledge, 33-75, 1992.
DERRIDA, Jacques. Essa estranha instituição chamada literatura: uma entrevista com Jacques Derrida. Trad. Marileide Dias. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014 [1992].
RANKINE, Claudia. Cidadã: uma lírica americana. Trad. Stephanie Borges. São Paulo: Edições Jabuticaba, 2020.
Notas
[1] Todas as citações de Deleuze, retiradas do livro em italiano, foram traduzidas por mim.
[2] Faço referência à problematização de Derrida da literatura, exemplificada na entrevista a Derek Attridge, publicada como “This Strange Institution Called Literature”.
[3] Todas as citações de Cavarero são traduzidas do original em italiano por mim.
[4] Impossível não lembrar da evocação que Fanon (2020) faz da dialética hegeliana do senhor e do escravo. Também para Fanon, na relação do branco (senhor) com o negro da colônia (escravo) não há síntese. É trabalho que o senhor quer e não o reconhecimento de quem é o escravo.
Este artigo decola de outro (Leal e Castro, 2018), contudo se expande para mais debate sobre os temas gênero, patriarcado e maternidade, em especial na literatura brasileira e africana, referindo-se a outras romancistas, além das consideradas no primeiro artigo nosso sobre o tema. Como o anterior, é modelado por quatro mãos, na intersecção entre psicanálise, literatura e história (Leal) e estudos culturais, feminismo, em especial de corte decolonial e sociologia (Castro); navega por perspectiva interdisciplinar, tecida em diálogos gostosos, pelo comum interesse na construção sociopsicológica da maternidade como saber/poder. Conhecimento e prática que entrelaçam ordem patriarcal e maternagem como afeto, cuidados e dádiva como expectativa de trocas.
Vasculhando a palavra mais apropriada para iniciar um artigo sobre literatura e feminino, ocorreu-nos falar da maternidade. Como a literatura escreve a maternidade e a mãe? O que escutamos nessas narrativas? O que escutamos é uma espécie de voz que nunca foi ouvida. Um não lugar, carregado de ruídos que tiveram que permanecer sempre inaudíveis. Um grão de voz que arranha os ouvidos. Um ritmo sem precisão, sem previsão. O grito sufocado. A solidão. Um oco. Um eco que clama, que rompe a barreira do silêncio ao qual foi condenado.
O que de fato encontramos nessas narrativas escapa àquilo que foi construído ao longo da história da mulher e da mãe. Não se trata nem da santa-mãe do período colonial, muito menos da maternidade regida pelo discurso maternalista dos manuais de puericultura que parecem ter definido o ideal de maternidade da década de 1920. Encontramos corpos cansados, o corpo de quem passou pela maternidade, como mãe, como filha, como mulher. Encontramos o atravessamento dessa experiência, do ser mãe, do que ela deixa de rastros invisíveis, os restos, tudo aquilo que as sociedades que funcionam a partir da diferença de gêneros, de sexo e de classe não querem ver sobre a realidade do ser mãe e do ser mulher.
O cenário da maternidade na literatura nos coloca diante de uma realidade bem diferente daqueles discursos que ao longo da história transitam entre a concepção naturalizante que tende a endeusar a mulher que, sob a auréola da mãe ideal, conduz sua maternidade e o contexto de enquadramento e normatização que esse ideal propõe à conduta feminina. A crítica feminista, por outro lado, tende tanto a narrativas em que a maternidade é codificada como uma estratégia patriarcal de limitação da mulher ao privado, culpas e frustações quanto a um poder feminino que há que resgatar.
De fato, uma perspectiva que se proponha como único modelo possível de mãe e maternidade representa não apenas o enquadramento das relações humanas (no caso, a relação mãe e filhos) num molde predeterminado, de influência patriarcal, mas principalmente representa a negação da ancestralidade e da história de cada povo e de cada mulher.
Ainda hoje, a mulher que se aventura a ser mãe encontra nesse percurso referências e expectativas que, se não inviabilizam, ao menos dificultam a experiência pessoal de maternidade. É o que testemunha com frequência a clínica psicanalítica. Encontramos no contexto clínico o eco dissonante de vozes raramente ouvidas para além dos limites da privacidade do consultório do psicanalista. São vozes que ressoam e entoam experiências de conflitos, angústia e mesmo de sofrimento, relacionadas à tarefa de ser mãe, que muito escapam aos ideais maternos socialmente valorizados. Presas no espaço privado, que se assemelha ao confessionário – e, portanto, recheado de culpas e autorrecriminações –, essas histórias permanecem secretas e, portanto, como que inexistentes, mantendo-nos abrigados da difícil realidade que presente no mundo materno.
Essa história é antiga, tem suas raízes no Brasil de 1500. Raízes antigas que, no entanto, foram sendo realimentadas ao longo da história e que hoje adquirem versão ainda mais opressora, visto que as mudanças do mundo moderno e as conquistas das mulheres, sobretudo na esfera pública, se tornaram, em muitos aspectos, difícil, senão incompatíveis, com o modelo ideal de mãe. Além disso, para muitas mulheres, como as na pobreza, o público e o privado se interpenetram quanto a cargas de trabalho como cuidadoras e provedoras.
São muitos os saberes que colaboraram para o reforço da idealização da mãe, como a influência das teorias freudianas sobre a feminilidade. A premissa freudiana de que o bebê corresponde ao “objetivo do mais intenso desejo feminino” (Freud, 1933, p. 128) acaba por favorecer uma concepção da mulher e da mãe como personagens equivalentes e ao mesmo tempo a maternidade como algo natural do feminino, sobretudo quando lida e entendida unicamente a partir das ideologias de seu tempo. Mas não estamos mais no século XIX. E pensar a mulher dos séculos XX e XXI com a lente dos séculos anteriores é enveredar por uma espécie de atrofiamento, ou mesmo de involução, como bem destacou Badinter (2011, p. 9) ao se referir a acontecimentos que influenciaram a vida da mulher em fins do século XX e início do século XXI:
1980-2010: quase sem que percebêssemos, aconteceu uma revolução em nossa concepção da maternidade. Nenhum debate, nenhum estardalhaço acompanharam essa revolução, ou melhor, essa involução. Contudo, seu objetivo é considerável, já que se trata, nem mais nem menos, de recolocar a maternidade no cerne do destino feminino.
Não se trata, portanto, de identificar o desejo feminino – enigma perseguido, e não solucionado, por Freud –, mas de desconstruir a ideia de que a maternidade é o fim natural de toda mulher. A maternidade não esgota o ser feminino, assim como ela não terá a mesma importância para todas as mulheres. Há que olhar e escutar o que elas, as mulheres e as mães, têm a dizer para além daquilo que se quer ouvir. Há que possibilitar uma outra escuta. Uma escuta que, no lugar do enquadramento, permita a revelação, a desconstrução dos padrões preconcebidos. Mas uma escuta que ultrapasse os limites do privado, da confissão, do segredo.
Se as mazelas da maternidade não encontram espaço de manifestação nas sociedades contemporâneas, pois para que isso ocorresse seria necessário um rompimento com o ideal da mãe tão amplamente divulgado e sacralizado, essas mazelas, dificuldades, sofrimentos e adversidades, no entanto, encontram outros espaços, que não se restringem ao privado de um consultório psiquiátrico e psicanalítico, mas ganham as páginas, as escritas, os cartuchos das impressoras, ao transformarem-se em contos, poesias, romances de mulheres que não se calaram. Nessas páginas, encontramos histórias de personagens que representam as Marias, Paulas, Joanas que não tiveram a possibilidade de contarem suas próprias experiências de maternidade. É nesse contexto, da literatura, que as vozes de mulheres podem ganhar uma escuta reveladora, sem o estigma da loucura, da insanidade, do crime. Fictícias, suas personagens dão lugar a fala de mulheres reais, de sujeitos femininos.
Essas vozes, que ressoam íntimos de intensas vivências adversas àquilo que se crê como norma, encontram expressão pública e acessível na literatura, sobretudo na letra de escritoras femininas contemporâneas. Trata-se de escritas que desconstroem a concepção costumeira da maternidade, possibilitando a reconstrução de outras formas de perceber e abordar a mãe e o materno e, consequentemente, a mulher, ou que indicam materialidades, tradições e ética de responsabilidade que de fato colaboram para entender melhor a participação da mulher em performances da maternidade dádiva, ou seja, a que entrelaça ambíguas representações sobre sacrifício e gratificações.
Abordamos neste artigo a maternidade a partir de representações de autoras negras, no Brasil e na África, dando chão a vivências e histórias. O terreno que apresentamos como pleno de poderoso debate se refere à geografia que se concentra entre os trópicos – África e Brasil. Como autoras com tais chãos, e suas histórias, abordam a mulher, a mãe e a maternidade? O que a personagem, mãe, como abordada na narrativa dessas autoras, nos indica sobre a história e a ancestralidades de seus povos?
Não se pretendem comparações, nem busca de comunalidades, escrita de mulher. De comum serem mulheres negras que se referem a elas, ou a outras, em cenários de colonialismo, pós-colonialismo, tempos de barbárie capitalista, histórias de vida por vulnerabilizações e violências várias. Algumas privilegiam mais o plano das relações sociais de gênero sexualizadas, outras a díade mãe e filhos, ou o sentido comunitário da mãe, indicando que não há lugar para concepções essencialistas, como a divisão entre o público e o privado, entre matriarcado e patriarcado, entre prazer e doação, gratificação e sacrifício. De comum a referência a mulheres situadas e sitiadas, que estão na produção de vida, são mães, em tempos de produção da morte, que se metamorfoseiam por sentidos culturais étnicos que englobam histórias de opressão e de resistências, mas que se estruturam territorializados em processos sociais tanto molares como moleculares.
A seguir, primeiro referências ao caso Brasil, em que se destaca como a maternidade é modelada em duas escritoras negras, voltadas para a intersecção classe, raça e gênero e, sobretudo, origem, ancestralidade, em percepções sobre maternidade, a saber: Ana Maria Gonçalves e Conceição Evaristo, análises essas precedidas de breves referências a cenário histórico como apresentado por Mary Del Priori (2008) e Maria Martha de Luna Freire (2007).
Em um segundo capítulo, acessamos tanto a escritora ruandense Scholastique Mukasonga (2017), ilustrando sentidos étnico-históricos da maternidade em vivência de desterro e vésperas do terrível massacre de 1994, e o aclamado trabalho de Buchi Emecheta (1979/2017) em que mais se delineiam os paradoxos da maternidade para as mulheres, fonte de sofrimentos, culpas, frustrações e alegrias, e a vingança de uma mãe que se considera traída em suas expectativas. Precedem essa apresentação reflexões de autoras africanas críticas a categorias feministas ocidentais que tenderiam a generalizações e que essas autoras não consideram pertinentes à compreensão de vidas e imaginários de mulheres diversas e de tradições singulares, como Ifi Amadiume e Oyèrónké Oyèwùmí (Castro, 2021).
Como se trata de um trabalho escrito a quatro mãos, cada seção traz em si uma identidade particular, tanto na forma escrita quando no viés sobre o qual se constroem suas reflexões. É um testemunho de que o feminino não pode ser definido exclusivamente por uma perspectiva, ao mesmo tempo que se revela em subjetividades múltiplas – cada mulher é única, e consequentemente, cada mãe e cada maternidade que decola de materialidades inclusive simbólicas na economia política e cultura de cada tempo.
2. Brasil, reflexões sobre maternidade
2.1 Desconstruindo mitos: o pano de fundo da maternidade no Brasil
Há um pano de fundo, um cenário inaugural, sobre o qual se ergueu aquilo que se transformou no modelo eurocêntrico e normatizador da maternidade e da mãe. Longe de ser um cenário de calmarias e mesmice, o território feminino do período colonial do Brasil mostrou-se repleto de conflitos, ambivalências, diferenças e complementaridades.
Através dos arquivos, documentos históricos e fontes impressas, Mary Del Priori (2009) vai descortinando a realidade da origem da concepção da mulher e da mãe no Brasil. O ideal da santa mãe, criado pela Igreja com o objetivo de organizar o processo de povoamento da nova terra, se encontrava subjugado ao projeto tridentino, criado para assegurar a unidade da fé e a disciplina eclesiástica.
Para execução e êxito desse projeto, a Igreja entendia que era necessário adestrar a mulher. Recorreu a algumas armas para concretização de seu projeto. Dentre elas, explorou a relação de poder já implícita no escravagismo para estendê-la às relações entre marido e mulher. Desta forma, cabia à mulher ser uma escrava doméstica, cuja obrigação se definia em cuidar da casa, cozinhar, servir ao chefe de família com o seu sexo, dar-lhe filhos, assegurando sua descendência e servindo como modelo para a própria família (Priori, 2009).
O importante era fazer da mãe um exemplo, e da maternidade uma tarefa árdua que elevasse a mulher branca ao sagrado a partir do seu papel materno. O sacramento do matrimônio dava-lhe garantias institucionais para proteger o casamento e a ordenação tanto da reprodução quanto dos nascimentos, ao mesmo tempo que fazia de cada mulher uma potencial santa mãe que poderia, ao se dedicar aos filhos e às tarefas domésticas, assegurar a transmissão desses princípios à sua descendência. “A fabricação da ‘santa’ foi resultado da percepção que tiveram a Igreja e o Estado modernos da influência salutar ou perniciosa da mulher na família e na sociedade” (Priori, 2009, p. 107). O papel da mãe jamais poderia ser negligenciado.
Apesar do empenho da Igreja, na prática, as coisas corriam à sua revelia. As famílias nas Colônias se encontravam marcadas pelos “fluxos e refluxos humanos, sobretudo masculino” (Priori, 2009, p. 40). Essa mobilidade masculina, decorrente dos vários momentos econômicos da colonização, acabavam por favorecer um tipo de família que se caracterizava pela ausência de maridos e pais. “Conhecem-se também algumas de suas características: muitos maridos ausentes, companheiros ambulantes, mulheres chefiando seus lares e crianças circulando entre outras casas e sendo criadas por comadres, vizinhas e familiares” (Priori, 2009, p. 42).
Esse cenário demonstrava que, apesar do esforço da Igreja, que queria implantar as regras do matrimônio como forma de garantir o projeto tridentino, grande parte das mulheres, principalmente as “pobres e empobrecidas”, vivia, na verdade, em corriqueiras uniões consensuais. O casamento se encontrava, na prática, reservado às “uniões de elite, em grande parte contraídas no interesse de manter patrimônios, reforçar esferas de influência ou pela necessidade de garantir às filhas a proteção que pais desvalidos não podiam assegurar” (Priori, 2009, p. 43).
Eram frequentes as mulheres que sofriam com a partida do companheiro, que viajava em busca do sustento, seguindo o fluxo da economia do Novo Mundo. Consequentemente, o que prevalecia, sobretudo entre as classes subalternas, casadas ou não, eram as mulheres chefes de família.
As famílias, majoritariamente monoparentais e matriarcais – ainda que condicionadas pelo sistema patriarcal –, se erguiam em torno da mãe e sua prole, que contavam com a solidariedade de outras mulheres (vizinhas, parentes…) que viviam como ela. Assim, “mães e filhos solidarizavam-se numa cadeia de rentabilidade doméstica voltada para a produção de gêneros comestíveis e para o comércio de retalhos” (Priori, 2009, p. 57). Ser mãe representava a possibilidade de enfrentar as limitações impostas às mulheres pela Metrópole, e principalmente pela Igreja. Desta forma, a maternidade no período colonial acabava por se tornar um forte campo de poder informal da mulher (Figura 1).
Mas, além disso, a maternidade permitia à mulher exercer, dentro do lar, um poder e uma autoridade que raramente dispunha em outros campos da vida social. Assim, identificada com o papel de mãe, que lhe era culturalmente atribuído, a mulher valorizava-se socialmente por uma prática doméstica quando era excluída de qualquer atividade na esfera pública.
No Brasil Colônia, a realização do poder feminino residia, portanto, apenas e exclusivamente, na maternidade. Apegar-se e dedicar-se aos filhos e à maternidade não era apenas um desejo, mas uma necessidade. Ainda que a história da maternidade no Brasil Colônia traga também seus testemunhos de conflitos, violência, abortos e abandono materno, o que prevalece é a aderência da mulher a esse modelo sacralizado da mãe. Lugar de refúgio, conforto e poder, assim podemos definir o que foi a maternidade no Brasil do período colonial.
Essa antiga origem alcançou um novo impulso no mundo ocidental após a Primeira Guerra Mundial, refletindo de formas diferentes em cada sociedade. E, para complexificar ainda mais a situação da mulher, além das justificativas demográficas, sanitárias ou patrióticas, “o maternalismo associou-se, na década de 1920, à valorização social da ciência, a qual lhe conferiu novo caráter” (Freire, 2008, p. 154).
Se, no período colonial, o ideal da santa mãe – criado pela Igreja, com o objetivo de organizar o processo de povoamento da nova terra – encontrava-se subjugado ao projeto tridentino, criado para assegurar a unidade da fé e a disciplina eclesiástica, na década de vinte foi o projeto modernizador republicano – que depositava na conservação das crianças, entre outros elementos, a esperança de viabilidade da nação – que desenhou o novo panorama materno.
Os esforços eram outros na década de vinte. Objetivava-se a eliminação de elementos do passado que representassem “atraso”, pois o projeto republicano visava à ordem e ao progresso, e com isso a uma verdadeira transformação cultural, que implicava “a adoção de comportamentos e atitudes adequados aos ‘novos tempos’” (Freire, 2008, p. 154).
Se antes a mulher se encontrava a serviço do marido e dos filhos, ou seja, da cena doméstica, na década de vinte ela é convocada a permanecer na cena doméstica, porém, não apenas como mãe, esposa e dona de casa, mas como a responsável principal na educação dos filhos de acordo com os propósitos da nação. E para isso era necessário se preparar. Suas armas, no entanto, seriam outras. Colher, panela, mamadeira/seio, colo, continuariam ferramentas fundamentais na sua lide diária, mas além disso, a mãe da década de 1920 carecia de um saber.
De santa, a mãe torna-se um ser social de suma importância. A maternidade adquire um valor social. Agora, todavia, sua principal fonte inspiradora era a França, como destaca Freire (Freire, 2008, p. 156): “o discurso maternalista brasileiro mostrava-se claramente inspirado no modelo francês de sociabilidade e civilização, ainda hegemônico nas primeiras décadas do século XX”. E entre os costumes importados da França, encontraremos o costume de ler revistas femininas. “Veículo privilegiado para a expressão de opinião dos diversos grupos sociais, a revista assumiria o duplo caráter de entretenimento e doutrinação, transformando-se no suporte ideal para a atividade política mais ampla, a difusão de ideários e propostas de mudanças de comportamento” (Freire, 2008, p. 157).
Seduzidas pela ideia de modernidade, as revistas femininas viraram febre. Se, por um lado, elas podiam ser um signo da mulher moderna, por outro elas acabavam contribuindo para a conformação das mulheres às transformações que a sociedade sugeria.
Exclamações e metáforas exaltavam, nas páginas dos periódicos, aquela que era considerada a missão primordial da mulher, como revelava o título da longa matéria ilustrada de Vida Doméstica de 1928: “A glória incomparável de ser mãe!”. Articulistas, médicos, educadores, feministas, juristas e políticos, todos concordavam quanto à relevância da maternidade como o principal papel social das mulheres e, ao mesmo tempo, sua própria essência, devendo, portanto, ser amparada e protegida (Freire, 2008, p. 157).
Assim, a década de vinte imprime na maternidade e no ser mãe uma missão divina e um dever social. Porém, para isso, era preciso se munir das novas ferramentas necessárias ao cumprimento da missão. Os médicos defendiam a existência do instinto maternal, contudo, “consideravam-no insuficiente para o desempenho da maternidade conforme os novos padrões exigidos pela modernidade. Devia, portanto, ser aprimorado pela educação” (Freire, 2008, p. 161). Era indispensável que as mulheres se preparassem intelectualmente para essa tarefa, e quem oferecia o caminho era a ciência, na figura dos médicos higienistas, puericultores, especialistas na promoção da saúde das crianças. Dessa forma, esses mestres acabavam por contribuir para a redefinição do papel feminino que comportava o novo papel social da mulher: a mãe moderna.
Vemos então, a partir da segunda metade da década de 1920, as revistas femininas serem invadidas por artigos que privilegiam esse modelo de mãe moderna, aquela que se dedica a compreender aquilo que é importante na educação dos filhos de acordo com os médicos e cientistas da puerperalidade. Mais do que propagar informações técnicas sobre a fisiologia infantil – que implicavam consequentemente mudanças nas atitudes e nos comportamentos da mãe com o filho –, esses artigos tinham outro propósito, o de disseminar o ideário da maternidade científica, como indica Freire (2008, p. 161):
O discurso das revistas dirigia-se diretamente às mulheres, confirmando que a elas competia tal função. Munidas do arsenal científico da puericultura, com base na supremacia da razão sobre a emoção, e rompendo com “antigos” dogmas religiosos ou crenças tradicionais, elas estariam supostamente aptas a desenvolver sua “nobre missão”. Usar e fazer ciência: este seria o novo papel social da mãe moderna. A ideologia da maternidade científica aproximava as mulheres do universo “masculino”, racional, da ciência, deslocando a maternidade da esfera estritamente doméstica e lhe conferindo novo status.
Esse novo status contribuiu para a adesão cada vez maior das mulheres à nova maternidade, a mãe científica. E o que inicialmente se configurava como uma atenção voltada ao corpo infantil – preocupação com os cuidados de puericultura e a alimentação adequada – passou também para a mente da criança. Cabia à mãe estar preparada para atuar, com bases nas orientações científicas, diante das peculiaridades da mente infantil.
Esse panorama pode ser lido a partir de um viés que coloca a mulher como refém de modelos construídos pelo mundo masculino, pelo patriarcado, o que nos daria uma interessante reflexão para o debate pretendido, mas optamos por destacar um outro aspecto que não pode ser negligenciado.
Com frequência nos deparamos com abordagens sobre a mulher ao longo da história que a colocam em um lugar de fragilidade. Sempre, de alguma forma, interpretada como o sexo frágil, mas tendo, ao mesmo tempo, destacada sua dimensão desmedida e, portanto, temida, a mulher se encontra na literatura como aquela que possui uma natureza que demanda vários tipos de repressão. Para além desse olhar construído em torno dela, o que de fato salta aos olhos mais cuidados não é a fraqueza, mas a capacidade de se reinventar diante daquilo que lhe é imposto. E não precisamos ir muito longe para identificar isso. A análise que nos propõe Freire sobre a maternidade científica da década de 1920 nos coloca frente a frente com essa dimensão da mulher. Pois foi por causa da mãe, de certa forma, que foi possível à sociedade brasileira materializar as transformações sociais e políticas almejadas, alcançando aquilo que perseguiam, o projeto republicano.
Se, por um lado, o maternalismo – base de sustentação do modelo de mãe na década de vinte – aprisionou as mulheres em sua dimensão biológica, por outro, impulsionou o aumento do poder da mulher na sociedade. Ainda que restrita e exercida no ambiente doméstico, a maternidade científica, valorizada socialmente, ultrapassou os limites da casa e da família, permitindo a permeabilidade das fronteiras entre o público e o privado.
A imagem de fragilidade e incapacidade que às vezes vemos associada ao feminino logo se dissipa no olhar mais atento que dedicamos à sua história, sobretudo a seu papel de mãe. Parece, inclusive, que, historicamente, foi a maternidade quem impulsionou a mulher para além dos limites identificados à natureza feminina. E ainda hoje, não estando mais aprisionada à esfera privada, a maternidade permanece um importante veículo de revanche contra uma sociedade androcêntrica e contra a desigualdade nas relações entre os sexos, mas também um instrumento de enfrentamento das adversidades de uma vida pobre ou empobrecida.
2.2 Cantos e desencantos sobre a maternidade na escrita de Conceição Evaristo e Ana Maria Gonçalves
Considerando esse contexto do período colonial e da década de 1920 no Brasil, é possível identificar o quanto a mãe e a maternidade foram importantes para o processo civilizatório e colonizador do Novo Mundo, bem como para a realização do projeto republicano. Ao debruçar-nos sobre a análise realizada por Mary Del Priori (2009) e por Maria Martha de Luna Freire (2008), nós nos perguntamos o que seria do Brasil e da sociedade brasileira se não fossem a mulher e sua maternidade.
A mãe como detentora do poder sobre a casa e os filhos, o que se perpetua até os dias atuais em uma enorme parcela dos lares brasileiros, é algo que pode soar a princípio assustador, até mesmo como uma responsabilidade que a mulher não deveria carregar sozinha, mas que tem sido um dado de realidade que evitamos, muitas vezes, enxergar, pois furta-se de reconhecer os motivos que a sustenta.
Pois a exclusividade (ou quase exclusividade, dependendo do contexto) dos cuidados dedicados aos filhos, longe de corresponder à realização do maior desejo da mulher – que, com a ajuda da psicanálise freudiana, quiseram propor como resposta ao mistério feminino e, ainda mais distante, como conformidade à equivalência entre mãe e natureza que os discursos masculinos quiseram impor –, contribui para a divisão de trabalho por gênero e, consequentemente, o evitamento de uma possível feminização das sociedades, tão frontalmente temida pelos homens que sempre estiveram no poder.
Na história da psicanálise se reconhece a histeria como sendo, de certa maneira, esse grito retesado das mulheres, como bem destaca Roudinesco (2016, p. 60): “a histeria tornara-se em toda a Europa a expressão de uma revolta impotente das mulheres contra o poder patriarcal assombrado pelo espectro de uma possível feminização do corpo social”.
Mas aqui as falas não são das histéricas de Freud. Aqui serão as vozes femininas que ganharam e ganham um lugar na literatura. É na escrita de mulheres (e às vezes também de não mulheres) que esse real vivido vai aparecer, numa escrita que se realiza a partir de uma experiência com o próprio corpo. Um corpo marcado por essa passagem, de um filho. Passagem que deixa uma marca, um traço, uma rasura, um resto, um risco. Nessa busca pela linguagem que dê conta de tamanho acontecimento, na procura pela palavra retida, riscada, calada, reprimida. Assim vai sendo escrita a mãe, a maternidade, a relação da mulher com essa outra dimensão que não é nem natural, nem biológica, mas um acontecimento de corpo, de linguagem, de ancestralidade, que é o ser mãe.
Arriscamos, então, neste artigo, o encontro com essa realidade a partir de algumas escritoras mulheres, brasileiras e africanas. Uma realidade que não é a da alegria e da realização plena diante do filho, mas da ambivalência e da aventura a que a experiência de maternidade convoca a mulher. Adentremos a saga de Kehinde em Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves (2020), e as escrevivências de Insubmissas lágrimas de mulheres, de Conceição Evaristo (2016), que nos servem de testemunho poético e real.
Nessas histórias, as mulheres encontram na maternidade o suspiro necessário para enfrentar os infortúnios de cada dia, de uma vida de dificuldades e solidão, em que o homem é coisa rara e, quando presente, na maioria dos relatos, é fonte de violência, opressão e exploração. Mas, para além disso, nos deparamos também com a mulher sujeito, aquela que não se define ou não se limita pela sua função materna. São sujeitos complexos, que comportam desejos que extrapolam o ideal da mãe.
Em Um defeito de cor, desde o início da travessia da personagem principal, mulher africana trazida ao Brasil ainda criança num navio negreiro, o livro já nos coloca diante das insistentes provações e ressignificações pelas quais passa uma mulher ao longo de sua vida num mundo regido e ditado pelos homens.
Toda a narrativa é bastante peculiar, sobretudo porque é Kehinde, nossa heroína, quem escreve. Escreve uma carta, uma carta para o filho perdido, roubado, vendido como escravo mesmo depois de ter conquistado a liberdade. E por quem ele foi vendido? Pelo próprio pai. Escreve porque não sabe se ainda estará viva quando finalmente puder tê-lo novamente em seus braços depois de mais de trinta anos distantes.
Entretanto, o leitor só descobre os detalhes desse acontecimento à medida que avança na leitura. São 947 páginas. Mas a grandeza desse livro não está no número de folhas. Apesar de serem inúmeras coisas que fazem Um defeito de cor um grande livro, o que grita, ou que nos arrebata, o que nos captura é a força, a perseverança, a inteligência, a resiliência de Kehinde, mulher, negra, de origem africana, escrava.
A história de Kehinde começa na África. Mas é no Brasil que ela passa a maior parte de sua vida e onde lhe acontece a maioria dos eventos mais significativos. São tantos fatos terríveis, inúmeras situações de provação, que a força de Kehinde nos comove.
Longe do modelo feminino e materno disseminado por alguns discursos masculinos que colocam a mulher como ser frágil e, até mesmo, incapaz, veremos nessa narrativa uma mulher dona de si mesma e do próprio desejo, detentora de uma sagacidade e de uma coragem que muitos homens jamais sustentariam. Além de aprender com certa facilidade a ler e a escrever, nossa heroína mostra sua habilidade na gestão de atividades da esfera pública – campo eminentemente masculino, sobretudo no Brasil colônia –, levando-a inclusive a alcançar uma vida de conforto e posses num Brasil misógino, escravagista e colonialista.
Mas se engana quem pensa que Kehinde rompe com os padrões femininos apenas por sua aptidão para o comércio. A dedicação e o afeto dirigidos aos filhos não impede que Kehinde experimente sentimentos ambivalentes com relação à maternidade, como demonstram esses dois trechos abaixo:
Às vezes eu queria que o tempo passasse logo e eu envelhecesse, mas às vezes queria voltar a ser criança e ter uma vida igual à daquelas que corriam por ali, rindo e brincando. Eu sentia vontade de brincar também, olhava para o Banjokô sugando meu peito e achava que ele era um brinquedo sério demais com o qual eu sempre teria mais responsabilidade que diversão (Gonçalves, 2020, p. 208).
Às vezes eu me sentia culpada por estar feliz longe dos meus amigos, do Francisco e principalmente do Banjokô. Mas cada vez eu sentia mais vontade de trabalhar muito e, nas horas vagas, de ler, achando perda de tempo fazer algo além disso (Gonçalves, 2020, p. 278).
Ser mãe não anula os desejos femininos que não se encontram relacionados aos filhos. Os seres humanos, não importa o sexo, têm uma tendência à ação. Restringir a mulher unicamente às tarefas do lar não corresponde necessariamente ao que elas desejam. Como escreve Charlotte Brontë (2017, p. 153) em Jane Eyre: “é tacanho por parte desses seres mais privilegiados dizer que elas [as mulheres] devem se limitar a fazer pudins e tecer meias, a tocar piano e bordar bolsas” e, acrescento, a cuidar dos filhos. E ela continua: “É insensato condená-las, ou rir delas, quando buscam fazer ou aprender coisas novas, além do que os costumes determinam que é o ideal para o seu sexo”. Mas quem construiu esse ideal? Como ele foi forjado, com que objetivo? Já vimos com Del Priori e Freire que, à frente dos discursos que produziram esse ideal, está sempre o homem. A mulher aí é apenas uma ferramenta. O que mais choca é que ela está sempre sozinha: “… nem a minha avó nem a minha mãe tinham conseguido um homem só para elas. Em relação à minha avó, eu nunca a ouvi falar qualquer coisa sobre o pai da minha mãe; era como se ele não tivesse existido” (Gonçalves, 2020, p. 271).
Sempre só, tendo que se haver com a solidão, com as dificuldades financeiras, com a casa, com os filhos. Essa é a realidade de grande parte da população brasileira (Figura 1). “Achava necessário ter algum dinheiro guardado, principalmente porque a responsabilidade pela criação de Banjokô estava toda em minhas mãos, como também a da criança que estava esperando” (Gonçalves, 2020, p. 354). Os homens, apesar de serem os detentores do falo, tão culturalmente valorizado, representam o ponto fraco. Em vez de significar a autoridade e a potência paterna, algo que, para a psicanálise, se encontra associado ao processo de constituição dos sujeitos e, portanto, sugerindo sua vinculação à ordem e à proteção do homem, no real vivido dessas mulheres o representante fálico mais abriga formas de violência variadas e até mesmo – como no conto “Adelha Santana Limoeiro” (Evaristo, 2016) – a origem das inconsequências, da perdição e da fragilidade masculina. Imaginem se Kehinde tivesse se submetido ao ideal feminino de sua época? O que teria sido dela, de seus filhos, de sua história? A heroína de Um defeito de cor é apenas um exemplo da realidade vivida pelas mulheres, vale dizer, uma realidade que se encontra muito distante dos ideias e dos saberes construídos pelo discurso masculino em torno do feminino.
Não muito diferente é o livro de Conceição Evaristo, Insubmissas lágrimas de mulheres (2016). É difícil, à primeira vista, escolher um conto que retrate melhor essa realidade. Em sua maioria, as histórias reais inventadas, como a autora mesmo considera suas escrevivências, são contos que testemunham a força da mulher e da mãe diante das adversidades da vida. Adversidades essas que transitam entre as dificuldades comuns ao cotidiano das mulheres negras e pobres e situações de verdadeira crueldade e violência humana que mais parecem retiradas de filmes de terror. Como em Um defeito de cor, nos contos de Evaristo as fortalezas são sempre as mulheres e as mães.
Para a protagonista de “Aramides Florença”, primeiro conto do livro, ter um filho fora um desejo desde pequena. “Vivia a espera de um encontro, em que o homem certo lhe chegaria, para ser o seu companheiro e pai de seu filho” (Evaristo, 2016, p. 11). O filho, então, representava a realização resultante dessa união. Depois de uma gestação feliz e um pós-parto, a princípio, dentro das prédicas de um comercial de margarina, não demora muito a verificar que os pequenos acontecimentos vividos durante a gestação, eventos que permaneceram sem explicação – uma lâmina de barbear deixada ao acaso em cima da cama fere o ventre de Aramides; e a queimadura de um cigarro, que se encontrava entre os dedos do amado e fora “macerado e apagado” (Evaristo, 2016, p. 14) no ventre de Aramides num momento em que o marido a abraçara por trás –, não tardariam a marcá-la de forma definitiva.
Os fatos que se seguiram jamais poderiam dar a imaginar a violência a que chegariam. “Passadas as duas primeiras semanas, já deitados, o homem, olhando para o filho no berço, perguntou a Aramides, quando ela novamente seria dele, só dele” (Evaristo, 2016, p. 15). O passado de um tempo que não fora o dela, quando a mulher era propriedade do homem, na verdade, se encontra ainda bastante vivo em muitos enredos familiares, como no de Aramides. “Buscando apaziguar a insegurança do homem, ela se aconchegou a ele, que levantou rispidamente” (Evaristo, 2016, p. 16).
Cenas semelhantes voltaram a acontecer entre eles várias vezes desde então. E, um belo dia, eis que o marido, sem aviso prévio, invade a casa já se apropriando violentamente de Aramides. “Era esse o homem, que me violentava, que machucava meu corpo e a minha pessoa, no que eu tinha de mais íntimo. Esse homem estava me fazendo coisa dele, sem se importar com nada, nem com o nosso filho, que chorava no berço ao lado” (Evaristo, 2016, p. 18).
Encontramos, nesse livro, a superação da mãe e da mulher, a recomposição de vidas devastadas pela brutalidade impiedosa dos homens e da vida. A maternidade que encontramos em Insubmissas lágrimas de mulheres, longe de ser identificada como destino natural do sujeito feminino, se inscreve como parte de uma história pessoal em cenário social de múltiplas violências. Ora desejada pela mulher como realização pessoal, ou como fonte de um sonho comum do casal, como mostra o conto “Aramides Florença”, ora como um descontentamento pela sua inesperada ou não desejada realização, o que apenas ao se debruçar sobre as particularidades de cada experiência é que se pode compreender, a exemplo de “Isaltina Campo Belo” e “Saura Benevides Amarantino”, como podemos verificar a seguir.
Isaltina, vítima de uma violência brutal – fora violentada por cinco homens, entre eles um pretenso namorado que tentara fazê-la mulher mesmo diante das incontáveis recusas dela –, conta: “Depois, apareceu a gravidez, uma possibilidade, na qual nunca pensara, nem como desejo, e jamais como um risco” (Evaristo, 2016, p. 65), pois ela sempre sentira como se fosse um menino, forma que ela encontrava para definir sua identidade sexual. A gravidez, descoberta aos sete meses de gestação, tamanho era o estado de alheamento em que se encontrava, em vez de ter se transformado na cicatriz da brutalidade vivida e, portanto, em objeto de repulsa, foi o que representou o núcleo pulsante da vida adormecida de Isaltina: “Eu vivia por ela. Tudo em mim adormecido, menos o amor por minha filha” (Evaristo, 2016, p. 66). Um amor construído diante do vazio que ficara na vida de Isaltina. Na solidão vivida, Isaltina se apega à única coisa que possuía, sua filha. E dessa relação, do amor que nasceu, retira a força para seguir na vida.
“Saura Benevides Amarantino” nos conduz a um outro caminho, que não é o do amor de mãe, mas “do desprezo que ela pode oferecer” (Evaristo, 2016, p. 115). Dos três filhos que teve, Saura só acolheu dois em seu coração. Nunca conseguiu se vincular afetivamente à caçula. Os dois filhos, abraçados pelo amor materno de Saura, haviam sido frutos do amor dela pelos pais das crianças. O pai da primogênita, primeiro namorado de Saura, fugiu, com seu consentimento e ajuda, já que não queria se casar tão nova. O pai do segundo, de nome Amarantino, com quem Saura se casou e foi feliz por onze anos, “um dia repentinamente, ele adoeceu e se foi” (Evaristo, 2016, p. 119). Ausência vivida com padecimento.
A terceira gestação foi resultado de um namoro rápido com um ex-colega da juventude. Um descuido.
A terceira, a última, foi uma gravidez que se intrometeu na lembrança mais significativa que eu queria guardar. A imagem da última dança do corpo de Amarantino sobre mim, pouco antes dele adoecer. A enjeitada gravidez comprovava que outro corpo havia dançado sobre o meu, rasurando uma imagem, que, até aquele momento, me parecia tão nítida. E desde então, odiei a criança que eu guardava em mim (Evaristo, 2016, p. 121).
Saura queria a criança longe dela. A menina era a presentificação de um ato que Saura queria esquecer para sempre. A caçula fazia parte de uma história que Saura não conseguia suportar. Foi incapaz de incluí-la entre os seus.
Esses testemunhos literários são escrevivências, contos, cantos, que revelam experiências únicas de maternidade. Os filhos de uma mãe, eles fazem parte de uma história. Uma história bastante particular que em hipótese alguma pode ser catalogada dentro de um molde preestabelecido. A relação entre mãe e filhos é algo que se constitui dentro dessas histórias individuais e familiares. Há um enredo sem dúvida, mas não uma predeterminação estática e previsível. Temos, no conto de Saura, um forte exemplo. A fórmula culturalmente defendida de que a maternidade é algo natural do feminino cai por terra, evapora-se. Reforça, por outro lado, um aspecto importante da condição de mulher: são todas sujeitos. Sujeitos de desejo, com suas contradições e complexidades. As vivências maternas revelam, ao mesmo tempo, que a história importa. Pessoal, familiar ou histórica, ela importa. Ela deixa marcas. Marcas muitas vezes invisíveis mesmo aos olhares apurados.
Se na leitura de autoras brasileiras sobre a mãe e a maternidade é possível perceber a inscrição de seu passado, o que devemos aguardar das vozes que entoam histórias de resistência de mulheres e mães africanas? Escutemos algumas dessas vozes na seção que segue.
3. Maternidade em duas autoras africanas: Scholastique Mukasonga e Buchi Emecheta
A leitura de autoras africanas nos adverte que há que cuidar do nosso etnocentrismo, do genérico falar sobre direitos das mulheres, assim como de descuidos em relação a um alinhamento acrítico a uma epistemologia com marcas coloniais ao destacarmos a universalidade de certos conceitos, caros para perspectivas feministas, como o corpo, a sexualidade e o patriarcado ou, como adverte Oyèrónké Oyèwùmí (2005, 2015), organizadora da antologia Uma leitura de estudos africanos sobre gênero, o não questionamento sobre outras lógicas de organização do pensamento, que escapam da metodologia das aparências, da razão em relação ao que se vê, do viés biologizante. Há que imaginar a organização de um outro pensar pelo sentir, pelo simbólico, pelo mágico, que sustentam cosmopercepções na ancestralidade, ou seja, na idade histórica e transcendental, na oralidade, no saber tradição/lenda. Saberes considerados por nós feministas ocidentais como paralisantes de mudanças, mas que, em muitas ambiências, por outras vivências, em especial nas de negação da humanidade do outro, da outra, como das brutalidades coloniais e neocoloniais, assim como as da escravidão, podem alimentar a coragem para a resistência e a utopia de um outro viver.
Há que refletir também sobre como é difícil a seleção de lealdades: estar contra opressões no doméstico quando se vive em relações de macroviolências institucionais, equilibrando sobrevivências na “necropolítica” – ou em tempos de seleção de quem tem o direito à vida e à morte matada por “formas contemporâneas que subjugam a vida ao poder da morte”, como sintetiza Achlle Mbembe (2018, p. 71) sobre os tempos coloniais e pós-coloniais em países da África e não só lá, haja vista a barbárie no Brasil hoje, principalmente contra jovens negros de bairros periféricos.
A violência colonial e a ocupação se apoiam no terror sagrado da verdade e da exclusividade (expulsões em massa, reassentamento de pessoas “apátridas” em campos de refugiados, estabelecimento de novas colônias). Por trás do terror do sagrado, exumação constante de ossadas desaparecidas; a permanente lembrança de um corpo rasgado em mil pedaços e irreconhecível… (Mbembe, 2018, p. 43).
É quando o patriarcado e a dominação colonial e pós-colonial, assim como o poder do pai, do marido, convivem com o matriarcado exercido no plano molecular, da casa, nas relações com os filhos, e até na ordenação da comunidade, lembrando, por exemplo, que as mulheres de diferentes etnias africanas há muito combinam o papel de cuidadoras e provedoras, como comerciantes no mercado. Um híbrido sistema patriarcado/matriarcado, com valências histórico-espaciais diferentes, se afirma em tempos pré-coloniais, coloniais e pós-coloniais, mas não necessariamente com iguais valências de cada poder, pois o espaço e o tempo e a imbricação com outras relações que não as de gênero impõem hierarquias, como, repetimos, a senioridade, os laços consanguíneos e a ancestralidade – princípios amparados nos mitos das origens.
Ao discutir o matriarcado na África em Ideologias e sistemas de parentesco na África e na Europa, Ifi Amadiume (2005) indica a importância, para a memória, do conhecimento das origens, e que no caso de muitas etnias na África – como indicam estudos de casos históricos sobre os Igbos e os Ashanti, entre outros, em tempos idos – se documenta forte presença do matriarcado, principalmente se se entende matriarcado não necessariamente como antagônico, em termos de coexistência, com o poder do pai, mas como formação alimentada pela matrifocalidade, pela ênfase na matrilinearidade e principalmente modelado em uma ideologia que cultiva não necessariamente a violência de Estado, o poder bélico, o domínio, mas a evocação das deusas mães, o poder do afeto de mulheres, a ênfase nos laços mãe/filha/filho e na sororidade, a união e a cumplicidade subversiva de mulheres. Temas de forte ilustração em A mulher de pés descalços, de Scholastique Mukasonga (2017), do protagonismo da mãe em buscar estratégias de proteção dos filhos e da família, diariamente, na árdua sobrevivência em campo de refugiados quando dos massacres em Ruanda, mais referido na parte que segue.
Ifi Amaudine (2005, p. 87-88) assim reflete sobre a importância de olhar mais atento sobre o que seria matriarcado em casos na história de povos na África:
Parece que o principal problema da ênfase no patriarcado e da desconsideração do poder materno na literatura ocidental é a redução da mulher a objeto a ser trocado ou apropriado […]. Se nos afastamos da questão da propriedade e das trocas nas relações de parentesco e focalizarmos o conceito africano de coletividade, usufruto e importância do acesso à terra, voltamos à importante estrutura tripartite matriarcal, ou o que chamo de relação mãe, filha e filho. Tais termos de parentesco deveriam ser vistos em um sentido de agrupamento coletivo e não no sentido individualista europeu.
[…]
Toda a tese do tabu do incesto como marca do início da civilização, seguindo o pressuposto da organização dos clãs como fundada em tal tabu, traz implícita uma perspectiva sobre o progresso da animalidade/natureza para a ordem/civilização, um fato que explicaria o ordenamento do patriarcado na troca e na apropriação. Ora, tal tese não explica o início da regulação social da sexualidade, pois nessa se assume que a unidade matricêntrica não seria em si um construto cultural – ou seja, que a mulher ou a mãe não podem fazer cultura e normas. Ela não tem uma unidade social ou base material para se constituir em um modo de produção. Contudo, de acordo com dados de estudos na África, a unidade matricêntrica é tanto uma unidade autônoma de produção como também é uma unidade ideológica.[1]
Autoras feministas africanas se posicionam contra essencialismos com referência à mulher africana e a representações de feministas do Norte. Criticam vitimismos das mulheres africanas, sublinhando ativismos; questionam reduções da história de diferentes grupos étnicos, inclusive de alguns em que idade, geração e a ancestralidade são mais definidores de hierarquias que propriamente sexo/gênero; discutem que a maternidade, mesmo que com cargas pesadas de trabalho e responsabilidade para as mulheres, em muitos momentos históricos para algumas nações (como os Igbo, da Nigéria) colaborara para a autonomia e o refúgio frente a relações patriarcais com pais e maridos e a busca de um status social, já que a mãe, em especial de filhos homens, seria considerada socialmente “uma mulher completa” (Emecheta, 2017, p. 33).
Grande parte da produção de autoras africanas, como a que figura na antologia organizada por Oyèwùmí (2005), critica a operacionalização de gênero por imposição de conceitos ocidentais, como propriedade privada, divisão sexual do trabalho, centralidade da sexualidade, e o debate sobre maternidade via referência à família nuclear e às relações entre o homem-pai e a mulher-mãe, privilegiando, portanto, conjugalidade. O interessante é que, independentemente das filiações político-teórico-ideológicas, boa parte das autoras em Oyèwùmí (2005) frisa a importância do colonialismo para a perda da força do matriarcado original e o reforço da opressão das mulheres em relações de gênero e apela, em seus escritos e debates teóricos acadêmicos, para a contribuição da literatura, em particular, de tradição oral e para detalhados estudos de casos sobre diversidade étnico-cultural e cenários históricos com ênfase no princípio da ancestralidade e de geração. Diversas autoras africanas são enfáticas em denunciar o que chamam viés eurocêntrico e imperialista dos feminismos do Norte, que trabalhariam com uma “representação estereotipada da mulher africana” (Mama, 1995, em Martins, 2017). “Descolonizar o feminismo implica, para além disto, uma análise crítica dos próprios pressupostos conceptuais e metodológicos dos feminismos ocidentais […], o desafio que Amadiume e Oyèwùmí colocam é pensar a possibilidade de uma organização social em que o sexo não seja estruturante” (Martins, 2017).
Distintos autores destacam o papel da espiritualidade “na estruturação de hierarquia e autoridade” (Oyèwùmí, 2005), o que leva Oyèwùmí a sublinhar que, “para melhor entender sistemas africanos de conhecimento, temos que estar conscientes da relevância do metafisico na constituição do poder e prestar atenção a maneiras pelas quais a espiritualidade pode orientar interpretações sobre o mundo material” (Oyèwùmí, 2005, p. 3).
A seguir, adentramos mais nos romances de Mukassonga (2017) e Emecheta (2017). O primeiro sobre uma mãe do povo, cantada pela filha por seu heroísmo, fazendo a nação, a reprodução social; o segundo, narrativa de mãe sobre desencanto com filhos, mazelas na produção da vida. Estórias tão diferentes às quais recorremos para defender a tese de que as mulheres buscam resistências em ressignificações principalmente da maternidade, complexa categoria que se traduz, insisto, em carga da mulher na reprodução social e na produção da vida, independente da etnia, combinando sacrifícios e gratificações e representações próprias. Em muitos casos, se insinua o resgate da ordem matriarcal para fazer frente ao poder do pai e à ordem colonial e pós-colonial, assim como a subversão do mito, negando o esperado de uma boa mãe.
3.1 Gênero e o lugar da maternidade em A mulher de pés descalços, de Scholastique Mukasonga
Através do romance, teorias feministas africanas tomam corpo, o que não significa que não venha crescendo um acervo de textos acadêmicos, em especial de autoras na diáspora, que transitam entre universidades na África e na Europa e Estados Unidos, como Scholastique Mukasonga, Chimamanda Adichie e Bucchi Emecheta,[2] entre outras.
A seguir, ilustrações de como se infiltram gênero, sexualidade e etnicidade no romance de Scholastique Mukasonga (2017) e se afirmam pistas do matriarcado, outra forma de exercício de poder, nas relações com os filhos, na família, o que não se contrapõe necessariamente à lei do pai, em especial do Estado, mas alimenta resistências moleculares que influenciam no molar, a sobrevivência da nação.
A saga da etnia tutsi, quando milhares foram assassinados no genocídio de 1994, que aliás contou com o tardio espanto das potências ocidentais, é resgatada por Mukasonga (2017) através da história de sua mãe, Stefania, em terra de desterro forçado e vigiado, nos anos 1950. Sua mãe e suas irmãs, como milhares de outros tutsis, foram assassinados no genocídio de 1994.
Em apenas cem dias naquele ano, cerca de 800 mil pessoas foram massacradas em Ruanda por extremistas étnicos hutus. Eles vitimaram membros da comunidade minoritária tutsi, assim como seus adversários políticos, independentemente da sua origem étnica.[3] Nos anos 1950, os tutsis já estavam em área de refugiados, perto de Burundi, vigiados por milícias hutus e teoricamente protegidos por tropas francesas.
Em Bugsera, o lugar do inóspito desterro, a mãe Stefania protege seus filhos dos perigos da guerra, do terror, dos hutus e dos brancos, tenta cuidar e providenciar uma ambiência de normalidade, e ampara vizinhas, inclusive as que tentam abortar. Ainda que a maternidade fosse considerada uma das maiores bênçãos e de prestígio para as mulheres, o aborto era tentando para evitar a dor de verem os filhos assassinados.
A normalidade é tentada pelo exercício dos rituais de uma família tutsi; os ritos do casamento; o reunir as crianças para no fim da tarde contar estórias; as trocas de receitas e de remédios por plantas; o parlamento das mulheres-reunidas para fumar o cachimbo; e o cultivo do sorgo. Segundo Leonardo Tonus, que prefacia o livro: “Por meio de uma narrativa urdida a várias vozes, Scholastique Mukasonga (2017) constrói em A mulher de pés descalços uma história pungente sobre o amor materno, o gesto testemunhal e nossa implicação face ao dever de memória”.
Em respeito à escuta, seguem destaques que selecionamos do livro de Mukasonga (2017) que ilustram a centralidade da mãe para a sobrevivência da organização tanto familiar como comunitária, e o lugar do imaginário, da tradição tutsi, no período de resistência ao exílio.
A mãe ensaiava rotas de fugas e escondia alimentos em buracos, para o caso de invasões, constantes, dos soldados hutus, que violentamente pisavam os tutsis, para eles baratas. Stefania garantia clima de família e se reunia com as mulheres da comunidade para ter “os seus momentos”, quando juntas fumavam cachimbo e contavam-se estórias que as jovens e os homens não podiam ouvir. Ela constrói uma casa, o inzu, com ajuda das filhas e um filho, já que o pai estaria envolvido em coisas da igreja e da comunidade. Aliás, o pai é pouco referido no romance e, quando o é, é com respeito. Homem que lia a Bíblia, que, diferentemente da mãe, “adotava algumas das novidades trazidas pelos brancos” (Mukasonga, 2017, p. 35), como a casa que a mãe rejeitava, de tijolo e terra batida. A casa que Stefania queria seria diferente da dos brancos, desprezada por ela por “vazia de espíritos”. Era o pai quem ia ao vilarejo comprar o pão, quem fazia para o filho o pedido da noiva aos pais dessa – noiva escolhida por Stefania. O pai é mencionado como um dos “sábios” que administravam negócios da comunidade de refugiados junto aos missionários e “aos brancos”. O pai, como os irmãos, era considerado “civilizado” pela adoção de costumes dos brancos. O pai, o patriarca, cuidava de coisas do Estado, coisas de guerra. Já a matriarca, do bem-estar da comunidade.
A seguir seleção de trechos que a nosso juízo ilustram o exercício do matriarcado em Mukasonga (2017):
Parecia que, graças à casa, Stefania tinha recuperado o prestígio e os poderes que a tradição ruandesa atribui a uma mãe de família. Dobrando com cuidado um talo seco de sorgo com belos reflexos dourados, ela fez um urugori, o arco que prende a cabeleira das mulheres, símbolo da fecundidade, fonte de benção para as crianças da família (p. 37).
Stefania se tornara a guardiã do fogo, esse fogo que, no centro do inzu, nunca deveria apagar (p.39).
Sempre vi minha mãe com a enxada na mão revirando a terra, semeando, capinando e colhendo […]. Foi trabalhando na plantação de sorgo que mamãe me ensinou muitas coisas sobre a Ruanda de antigamente […] segredos passados de mãe para filha (p. 41 e 44).
[Stefania com as mulheres conversava sobre as jovens em busca de casamento:] Mamãe era uma casamenteira de mãos cheias. As opiniões dela sobre essas moças contavam muito na decisão das matriarcas que buscavam esposas para seus filhos. [Cabia às matriarcas a escolha da mulher para os seus filhos.] (p. 88)
As jovens em busca de marido conheciam a influência que minha mãe podia ter sobre seu projeto de casamento. Desse modo elas arrumavam qualquer pretexto para entrar no nosso quintal e para desfilar para ela (p. 89).
É claro que a beleza física não era a única qualidade exigida de uma candidata ao casamento. Na desgraça e na miséria que vivíamos em nosso exílio em Nyamata, o que se esperava de uma boa esposa era sua força de trabalho; pois sobre ela recairia a necessidade de cultivar o campo para alimentar a família (p. 108).
Falar sobre sexo e nomear os órgãos sexuais era proibido, mas havia muita preocupação de que as moças ficassem grávidas, em especial por um estupro das forças de ocupação, ainda que ter um filho fosse conquistar o auge da admiração, respeito e poder desejado por todas as mulheres (Mukasonga, 2017, p. 147).
As mães mandavam as filhas se informar sobre gravidez com uma vizinha mais velha, a quem cabia atestar se as noivas estariam de acordo com a tradição, em estado de virgindade. Caso contrário, a jovem estaria em estado de limbo social. Outro medo é que viessem a ser estéreis, situação que permitia ao marido rejeitar a esposa para evitar o desprezo dos outros homens.
Os interditos das falas sobre sexualidade foram encorajados pelo receio do “estupro revolucionário”, que além de deixar a jovem violentada pelos soldados da repressão, grávida, ainda jogaria sobre ela o estigma de mulher a ser rejeitada e uma possível infecção por HIV-Aids. Mukasonga se refere ao caso de uma jovem estuprada por soldados e que pela tradição seria marginalizada, não sendo considerada digna para se casar. Mas no exílio se desenvolve uma sororidade entre as mulheres que muda a tradição e, no caso, as matriarcas da comunidade consideraram que, se a jovem mãe violentada e a criança fossem banhadas pelas águas do rio, as águas de Rwakibirizi, ela poderia vir a casar com um viúvo. Porém, esse foi um caso único, muitas mães arcaram com a carga de criar seus filhos, sós e marginalizadas, contudo, contribuíram para que Ruanda e a etnia tutsi se reproduzisse. Scholastique Mukasonga (2017, p. 153-154), assim termina o romance:
Em 1994, o estupro foi uma das armas usada pelo genocídio. Quase todos os estupradores eram portadores do vírus HIV. Nem toda a água de Rwakibirizi e de todas as nascentes de Ruanda teriam bastado para “lavar” as vítimas da vergonha pela perversidade que sofreram. Nem toda a água seria suficiente para limpar os rumores que corriam dizendo que essas mulheres eram portadoras da morte, e fazendo com que todos as rejeitassem. Contudo, foi nelas própria e nos filhos nascidos do estupro que essas mulheres encontraram uma fonte viva de coragem e a força para sobreviver e desafiar o projeto de seus assassinos. A Ruanda de hoje é o país das mães-coragem [grifo das autoras].
3.2 Os desencantos de uma mãe em As alegrias da maternidade, de Buchi Emecheta
A rica narrativa de Buchi Emecheta (2017) em As alegrias da maternidade nos situa em uma Nigéria, então colônia britânica (o romance cobre o período de 1930 a 1950), e ilustra uma literatura que critica tradições que legitimam a ordem patriarcal, subordinações da mulher nas relações familiares e como a colonização impede oportunidades de saídas das mulheres dessas situações. Por outro lado, destaca nessas tradições ambiguidades e a força das matriarcas. Emecheta aborda as expectativas de Nnu Ego, a mãe, por recompensas de uma vida de carga com a maternagem, e frustrações com tal dádiva (Mauss, 1950): “a alegria de ser mãe era a alegria de dar tudo aos filhos, diziam” (Emecheta, 2017, p. 308).
Biografia e fantasia se entrelaçam. A autora teve uma vida com casos de violência doméstica, pobreza e sobrecarga para manter os filhos. Seu marido até os manuscritos de seu primeiro romance, por inveja de sua arte e como seu proprietário, queimou, e quando ela pediu divórcio, já vivendo o casal na Inglaterra, renegou a paternidade dos cinco filhos. Coube a ela o sustento da família, mas mesmo assim ela conseguiu concluir seus estudos em sociologia em 1974, trabalhando como bibliotecária e correspondente de vários jornais. Escreveu vários livros sobre saga de mulheres em relações patriarcais e coloniais, quer na Nigéria quer na Inglaterra. As alegrias da maternidade, que data de 1979, é escrito após suas filhas decidirem ir morar com o pai. Entre outros eventos, conta a frustração de não ter sido amparada pelos filhos em sua velhice, mas ser por todos eles venerada após sua morte e contar com um enterro com muita pompa, como reza a tradição da etnia Igbo.
No romance, encontramos a recorrência de temas comuns em outras autoras africanas, mesmo que se referindo a diferentes etnias, quais sejam, sentidos e consequências para as mulheres da centralidade sócio-político-cultural da maternidade, amparada por tradições que atravessaram os tempos, ainda que não se conservem intactas, sobrevivências do período pré-colonial.
O valor para a nação, para a comunidade, para os homens e para as mulheres do ser mãe levou Oyèwùmí (2015) a imprimir o conceito de materpotência, que de alguma forma se confunde com o de matriarcado e que se fundamenta em escritos sobre o sagrado, já que no Ifá, livro baseado na oralidade sobre o espiritual, Oyá é a origem, e a origem é a mãe – quem não se originou de uma mãe? Mas que também decola de teses sobre a singularidade da África versus o Ocidente. Por exemplo, para o historiador africanista Diop, enquanto a civilização africana teria sido modelada no matriarcado, a ocidental, posterior, destacaria o patriarcado.[4]
Diversos romances de autoras africanas sobre tempos pré-coloniais, coloniais e atuais sugerem que, para os homens, os filhos machos não só atestam a virilidade do pai, mas seriam a garantia de uma descendência e de um lugar para este entre os ancestrais. E, no mundo material, seriam guardiões do nome e de bens, como o maior, a terra. O homem que não tem filho é desprezado no seu meio social. Mais ainda as mulheres, com o agravante de que podem ser rejeitadas pelo marido, cabendo à sogra – uma das principais representantes do patriarcado a nível da micropolítica das relações familiares – arranjar outra esposa para seu filho, transformando em poligamia o pensado como uma relação monogâmica e legitimando a rejeição da esposa tida como “seca”, estéril.
Se o formato das tradições muda historicamente, o colonialismo, segundo distintas autoras, como em Emecheta (2017), impinge humilhações a homens e mulheres, desestabiliza marcas tradicionais de gênero. Por exemplo, já em Lagos, a personagem Nnu Ego se choca ao ver o novo marido lavando e cozinhando para os patrões brancos e indo para uma guerra, a Segunda Guerra Mundial, que não é sua, vindo ele de uma etnia, a Igbo, que condena o matar sem justa causa. Mas são as mulheres mães na pobreza as mais penalizadas pela junção patriarcado-colonialismo, quer por imposição de crenças moralistas de um cristianismo que codifica a sexualidade, o vestir e o falar e limita a circulação no público, quer porque o respeito à mãe não tem o amparo econômico-legal com que antes ela contava na vida comunal.
É comum o registro do desespero das mulheres por ter filho, quer para garantir que uma relação conjugal iniciada por amor não seja ceifada pela sogra, quer para agradar o seu homem, quer para gozar de status social, quer pela relação com a criança, tida como o seu único bem. É comum, como no caso do romance em foco, indicar que cabe à mulher maiores encargos com a criança inclusive como provedora, geralmente em vendas no mercado, o que a impede de acumular algum capital, mesmo que se goze da ideia de que se é rica por ser mãe.
As alegrias da maternidade inicia na área rural da Nigéria, na cidade de Ibuza – expressão do pré-colonial, cidade em que se desprezava o branco colonizador, como atestavam várias covas de missionários pela estrada. Daí o romance atravessa fronteiras, desenvolvendo-se na colonial Lagos, chegando às vésperas do pós-colonial.
Expressões do patriarcado patrimonial em tempos pré-coloniais são registradas, bem como o híbrido patriarcado-colonialismo:
Nwokocha Agbadi era um chefe local muito rico. […] Era mais alto que a maioria dos homens e, já que nascera numa era em que a bravura física era o que determinava o papel da pessoa na vida, todos aceitavam com naturalidade que ele fosse o líder. […] Quando ele era moço, a mulher que cedia a um homem sem antes lutar pela própria honra não era respeitada. Considerar uma mulher sossegada e tímida como desejável foi uma coisa que só surgiu mais tarde, depois do tempo dele, com o cristianismo e outras modificações. […]
Nwokocha Agbadi desposou umas poucas mulheres no sentido tradicional, mas quando as via, uma a uma, afundar na vida doméstica e na maternidade, logo se entediava e saía em busca de alguma outra fêmea excitante, alta e orgulhosa. Essa sua predileção também se aplicava às amantes (Emecheta, 2017, p. 17).
Uma das amantes de Agbadi foi avó da personagem central do livro, Nnu Ego, e as referências a ela (apelidada de Ona-joia) indicam a existência naqueles tempos de mulheres com vontade própria, não se ajustando a narrativas lineares de mulheres passivas, mesmo em tempos de patriarcado ativo. A passagem seguinte sugere ambiguidades intrapatriarcais, o poder do pai versus o poder do amante/marido:
Uma dessas amantes era uma jovem muito bela que conseguia ser ao mesmo tempo teimosa e arrogante. Ela era tão teimosa que se recusava a viver com Agbadi. Sendo os homens do jeito que são, ele preferia passar todo o seu tempo livre com ela, com aquela mulher que gostava de humilhá-lo recusando-se a ser sua esposa. Não raras noites ela o punha para fora, dizendo que não estava inclinada a ter fosse o que fosse com ele, embora supostamente Agbadi não fosse o tipo de homem a quem as mulheres dissessem esse tipo de coisa. […]
O pai da moça também era um chefe, e Agbadi a conhecera ainda criança, andando atrás do pai. […] O pai, apesar das diversas esposas, tinha poucos filhos e, na verdade, nenhum filho homem vivo, mas Ona cresceu para corresponder às expectativas do pai. Ele havia insistido para que ela nunca se casasse; sua filha jamais inclinaria a cabeça diante de homem algum. No entanto, podia ter homens, se quisesse, e se tivesse um filho, ele receberia o nome do pai dela, retificando assim a omissão da natureza.
[…] Já que seu pai não tinha um filho, fora dedicada aos deuses para ter filhos com o nome do pai, não com o de algum marido qualquer. Ah, como estava dividida entre dois homens: precisava ser leal ao pai e também ao amante, Agbadi (Emecheta, 2017, p. 18-19).
O extrato seguinte sugere algo sobre o matriarcado, o poder das mulheres, desigualdades de classe/berço mesmo no mundo dos encantados, mesmo em tempos com costumes pré-coloniais:
“[…] O sepultamento da esposa de um chefe não é pouca coisa em Ibuza.”
As danças e os festejos fúnebres começaram muito cedo pela manhã e se prolongaram ao longo de todo o dia. Diferentes grupos de pessoas chegavam e partiam e deviam ser acolhidos. Ao entardecer chegou o momento de instalar Agunwa em sua sepultura. Todas as coisas de que teria necessidade na outra vida foram reunidas e dispostas em seu caixão de madeira confeccionado com o melhor mogno que Agbadi conseguiu encontrar. Depois sua escrava pessoal foi convocada pomposamente em voz alta pelo curandeiro: ela deveria ser posta no interior do túmulo em primeiro lugar. O certo seria que a boa escrava pulasse na sepultura por vontade própria, feliz de partir ao lado da ama; mas aquela jovem e bela mulher ainda não desejava morrer.
Desagradando a muitos dos homens que cercavam a sepultura, ela implorou insistentemente pela vida (Emecheta, 2017, p. 32-3).
Por maldição da escrava, Nnu Ego, filha de Ona, não consegue engravidar. Mesmo tendo casado por amor, por não conseguir ter filhos, Nnu Ego é rejeitada pelo marido, que a amava, mas se curva ao dever comunal de homem, fazer filhos.
Nnu Ego é enviada para Lagos, para um casamento arranjado, quando o romance se situa em tempos coloniais, de dominação inglesa. O desprezo pelo novo marido é substituído por respeito quando ela tem filhos. O primeiro morre e Nnu Ego tenta o suicídio, já que não consegue ser uma mulher completa, mas vem a ter outros e a relação se consolida. A colonização humilha, subverte padrões patriarcais tradicionais, mas se afirma em outros: o marido é o senhor.
O romance de Emecheta faz uma rica etnografia das condições de vida na Nigéria no final do século XIX, das relações interétnicas, da sutil dominação colonial imposta pelo poder do cristianismo e do seu poder pelas armas e pelo domínio econômico, como dos contrastes entre normas culturais e as impostas como legais.
Quando Nnaife, marido de Nnu Ego, é alistado no exército para lutar pelos ingleses na Segunda Guerra, sem saber nem por que, cabe a ela criar, sustentar os cinco filhos. Eles eram sua riqueza, e ela comentava com vizinhas que um dia seria por eles amparada, como se esperava de filhos Igbos. Reage Nnu Ego quando Nnaife é alistado à força, mas se resigna:
“Você já esqueceu que em Ibuza é uma maldição para uma mulher de respeito dormir com um soldado? Já esqueceu todos os costumes de nosso povo, Nnaife? Primeiro, lava a roupa de uma mulher, agora quer se reunir a pessoas que matam, violam e são a desgraça de mulheres e crianças, tudo em nome do dinheiro do branco. Não, Nnaife, não quero esse tipo de dinheiro […]” (Emecheta, 2017, p. 126).
Responde o irmão de Nnaife sobre por que ele foi alistado – pegado à força pelo exército colonizador: “Não há nada que a gente possa fazer. Nós pertencemos aos britânicos, assim como pertencemos a Deus e como Deus eles podem se apropriar de qualquer um de nós” (Emecheta, 2017, p. 205). Reação do senhorio, iorubá: “Por que eles não lutam suas próprias guerras sozinhos? Por que arrastar africanos inocentes como nós para o meio?”, e responde outro: “Não temos escolha” (Emecheta, 2017, p. 206).
De fato, espada e cruz fizeram uma aliança básica para a colonização. Predomina a passividade em gênero, imposta pelo cristianismo: Nnu Ego se resigna à “sua nova religião cristã que a ensinava a carregar sua cruz com fortaleza” (Emecheta, 2017, p. 127).
Nnu Ego por muitos anos passa a ser a chefe de família, da qual constava outra esposa. Nnu Ego costumava reprimir expressões sentimentais, era a esposa mais velha, e a sua cultura “não lhe permitia que se entregasse aos seus temores”. Gênero, como bem observa Oyèrónké Oyèwùmí (2005) sobre muitas tradições étnico-africanas, não se sobrepõe a idade, ao contrário, é a senioridade que desenha papéis. A esposa mais velha, em casa em que não está o homem, é o homem da casa: “E já que os homens não podiam sofrer abertamente ela tinha que aprender a também esconder sua dor. Ouviu Akadu [a outra esposa do seu marido] chorar e invejou sua liberdade” (Emecheta, 2017, p. 192).
A mãe se sacrifica vendendo no mercado fósforo e outras coisas para a educação dos filhos homens, segundo ideólogos da independência “para formar seus governantes e lidar com a modernidade”, para ela para que fossem respeitados inclusive por brancos e a amparassem no futuro. Já para as filhas, a educação seria para lhes buscar um bom casamento. Os filhos vão estudar e trabalhar nos Estados Unidos e no Canadá e não dão mais notícia, e as filhas ao se casarem vão para outras províncias.
Um tipo de matriarcado ou o que chamaríamos de “martiriocado” se modela na vida de Nnu Ego enquanto o marido está na prisão. Ela é dona de seu dinheiro, consolida-se em atividades no mercado, por mãe de filhos homens tem o respeito da comunidade e se encontra ajustada à lógica do mundo dos encantados, encaminhando-se para ser uma respeitável e adorada ancestral quando morresse. Sobre ela se refere um homem iorubá: “Nossa vida começa em imortalidade e termina em imortalidade […] Nnu Ego está imortalizando seu marido” (Emecheta, 2017, p. 230). Os filhos não mandam notícia nem dinheiro: “Durante algum tempo Nnu Ego suportou tudo aquilo sem reagir, até que seus sentidos começaram a ceder. Tornou-se vaga e as pessoas comentavam que ela nunca fora forte do ponto de vida emocional”. Morreu só à margem de uma estrada, “Sem nenhum filho para segurar sua mão e nenhum amigo para conversar com ela. Nunca fizera muitos amigos, de tão ocupada que vivera acumulando as alegrias de ser mãe” (Emecheta, 2017, p. 307).
Já seu sepultamento em Ibuza foi com fausto, vieram todos os filhos e lhe construíram um altar para que os netos apelassem para ela se fossem estéreis. Mas a vingança de Nnu Ego se realiza no plano do transcendente, e ela, ao contrário de atender aos pedidos das mulheres que lhe vinham orar por filhos, as fazia estéreis. Como era possível, diziam, ela que tivera a alegria de ser mãe e de dar tudo aos filhos?
Por acaso não tivera o maior sepultamento que Ibuza já vira? Oshia [o filho que vivia na América] precisou de três anos para conseguir pagar todo o dinheiro que pedira emprestado para mostrar ao mundo o bom filho que era. Sendo assim, as pessoas não entendiam por que Nnu Ego não atendia às preces que lhe dirigiam, pois o que mais uma mulher poderia desejar, além de ter filhos que lhe dessem um sepultamento decente? Nnu Ego recebera tudo isso, e nem assim atendia às preces dos que lhe pediam filhos (Emecheta, 2017, p. 307).
4. Reflexões finais
A história sugere que o feminino e a maternidade representam um mistério. Inspirado pelo medo, o homem foi obrigado a adestrar o feminino para que pudesse prever seus passos; para que nenhuma surpresa desagradável o surpreendesse. Como observa Priori (2009, p. 33): “Seria impossível conviver impunemente com tanto perigo, com tal demônio em forma de gente”.
O caso Brasil aqui retratado com o apoio de contos de Conceição Evaristo e do romance de Ana Maria Gonçalves, da análise histórica de Mary Del Priori e da médica brasileira Maria Martha de Luna Freire, revela que o que decorreu desse adestramento escapou às expectativas e aos receios temidos. A mulher, principalmente se mãe, mostrou-se maior do que tudo. Uma deusa. Certamente, ainda temida. Mas universalmente endeusada. Na história do Brasil, essa mãe adquire uma importância que transborda, por exemplo, os preceitos psicanalíticos. Nos referimos à relevância que o pai tem na obra de Freud em detrimento da mãe. Para a psicanálise freudiana é sempre o pai quem se encontra como vetor e norteador das vicissitudes do sujeito humano. Ainda que encontremos a mãe como porta-voz, Freud sempre nos lembra que é o pai o centro da família, e o centro dos complexos familiares (Roudinesco, 2003).
Contrastando com a família edipiana proposta por Freud, onde é o pai quem reina, na história dos brasileiros, principalmente entre as classes pobres e empobrecidas, não encontramos o pai, quem dirá um Deus Pai. O discurso é masculino, mas a verdade é que a sociedade brasileira, ao menos uma parte considerável dela, foi feita pelas mulheres. Ainda que submetida ao patriarcado, foi a mãe quem ofereceu uma via de constituição e edificação dos pequenos sujeitos, que surgiam para povoar o Novo Mundo e para realizar o projeto republicano. Quanto ao homem, nem função de pai, nem obrigações de homem (considerando aquilo que prega o patriarcado, já que é ele que serve de suporte ao adestramento feminino). Estes, os homens, são aqueles que escapavam, fugiam, ou se negavam, como nos contos de Evaristo.
Somos, no caso do Brasil de baixo, aquele das periferias, uma nação feita pelas mulheres. Quando o homem se encontra presente, não é regra, mas a exceção. A função paterna aparece sempre longinquamente, como um adereço. Em alguns casos, como um fator e vetor importante que atua ativamente junto à mulher, mas em outros, na maioria deles, o papel do homem e do pai é quase inexistente. Diríamos até que, nesse último caso, o pai e o homem mais atrapalham, pois, ao se manifestarem, o fazem a partir da violência e da crueldade do homem contra a mulher.
Vozes femininas da África trazem ilustrações do matriarcado em nações dominadas pelo patriarcado e pelo colonialismo. O relato de Scholastique Mukasonga (2017) sobre maternidade e o feminino destaca como sua mãe modelou proteção, esconderijos territoriais e anímicos, pelo trabalho de sobrevivência e afetos para seus filhos e sua família, e contribuiu para a vida em comunidade de refugiados da etnia ruandense, tutsis, sob a constante ameaça e violências dos soldados da etnia inimiga hutus, antes do genocídio que contou com o apoio e o beneplácito das forças coloniais e das nações soberanas no cenário internacional de 1994. Narrativa emblemática do ápice do necropoder, “um poder que embaralha as fronteiras entre resistência e suicídio, sacrifício e redenção, mártir e liberdade” (Mbembe, 2018, p. 71).
Ecos de necropolítica pavimentam, ainda que não necessariamente nomeados, o texto sobre as violências sofridas nas vidas das mulheres negras, também brasileiras, que nos chegam pelas escrevivências de Evaristo (2016).
Se o romance de Scholastique é narrado pela filha, o de Emecheta representa os sentidos de ser mãe por uma mãe quando alegrias se entrelaçam a frustrações. Emecheta (2017) dialeticamente indica formas da mãe se rebelar, inclusive recorrendo à tradição e ao pensamento mágico: quando morre, o espírito de Nnu Ego não atende às preces das mulheres “que lhe pediam filhos” (Emecheta, 2017, p. 308).
As famílias entre os deserdados combina ser sítio de violências de gênero e de produção de gratificações; ser refúgio e proteção inclusive anímica contra o conquistador ou o Estado. É quando a economia de cuidados da mãe, se não enfrenta a lei do pai, colabora na sobrevivência da prole e da comunidade e na sutil instauração de um matriarcado, simbólica proteção, tema que pede mais espaço.
Falta melhor conhecer portos de decolagem no plano de micropolíticas coletivas para aterrisagens mais de acordo com necessidades e principalmente imaginários e cosmovisões, pois é a partir desses que se constroem formas de resistência, de acomodação ou de mudanças. Ou seja, a partir de materialidades vividas e, principalmente, da maneira como essas vivências são modeladas pelo sagrado, pela espiritualidade, por imaginários que fogem do visto e se instauram no sentido, ainda que emprisionadas em uma economia política que cultiva a morte, de muitos, muitas.
*Mary Garcia Castro é Ph. D. em Sociologia pela Universidade da Flórida, pesquisadora Visitante Emérita (FAPERJ/UERJ/NUDERG), professora aposentada da UFBA e pesquisadora na FLACSO-Brasil; Fernanda Andrade Leal é psicanalista, psicóloga perinatal e parental, doutora e mestre em Família na Sociedade Contemporânea e autora do livro A tristeza comum da mãe: reflexões sobre o estado psíquico do pós-parto.
Referências
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ROUDINESCO, E. A família em desordem. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
Notas
[1] Original em inglês (tradução livre das autoras).
[2] Scholastique Mukasonga, nascida em 1956, originaria de Ruanda e que hoje vive e trabalha na região da Normandia; Chimamanda Adichie, nascida em 1977, nigeriana que leciona parte do tempo em universidades nos Estados Unidos e na Nigéria; e Bucchi Emecheta, que viveu na Nigéria, em Londres e Nova York, 1944-2017.
[3] “Por que as milícias hutus quiseram matar os tutsis? Cerca de 85% dos ruandeses são hutus, mas a minoria tutsi dominou por muito tempo o país. Em 1959, os hutus derrubaram a monarquia tutsi e dezenas de milhares de tutsis fugiram para países vizinhos, incluindo a Uganda. Um grupo de exilados tutsis formou um grupo rebelde, a Frente Patriótica Ruandesa (RPF), que invadiu Ruanda em 1990 e lutou continuamente até que um acordo de paz foi estabelecido em 1993. Na noite de 6 de abril de 1994, um avião que transportava os então presidentes de Ruanda, Juvenal Habyarimana, e do Burundi, Cyprien Ntaryamira, ambos hutus, foi derrubado. Extremistas hutus culparam a RPF e imediatamente começaram uma campanha bem organizada de assassinato. A RPF disse que o avião tinha sido abatido por hutus para fornecer uma desculpa para o genocídio. […] Alguém tentou pará-los? ONU e Bélgica tinham forças de segurança em Ruanda, mas não foi dado à missão da ONU um mandato para parar a matança. Um ano depois que soldados norte-americanos foram mortos na Somália, os Estados Unidos estavam determinados a não se envolver em outro conflito africano. Os belgas e a maioria da força de paz da ONU se retiraram depois que dez soldados belgas foram mortos. Os franceses, que eram aliados do governo hutu, enviaram militares para criar uma zona supostamente segura, mas foram acusados de não fazer o suficiente para parar a chacina nessa área. O atual governo de Ruanda acusa a França de ‘ligações diretas’ com o massacre – uma acusação negada por Paris. […] Como terminou? A bem organizada RPF, apoiada pelo exército de Uganda, gradualmente conquistou mais território, até 4 de julho, quando as suas forças marcharam para a capital, Kigali. Cerca de dois milhões de hutus – civis e alguns dos envolvidos no genocídio – fugiram em seguida pela fronteira com a República Democrática do Congo”, BBC, 7 abr. 2013. Disponível em: http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/04/140407_ruanda_genocidio_ms – 7.4.2014. Acessado em 20 mar. 2018.
Ao começar a leitura do livro lilás, que se apresenta como Risque esta palavra (Companhia das Letras, 2021), de Ana Martins Marques (Belo Horizonte, 1977), somos surpreendidos pela paisagem poética de um fragmento da casa: “a porta de saída”. Trata-se do subtítulo da primeira seção, aceso como uma fotografia, como uma saída de emergência pela poesia.
Aqui, abro parênteses para lembrar a fala da crítica argentina Florencia Garramuño no encontro Leituras do contemporâneo: Literatura e crítica no Brasil e na Argentina, sobre uma literatura contemporânea em modo lanterna, fazendo referência ao livro de Sérgio Chejfec, Modo linterna: “uma literatura que ilumina como se fosse a lanterna do celular, ilumina o pequenino, um fragmento de mundo” (2021, 1h1min14s-30s).
E volto à porta de saída, à luz do modo lanterna da poesia de Ana Martins Marques, que nos dá a ver detalhes de nossos gestos cotidianos, “cria uma espécie de inventário de experiências afetivas”, como lemos na orelha do livro. Poesia que apresenta uma arquitetura precisa e, ao mesmo tempo, um olhar sensível do sujeito poético para o mundo, em “íntima alteridade”, deslocado para fora de si. E nos oferece uma sensação de reconhecimento, indo ao encontro da partilha comum. Portas de saída pela potência do afeto. Poesia que atravessa várias paisagens, do luto, da memória, da viagem, do amor. E paisagens de palavras que pensam sobre si mesmas, giram em torno da escrita. Como já nos sugerem os subtítulos das quatro partes que compõem o livro: “A porta de saída”, “Postais de parte alguma”, “Noções de linguística” e “Parar de fumar”, paisagens em trânsito que nos movem em espaços de fronteira entre o dentro e o fora, como a casa (interior e exterior), o mar (profundidade e superfície), o efêmero (vida e morte), a memória (lembrança e esquecimento), a arte (teor lírico e crítico).
Como diz Ana Martins Marques (2015) em entrevista ao Suplemento Pernambuco: “a poesia é sim linguagem que se volta para si mesma, mas acho que nesse movimento ela pode captar, ainda que furtivamente, alguma coisa de fora. Por isso gosto de pensar que os meus poemas nunca são exclusivamente metalinguísticos”. E mais adiante: “há poemas de amor ‘disfarçados’ de poemas metalinguísticos, ou poemas metalinguísticos que subitamente se transmudam num poema de amor, ou ainda poemas que parecem tratar de outros temas e de repente se dobram sobre si mesmos”.
Riscos dos poemas
“E, então, percebemos, surpresos”, diz a poeta Marília Garcia (2021) no blog da Companhia das Letras, “que uma palavra tão forte como riscar(do título) – que sugere a ideia de rasura, apagamento – pode indicar outros sentidos: riscar um fósforo é acender, iluminar”. E mais adiante: “assim, ‘riscar uma palavra’, nesses poemas, pode ser também mostrar. A linguagem, o mundo, o tempo”. Desse modo, riscar é também um convite à leitura, que, quando é atenta, acende a palavra e reescreve o texto pela interpretação, nos mostra outros modos de olhar. Um pedido feito a “você”, como vemos no uso imperativo da terceira pessoa do singular em: “Risque (você) esta palavra”. Impossível não lembrar, nesse imperativo, o movimento contrário, presente na ordem de Ana Cristina Cesar, depois sublinhado por Flora Süssekind: Até segunda ordem não me risque nada.[1]
Semelhante ao modo que Süssekind (2016, p. 31) observa em Ana C., Ana Martins Marques compõe uma “poesia próxima a uma ‘arte da conversação’, num ‘texto escrito que fala’”.[2] A poeta conta, na entrevista referida, que os poemas “estão à procura de um ‘tu’ ou de um ‘você’ a que se endereçar, um ‘tu’ ou um ‘você’ que nem mesmo é necessariamente humano. Um dos poemas de amigo mais conhecidos é um poema de amor que se dirige não ao amante, mas às ondas do mar de Vigo” (2021). Marília Garcia (2021) relata sua experiência de leitura desse livro: “tive a impressão de que o livro leva o leitor pela mão e reitera a interlocução”.
A poesia em vozes de Ana Martins Marques, em um gesto em direção ao outro, estabelece um plano de interlocução com “você”, tomado como “meu amigo”, a quem se endereça a carta-poema que abre o livro:
Meu amigo,
quase já não escrevo
passo o dia sentada em algum lugar
olhando florescer qualquer coisa que esteja
posta diante dos olhos
com isso já vi morrer uma pedra
e um cachorro enforcar-se
numa nesga de sol
mas nada disso era uma palavra
dessas que coloco agora uma após a outra
para que depois você as receba como um aviso
de que ainda não morri de todo
não se parecia tampouco com uma palavra
embora lembrasse vagamente naufrágio
a mulher que atravessou a rua velozmente
carregando como uma criança
um girassol sem cabeça
e o que encontrei
um dia após o outro
não foi uma palavra
mas uma canoa em chamas
não foi uma palavra
mas um acidente doméstico
envolvendo um barco de brinquedo
e uma máquina de costura
não foi uma palavra
(embora em torno das coisas
sempre se ajuntem palavras
como cracas no casco
de uma embarcação antiga)
às vezes sim me ocorre encontrar uma palavra
apenas quando a encontro
ela se parece com um buraco
cheio de silêncio
às vezes sim me ocorre encontrar uma palavra
enganchada numa lembrança
como uma lâmpada num bocal
um poema não é mais
do que uma pedra que grita
risque por favor
esta palavra
(Marques, 2021, p. 11-12)
Em busca da palavra, o sujeito lírico surge para fora de si, observador das minúcias do cotidiano, como vemos nos versos seguintes: “passo o dia sentada em algum lugar/ olhando florescer qualquer coisa que esteja/ posta diante dos olhos”. Aqui, a concordância do verbo “sentada” marca o gênero feminino do sujeito poético e podemos inferir, pelo contexto do poema, que é uma poeta. Ela ensaia seu método de escrita ao olhar para o lado de fora, exterior que, ao mesmo tempo, narra o interior. E nos revela um impasse: a cisão entre o mundo das coisas e o mundo traduzido pelas palavras. Diante disso, é pela estratégia da negação que a poeta escreve esse metapoema, como lemos no verso: “já quase não escrevo”. E nos dá a ver imagens de morte em torno de processos do fim: da infância, de um hábito, de um amor, da vida, do verso. Como na quinta estrofe:
não se parecia tampouco com uma palavra
embora lembrasse vagamente naufrágio
a mulher que atravessou a rua velozmente
carregando como uma criança
um girassol sem cabeça
As imagens de morte em “naufrágio” e “girassol sem cabeça”, pelo enjambement, sugerem um modo subjetivo de morte da mulher. Podemos inferir que se trata talvez de um processo de luto. Ao mesmo tempo, a partir da operação do corte (cesura), também lemos a morte da flor, cena construída pelo jogo do enquadramento fotográfico no plano fechado (close up), com foco para um detalhe: “um girassol sem cabeça”. Pelo contexto do poema, essa imagem pode ser lida também como uma morte impensada, em que a metáfora da “cabeça” personifica a flor. Um olhar que encontra o incomum na metáfora comum do nosso cotidiano (no caso, “cabeça de girassol”). Trata-se de um recurso presente em sua poética, como vemos, em especial, na seção “Visitas ao lugar-comum”, de O livro das semelhanças (2015), com poemas temáticos que repensam certas expressões idiomáticas, muitas vezes tomando-as de forma literal, como em:
Quebrar o silêncio
e depois recolher
os pedaços
testar-lhes o corte
o brilho
cego
(Marques, 2015, p. 51)
Outras imagens impensadas de mortes são construídas, no poema, em torno de elementos do cotidiano que são deslocados pelo sentido poético. Por exemplo, a morte dos objetos, na sexta estrofe, em “canoa em chamas”, e o acidente doméstico “envolvendo um barco de brinquedo/ e uma máquina de costura”. Um acidente de escrita?
A máquina de costura, pelo gesto de (des)tecer, nos remete à escrita que, aqui, se depara atenta às minúcias do cotidiano, como um barco de brinquedo. Outra imagem metalinguística, como uma metáfora para o poema, como lemos em “barcos de papel”, no livro A vida submarina: [Os poemas] “Dobrados sobre si mesmos,/ lançam-se no mundo/ com a coragem suicida/ dos barcos de papel” (Marques, 2009, p. 21). Apesar dos imprevisíveis acidentes da escrita, a poeta nos lembra: “Escreve poemas/ devolve/ o papel à árvore” (Marques, 2021, p. 85).
E, na terceira estrofe, a personificação da pedra e do cachorro nos dá a ver outras imagens insólitas:
com isso já vi morrer uma pedra
e um cachorro enforcar-se
numa nesga de sol
A “nesga de sol” remete a um valor de vida. Contudo, essa luminosidade torna ainda mais visível a cena de morte. Assim, temos uma tensão entre o valor de vida (“nesga de sol”) e de morte (“morrer uma pedra” e “um cachorro enforcar-se”), que revela um motivo recorrente na sua poesia: a efemeridade da existência. Como nos lembram os versos: “em cada brecha entrou o tempo/ sem convite” (Marques, 2021, p. 24)
Sabemos que é lenta a passagem do tempo que desgasta as pedras em comparação à brevidade da vida humana. Em sua temporalidade ancestral, a pedra sobrevive à memória de nossa passagem no mundo. Porém, a temporalidade antiga da pedra, aqui, é deslocada pelo olhar do sujeito poético que testemunha a cena de morte. Com isso, a possibilidade de morte de algo imperecível como a pedra sugere que nada pode nos sobreviver. Mas isso é relativizado pelo recurso do sujeito desinencial, escolha sintática que “risca” a primeira pessoa do verso em “com isso (eu) já vi morrer uma pedra”. Não por acaso é escolhido um ponto de vista parcial, enganoso. Trata-se de uma estratégia que questiona a certeza desse testemunho da morte da pedra. E problematiza a subjetividade da persistência da memória, sendo a palavra acesa quando articulada à lembrança, como vemos nas seguintes estrofes:
às vezes sim me ocorre encontrar uma palavra
apenas quando a encontro
ela se parece com um buraco
cheio de silêncio
às vezes sim me ocorre encontrar uma palavra
enganchada numa lembrança
como uma lâmpada num bocal
Em seu livro Mito e pensamento entre os gregos, Jean-Pierre Vernant nos conta a antiga relação entre memória e palavra: em Hesíodo (citado em Vernant, 1990, p. 109), Mnemosyne canta “tudo que foi, tudo que é, tudo o que será”, sendo o poeta seu intérprete, possuído pelas musas. E Platão (citado em Vernant, 1990, p. 110), em Íon, acrescenta que “a memória transporta o poeta ao coração dos acontecimentos antigos, em seu tempo”. Assim, o tecer da memória se faz “enganchado” na palavra, no poema, na trama do texto, que, como sabemos, vem do latim textus e significa tecido, enlace, entre outros sentidos que orientam o movimento do narrar.
Vernant (1990, p. 114) comenta ainda que “Mnmosyne, aquela que faz recordar, é também em Hesíodo aquela que faz esquecer”. Esquecer sugere algo que escapa da memória aparentemente seria o contrário de lembrar. Contudo, são movimentos desdobrados, não opostos. Segundo Deleuze (2013, p. 115), “só o esquecimento (o desdobramento, dépli) encontra aquilo que está dobrado na memória (na própria dobra), sendo a memória coextensiva ao esquecimento” (grifo nosso).
A lembrança e o esquecimento, portanto, formam um “par de forças” complementares. Comparável aos valores de vida e morte, luz e sombra, narrativa e silêncio, entre outros. Nas estrofes referidas, o encontro do sujeito poético com a palavra, ainda que casual (como vemos em “às vezes sim”), ocorre em torno do esquecimento e da lembrança, associados a silêncio e palavra, buraco (sugere morte/sombra) e lâmpada (sugere vida/luz).
Na penúltima estrofe, em sua busca pela palavra, agora acesa pela memória, a poeta escreve:
um poema não é mais
do que uma pedra que grita
O silêncio também é outro motivo importante na poética de Ana Martins Marques. Consoante Steiner (1988, p. 73), “o silêncio funda um outro discurso que não o comum; entretanto, é linguagem de grande teor significativo”. Assim, o silêncio também é espaço de interlocução, concebido como uma língua, como lemos no poema “Silêncio”: “Língua das coisas/ Mas também: língua de se falar com as coisas/ e com as próprias palavras” (Marques, 2021, p. 70). A pedra fala a língua das coisas, que, aqui, é o silêncio. E revela um paradoxo que aproxima o silêncio da palavra: a pedra grita pelo silêncio, assim como o poema. Além disso, ambos não são considerados úteis dentro da lógica funcional do sistema, mas respondem a uma ordem afetiva por suas temporalidades prologadas, sendo testemunhas da passagem do tempo.
Ana Martins Marques, em sua tese, destaca a fala de Sebald (citado em Marques, 2013, p. 86-87) sobre o poder dos objetos: “como as coisas (a princípio) nos sobrevivem, elas sabem mais sobre nós do que nós sobre elas; elas trazem em si as experiências que fizeram conosco e são – efetivamente – o livro de nossa história aberto diante de nossos olhos”. Nesse sentido, segundo Benjamin (citado em Marques, 2013, p. 83), “parece haver convicção de que nos objetos cotidianos, nas ruas e nas fachadas, nos rastros e ruínas da cidade podem revelar-se os vestígios, os traços da memória e da história”.
Por atravessarem o tempo, a pedra e o poema, assim como outras formas de arte, podem ser tomados como lugares de memória que fazem perdurar nossas histórias sob a ameaça do esquecimento, do apagamento do sujeito frente a um espelho vazio.
Mas é preciso estar à escuta:
risque por favor
esta palavra
Em busca de uma aproximação com o leitor, a interlocução também é feita, aqui, pela escolha de um processo de composição híbrido de poema e carta, em referência a gêneros de intimidade (cartas, diários, postais, por exemplo). Observamos, assim, que a interlocução é uma questão central em sua poesia e pode ser tomada como uma chave de leitura. Em entrevista a Marília Garcia, Ana Martins Marques (2021) nos conta:
é possível que essa atenção para o endereçamento tenha sido aguçada pelas experiências de escrita a dois, pelo processo de interlocução e correspondência com o Siscar e o Eduardo Jorge, embora desde o meu primeiro livro existam alguns poemas que trazem essa instância da interlocução ou mesmo se apropriam de tipos textuais como a carta ou o bilhete.[3]
O “riscar” da carta e outros “gêneros da intimidade”, outro ponto de encontro com a poética de Ana Cristina Cesar, subverte o lugar previsto para a escrita de autoria feminina, que, como sabemos, por séculos, foi considerada como uma “literatura menor”.
*
A poesia em vozes de Ana Martins Marques também atravessa redes intertextuais, nas quais ouvimos, por exemplo, as figuras femininas da memória literária (Penélope, Ofélia, Medusa, Sereia, entre outras), em poemas que subvertem o lugar do feminino nos arquivos da literatura, “riscam” esse “mal de arquivo”, como diz Derrida (2001). E são um bom ponto de partida para pensarmos as persistências e subversões da performance do feminino na cena contemporânea.
Em Risque esta palavra, o que chama a atenção é a atualização das tramas protagonizadas por Ofélia e Medusa, ainda na primeira seção do livro. Mulheres com voz que, aqui, recontam suas histórias, semelhantes a Penélope, figura feminina recorrente na poética de Ana Martins Marques, como vemos, por exemplo, na sequência de poemas que (des)tecem as tramas de Penélope no livro A vida submarina (2009). A penelopeia subverte, a partir do protagonismo ardiloso e ativo de Penélope, o lugar histórico repisado para a mulher, como em: “E então se sentam/ lado a lado/ para que ela lhe narre/ a odisseia da espera” (Marques, 2009, p. 142). Deslocamentos críticos que também observamos em outras figuras femininas de sua poesia.
A escolha de “riscar” a trama de Ofélia é significativa, pois mobiliza as águas trágicas da personagem do Hamlet de Shakespeare, de um destino de morte à vida. No livro A água e os sonhos, Gaston Bachelard (2002, p. 85) diz que “Ofélia poderá ser para nós o símbolo do suicídio feminino. Ela é realmente uma criatura nascida para morrer na água, encontra aí, como diz Shakespeare, ‘seu próprio elemento’. A água é o elemento da morte jovem e bela, da morte florida”. E mais adiante: “A água é o símbolo profundo, orgânico, da mulher que só sabe chorar suas dores e cujos olhos são facilmente ‘afogados de lágrimas’”.
Mas, como Ofélia, aprendemos a nadar:
Ofélia aprende a nadar
(…)
quando seu vestido
se torna pesado
ela começa lentamente
a mover os braços
e as pernas
primeiro sem deixar de cantar
depois substituindo o canto
por uma respiração ritmada
mergulhando e levantando a cabeça
e aproveitando-se da correnteza
até chegar à margem
lamacenta
por onde sobe
com alguma dificuldade
carregando o vestido
pesado
há muita coisa em comum entre
cair num rio
e cair em si
e cair fora
(Marques, 2021, p. 39-40)
E, com Medusa, aprendemos a rir:
Um café com a Medusa
(…)
cúmplices
ela e eu
(embora eu evite
confesso
olhá-la nos olhos)
tomamos nosso café quase
em silêncio
ela diz que agora sonha apenas com o mar
que seus cabelos são algas e não serpentes
e que dançam lentamente no fundo de um oceano
cheio de monstros, como são os oceanos,
lagoas enormes e águas-vivas
e outras incongruências marinhas
corais e conchas que são
como estojos
e baleias que vivem até duzentos anos
o que para ela é nada, alguns segundos
como de fato é
e rimos as duas
que duas velhas sonhem ainda
e sempre o sexo
(…)
(Marques, 2021, p. 42-43)
A figura mitológica da Medusa é aproximada de nós, do nosso cotidiano, como uma amiga com quem conversamos tomando café, como “cúmplices/ ela e eu”. Vemos aqui, novamente, a conversação, pelo poema em vozes, sendo essa uma estratégia de riscar as tramas das mulheres na memória literária, dando voz a elas, como vemos na fala da Medusa: “ela diz que agora sonha apenas com o mar/ que seus cabelos são algas e não serpentes”. Vemos também um “passo de prosa na poesia”, como escreve Florencia Garramuño (2014, p. 55) no livro Frutos estranhos,
é esse o passo de prosa – essa espécie de manifestação da tensão entre prosa e poesia, o que coloca em questão a possibilidade ou pertinência de uma definição específica e, portanto, pura e exclusivamente formal desse discurso, o que alguns poemas muito recentes, atravessados por uma forte pulsão narrativa e uma decidida vontade de transgredir os limites do lírico, parecem estar pondo em evidência.
O que também nos chama a atenção é o gênero feminino que marca a voz lírica e narrativa desse poema, como vemos em: “e rimos as duas/ que duas velhas sonhem ainda”. Cena que coloca em diálogo o ensaio de Hélène Cixous, chamado O riso da Medusa. Como escreve Eurídice Figueiredo (2020, p. 72) no livro Por uma crítica feminista, “a autora resgata a Medusa que, segundo o mito, é decapitada pelos homens que se sentem ameaçados por ela. A Medusa é, para ela, ‘uma queer, a queen das queers’, e seu riso é libertador”. E continua: “os homens dizem que as mulheres são monstruosas (como a Medusa), e elas, por conseguinte, sempre tiveram vergonha de seu poder”. Assim, o riso da Medusa liberta as mulheres do medo de se tornarem “monstruosas”, deslocando, como uma forma de poder, os discursos patriarcais.
Na poesia de Ana Martins Marques, as figuras femininas Penélope, Ofélia e Medusa e outras riscam a repetição do estilo mobilizado pelo discurso enunciado sobre o “signo” mulher. Com isso, desestabilizam a categoria como algo fixo, definido e simplificador da performance do feminino. Após séculos de luta, escrita e espera, as mulheres detêm a voz e narram seus diversos pontos de vista. Pelo menos, nos riscos do poema. “É preciso que a mulher se escreva: que a mulher escreva sobre mulher e traga as mulheres à escrita”, afirma Hélène Cixous (2017, p. 129) em O riso da Medusa. E mais adiante: “ato também que marcará a tomada da palavra pela mulher, portanto, sua estrondosa entrada na história que sempre se constituiu em sua supressão” (idem, p. 136).
*
Ao viajar pelos “Postais de parte alguma”, título da segunda seção do livro, nos surpreendemos pelo deslocamento através de lugares subjetivos, “de parte alguma”, problematizados pela memória, pela passagem do tempo, mesmo aqueles que giram em torno de lugares reais, como nos versos de “Praia das Maçãs”: “na manhã seguinte a luz filtrada pelas folhas/ a distância do seu corpo na mesma cama/ e eu que jurei não chorar” (Marques, 2021, p. 50). Em entrevista ao Grupo Matinal Jornalismo (2021), Ana Martins Marques diz que alguns poemas “tratam, de forma mais geral, da ideia de viagem como dispositivo que nos afasta e aproxima dos outros e de nós mesmos”. Pela viagem da leitura dos postais, junto ao sujeito poético, vemos a transformação da passagem do tempo que evidencia os (des)encontros de nós mesmos com outros que seremos ou que fomos:
Fazer as malas é tarefa impossível
aquele que ainda não partiu
tem que colocar na mala
aquilo de que precisará
aquele que vai chegar
(…)
Quem está de partida
arruma a mala
de um desconhecido
(Marques, 2021, p. 49)
A seção “Postais de parte alguma” pode ser lida como uma sequência narrativa, e nos conta sobre as viagens em torno do luto do amor. No primeiro poema, “Turismo”, vemos o encontro com o corpo do outro, tomado como um lugar, uma cidade: “Eu rodava em torno do seu corpo/ como se roda num museu em torno da estatuária” (Marques, 2021, p. 47). No poema seguinte, vemos uma paisagem do luto, do corte, em que o tempo (“estação”) é tomado como um lugar (“serralheria”): “Nunca é fácil/ abandonar o que se ama/ vê: toda estação/ é uma espécie de serralheria/ aqui se cortam/ pessoas ao meio” (idem, p. 48). E mais adiante, no poema “Jet lag”: “a memória é agora o lugar/ diário dos nossos/ únicos encontros” (idem, p. 54). Nessa poesia, a memória é percebida, poeticamente, como um lugar onde habitamos.
Não nos cabe, aqui, analisar todos os poemas que compõem essa sequência narrativa, mas reconhecer que a poesia de Ana Martins Marques apresenta um hibridismo textual e discursivo em que há uma interseção entre enunciação lírica e narrativa. Trata-se de um recurso recorrente em sua poética, como vemos nos poemas que compõem a seção “Cartografias”, em O livro das semelhanças, por exemplo. Em entrevista ao blog da Companhia das Letras, Ana Martins Marques (2021) diz: “sempre tendi a pensar nos meus livros também um pouco assim, mais na chave da continuidade do que na ruptura”. Estratégia que possibilita articular fios de leitura entre diferentes poemas, seções temáticas e livros da autora.
*
Em “Noções de Linguística”, terceira parte do livro, “as línguas são meios/ de viagem, são meios/ de transporte as palavras” (Marques, 2021, p. 65). Os deslocamentos se encaminham em torno das questões da linguagem, da língua, como também retomam a dimensão da interlocução, que “é fundamental para a linguagem, que é, antes de tudo, o nosso jeito de estar juntos (perguntar, responder, ouvir, entender, conversar, participar do mundo com outros seres)”, diz Ana Martins Marques na entrevista mencionada. Como vemos em:
Seu filho hoje aprendeu uma palavra
seus ossos dormem crescendo
em breve andará com firmeza
saberá a ciência do chão
em breve a língua tomará
conta dele
vai emudecer o mundo
moldar seus pequenos dentes
em breve a língua será a mãe
mais do que você é a mãe
(Marques, 2021, p. 61)
O insólito é construído, aqui, com a personificação da língua materna em uma mãe que “obriga ao abrigar” (Marques, 2021, p. 62), a partir do deslocamento do sentido conotativo da expressão idiomática “língua-mãe” para um sentido literal. Assim, vemos, literalmente, a língua viva. Os deslocamentos também percorrem questões da tradução, como diz Ana Martins Marques em entrevista ao Grupo Matinal Jornalismo (2021): “na tradução está em jogo uma espécie de travessia entre línguas, que é também um jeito de ‘atravessar’ até o outro”, como em:
por exemplo
alguém traduziu um poema
e introduziu nele um vulcão
que não havia no original
por causa da métrica ou da necessidade
de uma rima
alguém acrescentou num poema um vulcão
que antes não existia
(…)
(Marques, 2021, p. 72)
*
Os poemas da última seção, “Parar de fumar”, atravessam o tema da morte do hábito de fumar, como anuncia o título. E, ao mesmo tempo, são atravessados pela metalinguagem, como em: “O que fazer agora/ com as mãos/ cegas? // o cigarro é parente/ do lápis” (Marques, 2021, p. 95). O gesto de riscar, aqui, acende, inflama e apaga a palavra como um fósforo, como também vemos nos versos do poema “Fiat Lux”:
(…)
No momento do atrito
a luz se fez o fósforo se foi
(…)
Seu nome acende-se
e extingue-se no instante seguinte
como se alguém subitamente apagasse a luz da varanda
(Marques, 2021, p. 107)
A chama implícita do nome, subitamente, se consome, se apaga, como o fósforo, como a luz da varanda, imagens da transitoriedade da vida, da lembrança rumo à morte, ao esquecimento. Segundo Octavio Paz (1994, p.7), a chama é “‘a parte mais sutil do fogo, e se eleva em figura piramidal’. O fogo original e primordial, a sexualidade, levanta a chama vermelha do erotismo e esta, por sua vez, sustenta outra chama, azul e trêmula: a do amor”. E se refere à dupla chama da vida como erotismo e amor. Assim, em um outro sentido para o que é sólido e durável, essa efêmera corrosão também pode ser lida como uma imagem do processo de morte de um amor líquido (Bauman, 2004), como também da morte de um desejo aceso em “seu nome” e consumido, inutilmente, em si mesmo.
Em entrevista ao Jornal Rascunho, Ana Martins Marques (2021) nos conta: “acho que o cigarro é um objeto literário, entre outras coisas, porque nos coloca em contato com o fogo, mas também, provavelmente, por sua relação com a morte”. Assim, na sua poesia, o gesto do “riscar” nos coloca às voltas em torno de paisagens porosas que deslizam do apagamento (morte, silêncio, sombra) à chama (vida, palavra, lembrança), do fim ao reinício, como vemos no último poema do livro:
Encerramos afinal nossa aventura
eu e tu
e eu, que mais de uma vez temi
que com ela também a poesia se encerrasse
(seria talvez necessário agora
riscar todos os meus versos
com a palavra cigarro)
e no entanto
no transporte público no supermercado
num guichê no meio de uma tarde
qualquer
ela – a poesia – parece estar de volta
quando menos se espera
e sem que se tenha a certeza
de que é mesmo ela
(Marques, 2021, p. 114)
O que fica em sua poesia é o fluxo, o efêmero, o tempo. Como escreve Marcos Siscar (Siscar, 2016, p.15), “estamos incessantemente de volta ao fim, ou seja, às voltas com o fim, em conflito sobre que nome dar àquilo que teria acabado, sobre o que significa de fato chegar ao fim”. Assim, “estamos o tempo todo reinventando nosso lugar, um lugar no qual a visão da catástrofe não faz nenhum sentido, a não ser na medida em que nos permite imaginar outros tipos de começo”. Nesse entrelugar, vemos de volta “ela – a poesia” a riscar formas abertas às travessias.
* Juliana Gelmini é doutoranda em literatura brasileira (UERJ) e atua como pesquisadora-bolsista da Capes. Sua pesquisa investiga a poesia contemporânea de Ana Martins Marques, Angélica Freitas e Marília Garcia. É mestre em literatura brasileira (UERJ) e licenciada em letras (UFRJ). Atuou como professora temporária do Colégio Pedro II e do CAp/UFRJ. É autora do livro de poesia Insólito sólido (Patuá, 2017).
Referências
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GARRAMUÑO, Florencia. “Mesa 1: Novos procedimentos da crítica hoje”, in Leituras do Contemporâneo: Literatura e Crítica no Brasil e na Argentina. Projeto Poesia, ficção e crítica. 2021. (2h53s). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=udbQH-UX2eE&t=3999s>. Acesso em: 30 de ago. 2021
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LEMOS, Masé. Marcos Siscar por Masé Lemos. Rio de Janeiro: EdUERJ (Ciranda da Poesia), 2011.
MARQUES, Ana Martins. Risque esta palavra. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.
MARQUES, Ana Martins. O livro dos jardins. São Paulo: Editora Quelônio, 2019.
MARQUES, Ana Martins. O livro das semelhanças. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
MARQUES, Ana Martins. A vida submarina. Belo Horizonte: Scriptum, 2009.
PAZ, Octavio. A dupla chama. Trad. Wladir Dupont. São Paulo: Siciliano, 1994.
SISCAR, Marcos. De volta ao fim: o “fim das vanguardas” como questão da poesia contemporânea. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2016.
STEINER, George. Linguagem e silêncio: ensaios sobre a crise da palavra. Companhia das Letras: São Paulo, 1988.
SÜSSEKIND, Flora. Até segunda ordem não me risque nada: os cadernos, rascunhos e a poesia-em-vozes de Ana Cristina Cesar. Rio de Janeiro: 7Letras, 2016.
VERNANT, Jean-Pierre. Mito e pensamento entre os gregos: estudos de psicologia histórica. Trad. de Haiganuch Sarian. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
MARQUES, Ana Martins. “Um escudo contra o caos e a morte”, Rascunho: o jornal de literatura do Brasil. Entrevista concedida a Bruna Meneguetti. Publicada em set. 2021. Disponível em: <https://rascunho.com.br/entrevista/um-escudo-contra-o-caos-e-a-morte/>. Acesso em: 30 de ago.2021.
MARQUES, Ana Martins. “Prêmio Oceanos: ‘O livro das semelhanças’, de Ana Martins Marques”, Prêmio Oceanos. 2016. (1min11s). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=MReAm-i-hlA&t=9s>. Acesso em: 30 de ago.2021.
[1] Ensaio que faz referência a uma frase dos cadernos de Ana C.: “como mote de uma aproximação da poesia de Ana Cristina Cesar exatamente via rascunho, burburinho. E às vezes literalmente via rabiscos, desenhos, riscos”, escreve Flora Süssekind (2016, p. 55). O que chama atenção nesses projetos de rascunhos de Ana C. é que essa ordem antirrisco se contrapõe sobretudo a “sua desejada limpeza aos riscos e correções dos diários-de-escrita a que pertence” (Süssekind, 2016, p. 55). Além disso, contraria, de certa maneira, a “ironia prévia, lançada em Luvas de pelica: ‘Quando você morrer os caderninhos vão todos para a vitrine da exposição póstuma. Relíquias’” (idem, p. 55-56).
[2] Em minha dissertação de mestrado, As paisagens da memória: uma leitura da poesia de Ana Martins Marques, trato do diálogo entre as poéticas de Ana Martins Marques e Ana Cristina Cesar.
[3] A fala de Ana Martins Marques faz referência aos livros escritos em parceira: Duas janelas (Luna Parque, 2016), com Marcos Siscar, e Como se fosse a casa: (uma correspondência) (Relicário Edições, 2017), com Eduardo Jorge. Também faz referência ao seu primeiro livro, A vida submarina (Scriptum, 2009), relançado este ano junto com Risque esta palavra, ambos pela Companhia das Letras.
Quando Marilene Felinto pariu Rísia, ela estava ainda na primeira metade de seus vinte anos. Rísia me esperou no tempo, menos por querer e mais pela perversa estrutura racista do solo em que nascemos. Eu estava então na casa dos 30 – Marilene, se não erro as contas, nas dos 50 – quando a encontrei e alinhamos nosso sentimento de existir por entrelugares. Um certo meio-fio que encorajou Rísia a percorrer os territórios sinuosos da sua infância na busca por um mapa que a levasse de volta para casa. Trajeto de elaboração de lutos tantos que um “mundo doído demais” provocou. Eu, também em ânsia por “um mundo consertado”, pude me ver refletida no Abebé devir das Mulheres de Tijucopapo (Felinto, 2019). Essas irmãs guerreiras que cavalgam pelas eras e rasuram interdições, amazonas nordestinas que sob as frondosas árvores da ancestralidade nos ensinam sobre o amor. Ou ainda sobre uma ternura preta que, como Calila das Mercês bem analisou, nada tem a ver com docilidade ou submissão (Das Mercês, 2021). Recife-SãoPaulo-Recife-Tijucopapo, eis a jornada de deslocamentos tantos que Rísia empreende, sendo o retorno à cidade de sua mãe uma busca por sua origem. A escrita que se segue, em seu processo de refundamento da linguagem que me narra, se faz em trânsito e em companhia de Rísia, que me convoca a retornar àquele Juazeiro do Norte, cidade de minha mãe, que tanto me moldou, mas onde, quiçá, eu nunca tenha efetivamente estado.
Nessa encruzilhada de tempo-espaço-pertencimento, a tessitura literária em afluxo me lembra como ritualmente, anualmente, o pouco pão, o pouco leite e o muito trabalho se convertiam no mágico bilhete da Itapemirim. Era então aquele alvoroço. Esforço por fazer caber um tantim da cidade louca numa caixa grande. Se o carnê permitisse, ia também uma televisão. Presente que dependia de choro e súplica para adentrar o bagageiro do ônibus sem taxa extra. Se não desse, a televisão ficava, “voltava pra trás”. Éramos três numa única poltrona. Desafiávamos a lei da física numa proposição de fórmula que compreendia as vistas grossas dos motoristas e a disposição dos passageiros jovens e solitários que, solidários, topavam percorrer de pé algum breve trecho da longa viagem, enquanto aquelas meninas – minha irmã e eu – tiravam um cochilo em seus assentos. Mas eu gostava mesmo era do corredor. Aquele calorzinho do motor e o treme-treme da estrada sob a camada perfumada da manta que minha mãe estendia. Meu corpo novo não sentia desconforto na contagem dos quase três mil quilômetros em frações de horas que se dividam em causos e confissões, músicas e programas de rádios, confusões por causa do volume das músicas e programas de rádios, reclamações por conta do mau cheiro do banheiro ou da cachaça de algum passageiro e o degustar de doces ou biscoitos que, na volta de alguma das paradas, nos eram oferecidos pelos adultos.
Era estranho, mas, de repente, a gente parecia uma família. Eu admirava o modo como minha mãe falava com aquelas pessoas, era como se as conhecesse desde sempre. E isso se intensificava na noite de vigília que marcava a metade da viagem, a noite em que ninguém dormia por medo de o ônibus ser parado e assaltado. As rezas preenchiam o silêncio daqueles já conhecidos e perigosos caminhos e eu me sentia muito protegida pela presença dos meus novos companheiros. Se o sol nascia, a gente estava vivo, as caixas grandes e televisões sacudindo no bagageiro e as economias dos últimos meses – ou anos –, agarradas nos bolsos, meias e calcinhas, eram motivo de alívio e festa.
Me animava, especialmente, a expectativa de reencontrar minhas primas, amigas e as vizinhas de vó. Cantigas novas, correr na rua e pular trancelim. Que demais o trancelim, pena que ninguém conhecia em São Paulo. As meninas de lá riram de mim quando eu cheguei na escola com o elástico na mão, “que estranha essa filha da cearense”. São Paulo, “a terra dos rotos, arrotos e onde se toma um guaraná inteiro”, diria Rísia, a terra das barbies e dos tamagotchis, acrescentaria esse meu eu-criança. O fim de férias e o retorno para Pauliceia doía mais do que qualquer marca de guerra que a infância congela.
Já o momento de uma chegada em Juazeiro tinha o passar do tempo, com seus grandes ou pequenos intervalos, transfigurados no crescente número de sapatos ou na novidade de um sutiã. Será que minhas antigas amigas iam me reconhecer? Acho que no meu pequeno coração de criança, filha mestiça de migrantes nordestinos, a falta fez morada cedo e, nessas muitas idas e vindas, ela quase que sumia quando o motorista anunciava: “última parada antes do Cariri”. Pronto! A senha estava dada e de repente o ônibus parecia uma comitiva de gala, as expressões gastas se revestiam de luz e as roupas cansadas davam lugar aos trajes aprumados, óculos de sol, relógios, batom, tudo aparecia de repente nas caras e corpos daquela gente – e em mim também! De algum lugar do ônibus, começava a exalar um cheiro novo, de despedida, que, no entanto, era apaziguado pelo preenchimento da fabulação compartilhada e enunciada em alto e bom tom sobre quem estaria à nossa espera na rodoviária ou sobre que comida seria oferecida em nossa recepção.
Naquele ano, minha mãe completava 20 anos de migrância, empreitada sofrida e não escolhida de se refazer e gerar família na terra dos outros. Ela tão jovem foi levada pelo irmão um pouco mais velho. Meu tio Antonio. Triste destino o dele, morrer como carona num acidente de carro, ter enterro em solo estrangeiro… Minha mãe precisou encarar sozinha a vida nessa voraz boca de lobo e em pacto de fé jurou não deixar a memória desse meu tio vagando em solidão por entre os prédios e avenidas opacos. Ficou para fazer companhia ao que já não estava. Mas ela evitava olhar por esse retrovisor e, perto do ponto de chegada daquele nosso itinerário-de-de-vez-em-quando-dá, ela cantava e falava: “Minha terra estou chegando, obrigada, Padim Ciço”.
Na rodoviária, o vínculo profundo que os três dias de viagem gestaram entre nós passageiros da Itapemirim verteram-se em trocas de telefones e promessas de reencontro. Já em casa, o abraço da minha tia e a benção da minha avó confirmaram que a expectativa cultivada era real. Estávamos de volta, nossa terra, nossa casa. O piso fresco de terra batida, o pote d’água, a mesa dos santos – à espera da Renovação. Em pouco tempo, a sala foi ocupada pelas presenças das crianças da rua e primas que se achegavam pela porta aberta, sem precisar pedir licença, e, curiosas, me olhavam, mas mantinham certa distância. Minha garganta se fez em nó, os olhos ficaram grandes e pulsantes com a velocidade acelerada do coração. Do alto de meu desejo de abraçá-las e de ser abraçada por elas, contudo, cai ao ouvir o cochicho entre risos: “Que estranha essa paulista”. Não era aquela minha terra e minha família? Esvaziada, evoquei meus companheiros da viagem e senti falta do calor de pertencer àquele ônibus grande e amarelo.
No Juazeiro do Norte da minha infância não encontrei Tijucopapo, mas fui iniciada no mistério de compreender minha constituição de lama. Rísia com sua ciência de percorrer estradas, anos depois, me oferendou um punhado de vocábulos e sentidos, que, muito embora não sejam capazes de refundar essas experiências-memórias, conferem a elas uma dimensão partilhada e de lastro antigo, profundo. “Era uma noite, uma vez, minha mãe nasceu no meio de um pântano. Num sertão de lama. Mulheres como a minha mãe trazem a sina das que desembestam mundo adentro escanchadas em seus cavalos, amazonas, defendendo-se não se sabe bem de quê, só se sabe que do amor” (Felinto, 2019, 72).
Enquanto tento acompanhar o galope de minha mãe, que ainda pendula na busca por referências de seu existir, eu me valho do amor que pude provar no meu ofício com as letras. Amor que abranda a incontornável – e dolorosa – rasura da origem e me coloca ao lado de Rísia e de muitas outras narradoras e personagens. Em meu encontro com a literatura de autoria negra e indígena, reconheci a minha herança, assentei em minha montaria e iniciei a viagem que tem nessa grafia, como em tantas outras que me brotam, uma instável, mas amorosa, parada.
* Fabiana Carneiro da Silva é neta de Amada e de Quitéria, filha de Lourdes, mãe de Imani e de Yeté. Oleira da palavra-corpo. Tece um caminho que alinhava docência, pesquisa e ações artísticas no campo dos saberes contra-hegemônicos, sobretudo a partir do eixo constituído por literatura, corpo e experiência comunitária. Doutora e mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP), atua como professora adjunta no Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Autora do livro Ominíbú: maternidade negra em Um defeito de cor (EDUFBA,2019).
Referências
DAS MERCÊS, Calila. “Movimentos e (re)mapeamentos de mulheres negras na literatura brasileira contemporânea”. Tese. Universidade de Brasília, 2021.
FELINTO, Marilene. As mulheres de Tijucopapo. São Paulo: Edição da Autora, 2019.
Um fim de tarde, saindo para fazer compras em meu bairro em Paris, encontro uma amiga e vizinha que, como eu, é também pesquisadora no CNRS (Centre national de la recherche scientifique). Anne-Sophie é bióloga, enquanto eu sou física, e nossos filhos se conheceram na escola pública do bairro, a algumas ruas dali. Depois de trocarmos algumas notícias sobre eles, como é de praxe, e termos brevemente contado uma à outra os próximos shows e exposições aos quais planejávamos ir, nossa conversa se dirigiu naturalmente ao trabalho, pois temos, todas as duas, o mesmo empregador: o centro nacional de pesquisas francês, instituição pública multidisciplinar de pesquisa. Temos a sorte de sermos funcionárias públicas e ganharmos um salário que nos permite viver fazendo unicamente pesquisa. No entanto, a situação na França evolui de forma similar a outros países, tendendo ao que chamamos do “modelo americano”: hoje em dia nossas pesquisas são basicamente financiadas por projetos que nós, pesquisadores, devemos escrever em resposta a editais e, na maior parte das vezes, devemos prometer resultados precisos e espetaculares que nenhum profissional sério pode ter certeza de obter. Devemos igualmente colocar em evidência nosso talento nato, genialidade e nosso brilho pessoal, embora todos saibam, mesmo que lá no fundo, que a pesquisa é um ato inerentemente coletivo e que não existe ciência sem debate contraditório e participação da comunidade. Além disso, ao escrever tais projetos, devemos utilizar, em um penoso exercício de estilo, um linguajar administrativo incompreensível que é frequentemente associado à novafala do mais que célebre livro 1984 de George Orwell. Quando comparada aos Estados Unidos, onde esse modelo de pesquisa já é, desde muito tempo, utilizado, sendo assim considerado “normal”, a França tem a desvantagem de dispor de um orçamento bem inferior a esse país, o que se justifica, sob certo ponto de vista: ela emprega, no CNRS e na Universidade, assim como em outras instituições de pesquisa, muito mais pesquisadores permanentes – i.e., com um emprego fixo – que os EUA, e seus gastos com salários são superiores. Enxugar essa massa faz parte do projeto do atual governo francês, assim como dos governos precedentes, uma iniciativa começada entre 2003 e que ganhou força em 2007 com o que foi chamado de projeto de autonomia das universidades.
Voltando ao encontro com minha amiga, ele se desenrolava, como eu dizia, como sempre, e deveria se concluir com nós duas detalhando nossas respectivas últimas peripécias para conseguir enviar projetos dentro da data-limite, nossas frustrações com alguns colegas e com a baixa taxa de aceitação dos mesmos projetos, e algumas conquistas nossas, obtidas às custas, em seu caso, de horas de sono perdidas e, no meu, pela autoimposição de uma disciplina semimilitar na gestão de meu cotidiano pessoal e familiar. Não tenho tempo para poder perdê-lo. Já um pouco nervosas, pois esse tipo de conversa nos lembrava do tanto que ainda tínhamos a fazer depois das compras e que não tínhamos então mais tempo a perder, nos preparávamos para nos despedir. No entanto, esse mesmo desconforto e ansiedade nos desviou do fim esperado de nossa conversa e quase ao mesmo tempo, em uníssono, perguntamos uma à outra: “Mas você leu o último jornal do CNRS?”. E caímos juntas na gargalhada, rindo de nós mesmas. O CNRS publica mensalmente um jornal com acontecimentos científicos considerados marcantes e, desde há algum tempo, seguindo a tendência contemporânea, decidiu que seria uma boa ideia exibir igualmente perfis de pesquisadores considerados notáveis, dignos de visibilidade. Criou-se então uma seção do tipo Caras no jornal da instituição científica mais importante do país. Ora, se todos o fazem, se todos gostam, qual seria o problema? Afinal de contas, pesquisadores também são humanos! O perfil desse mês era o de uma pesquisadora em matemática. Excepcional. No entanto, o que ela dizia – segundo o jornal, ela era a boss – nos fazia nos sentir particularmente imprestáveis nesse dia – e nossas sacolas de compras não ajudavam em nada. Essa pesquisadora, uma mulher, em carne e osso, de verdade, acumulara prêmios durante toda a carreira e conseguia manter, ao mesmo tempo, uma atividade como violoncelista semiprofissional. Além disso, ela era magra, ainda jovem, católica, rica, e mãe de seis filhos. Seis. Ela testemunhava, de forma categórica: “não, ser mulher nunca foi para mim uma desvantagem”, completando em seguida: “fazer pesquisa não é mais fácil para homens que para mulheres”. E nós, eu e Anne-Sophie, quando vimos isso, lemos isso, vendo seu brilho nos vimos também brilhar… mas o que brilhava, o que se tornava evidente, era nossa incapacidade, nossas limitações, nossas lacunas, nossos buracos onde entramos. Nossos buracos, embora negros, brilhavam, e fortemente. Eles nos cegavam e, depois da matéria, não vimos mais nada além deles. Sim, essa mulher e seu perfil no jornal nos confirmavam: nossos esforços foram, são e serão, para sempre, vãos. Nós nunca seríamos como ela – aliás, nós nem queríamos – e nossas incapacidade e dúvidas nos condenavam a avançar, mas sem direção. Nós provavelmente não iríamos nunca a lugar nenhum além do supermercado para onde nos dirigíamos naquele momento. Não tínhamos ganhado, nenhuma de nós duas, prêmio algum. O número de filhos que temos não preenche nem a mão do mestre Yoda. Nós não éramos boss de ninguém e em lugar nenhum e não sabíamos tocar nenhum instrumento. Tentávamos, e a duras penas, poder de vez em quando ir a algum show. Nós éramos, nós somos e nós seremos, para sempre, incapazes. “Nāo, mas isso não é grave”, nos dirão alguns. Não temos nada a temer. “Alguns nascem para árvore, e outros para grama”, como dizia meu avô. Sim, podíamos nos conformar, tudo está na natureza. Quando aos mais malvados, eles nos acusariam de sermos invejosas. Mas não, pois não era ela a questão, nós não queríamos e não acreditávamos no modelo dos cientistas boss. O problema éramos nós, nós mesmas. Era toda a nossa vida, o sentido da vida de pesquisadoras obscurecidas.
Foi também mais ou menos nessa época que Antoine Petit, presidente do CNRS, tomou ares de naturalista e se apropriou dos ditos do sociólogo Herbert Spencer, um dos inventores da ideia de “darwinismo social”, declarando que apenas alguns pesquisadores seriam “naturalmente selecionados” no sistema competitivo de pesquisas. O trabalho de Barbara Stiegler, filósofa também no CNRS, traz uma resposta à altura a esse tipo de provocação feira pelo presidente de nossa instituição, baseando-se nos trabalhos de John Dewey e na reapropriação feita por Walter Lippmann do trabalho de Spencer. Stiegler explica, entre outras coisas, o mau uso das teorias de Darwin nesse contexto. Um de seus argumentos, que vale a pena ser exposto aqui ,embora de forma bastante resumida, é que as doutrinas neoliberais se apropriam erroneamente dos princípios científicos utilizados, pois a seleção natural não trata da adaptação passiva de um grupo de indivíduos a uma ordem imposta par outrem – como é o caso no CNRS e na política neoliberal, onde a ideia de uma “mão invisível” conduziria a sociedade em um caminho inevitável, modelando assim os indivíduos para aceitarem e se adaptarem ao capitalismo levado até suas últimas consequências. A seleção natural é exatamente o contrário, e se caracteriza pela criação coletiva, colaborativa e comunicativa de um sistema adaptativo reorganizado como um todo e de forma horizontal em permanência. A ideia de Petit, como bom manager neoliberal contemporâneo, era fazer com que a maior parte dos pesquisadores se sinta excluída e pertencente ao grupo dos não selecionados, de forma a nos incitar a lutar sem escrúpulos por um lugar ao sol. Que essa seja nossa escolha ou não, que nós façamos parte daqueles que o presidente Macron chama “les mauvais” ou nāo, o fato é que, não podíamos negar, eu e Anne-Sophie, pelo menos, em meio a tais agressões e incertezas, ainda tínhamos sorte. Nós somos funcionárias públicas pagas para pesquisar, e ainda podíamos nos sustentar e fazer compras em nosso bairro parisiense. O CNRS emprega cada vez menos pesquisadores, mas segue ostentando uma posição de poder, saber e riqueza quando comparado ao resto do mundo. Tínhamos sorte de ainda podermos ser simplesmente pessoas que andam na rua e dispõem de algum tempo para nossos filhos, para o lazer, para não nos preocuparmos tanto assim com essa luta e ainda sim gozarmos de certo reconhecimento profissional. Mas tudo indica que isso mudará. Que os pesquisadores serão cada vez mais raros, e cada vez mais expostos, como a boss. E, em breve, a disputa pela visibilidade será tal que, ao vermos um pesquisador cruzar a rua, nós lhe perguntaremos: “Mas você é cientista? Como pode? Nunca ouvi falar de você!”, como tornou-se normal dizer aos que se dizem artistas. Dois lugares somente são reconhecidos: o dos “selecionados”, que ocupam o lugar do gênio, ainda que por alguns segundos apenas, e o dos que vivem no ostracismo ao qual são condenados os que não estão sob os holofotes. Mas a ciência não se faz sob holofotes… ela é caminhar no escuro. Ela é avançar, às cegas.
Paulina
Invisíveis? Não, as mulheres não são invisíveis. Que benção seria ser invisível! Quem não adoraria? Pois quem diz “invisível” diz também: livre. Anônima. Ser ninguém. Irreconhecível. Personne. Invisibility is a super power, como nos ensina Banksy. Ser invisível é ser livre de não viver toda hora sentindo medo de tudo o que se faz, medo de ser julgada, de ser notada, de não fazer o que se deve ou como se deve, de não agradar, de não estar no lugar certo, de não estar na hora certa, nem tampouco na hora convenientemente errada… Esse medo, que é para mim uma constante, que faz parte de meu cotidiano, quer chova quer faça sol, e, ainda que depois de mais de quarenta anos sobre a Terra eu tenha conseguido esquecer por vezes um pouco desse medo, o desconforto sempre permanece. Ele está por perto, guardado em algum lugar, talvez no fundo do bolso ou do armário, como um amuleto ou uma cicatriz que eu tateio, espio. Algo que eu nunca esqueço, e que se faz sempre lembrar. Não tem o que se fazer: eu receio ser notada. Ser invisível, que felicidade isso seria! Pois, sendo invisível, eu decerto não hesitaria por longos segundos, como sempre faço, antes de falar, de abrir minha boca – essa pequena boca, ridícula, por onde sai um fio de voz fina, meio gaga, falsete, e que carrega minhas parcas opiniões. “Como é que é? Fale mais alto, não ouvi direito”: não se diz isso a quem é simplesmente invisível. Quando sabemos que somos invisíveis, não passamos horas tentando reformular pensamentos e fingimos expressá-los o mais naturalmente possível, mas sempre temendo dizer algo que conduza irremediavelmente a uma conversa dinâmica e animada entre pessoas que parecem se entrosar tão bem e se entender sem esforços a um silêncio constrangedor. “Mas… aonde mesmo ela quer chegar? O que é que ela quer dizer?” Não, tudo o que eu queria era ser invisível, fazer parte daqueles que se entendem sem nem precisar se falar, por códigos e olhares imperceptíveis que os unem tais fios invisíveis – sim, eles, sim, são invisíveis – e naturais. Ah, como eu queria, como eles, fazer parte da paisagem. Dos prédios. Do urbanismo. Do mobiliário.
Ao contrário disso, cá estou eu, evidente, e sempre um pouco deslocada. Deslocada no tempo, no espaço. Deslocada desse tecido invisível que naturalmente me exclui ou, a duras penas, e sempre de forma bem visível, me inclui.
Visíveis, sempre notadas, percebidas, julgadas, visíveis, sempre visíveis, não só visíveis como expostas, disponíveis. Despidas. Como nesses sonhos em que nos damos conta subitamente que viemos de pijama para escola e todos nos olham, sem que consigamos sair dessa situação. Trata-se de um sonho de alguém que é visível, bem visível. Visível, mas impotente. Desprovida de qualquer sentido que nos conecte e nos dê controle sobre o mundo exterior. Visível, mas cega, surda, muda. O que pensamos, sentimos, vemos e ouvimos conta pouco. Mas devemos permanecer visíveis pois é assim que precisam de nós.
Essa história de visibilidade não é a mesma da boss da matemática, mas a de Paulina Solas, personagem principal da peça A Morte e a Donzela, de Ariel Dorfman. Na peça – que deve ser distinguida do filme homônimo dirigido por Polanski, pois esse foi modificado pelo roteirista em um aspecto essencial –, Paulina reconhece o homem que a torturou havia anos, quando ela foi presa na época da ditadura. O que há de formidável na peça é que a vítima o reconhece ouvindo sua voz e sentindo seu cheiro, pois havia sido torturada e estuprada tendo sempre seus olhos vendados. Por causa disso, seu marido não acredita em seus sentidos. Além de tudo, ele a considera fragilizada e traumatizada por esse episódio trágico de sua vida passada. Sem a prova da visão, sem o reconhecimento visual, o acusado nega naturalmente seus crimes, desacreditando igualmente Paulina e criando uma cumplicidade com o marido, ambos convencidos da loucura da mulher. Não, não podemos nos fiar em nosso olfato ou nossa audição depois de tanto tempo, sobretudo quando se trata de uma mulher reconhecidamente atormentada. Era verdade, Paulina teve a vida destruída pelo ocorrido, e ela não o tinha visto. Mas ela foi vista. Vista, tocada, manipulada, violentada, sempre com os olhos fechados, e ao som da obra se Schubert, “A Morte a donzela”, que dá o título à peça. Paulina não viu, e o que ela vê, depois de tantos anos, o que ela diz, não se crê. Ela é emudecida. Paulina não tem nada de invisível, mas, quando ela é vista, ela é vista como louca, impotente, incapaz de acusar um torturador estuprador. O que ela viveu, sentiu e ouviu não vale. Paulina é surda, é ensurdecida.
E é assim, nuas em publico, deformadas e deformáveis, que nós nos tornamos visíveis. Que nós nos transformamos em pequenos seres frágeis duvidando de nós mesmas, tentando em permanência nos corrigir, nos apagar, disfarçar, nos desculpar por existir, por sermos nós mesmas. E usamos nossos sentidos, sim, mas para nos adaptar, para enganar a eles mesmos, para nos parecermos com o que querem que pareçamos, para obedecermos. Nos tornamos visíveis como nos querem ver. Nossos olhos são vendados quando se desviam em direção à família, aos nossos corpos, ao olhar masculino e, recentemente à soma de tudo isso coroada com a ideia de força e sucesso. De ser uma mulher apesar de ser mulher. De exemplo. E essa visibilidade torna igualmente visível aquelas que veem brilhar em si mesmas – iluminadas pelo que se quer tanto mostrar –, o que elas não são, ou nunca serão. Para que umas brilhem, outras têm que se afastar, trabalhar por elas, ser também visíveis, mas se mostrar sem voz, sem olhar, sem escuta. Não é culpa de ninguém, é assim mesmo. É a seleção natural, que fez nossos olhos de forma que só algumas cores sejam visíveis. E as outras, são como Paulina.
Os buracos
Tling! Nova mensagem Whatsapp. É minha irmã. Ela pergunta: “Viu isso?”, e segue o artigo “A mulher responsável pela primeira foto de um buraco negro”, e a foto:
Sim, eu tinha visto “isso”. Mas quis provocá-la um pouco e perguntei, com uma leve ironia: “Você fala do buraco ou da moça?”. “Dos dois!”, ela me responde. Katherine L. Bouman, ou Katie Bouman, poderia praticamente dispensar apresentação: seu nome e seu rosto rodaram o mundo depois que foram divulgadas ao grande público as primeiras imagens feitas de um buraco negro – imagens que ela contribuiu para reconstruir, em abril de 2019. Formada em engenharia informática, Katie trabalhava na época para o MIT (Massachussetts Institute of Technology), uma das maiores instituições científicas mundiais, e fazia parte de um grupo de quase duzentos pesquisadores que estavam envolvidos nesse projeto, como ela mesma explicou desde que sua foto tapando a boca diante do buraco foi divulgada em um post no Twitter do MIT. O MIT faz parte de um consórcio científico colaborativo mundial chamado EHT (Event Horizon Telescope) que reúne outras instituições envolvidas no recolhimento e processamento de uma quantidade literalmente astronômica de dados provenientes de detectores espalhados por toda a Terra e que são usados na produção de imagens de um buraco negro. Como a radiação (sinal luminoso) emitida por buracos negros é invisível a nossos olhos, parte do processo inclui a atribuição de cores artificiais, visíveis para nós, humanos, ao sinal recebido pelos detectores.
Chegando ao trabalho nesse mesmo dia, encontrei meu colega de sala em alvoroço. Ele também olhava, radiante, para a foto de Katie e seu buraco com um misto de admiração e ternura: “Essa foto é magnifica. Seu olhar, sua maneira tímida de tapar o sorriso, suas mãos… parece uma menininha…” É, decididamente Katie estava em todas. Ela era um sucesso. E, além de tudo, é jovem e pudica. Dizer que eu não estava nem aí não pegaria bem. Mas enfim, o que ela esconde com suas mãos? Por que ela se esconde? Eu não sei, mas ela, de fato, pelo menos na foto, parece ser uma boa moça. No entanto, alguns dias depois, aparece outra foto no Twitter:
Ah, Katie, agora você mostrou suas pernas! E o sorriso! A boca está bem aberta e as mãos só tapam um joelho, deixando o outro bem à mostra. Ela está bem sexy em sua minissaia. Sim, sim, não há dúvidas, a foto mostra que pesquisadoras em ciências exatas podem também ser mulheres sedutoras e usar trajes provocadores diante de homens sérios de terno, ora bolas! Afinal de contas, uma mulher é uma mulher, e ela pode se mostrar. Poderosa! Ela pode ser “ela mesma”, e se ela gosta de trajes curtos, qual é o problema? Não é porque ela é pesquisadora que deve se vestir mal, onde já se viu, temos que acabar com essa imagem ou menininhas não se interessarão nunca por ciência! Eu mesma quantas vezes não me vesti como mulher-pesquisadora-que-se-veste-como-mulher-sexy-pra-mostrar-que-as-mulheres-pesquisadoras-podem-sim,-elas-também,-se-vestir-como-mulheres-mesmo-sendo-super-pesquisadoras,-mas-elas-não-o-são-(super-pesquisadoras)-só-porque-se-vestem-assim-não!-claro-que-não-elas-o-são-porque-elas-merecem-de-verdade-e-sua-maneira-de-se-vestir-também-não-é-pra-mostrar-que-elas-são-mulheres-é-porque-elas-gostam-de-verdade-mesmo-e-na-verdade-elas-nem-tinham-pensado-em-nada-disso. Pois talvez elas sejam, sim, mulheres fatais e sexy além de serem pesquisadoras. Ou não? Ou será que elas se vestem assim só pra mostrar que elas podem ser pesquisadoras e também se vestir como mulheres fatais? A questão persiste… e ela pode parecer sem importância, mas acreditem: nós, mulheres pesquisadoras, passamos horas pensando nisso. Como me vestir quando vou dar uma conferência, ou assistir a um congresso? Sexy ou não? Puta ou não? Chique ou descontraída? Moderna ou conservadora? Que imagem eu quero dar nesse meio essencialmente masculino (na minha área, somos 10% apenas de mulheres)? Na idade de Katie, isso pode colocar em jogo nosso futuro não só profissional – se a roupa fizer sucesso, pode nos ajudar a descolar uma vaga na mesa dos “grandes” no conference dinner – como pessoal: segundo um estudo feito em 1999 e que confirma a intuição de todos que já participaram de uma conferência de física, 45% das físicas mulheres têm maridos físicos, enquanto só 6% dos homens são casados com colegas. “Natural”, poderiam nos dizer, “se considerarmos que há mais homens que mulheres em física”. No entanto, empregos nessa área altamente competitiva são raros e muitas vezes demandam sacrifícios de um dos parceiros, tais como o abandono da carreira, uma mudança de área ou a aceitação de postos precários ou menos reconhecidos e bem pagos para evitar a separação do casal. Ora, adivinhem quem, em geral, se encontra nessa posição? Ainda que não se observasse essa tendência sexista, o fato de haver uma porcentagem maior de mulheres pesquisadoras expostas a esse risco já faz com que a situação profissional de mulheres físicas seja mais frágil e precária e que suas carreiras sejam menos produtivas e prazerosas.
É, eu devo ser mesmo muito conservadora… pois não consigo deixar de ver caindo da boca do senhor à direita de Katie, encantado com a jovem, um fio de baba, como a que sai da boca do lobo mau ao ver se aproximar a Chapeuzinho Vermelho na floresta. Mas deixemos Katie tranquila. Deixemos também tranquilas todas as mulheres de sucesso, as mulheres exemplares, as mulheres-boss, a mulheres que nos servem de imagem, mas de imagem de mulher vencedora como um homem, feita pelo o homem e para o homem. A imagem criada por mulheres vencedoras é, no fim das contas, como a imagem de um grande homem: como ele, elas precisam de outras mulheres, daquelas que afirmam suas dificuldades e fracassos sobre os quais se apoiam as “excepcionais” para fazer brilhar ainda mais sua glória. Graças às outras mulheres, a “outras”, às “más pesquisadoras”, às perdedoras, às medíocres, elas podem dizer que são mulheres, sendo vistas assim como quase melhores que os homens. E é claro, quem pensa assim são os homens, são aqueles que as incluem e por quem elas querem ser incluídas. Quanto às outras mulheres, elas podem lhes fazer reverência – assim como aos homens – e sonhar em, um dia, ou em outra vida, talvez, serem como as que têm sucesso.
Mas a história das mulheres e de seus buracos negros invisíveis que se tornam visíveis não para por aí. Pois, com um olhar completamente diferente do tweet do MIT que mostra o buraco ao lado de Katie, o cartunista Chappatte também celebrou a primeira visão de um buraco negro em sua caricatura publicada no jornal satírico francês Le Canard Enchaîné em sua edição de 17 de abril de 2019. O cartunista escolheu, no entanto, um outro ângulo para falar de visibilidade feminina, e colocou lado a lado uma outra mulher e o anel, um outro anel e o buraco, um outro buraco negro e um anel que brilha, visível. Dessa vez, a legenda diz: “A Origem do Mundo, versão 2019” e, embaixo, o desenho do quadro pintado por Courbet em 1886 e do buraco negro M87*.
No que se refere à física, Chappatte faz alusão provavelmente às teorias que associam o Big Bang – “grande explosão” que deu origem ao Universo conhecido – a um processo inverso, a formação de um buraco negro. Assim, na origem de nosso Universo, teria havido um outro, passado, e que um dia teria colapsado em um buraco negro que, em seguida, teria explodido, sendo esse último então a “origem do mundo”. No que diz respeito ao outro buraco… bem, o buraco feminino mostrado por Chappatte substitui o de Katie mostrado no Twitter do MIT – a boca aberta, surpresa, que ela tenta esconder. Chappatte desenha o quadro que mostra o sexo de uma mulher anônima, incompleta e brilhantemente invisibilizada. Podemos mesmo nos apropriar das palavras de Yehuda Salfati pensando a circuncisão e usá-la no contexto de toda transformação: tornar algo perfectível, ou seja, ainda mais sensível à noção de infinitude, passa por um ato de supressão. Por mais estranho que possa parecer, terminar não é adicionar, mas retirar.[1] Assim, de uma vagina aberta Courbet retirou o rosto, e o resto do corpo, e retirando o que é em geral visível, o que é em excesso, estranhamente, ele mostra. Não só o que quer mostrar, mas, como é o caso em grandes obras, também a nós mesmos. Trata-se, aliás, de um exercício interessante e engraçado, passar alguns momentos na sala do Musée d’Orsay onde é exibido o quadro. Podemos ver desfilar timidamente diante dele admiradoras e admiradores. Alguns fingem indiferença – com uma reação parecida com a que têm certas pessoas ao encontrar pessoas famosas –, outros tentam mostrar, de maneira para lá de desajeitada, uma falsa intimidade e tentam reprimir de maneira evidente e pouco hábil a atração exercida pelo quadro. Finalmente, há ainda aqueles que simulam interesse puramente artístico e posam com um ar sério e estudioso diante do quadro, travando uma batalha interna para esconder sinais de prazer e curiosidade por trás de uma aparente observação pretensamente técnica e estética da obra. É verdade que o quadro prima pela riqueza de detalhes e não precisamos descobrir por que razões – sociais, pessoais, traumáticas, ou ainda sexuais –, mas é, de fato, muito difícil olhar para o quadro sem sentir vontade de tocá-lo, lambê-lo, cheirá-lo. Ele excita nossos corpos por completo, e raros são aqueles que se sentem realmente à vontade diante do que ainda incita tanta curiosidade por ser ainda tão desconhecido da maior parte. Mulher sem mulher, essa é a mulher de Courbet: seus cortes a preenchem.
A foto de Katie nos mostra exatamente o oposto. Se, no final das contas, boca e vagina não são assim tão diferentes, a imagem de um rosto sem vagina acaba se tornando o contrário de uma vagina sem rosto. O desenho de Chappatte coloca ao lado do buraco o inverso – em forma, fundo e imagem – do que mostra a foto tuitada: dois extremos opostos de uma mulher, rosto/vagina, parte alta/parte baixa, identidade/anonimato, origem/finalidade, reclusão/visibilidade, instante/duração, escondido/exibido… e tantos outros. Ver a foto de Katie no Twitter nos dá confiança: a ciência é positiva, ela produz frutos visíveis e ao lado dela caminha uma mulher de sucesso, uma mulher como queremos, que tem objetivo e direção. Ela passa uma mensagem clara sobre onde está, e esse lugar é onde todos querem que ela esteja, mostrando-se como deve. Por vezes tímida e casta, por outras moderadamente sexy e sedutora, de forma a agradar velhos senhores sérios de terno sem no entanto os ameaçar. Ela não pousa de pernas abertas como a mulher de Courbet. Ela é um exemplo. E, de quebra, ela serve para mostrar que o MIT reconhece o valor das mulheres, sim, nossa instituição as valoriza, elas também! O consórcio científico que levou a essa imagem é mundial, mas a Katie é nossa, nós somos os mais legais, e não se esqueçam de comer cinco frutas e legumes por dia.
E o fim
O buraco negro está então, nessa guerra de imagens, bem onde deveria: singular nos dois extremos – que eles sejam físicos, anatômicos, artísticos, temporais ou ainda outros – se encontra o buraco negro. Ele vai para além do visível e do invisível e é, ao mesmo tempo, os dois. O buraco negro é um horizonte. Ele nos lembra que vemos o que queremos ver e que nosso olhar – a luz – pode ser desviado, guiado e apropriado de forma a só ver a imagem – ou ainda a imagem da imagem. Lembremos que uma parte do trabalho de reconstituição de sua foto passa pelo fato de atribuir cores no espectro visível que não correspondem à radiação que ele emite. Suas verdadeiras cores foram assim adaptadas a nossos olhos, a quem o quer ver… mas visível ou não, e mesmo que nós não o vejamos, ele existe. Ele pode existir. Ele existirá.
J’écris de chez les moches, pour les moches, les vieilles, les camionneuses, les frigides, les mal baisées, les imbaisables, les hystériques, les tarées, toutes les exclues du grand marché à la bonne meuf. Et je commence par là pour que les choses soient claires : je ne m’excuse de rien, je ne viens pas me plaindre. Je n’échangerais ma place contre aucune autre […] Je trouve ça formidable qu’il y ait aussi des femmes qui aiment séduire, qui sachent séduire, d’autres se faire épouser, des qui sentent le sexe et d’autres le gâteau du goûter des enfants qui sortent de l’école. Formidable qu’il y en ait de très douces, d’autres épanouies dans leur féminité, qu’il y en ait de jeunes, très belles, d’autres coquettes et rayonnantes. Franchement, je suis bien contente pour toutes celles à qui les choses telles qu’elles sont conviennent. C’est dit sans la moindre ironie. Il se trouve simplement que je ne fais pas partie de celles-là.
Virginie Despentes, King Kong Théorie.
* Pérola Rodrigues Valle Milman é doutora em Física pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2000) e atualmente é pesquisadora no Centre National de la Recherche Scientifique.
Algumas referências e links
Bourcier, S. Homo Inc.Orporated, le Triangle et la Licorne qui Pète. Cambourakis, 2017.
DORFMAN, Ariel. La Jeune Fille et la Mort. Actes Sud-Papiers, 1997.
EMMA. Des princes pas si charmants et autres illusions à dissiper ensemble. Massot Editions, 2019.
FERRANTE, Elena. L’amie prodigieuse, livros 1 a 4. Gallimard, 2011.
FOUCAULT, Michel. “Pouvoir et savoir”, Dits et Écrits II. Gallimard, col. Quarto, 2001 [1994].
[1] No original: “Rendre perfectible, c’est à dire encore plus sensible à la notion d’infinitude, passe par un acte de retranchement. Aussi étrange que cela paraisse, achever n’est pas rajouter, mais retirer.”
* Julia de Souza nasceu em São Paulo em 1986. Estudou Letras na FFCH da USP e é mestre pelo departamento de Literatura Brasileira, com estudo sobre a obra de Hilda Hilst. Como poeta, publicou: Covil (7Letras, 2013), Gigante vermelha (7Letras-Megamini, 2016) e As durações da casa (7Letras, 2019).
Apoiamos as mãos na pedra e, como num lance, pulamos o muro. Sem acreditar que já estávamos do outro lado, abaixamos sutilmente pra perceber alguma diferença entre os mundos. O medo quando chega no limite vira bicho. A sensação de morte que o medo causa petrifica os corpos, emudece os sujeitos, os transforma em objetos, em estátuas, mas no medo também há respiro. Parece que a pele afina, os órgãos internos despertam e o corpo fica mais sensível à adrenalina. Do outro lado do muro, a casa produzia um fascínio curioso. Ao redor e mesmo dentro da casa, era presente uma série de esculturas femininas de granito e bronze. As esculturas figurativas, combinadas com o abstracionismo da casa, pareciam habitar em certo silêncio. Alguém poderia dizer que era a própria maldição de Perseu contra a Medusa, mas talvez fosse algo totalmente diferente. Próxima à pedra que fundia a arquitetura a sua geologia local, descansavam algumas esculturas: duas vassouras e um barril de lixo, um torso de mulher e uma mulher recostada; uma sem os braços, outra sem pernas e um leve véu esculpido na nudez do tronco. Fomos dançando ao redor destes objetos cindidos, nos relacionando com cada curva enquanto eu filmava em movimento. Estar ali trazia uma sensação de profanação de algo, mesmo que silenciosamente, mesmo que longe das vistas. Nina se movimentava milimetricamente, devagar e no silêncio espelhando seus movimentos aos da escultura, dando continuidade ao que fora interrompido ou petrificado. Assim como o branco da arquitetura, o branco das vestes aos poucos era sujado com os musgos e liquens que habitavam há anos aquelas curvas. Dançar com as estátuas era libertador, parecia que dava vida àqueles seres forçosamente inanimados, evocando uma outra presença de corpo.
*
A casa patriarcal
Projetada pelo arquiteto Oscar Niemeyer nos anos 1950 e construída entre 1951 e 1953 no Rio de Janeiro, quando a cidade ainda era a capital do Brasil – entre 1763 e 1960 –, a Casa das Canoas foi a residência do arquiteto por seis anos com a sua filha Anna Maria e a mulher Annita, antes de ir para Brasília acompanhar a construção da nova capital do país. Uma pesquisa preliminar da casa se manifesta por uma série de características que deram nome e reconhecimento internacional ao autor: sensualidade e erotismo materializados pela beleza das formas curvas e orgânicas da mulher, bem como da paisagem natural do Rio de Janeiro.
A relação entre musas amorosas e natureza não é fortuita. A natureza foi, ao longo de séculos, continuamente associada ao corpo virginal feminino doador do amor. A representação da mulher, por exemplo, na pintura de paisagem na França do século XIX uniu os conceitos de natureza, mulher, maternidade e o feminino “natural”. No romantismo brasileiro de influência europeia, a pintura A Carioca (1882), do artista Pedro Américo (Paraíba, 1843-1905), discípulo do pintor francês Dominique Ingres, é um exemplo possível. A relação entre a mulher pura, de pele alva e lustrosa, o vasilhame escorrendo água, a sensualidade e mesmo a sexualidade mascarada, evocam a construção da feminilidade moral associada à natureza igualmente pura e fértil. A representação através da horizontalidade dos corpos de arquitetura, natureza e mulher nos croquis de Niemeyer reforça esse paradigma.
Mas, se a sensualidade das curvas de Niemeyer evocou a mulher como paisagem ao associar corpo e natureza, por outro lado perpetuou uma opressão contra corpos feminizados, confinando-os ao seu sexo e meios reprodutivos. Nesse sentido, o amor é materializado por uma heterossexualidade compulsória, como em “O Poema da Curva”, um dos seus mais conhecidos escritos:
Não é o ângulo reto que me atrai,
Nem a linha reta, dura, inflexível criada pelo homem.
O que me atrai é a curva livre e sensual.
A curva que encontro no curso sinuoso dos nossos rios,
nas nuvens do céu,
no corpo da mulher preferida.
De curvas é feito todo o universo,
O universo curvo de Einstein.
(O. Niemeyer)
No entanto, a enunciação do amor como uma façanha cultural remonta à Antiguidade. Eros, o deus do Amor na cultura grega, foi elogiado por Platão no seu conhecido diálogo O Banquete, escrito em 380 a.C. O Amor foi construído através de diversas narrativas e discutido pelos homens, entre os homens, uma vez que as mulheres eram excluídas dos debates coletivos. As leituras de Eros de Platão podem aprofundar a compreensão de como a modernidade de Niemeyer perpetuou e traduziu seus afetos. Eros, quando encarnado por sua modernidade, assume vestimentas universalizantes e masculinistas desencarnadas de afetos, corpos, gêneros ou sexualidades múltiplas. A arquitetura desempenha um papel fundamental em perpetuar essa divisão sexual em binarismo e tornar o gênero e a sexualidade funções invisíveis dentro do mecanismo construtivo da modernidade.
Dentro do campo da Arquitetura Moderna, em 1917, Le Corbusier publicou seu manifesto Por uma Arquitetura, onde expôs a ideia de uma casa como uma máquina de morar, que teve enorme influência no modernismo brasileiro. Porém, no campo fora do domínio da razão, o tropicalismo sensual moderno atribuído primordialmente à obra de Niemeyer, que encantou seus contemporâneos, evidentemente surge de um ethos epistemológico que abraça a modernidade dentro de um sistema fundamentalmente masculino, mascarado de universal. Ao ser cunhado com o título de herói nacional da arquitetura – característica que acentua, para além do solipsismo através de uma masculinidade egocêntrica, o valor de arquiteto demiurgo –, fica a dúvida sobre a sensualização do modernismo funcionalista, que veio fundamentalmente de uma matriz europeia branca, masculina e patriarcal.
O patriarcado, como lembra Gerda Lerner, é uma criação histórica formada por homens e mulheres em um processo que levou cerca de 2.500 anos para ser concluído, baseado na comercialização da sexualidade feminina e na transformação da mulher em um recurso encantado pelas diferenças de classe, que, segundo ela, se expressa em termos de gênero. As próprias mulheres se tornaram um recurso adquirido pelos homens. A arquitetura não poderia ser indiferente ao sistema sexual vigente, a ponto de podermos chamá-lo de a casa patriarcal moderna.
O papel desse modernismo tropical não contemplou o erotismo patriarcal apontado pela objetificação dos corpos femininos, que se tornou hegemônico em um lugar de construção de uma identidade nacional. Sua construção discursiva, imagética e ideológica pode ser percebida no encontro de mídias a partir da exposição do escultor mineiro Alfredo Ceschiatti, em 1956, na Casa das Canoas.
A exposição
Realizada em um lugar diferente dos locais habituais de exposição de arte e reunindo as obras de Alfredo Ceschiatti – um artista conhecido pelas esculturas a serem assentadas nos prédios de Niemeyer –, essa exposição tomou o interior e os jardins da Casa das Canoas. A mostra foi publicada na quinta edição da Módulo: Revista de Arquitetura e Artes Visuais do Brasil, da qual Niemeyer foi editor-chefe, para comemorar seus cinco anos, e as fotos expostas na revista foram tiradas por Marcel Gautherot, fotógrafo francês radicado no Brasil que teve papel fundamental na documentação das imagens de uma modernidade nacional. Começando a circular no ano da posse do presidente Juscelino Kubitschek (31 de janeiro de 1956), a exposição e a publicação são arquivos importantes para se considerar o projeto de um corpo moderno e público que contraria a noção da casa como domínio privado.
A casa foi dividida em níveis que separam dialeticamente o que é revelado e o que é secreto. Enquanto os espaços compartimentados de intimidade são ocultados pela nova topografia da casa no subsolo, o desenho livre do piso térreo, sustentado pelos espaços de sociabilidade, torna-se palco desse grande cenário construído. Esse espaço torna-se um dispositivo voyeurístico de exposição, tanto de uma feminilidade construída exposta pelas esculturas figurativas, como das formas livres da arquitetura. Dentro disso, há uma tensão entre a exposição de um corpo sensual e nu, na esfera pública, e o controle do corpo, na esfera privada. Isso fica evidente pelos fragmentos registrados e escolhidos para aparecer na Revista Módulo. Acentuando a dominação patriarcal presente na modernidade, a casa se revela na visão de um amor heterossexual não só idealizado como violento, em que o espaço de sociabilidade é dado pela transparência e abstração das formas de uma feminilidade branca e etérea. Dentro disso, a visualidade da casa aponta para uma evidência subjetiva do ponto de vista do arquiteto sob um senso platônico de feminilidade e amor.
Portanto, não é só a arquitetura que tem um papel de sedução por meio de um mito importado de feminilidade, mas também as esculturas. Nessa edição da revista, foram sete esculturas em destaque: Acrobatas, Liliane, Banhista, Galo, Peixe, As Três Graças e Torso de Mulher. Críticos brasileiros contemporâneos podem ter apontado a importância dos nus femininos, seus “corpos voluptuosos e sexualizados” (Guerra, 2016), sua função de adorno, a mulher e sua função única de agradar aos universos masculinos ou mesmo o pacto entre homens, que tinha nas esculturas femininas um acordo comercial. Nesse sentido, a cultura do fetiche oferece um paralelo com a cultura da mercadoria presente entre os séculos XIX e XX. Repensando o uso fetichista do corpo feminino como operação formal na arquitetura, é imprescindível repensar os parâmetros culturais entre o feminino como corpo natural e como mercadoria, principalmente porque a arquitetura em um contexto capitalista a torna marca registrada de uma cultura, um corpo publicitário. Isso é especialmente importante quando Niemeyer conta em seus livros de memórias que foi convidado por Juscelino para construir Brasília no pós-festa da exposição de Ceschiatti. Com isso, poderíamos pensar que, num contexto político importante, que levaria à construção da nova capital, Brasília, a casa funcionou como um dispositivo de sedução, ou mesmo um mecanismo de sedução política.
Como Judith Butler já apontou, para além de ser culturalmente construído ou de ser um dado natural, o gênero é uma performance social. Para ela, “a distinção sexo/gênero sugere uma descontinuidade radical entre corpos sexuados e gêneros culturalmente construídos”, significando que,
quando o status construído do gênero é teorizado como radicalmente independente do sexo, o gênero se torna um artifício fluido livre, com a consequência que o homem e o masculino podem tão facilmente significar um corpo feminino ou um masculino, e a mulher e o feminino um corpo masculino tão facilmente quando um feminino (Butler, 1990, p.6).
Nesse sentido, vale considerar: como imagens de sedução, historicamente atribuídas à feminilidade, foram usadas nos novos designs da modernidade e permeadas nos circuitos ativos de poder, dominados por homens? Como a arquitetura constrói a categoria de sexo? Como ela performa um corpo com gênero, e quais são os seus impactos no contexto de construir uma identidade nacional? Como essas questões participam no tipo de prazer oferecido quando se olha para a casa, e como elas anunciam fantasias através do poder?
Muito se sabe de Niemeyer construir a sua persona através de anedotas da juventude, sua participação no “Clube dos Cafajestes”, suas experiências sexuais na Lapa, o encontro com as mulheres nas quartas-feiras à noite, as piadas no escritório que dividia com Jorge, Reidy e Hélio na Nilo Peçanha, onde, como ele conta nos seus livros de memória, juntava amigos como Vinicius de Moraes, Carlos Leão, Echenique, Luiz Jardim, Eça, Duprat e Cavalcanti.
Vale lembrar que, no cenário artístico da época, a Bossa Nova era um gênero musical que crescia praticamente no mesmo espaço-tempo da casa – um Rio de Janeiro de 1956. As palavras tão sonoras de “Para viver um grande amor”, de Vinicius de Moraes, expõem os limites desse idealismo:
Para viver um grande amor
Primeiro é preciso sagrar-se cavalheiro
E ser de sua dama por inteiro
Seja lá como for
Há que fazer do corpo uma morada
Onde clausure-se a mulher amada
E postar-se de fora com uma espada
Para viver um grande amor.
(Vinicius de Moraes)
Não muito diferente da canção de amor de Vinicius de Moraes, Niemeyer construiu para si uma máquina de amor. O ser luxurioso e imaginativo, como ele mesmo diz, conduziu-o aos caminhos do “sexo, da invenção arquitetônica e da fantasia” (Niemeyer, 1990, p. 43). O que parece é que a sua dupla persona permite que ele seja o playboy na arquitetura, mesmo que tenha construído uma casa de família para si. O espaço do playboy moderno é o espaço do masculino erótico, do sensual, permissivo e público e posiciona – cenicamente – a vida familiar heteronormativa e patriarcal. Ao construir um aparato erótico, do sentido masculino, materializado na objetificação de um corpo, a arquitetura torna-se a mulher platônica construída para si.
No mito de Dafne e Apolo, é transformando-se em uma floresta que Dafne consegue enganar o inimigo de um abuso. A floresta aqui também atua como uma defesa, um escudo pelo simulacro, pelo próprio caos que ela representa. Esse também pode ser um caminho onde reside a erosão de uma espécie de cultura heteronormativa. A categoria de mulher, ao contrário de um retorno a uma origem, a um ornamento ou a um estado petrificado, é uma multidão performativa contra suas violentas objetificações e afetos, em busca das ainda invisíveis outras formas de amar.
* Mariana Meneguetti é arquiteta interdisciplinar, mestre em Teoria e História de Arquitetura (PUC-Rio) e cofundadora do grupo de arquitetura Entre (Rio de Janeiro). É coautora das publicações 8 Reações para o depois (2019) e Entre: Entrevistas com Arquitetos (2013) e em 2018 colaborou com o Pavilhão do Brasil na 16ª Bienal de Veneza na exposição Muros de Ar. Atua no campo interdisciplinar da arquitetura entre a pesquisa e o projeto.
Referências
BUTLER, Judith. Gender Trouble: Feminism and the subversion of identity. Nova York: Routledge, 1990.
GUERRA, Abilio. Arquitetura e natureza. São Paulo: Brasil 01, 2016.
LERNER, Gerda. The Creation of Patriarchy. Nova York: Oxford University Press, 1986.
NIEMEYER, Oscar. As curvas do tempo: Memórias. 7ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2000.
NIEMEYER, Oscar. “Playboy entrevista Oscar Niemeyer”. Entrevista com Zuenir Ventura. Playboy, São Paulo, número 185, p. 39-58, novembro de 1990.
a primeira imagem do amor veio quando vi minha irmã dormindo
a boca inchada de sono, entreaberta
e o ar através. a ideia de uma ferida que não cicatriza
.
a segunda imagem do amor, aprendi-a com uma planta específica. o artigo falava de certa flor
que repele o toque, e pensei nela entranhando-se, de modo a compor no movimento mesmo
uma nova ordem de vísceras
.
a terceira imagem do amor veio da boca da mãe
melhor não deixar serviço pro dia seguinte, ela dizia; melhor não ir pro quarto dormir
com a cozinha suja
não deixar louça por lavar, resto de nescau nos copos, farelo espalhado pela mesa. tu e tua irmã, também as frutas vocês escondam sempre, cubram com um pano de prato, ponham na geladeira. tem que cuidar, que de madrugada os espíritos vagam com fome, e aí até uma sobra de doce de abóbora na lâmina da faca pode chamá-los a entrar e
comer
essa história a gente ouvia ser contada de muitos jeitos, e eu toda vez reagia com algum espanto. não porque acreditava, isso não, a mãe falava por bobagem, queria a cozinha em ordem, ponto, mas
só o fato de imaginar, conceber que mesmo corpos leves como o ar, fantasmáticos
mesmo eles poderiam ter algo de rente à ternura rastejeira das ratas, compartilhando
o mesmo método na busca
de um fio de vida
.
a quarta imagem do amor, quando me percebi no hábito de erguer corpos débeis à luz:
no café, um plano de água e sal diante dos olhos ─ a cream cracker vazada, prismada pelo
amanhecer
.
a quinta imagem do amor
quando saí de um banho certa vez, nessa época no começo da anorexia, aos quinze anos
o cabelo preso, não tinha lavado; uma e outra mecha caindo no pescoço, e entre elas ramos
azuis, esses tingidos na noite anterior, com papel crepom. eu diante do espelho
e os fios em metileno escorrendo por finíssimos veios d’água. no colo, um pouco
acima dos seios, a trama de tentáculos
(mulher inteira coberta pelo sonho daquela medusa a que chamam “imortal”)
* Mar Becker nasceu em Passo Fundo (RS) e mora em São Paulo (SP). Publicou A mulher submersa (poesia), seu primeiro livro, pela Editora Urutau. Em 2021, A mulher submersa recebeu o Prêmio Minuano, concedido pelo estado do Rio Grande do Sul, e foi finalista do Prêmio Jabuti. Seu novo livro, Sal, tem publicação prevista para o começo do segundo semestre de 2022, pela Assírio & Alvim.
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