Sarah Benson (1978 ̶ ) é diretora artística do Soho Rep – Soho Repertory Theatre – em Nova York, desde 2007. O Soho Rep é um espaço dedicado ao teatro contemporâneo com enfoque em novos autores e cuja proposta é apoiar projetos que não partem necessariamente do texto pronto do autor: por exemplo, projetos de diretores-autores, como Lear de Young Jean Lee, ou de grupos de pesquisa com trabalhos laboratoriais experimentais, como o Life and Times do grupo Nature Theater of Oklahoma. Segundo Benson, o que move seu critério de escolha de artistas para os programas de desenvolvimento de obras no Soho Rep é, além da voz autoral “única” dos autores/criadores, o potencial de teatralidade de seus projetos. Estes devem reivindicar as especificidades do teatro e resistir a uma adaptação fácil a outras mídias. Benson considera importante que o espaço seja usado por artistas contemporâneos com trajetórias já reconhecidas no teatro off-Broadway, como Richard Maxwell, mas também por jovens autores, buscando encontrar essa “voz autoral” através de processos de experimentação e amadurecimento.
Em ocasião de minha pesquisa de doutorado sobre a dramaturga inglesa Sarah Kane, em 2012, estive com Benson para uma conversa sobre a primeira montagem da peça Blasted (Detonado, 1995) de Sarah Kane em Nova York, dirigida pela própria Benson em 2008 no Soho Rep. O trecho transcrito abaixo em versão bilíngue português/inglês, faz parte dessa conversa na qual Benson compartilha algumas soluções cênicas que fizeram parte de seu processo de direção e um pouco de sua visão sobre a peça Blasted.
Obrigada mais uma vez por me receber aqui, no Soho Rep. Esta conversa é muito importante para a pesquisa. Primeiramente, gostaria de te perguntar como você teve contato com a obra da Sarah Kane. Sei que você é da Inglaterra. Você teve a chance de ver algum trabalho dela por lá?
Sarah Benson: Obrigada, Juliana, pelo seu interesse. Bem, eu tive contato com o trabalho dela pela primeira vez quando Blasted foi escrita, acho que em 95 (talvez escrita em 1993 e encenada em 1995). Eu estava no colegial na época e lembro que fez muito barulho na imprensa. As pessoas ficaram indignadas, ficaram furiosas. Estava sendo produzida no Royal Court, que é um teatro subsidiado. Então deu primeira página nos jornais. As pessoas estavam furiosas com o dinheiro público usada naquela peça. Então, a situação estava pegando fogo. Eu li a peça naquele momento e me apaixonei imediatamente, mas, para mim, ela parecia ser realmente sobre a Irlanda do Norte porque era esse o conflito que estava muito vivo para mim naquele período. As nossas escolas estavam na lista de alvos e eu tenho família lá, então era sobre esse conflito que a peça parecia falar, para mim. Eu, na verdade, não vi nenhuma das peças quando fizeram aquele grande festival quando a Sarah [Kane] morreu porque eu já estava fora do país. Então, a primeira montagem que vi de seu trabalho foi a de 4.48 (Psychosis) do James Macdonald, quando veio em um tour para St. Ann’s Warehouse [NYC]. A Marin Ireland estava nessa montagem. E foi a primeira vez que a vi em cena também. Foi certamente muito inspirador ver o trabalho dela aqui. Pouco depois, resolvi chamar a Marin para um workshop de uma outra peça que eu estava fazendo e num intervalo de almoço ela me falou: “Nós devíamos fazer Blasted, Eu quero muito fazer Blasted!”. E, por um acaso, eu estava com uma viagem marcada para a Inglaterra. Então ela me colocou em contato com o Simon Kane, o irmão da Sarah, que é responsável pelos direitos da obra dela. Eu fui para a reunião com Simon esperando ter uma conversa mais de investigação de possibilidades em relação às peças da Sarah. O Simon tinha acabado de se mudar para cá (isso foi antes de eu começar o trabalho no Soho Rep). Ele havia tentado por meses colocar a peça nos teatros principais sem conseguir nada. Então, ele ficou muito entusiasmado com a ideia da peça acontecer aqui. Ao final da reunião, estávamos todos pegando os nossos calendários e planejando um jeito de fazer isso acontecer. Então, foi mais ou menos assim que as coisas se deram.
Marin Ireland foi quem instigou e eu amava a peça. Quando eu voltei [para NY] depois de uma conversa com ela em que combinamos uma leitura já com a ideia de montagem em mente, eu esperava ter a mesma sensação de que a peça era sobre a Irlanda do Norte porque havia sido essa a minha experiência e lembrança da leitura que fiz quando era adolescente. E naquele momento percebi, “uau”, essa é uma peça que, em qualquer momento que eu leio, ela parece ser sobre o agora e sobre o conflito que estiver mais presente. Quando a peça foi escrita, a Guerra na Bósnia foi uma referência para a peça. Mas é realmente sobre conflitos civis. Então esse foi realmente um momento poderoso, quando decidi: “Sim, eu quero fazer isso!”
Você chegou a considerar montar as outras peças da Sarah Kane ou Blasted pareceu ser a peça certa desde o início?
Sarah Benson: Por algum motivo simplesmente pareceu ser a peça certa. Eu também sempre tive vontade de fazer Phaedra’s Love [O Amor de Fedra]. Eu devo montá-la em algum momento. Pode parecer estranho, mas eu sou uma otimista e considero Blasted a peça mais otimista dela. Realmente me apaixonei e quis fazer essa peça.
E quais foram os maiores desafios durante o processo? Li que você chegou a ficar deprimida durante o período de ensaios.
Sarah Benson: Acho que foi o New York Times que decidiu que eu estava deprimida.
[risos]
Ah, então você não [estava]…
Sarah Benson: Eu acho que não… acho que fiquei muito cansada quando estava trabalhando nela. Bem, fiquei doente. Não acho que estava… quero dizer, talvez durante o tempo em que fiquei imersa na pesquisa sobre a guerra civil. O material é muito deprimente. Acho que quando se trabalha em qualquer peça é preciso ficar imersa naquele universo. Foi também um período de estresse enorme em torno de recursos para a produção. Se estivéssemos “sãos” não teríamos topado fazer essa montagem. Então, em termos de produção material foi a montagem mais desafiadora que eu já fiz até os dias de hoje. Foi um grande desafio. Acho que foi tudo isso.
Como foi trabalhar os temas de violência da peça na prática com os atores?
Sarah Benson: Nos aproximamos desses temas de modo muito pragmático. Do mesmo modo que me aproximo de qualquer desafio da ordem da fisicalidade. Primeiramente é preciso criar um ambiente seguro onde os atores sintam que podem fazer o que precisam fazer. Reed Birney tirou as roupas no terceiro dia. É preciso ter uma sala de ensaio onde as pessoas se sintam seguras, então este é o primeiro passo. E, então, honestamente, a questão foi criar formas físicas e trabalhamos com o brilhante diretor de lutas, David Brimmer. Ele me ajudou a encontrar formas trabalhando a fisicalidade dos atores. Coreografamos os atores e eles praticaram como se fosse uma dança até o ponto em que estavam tão confortáveis que, fosse qual fosse a cena, eles estavam muito confortáveis em termos técnicos. A parte da emoção veio depois. E eu não tive que fazer nenhum [tipo de trabalho emocional]. Era apenas trabalhar na peça e os atores traziam essa outra parte. Trabalhar com coisas como a respiração foi importante. Quando entrávamos nas cenas mais intensas, nos preocupávamos em descobrir como fazer a respiração. Foram todas essas coisas que realmente tornaram as cenas plausíveis para mim. Eu acho que a violência não precisa ser abstrata. Por vezes acho que funciona melhor quando estilizada, mas, nesse caso, é preciso ter a sensação de que realmente estava acontecendo na sala, sem ser como num estilo de filme ou TV. Então você simplesmente tem que fazer o mínimo que deve ser feito para desencadear isso, acho. Então eu recuava constantemente quando o diretor de luta apostava numa dinâmica mais sanguinária. Eu refreava muito, mas foi incrível tê-lo [o David Brimmer] porque foi assim [nessa diferença] que conseguimos descobrir como fazer.
Há uma explosão no meio da peça. Como resolveu isso?
Sarah Benson: Então, falando em real abstrato, acho que a explosão é ambos. É uma metáfora, é o título da peça – os acontecimentos da peça são grandes demais para estarem na peça e então a peça quebra, basicamente, formalmente.
Começa como uma peça naturalista e se torna uma série fragmentada de cenas sem nenhuma fala. Então o detonar tem que operar nas duas camadas – na medida em que esse quarto de hotel realista é explodido, a forma teatral também é explodida, a relação entre palco e plateia, até esse momento, é completamente diferente: modifica-se de repente de modo radical e se torna um evento cívico no qual estamos todos ocupando o mesmo espaço. Então, todas essas coisas devem estar contidas na explosão para que de fato funcione. Louisa Thompson, a designer de cenografia incrível que se tornou minha colaboradora há muito tempo, encontrou um modo de captar uma impressão de sensação que se tem na guerra que seria: de repente seu mundo está de cabeça para baixo. Nós olhamos fotos reais para ver como é um quarto depois de uma explosão ou como é a imagem de ruínas e detritos pós bombardeio. Essas imagens não me interessaram nem um pouco porque não conseguiríamos fazer algo assim. Se você quer fazer esse tipo de coisa, faça um filme. O que nós estávamos tentando fazer era captar teatralmente a essência de qual deveria ser a sensação disso, que para mim era ter tudo destruído de um momento para o outro. Então o gesto que finalmente encontramos, depois de passar por, provavelmente, vinte diferentes ideias ruins e imitações dessas ideias, foi basicamente: o cenário estará sobre trilhos. Quando a explosão ocorre, o teto e o chão recuam e tudo o que estava no quarto cai no chão. Para mim, isso de certa maneira captava a violência repentina do ato e isso também realmente espelhava o estupro [de Cate por Ian] que acontece na noite anterior. Isso deveria dar a sensação de violação. E, então trabalhamos em torno dessa ideia para descobrir como viabilizá-la. Toda a equipe de design estava envolvida, especialmente na explosão, que foi uma colaboração entre Louisa, Matt Tierney [o designer de som] – boa parte do que fazia a explosão funcionar era o som ̶ e também a iluminação [por Tyler Micoleau] e eu. Foi uma solução de várias cabeças.
Do que era feito o bebê?
Sarah Benson: Nossa, não consigo me lembrar agora. Nós tentamos tantas coisas diferentes…
Era comestível.
Sarah Benson: Sim, era algum tipo de adereço comestível. Eles experimentaram várias opções de coisas que pareceriam realistas o suficiente para que fosse crível, basicamente.
Como foi a reação do público? Eu sei que tiveram muitas críticas positivas e que ganharam o prêmio Obie. Houve uma resposta de amor e ódio do público, como foi na estreia original da peça?
Sarah Benson: A resposta nos surpreendeu. Eu esperava uma reação muito mais polarizada, o que não aconteceu de maneira alguma. E acho que no período em que estávamos produzindo a peça, no outono de 2008, estava havendo as eleições, a economia estava despencando, e havia um tipo de fragilidade no estado emocional pelo qual as pessoas estavam passando – a peça realmente trata disso. Quer dizer, tivemos algumas pessoas saindo no meio do espetáculo, é claro, mas tivemos uma resposta positiva bem uniforme e forte. Foi realmente incrível.
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Thanks again for having me here. This is really important for the research. Well, first of all, since you are from UK, I was curious about how you came across Sarah Kane’s work and if you ever got to see any of her work back in UK.
Sarah Benson: Thank you, Juliana, for your interest. Well, I first came across her work when Blasted was written, I think in in 95 [perhaps, written in 1993 and staged in 1995]. I was at high school then, and I remember it was like a huge deal in the press, people were outraged, people were furious. It was being produced at the Royal Court, which is a subsidized theatre. So, it was front page of the tabloids. People were outraged that the public money was being spent on the play. So it really kind of caught fire. I read it at that point and I loved it immediately, but it really felt to me that it was about Northern Ireland because that was the conflict that was very vivid for me at that point. Our schools were on the hit lists and I have family there, so that was the conflict that the play seemed to me to be about. I actually didn’t see any of her plays when they did that big festival when Sarah [Kane] died, because I was out of the country at that point. And so, the first production of her work that I saw was James Macdonald’s touring production of 4.48 [Psychosis] at St. Ann’s Warehouse [NYC]. And Marin Ireland was in that show. And that was actually the first show I’d seen her in as well. So it was definitely very inspiring to see her work over here. Soon after that, I decided I wanted to cast Marin for a workshop of another play I was working in at the time. So, we were working on this other play, and eventually on a lunch break she was like “We should do Blasted, I really want to do Blasted!”. And I happened to be going over to the UK right after that, so she put me in touch with Simon Kane, Sarah’s brother, who runs her estate. You know, I went into the meeting expecting us to have a sort of very exploratory conversation about Sarah’s plays. And Simon had essentially moved over here – this was before I’ve taken the job here at Soho Rep. He’d been over here for months trying to get the play on, and nothing had happened on the major theaters. So he was thrilled about the idea of the play happening in here. By the end of the meeting we were all getting out our calendars and really thinking a way of making this happen. So that was kind of how it came to be. Marin Ireland was the instigator, and I loved the play. When I went back, after that conversation with her to read it with this idea in mind, I expected it to feel about Northern Ireland because that was my experience, what I remembered reading when I was a teenager, and it seemed about now. So at that point, I realized that, “wow”, this is a play that at any and every point I read it feels that it is about right now and the whatever conflict is the most present. When she wrote it, the Bosnian war was a real jumping point for the piece. But it is really about civic strife. So that was really a powerful moment where I decided: “Yes, I want to do this!”.
Did you ever consider doing other of her plays or did Blasted just feel right?
Sarah Benson: For some reason it just felt right. I’ve always wanted to do Phaedra’s Love as well. And I will do it in some point. I know that this might sound weird, but I’m an optimist and I find Blasted the most optimistic play of hers. And I really loved it and wanted to do it.
And how about the biggest challenges that you faced during the process? I read that you even became depressed while you were working on it.
Sarah Benson: I think that it was the New York Times who decided that I became depressed.
[laughs]
Oh, so you [weren’t]…
Sarah Benson: I didn’t think so. I think I became tired while I was working on that. Well, I got sick. I don’t think I was… I mean, maybe for a period when I immersed myself in research about civil war. The material is very depressing. I think any play you work on, you have to find yourself immersed in that world. It was also a time of enormous stress for us in terms of production resources. If we’d been sane we would not have taken on doing the show. So, in terms of physical production it was the most challenging show we’ve ever done before or since. It was a real challenge. So I think it was all of that.
How was it approaching the violent themes in the work with the actors?
Sarah Benson: We approached those themes very pragmatically. The same as I approach any sort of challenging physical material. First it is about creating a safe room where the actors feel they can do what they need to do. Reed Birney took off his clothes on day three. You need to have a room where people feel safe in and so that was the first thing. And then, honestly, it was all about creating physical shapes and we worked with the brilliant Fight director, David Brimmer. He really helped me shape the physicality for them. It was really about choreographing them and practicing like it was a dance, until it was just so comfortable for the actors that whatever scene it happened to be they were very comfortable in a technical pattern. The emotion kind of came latter. And I didn’t do any of that [emotional approach]. It was just about working on the play and the actors brought that. Working with things like breathing was huge. When we got into very intense scenes we were figuring out how to do the breathing. It was all those things that really made me buy it. I think that the violence has not to be abstract. Often I feel that it works better when it is stylized but, in this case, it had to feel like it was actually happening in the room, without it being like movie or T.V. style. So, you kind of just have to do the least you have to do to pull it off, I think. So I was constantly sort of pulling back, when the Fight director would have much more gory details. I was constantly pulling back, but it was amazing to have him there because that’s how we managed to sort of find it.
There is an explosion in the middle of the play. How did you solve that?
Sarah Benson: So, talking about the real and the abstract, I think the explosion is both. It is the metaphor, it is the title of the play – the events that happen in the play are too big to be in the play and so the play shatters, basically, formally.
It starts out as a naturalistic play and it becomes a fragmented series of scenes with no text at all. So, the blast has to operate both levels – as this realistic hotel room has been blown apart and the form of theater has also been blown apart, the relation between audience and the performer, up to that point had been completely distinct, suddenly radically shifts, and it becomes a civic event where we are all occupying the same space. So all of those things have to be contained in the blast for it to actually succeed. And the thing is that Louisa Thompson, the amazing designer who has become a long time collaborator of mine, she found a way to capture the sense of how war feels. Which is just: suddenly, your world is upside down. We looked at realistic pictures of how a room looks like after it has been blown apart or what post-bomb debris look like. None of those interested me at all, because we can’t pull that off. If you want to do that, make a movie. What we were trying to capture theatrically was the essence of how that must feel, which to me is like everything has suddenly changed instantly. And so the gesture that we finally landed on after probably going through out twenty different bad ideas and imitations of this idea, was basically – the set was on a track – when the blast happened, the floor and the ceiling essentially tracked back and everything that was in the room fell on the floor. To me that kind of captured the sudden violence of the act and it is really mirroring the violation of the rape that happened the night before. That’s meant to feel like violating. And then we worked around that to figure out how to support that. And all the design team was involved, especially on the explosion, which was really a collaboration between me, Louisa, Matt Tierney [the sound designer] – a huge part of what made the explosion work was the sound and also the lights [by Tyler Micoleau]. So it was really a multi-headed solution.
What was the baby made of?
Sarah Benson: God, I can’t remember now. We tried so many different things…
It was eatable.
Sarah Benson: Yes, it was some kind of eatable prop. They tried various things that would look realistic enough that we’d buy it, basically.
How did the audience respond to the show? I know that you got very good reviews and an Obie award. Was there also a love-hate response?
Sarah Benson: The response absolutely took us by surprise. I expected a much more polarizing response which didn’t happen at all. And I think it was the time we were producing the play which was in the fall of 2008 and the election was going on, the economy was falling apart, and something about the fragility and the emotional state that everyone was in – this play literally tapped right into it. I mean, we did have some people walking out of the show, of course, but we had a pretty uniformly strong [positive] response. It was really amazing.
* Juliana Pamplona é autora, diretora teatral e doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas na UNIRIO com a tese Transtornos dramatúrgicos – temas-procedimentos nas peças de Sarah Kane. Foi pesquisadora visitante no departamento de Performance Studies na NYU (New York University, 2012) através da CAPES/PDSE e atualmente é pesquisadora Pós-doc FAPERJ Nota 10 e do PACC na Faculdade de Letras – UFRJ.