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Ana Crelia Dias entrevista Silviano Santiago

 

Ana Crelia Dias: Silviano Santiago é um nome que remete a um ser plural: professor, crítico, ficcionista. De que forma essa pluralidade interfere (ou não interfere) na sua escrita de ficção? E que face desse sujeito múltiplo mais se revela hoje?

Silviano Santiago: Para o escritor, todas as formas de saber e de conhecimento são bem-vindas e benéficas. Por definição, a literatura – tanto a reflexão teórica e a docência, quanto a prática crítica e a criação – é predisposta à multidisciplinaridade, já que o que esteve e está em questão é a condição humana, e não determinado conhecimento disciplinar (no sentimento universitário da palavra) sobre esse ou aquele aspecto da vida social, política, econômica etc., do ser humano em certa nação ou continente. Mais do que um conhecimento (knowledge, para usar a terminologia anglo-saxã), a literatura é portadora de uma sabedoria (wisdom, idem). Seu compromisso fundador – pelo menos nos países do Ocidente – se deu no momento histórico da expansão da tradição filosófica e literária greco-latina. Portanto, aproximações recentes da literatura às disciplinas das chamadas ciências sociais apenas empobrecem seu escopo. Há que tomar cuidado com o verbo empobrecer. Tome, por exemplo, o caso da medicina, muitas vezes o empobrecimento no plano da totalização do conhecimento médico, de que é exemplo o médico generalista, pode redundar num aprofundamento do conhecimento particular, de que é exemplo o médico especialista. Muitas das formas modernas de literatura, ou de crítica literária, repousam no aprofundamento de questões sobre a condição humana que se passam no plano das reivindicações de cunho particular, ou seja, social, político e econômico. Um romance como Vidas Secas, de Graciliano Ramos ou uma coleção de poemas como A rosa do povo, de Carlos Drummond, apesar de mais especializados disciplinarmente, não são menos ambiciosos do que Memórias póstumas de Brás CubasLibertinagem, de Manuel Bandeira. Faço a comparação para acrescentar que chega um determinado momento da avaliação da obra de arte em que o que conta é a genialidade do escritor. Todas as demais teorias bem intencionadas caem por terra.

Falando em particular do romance – um gênero desprovido de poéticas, como dizem os anglo-saxões, um gênero lawless, sem lei, bandido – tudo é permitido e graças a Deus. O progresso do gênero se dá pela transgressão às regras estabelecidas. O GuaraniMemórias sentimentais de João Miramar e Grande Sertão: Veredas são bem ou totalmente diferentes e, no entanto…

Estabelecido esse patamar mínimo para a resposta, acrescento que me sinto muito bem sendo polivalente. E tive a sorte de poder ambicionar a polivalência no momento em que a literatura é julgada como produção de discursos, e não mera expressão em um único gênero da personalidade do autor. Tenho uma boa formação em literatura – isto é, minha curiosidade intelectual foi devidamente satisfeita por determinado conhecimento, determinada erudição –, e o que faço é eleger um dos discursos literários que estão à minha disposição para expressar-me artisticamente do modo que julgo mais conveniente, habilidoso, agradável e convincente.

O discurso reflexivo, por exemplo, requer que o aparato teórico-metodológico adquirido ampare a paciente análise textual a ser feita. O problema é saber se me julgo competente para enfrentar aparato e análise, e movimentá-los com palavras na folha de papel em branco. A experiência didática deu-me a segurança indispensável para tal tarefa. Ela veio de sucessivos experimentos com estudantes em sala de aula. Por outro lado, o exercício do discurso ficcional/poético proporcionou-me um saber que é o de padeiro, ou seja, de quem “já pôs a mão na massa”. Sinto-me, pois, apto a produzir um ensaio. Se dedicar a ele o tempo indispensável à boa realização, publico-o como tal. Não terei vergonha, mais tarde, em juntá-lo a outros e reuni-los em livro, é o caso recente de O cosmopolitismo do pobre.

Ponhamos que tenha elegido o discurso ficcional. Minhas leituras da ficção e da teoria poética no período de formação e as demais feitas no período de exercício da profissão como professor universitário me dão a garantia de ter certo domínio da matéria. Logo depois dos anos 1976, abandonei a análise de romances, contos e poemas, e comecei a trabalhar nos cursos da PUC autobiografias, memórias e correspondência literária – o que se chamou a literatura do eu, recentemente recoberta pelo neologismo autoficção (autobiografia ficcionalizada, ficção autobiográfica). Se quisesse escrever algo nesses gêneros, não me sentiria um escritor espontâneo a pôr em ordem na folha de papel os fatos da vida vivida. Estaria menos próximo de Meus verdes anos, de José Lins do Rego, e mais próximo de Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos. Este se transforma, por assim dizer, em modelo, com tudo o que a palavra contém de positivo (emulação) e de negativo (filiação), que se traduz afinal pela expressão vitoriosa de “a ansiedade da influência” (Harold Bloom). Por outro lado, não posso deixar de viver o momento que vivo. Naquela mesma época, informava-me e me enriquecia com o knowledge, que me chegava através da leitura sobre a realidade sócio-política e econômica do Brasil e da América Latina. Bem lá no fundo da formação, havia a tese sobre André Gide e um paradoxo. Não era ele que dizia que somos mais sinceros quando fazemos ficção do que ao escrever autobiografia? Pois é, misturemos tudo isso numa coqueteleira e teremos o drinque que idealizei, pesquisei e produzi, intituladoEm liberdade, uma ficção. Ainda nessa linha, mas já no novo milênio, senti-me à vontade para aceitar a encomenda da Bem-te-vi e organizar a correspondência de Carlos Drummond & Mário de Andrade. Os laços se atam e se desatam e se reatam. Veja você, por uma questão estratégica posso dedicar-me um ano ou mais a tal ou a tal outro discurso, mas isso não significa preferência. Significa, antes, as contingências da soma de tempo e dinheiro. Um se perde e o outro se ganha. Isso se chama sobrevivência.

ACD: Com uma vasta publicação ficcional e crítica, já poderíamos pensar em ousar a pergunta: qual é a sua grande obra? Por quê?

SS: Pelo rabicho da resposta anterior, você já viu que, em matéria de preferência, sou a favor da obra mais próxima. Por motivos que não vêm ao caso aqui, desde os doze anos de idade fui jogado contra os muros da vida prática. Sobrevivo, trabalhando. Não consigo ser saudosista (ou de maneira brutal: não tenho tempo nem dinheiro para ser saudosista). Tenho memória razoável e com constância revisito o passado. Não tenho prazer em viver no passado nem em revivê-lo no presente. Sigo ao pé da letra a “errata pensante”, de que falou Machado de Assis num de seus romances: “Cada estação da vida é uma edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também, até a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes”. Uma tradução aproximada da metáfora machadiana se encontra no livro de poemas Cheiro forte, e a versão irônica correspondente em De cócoras. No momento, minha grande obra é Heranças, romance que será publicado daqui a dois ou três meses pela Editora Rocco. Aguardo sua leitura.

ACD: Seus textos ficcionais apresentam, especificamente os dois últimos, narradores que se constituem muito mais como antinarradores, dada a reflexão que tecem acerca do processo de criação. Duas perguntas: o que é narrar para você hoje? E o que motiva esse processo de avanço e recuo na narração, muitas vezes até desfazendo o que foi construído: é uma tendência da literatura contemporânea ou é um processo do escritor Silviano?

SS: Respeito sua observação, mas não sei se os chamaria de antinarradores. Em termos de narratividade, performam a ação de maneira semelhante a dos narradores que conhecemos tradicionalmente na ficção ocidental. O romance é narrado de fio a pavio. Tem começo, meio e fim. Os contos são também narrados na integridade da proposta de cada um. O que choca num caso e no outro é o título de cada uma das obras, dicas de novas poéticas da ficção. O falso mentiroso eHistórias mal contadas, respectivamente.

O narrador do primeiro deles perdeu a certeza sobre a própria verdade. Ele constrói ficções dentro da ficção. Estamos acostumados a narradores que têm absoluta certeza sobre o episódio que narram. Quando o escritor (e não mais o narrador) quer passar ao leitor a incerteza do que lhe foi dito pelo narrador X, cria um segundo, terceiro, quarto… narradores. É o caso clássico do filme japonêsRashomon, de Akira Kurosawa, onde temos várias versões para o estupro duma mulher e o possível assassinato do marido. A mesma estória é narrada de quatro ou cinco pontos de vista diferentes, levando o espectador cauto ou incauto a optar por uma das versões ou se naufragar nelas. É o caso ainda de alguns romances de William Faulkner, entre eles e mais sintomaticamente The sound and the fury. O narrador de O falso mentiroso não delega a outro narrador o desmentido da própria palavra. Ele só não tem absoluta certeza sobre a veracidade, por exemplo, duma versão sobre o episódio de seu nascimento (sobre sua filiação, em suma). Em lugar de questioná-la, inventando/propondo um segundo narrador, prefere “inventar” (no sentido de: partir para) uma segunda versão, uma terceira versão. A ficção em estado larvar. Não é o que acontece no trabalho de análise? O trabalho feito por mim é diferente do que acontece no romance de Alain Robbe-Grillet, La jalousie, por exemplo, onde é a lembrança (a memória) do narrador que se julga incapaz de reproduzir exatamente o que aconteceu – veja-se o episódio clássico da centopéia que é esmagada contra a parede. É através do lento trabalho do leitor que se pode chegar a uma decifração (precária, talvez) do episódio A decifração é feita pela justaposição – agora, pela memória do leitor – das diferenças na repetição do episódio. As versões que se repetem do episódio não são idênticas. Não é a somadas semelhanças que traz ao leitor a verdade sobre o esmagamento, mas antes a soma das diferenças – se é que se podem somar diferenças. Como não se podem somar as diferenças, a verdade é um buraco na narrativa. Ao leitor é oferecida umalacuna. A literatura do nada (néant), de que tanto se falou. Minha experiência talvez esteja mais próxima do narrador ficcional beckettiano. Se você resolver o enigma proposto, te dou um doce.

Em O falso mentiroso o leitor pouco pode fazer para ajudar/aconselhar o narrador. Por mais que ele tente justapor/compor as várias versões expressas pelo narrador fica sempre o gosto de cada versão não lhe ter sido bem contada. Não adianta, portanto, reuni-las, analisá-las em conjunto, nas semelhanças ou nas diferenças. Não há buraco, não há lacuna a ser oferecida ao leitor. O mal contado é a essência (se me permite o palavrão) da literatura ficcional.

Já aí passamos para os narradores dos vários contos de Histórias mal contadas. O buraco é mais embaixo, se me permite agora a expressão grosseira, mas feliz. O problema da narratividade (e do narrador) em literatura ficcional é mais complicado do que apresentava o narrador do citado romance. Todas as estórias são mal contadas. Caso não o fossem, seriam chatíssimas e, por isso, deixariam de ser ficção. A graça duma estória está no fato de ser mal contada, competindo ao leitor dar-lhe o significado que lhe escapa. Tradicionalmente – e falo da crítica literária antes do advento da psicanálise – os grandes críticos, aqueles que se destacaram para a posteridade, agiam dessa forma sem terem consciência do que faziam. Em termos analíticos, quero dizer que toda estória literária (e talvez toda narrativa subjetiva, independente do esforço de torná-la artística) parece dizer mais do que aparentemente está dizendo. Isso porque existe um significado latente que é mais poderoso semanticamente do que o significado manifesto. Dou o exemplo mais contundente. Freud ao descobrir que Hamlet era uma história mal contada conseguiu extrair da peça shakesperiana o compromisso da trama com o complexo de Édipo. Sem que o soubéssemos cientificamente, o complexo já estava latente na arte dramática desde a Grécia e o período elisabetano. Depois dessas palavras, talvez se evidencie de maneira mais clara a razão pela qual não me agrada a qualificação de antinarradores para os meus últimos livros de ficção. Deixo claro, no entanto, que não sei o que você entende por antinarrador. Faço-lhe a pergunta.

ACD: O senhor assistiu ao documentário Jogo de cena, de Eduardo Coutinho? Sua obra também faz, em alguns casos, esse jogo entre o real e o ficcional. Em sua opinião, isso é uma tendência da arte em geral?

SS: Não consigo comparar o trabalho ficcional que faço com o trabalho que os documentaristas brasileiros (ou não) realizam. Partimos de premissas muito diferentes – opostas, talvez ? sobre o estatuto da realidade e do real em arte. Estamos mais para o acirrado do jogo entre times diferentes, do que para o empate de dois a dois, ou zero a zero.

ACD: Acredito ser De cócoras sua narrativa de maior nuance lírica, assim como os contos “Ed e Tom”, “O verão e as rosas”, entre outros. O senhor teme sentimentalismos em seus textos? (Que fique claro que não acho piegas nenhum dos textos citados. Ao contrário, eles têm forte aprofundamento lírico e são todos muito bem construídos nesse sentido. A pergunta vem apenas da curiosidade do porquê de não haver muitos textos assim hoje.)

SS: Acreditava que tinha dado a mais plena vazão a um narrador lírico em Keith Jarrett no Blue Note. Será que me engano? Meus livros de ficção anteriores eram muito compostos, trabalhados que tinham sido na cabeça e em sucessivos planejamentos e rascunhos antes de serem trabalhados anarquicamente pelo próprio trabalho de escrita (não há simetria perfeita entre forma imaginada e forma realizada – alerto – mesmo em romances como Em liberdade). No caso de Keith Jarrett deixei que o narrador fosse conduzido pelo andante da música popular norte-americana, sentimental por natureza, pelo improviso que representa o jazz e que o pianista Keith Jarrett representa dentro do improviso no jazz. A letra (the lyrics) da canção não contava, não tinha importância para cada narrador, até mesmo porque estava a escutar um disco instrumental. Contava apenas num importantíssimo detalhe. Falavam todas as letras do amor heterossexual, algo que é consensual na arte popular ou pop. Os contos seriam sobre o amor homossexual. Depois de livro tão trabalhado quanto Stella Manhattan, com personagens tão sofridos na busca da satisfação amorosa (para contraste com o outro livro, veja as inserções poéticas no primeiro capítulo, a ser catalogadas por No money, no fuck, no love), pensei em sublimar as questões propriamente práticas que envolvem o surgimento do amor, e deixá-las serem compensadas pela pobreza/riqueza do sentimento de solidão – dominante em todo o livro. A solidão é o ponto de vista que deixa a descoberto a plenitude da experiência amorosa – paradoxalmente? Qualquer coisa no gênero “esquecer para lembrar”, título de livro de Carlos Drummond. Experimentar o sexo, esquecê-lo para lembrá-lo como amor. O ponto alto da abstração musical do texto escrito está ao meio do livro, no conto “Bop be” (be bob de trás para diante).

Se quisesse trabalhar a letra das canções, o narrador teria que evocá-las. Como se trata de canções muito conhecidas, verdadeiros hits internacionais, pode haver aqui e ali lembranças ocasionais de um ou outro verso. Mas o importante era dar continuidade em palavra ao mistério do improviso de Keith Jarrett (pensava também no “Concerto de Colônia”, dele também). O narrador lírico é, portanto, um narrador em total liberdade (pelo menos para mim), daí também o tom confessional da escrita (se pseudo ou verdadeiro, pouco importa). Certamente, esse é também o caso de De cócoras, onde deixo que meus temas clássicos sejam contaminados pela questão da experiência lírica na tela (o filme Gilda) e a espiritualidade anti-rilkiana (em especial os dois anjos ao final do romance). Minhas narrativas tendem a ser pão pão queijo queijo. Não é o caso do romance em questão e não é o caso do conto “O verão e as rosas” (em segredo, te digo que é uma homenagem a Clarice Lispector). Já o conto “Ed e Tom” escapa ao narrador lírico, pelo menos da maneira que acreditava estar concebendo-o. É um libelo a favor de colega meu, que teve a carreira cortada ainda nos anos 1960 (a não ser o episódio em si, todos os detalhes na caracterização dele foram modificados). Está vendo que nem sempre é bom dar a palavra ao autor. Não é a melhor palavra e muito menos a última. A palavra do autor é semelhante ao andaime, de que se valem os pedreiros para levantar um edifício de apartamentos. Habitado o edifício, qual é o morador que se lembra da importância dos andaimes? Quem se lembra do trabalho incansável e mal remunerado dos pedreiros?

ACD: São muitas as referências do cinema, da literatura, do teatro em sua obra. O senhor acha que um texto que se valha de tais recursos tende à erudição? Isso pode ser empecilho para o grupo que o mercado chama de “leitor comum”?

SS: Toda referência ou alusão é um entrave para o chamado leitor comum (se é que podemos juntar a vasta gama de leitores ingênuos, naïfs, debaixo da única etiqueta leitor comum). A solução para o problema não está em evitá-las. Está antes em torná-las palatáveis, isto é, assimiláveis como uma espécie de alusão a amigo ou a caso notoriamente conhecido, em conversa mole. Se não se pode deixar o leitor entrar na referência ou alusão, há que buscar uma maneira de deixá-lo pelo menos feliz (ou presunçoso) às margens do rio da narrativa. O mesmo problema existe na leitura do poema, como também na leitura do ensaio. No meu caso, quantas referências e alusões me escapam/escaparam ao ler os notáveis ensaios de Jacques Derrida, para ficar com um exemplo? Quantas referências e alusões me escaparam/escapam na leitura de As flores do mal, de Baudelaire, para citar outro exemplo? Apesar de me faltar erudição filosófica ou erudição poética, tenho a impressão de que chego a penetrá-los com relativa segurança. Aliás, acredito que nenhum leitor tem total segurança sobre o texto que lê. Por isso é que relemos os que julgamos notáveis. Há gradações na aproximação dos leitores ao texto, dos espectadores à peça de teatro, ao filme, às obras de artes plásticas. Cada um faz do texto lido o que pode. Às vezes alguém que acredita estar desencavando mistérios num romance está na verdade cada vez mais à flor da pele, a dizer sandices de bom sandeu. Ao passo que um crítico dito impressionista, como Augusto Meyer, flertando aqui e ali com a obra de Machado de Assis, acaba por enunciar verdadeiras pérolas, que até hoje nos encantam e nos enriquecem. Nesse particular, por que não refletir sobre o quinto capítulo de Esaú e Jacó, intitulado “Há contradições explicáveis”. Lá se lê: “Explicações comem tempo e papel, demoram a ação e acabam por enfadar. O melhor é ler com atenção”. Desde que apresentada de maneira palatável, todo bom leitor engole a seco qualquer referência ou alusão.

ACD: A técnica do cinema – a montagem, a direção – encontra na sua obra paralelos estruturais. O senhor lança mão de estruturas muito diferentes de composição a cada texto. O senhor foi crítico de cinema, não foi? Esse recurso estrutural nos romances vem dessa experiência?

SS: Inicia-se lá no Centro de Estudos Cinematográficos (BH), sem dúvida, embora o gosto pela imagem tenha origem mais remota. Já mencionei em entrevistas o fato de que, na infância formiguense, tinha verdadeira loucura pelos gibis. Pelos gibis e pelo cinema que então nos chegava de Hollywood e tratava de temas relacionados à Segunda Grande Guerra (nasci em 1936), eduquei-me como cosmopolita numa cidade interiorana de menos de trinta mil habitantes. Esse tipo de experiência, de experiência da leitura no sentido semiológico do termo, foi trabalhado à exaustão nos poemas iniciais de Crescendo durante a guerra numa província ultramarina, que na verdade faz pendant com Em liberdade e, certamente, com os vários cursos sobre autobiografia e memorialismo que dei na PUC, para não mencionar o livrinho sobre Drummond, que saiu em 1976 na Vozes. O primeiro poema analisado no livrinho é sintomaticamente “Infância”, o segundo em Alguma poesia. Informado isso, acrescento que sempre me senti à vontade na cultura da imagem, tão à vontade quanto na cultura da palavra. Aliás, seria ridículo tentar separá-las em alguém que cresceu e se formou no século 20, o século por excelência da imagem. Como querer ser artista sem freqüentar as salas de cinema e os museus? Como diz ou dizia o mote da revista semanal, “veja e leia”.

É claro que na cultura da imagem cinematográfica é de enorme importância a questão da montagem. Desde cedo, fui apaixonado por ela. Seja pela montagem por atração, cujo teórico maior foi o soviético Eisenstein (há exemplo flagrante dela no romance Uma história de família), seja pela montagem pelo plano-seqüência, cujo grande teórico foi André Bazin da revista Cahiers du cinéma. Tenho dificuldade em aceitar a montagem que se tornou standard nos clipes musicais, ou a montagem pelo recurso à sucessão de close-ups, de que é exemplo a telenovela (devo dizer que Kar Wai faz maravilhas com esta e me causa muita inveja). No entanto, a possível diversidade na composição de meus livros não advém de minha familiaridade com o cinema, ou com as artes plásticas, ou melhor, advém em parte. Advém, antes, de detalhe muito pessoal (quem sabe original) de minha personalidade criadora. Não gosto de repetir o feito. Não gosto de transformá-lo em receita. Para mim, cada obra é um experimento (a não ser confundido com o mero experimentalismo formal). Se por acaso reclamo para mim a condição de vanguardista é porque ponho fé nas graças, mistério e loucura do experimento, à semelhança do doutor Silvana, dos gibis, ou de algum cientista em sofisticado laboratório de pesquisa europeu ou norte-americano. Estou mais perto do doutor Jekyll, ao criar Mr. Hyde, do que da maioria dos nossos escritores que se apegam com unhas e dentes a uma fórmula de romance, ou a um estilo que julgam ser ultra pessoal.

ACD: A formatação de um gênero literário não encontra muita facilidade de adequação em seus textos: eles parecem constituir uma reelaboração do conceito de gêneros. Viagem ao México, por exemplo, promete-nos uma epopéia e transita por diário íntimo, ensaio, biografia e romance. O senhor pensa a arquitetura de um livro com o rigor que se mostra depois da realização?

SS: Tinha pressentido atrás a iminência dessa pergunta. A forma pensada, planejada, posta em rascunhos, não apresenta simetria perfeita com a forma realizada, embora muito daquela esteja nesta. Uma não existe sem a outra, é verdade (a não ser no caso muito especial de Keith Jarrett, onde a forma pensada não existiu, e existiu de maneira mais violenta a correção depois do texto já escrito). Por ser um experimentalista (veja a resposta anterior), não teria sentido que seguisse ao pé da letra as noções de gênero, tal qual expostas nas poéticas. Aliás, atrás também alertava para o fato de que o gênero que elegi com mais freqüência, o romance, é por falta de poéticas e por definição, lawless. Em meus experimentos, procuro levar até as últimas conseqüências esse aspecto do gênero. A tal intensidade levo o experimento, que Heranças, meu último romance, representa o fracasso. Tenta se enquadrar perfeitamente às regras do gênero. Quem vai acreditar? Criei um romance de personagens, com uma dicção realista. No mais, a pergunta está perfeitamente formulada.

ACD: De onde vem o conceito de autoficção de que o senhor fala ao se referir a sua obra?

SS: Desde criança, por razões de caráter extremamente pessoal e íntimo – refiro-me à morte prematura de minha mãe ? não conseguia articular com vistas ao outro o discurso da subjetividade plena, ou seja, o discurso confessional. Não estou querendo dizer que minha personalidade infantil, isto é, meus impulsos vitais e secretos eram-me desconhecidos. Pelo contrário, conhecia-os muito bem. Tão bem os conhecia que sabia de seu alto poder de autodestruição e destruição. Acreditei ter de esconder dos ouvidos alheios a personalidade de menino-suicida e de menino-predador, escondê-la debaixo de discursos inventados (ficcionais, se me permitem), onde eram criadas subjetividades similares à minha, passíveis de serem jogadas com certa inocência e, principalmente, sem culpa no comércio dos homens. Criava falas autobiográficas que não eram confessionais, embora partissem do cristal multifacetado que é o trágico acidente da perda materna. Já eram falas ficcionais e, como tal, co-existiam aos montões. Nenhuma das falas era plena e sinceramente confessional, embora retirassem o poder de fabulação da autobiografia. O dado confessional que poderia chegar à condição plena ficava encoberto, camuflado, para usar a linguagem da Segunda Grande Guerra, então dominante. Não tinha interesse em escarafunchá-lo em público. Os fatosautobiográficos fabulam, embora nunca queiram aceitar a cobertura da fala confessional, visto que se deixavam apropriar pelo discurso que vim a conhecer no futuro como ficcional. O sujeito ressemantizava o sujeito pelo discurso híbrido – o autoficcional. Não estou querendo dizer que não vivia a angústia de não poder articular em público o dado da subjetividade plena, dita confessional. Vivia-o, só que não o exercitava como fala nem o escrevia. Agarrar-me e subtrair-me a essa angústia era o modo vital da sobrevivência do corpo e dos impulsos vitais, era o modo como o discurso autobiográfico se distanciava do discurso confessional e já flertava, inconscientemente, com o discurso ficcional.. Onde mais forte se fazia o sentido da angústia e mais necessária sua subtração era à mesa de jantar ou no confessionário. Fiquemos com este exemplo.

Meu pai não era católico praticante, mas nos obrigava a ser. Segui o catecismo e fiz primeira comunhão. Ia à missa todos os domingos. Aos sábados, diante do padre-confessor de sotaque germânico, no escurinho protegido pelas grades do pseudo-anonimato (morava numa cidade do interior), tinha de fazer exame de autoconsciência e ser sincero ao enumerar e confessar os pecados da semana. Costumava trazê-los escritos numa folha de papel. Uma pitada de paranóia, e acrescento que os pecados eram muitos e, perdão pelo trocadilho, inconfessáveis. Apesar da lista avantajada, não proferia no confessionário uma fala sincera, confessional. Mentia. Ficcionalizava o sujeito – a mim mesmo – ao narrar os pecados constantes da lista. Inventava para mim e para o padre-confessor outra(s) infância(s) menos pecaminosa(s) e mais ajuizada(s), ou pelo menos onde as atitudes e intenções reprováveis permaneciam camufladas pela fala. Essas mentiras, ou invenções autobiográficas, ou autoficções, tinham estatuto de vivido, tinham consistência de experiência, isso graças ao fato maior que lhes antecedia – a morte prematura da mãe ? e garantia a veracidade ou autenticidade. Aos sábados, diante do confessor, assumia uma fala híbrida – autobiográfica e ficcional ? verossímil. Era “confessional” e “sincero” sem, na verdade, o ser plenamente. O menino ao confessionário já era um falso mentiroso, narrava histórias mal contadas. Faço minhas as palavras contundentes de Michel Foucault em A arqueologia do saber: “Não me pergunte quem sou eu e não me diga para permanecer o mesmo: é uma moral de estado civil; ela rege nossos papéis. Que ela nos deixe livres quando se trata de escrever”.

ACD: Loucura é um tema que atravessa sua obra. Existe uma razão para isso?

SS: A razão está num poema de Crescendo durante a guerra numa província ultramarina.

 

Transcrevo-o: Loucura Eram muitos os loucos então: Em cada quintal, Correntes para o acesso. Em cada fundo de quintal, Uma sombra suja, entre árvores, Sombra adulta pastando, Armando arapuca De pegar passarinho. A família o protege E só não o esconde dos íntimos.

 

* Ana Crelia Dias é doutora em Literatura Brasileira. É professora do Colégio de Aplicação da UFRJ e do curso de Especialização em Literatura Infantil e Juvenil da Faculdade de Letras da mesma universidade.

 

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Elogio del acento | de Alan Pauls

Entre mediados de los años ’60 y principios de los ‘70, quién sabe si por moda, vocación de populismo, exigencias de un mercado que todavía merecía llamarse “inteligente” o sólo porque ya entonces lo “sofisticado” nunca tenía tanta eficacia cultural como cuando alquilaba una piecita en el interior del mal gusto, la gran mayoría de los cantantes extranjeros que pisaban la Argentina cantaba en castellano. Estoy hablando de cantantes populares, masivos, que casi no parecían tener existencia fuera de la que les concedían las revistas de actualidad y los dos o tres programas de televisión —Casino Philips, Sábados circulares de Mancera— en los que aparecían como figuras estelares. Hablo de Roberto Carlos, Nicola di Bari, Ornella Vannoni, Gigliola Cinquetti, Salvatore Adamo, Domenico Modugno, Iva Zanicchi. Extranjeros peculiares, habría que precisar, porque en ellos la extranjería —todo un mito de la avidez argentina— era un signo menos de prestigio que de fraterna vulgaridad. No eran norteamericanos, lo que los eximía de la sospecha de condescendencia, de perfidia colonial, que el castellano solía despertar cuando caía en los labios enemigos del inglés —el caso Nat King Cole—; eran extranjeros “menores”, mejor dicho amigables, mejor dicho inofensivos: brasileños, italianos, a veces —el caso Aznavour, el caso Gilbert Bécaud— franceses. Reinaban en festivales sórdidos y espectaculares; eran héroes en San Remo, en Viña del Mar, en Eurovisión, y de ahí, de esos sospechosos podios de la canción romántica, saltaban sin transición a los crujientes altavoces de las disquerías de Cabildo y la calle Lavalle. Eran, casi sin excepción, lo que cierto idiolecto porteño de entonces llamaba, con las intenciones naturalmente más aviesas, artistas mersas, mersones, y cantaban canciones de un amor pegadizo, monosilábico, universal, tan universal que las coreaban con el mismo énfasis idiotizado en Valparaíso, en Roma, en Buenos Aires y en Río de Janeiro. Y sin embargo, cada vez que la canción ganadora de San Remo se ponía a ratificar sus laureles en un televisor blanco y negro del barrio de Colegiales, el mío, la impresión que yo tenía era que esas melodías banales, escritas desde el vamos en la lengua internacional del género romántico, cantadas así, en ese castellano un poco entablillado de extranjero profesional y concienzudo, probablemente adquirido a las apuradas en algún rato libre del vuelo que traía al cantante a Buenos Aires, se convertían para mí en pequeñas obras maestras de la particularidad, objetos musicales únicos que, por más que yo fuera capaz de reprocharles su indigencia lírica, su trivialidad, su untuoso sentimentalismo, y eso menos por mi competencia en materia poética que por el desconcierto que me producía reconocer con quiénes yo, niño de clase media ilustrada, solía compartirlos, con qué vasta porción no tan ilustrada de mi propia clase y con qué vecinos inquietantes, la clase media baja o incluso la baja, representada para mí, por ejemplo, en la señora que trabajaba en mi casa, socia indefectible, junto con mi hermano mayor, a la hora de tararear “Te regalo yo mis ojos”, “La distancia” o “He sabido que te amo” frente al televisor —esas canciones, decía, me producían una fascinación que rara vez encontraba, por más placer que me depararan, en las músicas que por edad o por fracción de clase o por condición familiar me estaban “naturalmente” destinadas. Más o menos al mismo tiempo que yo atravesaba estos trances musicales, Susan Sontag describía y anexaba la provincia perversa del camp al mapamundi de la sensibilidad moderna. Pero lo que yo canturreaba en un sincro perfecto con las bocas móviles de di Bari, Modugno o Salvatore Adamo no eran exactamente las letras, no eran los personajes ni las vicisitudes ni las proposiciones suspiradas del mundo cursi, que, más o menos felices, existían independientemente del modo en que cada uno de ellos las cantaba, sino justamente la mezcla de envaramiento, optimismo lingüístico y torpeza que cada cantante ponía en juego cuando cantaba intraduciblemente versos condenados a atravesar intactos todas las lenguas del mundo. Lo que me hechizaba, pues, era un acontecimiento a la vez técnico, dramático y corporal: una pronunciación, una modulación física. Eso que normalmente llamamos un acento.

Ahora, pensándolo bien, se me ocurre que tal vez cierta emanación camp, un eco que entonces era informe, inarticulable, se filtrara en mi fascinación: la conciencia, en todo caso, de que algo que no estaba del todo bien —algo que infringía sin agresividad pero de un modo inapelable los standards básicos del bien decir, la fluidez, la propiedad— podía ser fuente de un cierto goce. Porque mientras yo mismo, al cantarla, iba iniciándome en esa especie de lengua doble en la que cantaban mis cantantes favoritos, también sentía que el hechizo, aunque incondicional, siempre estaba como veteado por un escalofrío de perplejidad. Lo que estoy escuchando, pensaba, no está bien. No es italiano, no es argentino, no es ni siquiera el cocoliche del sainete: es simplemente una lengua mal impresa, una lengua tallada desde adentro por otra, una lengua afantasmada. Y aunque esa operación de tallado no persiguiera propósitos estéticos sino, en todo caso, comerciales, de ampliación de mercado, sus efectos —la distancia, la opacidad, el notable granulado que le proporcionaban a una lengua que hasta entonces yo siempre había considerado como la mía— eran artísticamente tan estimulantes como los alardes poéticos de los songwriters más irreprochables de la época. Si ni Ornella Vanoni ni Bobby Solo eran responsables del síndrome de extrañeza que producía el castellano contra natura en el que cantaban —lengua-maniquí, contrahecha pero clara, algo rígida y al mismo tiempo, sin embargo, sorprendentemente erótica— es porque el acento no era una firma, una huella digital, sino un tipo de inflexión más bien impersonal, protocolar, mecánica. No: es probable que yo ya no escuchara a Iva Zanicchi; seguramente Roberto Carlos no me decía nada. La obra era el acento; era el acento mismo, no Zanicchi ni Roberto Carlos, el que hacía temblar la trivialidad de lo cantado y me conmovía.

Porque se trata, en efecto, de la emoción, de la máquina de afectos y de afectar que una lengua es o puede ser para el que la habla y la escucha y se piensa en ella. Pero se trata en rigor de una extraña calidad de emoción, una que de algún modo, si se extreman un poco las cosas, podría contradecir incluso las condiciones mismas que cualquier emoción exige para irrumpir y manifestarse. Primero y principal, porque el acento, antes que un énfasis que intensificara un quantum emocional previo, era original y era performativo: el acento fundaba una emoción. Y esa emoción era específica porque actuaba de un modo paradojal, a la vez en la proximidad y la distancia, en la adhesión y la perspectiva, en el reconocimiento y la lectura: el acento producía emoción, sí, pero al mismo tiempo designaba la emoción que producía y la lengua en la que irrumpía. Tal vez suene irrisorio exhumar los archivos de un certamen musical italiano para razonar la posibilidad de una emoción brechtiana, o evocar el ataque o las erres en posición inicial pronunciadas eres o la sonorización de las consonantes sordas de Domenico Modugno para postular algo así como un afecto obtuso, que no se juega en la mímesis, ni en la fusión, ni en el reconocimiento homogéneo, sino más bien en cierto bies, cierto sesgo inesperado donde el afecto es al mismo tiempo una fuerza sensible y un valor, una pasión y —eventualmente— un pliegue de sentido.

Pero si estoy aquí, y si todas estas cosas sobrevivieron hasta aquí y hasta hoy, cuando el tiempo, como hace a menudo con muchas de nuestras perplejidades de infancia, bien podría haberlas disipado sin mayor derramamiento de sangre, es porque creo que esa fase aguda de fetichismo prosódico, alimentada por años de fast food musical ítalo-argentino, argentino-brasileño, italo-argento-francés, brasileño-franco-argentino, etcétera, coincidió y se acopló, de una manera probablemente decisiva, con una intuición que, aunque contemporánea, recién empezaba a declarárseme: la intuición de que una identidad plena, toda identidad plena, pero sobre todo la identidad argentina, “nuestra identidad”, no era un horizonte a alcanzar, ni un sueño a cumplir, ni siquiera una construcción a sostener, sino un peligro —quizás el máximo— que había a toda costa que eludir. ¿Fue la dicción de Iva Zanicchi en los versos “Te regalo yo mis ojos/ mis cabellos y mi boca/ y hasta el aire que respiro/ yo mi vida te regalo” —fue esa dicción la que, poniendo en escena una lengua rondada por otra, desactivó con su hechizo la seducción de toda identidad plena? ¿O fueron las múltiples sucursales del aparato de la patria —escuela, himno, narrativa histórica, iconografía, peronismo, Onganía, asesinato de Aramburu, para declinarlas del modo más pueril, y por lo tanto más “realista” posible— las que, al interpelarme como lo que eran, formas de un Todo que aseguraba refugio y tormento, familiaridad y castigo, euforia y resentimiento, y en el que la promesa era el reverso, o el pago, o la coartada, de una suerte de leva monstruosa y proteica, capaz de calzarse cualquier máscara con tal de garantizar niveles satisfactorios de reclutamiento —fueron esas imágenes patrias las que me arrojaron a los brazos de la fobia primero, y luego a esa reescritura de la fobia que desde entonces se ha convertido para mí, como la confianza y la intimidad para el Borges de “El escritor argentino y la tradición”, en algo parecido a una política: la militancia en la causa de las identidades distantes, oblicuas, indirectas?

En otras palabras, lo que no dejo de preguntarme desde que el autor e intérprete de “Amada amante” arrastraba con donaire su pierna mala por el Caribe de cartapesta del Tropicana Club —la pregunta que me persigue siempre, casi tanto como esa estrofa de “La distancia” que en boca de Roberto Carlos dice: “Pensé dejar de amarte de una vez/ Fue algo tan dificil para mí/ Si alguna vez, mi amor, piensas en mí/ Ten presente al recordar/ Que nunca te olvidé” —esa pregunta es: ¿qué relación hay entre identidad y matiz? ¿Ninguna, como diría, apurándome quizá demasiado? Ninguna, en todo caso, que no sea de hostilidad, de conflicto, incluso de aniquilación. Parafraseando un slogan de Godard, el matiz sería a la identidad lo que la excepción a la regla: una fuerza inasible —una diferencia— que la desdice, la declina, la hace incluso delirar. De modo que la pregunta, la segunda pregunta que entonces se pone a perseguirme podría ser: si la identidad busca por definición capturar, reducir, familiarizar el matiz, ¿por qué habría de valer la pena?

Y si retrocedemos ante la dogmática que acecha en toda identidad, ¿cómo evitar, al mismo tiempo, la peor, la más desoladora, la más estéril de las “soluciones” que la fobia pone a nuestra disposición: la histeria? La estrategia es conocida: decimos que no, rechazamos, huimos de la identidad plena (“¿Yo, escritor argentino?”) —y esa negativa nos es inmediatamente sospechosa porque no es radical, no es el Preferiría no hacerlo de Bartleby, que renuncia a una plenitud a pérdida pura, sin esperar ni pedir nada a cambio; esa negativa es el primer movimiento de una transacción, y el pago imaginario que tiene en la cabeza se cae de maduro: la esperanza de que eso de lo que huimos porque somos incapaces de desearlo —eso, por fin, nos desee de una vez. Es entonces, creo, acorralados entre el caso Juanito y el caso Dora, cuando la lección de Modugno, de Roberto Carlos, del inefable Nicola di Bari, de Ornella Vanoni, tan amenazada, a principios de los años ‘70, cuando la Argentina afilaba sus fusiles, por la legión de cantantes argentinas que como réplicas del mundo bizarro fingían, ellas, a su vez, ser italianas —es entonces cuando esa lección cobra toda su relevancia.

Porque si hay para mí algo capaz de neutralizar el despotismo de ese paradigma al que parece condenarnos la cuestión de la identidad, y sobre todo de la identidad argentina, eso es el acento. El acento es el antídoto contra las radiaciones más amenazantes del “ser argentino”: la naturalidad (o más bien cierta capacidad de autonaturalización), la inmediatez, la voluntad de imposición, el estereotipo, la generalidad, la imprecisión. Pero si su función fuera sólo antidótica, si sólo contibuyera a apartar de nosotros el peligro o a revertir las secuelas que nos dejó, el acento apenas sería una superstición más, otro de los rituales obsesivos con los que tratamos de conjurar el influjo de los objetos que más nos asedian. Así que no: matiz, marca, torsión, pienso el acento como una clase rara de maniobra, simultáneamente deliberada y azarosa, y como una manera radical, no por lo espectacular sino más bien por lo tenue, o lo casual, de afectar ese ready-made que es la argentinidad, que nos quema pero con el que no podemos no relacionarnos. Veo el acento, en otras palabras, como el instrumento —y quizás el arte— de una utopía: la de establecer alguna vez con la identidad, con ese sistema de obviedades que es siempre una identidad, la misma relación de sutileza que el acento italiano o carioca o francés me permitía establecer hace cerca de 40 años, frente a un televisor blanco y negro con fantasma, como se decía en aquella época, al mismo tiempo con mi propia lengua y con un mundo de verdades y valores completamente cristalizados, transparentes, irresistibles, llamado “canción romántica”. Se entiende, espero, que digo “obviedades” sin ningún ánimo despectivo, en el sentido más etimológico de la palabra, que la asimila a “lo que va adelante”, en primera fila, y a un sentido o un complejo de sentidos que sólo funciona con eficacia aliado con las persuasiones de la evidencia, la naturalidad, lo inmediato. Puede que el desafío de la identidad, y también su exigencia insoportable, sea a fin de cuentas éste: enfrentarse con la monstruosidad de lo obvio, con la evidencia “natural”, con la verdad que, alguna vez manufacturada con escrúpulo, ahora va de suyo. Si es así, sólo de ese modo, a través de un acento, de su vibración y del estremecimiento que contagia a todo aquello sobre lo que cae, desbordando y distrayendo el sentido de su destino de obviedad, puedo imaginar sin temor algo parecido a una identidad argentina, y no sólo imaginarla sino —colmo de los colmos— también desearla.

*Alan Pauls nasceu em Buenos Aires em 1959. Além de ser um dos escritores argentinos atuais mais interessantes, é professor universitário, roteirista e crítico de literatura e cinema. Publicou quatro romances. O último, El pasado (2003), foi recentemente traduzido para o português e está sendo adaptado para o cinema pelo diretor Hector Babenco, com estréia prevista para final de 2007.

 

NOTAS


1Texto originalmente apresentado no Encontro “Poéticas de la distancia”, New York University, Novembro de 2005.

 

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Rumo ao norte: da diáspora ao nomadismo | Denilson Lopes

Nos últimos anos, a noção de diáspora emergiu, nas ciências sociais e na história, como uma chave de leitura para o processo massivo de migração de pessoas para além dos limites de uma cultura ou nação, mas quais seriam suas possibilidades e limitações no campo da arte? Ela seria rica apenas para lidar com a relação entre duas culturas? Há alguma possibilidade para além da nostalgia de uma pátria original? A diáspora é rica para sujeitos e obras que multiplicam as viagens e o cruzamento de fronteiras culturais?

Para discutir estas questões, vamos fazer um diálogo entre os filmes de Claire Denis e os de Abderhamane Sissako que têm como cenário privilegiado a relação entre a África subasariana e a França. Em “A Vida sobre a Terra” de Abderhamane Sissako (1998), a narrativa se articula pelo retorno ao vilarejo de Sokolo, no Mali. A primeira cena é um travelling que passa por um supermercado, uma loja que vende roupas, provavelmente na França, e quando o personagem, que podemos identificar como o narrador, sobe pela escada rolante, o movimento continua até a visão de uma árvore enorme e solitária. Voltamos, junto com o narrador, a Sokolo, através de seu desejo e da carta que escreve ao pai que fala da vontade de filmar Sokolo. O narrador com sua voz over voltará a aparecer no meio e no fim do filme. Em conjunto com o irmão que responde a carta, falando para a câmera, estas vozes emolduram a construção do espaço a partir do desejo de voltar e, ao mesmo tempo, a necessidade, até para ajudar a família, de ficar na Europa.

Não se trata mais da relação entre metrópole/colônia, como se estabeleceu na África desde o século XVI, e com mais força a partir do século XIX. O filme trata do intelectual, do artista que, fora de seu país, teme esquecer de onde veio e se constitui pela experiência da diáspora contemporânea. Como diáspora é uma palavra muito utilizada, sofrendo de uma amplitude quando alçada a “comunidades exemplares do momento transnacional” (TÖLÖLIAN apud CLIFFORD, J., 1999, p. 245), seria importante precisar o uso que fazemos dela, distinguindo-a primeiro de migração do campo para cidade, de uma região a outra dentro do mesmo país, exemplificado no Brasil pelos nordestinos que foram para o Sul e Sudeste em busca de melhores condições de vida. A diáspora é uma dispersão de um povo de sua pátria original (BUTLER, 2001, p. 189), caracterizada pela: 1) presença em dois ou mais lugares; 2) mitologia coletiva de uma pátria; 3) alienação no país de origem; 4) idealização de retorno à pátria; 5) contínua relação com o país de origem (SAFRAN apud BUTLER, idem, p. 191).

Apesar de “A Vida sobre a Terra” enfatizar muito o vínculo ainda presente com a França, há uma construção em Sissako de uma pertença africana, com o risco de idealização nostálgica do lugar de origem, por uma tensão decorrente de um distanciamento em relação a, mais do que ao país, ao pequeno vilarejo natal, porém sem quebrar os vínculos completamente com este, nem se integrar totalmente na França. Poderíamos então entendê-lo dentro de uma estética diaspórica, não como a realização de um espaço outro definido, como o de cultura híbrida, mas um espaço mais precário, social, econômica e existencialmente, anterior a qualquer diálogo, síntese, mistura.

Neste sentido, “A Vida sobre a Terra”, apesar da referência a Aimé Cesaire, encena o que Hamid Naficy chamou de accented cinema, literalmente um cinema com sotaque, com marcas culturais explícitas, formado por filmes produzidos num modo capitalista mesmo que alternativo, não sendo necessariamente oposicionais – no sentido de se definirem primordialmente contra um cinema dominante unaccented – nem necessariamente radicais porque eles agem como agentes de assimilação e legitimação de cineastas e suas audiências, não só como agentes de expressão, mas como desafio (2001, p. 26). Diferente do cinema do terceiro mundo em que o que mais importava era a defesa da luta armada ou da luta de classes, em uma perspectiva marxista; trata-se de um cinema feito por pessoas deslocadas [ou] comunidades diaspóricas, engajado menos com o povo ou as massas, do que marcado por experiências de desterritorialização (idem, p. 30/1), ao invés da revolução como macro-narrativa (Lenin), uma multiplicidade descentrada de lutas localizadas, como resistências à hegemonia (Gramsci) (STAM e SHOHAT, 1994, p. 338).

Diferente de “Chocolat” e “Beau Travail” de Claire Denis onde a experiência se dá da Europa para, sobretudo, diversos países africanos; o movimento em Sissako ocorre, no sentido contrário, definido pelo movimento da África para fora. Mas tanto em Sissako quanto em Denis, o trabalho, a sobrevivência econômica parece ser a motivação maior dos personagens para mudarem, no lugar de questões étnicas, religiosas ou por serem dissidentes políticos. A sobrevivência material está sempre subordinada a um drama existencial, mesmo íntimo, particular, socialmente inserido, sem contudo configurar uma alegoria, situando os personagens num quadro mais amplo em que cada vez mais é difícil nascer e morrer onde se nasceu (BUTLER, 2001, p. 214). O tom destes filmes encontra diálogos na cinematografia brasileira não só em “Terra Estrangeira” (1995) de Walter Salles e Daniela Thomaz e “Passaporte Húngaro” de Sandra Kogut, mas também em “O Céu de Suely” (2006) de Karin Aïnouz, apesar deste reencenar no fundo a questão da migração do Nordeste para o Sudeste/Sul do Brasil. Longe das situações desesperadas da seca culminando em morte ou em impossibilidade de volta, ruptura radical com a origem, em “Céu de Suely”, a experiência migratória, sem pretensão alegórica, é tradução afetiva do trânsito entre culturas, em que a vivência íntima é central.

De toda forma, talvez por este desejo de retorno, “A Vida sobre a Terra” seja, num primeiro momento, uma evocação nostálgica da terra natal. No entanto, pouco a pouco, emerge uma consciência dilacerada, apesar da apresentação lírica sem grandes dramas sobre pessoas comuns, com atuações que não parecem de profissionais, numa tradição que remonta pelo menos até o Neo-Realismo de De Sica e Zavattini. O uso do recurso da carta, muito corrente no que Naficy chamou de accented cinema, não coloca a experiência autobiográfica como apenas algo pessoal, narcisista, nem como um filme-ensaio em que a autobiografia é inserida dentro de um debate filosófico mais abstrato, ou sobretudo nos limites do continente europeu, como em “JLG por JLG” (1994) de Godard, mas como intimamente conectada a uma situação coletiva de uma experiência intercultural e de desigualdade colonial. Em contraponto ao risco do saudosismo idealizante devido à distância, esta carta-filme de Sissako é, por um lado, explícita, em não transformar a vida em simples espetáculo e não fazer do narrador (e do público) um simples espectador passivo. Por outro, o encanto com os pequenos fatos de Sokolo é inegável, traduzido pela beleza de Nana, que acaba por encerrar o filme, quando a vemos andando de bicicleta, como se deixando Sokolo, em contraponto à primeira imagem do homem que chega à cidade.

O último dia de 1999 é apresentado pelo cotidiano de Sokolo, com uma trilha sonora eclética que mistura Schubert, Salif Keita, suaves sons do cotidiano e as notícias de programas franceses e da programação local. A conexão da cidade com o exterior, além da carta, é marcada por uma cultura midiática, presente desde as ligações telefônicas precárias a diversas imagens como o retrato da família real inglesa, o anúncio do lançamento de um carro discutido por dois personagens, posters de modelos, mas também pela presença recriadora dos escritos de Aimé Cesaire lido pela rádio comunitária e usado como epígrafe no meio do filme. As diferenças são explicitadas, às vezes, mais sutilmente do que na referência a Cesaire, como na presença do sol que aparece como benfazeja no inverno europeu, e como um mal para a região de Sokolo. Lentamente, vemos os pequenos atos acontecerem: o menino com sua bola de futebol, a menina dançando, um homem se lavando. Uma rede de fatos e pequenos acontecimentos fazem com que alguns personagens desapareçam e reapareçam, sem que haja um eixo narrativo principal, nem mesmo o da voz over do narrador. Como o sol que vai mudando de posição e os homens na frente de uma casa que mudam de posição as suas cadeiras. Trata-se de outro tempo, menos rápido e saturado de informação, embora ecoando e traduzindo o mundo contemporâneo. A poeira que levanta quando as pessoas passam faz um quadro difuso e enevoado em meio ao sol inclemente. Sem precisar recorrer ao recurso narrativo de mostrar vários episódios em diferentes partes do mundo como em “Uma Noite sobre a Terra” (1991) de Jim Jarmusch ou do recente “Babel” (2006) de Alejandro Gonzalez Iñarritu, o uso das transmissões de rádio de celebração do Ano Novo pelo mundo encontra um contraponto a mais, um dia comum. Curiosamente, é na fala de uma repórter japonesa transmitida pela rádio que se encontra melhor traduzido o dia de Sokolo: “A vida não muda. Só o século muda”.

O balbucio da carta e das falas de telefone, ouvidas com dificuldade, redimensionam a nostalgia e o otimismo recorrentes em todo fim de ano. Este balbucio “não é uma carência, mas uma afirmação” (ACHUGAR, H., 2006, p. 24) de um lugar de fala, por frágil que seja. Sem perder o tom afetivo, o filme se coloca ainda como um modesto apelo, uma “oração viril”, nas palavras do narrador, pela mudança, por tempos melhores, na virada do milênio. Não sendo mais o tempo da revolução socialista, nem das lutas pela independência, o que resta? Um poema de Aimé Cesaire citado como epígrafe parece ecoar a resposta poética, conectando não só o local com o mundo, mas embaralhando os tempos, afirmando possibilidades: “Meu ouvido no chão/Ouvi o amanhã passar”.

Se “A Vida sobre a Terra”, filme-carta ao pai possui um tom nostálgico, “A Espera da Felicidade” (2000), filme dedicado à mãe do diretor, parece ser mais áspero na sua encenação. Talvez por se centrar na volta, de fato, do protagonista, e sua recusa de integração, acentua o distanciamento do diretor de qualquer visão de caráter mitopoético, arcaizante ou exotizante. “A Espera da Felicidade” encena uma pluralidade de destinos frente à dificuldade de ficar, de se sentir estrangeiro no seu próprio país e da necessidade de migrar em busca de melhores condições de vida.

Filmado no litoral norte da Mauritânia, país natal de Sissako, numa cidade entre o deserto e o mar, diferente do filme anterior, não há mais quase nenhuma vegetação, a não ser de um ou outro arbusto, como o que parece ser levado pelo vento no início e no fim do filme. Nesta nossa viagem que vai cada vez mais ao norte, também a sombra da Europa fica mais presente. As conversas sobre deixar o país são freqüentes e representadas visualmente pelas constantes aparições dos barcos em movimento no mar e traduzidas mais concreta e tragicamente por um corpo que o mar retornou. Cronotopo central na diáspora negra (GILROY, 1993, p. 4), o barco não fala do tráfico negreiro do passado, mas das novas viagens para as antigas metrópoles em busca de emprego e sobrevivência. Se em “A Vida sobre a Terra”, a narrativa se dissolvia em vários personagens, aqui, basicamente o enredo se concentra na experiência de volta do jovem Abdullah à casa de sua mãe, na sua dificuldade de falar a versão do árabe da região, no seu isolamento desde sua forma de vestir a sua dificuldade de socializar. Não sabemos porque voltou, mas uma fala de sua mãe menciona problemas com passaporte, o que poderia ser associado a uma eventual deportação.

A experiência de ocidentalização de Abdullah constitui uma solidão na casa de sua própria mãe, em seu próprio país. Seu isolamento cultural, lingüístico e existencial é reiterado pelo seu confinamento no quarto onde passa o tempo lendo, de onde só se afasta por momentos, quando conversa com uma vizinha que teve uma filha, já falecida, com um europeu, quando dança sozinho uma música que parece ouvir ou lembrar que ouve, ou pelo contato com o menino Khatra, auxiliar do velho eletricista Maata.

Maata e Khatra compõem o outro núcleo central da narrativa que culmina na morte do eletricista e no desejo frustrado do menino de pegar um trem e deixar a cidade em contraponto com a menina que está aprendendo a cantar as músicas da região. Tudo parece pequeno, em trânsito e frágil em meio à imensidão do mar e do deserto. A morte de Maata, encontrado no deserto segurando uma lâmpada, apenas acrescenta mais um fragmento, mais uma estória no movimento constante de ida e partidas, por fim, associado à passagem do tempo, ao movimento da vida para a morte.

Curiosamente, o personagem que mais se sente em casa, para quem a saída não é partir, é o camelô chinês que canta num videokê enquanto namora uma moça do lugar e dá presentes para os seus fregueses que planejam partir.

Para nos encaminharmos para o fim de nossa viagem, passamos a dois filmes de Claire Denis que encenam a experiência de africanos na França: “S´en fout la mort” (1990) e “Pas de sommeil” (1994). Ao contrário dos filmes de banlieu, retratos de jovens pobres, com nítida inspiração na linguagem da MTV ou do Neo-Realismo dos anos 90 (BEUGNET, 2004, p. 14), aqui o registro é mais sutil. Se a paisagem do deserto e do mar fala de opressão, da repetição de um outro cotidiano, a opção por Claire Denis será por um registro noturno, soturno, devedor da tradição do policial noir para falar da experiência na metrópole. “S´en fout la mort”, à primeira vista, foi um filme que chamou menos atenção da crítica do que “Chocolat”, mas coloca a experiência negra, assumida desde o início pela voz em off no narrador-protagonista, a partir de uma situação diaspórica e não nacional. Os dois protagonistas, Jocelyn (Alex Descas) veio da Martinica e Dah (Isaach de Bankokolé) de Benin, vivem no submundo do trafico, da noite e da competição de galos. O deslocamento gera uma imagem da Martinica bem como da mãe de Jocelyn de forma paradisíaca e idealizada, contraponto ao mundo de restrições e fechamentos na França, ao cubículo onde Jocelyn e Dah se encerram para treinar galos, enfim, na vida um pouco à parte que vivem. A fraternidade entre os dois acaba por não resistir, bem como o tratamento filial que o patrão Ardennes (Jean Claude Brialy), apaixonado no passado pela mãe de Jocelyn, tem por ele. Dah quer fazer apenas negócio enquanto Jocelyn vê nos galos toda uma conexão com seu passado, com um outro mundo que o leva ao isolamento, à bebida, e por fim, a ser assassinado pelo verdadeiro filho de Ardennes, no mesmo dia em que o galo, que leva o título do filme, é morto no ringue. A incompatibilidade com uma outra cultura, com uma outra experiência ou o preço do deslocamento solitário e constante são o preço que pagam os dois protagonistas.

A epígrafe inicial do filme de Chester Hines, repetida por Dah, encena uma situação de limiar: “Todo homem é capaz de tudo ou de qualquer coisa”. A vida de homens negros aparece como com poucas aberturas, brechas, como a representada pelo reggae, na música de Bob Marley, ouvida no filme. “S´en fout la mort” fala de uma certa impossibilidade, da dificuldade de convivência num mundo diaspórico, de solidões existenciais e culturais. Não há um certo mistério, uma certa espessura que resiste a qualquer interpretação como em “Chocolat”. Parecem personagens que em breve vão desaparecer ou morrer, não há diálogo, não há paz. Um carro parte na noite. Foda-se a morte. Foda-se a vida. Fazer tudo ou quase tudo parece não um grito libertário, mas estratégia de sobrevivência.

Já em “Pas de Sommeil” (1994), Claire Denis trabalha dentro do próprio filme o contraste entre a claridade de Paris, o fascínio pela cidade a que irá voltar em “Vendredi Soir” (2002) e as relações de seus personagens apresentados num quebra-cabeça semelhante a filmes como “Short Curts” (1993) de Robert Altman, a que foi comparado (BEUGNET, 2004, p. 23), e “Magnólia” de Paul Thomas Anderson, pela forma como a narrativa perde um eixo ou o dilui. Aqui, a procura do serial killer, assassino de idosas é algo que remeteria a um filme policial, mas não há o suspense da revelação. O que interessa aqui não é descobrir o assassino ou se vai ser preso. A partir de certo momento, o próprio filme nos revela quem são. A cena final do seu reconhecimento pela polícia e posterior confissão nada tem de climática ou reveladora. Não se trata de descobrir as razões por quais Camille (Richard Corcet), o jovem migrante martiniquenho, e seu amante Raphaël (Vincent Dupont) assaltam e matam idosas. Não existe uma correlação direta nem fácil entre a condição de Camille como migrante, homossexual e negro, e sua vida de tráfico e roubos. Trata-se de mais um personagem das sombras de nós mesmos1.

Sua condição encontra paralelo em Daiga (Katherina Golubeva), jovem atriz lituana que chega em Paris à procura de emprego ou para talvez reatar um eventual caso com um diretor de teatro que conhecera, mas acaba vivendo de fazer limpeza em um hotel. A ausência de voz over, aqui, acentua ainda mais as ambigüidades dos personagens, suas identidades. Estão todos em trânsito, não só os estrangeiros. Curiosamente, é importante que a ênfase de Denis neste filme é em mostrar uma cidade formada pelos que migraram há muito tempo: os amigos russos da tia-avó de Daiga e a família de Camille e seu irmão Théo (Alex Descas). Diferente da fraternidade masculina, apresentada por Dah e Jocelyn em “S’en fout la Mort”; Camille e Théo têm certo distanciamento, são estranhos um ao outro. Théo, violinista que vive de montar móveis, encena seu não-pertencimento pelo desejo de voltar a Martinica com o filho que teve com uma francesa (Béatrice Dalle). Ao recusar uma imagem paradisíaca do seu país, não diz o porquê da volta ou o que deseja encontrar. Camille acaba na prisão e Theo parece fugir da tela, de Paris, da França como Daiga que rouba o dinheiro de Camille e também abandandona Paris. Provavelmente mais bem sucedida do que o amante de Camille, que acaba recapturado pela policia.

A incertitude acompanha os personagens negros e brancos, franceses, russos e martiniquenhos que vagam incertos. Para além de marcados pela diáspora, eles são nômades. Não sendo à toa que o hotel-pensão se transforma num espaço central em que vários dos personagens se esbarram, não simplesmente um lugar de trânsito, um não-lugar, mas uma casa provisória e precária, mas ainda sim casa. Há um certo mal-estar, mas nada dilacerante. Há frases trocadas rapidamente que estranhos falam quando se encontram em clubs, cafés, na rua. Em geral, nada mais do que isso.O que pode ser pouco, pode ser muito, ou somente o suficiente. Neste contexto, o sexo não representa intimidade. O encontro, quando acontece, é fugaz, como quando a dona do hotel conta estórias em francês para Daiga que pouco entende a língua.As duas ficam bêbadas. É apenas isto, tudo isto. Não se trata de um alivio provisório, um desencanto romântico em meio à solidão humana permanente. É mais como se pudéssemos ouvir ao fundo a voz rouca de Marianne Faithfull: “All over the world, it´s the same, it´s the same, it´s the same”.

Como na cena final de “Chocolat” ou a boate em “Beau Travail”, também a cena em que Camille dubla o cantor Jean-Louis Murat, corpo transcultural, meio homem, meio mulher, andando descalço no bar, sintetiza uma mesma impenetrabilidade que a África representava aos olhos de France em “Chocolat”, um outro cada vez menos exótico, mas distante e estranho por mais geográfica e fisicamente perto.

*Denilson Lopes é professor da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pesquisador do CNPq, doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília, autor de A Delicadeza: Estética, Experiência e Paisagens (Brasília, EdUnB, a sair em 2007), O Homem que Amava Rapazes e Outros Ensaios (Rio de Janeiro, Aeroplano, 2002) e Nós os Mortos: Melancolia e Neo-Barroco (Rio de Janeiro, 7Letras, 1999), co-organizador de Imagem e Diversidade Sexual (São Paulo, Nojosa, 2004) e organizador de O Cinema dos Anos 90 (Chapecó, Argos, 2005).

 

NOTAS


1O mesmo tipo de construção evita que “Madame Satã” (2005) de Karin Aïnouz se torne um clichê multicuralista de celebração da exclusão identitária.

BIBLIOGRAFIA


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RENOUARD, Jean-Philippe e WAJEMAN, Lise. “The Weitgth of Here and Now. A Conversation with Claire Denis, 2001” , Journal of European Studies, V. 34, n.1/2, 2004.

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STRAND, Dana. “ ‘Dark Continents´ Collide: Race and Gender in Claire Denis´s Chocolat”. In: LE HIR, Marie Pierre and STRAND, Dana (eds.). French Cultural Studies. Albany: State of New York University Press, 2000.

 

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Violência: a dita, desdita | de Carlos Eduardo Schmidt Capela

Matérias publicadas há cerca de um ano e meio em um dos principais jornais do país relatavam o indiciamento, pela polícia carioca, de um grupo de funkeiros, habituais animadores de festas e bailes nos morros do Rio de Janeiro. A acusação era de que em suas apresentações, que haviam sido monitoradas por cerca de um ano, “todos cantam músicas que exaltam traficantes, o consumo de drogas, facções ou atos criminosos.”2 Foram ainda acusados de divulgar as suas músicas, conhecidas como “proibidões”, na internet, em sites onde era possível baixá-las (pois na ocasião aqueles foram, claro, tirados do ar), juntamente com fotos de intérpretes e vídeos de suas performances. A reportagem narrava também ação da polícia, que no final de semana havia impedido a realização de baile funk no Morro da Providência, para o que, com o apoio de carros blindados, foram fechados os acessos ao morro. A reação teria vindo da parte de “traficantes”, resultando o indefectível tiroteio.

Didático, o jornalista Sérgio Rangel tentou em poucas palavras, no texto que assinava, dar a conhecer, a leitores não raro alheios à complexidade rica e feroz do cotidiano das periferias, os temas mais recorrentes no funk carioca: “assuntos ligados à marginalidade, como nomes de morros, chefes de tráfico e gente da comunidade que foi morta por policiais”.

Em reportagem do dia seguinte, o MC Catra, um dos indiciados, em entrevista, reagia às acusações, denunciando a Polícia Militar por sistematicamente atacar bailes funk com até seis mil pessoas, atuando de modo arbitrário e violento. E completava, chamando a atenção para o lugar específico que buscava ocupar com seu trabalho criativo, em termos sociais e culturais, e que para ele não implicava em transgressão, ao menos no que concerne à ordem jurídica. Ele ainda indicava, de quebra, o horizonte realista que perseguia com sua arte: “Sou marginal, mas não sou criminoso. Eu não me vendo. Vou continuar cantando a realidade da favela, não adianta.”

Já o oficial da PM procurado pela reportagem recusou-se a comentar as denúncias de abuso de poder. As palavras que a matéria a ele atribuiu, no entanto, são ilustração lapidar da fissura expressa pela situação, rimando repressão policial e exceção legal. Sua manifestação opera segundo deslizamentos pelos quais o indício se transforma em culpa, seguindo daí, em linha reta, a condenação, movimento que, de resto, e talvez sem que ele mesmo tenha (cons)ciência, justifica com lógica implacável as intervenções de seus comandados nos morros cariocas, e também nos planaltos, mangues e planícies das periferias, geográficas ou não, de boa parte das grandes cidades brasileiras. Segundo ele, a Polícia Militar “não faz comentários sobre declarações de quem faz apologia ao crime. Quem faz apologia ao crime tem que ser levado às barras da lei e ser preso, por incentivar crianças inocentes a relações com o mundo do crime. A Polícia Militar não comenta declarações de marginais”3.

O cenário aí entrevisto já é conhecido, nele se desenrolando nada mais que um ato, com variações em alguma medida assimiladas como contingenciais, que atesta o vigor indubitado com que parte dos defensores das Leis e da Ordem reservam a expressões sobretudo provenientes de membros de comunidades marginalizadas. O jornalismo diário está repleto de atos similares, isso mesmo a despeito de estes, os noticiados, constituírem por certo apenas uma pequena amostragem no universo daqueles aos quais não é conferida maior atenção, permanecendo por isso mesmo invisíveis, ou quase. Um dos mais célebres envolveu um criador hoje reconhecido no espaço cultural brasileiro, e não só nos setores marginalizados. MV Bill, por conta do vídeo Soldado do morro, produzido a partir de entrevistas feitas com traficantes, nas periferias de diversas cidades brasileiras, foi perseguido pela polícia, juntamente com Celso Athayde, seu produtor e comparsa na empreitada, e teve que se arranjar para exibir o filme a José Gregori, na época Ministro da Justiça, para que este intercedesse a favor deles e tirasse a polícia de seu encalço.4

No desdobramento dos episódios envolvendo os funkeiros, um dos membros do grupo de advogados mobilizados para interceder em favor dos artistas fez eco à observação do MC Catra, procurando justificar peculiaridades das intervenções artísticas por conta do ambiente em que os jovens se vêem inseridos. As músicas cantadas seriam uma espécie de reflexo, em clave realista, da experiência da marginalidade. O fato de a autoria nem sempre ser dos intérpretes permite pensar, por sua vez, que essa experiência, não raro traduzida por um sentimento de animosidade contra instituições como a polícia, ou contra frações da sociedade que ostentam poder e riqueza, é menos pontual que geral entre jovens das periferias. Fundamental é destacar que o entrevistado mostra perceber claramente que a batalha, no caso, escapa à esfera policial, atingindo dimensão simbólica. É também no território da representação que ela, essa luta ao menos, situa-se e desenvolve-se.5

O advogado lança ainda a hipótese de o episódio ser mais uma demonstração de intolerância e preconceito contra criadores provenientes de segmentos sociais marginalizados. Lembra que nomes como Bezerra da Silva, Marcelo D2, Rubem Fonseca e Charles Bukowski têm seu trabalho reconhecido socialmente, e não são perseguidos em função dele, embora suas criações amiúde sejam marcadas por um enfoque da violência. São razões sociais e raciais que ele invocou para justificar o indiciamento: “Se fosse um criador de classe média branco não haveria impedimento”.

Considerando a produção cultural brasileira recente é difícil voltar os ombros a um argumento como tal. Afinal, por que motivos realizadores de filmes como Amarelo manga (Cláudio Assis, 2003), O homem que copiava (Jorge Furtado, 2002), Madame Satã (Karim Aïnouz, 2002), O invasor (Beto Brant, 2001), Cidade de Deus (Fernando Meirelles, 2002), Uma onda no ar (Helvécio Ratton, 2002), O homem do ano (José Henrique Fonseca, 2003), Carandiru (Hector Babenco, 2002), O prisioneiro da grade de ferro (Paulo Sacramento, 2003), Cronicamente inviável (Sérgio Bianchi, 2000), Domésticas (Fernando Meirelles e Nando Olival, 2001), Como nascem os anjos (Murilo Salles, 1996), O primeiro dia (Walter Salles e Daniela Thomas, 1999), Ônibus 174 (José Padilha, 2002), Santa Marta, duas semanas no morro (Eduardo Coutinho, 1987), O maior amor do mundo (Cacá Diegues, 2006), entre outros, não foram perseguidos ou indiciados pela polícia? E por que escritores como Paulo Lins (Cidade de Deus, 1997), Ferréz (Capão pecado, 2000; Manual prático do ódio, 2003), Patrícia Melo (Inferno, 2000), Luiz Alberto Mendes (Memórias de um sobrevivente, 2001; Às cegas, 2005), Luiz Ruffato (Eles eram muitos cavalos, 2001), André du Rap (Sobrevivente André du Rap (do Massacre do Carandiru), 2002), Julio Ludemir (Sorria, você está na Rocinha, 2004), Jocenir (Diário de um detento, 2ª ed., 2001), Caco Barcellos (Abusado: o dono do Morro Santa Marta, 6ª ed., 2003), Dráuzio Varella (Estação Carandiru, 1999), Hosmany Ramos (Pavilhão 9: vida e morte no Carandiru, 3ª ed., 2002), Humbert Rodrigues (Vidas do Carandiru: histórias reais, 2002), Luis Eduardo Soares, MV Bill e Celso Athayde (Cabeça de porco, 2005), entre outros, tampouco foram incomodados, ao que se saiba?

Levando-se em conta que ao menos em parte destes filmes e livros são recorrentes situações e cenas em que o tráfico e o crime são enfocados, apresentando diálogos ou canções que nada ficam a dever a algumas das letras cantadas pelos funkeiros6, seria o caso de se pensar que a perseguição policial e judiciária é privilégio de grupos e intérpretes de rap e funk? A censura aí implicada, em conluio com a ausência de critérios para criminalizar ou indiciar, ou não, criações culturais, em outros termos, a arbitrariedade não poderia ser no caso pensada, ao menos a princípio, como (mais) um sintoma da proverbial e sociológica cordialidade brasileira, atuando com toda a potência da hipocrisia? A cordialidade, afinal, não configura ou suscita uma política de representação?

(Sérgio Buarque de Holanda, um dos pioneiros e principais teorizadores da cordialidade, caracteriza o homem cordial a partir do predomínio contínuo das vontades individuais, que identifica ao longo da história nacional. A aversão ao fundamento coercitivo, para ele fundamental para o estabelecimento de civilidade, conduz ao “desconhecimento de qualquer forma de convívio que não seja ditada por uma ética de fundo emotivo”7. Ensimesmada, alheia ou hostil a tudo que a submeta a um universo para ela estranho, não pautado pelo sentimento, a personalidade individual brasileira resistiria a se deixar comandar por sistemas de ação ou de pensamento marcados pelo rigor e consistência.8 Sendo o afeto função de preferências, não raro caprichos, a prática da cordialidade redundaria numa parcialidade que entra em choque com qualquer perspectiva neutra, baseada numa igualdade estabelecida por princípios universais, abstratos e impessoais.

Dentre as diversas conseqüências trazidas pelo estabelecimento deste tipo de prática, duas, aqui, merecem atenção especial. Uma delas é a tendência, que Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, reitera em diversas oportunidades, de nossos intelectuais e intérpretes se evadirem da realidade do país, seja por intermédio de uma “crença mágica no poder das idéias”, seja a partir de um “amor às letras” de que decorre uma percepção e concepção da literatura como “derivativo cômodo para o horror à nossa realidade cotidiana”, ou através de uma mera sobrevalorização de normas e códigos legais magnificamente dispostos ao longo de páginas de códigos e manuais (“A rigidez, a impermeabilidade, a perfeita homogeneidade da legislação parecem-nos constituir o único requisito obrigatório da boa ordem social”).9

Correlata a esta prática o historiador chama a atenção para a existência, no país, de uma tradição cujo traço, quiçá de maior relevo, reside numa sorte de aversão a disputas e situações conflitantes, nos quais interesses e posturas fundadas em outros valores que não a cordialidade pudessem sair à luz. Segundo ele, “quisemos recriar outro mundo mais dócil aos nossos desejos ou devaneios”, de onde “o caráter transcendente, inutilitário, de muitas das (…) expressões mais típicas” do “mundo circunstante”. A política, nesse quadro, era por ele compreendida antes de tudo pelo empenho “em desarmar todas as expressões menos harmônicas de nossa sociedade”.10 A elisão de conflitos, realizada pelos setores dominantes da sociedade brasileira, e por seus representantes, constituiria nesse caso um modo de falseamento ou de escamoteação de problemas concretos em torno dos quais se organizavam, e se contrapunham, distintos setores da sociedade brasileira. Mantendo-se numa pauta euclidiana, que por sua vez se move na senda já muito antes trilhada por José Bonifácio, isso no alvorecer da Independência, também para Sérgio Buarque de Holanda a heterogeneidade permanecia sendo uma característica inegável da população nacional.11

Tal diagnóstico, exposto na década de 1930, parece ser, ao menos a princípio, compartilhado por um dos intelectuais brasileiros mais influentes da segunda metade do século XX, Antonio Candido, admirador, aliás, de Sérgio Buarque de Holanda. Em “Dialética da malandragem” Antonio Candido ressalta, referindo-se ao século XIX, que a imaturidade de nossa sociedade, de par com a preocupação em ombrear-se com as civilizações européias, teria engendrado “mecanismos ideais de contenção”, que se estenderiam por vários setores de nossas atividades. No terreno jurídico, normas impecáveis auxiliando na instituição de uma aparente ordem regular que em verdade inexistia. Na literatura, o acento em “símbolos repressivos” visando salvaguardar a eclosão de impulsos, situação que encontraria seu exemplo mais marcante em José de Alencar.12

Ainda que Candido reconheça na sociedade brasileira do século XIX a presença de um anseio por uma ordem regular e estável, pelo qual a dinâmica social via-se enquadrada e ao mesmo tempo falseada, uma comparação com a sociedade norte-americana leva-o a realçar o sentido idealista que atribui a essa busca, movimento que o leva a se distanciar da posição de Sérgio Buarque de Holanda, em cuja órbita até então ele parecia se mover. Para Antonio Candido a obsessão pela ordem constituiria antes de tudo um “princípio abstrato”, e a liberdade um mero “capricho”, pois entre nós, diferentemente do que teria ocorrido entre os puritanos da Nova Inglaterra, “formas espontâneas da sociabilidade atuaram com maior desafogo e por isso abrandaram os choques entre a norma e a conduta, tornando menos dramáticos os conflitos de consciência”.13 A partir daí, e operando com base numa distinção entre atitudes e comportamentos, que estariam sujeitos às convenções da ordem, e consciência, que seriam indiferentes a cerceamentos, o autor avança na sua caracterização da sociedade brasileira, descrevendo-a a partir de uma suposta porosidade, uma capacidade de incorporar diferentes grupos sociais e raciais, com o que fronteiras eram ao final esgarçadas.14

Assim, se em Sérgio Buarque de Holanda a cordialidade é pensada como uma forma de escamoteação, ocultando conflitos de fato existentes, para Antonio Candido estes não existiriam, ou, caso existissem, teriam sua importância atenuada por uma tolerância que facultaria a permeabilidade entre grupos e indivíduos, afastando, portanto, possíveis confrontos. Onde o primeiro percebe uma estratégia de ocultação, de dissimulação que equivale a um gesto de arbítrio e poder, o segundo vislumbra um processo de harmonização de diferenças, que tenderiam a se dissolver antes de se materializarem, em especial no domínio da consciência. Daí a postulação de um “mundo sem culpa”, em que a censura, a lei, perdem força e sentido, na medida em que todos são infratores, senão cúmplices. Na penumbra da cordialidade, concebida sob um prisma de negação e de denúncia em relação a um pensamento e a uma organização social e política autoritários, entra em cena o conceito de “malandragem”, pensado em termos positivos e conciliatórios.

A interpretação de Antonio Candido é ancorada em sua leitura das Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida. Segundo ele, caso isolado na literatura brasileira do século XIX, posto que sua perspectiva não seria a dos dominantes, este livro, na sua “estrutura mais íntima e na sua visão latente das coisas”, exprimiria “a vasta acomodação geral que dissolve os extremos, tira o significado da lei e da ordem, manifesta a penetração recíproca dos grupos, das idéias, das atitudes mais díspares, criando uma espécie de terra-de-ninguém moral, onde a transgressão é apenas um matiz na gama que vem da norma e vai ao crime.”15

É ao longo da análise do romance que Antonio Candido vai, passo a passo, definindo a conceituação do malandro e da malandragem, que terá longa e larga vida na nossa cultura, tendo sido não raro aceita como traço fundamental de um suposto “caráter nacional brasileiro”. Na concepção do crítico, a malandragem opera como um eixo ou lugar privilegiado em que se articulariam, e se resolveriam por equivalência, dois pólos: o da ordem, da lei e do interdito, e o da desordem, da transgressão. Tais pólos, como visto, para Antonio Candido pouco teriam de rigidez, projetando-se um sobre o outro, descaracterizando-se e sendo descaracterizados num ritmo ao sabor do qual a vida social brasileira teria se pautado ao longo do tempo, ritmo que o romance em foco formalizaria em termos estéticos.

Neste eixo são localizados a personagem central do romance, Leonardo Filho, e seus pais, distribuindo-se as demais personagens no plano superior ou inferior, conforme elas vivam “segundo as normas estabelecidas” ou “em oposição ou pelo menos integração duvidosa em relação a elas”: “um hemisfério positivo da ordem e um hemisfério negativo da desordem”. Coincidentemente, como assinala Candido, o mundo do lado superior é o “das alianças, das carreiras, das heranças, da gente de posição definida” que a “polícia respeita e cujas festas o Major Vidigal não vai rondar”.16 A conhecida cena em que este surge uniformizado da cintura para cima e em trajes caseiros para baixo, quando transige, após conversa ao pé de ouvido com uma mulher sua velha conhecida, aceitando não só libertar Leonardo, mas ainda o promovendo a sargento, ocupa posição central na interpretação de Antonio Candido. É com base nela que emerge uma das principais conclusões que sustentam a leitura do livro de Manuel Antônio de Almeida, e, por extensão, da sociedade brasileira:

Ordem e desordem se articulam portanto solidamente; o mundo hierarquizado na aparência se revela essencialmente subvertido, quando os extremos se tocam e a labilidade geral dos personagens é justificada pelo escorregão que traz o major das alturas sancionadas da lei para complacências duvidosas com as camadas que ele reprime sem parar.17

Explorada com maestria, a cena faculta ao crítico mostrar a ocorrência de um trânsito entre ocupantes do hemisfério superior, que podem, a seu bel prazer e de acordo com suas conveniências, baixar ao plano mais degradado. Entretanto, para além do evidente autoritarismo implicado neste movimento, que atende a interesses pessoais, a afetos momentâneos e a expansões de cordialidade (afinal, o Major numa só tacada recupera uma antiga amante e volta a contar com Leonardo, um inimigo respeitável que o fizera passar por um vexame público, como aliado e subalterno), resta evidente que o poder de infringir, sem maiores riscos de sanção, é apanágio notadamente, senão apenas, daqueles que ocupam a posição de cima. Estes, com efeito, após as breves visitas aos de baixo, de quem usufruem, retornam sem remorsos a sua posição de origem, que afinal de contas é de fato a deles. Neste trânsito transitório, a via de mão dupla é prerrogativa tão somente de alguns. Para os que estão embaixo não há possibilidade de escapatória, a não ser que aceitem pôr-se a serviço dos de cima, realizando seus caprichos e vontades, não raro sob o resguardo do segredo e sob o risco do degredo.

A sociedade descrita em Memórias de um Sargento de Milícias, conforme observa o próprio Antonio Candido, seguindo sugestão de Mário de Andrade, caracteriza-se pela restrição, estando de fora tanto as “camadas dirigentes” como as “camadas básicas”, das quais há apenas alguns parcos representantes.18 Isso, no entanto, segundo o ensaísta, não é empecilho para que a investigação da “função” ou “destino” das pessoas nessa sociedade possua alcance representativo e sentido cognitivo.19Seja como for, se a “gente modesta” que comparece no romance tem obstada a possibilidade de transitar pelo universo superior, o que não dizer das camadas ainda mais baixas, cuja ausência aliás é plenamente significativa? E, por outro lado, a ausência de remorsos, de culpa, localizada no plano superior, não poderia ser pensada como um modo compensatório, disfarce ou travestimento hipócrita que figura a má consciência de abastados e de seus porta vozes? Até que ponto, afinal, o romance é de fato fundado numa perspectiva que não privilegia os grupos dominantes? Em que medida o elogio a uma harmonia de diferenças não ofusca a percepção de tensões irresolvidas, que dão vazão a desentendimentos e não raro descambam em conflitos efetivos?

A leitura de Antonio Candido, por razões de natureza sobretudo teórica, parece dar destaque insuficiente a uma série de cenas, boa parte delas efusivamente marcadas pela violência. Por exemplo, a algumas em que o representante maior do pólo da ordem, o Major Vidigal, disciplina e pune representantes do pólo oposto, ou até de seu próprio pólo, isso com a condição de estes serem surpreendidos acompanhando práticas propostas por aqueles. Tudo isso em conformidade com seus caprichos ou inclinações de momento. É o caso da cena em que Leonardo Pataca é flagrado na casa do Caboclo do Mangue, em pleno delito de nigromancia, quando Vidigal, após exigir dos presentes que continuassem a cerimônia até que estivessem extenuados, ordena que sejam açoitados, levando a seguir o pobre Leonardo para a casa da guarda, de onde só sairia após o empenho de aliados poderosos em seu favor. Vale lembrar que o arbítrio do Major fica também evidente quando resolve poupar o Mestre de Cerimônias do vexame de ficar exposto, preso, ao público, após este ter sido descoberto na festa na casa de sua amante cigana, não por acaso a mesma personagem que motivara a prisão de Leonardo.

No episódio da fuga de Leonardo filho a presença do afeto como vetor do comportamento do Major é evidenciado, ao lado de seu caráter vingativo, que reaparece no episódio do “papai lêlê, seculorum”. Em síntese, a caracterização da personagem é feita a partir de uma ênfase notável em componentes arbitrários de sua personalidade, e nos poderes despóticos que concentra. A um só tempo, como explicita o narrador, ele é policial, juiz e carrasco:

O major Vidigal era o rei absoluto, o árbitro supremo de tudo o que dizia respeito a esse ramo de administração; era o juiz que julgava e distribuía a pena, e ao mesmo tempo o guarda que dava caça aos criminosos; nas causas da sua imensa alçada não haviam testemunhas, nem provas, nem razões, nem processo; ele resumia tudo em si; a sua justiça era infalível; não havia apelação das sentenças que dava, fazia o que queria, e ninguém lhe tomava contas. Exercia enfim uma espécie de inquirição policial.

 

A passagem, a despeito de sua expressão cristalina, é ainda complementada por uma observação do narrador que resume, através de modalizações cujo alcance irônico é evidente (de antemão preparada pelo itálico colocado em palavra estratégica), o quanto havia de arbitrário nas intervenções da personagem. Esta nem por isso é desabonada; ao contrário, o narrador demonstra uma simpatia condicional por ela, revelando um tipo de complacência ou condescendência, quiçá cumplicidade, que guarda alguma analogia com as relações descritas no romance, em particular entre membros do grupo superior:

Entretanto, façamos-lhe justiça, dados os descontos necessários às idéias do tempo, em verdade não abusava ele muito de seu poder, e o empregava em certos casos muito bem empregado.20

Incansável perseguidor de festas populares, nos arrabaldes do Rio de Janeiro, em que modas e fados eram entoados, tormento de magos, curandeiros ou praticantes de religiões que não gozavam de boa reputação, além de vadios e capoeiras, as intervenções do Major, restritas como realçou Antonio Candido ao universo inferior, tinham também a função de resguardar valores, zelar por práticas e costumes sancionados pelos de cima.21

Se a encarnação da ordem que era o Major Vidigal opera de maneira seletiva, a justiça efetiva, por seu turno, não fica atrás, sendo no romance considerada em função de sua parcialidade, senão exclusividade. Logo na abertura do livro, ainda no primeiro capítulo, ela é descrita não só como terrível, mas também como inacessível, em particular para os representantes do hemisfério inferior, o da desordem. O “— Dou-me por citado —”, como ressalta o narrador:

… eram uma sentença de peregrinação eterna que se pronunciava contra si mesmo; queriam dizer que começava uma longa e afadigosa viagem, cujo termo bem distante era a caixa da Relação e, durante a qual, se tinha de pagar importante passagem em um sem número de pontos; o advogado, o procurador, o inquiridor, o escrivão, inexoráveis Carontes, estavam à porta de mão estendida, e ninguém passava sem que lhes tivesse deixado, não um óbolo, porém o conteúdo de suas algibeiras, e até a última parcela de sua paciência” (p. 6).

Pouco adiante, na seqüência da cena em que Leonardo Pataca agride a Maria, quando esta faz menção de procurar pela justiça, a resposta do compadre barbeiro soa como veredicto implacável: “ — É melhor não se meter nisso, comadre… sempre são negócios com a justiça… o compadre é seu oficial, e ela há de punir pelos seus” (p. 12). Além do corporativismo, o acesso à lei como privilégio dos poderosos é reiterado na apresentação da personagem de D. Maria, caracterizada como dona de um dos “peiores vícios daquele tempo” (p. 76), “a mania das demandas” (p. 77), que é em seguida justificada com uma referência explícita à disponibilidade financeira: “Como era rica, D. Maria alimentava este vício largamente” (p. 77).

A leitura de Antonio Candido confere também pouco destaque a um mecanismo básico de comportamento que regula a convivência de boa parte das personagens das Memórias. Não por acaso tal comportamento é expressão de conflitos manifestos e latentes que perpassam a sociedade enfocada por Manoel Antônio de Almeida. Trata-se da criação de intrigas, calúnias ou maledicências, a traição pura e simples ou a fabricação de confusões, mecanismos pelos quais as personagens tentam defender seus interesses ou realizar seus propósitos, à custa da desqualificação e do descarte de seus oponentes de momento.

Assim Leonardo Pataca, para tentar reaver os amores da cigana que o trocara pelo Mestre de Cerimônias, busca ajuda a um capoeira, pagando-lhe para que este fosse à festa na casa da ex-amante, onde sabia que estaria seu oponente, e uma vez lá armasse confusão. Após ativar o pólo da desordem, ele vai atrás do representante da ordem, Vidigal, contando-lhe da festa e afiançando que haveria baderna, episódio que culmina na punição do Mestre de Cerimônias e seu posterior desligamento da cigana, que reata com Leonardo.

Também Leonardo filho, que encontra em José Manoel um rival em seus amores com Luisinha, sente ganas de decapitá-lo e se preocupa em encontrar meios de “dar cabo” dele, como indica o relato. Em auxilio de Leonardo vem o padrinho, e este reclama a intervenção da comadre, que se põe em ação. Primeiro lançando comentários para que D. Maria atentasse para o mau caráter de José Manoel, e com ele antipatizasse, movendo uma “intriga surdíssima e constante” (p. 111) contra ele; em seguida armando uma calúnia atroz, quando o acusa de ter sido o desconhecido que havia fugido com uma moça de família, o que faz com que D. Maria não mais o receba em casa.

Por ocasião de seus amores com Vidinha, Leonardo será outra vez pivô de uma intriga movida por questões amorosas, quando dois primos da mulata, vendo-se preteridos, armam para o oponente uma cilada para tirá-lo da cena, isso após uma “guerra de dous contra um (…) [a] princípio surda e muda (…) [que] passou a ditérios, a chasques, a remoques (…) [e] finalmente desandou em descompostura cerrada” (p. 146). Por fim denunciam Leonardo para Vidigal, que o prende por conta da vida vadia que levava.

O Toma-Largura é outro que planeja vingar-se de Leonardo, mas é este que dele se vinga quando o prende, isso não sem antes Vidinha ter se aproximado do empregado da casa real com o intuito de vingar-se a um só tempo tanto de Leonardo como da rapariga da ucharia. Se no episódio com Teotônio, na casa de seu pai, Leonardo titubeia entre trair ao Major ou a Teotônio, optando por fim em enganar ao primeiro, na seqüência ele próprio é traído, acabando por ver-se mais uma vez aprisionado, agora porém numa situação mais delicada.

O enredo das Memórias, deste modo, mostra desenvolver-se em torno de um tipo básico de operação que manifesta conflitos latentes e não redundam em arranjos ou acordos, mas com o afastamento de rivais. Mesmo que tal prática seja comum a membros de ambos os hemisférios, há um esboço de organização bastante significativo. Porque, de um lado, o recurso à violência pura e simples, ao confronto direto, ocorre notadamente entre membros do segmento inferior ou inferiorizado (caso de Leonardo Pataca quando se mete com a cigana ou com o Caboclo do Mangue) e, de outro, apenas nesse segmento ocorrem traições efetivas, enquanto no lado superior predominam calúnias e intrigas. É ainda apanágio sobretudo dos poderosos, ou daqueles que por felizes acasos podem valer de sua proteção (como, de novo, é o caso de Leonardo Pataca, e da comadre), contarem com intermediários para auxiliarem em suas causas quando apanhados em delito ou quando procuram realizar suas ambições e desejos. Leonardo Pataca conta com o auxílio do Tenente Coronel em duas oportunidades, quando vai preso e quando viu-se em apuros por conta de irregularidades que cometera em autos sob sua responsabilidade. O Tenente, por seu turno, recorre a um “fidalgo de valimento”, que encontra entre seus companheiros um aliado, por conta de também este freqüentar práticas proibidas de feitiçaria. Ainda José Manoel vale-se de intermediários de influência, no caso o Mestre de Rezas.

Há uma sugestiva distribuição do usufruto do poder e da influência nas Memórias. Os que estão em posição mais elevada na escala social servem-se dos de abaixo para realizar caprichos ou para reafirmar e potencializar sua posição, visto que têm o poder de dobrar a lei e a ordem, no mínimo influir sobre ela. Quando ocorre que sejam contrariados, têm aliados bem postos para interceder por eles. Ao mesmo tempo, o lugar que ocupam lhes faculta, senão a impunidade, ao menos um abrandamento “natural” das punições, como ocorre com o Mestre de Cerimônias e como é indicado até no caso do Toma-Largura, que embora “da última classe, sempre era o toma-largura gente da casa real, e nesse tempo tal qualidade trazia consigo não pequenas impunidades” (p. 181).

Algumas passagens do romance sugerem inclusive que a infração à ordem é quase universal entre membros dos extratos mais altos. Por exemplo, quando o narrador, discorrendo sobre a prática interdita da feitiçaria, assinala que “não era só a gente do povo que dava crédito às feitiçarias; conta-se que muitas pessoas da alta sociedade de então iam às vezes comprar aventuras e felicidades pelo cômodo preço da prática de algumas imoralidades e superstições” (p. 19). O episódio da detenção do Mestre de Cerimônias deixa claro que entre os de cima a questão não era a de cometer infrações, pois era “certo não estar nenhum deles a tal respeito em circunstâncias de (…) atirar a primeira pedra” (p. 71), mas de que estas viessem à luz.

A observação do narrador após a explicação da origem da pequena fortuna do compadre barbeiro é indicação cristalina de um universo em que a culpa, que existe e é no caso explicitada, perde peso moral porque disseminada, comum, porque ganha justificativa em bons propósitos, mesmo que descortinados a posteriori, e porque combina com a lógica individualista, da exceção, que impera no romance, onde o que mais vale é a satisfação de desígnios pessoais: explicação dos inúmeros “arranjei-me (…) que vão aí pelo mundo” (p. 39).

Quanto aos que estão mais embaixo, resta-lhes recorrer à lei quando esta lhes convém, o que não os livra de serem perseguidos por ela logo a seguir, e pedir socorro para os de cima, para que intercedam em seu favor. Uma lógica fundada no arbítrio e na autoridade, ou seja, na cordialidade no sentido que Sérgio Buarque de Holanda a conceitualizou, impera nas Memórias.

Um dos argumentos a que Antonio Candido recorre em abono a sua leitura diz respeito a uma suposta neutralidade da perspectiva.22 Passagens do romance, contudo, possibilitam relativizar, ao menos, tal interpretação. Longe de uma neutralidade, elas indicam um posicionamento bastante claro do narrador diante de grupos ou seres enfocados, podendo ser vistas, por isso, como materializações de parcialidade. Manifestam uma visão de mundo que comunga valores característicos do plano da ordem. A descrição do caboclo da Casa do Mangue, qualificado como “nojento nigromante” (p. 20), é nesse sentido enfática: “Esta sinistra morada era habitada por uma personagem talhada pelo molde mais detestável; era um caboclo velho, de cara hedionda e imunda, e coberto de farrapos.” (p. 19)

Referindo-se a uma comunidade de ciganos, da qual Leonardo se aproximara, a má vontade com que a apreende justifica a escolha de uma cigana, a mesma inclusive, como causa da paixão, e da perdição momentânea, de Leonardo Pataca e do Mestre de Cerimônias:

Com os emigrados de Portugal veio também para o Brasil a praga dos Ciganos. Gente ociosa e de poucos escrúpulos, ganharam eles aqui reputação bem merecida dos mais refinados velhacos: ninguém que tivesse juízo se metia com eles em negócios, porque tinha certeza de levar carolo. A poesia de seus costumes e de suas crenças, de que muito se fala, deixaram-na da outra banda do oceano; para cá só trouxeram maus hábitos, esperteza e velhacaria (p. 26).

 

Quando apresenta aos leitores José Manuel a antipatia e a prévia determinação com que brinda a personagem saltam também aos olhos:

… quem olhasse para a cara do Sr. José Manuel assinalava-lhe logo um logar distinto na família dos velhacos de quilate. E quem tal fizesse não se enganava de modo algum; o homem era o que parecia ser. (…) Entre todas as suas qualidades possuía uma que infelizmente caracterizava naquele tempo, e talvez que ainda hoje, positiva e claramente o fluminense, era a maledicência (p. 94).

A parcialidade evidenciada na passagem é ainda potencializada se lembrarmos que boa parte das personagens do livro se caracteriza pela maledicência, senão pela traição pura e simples. Como a prática de delitos, ela é comum, mas no caso é objeto de uma condenação dirigida unicamente a uma personagem, movimento de arbítrio, portanto. O narrador de certo modo e no plano que lhe cabe mostra por vezes atuar em sintonia com o que observara com respeito a Vidigal, julgando e condenando quem quer, em função de valores que compartilha ou por razões afetivas. Ainda com referência a José Manoel, por exemplo, é de antemão revelado que a corte a Luizinha mirava na verdade a fortuna de D. Maria, revelação que ganha ares de condenação, quando menos por surgir em continuidade à caracterização negativa há pouco efetivada. Quando se trata do padrinho, contudo, revelação similar é precedida e seguida de descrições centradas no desespero de Leonardo causado pela descoberta de que tinha um rival, o que atenua o peso da denúncia (pp. 95 e 97).

A respeito da união ilegítima para Luisinha e Leonardo, posto que este, sendo sargento de linha, não podia casar-se, o narrador lança um juízo moral que rebate, enquanto crítica, no próprio momento contemporâneo: “Esse meio de que falamos, essa caricatura de família, então muito em moda, é seguramente uma das causas que produziu o triste estado moral da nossa sociedade”. (p. 208).

Longe de uma neutralidade moral correspondente a uma neutralidade social, a irreverência estilística dasMemórias, a “irreverência popularesca”, nos termos de Antonio Candido, talvez possa também ser vista como mais uma forma de reiterar a posição de mando e a desigualdade que impera no universo social ali resumido. Seja como for, iluminando outras cenas e passagens não realçadas por Antonio Candido, ou colocando sob outra luz passagens por ele tratadas, emerge uma leitura distinta do livro, em que a lógica da conciliação cede lugar a uma lógica em que a autoridade vigia, espreitando e dominando a convivência aparentemente pacífica, pronta a intervir e restabelecer uma ordem da qual ela sabe muito bem usufruir em proveito próprio. A arraia miúda, aqueles que fazem parte do hemisfério inferior são obrigados a se conformar com o papel de pacientes da lei, instrumentos de um ordenamento hipócrita porque fundado na exceção. Como se pode notar, há muito mais atualidade neste quadro do que seria de se esperar, infelizmente.

Ocorre que a análise proposta na “Dialética da malandragem” tornou-se um marco na crítica literária e em análises sociais do país.23 Não há como tratar disso aqui, mas surpreende que a generalização da interpretação proposta por Candido tenha sido até mesmo estendida para Cidade de Deus, romance de Paulo Lins que, ao propor um quadro que acompanha a escalada da violência nos morros e favelas do Rio de Janeiro, indicando a passagem de Salgueirinho a Zé Pequeno, ilustra com propriedade uma forma de reação contra a autoridade ali mesmo no coração do arbítrio, o que permite que o romance possa ser visto como alegoria de uma sociedade anômica e agônica. Diagnosticada a asfixia da possibilidade mesma de arbitragem, o enredo figura o esgotamento da paciência de membros daqueles segmentos sempre tratados como pacientes de uma ordem que lhes é e foi sempre alheia e imposta.

Longe de ser um caso isolado, ou resposta a uma situação contemporânea, o romance de Paulo Lins soma-se a uma série de outras narrativas que, já desde o século XIX, atentaram para fraturas que marcam o solo da sociedade brasileira, e que não cessaram de se alargar e se aprofundar. Motivando relatos em que figuram revoltas coletivas ou ações mais pontuais, imaginadas ou baseadas em episódios da história do país, é normal em tais livros a narração de reações violentas, notadamente por parte do Estado, como recurso tradicional de contenção e eliminação de distensões. Antecessores ilustres são, por exemplo, Euclides da Cunha, Lima Barreto, João do Rio, Aluísio Azevedo, Adolfo Caminha, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Rubem Fonseca, João Antônio, entre muitos outros.

Com relação às narrativas destes antecessores, todavia, em livros recentemente lançados, a exemplo deCidade de Deus, há uma diferença clara e significativa no modo e na perspectiva segundo os quais a apreensão da violência é realizada. Antes o predomínio absoluto era da terceira pessoa, ocupando a narração o lugar de intermediário entre o mundo dos poderosos, a quem se dirigia, e o mundo dos subalternos, que aparecia como uma espécie de objeto, ainda que fosse amiúde em seu nome que tais narrativas fossem forjadas. Com a ficção de Paulo Lins, Ferréz, ou o relato de autores como Luiz Alberto Mendes ou André du Rap, com o trabalho de um enorme contingente de funkeirosrappers, é possível ver surgir um outro tipo de autoridade, baseada em uma experiência que a fratura social brasileira tornou particular, quiçá exclusiva, de grupos e segmentos sociais tradicionalmente postos à margem pelo Estado, e pelos poderosos, a não ser quando se trata de reprimi-los ou deles se servir para legitimar a própria distribuição de poder, que os alija, conformando-se assim um perverso ciclo vicioso.24

O trabalho de criadores como tais inverte ou subverte a lógica da objetificação antes dominante, na medida em que ao usarem da palavra reivindicam para os grupos e segmentos de que fazem parte o lugar de sujeito, se não de sua própria história, ao menos do direito de se representarem (como faz, por exemplo, o MC Catra em sua entrevista). Num breve porém instigante ensaio há pouco publicado, João Cezar de Castro Rocha, referindo-se à cultura brasileira contemporânea, propõe uma mudança de paradigma pelo qual a “dialética da malandragem”, tal como conceituada por Antonio Candido e desenvolvida, entre outros, por Roberto da Matta, seria substituída por uma “dialética da marginalidade”. Isso porque, segundo ele, tal modo de interpretar a sociedade, ainda que pertinente na medida em que indica com propriedade o apego das elites nacionais ao monopólio do exercício do poder, não mais daria conta de “grande número de produções recentes que desenham uma nova imagem do país”. Tal imagem seria “definida pela violência, transformada em protagonista de romances, textos confessionais, letras de música, filmes de sucesso, programas populares e mesmo séries de televisão”.25

É com base na constatação de que a confrontação manifesta mostra-se refratária a políticas ou leituras de conciliação, em parte devido à ausência de um denominador comum, que o ensaísta propõe o conceito da “dialética da marginalidade”, indicando com isso a superação parcial da “dialética da malandragem”. Percebendo um processo de infantilização do ponto de vista na adaptação de Cidade de Deus para o cinema, e em séries televisivas, ele caracteriza a “dialética da marginalidade” a partir de seu “alvo coletivo” e “pelo esforço sério de interpretação dos mecanismos de exclusão social, pela primeira vez realizado pelos próprios excluídos” (p. 8). A partir, portanto, de um assalto à fortaleza da palavra e de códigos e procedimentos de representação. Trata-se, em suma, de um processo de subjetivação que implica no direito e no poder de definir a própria imagem.26

Também Beatriz Resende, no painel que traça da literatura brasileira contemporânea, chega a conclusões semelhantes. Refletindo a partir da categoria do exílio, com a qual acompanha a cena cultural desde o retorno dos exilados políticos da ditadura, a autora identifica, na transição do século XX para o XXI, a emergência de uma literatura preocupada com o tema da exclusão, não mais territorial, mas social e econômica. O destaque é posto no fato de este espaço de exclusão paradoxalmente engendrar “sujetosde la producción artística, ahora también em la literatura”.27 Cidade de Deus é tomado mais uma vez como marco para esse processo de resgate do poder de usufruto da palavra, da possibilidade de organização de um discurso particular, não mais dependente de mediações e mediadores dado que surgida no interior mesmo dos espaços de exclusão tanto física como espacial, material e simbólica. A reversão do status quo percebida por Beatriz Resende altera ainda, segundo ela, o sentido do vetor que normalmente orienta as relações culturais numa sociedade como a brasileira. Ao invés, ou ao lado, de uma influência dos autores consagrados sobre os criadores marginais, ela divisa agora um trânsito em sentido contrário:

no cabe más al escritor llevar el arte a estos exiliados. Puede, sin embargo, entrar también por esta puerta estrecha que se abrió y participar — em su obra — del mundo de los exiliados de la gran ciudad, del consumo, del universo de la droga, los exiliados que viven en los morros de las ciudades y donde son perseguidos, ya sea por los soldados armados del narcotráfico o por los de la policía misma (pp. 118-119).

Como exemplo desta alteração Beatriz Resende lembra o nome de Luiz Ruffato, com seu Eles eram muitos cavalos.

Preocupada com o lugar do intelectual na sociedade contemporânea, lugar que ameaça ser ainda mais esvaziado em virtude dessa tomada da palavra por aqueles que tradicionalmente se viam dela excluídos, não necessitando portanto de mediadores, a autora defende a existência de um espaço a ser ocupado em situações de crise. Para tanto, e tendo em mente o exercício realizado por Ruffato em seu livro, ela postula para o intelectual e para o crítico o papel de tradutor, “el duro oficio de saber oír las voces de las múltiples cultureas e intentar traducirlas unas a las otras” (p. 121).

Há, claro, riscos evidentes nesta perspectiva, sendo o maior deles o retorno à situação anterior em que a expressão de excluídos dependia de mediadores para ser avalizada e conhecida. Um outro risco a ser considerado é o de que intelectuais e críticos, em nome do conhecimento ou do apuro estético, ou seja, de uma política valorativa, descartem produções realizadas por membros de grupos marginalizados. Em nome, por exemplo, de uma suposta pouca qualidade, ou do realismo por que elas se pautam. Esse, no caso, passa de bandeira de criadores, ou princípio de defesa mobilizado por advogados contra ataques policiais, para motivo de desqualificação pura e simples vinda da parte de intelectuais. Abre-se, com isso, uma outra frente na batalha da representação.

Este parece ser o caso da posição de Flora Süssekind, que identifica em livros feitos por ou sobre excluídos uma “imposição representacional”.28 A presença, em Capão pecado, de Férrez, e em Estação Carandiru, de Dráuzio Varella, de cadernos com fotos “que parecem materializar a geografia romanesca”, motiva a avaliação da autora de que tal prática leva à produção de “uma relação de dependência discursiva evidente do modo narrativo com relação à sua contraparte visual” (p. 62). Daí decorrer, segundo ela, uma “neutralização do processo narrativo, em prol de um inventário imagético” que desaguaria numa tendência à

reprodução de tipologias e conceituações correntes, estandardizadas, com relação a essas populações, quanto ao congelamento da perspectiva (à primeira vista aproximada) de observação numa presentificação restritiva, estática, fundamentada no modelo da coleção, e não na experiência histórica propriamente dita (p. 63).

Daí, ainda, um acento na, ao invés de crítica da, diversidade social de antemão estabelecida, senões que são estendidos mesmo para o romance de Paulo Lins, tido como exemplo de “livros-roteiros-potenciais” publicados, e adaptados para o cinema, nos últimos anos.

O acento em categorias estéticas que Flora Süssekind nomeia como “desrealização”, “reduplicação perversa”, ou a valorização de circunstâncias como os “‘encontros inesperados’ entre pessoas díspares”, que empresta de Ismail Xavier, a busca de “um rastro de Guignol na vida cultural brasileira das últimas décadas”, entre outras referências eruditas, não esconderiam alguma má vontade ou um certo desprezo por relatos crus e objetivos como os que ela condena, exatamente por supostamente falsearem ou imobilizarem a percepção de conflitos e fissuras sociais? Não haveria aí uma valorização do conhecimento em detrimento da experiência, um autoritário esvaziamento da autoridade, “ou seja, [d]a palavra e [d]o conto” (23), uma recusa ou desconfiança em “aceitar como válida uma autoridade cujo único título de legitimação” não deixa de ser uma experiência, conforme assinala Giogio Agamben?29

Já as reflexões propostas por Márcio Seligmann-Silva, acerca da chamada literatura carcerária ou prisional, operam notadamente com base nos conceitos de experiência e memória, por certo traumáticas na medida em que marcadas pelo universo violento que as conforma. Trata-se, segundo ele, de uma “literatura do real”, em que o testemunho como testis, certificado, se articula com o testemunho comosuperstes, martírio.30 Longe de considerá-la apenas em termos locais, o autor busca relacioná-la não só com tradição latino-americana da literatura de testimonio, mas também com a tradição da modernidade ocidental, o “movimento em direção ao real”, este, lido como “(des)encontro violento com o mundo” (p. 34), com o outro, constituindo um horizonte comum.

Na medida em que analisa essa literatura carcerária como manifestação de uma realidade extrema, no sentido benjaminiano do conceito, Seligmann-Silva avança das considerações estético-formais para uma concepção mais ampla do próprio gesto da escrita, o que permite pôr em discussão “o sentido atual da relação entre crítica literário-estética e crítica social” (pp. 37-38). A recorrência do termo “sobrevivência” no título de alguns destes livros (Memórias de um Sobrevivente, de Luiz Alberto Mendes; Sobrevivente André du Rap (do Massacre do Carandiru), de André du Rap), e nos testemunhos de autores da literatura e da cultura marginais31, indicam a oportunidade de pensar toda essa produção não segundo uma lógica instrumental, mas como expressão de um imperativo, de uma necessidade que traz “a eloqüência própria da vida, como um exemplo real, chocante, vivo e extremo, da função libertadora e vital do testemunho”.32Ou, nos termos de Márcio Seligmann-Silva, temos aí a revelação da “memória traumática e encriptada” como “uma modalidade de apresentação do esquecimento, do censurado e recalcado, que agora vem à tona nessas obras e reivindica o seu direito à voz”. As recordações, que aprisionam, levando “paradoxalmente à escritura como estratégia de arquivamento para esquecer” (p. 41) e, ao mesmo tempo, atestar o acontecido.

A literatura carcerária, dado o absurdo que encena, coloca em questão a lógica do bom senso, do logosracional, fundado na causalidade. A emersão do outro deste logos, todavia, pode ser também identificado em textos mais propriamente ficcionais, como os romances de Paulo Lins e Ferréz, por exemplo. Referindo-se a Cidade de Deus, Roberto Schwarz realça a inquietante presença do acaso como vetor principal de parte das ações narradas, e o recorrente naufrágio das intenções, apontando, enfim, para “uma dissolução geral do sentido”.33 Observações semelhantes podem ser feitas com relação aos livros de Ferréz. Nessas ficções, e também em Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato, salta aos olhos a incrível recorrência de situações mais ou menos fortuitas, via de regra culminando com a morte de dado protagonista, imediatamente substituído por outro, por vezes ainda mais jovem, o que enseja a formação de um círculo macabro que retorna sempre ao mesmo ponto, num ritmo porém sempre acelerado.

Em termos de estruturação estes livros têm em comum a fragmentação da narrativa e dos nexos temporais imediatos, a abertura do quadro de referências, que mesmo partindo de um enfoque centrado em dada comunidade se espraia pelo tecido urbano mais amplo, isso em harmonia com o recurso a uma perspectiva plural, de matriz rizomática, já que o número de personagens em cena é invariavelmente elevado. Quanto à linguagem, o forte apoio na oralidade dá ensejo a diálogos curtos e rápidos, o que ajuda na criação do ritmo alucinado, e que tem por contraste as intervenções dos narradores. Em termos técnicos, portanto, tais narrativas nada têm de primário, demandando um domínio considerável dos meios de expressão. Os romances revelam, portanto, um rigor e vigor de composição evidentes, um esforço consciente de encontrar soluções apropriadas para a matéria neles tratada.

A lógica da construção, deste modo, contrasta com a falta de lógica das ações narradas, contraste bastante significativo já que resume, de forma alegórica, o confronto entre letra e lei. Os motores das ações são aparentemente simples, da ordem da satisfação dos desejos ou dos sentimentos mais imediatos: a vingança, o sexo, a ostentação de objetos de consumo e de armas, o respeito ou o medo que suscitam nos outros, o consumo de drogas e álcool. A pressa com que tais demandas são perseguidas pode ser vista como função da consciência da transitoriedade da situação vivida pelas personagens, emblematicamente traduzida pela presença constante da traição e da delação, que faz de aliados de ontem inimigos de agora, e pela contínua desconfiança que todos nutrem por todos. A morte, afinal, é destino certo, coletivo.

Não seria possível perceber, nessas ficções, um “exercício de crueldade”, um apelo para que, voltando as costas à perenidade e à finalidade, atentemos para a promessa de triunfo para quem se apega à irresolução do instante, já que, conforme Georges Bataille, “la paradoja de la emoción sostiene que su sentido será mayor cuanto menos sentido tenga”?34 A representação do horror nelas ensejada não permitiria um alargamento do possível alcançado exatamente nas imediações da morte?

As reflexões de Bataille permitem lançar um outro olhar para estas ficções, percebendo em seus enredos um movimento que as aproxima da esfera do jogo, e do jogador em seu sentido mais extremo, ou seja, como aquele que coloca em jogo a sua vida mesmo, o que o livra de qualquer forma de coação, resumida pela figura do medo. A ausência de razão ganha com isso sinal inverso, já que a razão condena, por não poder compreendê-los, os excesso que governam o jogo, presa que está ao universo do trabalho, da acumulação, da causalidade.

Por outro lado, levando em conta a análise que Giorgio Agamben propõe sobre as conexões entre o jogo e o tempo, quando realça que o primeiro “tende a romper a conexão entre passado e presente e a resolver e fragmentar toda a estrutura em eventos”35, transformando sincronia em diacronia, que reina absoluta como no tempo infernal da roda de Íxon, é possível vislumbrar uma sugestiva conexão que pode muito bem auxiliar a entender essas ficções. Afinal, a somatória da fragmentação estrutural e da persistente e alucinante repetição de situações, ou seja, de jogos, que nelas se observa, insinua a paralisia da história e a perpetuação da distribuição desigual de ônus e bônus entre grupos da sociedade brasileira.

Ao aceitar jogar de modo autêntico, desencadeando inclusive a violência, as personagens renunciam ao servilismo implicado pela lógica do trabalho. Mais que apenas resposta às fraturas sociais existentes na sociedade brasileira, essa literatura da marginalidade não deixa de apontar para fissuras mais sutis, o que é próprio da arte, de onde porventura emerge um pensamento de algum modo mais livre, e também um jogo cujo esquecimento não trouxe nada mais, nas palavras de Bataille, “que los trabajos forzados de innumerables moribundos, de innumerables soldados…”.36)

 

Nada mais sintomático que a ação da polícia ter tido por epicentro o Morro da Providência. Primeira favela do Rio de Janeiro, ocupada, em falta de melhor opção, por soldados da República recém criada, grande parte deles ex-combatentes da Guerra de Canudos, para quem o governo federal prometera doar casas, na cidade maravilhosa — o resto, assassinado ou segregado, matável e insacrificiável, saga de Homo sacer.

*Carlos Eduardo Schmidt Capela é doutor em Literatura, professor associado de Teoria Literária e do Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), além de pesquisador do CNPq. Possui artigos publicados em várias revistas especializadas na área de Literatura.

NOTAS


1 Minha aproximação aos temas de que trata este ensaio deve muito a Juliane Bürger e a Daniel Félix, que em função de suas pesquisas ajudaram a abrir meus horizontes com respeito à representação da violência, da exclusão, e quanto a mecanismos de controle implicados na tarefa de vigilância e contenção sociais. Agradeço ainda ao grupo de alunos que acompanhou as aulas do curso, que ofereci no Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina, no 1º semestre de 2005, cujo título foi exatamente o mesmo do presente ensaio, e no qual essa leitura foi sendo esboçada, com o apoio das discussões e sugestões nascidas na cumplicidade da sala de aula.

 

2 As reportagens foram publicadas nos dias 04/10/2005 e 05/10/2005, na Folha de S. Paulo, no caderno “Cotidiano”, respectivamente nas pp. C1 (com texto principal de Sérgio Rangel, ”Funkeiros são acusados de exaltar o tráfico”, de onde foi retirada a citação) e C3 (com texto assinado por Jaime Gonçalves Filho, “Funkeiro indiciado diz ‘cantar a realidade’”).

3 A citação é do texto de Jaime Gonçalves Filho. Matéria publicada um dia depois informa que a MC Sabrina, do grupo dos funkeiros indiciados, estava sendo também acusada de tráfico de drogas, “por ter cantado músicas que exaltariam traficantes, drogas e ações criminosas”. Segundo a reportagem, ela foi incluída no “item da Lei de Entorpecentes que estabelece como prática de tráfico induzir, instigar ou auxiliar alguém a usar drogas ou substância que determine dependência física ou psíquica”. “MC Sabrina é acusada de traficar drogas”, Folha de S. Paulo, 06/10/2005, caderno “Cotidiano”, p. C4 (texto da “Sucursal do Rio”).

4 O episódio figura em Cabeça de porco, de Luiz Eduardo Soares, MV Bill e Celso Athayde (Rio de Janeiro: Objetiva, 2005), sendo relatado pelo próprio MV Bill, que a partir da experiência lança algumas reflexões sobre a intolerância da sociedade brasileira com relação aos jovens da periferia, envolvidos ou não com o tráfico de drogas e com o crime (pp. 273-276). Situação análoga envolveu João Moreira Salles, por conta de sua aproximação com Marcinho VP, cujos desdobramentos são narrados e interpretados por Luiz Eduardo Soares, no mesmo livro (pp. 100-108). Também Caco Barcellos, em Abusado: o dono do Morro Dona Marta (6ª ed., Rio de Janeiro: Record, 2003), em que conta a trajetória de Marcinho VP, refere-se à relação entre este e João Moreira Salles e dá sua versão do episódio, transcrevendo inclusive editoriais e opiniões de intelectuais à época estampados em jornais do Rio de Janeiro (pp. 522-524). Tanto Caco Barcellos quanto Luiz Eduardo Soares fazem menção a uma suposta chantagem de setores da polícia contra João Moreira Salles. A recente exibição do vídeo de MV Bill na TV Globo, em horário e programa “nobres”, abre uma nova frente de discussão em torno deste tema tão incômodo, e intrigante. A atualidade e a pertinência do debate são de todo modo inquestionáveis. Daí, quiçá, o evidente mal estar que acarreta, e que justifica seu aflorar intermitente, em especial em momentos ligados a situações de crise.

5 A afirmação é de Nilo Batista, ex-governador e ex-secretário de segurança do Rio de Janeiro: “Esses jovens são artistas populares, que têm uma produção que fala da realidade e da crueldade em que vivem. Grande parte delas [das músicas] nem de autoria deles são. Mas representam aquilo que vivem diariamente”; “Defesa contará com mutirão de advogados”, Folha de S. Paulo, 05/10/2005, Caderno “Cotidiano”, p. C3.

6 A reportagem da Folha de S. Paulo, do dia 05/10/2005, traz o fragmento de uma das letras que motivaram o indiciamento. Trata-se do “Bonde do 157”, do MC Frank: “Não se move, não se mexe / Na Chatuba é 157 / Não tira a mão do volante / Não me olha e não mexe / É o bonde da Chatuba / Do artigo 157 / Vai, desce do carro / Olha pro chão, não se move / Me dá seu importado / Que o seguro te devolve / Se liga na minha letra / Olha nós aí de novo / É o bonde da Chatuba / Só menor periculoso / Audi, Civic, Honda / Citroën e o Corolla / Mas se tentar fugir / Pá, Oum! Tirão na bola / Na Chatuba é 157 / Aí parado, ninguém se mexe / Nosso bonde é preparado, mano PQP / Terror da Linha Amarela e da Av. Brasil / Nosso bonde é preparado / Não tô de sacanagem / Um monte de homem-bomba / No estilo Osama Bin Laden”.

7 Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, 13ª ed., Rio de Janeiro: José Olympio, 1979; p. 109.

8 Por um “princípio superindividual de organização”, na palavra de Sérgio Buarque de Holanda. Daí que cada um afirme-se “ante seus semelhantes indiferente à lei geral, onde essa lei contrarie suas afinidades emotivas, e atento apenas ao que o distingue dos demais, do resto do mundo”; Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, op. cit., p. 113.

9 Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, op. cit., respectivamente pp. 119, 121 e 133.

10 Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, op. cit., respectivamente pp. 121, 123 e 132. Em suas reflexões sobre Raízes do Brasil, Maria Odila Leite da Silva Dias observa que o alheamento identificado por Sérgio Buarque dificultou a construção de uma identidade nacional e exacerbou fraturas sociais e políticas características do país: “Através de um estilo que disciplinava negações, desfilava o historiador os obstáculos que se opunham à consolidação de uma identidade nacional entre nós. De um lado, a hipertrofia do Estado e do poder das elites dirigentes, divorciados da realidade brasileira, a ela avessos, envergonhados ou indiferentes. De outro, uma sociedade dividida em pluralismos raciais e sociais, que não chegavam a viver plenamente a expressão ou as tensões de suas contradições. Eram os sintomas da existência de um profundo abismo entre sociedade e Estado, fenômeno a seu ver bem característico da sociedade brasileira.”. “Texto introdutório” aRaízes do Brasil, em Intérpretes do Brasil, 2ª ed., Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002; p. 906.

11 Ver, de Euclides da Cunha, por exemplo, “Da Independência à República (Esboço político)”, em À margem da Historia, 3ª ed., Porto: Lello & Irmãos, 1922; de José Bonifácio, “Representação à Assembléia Constituinte e Legislativa do Império do Brasil sobre a escravatura”; em Projetos para o Brasil, org. Miriam Dolhnikoff, SP: Cia das Letras, 1998.

12 Antonio Candido, “Dialética da malandragem”, O discurso e a cidade, 2ª ed., São Paulo: Duas Cidades, 1998; p. 51.

13 Antônio Candido, “Dialética da malandragem”, op. cit.; p. 51.

14 “Não querendo constituir um grupo homogêneo e, em conseqüência, não precisando defendê-lo asperamente, a sociedade brasileira se abriu com maior largueza à penetração dos grupos dominados ou estranhos. E ganhou em flexibilidade o que perdeu em inteireza e coerência.”. Antonio Candido, “Dialética da malandragem”, op. cit., p. 51.

15 Antonio Candido, “Dialética da malandragem”, op. cit., p. 51.

16 Antonio Candido, “Dialética da malandragem”, op. cit., p. 37.

17 Antonio Candido, “Dialética da malandragem”, op. cit., p. 43.

18 Antonio Candido, “Dialética da malandragem”, op. cit., p. 32.

19 “Sendo assim, é provável que a impressão de realidade comunicada pelo livro não venha essencialmente dos informes, aliás relativamente limitados, sobre a sociedade carioca do tempo do Rei Velho. Decorre de uma visão mais profunda, embora instintiva, da função, ou “destino” das pessoas nessa sociedade; tanto assim que o real adquire plena força quando é parte integrante do ato e componente das situações”; Antonio Candido, “Dialética da malandragem”, op. cit., p. 35

20 Manoel Antônio de Almeida, Memórias de um Sargento de Milícias, edição crítica de Cacília de Lara, Rio de Janeiro: LTC, 1978; p. 21 (doravante as páginas das citações, referidas sempre a essa edição, serão apresentadas logo após o texto citado, entre parênteses). Não deve ser esquecido o diálogo entre D. Maria e o Major, quando esta, a cigana e a comadre vão, em comissão, interceder em favor de Leonardo: “ — Mas um filho, quando é soldado, retorquiu o major com toda a gravidade disciplinar… / — Nem por isso deixa de ser filho, tornou D. Maria. / — Bem sei, mas a lei? / — Ora, a lei… o que é a lei, se o Sr. major quiser?…” (p. 201).

21 “Mais do que um personagem pitoresco, Vidigal encarna toda a ordem; por isso, na estrutura do livro, é um fecho de abóboda e, sob o aspecto dinâmico, a única força reguladora de um mundo solto, pressionando de cima para baixo e atingindo um por um os agentes da desordem. (…) O seu nome faz tremer e fugir.” Antonio Candido, “Dialética da malandragem”, op. cit., p. 42.

22 “Na construção do enredo esta circunstância (certa ausência de juízo moral e… aceitação risonha do “homem como ele é”) é representada objetivamente pelo estado de espírito com que o narrador expõe os momentos de ordem e de desordem, que acabam igualmente nivelados ante um leitor incapaz de julgar, porque o autor retirou qualquer escala necessária para isso”. Antonio Candido, “Dialética da malandragem”, op. cit.; p. 39.

23 O próprio Antonio Candido, por exemplo, aplica o princípio da dialética da malandragem para a sua análise de O cortiço, onde, segundo ele, “está presente o mundo do trabalho, do lucro, da competição, da exploração econômica visível, que dissolvem a fábula e sua intemporalidade. Por isso falei aqui em jogo do espontâneo e do dirigido, concebidos, não como pares antinômicos, mas como momentos de um processo que sintetiza os elementos antitéticos. Espontâneo —, mais como tendência, ou como organização difusa, à maneira da sociabilidade inicial do cortiço, fortemente marcada pelo espírito livre de grupo. Dirigido, — que é a atuação de um projeto racional”. Em “De Cortiço a Cortiço”, O discurso e a cidade, op. cit., p. 151.

24 Situação análoga pode ser vista em livros que operam a partir da oposição entre personagens nacionais e não-nacionais. Na ficção do século XIX até meados do século XX, estrangeiros e imigrantes são normalmente objetos do olhar. Já com autores como Ana Miranda (Amrik, 1997), Raduan Nassar (Lavoura arcaica, 1975), Fausto Wolf (A mão esquerda, 1996), Milton Hatoum (Relato de um certo Oriente, 1989, e Dois irmãos, 2000), Moacyr Scliar (A majestade do Xingu, 1997), Samuel Rawet (Contos do imigrante, 1956), José Clemente Pozenato (A cocanha, 2000), Salim Miguel (Nur, na escuridão, 1999), entre outros, a perspectiva se inverte, sendo os não-nacionais sujeitos de um olhar que tem por objeto cenas e seres nacionais.

25 João Cezar de Castro Rocha, “Dialética da marginalidade (Caracterização da cultura brasileira contemporânea)”, em Mais!, Folha de S. Paulo, 29/02/2004; pp. 4 a 8. A citação é da p. 6. Nas próximas citações deste ensaio será apenas indicado o número da página, entre parênteses, no corpo do texto.

26 Em sua análise de Cidade de Deus, Roberto Schwarz, embora identifique no livro a presença de “certo negaceio malandro entre ordem e desordem”, permanecendo portanto por uma parte no âmbito da Dialética da Malandragem, por outra mostra-se atento ao fato de que no romance os “resultados de uma pesquisa” foram “ficcionalizados do ponto de vista de quem era objeto de estudo”, que passa a sujeito de ação, reconhecendo portanto o processo de subjetificação em foco. Ao mesmo tempo, na conclusão do ensaio, parece apontar para o esgotamento da Dialética da Malandragem como princípio interpretativo da cena e da cultura contemporâneas. Referindo-se à época em que vigoravam outras modalidades, mais brandas, podemos dizer, de criminalidade, e ao seu recrudescimento contemporâneo, ele observa, comentando a princípio o período que antecedia o carnaval: “Os crimes, que certamente não deixam de acontecer no processo, são como que equilibrados pelo objetivo maior e comum, que alegra a cidade. É como se dentro da desigualdade houvesse uma certa homeostase do todo, até certo ponto tolerável, que a guerra do narcotráfico vem romper. No interior desta última e de suas exigências sem perdão, a alegria da vida popular e o próprio esplendor da paisagem carioca tendem a desaparecer num pesadelo, o que é um dos efeitos mais impressionantes do livro”. Roberto Schwarz, “Cidade de Deus”, em Seqüências brasileiras (Ensaios), São Paulo: Cia das Letras, 1999, pp. 163-171. As citações são das pp. 164, 168 e 171-172 respectivamente.

27 Beatriz Resende, “El exilio de los que se quedan”, em Sujetos em tránsito: (in)migración, exilio y diáspora em la cultura latinoamericana, ed. Álvaro Fernández Bravo, Florencia Garramuño e Saúl Sosnowski, Buenos Aires: Alianza, 2003; pp. 109-121. A citação é da p. 116. Nas próximas citações deste ensaio será apenas indicado o número da página, entre parênteses, no corpo do texto.

28 Flora Süssekind, “Desterritorialização e forma literária. Literatura brasileira contemporânea a experiência urbana”, em Literatura e sociedade, São Paulo: Universidade de São Paulo, FFLCH, DTLLC, n. 8, 2005; pp. 60-81. A citação é da p. 62. Nas próximas citações deste ensaio será apenas indicado o número da página, entre parênteses, no corpo do texto.

29 Giogio Agamben, “Infância e história (Ensaio sobre a destruição da experiência)”, em Infância e história(Destruição da experiência e origem da história), trad. Henrique Burigo, Belo Horizonte: ed. UFMG, 2005; p. 23.

30 Márcio Seligmann-Silva, “Violência, encarceramento, (in)justiça: memórias de histórias reais das prisões paulistas”, em Revista de Letras, São Paulo: UNESP, v. 43, n. 2, jul./dez. 2003; pp. 29-47. A citação é da p. 36. Nas próximas citações deste ensaio será apenas indicado o número da página, entre parênteses, no corpo do texto.

31 “Primeiro eu tive sorte. Sempre agradeço por ter saído da fofoca na hora H, senão eu tinha morrido. Ter saído da reta da polícia, se não eu tinha morrido. Primeiro, tive sorte de estar vivo, tá ligado? Hoje, um cara com 27 anos vivendo em Capão é um sobrevivente”. “A voz da periferia clama por mudanças”, entrevista com Ferréz feita por Marco Aurélio Braga, A Notícia, Florianópolis, 27/07/2003.

32 Conforme Soshana Felman, “Educação e crise ou As vicissitudes do ensinar”, em Catástrofe e Representação, org. Arthur Nestrovski e Márcio Seligmann-Silva, São Paulo: Escuta, 2004; pp. 13-72. A citação é da página 59.

33 Roberto Schwarz, “Cidade de Deus”, Seqüências brasileiras, op. cit., p. 170.

34 Georges Bataille, “El arte, ejercicio de crueldad”, em La felicidad, el erotismo y la literatura (Ensayos 1944-1961), Sel. e trad. De Silvio Mattoni, Cordoba: Adriana Hidalgo, 2001, pp. 124-125.

35 Giorgio Agamben, “O país dos brinquedos (Reflexões sobre a história e sobre o jogo)”, em Infância e história, op. cit., p. 90.

36 Georges Bataille, “Estamos aquí para jugar o para ser serios?”, em La felicidad, el erotismo y la literatura, op. cit., p. 219.

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O bom e o feio funk proibidão, sociabilidade e a produção do comum | de Ecio P. de Salles

O batuque da favela/
terminou em tiroteio/
todo samba do barulho/
eu acho bom, mas acho feio.
“É feio, mas é bom”, Assis Valente (1939)

Introdução

O proibidão é uma vertente do funk que explora de forma demasiadamente explícita os temas da violência e do crime – inclusive com narrativas sobre os conflitos entre traficantes nas favelas, elogios a facções ou traficantes, exaltação do poder bélico de determinadas comunidades etc. – ou da sexualidade/erotismo, muitas vezes narrando, sem nenhum pudor, situações eróticas vividas ou desejadas pelos intérpretes.

Parto da impressão, muito inicial ainda, de que esses funks representam a narrativa de uma realidade particular que, em certo sentido, é perturbadora de uma determinada ética, ou de uma determinada cultura, a que poderíamos denominar hegemônica em mais de um nível. Mas também é uma afronta ao bom-gosto, ou ao bom-senso, não apenas da classe média e das elites, mas de representativos setores do próprio popular.

Muitas das narrativas a respeito da origem do funk remetem à obra musical de James Brown – ainda na década de 60, nos Estados Unidos – os passos fundamentais do gênero que tomaria boa parte do planeta desde então. Como, neste momento, não pretendo me alongar em discussões históricas, devo informar apenas que, já no final da década de 80, uma nova forma de funk surgiria nas favelas cariocas.

Funk carioca, diga-se de passagem. Pancadão, diga-se de outra forma. Neurótico, melody, new funk, comédia, proibidão ou erótico, como é conhecido em suas variações. Mas não precisa complicar: é simplesmente como funk que todos o reconhecem e assim denominam tanto as festas onde ele é tocado – bailes funk – quanto os seus ouvintes/dançarinos/seguidores/ideólogos – funkeiros (Essinger, 2005: 11).

Portanto, o primeiro ponto é não confundir o proibidão com as demais vertentes do funk, as quais se assemelham na forma, mas diferem bastante no que diz respeito ao conteúdo.

O primeiro proibidão, pelo menos o primeiro a tornar-se conhecido fora dos círculos mais específicos do funk, segundo informa Sílvio Essinger, foi o “Rap do Comando Vermelho”, cuja referência melódica foi a de um sucesso de Ivete Sangalo, “Carro velho”: “Cheiro de pneu queimado/ carburador furado/ e o X-9 foi torrado/ quero contenção do lado/ tem tira no miolo/ e o meu fuzil está destravado”.

Entretanto, um dos precursores do gênero foi o “Rap das armas”, que chegou a tocar em algumas rádios FM do Rio de Janeiro com significativo sucesso em diversas regiões da cidade e com penetração em diferentes classes sociais. A fim de ilustrar o teor dessas composições, transcrevo um trecho desse funk. Sem dúvida, trata-se de uma canção exemplar daquilo que, mais tarde, se convencionaria chamar proibidão.

Cidade de Deus é ruim de invadir/ Nós com os alemão vamos se divertir/ Porque na de Deus, vô te dizer como é que é/ Lá não tem mole nem pra DRE/ Pra entrar lá na de Deus até a BOPE treme/ Não tem mole pro exército, civil nem pra PM/ Eu dou o maior conceito para os amigos meus/ Agora vou mostrar como é Cidade de Deus/ Tem um de AR-15, outro de 12 na mão/ Tem mais um de pistola e outro com dois oitão (Cidinho e Doca: “Rap das armas”).

A letra é suficientemente explícita. O rap, gravado por Cidinho e Doca em 1999, narra o cotidiano nas favelas (no caso, a Cidade de Deus, na Zona Oeste da cidade) sob um certo ponto de vista: a relação hostil com a polícia e com as diferentes facções do narcotráfico, esta contida principalmente nas referências à expressão “alemão”; e o poder bélico da facção criminosa hegemônica na comunidade. AR-15, M-16, Ponto 50, AK-47 são armas de grosso calibre, algumas delas utilizadas pelas forças armadas em artilharia antiaérea, cantadas por Cidinho e Doca com indisfarçável orgulho. Com efeito, uma das características do funk proibidão estará justamente no fato de, não raro, expressar a competição entre as favelas – na verdade, entre os diferentes “comandos” do tráfico de drogas no Rio de Janeiro.
O bom e o feio

Ao penetrar no universo do funk proibidão, a primeira questão que me veio à mente foi: trata-se de uma forma de expressão oriunda de um “lugar de fala” problemático. Porque, aparentemente, é expresso por aqueles que não têm (ou não deveriam ter, segundo uma lógica a que designo como a “confluência de lugares de fala conservadores”) a possibilidade de expressão. De certa forma, o funk proibidão representa a redenção de um “lugar de fala” que deveria permanecer no silêncio.

O filósofo Jacques Rancière, relendo Platão e Aristóteles, vê na estética uma partilha do sensível, a qual faz ver “quem pode tomar parte no comum em função daquilo que faz, do tempo e do espaço em que essa atividade se exerce” (Rancière, 2005: 16), dessa forma fazendo visível a existência de um “comum”, e da possibilidade de uma fala comum. E essa partilha determina quem participa na constituição do político (ou social). Muniz Sodré, a partir da mesma referência, entende que o sujeito investido da fala comum “é socialmente visível e assim pode tomar parte no jogo político” (Sodré, 2006: 129).

Contemporaneamente, a partilha do sensível estabelece tensões em um mundo em que algumas falas, alguns lugares de fala, têm maior peso que outros. O que não impede que aquelas que, num dado momento, estão em desvantagem articulem formas de resistir. Formas que se desdobram em uma multiplicidade enorme de lugares de fala que nem sempre, apesar de comungarem do fato de resistir, estarão em sintonia. Se pensarmos, provisoriamente, numa estrutura binária de disputa (de poder, que seja) – do tipo elite x popular – será forçoso pensar que, dentro do campo denominado popular, haverá outras tensões. Entre o hip-hop, o samba, o funk e inúmeras outras formas de manifestação, encontraremos diversos lugares de fala, os quais nem sempre falarão a mesma língua.

Retomando o raciocínio: a partilha do sensível coloca o problema sobre quem participa do comum. É uma questão política, ela “define o fato de ser ou não visível num espaço comum, dotado de uma palavra comum etc.”. Por isso o tema aqui proposto, o funk, em especial aquele denominado proibidão, representa um lugar de fala excepcional para a reflexão sobre as relações de poder que se estabelecem sobre uma manifestação cultural específica, mas num contexto social e político em que a violência urbana e o “declínio de valores morais” desempenham um papel destacado. A questão é a de que a favela em geral, o funk em particular, são responsabilizados por essa violência e por esse declínio. Em parte, o funk proibidão me parece uma resposta radical a esse processo de estigmatização. Qual será, entretanto, o alcance dessa resposta?

O sociólogo francês Loïc Wacquant acredita que a posição desprivilegiada das favelas e seus congêneres na sociedade brasileira se deva ao poder de segregação das elites econômicas e intelectuais – “todas brancas” – que legitimam as distâncias sociais e a preservação de seus privilégios, em oposição ao povo – “todos negros ou quase negros” –, num processo concretizado em instituições que “prescindem do isolamento territorial dos pobres”. E é por esse motivo que a organização das grandes cidades baseia-se num modelo “que combina proximidade física e distância e separação sociais, pois cada um sabe exatamente o seu lugar no espaço social” (Wacquant apud Peregrino, 2003: 227).

Estão dispostas aí duas questões fundamentais: a identificação de uma política que decide sobre quem está “incluído” e quem não está; e a percepção de quem essa decisão se baseia em critérios sociais e “raciais”. Se a partilha do sensível pressupõe a existência de um comum, uma afinidade global entre modos de ser, de fazer e de dizer, cabe reconhecer que aqueles que produzem ou executam o funk1 se situam num ponto distinto, de quase absoluta invisibilidade, imobilidade e impossibilidade de fala.

Luiz Eduardo Soares informava que “Um jovem pobre e negro caminhando pelas ruas de uma grande cidade brasileira é um ser socialmente invisível”. Entre as razões para essa invisibilidade, Soares arrola a estereotipia, um olhar estigmatizante que prevê o outro como ameaçador, conduzindo à hostilidade. “Quer dizer, o preconceito arma o medo que dispara a violência, preventivamente” (Athayde [et al.], 2005: 175). Por isso mesmo, o jovem pobre e negro caminhando pelas ruas, na maioria das vezes, tem poucas chances de ir muito longe. Porque além de invisível, ele é também controlado na sua mobilidade. Por outro lado, Zygmunt Bauman afirma que “a marca dos excluídos na era da compressão espaço-temporal é a imobilidade” (Bauman, 1999: 121). Para o autor, uma conseqüência danosa da instauração de um mundo globalizado residiria no contraste entre poder de mobilidade para as elites e conseqüente retenção em seus lugares de origem para os pobres2. Como se vê, não é por acaso que a condição de “jovem, preto, pobre, favelado” – sim, é um clichê, mas praticamente inevitável no caso – é, de antemão criminalizada. Daí, sua fala é necessariamente interditada, no mínimo controlada.

As primeiras palavras de Foucault em A ordem do discurso afirmam que “em toda a sociedade a produção do discurso é simultaneamente controlada, selecionada, organizada e redistribuída por um certo número de procedimentos que têm por papel exorcizar-lhe os poderes e os perigos” (Foucault, 1996: 8). Daí, conclui-se que o discurso já é uma instância de poder, e que pode oferecer algum perigo a outras instâncias de poder.

Contudo, não é tão simples distribuir os lados nessa disputa. A noção de poder em Foucault é complexa, ele “nunca está aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns, nunca é apropriado como uma riqueza ou um bem”. Em contrapartida:

 

O poder funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas os indivíduos não só circulam mas estão sempre em posição de exercer este poder e de sofrer sua ação; nunca são o alvo inerte ou consentido do poder, são sempre centros de transmissão (Foucault, 1979: 183).

 

Mesmo assim, não é difícil perceber que algumas instâncias culturais encontram-se em posição radicalmente desprivilegiadas em relação a outras, chegando mesmo a ter suas possibilidades de expressão dificultadas, quando não interditadas. É que, apesar de não ser facilmente localizável e/ou definível, o poder existe. E é, ainda conforme Foucault, sabido que “não se tem o direito de dizer tudo”, não em qualquer situação, e que “qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa” (Foucault, 1996: 9). Isso, finalmente, porque, o discurso, antes de traduzir as lutas ou os sistemas de dominação, é “aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar” (Foucault, 1996: 10). Pierre Clastres dizia algo parecido, em A sociedade contra o Estado. Afirmava que o exercício do poder é que garante a posse da palavra. Afinal, conclui Clastres: “Toda tomada de poder é uma aquisição de palavra” (Clastres, 1990: 106). Pode-se dizê-lo de outra forma: a posse da palavra pode garantir o exercício do poder.

 

Por outro lado, segundo Foucault, ainda que funcione em rede e não se possa estabelecer com exatidão o seu titular, o poder “sempre se exerce numa determinada direção, com uns de um lado e outros do outro”. Embora não se saiba ao certo quem o detém, sabe-se bem “quem não o possui” (Foucault, 1979: 75).

O fato de a favela ter sido discriminada, estigmatizada e finalmente criminalizada teve como conseqüência um “desempoderamento” desse espaço. Em resposta, a favela engendrou suas próprias formas de poder. À margem da lei – mas também à margem dos privilégios da sociedade de consumo, à qual acedem senão por meios ilícitos e arriscados3 – um certo número, ainda que minoritário4, de habitantes das comunidades organizaram-se em torno do tráfico de drogas e outros crimes, estabelecendo-se como uma espécie de líderes em suas localidades, impondo uma nova ordem de dominação e controle, através das armas e do medo.

Essa parecia ser uma realidade distante do cotidiano das pessoas que não morassem nas favelas. Talvez por isso quando o funk saiu das fronteiras de seu universo particular – o qual engloba não apenas o espaço da favela, mas a rede social (e transversal) de pessoas as mais diversas que vivenciam, ou são próximas, do mundo funk –, tenha fomentado um acalorado debate, recheado de opiniões polêmicas, contra e a favor. Era como se aquele mundo cuidadosamente afastado – de certa forma, no espaço e no tempo – invadisse a realidade do presente, assustando e seduzindo a classe média, ou parte dela ao menos.

Uma matéria da revista Bravo!, em 2005, de autoria de Cláudio Albuquerque, começa dizendo que o gênero tem-se afirmado cada vez mais, apesar das resistências. Declara que o funk é uma espécie de “super-herói invertido”. Assim, ele estaria por toda parte, onipresente. E teria ainda o dom da invisibilidade, “mas apenas porque as pessoas não querem vê-lo por perto e fazem de conta que não existe”.

Para Albuquerque, em que pesem os preconceitos, quando o funk é tocado, as barreiras se rompem. “Porque o funk não é para ser explicado, é para ser sentido. E aí todos — a turma no restaurante, a madame no carrão — vão bater pezinho, quebrar a cintura e sacudir o popozão”. O autor cita uma composição de Amílcar e Chocolate, a qual parece ser hoje uma síntese bem elaborada do que representa o funk carioca: “é som de preto e favelado, mas quando toca ninguém fica parado”.

Nesta mesma matéria, a revista abre espaço para depoimentos de artistas da MPB, entre os quais Fernanda Abreu – que em seus discos e apresentações ao vivo foi uma das pioneiras, entre as cantoras exteriores ao contexto funk, a incorporar o gênero. Na verdade, Fernanda Abreu foi desde o início adepta do gênero funk (aquele mais vinculado ao soul e a disco music norte-americanos da década de 70). Seu pioneirismo se deve a adotar também o chamado funk carioca. Enfim, dirá Fernanda:

 

O funk carioca é a expressão da cultura dos morros cariocas, assim como o samba e o pagode. Um movimento autenticamente carioca e brasileiro. Deve ser pensado, criticado e discutido. Nunca censurado ou alijado do processo cultural. O funk carioca existe além da moda. Existe nas favelas, nos subúrbios, nos guetos. É uma espécie de ponte entre as ‘cidades partidas’: zonas ricas/ zonas pobres.

Todavia, a imprensa em geral não via assim ao longo da década de 90 e princípio da seguinte. O funk – muito antes de aparecerem os proibidões – tornou-se alvo de discursos que, quase sempre, tratavam de criminalizá-lo. A associação entre baile funk e favela era vista como sinal de risco para a sociedade. Essa mesma associação, aliás, tornou-se possível, sobretudo, devido à proibição dos bailes funk, em 1992. Até ali, os bailes eram realizados em clubes ou boates da cidade. Porém, o episódio do “Arrastão do Arpoador”5 transformaria o funk e os funkeiros em bodes expiatórios do processo de agravamento da violência no Rio de Janeiro.

Logo após o episódio, o Jornal do Brasil, em sua edição de domingo, estampava um artigo no qual enfatizava o contraste entre os jovens caras-pintadas (“motivo de orgulho”) que foram à rua peloimpeachment do então Presidente da República Fernando Collor, e os “caras-pintadas da periferia”. Intitulado “Movimento funk leva desesperança”, o artigo dizia que os funkeiros teriam levado à zona sul carioca uma das batalhas das guerras nas favelas, as quais “vêm encarando desde que nasceram – a guerra entre as comunidades. Eles, assim, tornaram-se motivo de vergonha, diretamente ligada ao terrorna praia: os arrastões que semearam pânico” (apud Yúdice, 2005: 169. Grifos meus). Quase dois anos depois, no dia 5 de fevereiro de 1994, o principal editorial do mesmo Jornal do Brasil, intitulado “A ameaça das favelas”, mostrava-se ainda mais objetivo:

Das favelas, de onde se espraiam os acenos da marginalização, o perigo não pára de crescer. Tiroteios, guerras de quadrilha, bailes funks, lixo lançado para baixo, invasão das reservas florestais, desrespeito à propriedade particular, tudo se avizinha do delírio.

O funk aparece nessas matérias ligado à idéia de terror, como no primeiro caso, ou à de perigo e risco, como no segundo. As medidas propostas para conter essa ameaça já se tornaram um lugar-comum quando se trata de controlar manifestações da cultura popular inconvenientes: “Os bailes funks são um caso de polícia e deveriam ser combatidos em nome da paz social” (editorial do Jornal do Brasil, 19 de julho de 1995).

Não é difícil imaginar que as notícias e editoriais nos veículos da mídia, somados às seções de cartas dos jornais, construíam um ponto de vista a respeito do funk e de outros aspectos da cultura da favela que era, de maneira geral, um ponto de vista criminalizante. Por esse viés, toda a diversidade própria à produção de funk nas favelas cariocas foi reduzida a um clichê: o da violência extrema e associação ao crime. Mesmo os critérios do suposto “bom gosto” ficaram em segundo plano – embora não tenham sido nunca esquecidos – em face desses aspectos.

A partir daí, entra em cena uma combinação de cartas para seções de leitores dos jornais (ou mensagens on-line, no caso de páginas na Internet), matérias, editoriais, notícias muitas vezes fantasiosas, quando não sensacionalistas, somadas à escassez de ofertas de emprego ou formas alternativas de obtenção de renda e estratégias de marketing que apostam tudo no consumo, entre outras formas de gestão opressiva das relações sociais. Esses procedimentos vão construindo formas de circunscrever o funk e seus adeptos. Trata-se de um processo – característico da confluência de lugares de fala conservadores – capaz de construir muros fortíssimos a separar os discursos, a produzir a estereotipia e a estigmatização dos setores populares, engendrando dessa forma os mecanismos que lhes vedam o acesso aos bens simbólicos e materiais oferecidos pela globalização. Entretanto, essa confluência conservadora não é impermeável, nem indestrutível. Em primeiro lugar, porque não se trata de dois lados definidos – a imprensa que condena é o mesmo espaço onde se constituem discursos alternativos ao da condenação, uma tensão que acredito ter ficado explícita no desenvolvimento dos últimos parágrafos. (E, por outro lado, os espaços populares têm que se haver com suas próprias tensões).

Entretanto, com o advento do proibidão, chega mais lenha à fogueira desse debate. A maioria das letras de funk produzidas nesse contexto é deliberadamente explícita. É comum encontrar alusões a marcas de arma, como numa composição da Chatuba, onde há “dezoito AR-15 fazendo a contenção/ MK tá de AK, escoltando o camburão” e ainda “mano Bigão, contenção de parafal/ Nadinho de G3, 100% revoltado”.

Também é recorrente a reverência a chefes reconhecidos do tráfico. Há vários funks em homenagem a Elias Maluco, Isaías, Marcinho VP e outros líderes do Comando Vermelho. O mesmo acontece com líderes de outras facções, como Uê ou Celsinho da Vila Vintém. Já em outro sentido, há composições que fazem o percurso contrário, atacando chefes de outras facções. Por exemplo, o funk da Providência que menciona Gangan, chefe do tráfico no Estácio morto em 2005, é bastante característico: “Gangan seu arrombado/ escute o que eu te falo/ a Prov6 não é brincadeira/ e preste atenção/ chegou foi no morrão/ um G37 que levantou poeira”.

Apesar da crueza das composições do funk, certamente sem precedentes, há recorrências históricas na música popular brasileira de um certo elogio poético do banditismo e outros temas correlatos. Como que reafirmando as palavras de Eric Hobsbawn sobre os bandidos rurais – cosiderados por sua gente como heróis, “campeões, vingadores, paladinos da justiça” (Hobsbawn, 1975: 11) –, não são raras as composições que enaltecem bandidos e seus feitos na cultura brasileira.

Desde uma composição de Jorge Benjor, “Charles Anjo 45”: “Charles Anjo 45 protetor dos fracos e dos oprimidos/ Robin Hood dos morros/ rei da malandragem/ um homem de verdade/ com muita coragem”. Ou um clássico de Geraldo Pereira, “Escurinho”, que conta a história de um “escurinho” que era direitinho, mas ficou com “mania de brigão” e “já foi pro Morro da Formiga/ procurar intriga/ já foi pro Morro do Macaco/ já bateu num bamba/ já foi pro Morro do Cabrito/ provocar conflito/ já foi pro Morro do Pinto / acabar com o samba!”. Ou ainda, este de Wilson Moreira: “Lá vem o Chico Brito/ descendo o morro/ na mão do Peçanha/ é mais um processo/ é mais uma façanha/ (…) É valente no morro/ e dizem que fuma uma erva do norte”. Até canções de João Bosco e Aldir Blanc, como esta que cito, interessante por narrar os nomes de diversas favelas cariocas, um procedimento comum a algumas manifestações da cultura popular e que foi adotado largamente pelo funk e pelo rap.

O menino cresceu entre a ronda e a cana/ Correndo nos becos que nem ratazana/ Entre a punga e o afano, entre a carta e a ficha/ Subindo em pedreira que nem lagartixa/ Borel, Juramento, Urubu, Catacumba/ nas rodas de samba, no eró da macumba/ Matriz, Querosene, Salgueiro, Turano/ Mangueira, São Carlos, menino mandando/ ídolo de poeira, marafo e farelo/ um deus de bermuda e pé-de-chinelo/ imperador dos morros, reizinho nagô/ O corpo fechado por babalaôs (João Bosco e Aldir Blanc: “Tiro de misericórdia”).

Nesse contexto, a figura do X-9, por exemplo, renderia uma outra pesquisa. Trata-se, certamente, do personagem mais detestado do repertório do funk e da música popular em geral. Nomeado como X-9, alcagüete (ou cagüete), delator, dedo-duro ou dedo de seta, ele é considerado (pelo menos nesse cancioneiro) o que tem de pior dentro da favela. Bezerra da Silva tem inúmeros sambas que tratam do assunto: “Eu só sei que a policia pintou no velório/ E o dedão do safado apontava pra mim/ cagüete é mesmo um tremendo canalha/ nem morto não dá sossego” (“Defunto cagüete”); ou a do clássico refrão “vou apertar mas não vou acender agora”: “É que você não está vendo/ que a boca tá assim de corujão/ tem dedo de seta adoidado/ todos eles afim de entregar os irmãos” (“Malandragem dá um tempo”). E pra completar, uma composição exemplar dessa ética, sob um outro ângulo. De autoria de Benjamim e Marina Batista, esse samba chegou a ser gravado por Adriana Calcanhoto: “Vocês estão vendo aquele mulato calado/ com o violão do lado/ já matou um, já matou um/ A polícia procura o matador/ mas em Mangueira não existe delator” (“Mulato calado”).

No universo do proibidão, mudaram as formas de se expressar mas o estigma do delator é o mesmo. O funk “10 mandamentos da favela”8, por exemplo, anuncia uma espécie de código ético para integrar o espaço da favela, especialmente no que diz respeito ao convívio com o crime: “vou falar agora, vê se não bate biela/ os dez mandamentos que têm dentro da favela/ o primeiro mandamento é não caguetar/ cagüete na favela não pode morar” (Cidinho e Doca: “10 mandamentos da favela”). Já este outro, dos mesmos autores, explicita a metodologia punitiva do tráfico e como o proibidão é sensível a essa lógica: “Fogo no X9 / Da cabeça aos pés/ Pega o álcool e o isqueiro/ Fogo no X-9” (Cidinho e Doca: “Fogo no X-9”). Se a letra é suficientemente explícita, o tom de voz agressivo ou gestual irado perceptíveis nas performances dos funkeiros tornam ainda mais dramático o conteúdo das canções.

“Retorno de Jedi”, conhecida composição de Mr. Catra, indica uma expressão usada pelo tráfico nas favelas, avisando que a vingança será terrível contra aqueles que desrespeitarem os códigos de conduta na comunidade: “Bulidor, tu vai e o retorno é de Jedi/ X-9, tu vai e o retorno é de Jedi/ bilha, tu vai e o retorno é de Jedi/ Conspirador, tu vai e o retorno é de Jedi”9. Como se vê, um código muito próximo daquele prescrito na composição “10 mandamentos”. Outra de Catra: “Cachorro/ Se quer ganhar um din-din/ Vende o X-9 pra mim/ O patrão tava preso, mas mandou avisar/ que a sua sentença nós vamos executar/ e com bala de HK” (Mr. Catra: “Cachorro”).

De certa forma, o funk em geral é (até certo ponto) tolerado. Mesmo aquele que recorre a um certo erotismo menos explícito, recorrendo a frases de duplo sentido, são melhor digeridos. São os casos do Bonde do Tigrão (“Eu vou cortar você na mão/ Vou mostrar que eu sou tigrão/ Vou te dar muita pressão/ Então martela, martela/ Martela o martelão”), ou da Tati Quebra-Barraco (“Me chama de gatinha que eu faço miau/ me chama de cachorra que eu faço au-au”; ou “ah, eu vou comer o seu marido”). Todavia, quando músicas como “157 boladão” (autoria atribuída a Menor do Chapa), citada abaixo, começaram a aparecer, o teor da conversa tornou-se mais complexo.

Não tira a mão do volante, não me olha e não se mexe/ é o bonde do Scoob de lá do morro do Macaco/ vai desce do carro, olha pro chão/ não se move, me dá seu importado que o seguro te devolve/ se liga na minha letra olha nós aí de novo é o bonde do mais alto/ só menor periculoso/ se liga na letra/ vou mandar mais um recado o/ bonde do São Carlos só quer carro importado/ Audi, Honda Civic, Citroën e Corola mas se tentar fugir – pá pum: tirão na bola.

A fronteira estabelecida neste ponto é menos entre os setores populares (especialmente os moradores da favela) e a elite ou a classe média que entre diferentes concepções de mundo. Se há um campo popular, que de diferentes maneiras trabalha e que reúne aqueles que se sabe bem não detêm o poder, então o proibidão é um problema.

O crime poderia ser pensado como uma forma de um determinado grupo (não custa reafirmar: um grupo sempre circunscrito e minoritário) pertencente à favela negar a condição subalterna, inferior, que lhe é imposta de fora, através do recurso a uma violência extrema na prática. O proibidão seria, nesse contexto, a celebração dessa violência no plano estético. Aliás, é possível que o sucesso do proibidão entre setores significativos da juventude de classe média tenha a ver com o fato de que, esteticamente, a novidade, o desconcertante e até o terror contido nessas composições seja muito atraente, a despeito de a realidade a que se refere ser indesejável.

O problema é que, ao celebrar esse aspecto da vida na favela, o proibidão rompe não só com o discurso oficial (o discurso do bloco de poder), mas também com o discurso de outros grupos vinculados ao contexto da favela, que inventa e reivindica um papel igualmente insurgente para a favela, mas em outra clave: criativo, pacífico, inserido nos marcos da legalidade e comprometido com isto que Stuart Hall denominaria “força cultural popular-democrática” (Hall, 2003: 263). Ou que Hardt e Negri chamariam a produção biopolítica da multidão, na qual se assentaria hoje a possibilidade da democracia global (Hardt e Negri, 2005: 15). A verdadeira democracia, como o governo de todos para todos, é, portanto, a demanda desse discurso antitético, dessa força cultural. E a democracia é entendida aqui, nos termos de Hardt e Negri, não apenas como uma questão só de estruturas e relações formais, “mas também de conteúdos sociais, remetendo à maneira como nos relacionamos uns com os outros e como produzimos em conjunto” (Hardt e Negri, 2005: 134). Dessa maneira, a busca da democracia pelas forças populares-democráticas é o que em si procede a transformação social. Como afirmariam ainda uma vez Hardt e Negri, “nossa comunicação, colaboração e cooperação não se baseiam apenas no comum, elas também produzem o comum, numa espiral expansiva de relações” (Hardt e Negri, 2005: 14).

Em termos de hegemonia, pode-se chegar à conclusão de que se estabelece neste período, desde meados da década de 80 até hoje, a conformação de um novo bloco histórico – constituído por ONGs, grupos culturais, artistas, intelectuais e lideranças de movimentos sociais – que articula a resistência ao bloco do poder. Esta seria, também, uma forma de confluência progressista, ou biopolítica, para continuar com Hardt e Negri, em antítese à confluência conservadora que mencionei anteriormente. Entretanto, como Hall já havia percebido, “popular”, e mesmo “povo”, são noções muito problemáticas. Não há formas puras, todas as sincronizações são parciais e as alianças e consensos, geralmente, são precários.

Neste ponto, a categoria bakhtiniana de carnaval pode ser importante para esclarecer o conteúdo profundo e as potencialidades contestatórias de manifestações da cultura popular que, não raro, são rotuladas de alienantes, banais ou vazias devido, de um lado, à sua suposta não originalidade, de outro à sua ostensiva adesão ao elemento “festa”. Entretanto, se levarmos em consideração as observações de Bakhtin a respeito do carnaval, de sua capacidade de crítica à ordem hierárquica e transgressão dos valores vigentes – especialmente dos valores de “alto” e “baixo”, que segregam as manifestações populares –, então, por esse viés, o funk mais comportado mostrará potencialidades capazes de o inserir na luta contra-hegemônica, de fazê-lo participar da confluência progressista, da força cultural popular-democrática, da produção do comum. Para Hardt e Negri, a narrativa carnavalesca, dialógica e polifônica, naturalmente, pode muito facilmente assumir a forma de um naturalismo cru que se limita a refletir a vida cotidiana, mas também pode tornar-se uma forma de experimentação que liga a imaginação ao desejo e à utopia (Hardt e Negri, 2005: 273).

Mas, ao filiar-se ao crime – mesmo que apenas no discurso – o proibidão instala a crise no interior do carnaval. Ao fazê-lo, ele se afasta a um só tempo do bloco de poder e do campo popular democrático, que passa a ser encarado como outra forma de verdade e autoridade de uma outra forma de poder. Insere-se numa outra perspectiva, e manterá uma espécie de desafio aos aspectos conservadores e/ou progressistas de um discurso que o circunscrevem a um campo semântico ligado ao baixo, ao desprezível e ao perigoso.

É verdade que, para Bakhtin, o riso carnavalesco é ambivalente, ele abraça tanto a morte quanto a vida. Nos exemplos que o autor fornece, a partir da obra de Rabelais, da degradação do corpo que a festa carnavalesca envolvia, pode-se encontrar analogias com aspectos dos funks proibidões mais radicais de hoje. Afinal, o grotesco analisado pelo teórico russo, que se destaca por uma concepção alegre e festiva do corpo, tendendo ao rebaixamento e enfatizando o plano material contra o demasiadamente abstrato, é muito próximo do que se poderia enxergar na estética do funk, inclusive o proibidão. Se bem que, no carnaval bakhtiniano, tratava-se de uma degradação e rebaixamento perceptivelmente ambivalentes: “A degradação cava o túmulo corporal para dar lugar a um novo nascimento, e por isso não tem somente um valor destrutivo, negativo, mas também positivo, regenerador: é ambivalente, ao mesmo tempo negação e afirmação” (Bakhtin, 1993: 19).

A questão portanto é: o que o proibidão nega? Em contraste com a imagem da degradação simbólica, a referência a uma degradação real está sempre presente nas letras dos proibidões. Ela atiça os traumas desencadeados pelo que Zuenir Ventura denominou cidade partida. Essa imagem ganhou força e pautou muitas das reflexões sobre a cidade do Rio de Janeiro. Tanto que gerou obras que sugeriam alternativas, como Cidade cerzida, de Adair Rocha. Este um outro exemplo de esforço em propor uma partilha do sensível capaz de reunir as forças do campo cultural popular-democrático, que é, evidentemente, também um campo político, no sentido da produção do comum. O proibidão, ao que parece, fala sobre o que esse cerzimento deixa de fora.

A questão, portanto, torna-se: o que o proibidão afirma? Eis uma grande dificuldade. Ainda que o entendamos como fenômeno estético derivado de questões sociais profundas, ele não é “aceito” no contexto de um discurso que parte da favela para propor a transformação social. Hobsbawn, no seu estudo sobre o banditismo social, logo na introdução colocou questões que, me parece, continuam merecedoras de consideração, mudando a ênfase da vida camponesa para a vida na favela. Partindo da premissa de que baseou seu estudo em poemas e baladas, o historiador se questiona sobre “até onde o ‘mito’ do banditismo esclarece quanto ao comportamento real do bandido?” ou “até que ponto os bandidos correspondem ao papel social que lhes foi atribuído no drama da vida camponesa” (Hobsbawn, 1975: 8). Mais adiante, Hobsbawn entende que, na imagem literária ou popular do bandido existe mais que a documentação da vida contemporânea em sociedades atrasadas ou o anseio por aventura ou perdida inocência nas adiantadas. Existe aquilo que fica quando eliminamos a moldura local e social do bandoleirismo: uma emoção permanente e um papel permanente. Há a liberdade, o heroísmo e o sonho de justiça (Hobsbawn, 1975: 133).

O proibidão ocupa um entre-lugar de difícil assimilação, porque aparentemente distante de um imaginário voltado para valores democráticos, de um mundo sem fronteiras e sem guerras. Mesmo assim, ele é reivindicado por seus protagonistas e se afirma como som de preto e favelado. Quando toca, de um modo ou de outro, “ninguém fica parado”. De algum modo, preserva sua ambivalência. Por isso mesmo, a dificuldade em pensá-lo se avizinha de um constrangimento. Ele proporciona um certo desconforto, ou indecidibilidade. Mais ou menos como reagiu Assis Valente, no seu samba em epígrafe, ao tiroteio em um batuque na favela.

* Ecio de Salles é mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Federal Fluminense e doutorando em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação da UFRJ.

NOTAS


1 Um ponto problemático do raciocínio elaborado é que o funk em si, talvez, não possa mais ser considerado tão excluído assim das instâncias principais de visibilidade de um discurso, que é uma das premissas da análise que faço aqui. O sucesso de DJ Marlboro numa edição do Tim Jazz Festival, sua participação e de outros funkeiros numa novela, no horário nobre, da TV Globo, entre outros fatores constestariam essa situação.

2 Também o historiador Eric Hobsbawn afirmava, e sobre grupo social distinto em época muito anterior, mas passível de uma aproximação com o assunto que me interessa aqui, que “o que faz os camponeses sucumbirem à autoridade e à coerção não é tanto sua vulnerabilidade econômica – muitas e muitas vezes são praticamente auto-suficientes – quanto sua imobilidade” (Hobsbawn, 1975: 24).

3 O bandido na favela, na medida em que conquista status e dinheiro, não teria o privilégio da sociedade de consumo, embora permaneça inserido nessa lógica, porque não pode usufruir plenamente de nenhum bem. Também porque a possibilidade da morte está sempre presente, de forma muito intensa. Na verdade, o dinheiro e os bens de um traficante na favela podem a qualquer momento ser expropriados por grupos rivais ou por policiais corruptos.

4 Segundo as principais estatísticas sobre essa questão, não mais que 1% da população moradora em favelas se envolve com o crime (Dowdney, 2003: 52).

5 Em outubro de 1992, jovens integrantes de galeras funk das comunidades de Vigário Geral e Parada de Lucas – que já mantinham antiga rivalidade por conta de diferenças ligadas às facções do tráfico de drogas – se encontraram na Praia do Arpoador, ponto privilegiado da zona sul carioca, e se enfrentaram reproduzindo as brigas dos chamados bailes de corredor, nos quais se traçava um corredor em algum ponto do clube e as galeras de um lado e outro (à época designados lado A e lado B), mediam forças. O enfrentamento provocou grande tumulto, pânico e correria nas areiasda praia. Alguns dos brigões aproveitaram a ocasião para se apoderar dos bens abandonados por banhistas em fuga. As imagens foram tema dos noticiários em todos os veículos de comunicação. Ali se inaugurava – na verdade, devido a um mal-entendido – a expressão “arrastão” para este tipo de ação. Naquele momento, a cidade vivia o disputado segundo turno das eleições municipais, para as quais concorriam Benedita da Silva e César Maia, que acabou vencendo o pleito. Em conseqüência do episódio os bailes funk foram proibidos no Rio de Janeiro.

6 Referência ao Morro da Providência, no Centro da Cidade. Esta, diga-se ainda, é considerada a primeira favela a surgir no Brasil, entre o final do século XIX e o começo do XX.

7 Marca de fuzil de alto poder de fogo.

8 Curiosamente, no desenvolvimento da composição, os cantores mencionam apenas cinco mandamentos. Além do primeiro, citado acima, há ainda: “o segundo mandamento já, já eu vou dizer/ com a mulher dos outros não se deve mexer/ o terceiro mandamento eu vou dizer também/ é levar no brindão e não dar volta em ninguém/ o quarto mandamento é difícil de falar/ favela é boa escola mas não se deve roubar/ o quinto mandamento, boladão estou/ vou rasgar de G3 o safadão do achacador”.

9 No jargão da favela, “bulidor’ é o que mexe nos bens alheios (um ladrão); “bilha” é o que tem o hábito de olhar (cobiçar) a mulher dos outros.

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INTERNET


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http://letras.terra.com.br

DISCOGRAFIA


Todos os funks citados neste artigo foram retirados de coletâneas de CDs distribuídos por camelôs. Alguns deles também foram baixados da Internet. Cabe ressaltar que, apesar disso, alguns funks mencionados aqui, como o de Mr. Catra ou da MC Tati Quebra-Barraco, chegaram a ser gravados de maneira oficial. No entanto, as versões que utilizei constavam das cópias mencionadas acima.

 

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Pesquisas comparativas: uma análise crítica dos indicadores de gênero | de Bila Sorj

No momento em que se torna cada vez mais freqüente a comparação internacional sobre desigualdades de gênero, é inadiável problematizar os indicadores que vêm sendo comumente utilizados pelas agências internacionais de desenvolvimento, tendo em vista o impacto das informações coletadas sobre as políticas públicas em nível nacional e global.

Nesse sentido, é interessante analisar algumas variáveis apresentadas nos Relatórios de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas e sugerir que os indicadores escolhidos não são suficientemente sensíveis às variações nacionais e às formas como as desigualdades de gênero se reproduzem nas sociedades contemporâneas.

Desde o início dos anos 90, os Relatórios de Desenvolvimento Humano produzidos pelas Nações Unidas passaram a ser uma importante referência para as pesquisas quantitativas de gênero. A partir de 1995, com a Conferência Internacional da ONU sobre Mulheres, realizada em Beijin, cresceu significativamente o volume de informações quantitativas e comparativas sobre a situação das mulheres no mundo. Esse processo se intensificou a partir de 2000, com a Declaração do Milênio das Nações Unidas quando foram estabelecidas metas concretas e mesuráveis de desenvolvimento e de empoderamento das mulheres, a serem alcançadas pelos países signatários da declaração. Essas metas são avaliadas e comparadas em escalas nacional, regional e global.

Essas iniciativas sem dúvida contribuíram para aumentar o nosso conhecimento sobre a situação das mulheres e para a disseminação da problemática da desigualdade de gênero que antes estava mais restrita a pequenos círculos acadêmicos e de ativistas feministas.

Mais ainda no Brasil essas iniciativas foram muito positivas, pois estimularam o desenvolvimento de uma perspectiva comparativa num país caracterizado por uma identidade nacional com traços de forte insularidade e pouco afeito à auto-reflexão a partir do olhar que leve em conta a experiência de outros países, até mesmo daqueles geograficamente mais próximos.

O principal desafio que os estudos comparativos colocam é como escapar, por um lado, de uma postura de absoluto relativismo, segundo a qual, nada é comparável porque todas as interações sociais dependem dos significados que a história, instituições e culturas locais lhes atribuem e, por outro, como evitar a utilização de indicadores universais e abstratos que ignoram a complexidade das configurações nacionais, onde uma mesma variável pode ocultar práticas que estão em franca contradição com aquilo que se pretende medir. Tendo em vista esse desafio vou problematizar algumas variáveis recorrentemente utilizadas nos Relatórios de Desenvolvimento Humano elaborados pelas Nações Unidas.

Os RDH´s, quando dedicados à questão de gênero, têm como objetivo captar o chamado empoderamento das mulheres. Esse termo, apesar das diferentes definições que comporta, vem sendo normalmente usado para designar a capacidade das mulheres de ganhar controle sobre suas decisões e recursos, tendo em vista ampliar os direitos das mulheres e promover a igualdade de gênero.

Vou comentar três indicadores que me parecem problemáticos:

1- “participação política das mulheres no parlamento”. Esse indicador pretende, segundo os RDH, aferir as oportunidades de participação política das mulheres no processo de tomada de decisões e quanto mais mulheres participarem do parlamento, relativamente aos homens, mais próximo estará o país de alcançar a igualdade de gênero.

A dificuldade no uso universal desse indicador, “participação política das mulheres no parlamento”, como revelador do empoderamento, pode ser observada num caso extremo: a eleição de nove deputadas ao parlamento iraniano em 2004, na qual oito delas pertencem ao partido conservador “Developers of Islamic Iran Party”. A líder desse grupo declarou na ocasião da sua eleição “queremos educar as mulheres segundo os preceitos especificados por Deus. Nós vemos as mulheres como portadoras de três obrigações: individual, familiar e social. Se o cumprimento da obrigação social causa a interrupção das obrigações individuais e familiares, isso constitui opressão da mulher”. Em outro momento ela declara; “Para que a nação alcance prosperidade, as pessoas devem pensar nos seus deveres religiosos e não ‘legais’ ”. Ela continua argumentando nesta declaração que o conceito de lei (direitos humanos) é importado do Ocidente e, portanto, deve ser eliminado da discussão política.

Nesse caso extremo, há uma enorme defasagem entre o indicador que identifica o nível de participação política das mulheres no parlamento e aquilo que ele deveria estar medindo, os avanços feitos pelas mulheres em termos da conquista de direitos e de igualdade de gênero.

Como é possível este tipo de divergência? Provavelmente porque estamos diante de duas acepções do termo gênero que vem sendo utilizadas indistintamente. Numa das acepções, precisamente com a qual essas pesquisas comparativas trabalham, gênero se refere a uma categoria empírica composta de “mulheres” e “homens”, associada às diferenças biológicas que distinguem corpos masculinos e femininos. Homens e mulheres formariam grupos ou coletividades de alcance universal. Nesta acepção, as pesquisas comparativas aqui mencionadas são de caráter bio-sociográfico, i.e, exploram a participação relativa de cada um dos gêneros na distribuição de recursos e de oportunidades sociais, econômicas e políticas.

Em outra acepção, associada aos estudos de gênero e feministas, gênero se refere a um sistema de relações de poder fundado em padrões culturais institucionalizados, que diferem entre sociedades. O sistema de gênero supõe a presença de hierarquias e relações de poder entre os atributos associados à masculinidade, que são valorizados, e os atributos associados à feminilidade (ou ao feminino), que são desvalorizados. Um dos principais atributos do feminino, que tem uma abrangência quase universal, é a ideologia que associa o feminino à domesticidade e a subordinação. Certamente as mulheres tem sido o principal campo de operação dos atributos depreciados do feminino, mas não são apenas elas. Gays, travestis, transgêneros e outros homens que não correspondem ao padrão de masculinidade prevalecente são facilmente vistos como “femininos”.

Deste modo, não há uma correspondência linear entre atributos considerados femininos e as “mulheres” como categoria corporal/biológica. É importante também destacar que os padrões de distribuição e controle de posições de poder na política, na economia e no lar, não são fixos de tal forma que a oposição masculino/feminino é constantemente modificada e reinventada.

O exemplo das mulheres eleitas para o parlamento iraniano ilustra a dissociação que existe entre gênero como categoria empírica, biológica, corporal e gênero enquanto categoria de análise das relações de poder entre homens e mulheres. Neste caso, o indicador “participação das mulheres no parlamento” dificilmente implica empoderamento (que é finalmente o que o indicador pretende medir) das mulheres, ou seja, uma melhoria relativa da posição das mulheres no processo de tomada de decisões. Em certos contextos políticos, culturais e religiosos essa participação pode diluir, quando não conspirar, contra os efeitos do empoderamento, quando as posições “de poder” ocupadas pelas mulheres sustentam projetos político-culturais que objetivam a manutenção da representação patriarcal do feminino.

2- a segunda variável comumente utilizada nas pesquisas comparativas das Nações Unidas é “taxa de participação das mulheres no mercado de trabalho”, que visa igualmente medir o empoderamento das mulheres: supõe-se que quanto mais as mulheres participam do mercado de trabalho mais desfrutam de autonomia, independência e poder. O problema com esse indicador é que ele é tratado, em geral, de maneira isolada.

Como entender em termos de empoderamento (igualdade, autonomia, capacidade de decisão) o aumento da participação das mães no mercado de trabalho no Brasil nas últimas décadas, sem relacionar esse fato ao contexto da ausência de suportes públicos para a conciliação entre trabalho e vida familiar ou da fraca participação dos homens nos afazeres domésticos?

Será que a participação no mercado de trabalho tem o mesmo significado, o mesmo efeito em termos de autonomização, individualização e de capacidade de exercer escolhas para mulheres que dele participam em sociedades com um robusto welfare state e para mulheres cuja participação no mercado de trabalho implica enormes tensões para a conciliação entre trabalho e família? Muito provavelmente, para essas últimas, sobrecarregadas pelo acúmulo do trabalho remunerado e não-remunerado, a participação no mercado de trabalho pode ter, entre outras conseqüências, o fortalecimento do ideal de domesticidade, de dependência econômica e da maternagem.

Não estou pretendendo negar que a participação no mercado de trabalho tenha efeitos positivos sobre a autonomia e aumento do poder de decisão das mulheres. Todavia, esse efeito não está assegurado, varia entre as classes sociais em um mesmo país e depende de outros arranjos institucionais que não são captados nos relatórios internacionais.

3- o terceiro indicador freqüentemente usado para medir o nível de igualdade de gênero, existente nos diferentes países abrangidos nas comparações internacionais, se refere à “divisão sexual do trabalho doméstico”. Apesar da importância deste indicador, a forma como é construído mostra-se muito limitada e pouco sensível para captar as novas formas que as desigualdades de gênero assumem no espaço doméstico.

As pesquisas mostram que houve um aumento da participação masculina na divisão do trabalho doméstico, muito tímido, mas houve. Todavia, menos freqüentes são os esforços para apreender de forma sistemática as novas assimetrias que emergiram nesta esfera como, por exemplo: homens concentrando-se em apenas algumas atividades (concertos de equipamentos domésticos, cozinha, compras e atividades de lazer da família) e as mulheres engajadas num leque mais amplo de tarefas (compras, lavar, passar, cuidar dos doentes, arrumar a casa, relação com a escola dos filhos, etc.).

No que diz respeito à desigualdade de gênero, tão importante quanto quantificar a distribuição de tarefas é analisar o princípio que organiza esta nova distribuição. Esse pode ser resumido no seguinte princípio: os homens escolhem aquilo que querem fazer e as mulheres se ocupam do resto, i.e., daquilo que eles não querem fazer. Assim, mantém-se em operação a assimetria de gênero, na qual o exercício da escolha é uma prerrogativa apenas masculina.

A nova divisão do trabalho doméstico na qual os homens passaram a realizar tarefas antes realizadas exclusivamente pelas mulheres envolve um processo de ressignificação dessas tarefas. Assim, por exemplo, a atividade de cozinhar feita pelos homens, ou pelo “novo homem” que aparece atualmente na mídia, foi transformada em uma atividade impregnada de valor, de sofisticação que se inscreve como uma prática mais próxima das formas de expressão artística, escapando, assim, do sentido banal, trivial e repetitivo associado ao cozinhar feminino. A atividade masculina de cozinhar passou a ser um exercício de auto-expressão, de desenvolvimento pessoal dos homens enquanto que a mesma atividade conjugada no feminino continua intrinsecamente associada ao caring dos outros.

Deste modo, os indicadores sobre divisão sexual do trabalho doméstico que apenas quantificam as tarefas e sua distribuição por gênero não conseguem captar os novos sentidos que a repartição de tarefas vem assumindo e que só parcialmente apontam para uma maior igualdade de gênero.

Finalmente eu gostaria de fazer algumas considerações sobre o que a perspectiva analítica de gênero pode contribuir para o aprimoramento das pesquisas comparativas internacionais.

Em primeiro lugar, a perspectiva analítica de gênero confirma a importância de se criar indicadores sociais mais sensíveis às configurações sociais, econômicas, políticas, religiosas e institucionais dos estados nacionais tornando-os mais “realistas” e confiáveis a partir daquilo que esta se pretendendo medir.

Em segundo lugar, o tratamento isolado de algumas variáveis, como se elas pudessem indicar alguma direção incontestável no desenvolvimento das sociedades, mostra-se muito precário, na medida em que a informação captada por uma variável pode distorcer a realidade, se não se levar em conta outros parâmetros correlatos.

Finalmente, as reflexões sobre gênero nos ajudam a pensar que todas as comparações internacionais estão pautadas por algum horizonte político e normativo que definem o valor heurístico dos indicadores. Talvez as pesquisas comparativas de gênero, principalmente as promovidas pelas Nações Unidas, e as inúmeras pesquisas que decorrem dos parâmetros fornecidos por ela, apresentam isso de maneira mais transparente declarando com clareza quais são os pressupostos morais, políticos, conceituais e empíricos que servem de inspiração para a comparação que realizam.

*Bila Sorj é Professora Titular de Sociologia do IFCS/UFRJ. Autora, entre outros trabalhos, de Israel Terra em Transe. Democracia ou Teocracia? Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2000 (com Guila Flint);Identidades Judaicas no Brasil Contemporâneo, Rio de Janeiro, Imago, 1997; O Trabalho Invisível: estudos sobre trabalhadores a domicílio no Brasil, Editora. Rio Fundo, RJ, 1993 (com Alice Rangel de Paiva Abreu).

 

NOTAS


1Trabalho apresentado na mesa-redonda “Gênero: perspectivas comparadas” no XIII Congresso Brasileiro de Sociologia, Recife, 29/05/2007 a 01/06/2007.

 

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Economia da cultura e desenvolvimento | de Sérgio Sá Leitão

Do ponto de vista da economia, a expressão “economia da cultura” identifica o conjunto de atividades econômicas relacionadas à cultura. Do ponto de vista da cultura, trata-se do conjunto de atividades culturais com impacto econômico. Pode-se incluir neste conjunto qualquer prática direta ou indiretamente cultural que gere valor econômico, além do valor cultural. A economia é, portanto, uma das dimensões da cultura. E a “economia da cultura” constitui um campo da economia. A expressão serve para definir este campo.

Cultura é mercadoria. Mas mercadoria distinta, com duplo valor: econômico e cultural. Mensurar economicamente a cultura não é só possível, mas necessário. Análises econômicas ajudam a entender fenômenos culturais. E reforçam uma percepção positiva das atividades culturais, ao conferir a elas valor palpável. O comércio global de bens e serviços culturais movimentou US$ 1,3 trilhão em 2005, cerca de três vezes mais do que em 1998. Este dado afirma a importância econômica da cultura, alem da “cultural”.

As indústrias culturais e seus produtos e serviços são a vitrine deste campo. Refiro-me à indústria editorial, à indústria do audiovisual e à indústria da música, entre outras. Tais setores se estruturam como cadeias produtivas. Basicamente, dizem respeito à criação, produção, distribuição e consumo de conteúdos e experiências culturais. Mas há também as atividades econômicas relacionadas à cultura que se estruturam como arranjos ou sistemas produtivos locais. E as de caráter individual, associativo e institucional.

Há vários conceitos de “economia da cultura”. E mesmo outras expressões, com diferenças conceituais que muitas vezes têm fundo político. Os americanos, por exemplo, pensam em termos de “economia do copyright”. Os ingleses, de “indústrias criativas”. Os escandinavos, de “economia da experiência”. Há pesquisadores que falam em “economia do conteúdo”. A cultura está presente em várias atividades. Como separar o que é cultural, por exemplo, na operação de uma tele? Que atividades incluir no campo?

Para efeitos de reflexão acadêmica e de formulação de políticas públicas, prefiro usar a definição precisa estabelecida no estudo “A Economia da Cultura na Europa”, divulgado em 2006 pela Comissão Européia, talvez o mais abrangente e profundo já realizado. Segundo este estudo, a “economia da cultura” foi responsável, em 2003, por 2,6% do PIB e 3,1% dos postos de trabalho dos 25 países que então formavam a Comunidade Européia. Hoje são 27 países. A pesquisa está sendo atualizada.

O estudo aponta a existência de um “setor cultural e criativo” formado por segmentos industriais e não-industriais ligados diretamente à expressão cultural; e por atividades em que a cultura impacta criativamente a produção de bens não necessariamente culturais. As atividades geradoras de valor econômico deste “setor cultural e criativo” são as que constituem o campo da “economia da cultura”. Deve-se frisar ainda que tais atividades influenciam outros setores, como ciência e tecnologia e eletro-eletrônicos.

Além do setor industrial da cultura, que inclui os segmentos do audiovisual, da música e da publicação de livros, entre outros, o estudo inclui, no campo da “economia da cultura”, a indústria da mídia (imprensa, rádio e TV), a área criativa (moda, arquitetura, publicidade, design gráfico, design de produtos e design de interiores), o turismo cultural e as expressões artísticas e instituições culturais (artes cênicas, artes visuais, cultura popular, patrimônio material, museus, arquivos, bibliotecas, eventos, festas e exposições).

O conjunto de pesquisas recentes sobre este assunto indica que a “economia da cultura” é atualmente o setor que mais cresce, mais gera renda, mais exporta e mais emprega, e o que melhor remunera. Trata-se de um feito quantitativo e qualitativo. É ainda o setor que mais impacta positivamente outros setores igualmente vitais. E mais gera valor adicionado. Está baseado no uso de recursos inesgotáveis (como criatividade) e consome cada vez menos recursos naturais esgotáveis. Apresenta um uso intenso de inovações e impacta o desenvolvimento de novas tecnologias. Finalmente, seus produtos geram bem-estar, estimulam a formação do capital humano e reforçam vínculos sociais e identidade.

Segundo o “Global Entertainment & Media Outlook 2006-2010”, da Price Waterhouse Coopers, o setor passará de US$ 1,3 trilhão em 2005 a US$ 1,8 trilhão em 2010, crescendo 6,6% ao ano, bem acima da média da economia mundial (5%). Na América Latina, projeta-se um crescimento anual médio de 8,5%, com o mercado passando de US$ 40 bilhões em 2005 para US$ 60 bi em 2010.

O Brasil tem o maior potencial de crescimento no continente, por três fatores: mercado interno expressivo, políticas públicas diversificadas e eficientes e a riqueza e a diversidade da nossa cultura. Deve-se tratar a “economia da cultura” no Brasil pensando não apenas na situação existente, mas sobretudo no potencial não-realizado, assim como nas oportunidades que se colocam, em termos de geração de renda, emprego, exportação e inclusão, tanto nacionalmente quanto local ou regionalmente.

De acordo com o “Sistema de Informações e Indicadores Culturais” (IBGE/MinC, 2006), o “setor cultural e criativo” respondia em 2003 por 5,7% dos empregos formais, 6,2% do número de empresas, 6% do valor adicionado geral e 4,4% das despesas médias das famílias brasileiras. Estima-se que a participação no PIB seja de 5%. Uma família brasileira gasta em média cerca de R$ 67,00/mês no consumo de cultura.

O excelente trabalho do IBGE e do MinC, divulgado em 2006, mostra que as empresas culturais são responsáveis por 5% dos postos de trabalho da indústria do país, com um salário médio de 5,6 mínimos (para 4,6 de toda a indústria). No que toca aos serviços culturais, os dados são ainda mais significativos: 9% do total de empregos e 5,9 mínimos de salário médio (para 3,2 de todos os serviços).

O crescimento do setor no Brasil tem sido muito expressivo, ainda que os valores absolutos sejam modestos, se comparados ao que se verifica nos países desenvolvidos e em outros setores da economia brasileira. Segundo a Price Waterhouse Coopers, a “economia da cultura” no Brasil passou de US$ 11,55 bi em 2001 para US$ 14,65 bi em 2005. O estudo projeta que o setor atingirá a marca de US$ 21,92 bi em 2010, com uma taxa de crescimento anual estimada em 8,4%, ou quase o dobro da estimativa de crescimento do PIB brasileiro.

Pesquisa da Fundação João Pinheiro aponta que o setor gera no Brasil 160 postos de trabalho para cada R$ 1 milhão investido, mais do que a construção civil e o turismo, por exemplo. Há, portanto, um vasto potencial a ser trabalhado pelo poder público, pelo terceiro setor e pela iniciativa privada.

A sociedade brasileira manifesta uma óbvia vocação para a cultura. Poucos países apresentam um conjunto de expressões culturais tão amplo, diverso e intenso quanto o nosso. Trata-se de um diferencial competitivo. Este diferencial deve ser explorado. A “economia da cultura” é, assim, um novo front de desenvolvimento, por sua grande capacidade de geração de renda e emprego, por seu impacto na formação do capital humano e no desenvolvimento de novas tecnologias, e seus efeitos sociais positivos.

O poder público já acordou para a “economia da cultura” e o que ela pode representar em termos de desenvolvimento. Há, desde os anos 90, um sistema de financiamento público da cultura estruturado, com impactos positivos e negativos, que totaliza cerca de R$ 3 bilhões/ano (recursos federais, estaduais e municipais). As fontes são os orçamentos, fundos específicos e leis de incentivo.

Em 2005, coordenei no MinC a formulação do Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Economia da Cultura (Prodec), que a partir de 2006 passou a integrar o Plano Plurianual da União e ganhou recursos próprios. Entre as ações do Prodec, destaca-se o apoio aos Programas de Exportação de Música, Cinema e Produção Independente de TV, Artes Visuais, Design e Instrumentos Musicais, realizados em parceria com a Apex, o Sebrae e entidades setoriais.

O ministro Gilberto Gil tem sido um apóstolo, ainda que por vezes o Ministério da Cultura apresente certa incapacidade de transformar discurso em prática. Ou não reconheça devidamente o que outros agentes fazem. Mas a causa tem cada vez mais adeptos.

O papel do poder público neste campo deve ser exercido através de cinco eixos principais:

> Formular e implementar políticas públicas, tendo em vista o grau de acesso ao consumo, a diversidade cultural, a capacitação de técnicos e empreendedores, a formação de públicos, o estímulo à criação, à produção e à distribuição, a promoção de exportações e a valorização da cultura nacional.

> Produzir e apoiar a produção e a disponibilização de levantamentos de dados, além de pesquisas e estudos sobre diversos aspectos relacionados ao tema, de modo a permitir uma melhor quantificação e também ajudar a qualificar o debate e as políticas públicas.

> Gerir instrumentos eficazes e diversificados de fomento a projetos, grupos, empresas e instituições culturais, levando em conta as dinâmicas da atividade, com recursos suficientes para estimular um processo de desenvolvimento.

> Disponibilizar crédito de longo prazo, com juros subsidiados, a empresas culturais.

> Regular as práticas econômicas, tendo em vista o equilíbrio dos mercados e a mediação entre o interesse das empresas e o interesse público.

Por serem baseados em criação, e portanto geradores de propriedade intelectual, os bens e serviços culturais se encontram no epicentro da chamada “economia do conhecimento”, constituindo um dos campos mais dinâmicos e atrativos da economia contemporânea. Na atual fase do capitalismo global o que está cada vez mais no centro das disputas competitivas são os ativos intangíveis, baseados em criatividade, idéias e valores. Vale dizer, ainda, que a economia é cada vez mais “cultural”, tendo em vista o impacto crescente de práticas e valores culturais em processo econômicos diversos. Basta pensar, por exemplo, na questão da inovação. Ou do design estratégico.

No Brasil, a “economia da cultura” tem um vasto potencial ainda não-realizado de produção e distribuição de riqueza de forma sustentável, com geração de emprego e renda, assim como de bem-estar, identidade e capacitação do capital humano. Trata-se de uma vocação da sociedade brasileira que, se devidamente aproveitada, pode contribuir decisivamente para o crescimento do Brasil, assim como para a qualificação deste crescimento. Ou seja: para um desenvolvimento pleno.

As políticas públicas voltadas para a “economia da cultura” constituem, na verdade, políticas de desenvolvimento, e assim devem ser pensadas. Mais recursos para a cultura, se bem aplicados, podem ser mais recursos para o desenvolvimento do país. A cultura, portanto, deve ser uma prioridade não apenas por seu papel “cultural” na vida social do Brasil, mas por seu papel econômico.

Formado em Jornalismo na Escola de Comunicação da UFRJ, com pós-graduação em Políticas Públicas (USP) e Marketing (IBMEC), *Sérgio Sá Leitão tem 40 anos e dirige a área de marketing e novas mídias da Vereda Filmes. Foi Assessor da Presidência do BNDES, onde coordenou a criação do Departamento de Economia da Cultura e do Programa de Apoio à Cadeia Produtiva do Audiovisual. Entre 2003 e 2006, foi Chefe de Gabinete e Secretário de Políticas Culturais do Ministério da Cultura. É coordenador do módulo “Desenvolvimento e Ação Estratégica” e professor de Economia da Cultura da Pós-Graduação em Gestão Cultural da Universidade Candido Mendes.

 

NOTAS


1Trecho de palestra proferida no Seminário Internacional de Economia da Cultura promovido pela Fundação Joaquim Nabuco, Recife, em julho de 2007.

 

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Capacitar para desenvolver: que constrangimentos? | de Manoel Ribeiro

Introdução

O objetivo deste texto é discutir, no contexto do mundo globalizado, uma alternativa metodológica de elaboração e implementação de programas de empowerment em comunidades carentes.

Como referência para essa discussão, são apresentados dois exemplos de programas para/comestruturas populares praticantes de expressões culturais.

Neles, é abordado o papel da capacitação, enquanto instrumento de empowerment.

É também destacada a dificuldade dos poderes públicos em perceber as diversas realidades locais, na elaboração de seus programas.

 

Contexto global

No correr da modernização, profundas transformações foram operadas nas estruturas sociais.

No século XX, com o apogeu da industrialização, as migrações campo/cidade produziram segmentos populares que eram chamados de “marginalizados”, integrantes do exército de reserva de mão-de-obra, das teorias marxistas.

Em nossos dias, com a diminuição do Estado, a desregulamentação do trabalho, o avanço tecnológico e a informação em tempo real, elementos básicos da globalização, deparamo-nos com um decréscimo no número de postos de trabalho e novas exigências de qualificação. Agora, os mais pobres são chamados de “excluídos”, objetivamente supérfluos para a movimentação da economia.

O quadro é complexo e requer um entendimento mais detalhado do que é exclusão, do ponto de vista dos excluídos.

 

O que é exclusão

O quadro a seguir permite uma análise do que é “exclusão”, para os moradores das favelas do Rio de Janeiro.

 

Iniciativas de combate à exclusão

A atuação dos governos sobre a exclusão ainda é tímida e muitas vezes paternalista. Por deterem o saber formal, definem e implementam os programas que acham que as populações mais pobres precisam. Em geral, tais programas, por motivos operacionais, são padronizados e aplicados indiscriminadamente, sem considerar peculiaridades locais. Os resultados não têm sido satisfatórios.

Por outro lado, os “programas” e invenções de mercado que as classes populares vêm praticando estão funcionando e resolvendo alguns de seus problemas e carências mais imediatas.

 

Um novo papel para a cultura

Vou apresentar brevemente dois desses programas, dois raros casos de entendimento positivo entre o Poder Público e uma “organização” popular.

Foi minha primeira experiência em programas para/com populações faveladas, identificando sua sócio-geografia e suas lideranças, discutindo idéias, pegando “boléia” em suas iniciativas e práticas, utilizando suas estruturas organizacionais.

Foi realmente uma experiência enriquecedora, onde aprendi muitas coisas, sobre a cultura dos mais pobres.

Hoje, estou convencido que, no mundo globalizado onde impera a mesmice dos padrões de produção e consumo, o que for específico e particular vai ser valorizado. Será o embate, na arena do mercado, entre a coca-cola e o vinho regional de qualidade; entre o hambúrguer e os doces de ovos tradicionais; entre ohaloween e as festas de São João; entre a assepsia estética dos condomínios fechados e o convívio proporcionado pela arquitetura coloquial das ladeiras de Alfama.

A cultura é um patrimônio guardado por grupos específicos e, como tal deve ser preservado.

Roda de samba
Culto Afro
Terreiro de Jongo
Forrá nordestino

Por isso, deve-se dar particular atenção à cultura popular, rica em manifestações peculiares e estratégias de sobrevivência criativas que podem ser aperfeiçoadas e apoiadas.

Alguns discordaram dessas idéias sob a alegação de que interferências externas poderiam tirar a autenticidade de algumas manifestações e “transformar cultura em um produto”. Acredito que a própria necessidade de manter sua atratividade em mercado manterá a expressão cultural preservada e específica.

Assim sendo, no caso das favelas e periferias, premido pela urgência que a situação dos excluídos inspira, centro minhas reflexões nas possibilidades de gerar renda para esse segmento social e de obter um maior equilíbrio na hierarquia de valoração entre a cultura popular e a cultura dominante.

As idéias abordadas adiante baseiam-se na crença que a “cultura própria” é um valor. Tanto aquela que gera produtos materiais, mais ligada à moradia e aos circuitos da produção e do consumo, quanto a cultura que produz bens imateriais, mais ligada às tradições e manifestações artísticas.

Nesse contexto, o emporwerment em assentamentos populares, além da democratização da educação formal e cursos técnicos de qualidade, pode se dar pela valorização da “cultura disponível” em cada localidade.

 

O espírito da coisa

O cineasta brasileiro – Cacá Diegues, que oferece oficinas de cinema na favela Cidade de Deus (cenário do filme homônimo), formando diretores, roteiristas, iluminadores e câmeras, deu um recado definitivo para seus alunos: “Queiram ser aplaudidos, não porque são pobres, mas porque são ótimos”.

Para que um objetivo ambicioso como esse possa ser alcançado, a “capacitação” deve ser entendida como abrangendo: a formação adequada para o aprimoramento técnico ou artístico de tradições e aptidões disponíveis; a assistência técnica na gestão das “organizações” locais e na elaboração de projetos, captação de recursos e coordenação executiva de programas; o acesso facilitado ao crédito e o apoio nas articulações com o mercado e com a mídia. As bem sucedidas experiências com “microcrédito” se constituem num bom indicador das possibilidades de sucesso dessa estratégia no combate à pobreza.

 

Experiências enriquecedoras

Para ilustrar essas colocações, vou apresentar dois exemplos. Dois casos promissores, infelizmente, ambos desmobilizados por problemas de gestão local e de insensibilidade do Poder Público.

Nesses exemplos, vou destacar a participação da “sociedade civil” do “andar de baixo”, deslocando-a para o centro do palco, e comentar a capacidade de iniciativa de certos grupos populares e sua facilidade em ter acesso às instituições.

Também vou apontar a dificuldade das instituições públicas em reconhecer problemas e recursos locais, na implementação de programas sociais em comunidades carentes, bem como sua tendência em enrijecer suas rotinas operacionais, sem considerar o contexto de atuação.

Nossos dois casos passaram-se na Serrinha, uma favela do subúrbio do Rio, originalmente conhecida por suas tradições ligadas ao samba e aos cultos afro-brasileiros. Mais recentemente, as migrações nordestinas trouxeram novas tradições para a Serrinha, fortalecendo sua posição de, segundo o dizer de seus moradores, “centro de resistência de cultura popular”.

Por cinco anos, durante a elaboração do Plano Participativo de Desenvolvimento Urbanístico e Social da Serrinha e implantação das obras correspondentes, tive a oportunidade de conviver intensamente com os moradores e aprendi a reconhecer os seus territórios, físicos e imateriais.

No processo de conhecimento mútuo desenvolvido, também aprendi a respeitar a cultura popular e a incrível criatividade e eficácia de suas estratégias de sobrevivência, inclusive nas relações com a mídia.

 

Dois casos

Na Serrinha, foram desenvolvidos dois programas com/para a cultura local, no caso detida pelas populações pioneiras, de ascendência afro, mas com potencial para atrair os outros grupamentos identificados.


Como previsto, a oficina atraiu os filhos dos nordestinos e dos outros grupos componentes do assentamento. A surpresa ficou por conta da presença de garotos das franjas da cidade formal vizinha, atraídos pela oportunidade.

O primeiro, o programa – “Tocando a Vida” – ensinava música instrumental por pauta, aos garotos e garotas da favela, envolvidos com ritmo e melodia desde a tenra infância. Esse Programa foi implementado pela Prefeitura, com apoio financeiro do Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID – e a participação do Conservatório de Música do Rio de Janeiro.

A Escola de Samba Mirim Império do Futuro, localizada na Serrinha, foi credenciada como gestora local do Programa, dispensando a presença de organizações “de fora” na favela.

Ao final de um ano de curso, os instrumentos utilizados foram doados aos formandos.

Isso gerou a criação de diversos “grupos de pagode”, que ganham dinheiro em apresentações em festas e churrascarias. Alguns garotos que se destacaram, ganharam bolsa do Conservatório e um deles é solista de bandolim, na Orquestra de Cordas da Prefeitura.

O segundo caso é outro extraordinário exemplo de participação da sociedade civil popular (Escola de Samba Mirim Império do Futuro), apoiada por instituições públicas (Prefeitura e Conservatório de Música) e uma agência internacional de desenvolvimento (BID) – a oficina de “Técnicas do Arame”.

Nos desfiles das escolas de samba, no Rio de Janeiro, os esplendores e adereços dos passistas e os improváveis sutiãs das modelos são produtos do artesanato de arame. Por baixo das plumas, das pedrarias e dos plásticos coloridos estão estruturas de arame, confeccionadas pelos artesãos de cada escola.

A idéia era preparar mão-de-obra técnica para produzir para a Escola de Samba Império Serrano, destacada entidade do carnaval carioca, que teve origem na Serrinha em 1947.

Para montar as oficinas, as medidas práticas foram muito simples. O espaço foi cedido pela Escola de Samba Mirim Império do Futuro, localizada nos fundo da residência da família fundadora. Uma máquina de soldar, arame e solda, bem como umas poucas ferramentas foram comprados com recursos do BID. A Escola de Samba Império Serrano indicou um experiente artesão/instrutor e estava tudo pronto para começar.

Além dos produtos para o carnaval, os alunos começaram a criar objetos decorativos, ao estilo dos desenhos do Cocteau, ou mini-esculturas do Calder, compondo as figuras por linhas ininterruptas. Esses objetos eles mandaram cromar fora, com custos adicionais, para oferecer aos visitantes.

No correr do curso, a gestora local percebeu que a sazonalidade do carnaval limitava drasticamente a possibilidade de auto-sustentabilidade do programa.

Assim, os garotos passaram a produzir troféus para a Prefeitura e para as homenagens a personalidades, ofertados pela Escola de Samba Império Serrano.

Mais tarde, na busca de uma ampliação de seus mercados nas vizinhanças, eles vinham fabricando enfeites para festas de aniversário e casamento, num estilo pós-kitsch, utilizando os mesmos materiais dos adereços dos desfiles das escolas de samba.

Nesse sentido, pensando em atingir toda a cidade, cheguei a fazer contatos com professores da Escola Superior de Desenho Industrial – ESDI para articular o design acadêmico ao know-how popular, viabilizando a criação de “produtos” que atraíssem faixas superiores de mercado.

 

Constrangimentos

Infelizmente, assim como o Tocando a Vida, esse programa foi interrompido, por problemas de gestão local.

Na decisão de interromper dois programas com tamanho potencial de empowerment revelaram-se os constrangimentos, recheados pela falta de diálogo.

A precariedade e a irregularidade na entrega de relatórios e das prestações de contas redundaram em pareceres técnicos desabonatórios que acionaram o nível decisório.

Na realidade, os sinais emitidos pelos gestores locais, em seu desempenho, foram mal interpretados pela burocracia estatal.

Depois de um ano de trabalho, ao invés de perceber a necessidade de capacitação local em gestão de programas socais e de exercer uma supervisão mais próxima, o Poder Público preferiu acabar com o Programa.

 

Conclusões

Dessas duas experiências, podemos concluir que:

– O empowerment de marginalizados ou excluídos pode ser buscado através de programas para/com essas populações, com o apoio dos recursos organizacionais e culturais existentes nas favelas.

– Na viabilidade operacional desses programas, a capacitação, a assistência técnica e o crédito têm papel fundamental, fortalecendo tradições e aptidões disponíveis e sua articulação com o mercado e a mídia.

*Manoel Ribeiro é arquiteto e urbanista

 

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Heloisa Buarque de Hollanda entrevista George Yúdice | agosto de 2005

Heloisa Buarque de Hollanda: George, sua intervenção como intelectual é tão polivalente que é difícil adivinhar qual foi sua formação. Afinal o que você estudou?

George Yúdice: Eu estudei Química, Artes e Letras simultaneamente na Cunny University. Depois fiz mestrado e doutorado em Letras.

HBH: Com quem?

GY: O doutorado foi com Silvia Molloy, lá em Princeton, com quem fiz a tese sobre Vicente Huidobro, poeta chileno, o grande mestre de Haroldo de Campos. Depois disso, estudei também sociolingüística, coisas de sociologia e comecei a trabalhar com o grupo de Fredric Jameson.

HBH: É interessante você ter feito uma tese sobre Huidobro. Como era essa tese?

GY: É um estudo semiótico muito formal, que analisa Huidobro em relação às vanguardas estéticas dos anos 20, 30, no contexto de Paris e América Latina. E abrange também as artes, porque ele era um artista multimídia. O resultado na época foi ótimo. A tese foi publicada imediatamente e ainda hoje as pessoas dizem que é muito boa. A Beatriz Sarlo falou que é a melhor coisa escrita sobre esse tema.

HBH: Isso mostra que nessa época você já tinha suas dúvidas sobre trabalhar dentro dos limites rígidos da literatura.

GY: Claro. Mas como Huidobro era um poeta em certos momentos muito sistemático, toda a questão científica e o interesse pela semiótica vieram por aí. Mas logo fiquei cheio disso também e comecei a colaborar com o grupo do Jameson, no final dos anos 70.

HBH: E pelo que conheço de vocês dois, esse encontro com Jameson deve ter marcado bastante sua trajetória. Como você o conheceu?

GY: Marcou muito. Tudo começou porque comecei a participar do grupo de Estudos Literários Marxistas, onde o Jameson era o chefão. Ele estava em Yale e eu estava trabalhando com Stanley Aronovitch. Através desse grupo de estudos, entramos em contato com o pessoal de Birmingham, conhecido como berço dos estudos culturais. Conhecemos Stuart Hall e outros profissionais que trabalhavam com um mistura de Gramsci, psicanálise, história, foi incrível. Eles traziam uma nova metodologia crítica, analítica, multidisciplinar.

HBH: Esse grupo funcionava em Nova York?

GY: Não, o grupo se reunia a cada verão, em lugares diferentes. Todos nós pagávamos a própria passagem e as universidades conseguiam alojamento, porque no verão não havia alunos. E fazíamos grandes debates durante horas a fio. Foi quando os estudos culturais começam a se formar nos Estados Unidos, no início dos anos 80, quando foi lançada a primeira versão do livro Late capitalism and marxism studies. Logo depois fizemos um segundo congresso, em 1988, quando saiu aquele tijolão Cultural Studies. Nessa época eu estava trabalhando com a Social Text, uma revista que começou em 1979 e teve bastante repercussão. Resumindo, os anos 80 foram para mim anos de muita aprendizagem, de exercício de crítica cultural e política. Foi ainda por essa época que migrei oficialmente da área de Letras para um tipo de crítica cultural, que foi batizada como Estudos Culturais. E eu logo não gostei dessa grife.

HBH: Por que todo mundo tem medo dessa grife?

GY: Porque nos Estados Unidos os estudos culturais viraram uma tendência de mercado, o mercado acadêmico. Por exemplo, você pode até tentar, mas não vai conseguir publicar um livro sobre um autor. É impossível. Mas se você escreve sobre uma lésbica, é muito fácil. E vende bem.

HBH: E um tipo de livro como esse que você está lançando, A conveniência da cultura.

GY: Esse já vendeu 5 mil exemplares e está indo para uma segunda tiragem. Acho que esse sucesso é porque ele extrapola o universo acadêmico. Pessoas que estão mexendo em gestão cultural, multicultural estão comprando. Pessoas de estudos culturais compram, mas outras pessoas de arte, também.

HBH: Mas o George desse livro não é o dos anos 80. Há um claro salto de local, de tema, de campo de estudos. O que chamou a sua atenção para seu redirecionamento para o debate mais voltado para as políticas públicas, para a discussão do Estado neoliberal, para as questões da economia da cultura?

GY: Foi a própria virada dos anos 90 na área da cultura, era uma coisa muito evidente. Me dei conta de que toda cultura precisa de um sistema de financiamento, de apoio. Eu estava também trabalhando em fundações o que me levou a me ligar nesses assuntos.

HBH: Houve alguma influência do Nestor Canclini nessa virada?

GY: Houve. Eu conheci o Canclini no começo dos anos 90, em um congresso em 1993 no México. Ele me ajudou muito nessa transição. Quando organizamos aquele congresso no Mexico, com você, inclusive, era para falar sobre estudos culturais nas Américas. Vieram pessoas dos Estados Unidos, do Canadá, da América Latina. Eu me lembro que vi lá, pela televisão, que havia uma preparação para o Nafta (Tratado de Livre Comércio da América do Norte). Na televisão, havia propagandas do tipo “Mexicanos, vamos entrar para o primeiro mundo, não sujem as ruas, entrem no trabalho na hora”. Esse tipo de mensagem pública. E isso era muito esquisito. Só comecei a falar dessas coisas no ano seguinte. Depois de fazer o contato com o Canclini neste congresso, ele me pediu para fazer um estudo do impacto do livre comércio nos Estados Unidos. E eu fiz um ensaio em 1994. Entrei na comissão da Fundação México-Estados Unidos e comecei a pesquisar mais sobre esses sistemas de financiamento. Nos Estados Unidos, eu já tinha feito parte do Conselho de Arte de Nova York, e me dei conta de como funcionava essa engrenagem. Nos Estados Unidos, a questão privada é muito mais importante em termos de financiamento do que a área pública. Foi a partir daí que propus um projeto para a Fundação Rockefeller sobre os impactos do fenômeno da privatização da cultura. Inclusive, publiquei, na Social Text, um ensaio chamado “A Privatização da Cultura”. Comecei também a fazer trabalhos práticos, não só estudos analíticos, mas também propositivos. Começou ali na metade dos anos 90. No ano de 1998, eu já escrevia textos sobre esses fenômenos. Mas o livro levou muito mais tempo, porque eu tinha que pensar nas grandes mudanças macros do mundo, para compreender as mudanças micro de fundações, financiamentos e também na cultura. As fundações queriam que esses financiamentos tivessem uma repercussão social.

HBH: Marketing social?

GY: É isso mas não só isso, há também uma preocupação com a repercussão em torno da mudança da realidade desses grupos sociais. Depois, eles mesmos se deram conta de que somente a cultura não vai necessariamente reduzir a pobreza, a cultura não tem esse poder. Os projetos culturais que pretendiam aumentar a auto-estima dos favelados em nome de resultados concretos como a busca de formação profissional, de obtenção de empregos e trabalhos não mostraram a eficácia imediata pretendida.

HBH: Eu sinto que nunca houve um momento tão bom para o intelectual como hoje e olha que eu estou na cena desde 1960… Como se forma um intelectual público hoje?

GY: Eu venho percebendo isso nestes últimos cinco, seis anos através de minha participação em conselhos, assessorias e consultorias com empresas, com o governo, com as ONGs. Muitas pessoas que eu achava que eram só intelectuais da área de estudos culturais, agora estão se engajando cada vez mais messe tipo de trabalho.

HBH: Existe uma migração ótima nessa cena pública.

GY: Mas infelizmente nos Estados Unidos isso não acontece. É por isso eu prefiro trabalhar com a América Latina e com a Europa. Nos Estados Unidos, os únicos intelectuais que têm força são os de direita. Os outros estão muito marginalizados.

HBH: Talvez porque na América Latina há muito consolidada a tradição do intelectual como sendo de esquerda.

GY: Lá, eles são quase censurados. Bom, sendo uma pessoa de esquerda, por exemplo, eu acho difícil dizer que Condoleezza Rice é uma intelectual. Mas ela é uma acadêmica, era colega da Mary Pratt em Stanford. Agora, ela é a grande chefona da política externa dos Estados Unidos, e é um horror…

HBH: Mas voltando ao assunto, quando você localiza a emergência das novas possibilidades de ação para o intelectual do século XXI?

GY: Eu tenho uma análise no livro sobre isso. Depois da queda do muro de Berlim e da União Soviética, nos Estados Unidos tornou-se difícil descobrir formas de legitimação para a arte e para a cultura. Até então, a arte nos Estados Unidos era legitimada pela arte em si, sem propósitos externos, supostamente, ao contrário da arte soviética do Partido Comunista, que era uma arte social realista. Nesses últimos anos, surge um tipo arte que respondia diretamente ao sistema de financiamento, que era uma arte com propósito comunitário, social, civil e que serviria para os fins da economia e do desenvolvimento. Era uma política de governos estaduais e municipais, de empresas privadas, de fundações e doadores. A grana vinha daí, não do âmbito federal. Uma arte voltada para o social, para comunidades. O material eram as pessoas.

HBH: Nos anos 60 também era assim.

GY: A grande diferença é que agora esse projeto artístico não é ideologizado. Nos anos 90, não se encontram nesses projetos nada de socialista, de marxista. Na realidade eram projetos neoliberais no sentido em que a sociedade civil assumia a função de resolver problemas sociais. E então, era preciso articular os grupos sociais com os sistemas de financiamento. Os artistas eram dinamizadores da sociedade civil. Isso ainda continua um pouco. Grupos como o Afro Reggae têm explorado essa idéia, até em suas músicas, o assunto é cidadania. Porque cidadania vende para as fundações. Nos Estados Unidos nunca se faria um CD que falasse sobre cidadania. O rapper lá não fala sobre cidadania. Ele fala em como ser homem, em como enriquecer.

HBH: A Nega Giza aqui flagra isso quando declara que o rap americano é “babinha music”. É só baba, não funciona, não diz nada. Mas sempre existe um Eminem para desafinar…

GY: O Eminem conseguiu entrar na mídia porque ele tem muita repercussão, muito público. Mas a maioria realmente só fala em ter ouro, mulheres. Por exemplo, o Snoop Dogg, ele tem vídeos pornográficos, com mulheres mostrando suas bundas. Isso vende milhões.

HBH: Voltando ao assunto, você parece que ainda defende uma estética menos instrumentalizada. É isso mesmo?

GY: Realmente eu sempre fui muito crítico do uso da arte para fins práticos. Mas eu acho que a essa altura eu vou ter que mudar. Já sinto que estou pensando de uma maneira diferente. A arte vai ser usada queira eu ou não. A minha idéia agora é que a cultura seja um recurso. E quando você pensa que a cultura é recurso, o único jogo que existe é o do gerenciamento, da gestão dos recursos. É como na ecologia. Eu poderia continuar com a idéia de arte para transcendência, uma arte para fins não instrumentais, mas mesmo assim a arte vai continuar sendo usada. Eu posso ser artista “puro”, mas quando eu colocar minha arte em um museu, estarei contribuindo com orçamento do PIB da cidade. Quando as pessoas pensam em criar um museu, elas justificam o museu pela arte, mas esse museu vai certamente contribuir para a economia da cidade. Então, queira eu ou não, a arte será sempre um recurso.

HBH: E que papel tem um intelectual hoje?

GY: Eu acho que o intelectual hoje é uma pessoa que intervém. Quanto a mim, estou trabalhando com grupos como o Afro Reggae, venho acompanhando o que eles fazem, mas não na qualidade de assessor. Assessorias estou dando na Costa Rica e El Salvador. De uma maneira mais underground, por exemplo, eu já vejo a diferença entre eu e o Canclini. O Canclini é um assessor mais macro. E eu estou trabalhando com um pé no macro e outro no micro.

HBH: E na universidade?

GY: Estou criando cursos e consegui, agora que sou diretor dos Estudos Latinos Americanos e do Caribe, criar uma nova disciplina onde eu dou dois cursos que são pré-requisitos. O primeiro é estudos de paradigmas de análise, que introduz o aluno em uma série de temas e campos de pesquisa. O segundo curso analisa a estrutura dos discursos dos Direitos Humanos, do Desenvolvimento e da Gestão. Esses cursos têm a ver com Cultura e Economia. É um programa para mestrandos.

HBH: Você está formando gestores?

GY: Claro, mas gestores e também com uma perspectiva crítica. E tudo feito a partir das teorias.

HBH: Estaríamos assistindo o fim do intelectual confinado na universidade?

GY: Depende. No contexto norte-americano, este intelectual vai continuar porque faz parte do nosso projeto de universidade. Mas seu impacto social é bem pequeno. Eu acho que na América Latina e na Europa a intervenção do intelectual na sociedade vem aumentando. O Canclini é um exemplo. Também Otávio Getino. Ele fez o filme A hora dos sinos, com Fernando Solanas, na década de 60. Como é cineasta, ele também se preocupou de onde ia sair a grana para fazer o filme. Em certo momento, ele disse: “A pessoa que faz filme também é empresária, tem que ter orçamento, tem que empregar pessoas”. Agora ele está coordenando estudos de cultura e economia. Ele é incrível, uma maravilha. Está em Buenos Aires. Ele fez grandes estudos sobre indústrias culturais para a Argentina. Fez também um grande estudo da economia das indústrias culturais para o Mercosul.

HBH: A sociedade civil está diferente? Será que o neoliberalismo ajudou essas novas ações e intervenções?

GY: Quanto à sociedade civil, acho que ela está mais “onguizada”. Quanto ao neoliberalismo, acho que ele fez as duas coisas, ajudou e atrapalhou. Permitiu a entrada de muito mais ONGs e cooperação internacional. Em alguns casos, o Estado está quase desaparecendo dos financiamentos para trabalhos nessas comunidades. Esses grupos se “onguizaram”, se fizeram ONG. E as ONGs têm uma maneira de operar, são monitoradas, têm estruturas burocráticas a serem seguidas, muitos papéis a serem preenchidos, requerimentos a serem encaminhados. Isso existe mesmo em grupos como o Afro Reggae.

HBH: Seria bom você definir mais concretamente esse seu conceito chave de “cultura como recurso”.

GY: O discurso é o seguinte: cultura já não é mais arte. A arte é só a ponta do iceberg da cultura. A verdadeira cultura é a criatividade humana. Esse é um discurso que já vem desde a década de 90 e é quase hegemônico. A questão é como dinamizar essa criatividade, viabilizar, para ter uma série de resultados: auto-estima, emprego, fim do racismo. E isso está muito vinculado ao trabalho das ONGs e à cooperação internacional. E a cultura é o lugar onde mais se manifesta essa criatividade. Então, por sua natureza a cultura serve para alavancar a criatividade. Esse discurso é do Blair. Nós queremos criar aquilo que existe na Inglaterra, que é incentivar as indústrias criativas. Indústria criativa inclui além das culturais bem conhecidas: edição de livro, televisão, filme, música. Inclui todas as indústrias que precisam de criatividade, que pode ser desenho, publicidade, software, artesanato etc. Eu estou trabalhando nisso e tenho tentado introduzir essa idéia em El Salvador, que é um governo de direita, e acho que eles estão gostando desse discurso.

HBH: E a questão autoria, que para mim é a questão mais fascinante desse novo momento, como fica? Até onde o mercado suporta noções como Creative Commmons, pirataria criativa ou copyleft?

GY: Copyright é para vender. O direito de cópia. E isso produz muita riqueza. Por isso, as grandes empresas estão sempre estendendo o período do copyright. Hoje em dia, com a pós-modernidade, a tecnologia e a globalização, muito do que se considera criatividade é, na realidade, puro sampler, é o uso de criações alheias. Então, alguns estão propondo que é preciso um sistema flexível, que de uma parte forneça ao autor um ingresso à criação alheia, mas que também o resultado dessa nova obra volte para o domínio público, para o uso de todo mundo. Então é aí que começa uma briga entre os interesses econômicos.

HBH: Mas fora a idéia do direito, tem também o problema da noção de autoria, de autenticidade que é reativa à mudanças, o autor, que era o autêntico.

GY: Sabe como economista vê isso? Como você faz para ter mais autores, para criar uma Hollywood? Ou uma indústria de broadcast como em Nova York? Com uma massa crítica de criadores, sejam de cultura ou de softwares ou de indústrias criativas. O que produz lucro não é a manufatura, é a idéia. Por isso o direito sobre a propriedade.

HBH: Do ponto de vista textual, uma perspectiva de mudança como essa não tem também conseqüências no próprio fazer do autor?

GY: Eu acho que cada vez é mais evidente a organização dos criadores por umas instâncias maiores, superiores. Por exemplo, o produtor que mexe com artistas e vai assessorando, e quase criando o produto deles com eles. Na arte, a figura mais importante não é o artista, é o curador e o diretor de museu, de bienal. Essas são as pessoas importantes, porque o artista é um recurso útil para os curadores.

HBH: Como você está avaliando isso?

GY: Eu ainda nem sei se isso vai para frente ou para trás, eu sei somente que as coisas estão mudando. E por isso o melhor é fazer como na ecologia, com a questão da sustentabilidade. E por isso, a gente precisa formar gestores que ajudem a encontrar pontos de equilíbrio entre os diversos participantes desse tipo de criação, na arte, literatura, cinema, dança, rituais indígenas. Tudo isso precisa de uma coordenação para que se promova uma sustentabilidade, para que essas pessoas não virem simulacros de si mesmas. Estamos num momento de industrialização e “proprietarização”, mas também de luta em relação ao poder econômico da criatividade. Eu acho que o material agora é a criatividade e o jogo e a luta são em torno da propriedade dessa criatividade e sua abertura para o domínio público.

HBH: Um nome para esse momento?

GY: Acho que seria a sustentabilidade cultural.

HBH: Uma previsão?

GY: Eu acho que o que vai acontecer é maior consciência e formação de negociadores e intermediários.

HBH: E em relação à idéia de cultura e literatura?

GY: Eu acho que isso os conteúdos não vão mudar muito. A grande mudança é na estrutura que não é só produtiva, mas também criativa e distributiva. Você tem que pensar em tudo isso sistemicamente: criação, produção, distribuição, domínio público.

HBH: Como é o nome disso?

GY: Ecologia cultural.

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A rosa-dos-ventos – posições e direções na arte contemporânea | de Paulo Sergio Duarte

Os Termos do Mundo

A arte e suas instituições não escapam ao fenômeno da globalização, que coincide com o redirecionamento neoliberal da economia e o conseqüente recuo da presença do Estado como empreendedor de políticas compensatórias, a partir da década de 1970. O avanço acelerado da mercantilização dos processos políticos, sociais e culturais é uma das marcas desse momento que chega até os dias atuais. Se o homem unidimensional que a cultura pessimista de esquerda de Herbert Marcuse[1] projetava para as sociedades industriais avançadas não se efetivou, o que se verifica é a tendência à sociedade tornar-se unidimensional tendo suas camadas, antes coordenadas por relativa autonomia, achatadas em um único plano governado pela lógica do mercado no qual a cultura aparece no posto privilegiado da commodity por excelência. Estes são os termos do mundo em que vivemos.

Mesmo em contextos como o norte-americano, nos quais o capital privado sempre foi ativo e hegemônico na construção dessas instituições, a começar pelos museus, a retração dos recursos públicos ditados pelo neoliberalismo fez-se sentir. A diminuição expressiva dos recursos do National Edowment for the Arts e seus congêneres, a partir do governo Reagan, torna-se visível quando museus tradicionalmente mais vetustos e discretos na sua relação com o universo do shopping são levados a multiplicar os quiosques de vendas de produtos por todos os seus andares para angariar recursos extras, ainda que estes representem uma parte pouco significativa de suas receitas. A relação entre arte e consumo, antes estranha ou pelo menos mediada simbólica e fisicamente, agora ganha naturalidade: o valor de troca da gravata ou do chaveiro e o valor artístico das obras habitam lado a lado. O consumo de mercadorias e a fruição estética de obras de arte, agora íntimos, confundem-se.

Momento particularmente sintomático dessa nova conjuntura foi a decisão do British Museum, em 1986, em pleno governo Thatcher, de alugar a Sala Egípcia para festas como casamentos e banquetes corporativos, devido à carência de recursos para a sua manutenção. O ponto culminante desse processo recente é a política de Thomas Krens à frente do Guggenheim, no qual a arte pode ser subsumida tranqüilamente para calçar a operação publicitária de grifes famosas e a própria marca do museu torna-se uma espécie de franchising cultural em seu processo de internacionalização. Ali está realizada de modo efetivo a identidade final entre arte/cultura/economia de mercado em uma totalidade sem fronteiras internas, na qual as mesmas leis pretendem governar as – antes – diferentes esferas.

Embora mais visíveis para o visitante do museu, esses sintomas são apenas a cereja do bolo. Quando observamos as incorporações de obras contemporâneas nas coleções de museus bastante conhecidos, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, manifesta-se um outro quadro mais contundente. Desprovidos de recursos significativos para traçar uma política de aquisição, principalmente de obras estrangeiras, a começar por aquelas de artistas dos países emergentes, os curadores ficam à mercê das doações por parte de mecenas e/ou marchands. Estes não são uma novidade, mas estavam orientados pelas listas de obras traçadas pelas equipes de curadores e previamente aprovadas pela instituição. Enfraquecidos na sua posição institucional de virtuais compradores, os curadores de museus invertem os papéis: são os mecenas que apresentam as obras a serem doadas.

Assim, no lugar do valor histórico, estão presentes obras de artistas cujos marchands têm uma política agressiva de oferta às instituições. Importantes museus ostentam no catálogo de suas coleções contemporâneas artistas de algumas poucas galerias, enquanto outros de indubitável valor estão ausentes por não estarem articulados com esses marchands combativos. Muitos curadores de museus estão conscientes desse fato; contudo, na ausência de fundos que lhes dêem a necessária autonomia na execução de uma política de aquisições, são levados a aceitar essa posição subalterna ao mercado para “não perder oportunidades”. Há toda uma construção de valores de bens simbólicos que é subvertida. O papel institucional do museu, no que diz respeito à arte contemporânea, fica afetado. Em muitos museus, o mapa da produção contemporânea está em boa parte determinado diretamente, sem mediações, pelos termos do mundo.

É apressado, em um mundo em transição acelerada, apontar mais do que tendências e passar a construir teorias definitivas. A situação acima descrita não pode ser generalizada. Para nos mantermos no estrito exemplo americano, instituições como o MOMA e o Dia Center, entre outras, parecem não subordinar estratégias culturais à pressão de mercado. O processo de consumação dos termos do mundo ainda não está inteiramente realizado e os focos de resistência, quando existem no interior do capitalismo avançado, devem-se nitidamente à separação do mundo administrativo e do dinheiro do mundo dos valores estéticos. Isso ocorre graças à existência de poderosos fundos financeiros bem administrados por especialistas que não se orientam nem se confundem com aqueles que dirigem as estratégias culturais das instituições – os administradores e os gerentes dos recursos contentam-se em ser instrumentos para a realização dos objetivos culturais.

A ocorrência em elevada freqüência da relação promíscua entre o mercado e a consagração de valores artísticos é um dado novo no campo da arte. Esse nervo fica mais exposto nos países de liberalismo neófito, como o Brasil. Curadores ligados ao mercado e a interesses privados ocupam postos institucionais duplicando-se em tarefas incompatíveis entre si, ao menos do ponto de vista ético; aqui, porém, não é o lugar para descer a esses detalhes. O mapa da produção contemporânea está determinado pela mercantilização generalizada dos processos políticos, sociais e culturais. E toda uma interessante teoria sobre a diferença das funções do museu de arte contemporânea e das bienais torna-se frágil quando confrontada com a realidade e suas práticas. Entre o que deveriam ser e o que efetivamente são existe a distância de um abismo.

Curadores, Bienalização e Produção Artística

Já se sabe, não é de hoje, que a realidade também existe na produção dos discursos que a ela se refere. As narrativas tomam o aspecto da realidade e superpõem-se ao Real. A abordagem crítica do problema das construções discursivas por Jacques Derrida em sua filosofia desconstrucionista foi deslocada de seus contextos rigorosos para permitir, em nome de um relativismo generalizado, um mundo sem alfândega de idéias. No campo da teoria da arte tudo passa; é o verdadeiro vale-tudo.

A produção artística, desde meados dos anos 1960 e durante a década de 1970, abriu frentes críticas em diferentes direções. A land art e obras públicas in situ colocavam em xeque os espaços tradicionalmente ocupados pelas obras: galerias, museus, bases e pedestais em praças. A arte conceitual com freqüência se tornava agudo instrumento crítico do próprio sistema da arte, de seus agentes e instituições. Explorando outro veio, de cunho mais sociológico, a arte incorporava a seus temas e narrativas as lutas étnicas e dos direitos civis, de libertação sexual – tanto das mulheres quanto dos homossexuais – e a crítica a múltiplos aspectos da sociedade industrial avançada. Essa conjuntura, que redefinia profundamente o conceito de identidade – antes simploriamente associado à nacionalidade e às posições políticas de esquerda e de direita -, foi, então, submetida a uma matriz complexa envolvendo múltiplas variáveis. Essa descoberta de uma formidável diversidade foi definida como multiculturalismo. Resultado da reflexão sobre importantes lutas políticas e sociais em diferentes territórios, o multiculturalismo tornou-se um laissez-faire teórico no campo da arte.

Ao novo liberalismo econômico corresponde, na arte, a ascensão de um território teórico que denega a história e elege temas no balaio pós-moderno, temas fartos à luz do multiculturalismo e das teorias psicanalíticas. As instituições, sejam museus, salões, bienais, galerias comerciais, passam a existir em um limbo teórico impermeável aos termos do mundo. Tudo seria como deveria ser, segundo uma teoria desligada da realidade concreta na qual as instituições são compartimentos tão estanques quanto as seções de uma loja de departamentos – uma espécie de Bloomingdale’s ou Galeries Lafayette – que recebem os conteúdos eleitos pelos curadores.

Os temas e as linguagens das obras, por sua vez, seriam os responsáveis pela definição de sentido. Se no alto modernismo as obras seriam mônadas privilegiadas, vacinadas contra o mundo, que exalavam significados formais independentes dos circuitos nos quais se inscreviam, agora retornamos a um primitivismo de vanguarda que não fica nada a dever ao substancialismo da física medieval: um trabalho é feminista porque utiliza como matéria-prima absorventes internos para compor um imenso lustre; outro, na mesma linha, é um vídeo científico de cirurgia plástica de restauração de um hímen, uma espécie deready made didático extraído de uma aula de Medicina, mas a ele é atribuído elevada voltagem, posto que não está sendo apresentado no anfiteatro da faculdade para futuros doutores, e sim em uma bienal de arte.[2] Ao exagero da busca do sentido pura e exclusivamente nos elementos ópticos da obra de arte que ocorria no formalismo moderno, o mundo contemporâneo assiste à simples exibição de conteúdos aos quais não se coloca nenhuma exigência de reorganização formal. A festa é aparentemente progressista; dados os conteúdos, o método é seguramente conservador. A obra teria o poder de se autocontextualizar a partir de seus próprios temas. Por mais absurdo que pareça, a um neoliberalismo econômico corresponde, ou ao menos coincide, um neoliberalismo teórico que constrói e vende a teoria de um sistema da arte. E não lhe faltam consumidores, a começar pelos próprios pares que a produzem e a reproduzem.

Essa conjuntura teórica tem início no final dos anos 1970, quando emergem, entre os sérios profissionais da crítica e dos museus, as vedetes curadoras. A situação é um prato feito. O terreno está aberto e qualquer exigência de potência poética é imediatamente tachada de formalismo. Travestidos de teóricos ou inventores originais, investem nesse novo star-system. Nenhum deles propõe mudanças no processo institucional falido; ao contrário, trabalham na preservação de suas reservas de mercado de trabalho. Surge, então, o novo curador, diferente daquele profissional mergulhado nas pesquisas, nos arquivos e nas reservas técnicas dos museus que de vez em quando dá o ar de sua graça na prestação de contas dos resultados de sua pesquisa em publicações acadêmicas ou nos catálogos das exposições que resultaram de muitos anos de trabalho. O novo curador é independente; mesmo que esteja vinculado a uma instituição. Além disso, suas investidas autorais são atrevidas e sobretudo personalizadas. Apresenta teses de consistência duvidosa em exposições cujos custos alcançam a ordem dois milhões de dólares. As obras de arte – e, com elas, a história da arte – serão manipuladas para servir ao roteiro autoral à luz de uma das muitas teorias pós-modernas, talvez alguma que ele mesmo tenha acabado de inventar.

Já na década de 1970, vários críticos apontavam a impotência de salões e bienais de arte para cumprir sua função de detectar e mostrar a produção contemporânea mais instigante ou, se quiserem, instável. Entretanto, o mundo foi palco de um fenômeno na direção inversa dessas avaliações. Em lugar de serem estudadas as transformações necessárias na instituição bienal para que pudesse incorporar no seu processo, além da mostra periódica, o instrumento de rastreamento da produção e de sua difusão permanente em trabalhos de pesquisa e educativos no sentido mais amplo do termo, a década de 1990 assistiu à banalização das bienais: surgiram pelo mundo mais de cinqüenta instituições desse tipo. Esse fenômeno já tem um termo para designá-lo – bienalização – e é estudado a partir de seus sintomas: os mesmos curadores, os mesmos artistas, os mesmos marchands circulam em todas as bienais. É uma espécie de revezamento programado de um “sistema da arte” que se distancia da produção que não foi incluída entre os eleitos.

Em 2005, na 51ª Bienal de Veneza, diante do projeto curatorial de Rosa Martinez de romper limites e ir “Sempre um Pouco mais Longe”[3], a crítica e curadora turca Beral Madra, que coordenou a 1ª e a 2ª Bienal de Istambul, em 1987 e 1989, observa que “To go always a little further should be the motto for many art scenes which are not discovered yet. The institution biennale has become too heavy, too expensive and too sophisticated to catch the spirit of the art of these out-of-the-way territories”.[4] É isso que não é enfrentado por essas mostras. As mostras bienais devem ser transformadas, e a Bienal do Mercosul, entre as mais de cinqüenta existentes no mundo, pode contribuir para essa mudança. Por estar inscrita em condições bastante particulares, ela pode propor mudanças na instituição para não ser apenas mais uma entre as dezenas de bienais.

A Bienal do Mercosul é a Bienal de Porto Alegre. Toda bienal age sobre a cidade que a produz e a ela pertence. A cidade de Porto Alegre e o estado do Rio Grande do Sul, pela sua economia e pela sua produção artística, literária, teatral, musical e cinematográfica, já contribuíram para deslocar o monopólio do eixo Rio-São Paulo, que há muitos anos centraliza a eficácia cultural e dita rumos da produção contemporânea. A densidade e a qualidade da produção cultural local permitem identificar um pólo seguro para efetivamente irmos “um pouco mais longe”, não nos conteúdos, e sim nos processos. Por seu recorte regional, a Bienal do Mercosul pode construir o tema de cada edição em um seminário no qual participariam curadores de todos os países envolvidos na mostra. Exposições e debates em cada país deveriam preceder a preparação da mostra final em Porto Alegre. Finalmente, encerrada a mostra, uma programação especialmente traçada para a região metropolitana de Porto Alegre capitalizaria o evento por meio de um programa educativo amplo, envolvendo desde a capacitação de professores até estudos avançados, trabalhando de modo permanente as grandes questões da arte contemporânea. Não há impasse, mas escolhas: ou agimos para apontar e traçar novos caminhos, rompendo com a “lengalenga” das bienais, ou aceitamos passivamente o avanço da mercantilização generalizada dos processos enfeitados pelos teatros curatoriais.

A 5ª Bienal do Mercosul: Histórias da Arte e do Espaço

Ao escolher como tema as transformações das noções de espaço e suas relações com a arte contemporânea, sob o título Histórias da Arte e do Espaço, a 5ª Bienal do Mercosul toma uma posição: um investimento dessa natureza e dessa dimensão, em um país no qual parte significativa de sua população sequer completa os estudos básicos, não deve ser o lugar para a apresentação de teses pessoais do curador. Para isso existem exposições de menor porte e seus respectivos catálogos, projetos locais e revistas acadêmicas, cujo lugar não é a maior mostra de arte latino-americana. Procura-se, então, um fio condutor que possa estar presente tanto na experiência das obras quanto no cotidiano do visitante, seja leigo, seja especializado.

Esse fio, por suas características conceituais, não fecha a mostra em torno de uma particularidade; ao contrário, as transformações da noção de espaço abrem-se de tal forma que os curadores dos países participantes não têm seu trabalho subsumido pelo tema proposto pelo curador geral do Brasil. A questão do espaço em sua relação com a arte goza de tal amplitude que a torna mais um quadro de referência a ser levado em consideração na análise das obras do que um roteiro ou uma receita a serem seguidos. A força do projeto não se encontra na autoria pessoal, mas na autoridade e no peso de sua própria questão.

E mais: no interior do pandemônio de teorias do balaio pós-moderno, no qual “conceitos” circulam livremente pelo planeta, como o capital financeiro, sem barreiras ou controle, investe-se em um assunto mais que clássico, um tema que se confunde com a própria questão da arte. Pierre Francastel já lembrava no fim da primeira metade do século passado: “Todas as artes plásticas são artes do espaço. A noção da Forma não lhes é exclusiva e freqüentemente se comete, ao falar delas, o erro de empregar esse termo sem suficientes reservas. (…) não existe arte plástica fora do espaço e quando o pensamento humano se exprime no espaço toma necessariamente Forma plástica”. E prossegue: “É, portanto, capital estudar a Forma plástica em função da noção de espaço. Tanto mais que essa noção é variável segundo países e épocas”. [5]

Em que pesem as revisões inevitáveis nos aspectos genéticos do método de Francastel, ainda fundamentados nas pesquisas de Piaget, depois das contribuições de Lévi-Strauss na antropologia, de Georges Canguilhem e de Alexandre Koyré nas suas respectivas histórias da ciência, de Jacques Lacan na psicanálise e dos estudos de Foucault sobre as descontinuidades estruturais nas histórias e na construção de seus discursos[6], a afirmação do espaço como um território comum a todo fenômeno plástico não somente resiste, como as transformações dessa noção podem ser claramente detectadas nas mais vigorosas obras contemporâneas. Esse território comum pode ser tomado como o eixo de uma rosa-dos-ventos, a partir do qual podemos examinar diferentes posições e direções da arte contemporânea. As transformações da noção de espaço funcionariam, desse modo, como uma espécie de sistema de referência global, tal como as coordenadas geográficas, sobredeterminante, no qual podemos identificar os sistemas narrativos locais determinados por seus objetos específicos, como aqueles movidos em torno de estratégias particulares: políticas do corpo, referências étnicas, crítica sociológica, políticas de gênero e de sexualidades, crítica ao sistema da arte – às suas instituições e aos seus agentes -, investigações que mobilizam novos recursos tecnológicos, poéticas idiossincráticas, pesquisas formais de linguagem, bem como retomadas puramente conceituais. A hipótese seria a de que, sobre o território teórico da noção de espaço e suas variantes históricas e culturais, seria possível, a partir de um paradigma mais resistente ao relativismo generalizado pelo desconstrucionismo, examinar as interações entre essas microrregiões narrativas e suas estratégias em determinadas obras e explorar seu alcance poético. Em torno desses sistemas locais, de suas estratégias e táticas, enfim, das diferenças ditadas pelo multiculturalismo, é que se movem as diversas pós-modernidades na arte.

O sistema referencial ditado pelas transformações da noção de espaço forneceria uma dupla âncora: a sincrônica, cuja função seria a mesma de uma invariante estrutural – o elemento comum a todas as microrregiões do continente espacial, independentemente de suas estratégias narrativas particulares; a diacrônica, que permitiria estabelecer os índices de ruptura e/ou de continuidade das narrativas específicas com o recente passado moderno. Permita-se um truísmo: a dimensão histórica do fenômeno artístico, se uma visão genealógica for aceita – necessariamente dissociada da noção evolutiva de progresso, isto é, uma visão não-genética -, encontra-se não somente nas continuidades e infiltrações do passado, nas negações e rupturas com esse passado, mas também nas experiências artísticas que, por razões socioculturais, desenvolvem-se à margem do chamado sistema da arte. Retomado o eixo histórico, trata-se de incluí-lo no repertório de referências combinado com os demais, tal como as diversas noções e camadas de espaço que estão em jogo na produção contemporânea. Poderia surgir uma teoria da arte conjugando-se as transformações da noção de espaço e história que não eclipse, em nome de valores paradigmáticos, a diversidade da produção contemporânea.

A dispersão e a diversidade contemporâneas assumem a figura do fragmento, sobretudo quando desconectadas de um território comum. Assim, sem prejuízo dos contextos específicos e das dinâmicas particulares a cada estratégia narrativa ou formal, a dimensão histórica seria restaurada tanto na distribuição espacial dos diferentes territórios quanto em suas relações com a herança moderna. O fragmento é elevado ao estatuto efetivo de diferença. A denegação ou mesmo o recalque da história advém de se tomar a História como acervo de valores do passado, espécie de unidade de medida e bússola que inibiria a leitura do presente. A ênfase na transformação histórica e cultural da noção de espaço neutralizaria a função de superego da história, ao mesmo tempo em que colaboraria para pensar com mais rigor a produção contemporânea que se apresenta com freqüência, principalmente em megaeventos, como um verdadeiro bricabraque fazendo a festa de indigências teóricas.

*Paulo Sergio Duarte é crítico de arte e professor. Pesquisador do Centro de Estudos Sociais Aplicados da Pró – Reitoria de Pós Graduação e Pesquisa da Universidade Cândido Mendes. Projetou e implantou o programa Espaço Arte Brasileira Contemporânea – Espaço ABC – da FUNARTE (1980-1982). Foi Diretor do Instituto Nacional de Artes Plásticas da FUNARTE (1981-1983) e Diretor Geral do Paço Imperial (1986-1990). Possui textos publicados em diversos catálogos de exposição e revistas especializadas, no Brasil e no exterior. Publicou diversos estudos e artigos sobre arte moderna e contemporânea, dentre os quais destacam-se os livros Anos 60 – Transformações da Arte no Brasil(Campos Gerais, 1998), Waltércio Caldas (Cosac & Naify, 2001), Carlos Vergara (Santander Cultural, 2003) e a Trilha da Trama e outros estudos (Funarte, 2004), organizado por Luiza Duarte.

 


[1] MARCUSE, Herbert. One-Dimensional Man: Studies in the ideology of advanced industrial society. Boston: Beacon Press, 1964. (Publicado em português sob o título Ideologia da sociedade industrial. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1968.)

[2] Refiro-me explicitamente às obras de Joana Vasconcelos (A Noiva, 2001. Aço inoxidável e absorventes internos. 470 x 220 x 220 cm. Coleção de Antonio Cachola, Campo Maior) e de Regina José Galindo (Himenoplastia, 2004. Performance para a mostra coletiva Cinismo all Espacio Contexto). Ambos os trabalhos foram exibidos na exposição Sempre um pouco mais longe. C, com curadoria de Rosa Martinez, na 51ª Bienal de Veneza, de 2005. O trabalho de Galindo recebeu o prêmio para Jovem Artista da Bienal.

[3] Rosa Martinez tomou para o título de sua mostra uma frase de Corto Maltese: Sempre um pouco mais longe(Sempre un pó più lontano).

[4] MADRA, Beral. The Last Bi-Entertainment, Jul 2005.Disponível em: <http://www.europist.net/?sayfa=makale_detay&id=56>. Acesso em 08/07/2005. Beral Madra coordenou a 1ª (1987) e a 2ª (1989) Bienal de Istambul. Foi curadora da representação turca em três edições da Bienal de Veneza (43ª, 45ª e 49ª) e já organizou 20 exposições internacionais na Turquia e na Alemanha. Desde 1990, dirige o BM Contemporary Art Center.

[5] FRANCASTEL, Pierre. “Espaço genético e espaço plástico”. In: A realidade figurativa. Coleção Estudos. 2.ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 1993. p. 123. O texto foi originalmente publicado na Revue d’esthétique, t. 1, fasc. 4, oct.-déc. Paris: 1948, p. 349-380. Posteriormente foi  incluído em La réalité figurative. Paris: Denoël-Gonthier, 1965.

[6] Para esses autores cf.: LÉVI-STRAUSS, Claude. As estruturas elementares do parentesco. São Paulo, Rio de Janeiro: Editora da Universidade de São Paulo, Editora Vozes, 1976. Particularmente o capítulo 7: A ilusão arcaica [Primeira edição em francês: 1949]. Ibidem. O Pensamento Selvagem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1983. Particularmente os dois primeiros capítulos: A ciência do concretoA lógica das classificações totêmicas [Primeira edição em francês: 1962]. CANGUILHEM, Georges. Le normal et le pathologique. Paris: Presses Universitaires de France, 1966. [Trata-se da edição da tese de doutorado em Medicina de Canguilhem, defendida em 1943 – O normal e o patológico – acrescentada do estudo Novas resflexões a respeito do normal e o patológico]. Ibidem. Études d’histoire et de philosophie des sciences. Paris: Vrin, 1968. KOYRE, Alexandre.Études Galiléennes. Paris: Hermann, 1940. [Estudo pioneiro sobre a descontinuidade entre a noção medieval deimpectus (impulso) e o conceito de inércia na explicação do movimento na física moderna, tendo como conseqüência a demonstração da primazia de um racionalismo complexo, que introduz o pensamento estruturado como a linguagem, sobre um empirismo ingênuo que acredita na repetição da experiência crua como geradora de conhecimento]. LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1998 [Primeira edição em francês: 1966]. FOUCAULT, Michel. História da loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 2002 [Primeira edição em francês: 1961]. Ibidem. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1984 [Primeira edição em francês: 1963]. Ibidem. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 1990 [Primeira edição em francês: 1966].

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A crise dos experimentalismos | de Ronaldo Lima Lins

Je dis qu’il faut être
voyant, se faire voyant.
Arthur Rimbaud a Paul Demeny[1]

 

A mais impressionante de todas as construções da modernidade foi, com certeza, o ímpeto com que a vontade de transformar surgiu no meio de hábitos arraigados por séculos na existência das pessoas. As noções de Tempo e de Espaço (com as conseqüências dos descobrimentos e do desenvolvimento das trocas comerciais) sacudiram as estruturas constituídas e abalaram a psicologia de um mundo que se pretendeu o centro do universo, sob os auspícios de Deus. Os espaços “infinitos” dos territórios americanos tornavam possível, sobretudo, o exercício da imaginação. O que se encontrava ali parecia de um exotismo contestador, de tal modo que, apesar da superioridade européia, da qualidade das armas dos conquistadores em relação aos locais, um padrão moral diferente tinha de crescer e se impor. Havia, também, na experiência, uma concepção de espaço e uma subseqüente idéia de liberdade dela advinda, fazendo explodir os marcos do poder e dos laços de servidão. É curioso notar que, se a escravidão se constituiu como uma invenção do Renascimento, marcando a hegemonia dos interesses econômicos sobre os sociais, a idéia de liberdade não deixou, por isso, de se basear, ao contrário, no convite tentador das formas de vida e relacionamento com o território, característicos das populações americanas. Os europeus, ao chegar, não pretendiam anunciar, nem para si mesmos, inovações. A tecnologia marítima avançara o suficiente para ampliar a rede de comunicações e propagar fantasias de poder. Tratava-se, no entanto, de algo incipiente, tão embrionário que Espanha e Portugal, com força para dividir o planeta entre ambos, caíram aos poucos, com a passagem do tempo, para um plano secundário no jogo internacional, sufocados pela Inglaterra e pela França. Ou seja, o poder que lhes foi outorgado pelas grandes descobertas, não só não derrubou as oligarquias locais, como ajudou a sufocar os projetos filosóficos que pretendiam caminhar em direção a uma sociedade melhor. É este, na verdade, mais um paradoxo da modernidade ocidental. Quando levantou o desejo de liberdade sobre os gemidos e o sofrimento dos escravos; e quando mergulhou na aventura do infinito sob as amarras dos privilégios da nobreza – os vetores que trabalharam no sentido da vida (para usar uma expressão de Michelet) não perderam o fôlego por causa das contradições. Delas fizeram, de fato, os nutrientes que alimentaram e de certa maneira alimentam ainda a nossa vontade de emancipação.

O paradoxo é, assim, um combustível no motor que roda e avança cada vez com mais coragem, deixando para trás um rastro de lutas e decepções, mas é, igualmente, o fundamento de um universo que quase nada guarda de semelhança com o antigo. O espaço fechado do ambiente europeu se contrapôs às imensidões territoriais americanas e se colocou em proporção com as limitações morais dos costumes na metrópole e a aspiração de romper com elas. Não admira que tenhamos desenvolvido, ao mesmo tempo, nos últimos séculos, um gosto pela dialética como modelo de pensamento e de exame da verdade. Claro que se pode dizer que, no contraponto entre o nascimento e a morte, a juventude e a velhice, o claro e o escuro, o dia e a noite, o inverno e o verão, a trajetória da humanidade realiza desde sempre o seu percurso. Mas se pode afirmar que, na tradição judaico-cristã, na qual tudo se iniciava na discussão sobre a imortalidade, a regra da sucessão e do progresso se consolidou a tal ponto que reduziu ou eliminou a nossa capacidade de nos observar a partir de outros enfoques.

A observação pessoal era aquilo que deveria orientar os fluxos da mente. Para que houvesse semelhante tipo de observação, o olhar que dirigimos em nossa direção, como se assim nos orientássemos melhor, caiu em segundo plano em função de sistemas de poder tão fortes que conseguiram substituir o próximo pelo distante. Curiosamente, é depois do século XVIII, com a descoberta da intimidade e da introspecção, que conseguimos inverter os mapas dos nossos juízos. Antes, a angústia concentrada na hipótese de derrotar a morte, por via de Deus, sufocou qualquer possibilidade de nos deter nos comportamentos humanos ou naturais e deles extrair modelos. Os séculos XVIII e XIX concederam uma ênfase extraordinária à atenção dada ao que somos e ao que queremos ser, com desdobramentos no terreno da arte e seus reflexos na psicologia. Tudo, literalmente tudo, servia para que examinássemos atitudes e pensamentos, com vistas, em seguida, à crítica da sociedade e da política.

Uma das maiores e mais instigantes manifestações do experimentalismo moderno na literatura quem o fez foi talvez Jorge Luís Borges. Claro que o mesmo surgiu na crista de uma onda que se iniciara muito tempo antes, com ápices nas criações de Joyce, Proust e Kafka. Alguns dos contos do escritor argentino podem, no entanto, fornecer um parâmetro desconcertante sobre o fenômeno da autopercepção e das surpresas que provoca, enquanto, por outro lado, como fenômeno mais impressionante, lemos seus escritos com um misto de naturalidade e espanto. A história sobre o inventor do Quixote é uma. Na do herói e do traidor, a diversificação das possibilidades de uma única personalidade contém uma realidade que depende, para chegar ao leitor, de um tipo de experiência que a humanidade nem sempre teve. Ao organizar uma investigação no interior do grupo de revolucionários irlandeses, à procura do traidor, o herói se aproxima cada vez mais de si mesmo, até perceber que caíra na sua armadilha, descobrindo-se vítima daquilo de que se imaginava algoz, quando pedia punições radicais. Mas como um herói pode ser, ao mesmo tempo, traidor? Para tanto, cumpre que a personalidade individual se comporte dentro de um prisma de realidade no meio de uma multiplicidade de primas de realidade na qual se integra. Criticar-se e destruir-se representaria uma antinomia presente na atualidade? Para que possamos alcançá-la, é preciso que a vejamos em torno, no universo dos nossos pequenos problemas, enquanto, numa concorrência generalizada, enveredamos pela arte de sobreviver e de ganhar o pão de cada dia. Um caso literário de natureza similar é o do personagem Hermann Carlovitch, de Vladimir Nabokov. Aqui, um cidadão pacato, proprietário de um comércio de chocolates, aparentemente bem sucedido, não obstante as dificuldades que atravessa, tropeça, certo dia, enquanto passeava num parque da cidade de Praga, num indivíduo deitado na grama. Aproxima-se para examinar melhor. Um chapéu lhe encobre a fisionomia. A cena guarda uma atmosfera de mistério. Hermann Carlovitch dá a impressão de buscar um roteiro previamente traçado quando levanta ligeiramente o chapéu e descortina o rosto do outro. Isto porque enxerga nele um duplo, um sósia perfeito, como se localizasse, saído do nada, um irmão gêmeo. A descoberta não lhe abandona a mente.

O que o romancista pretende insinuar, envolvendo um sistema de igualdade entre estranhos, tem a ver, como metáfora, com uma aventura do seu país e da sua época. Desde a revolução francesa, fala-se em igualdade, lema que se transformou numa hipótese das experiências socialistas do século XX. O debate, só por isso, se revela válido, ainda que se constitua numa crítica de direita quanto ao que se passava na União Soviética. Note-se que o exercício da experiência não se coloca apenas do ponto de vista formal. A partir do século XIX, tudo entra na linha das nossas possibilidades de contestação: o possível e o impossível. O que um pouco antes soaria como falso, inverossímil e, por conseguinte, posto de lado no quadro do tipo de realismo que se procurava, insere-se sem dificuldade entre os materiais literários como representação do que concebemos como real. Nabokov desmonta o princípio da semelhança, reduzindo-a a uma impressão do personagem, a uma ilusão, tão perfeita na sua fantasia, que engana.

Ele decide se valer do “duplo” para um plano de assassinato e uma apropriação do seguro com o qual sairia de uma crise financeira. O problema é que, na vida real, existem pessoas parecidas: idênticas, nunca. O que, no seu devaneio, se mostrava evidente, não se confirmava para os demais. O corpo da vítima, vestido com as suas roupas, não enganou a ninguém. A polícia e os amigos perceberam a fraude, sem compreender certos detalhes, entre os quais a preocupação do criminoso em preparar e vestir o morto.

O romance não se esgota no esquema simples do ‘crime e castigo’, apesar das analogias com Dostoiévski. É de uma concepção sofisticada quanto ao aspecto narrativo. Examinando-o, Sartre, para contrariedade do autor de Lolita, interpreta o distanciamento do autor e suas interrupções e conversas com o leitor, como uma espécie de imperícia, como se, ao contrário de seu ancestral russo, que acreditava nos personagens, o último descresse dos seus. Destaca, mesmo assim, o que denomina de “inferno dos raciocínios”, a trama sedutora e perigosa com que caímos, às vezes, nas possibilidades do nosso pensamento, sem nos conscientizar de que eles, também, muitas vezes, não passam de ilusão.

No romance, como, aliás, em toda parte, é preciso distinguir um tempo no qual se fabricam os apetrechos e um tempo no qual refletimos sobre os apetrechos fabricados. O Sr. Nabokov é um autor do segundo período; ele se coloca deliberadamente no plano da reflexão; nunca escreve sem se verescrever, como outros se escutam falar, e o que lhe interessa quase exclusivamente, são as sutis decepções de sua consciência reflexiva.[2]

Sartre qualifica a obra como uma narrativa curiosa, de autocrítica e de autocrítica do romance. Não hesita em inscrevê-la no terreno da experimentação. Vivendo no século XX, Nabokov, a despeito de admiração que sente por Dostoiévski, não pode repetir os seus dispositivos formais. É de um tempo onde todos, quase sem exceções, se mostram impelidos pela obsessão com a pesquisa e o desbravamento, o rompimento, quer no conteúdo, quer na expressão. O exemplo dele representa um indicativo a mais na onda da renovação, já que realiza uma crítica de direita, digamos assim, sobre o suposto igualitarismo soviético, enquanto russo exilado. Sem entrar no âmbito da discussão política, refere-se a ela por meio de metáforas – e se posiciona. Não há, no mundo, duas pessoas iguais, afirma, num momento em que, internacionalmente, impressionava a força de um sistema que pretendia acabar com as desigualdades.

Sartre não destaca inovações de substância no romance em pauta. Não encontra no mesmo nada que o faça sobressair do posto de vista dos artifícios do que já se tornara clássico. É como se, por timidez, pretendesse se guardar dos experimentalismos, indo neles até um ponto, sem se exceder. Há qualquer coisa de verdade nos reparos de Sartre. Do nosso ponto de vista, o pouco é mais do que o bastante para enquadrá-lo naquilo que se fez irresistível, dando-se, além de estar em toda parte, como uma linguagem incontornável, ainda que se pretendesse tradicional. Uma outra observação do autor de A náusea se refere ao elemento de desenraizamento, de se situar em lugar nenhum, característico do emigrado, na medida em que este, para o mal e para o bem, leva a vida sem se integrar numa sociedade. Escrevendo numa língua que não era a sua, Nabokov, pairava acima dos seus contemporâneos, o que resultava, aparentemente, na escolha de temas pouco traumáticos, nos quais a crítica se configurava supérflua exatamente como os assuntos dos quais se ocupava. Claro que, no entanto, laços com a origem russa e os modos de vida que carregava na memória, nunca abandonaram o escritor. Despair, na versão inglesa, ou La méprise, na francesa, transmitindo a suposição de que se concentrava em confeitarias, imiscui-se numa das grandes controvérsias da ocasião: a de saber que, enfim, seria possível destrinçar aquilo que, desde a Revolução francesa, nos ocupou, o desafio da desigualdade e do igualitarismo. É assim que a banalidade se eleva à categoria do relevante, embora enganando até um observador arguto e maduro como Sartre. Não agrada a Nabokov o comentário feito por um intelectual respeitável, como o seu contemporâneo francês. Ele não ignora, que, por baixo da face inócua do enredo que elaborou, esconde-se uma outra, esperta, cheia de malícia, com a qual, protegendo-se, ataca. A seu ver, Despair trazia a público menos perfil ‘russo branco’ do que as demais novelas que escrevera, algo que, em princípio, não irritaria a oposição esquerdista. Isso não impediu, acrescenta ele, que um “comunista” (J.P. Sartre), redigisse um artigo “notavelmente tolo” sobre a versão francesa La méprise, segundo o qual ‘o autor e seu principal personagem são vítimas da guerra e da emigração’[3].

As ambigüidades notadas pelo filósofo francês, não assumidas pelo autor, correspondem, com efeito, a encruzilhadas nas quais se achava enquanto cidadão, fisicamente situado entre dois mundos, o socialista e o capitalista, o ocidente e o oriente, com propostas a um só tempo na contramão do velho e do novo. O exercício de rompimento, por mais que quisessem lhe fazer frente, ameaçava estender-se pelas áreas além da política e da economia. As atitudes revolucionárias, surpreendentes no século XVIII, fazendo-se corriqueiras daí em diante, ajudam a explicar o que se passou na arte, com relevo na literatura e nas expressões escritas. A surpresa, em nossos dias, não se localiza nelas. O que não entendemos ainda é o seu esgotamento ou, na melhor das hipóteses, a perda de fôlego, uma vez que não as alijamos de todo de nossas narrativas.

Vladimir Nabokov nada pretende com a revolução, prática ou formal. Limita-se a inventar. Concebe um enredo que, entre o leve e o malicioso, tem menos a ver com o gênero policial, ainda que se trate de um crime, do que com alguns problemas conceituais de difícil solução. A conclusão de que não existem dois indivíduos iguais contesta as pretensões a favor do igualitarismo. Contudo, elas não desaparecem. A URSS desabou e o igualitarismo que nos surge, de repente, como desafio, não se reveste mais da ideologia comunista; estende-se pelas veias da sociedade de massa, na economia de consumo, sem alarde, mas com determinação.

Desde que se lançou no plano artístico, o experimentalismo teve a seu favor o ingrediente do escândalo. O gosto consagrado não conseguia absorvê-lo, o que resultava num efeito maior ainda das suas intenções e, portanto, da eficácia cogitada. A inovação acedia luzes que de outro modo permaneceriam apagadas, enquanto comentava perfis ainda não inteiramente percebidos. Como na política, havia em jogo uma dialética de ordem e desordem. Os que temiam a desordem fugiam dela por insegurança, como se um estado de coisas, mesmo injusto, devesse ser protegido em nome do bem geral. O diagnóstico da violência caminhava junto com as alterações do sistema vigente e alimentavam a sensibilidade com visões tenebrosas. O problema é que uma corrente subterrânea irresistível e avassaladora ameaçava o mundo com um ruído surdo, algo que não se nota, a não ser com muita atenção, mas que anuncia reviravoltas que ultrapassam as expectativas da ideologia, conservadora ou não. Quem se posicionava contra a revolução, ansiava pelo lado positivo dos seus benefícios, a liberdade contra as tradições, lamentando o negativo, a quebra no bom tratamento concedido às hierarquias, agora de natureza financeira, buscando consolidar-se. Perdendo fôlego aos poucos quanto ao político e ao social, a revolução, se a considerarmos do ponto de vista conceitual, não se retira de cena, arma e desarma os hábitos cada vez que um produto novo ou uma prática precisa se estabelecer. Transmuta-se em modificação industrial e econômica. Ordem é, assim, uma noção usada sempre em sentido relativo, porque, no absoluto, o mercado a coloca fora de circulação com velocidade, movido por conveniências nem sempre justas ou éticas. Se examinássemos, desde o século XVIII, os tratados de teoria política, não seria difícil assinalar os discursos de advertência, transformando a natureza da liberdade em liberdade do capital e pregando moderação, prudência e cerceamento, se o aparato legal tem de ocupar-se dos movimentos trabalhistas ou sindicais.

O que é o governo, ele próprio, senão o maior crítico da natureza humana? Se os homens fossem anjos, não haveria necessidade de governo; se os homens fossem governados por anjos, não seria preciso nenhum controle exterior ou interior sobre o governo. Quando se faz um governo que deva ser exercido por homens sobre homens, a grande dificuldade é a seguinte: cumpre, em primeiro lugar, pôr o governo em estado de controlar os governados, cumpre, em seguida, obrigá-lo a se controlar a si mesmo. [4]

Antonio Negri vê no comentário, não sem razão, um registro de preocupação com que Madison, um dos pioneiros da democracia americana, esboça uma filosofia de constituição, um texto que funcione como um freio contra o que houve antes, no período da independência e do estabelecimento do Estado. Não se pode fundar nenhuma nação sem que, ao mesmo tempo, não se conte com dispositivos legais que consolidem normas. Esta é a ótica que imprime ao seu discurso. A constituição que surge, não só na situação americana como nas demais, dá por encerrada a experiência inicial, a desordem antes saudável para o projeto de emancipação. Se não se mostrar bastante forte para isso, terá lugar, subseqüentemente, um esforço para modificá-la, limpá-la de suas liberalidades e conferir-lhe uma fisionomia comprometida com as conveniências do capital.

Historicamente, a fonte dos experimentalismos se alimenta na primeira reviravolta das noções de Tempo e de Espaço, graças ao aumento populacional da Europa, a disponibilidade de capital e o rompimento dos hábitos da Idade Média. Trata-se de um fenômeno do Renascimento. A sombra das culpas, antes expiada pelos rituais do misticismo, dando lugar ao culto à vida, segundo Michelet, abriu as mentes para a época que se iniciava. Nada houve, é claro, de consciente ou planejado neste empreendimento. Os hábitos é que se alteraram depois das grandes descobertas, com a era de expansão que se iniciava. O historiador acerta quando define o impacto favorável para o resto do continente do contato das tropas de seu país com a realidade cultural italiana, sobre a qual, depois do fim do Império Romano, não se tinha idéia. É do choque das novidades que se estrutura o entendimento, levando-o a aceitar a modificar-se e a tornar-se flexível. Assinale-se a contestação à ordem como uma condição inevitável. Não se pensa o Tempo e o Espaço, depois do século XVI de acordo com as verdades de antes. A própria Igreja, embora a contragosto, se submeterá a filosofias que a colocavam em risco e contra as quais defendeu-se com argumentos e com armas até encontrar uma retórica que compreendia as versões em vigor e as acomodava da melhor maneira. A lenta evolução no sentido da inauguração de uma ordem nova só se evidencia no século XVIII, com o iluminismo e suas ousadias, quando os príncipes dialogam com os burgueses e, juntos, abordam questões da sociedade com irreverência. O que sobrava da influência do Vaticano sobre o poder temporal, apesar de suas ambigüidades, incomodava a monarquia e a empurrava, pelo menos ao nível das idéias, para a experimentação. É o que explica a estranha associação e a troca de argumentos que travou com a burguesia intelectual e, na França, com os fisiocratas. Espremida entre duas épocas, a aristocracia seria a vítima natural das invenções na ciência política. Perderá a cabeça na guilhotina, logo depois, durante a Revolução.

Pode-se dizer que uma inovação de impacto ocorreu com Flaubert, em Mme. Bovary, com a introdução da paisagem realista e seus problemas. A imaginação descia de seu vôo no espaço do imaginário e procurava colocar os pés no chão através de um levantamento de problemas e expectativas. O romantismo, cheio de energia, havia fornecido os elementos da intrepidez e da irreverência, necessários a um empreendimento que, ao lançar-se, não percorreria o caminho de volta. Ao mesmo tempo, contemporâneo de Flaubert, o prefeito Haussmann, demolia e reconstruía Paris, sob os auspícios de Luís Napoleão e do II Império, indiferente ao escândalo, para funcionar como um modelo para o restante do continente e do mundo. Revelava-se impossível assistir ao gigantismo do canteiro de obras na cidade, sem se emocionar com as perdas e acalantar esperanças, como demonstram a prosa e a poesia da ocasião. Não perderemos esta sensação de mistura entre o velho e o novo, renovada, a cada vez, com as experimentações.

A arte mudara. Saindo da esfera celeste para a terrestre, adquirira modelos nos quais antes não se baseava, quando se guiava pelos nortes da beleza e da perfeição. Eram buscas por uma elevação que não condizia com o mundo e que, por isso, funcionavam, para usar uma categoria moderna, como uma fuga para a alienação, quando, sem bases para fixar expectativas, viajamos por cenários de devaneio diante dos quais os problemas parecem distantes, irreais. A luz terrestre abateria esses tipos de fuga. Aí se encontra, aliás, se desejarmos pesquisar as origens do experimentalismo, a grande reviravolta de conteúdo e de forma que teve lugar na expressão. Claro que a arte não perdeu uma nostalgia por uma vida que nunca se atingiu e que continua a orientar, de algum modo, as nossas paixões. Dissabores mundanos animarão não só as criações de Flaubert como também a literatura contemporânea por inteiro.

Se a beleza participou um dia do esforço de retratação e resgate nas aventuras humanas, depois,  quando se alterou o foco de visão, sumiu de perspectiva, não mais compondo, como elemento estrutural, as químicas da forma. Sem ela, a arte se lançou por viagens inesperadas, para atingir regiões recuadas do ser e da natureza. Foi o que permitiu, na cultura, a presença de Sade, hoje com seu lugar assegurado entre os clássicos da modernidade. Permitiu igualmente um inventário, apaixonante ou assustador, de questões absolutamente humanas, antes sufocadas e sem condições de emancipação, mas embutidas no psiquismo entre as suas propriedades.

O termo “estética”, no campo das idéias no século XVIII e inexistente entre gregos, não entra em cena por acaso. Pressões de ordem conjuntural, num tempo permeável às inovações, justificam o seu aparecimento. Era preciso uma palavra que designasse um lado da atividade humana cuja urgência se faria premente, até se incluir na lista de prioridades sociais, entre as ocupações do Estado, com verbas específicas para ela. Isto para não mencionar, em função do prestígio adquirido, o uso de padrões, dela provenientes, infiltrando-se em decisões administrativas, entre as obras de prefeituras, na ânsia de emprestar à fisionomia das cidades um perfil que de alguma forma remeta a projeções do imaginário. Hoje, sentimos como um patrimônio do passado – e apreciamos – no mobiliário urbano, o que ficou de semelhante esforço, enquanto, ao contrário, o gosto vai se abastardando e as ruas e praças se enchem de falsos produtos de falsos artistas, selecionados nem sempre por critérios válidos. Os transeuntes se habituam a tais presenças e não imaginam o que aconteceu para que chegassem ali. Não lhes dão valor. Os costumes esvaziaram, muitas vezes, as fontes de escândalo, como ocorreu com a Torre Eiffel, feita para ser desmontada e transformada, apesar da sua pouca idade, num dos símbolos de Paris, imitada até a vulgaridade pelos gadgets turísticos e reproduzidas aqui ou ali como lugar comum das prefeituras marcadas pela banalidade. O mesmo acontece com a Estátua da Liberdade, espalhada pelas cidades norte-americanas e fora do país, por meio de réplicas que a desfiguram e inflacionam, desvalorizando-o, o sentido que a inspirou. A repetição atinge as dimensões do choque e diminui a eficácia do experimentalismo.

É interessante registrar que a contradição de antes (a beleza do ideal contraposta à feiúra do real), permanece agora, só que de outra maneira, já que estamos numa situação em que impera o laico e o vulgar. O que se sustenta é o uso de um conceito, como se este, por si só, bastasse para substituir o que os sentidos provam e determinam. É o conceito que se impõe quando as administrações, atrás de votos, reconstroem as calçadas e as enfeitam com um gosto duvidoso, motivado mais pelo retorno da remuneração e da vaidade da assinatura do que pelo compromisso pelo refinamento ou pela beleza. Não há, em tais manifestações, o dedo do experimentalismo. Ele ainda possui uma carga de irreverência que desestimula as escolhas fáceis.

Um fenômeno que chama a atenção de Sartre na análise rápida (excessivamente rápida) que faz do livro de Nabokov desdobra-se num diagnóstico acertado. Ele compara o romancista com Dostoievski e comenta a sua incapacidade em ser apenas narrador. Não está nas suas mãos contar uma história. Precisa mais do que isso para sentir-se escritor. Daí o motivo pelo qual “brinca” com o leitor como se fosse superior àquilo que escreve. Não possui a espontaneidade de seus antecessores. Para demonstrar que acumulou cultura, diz Sartre, com ferocidade, informa que, entre 1914 e 1919, leu exatamente mil e dezoito livros.

Mas vejo ainda uma outra semelhança entre o autor e seu personagem: todos os dois são vítimas da guerra e da imigração. Certamente não faltam a Dostoievski hoje descendentes esbaforidos e cínicos, mais inteligentes do que o seu ancestral. [5]

A ironia sugere uma tendência da época: a de semelhanças que introduzem dessemelhanças; as citações que, na referência, já se transmutam em manifestações literárias diversas do modelo.

Nabokov não está isolado no ateliê das invenções, embora, quando as exibiu, não houvesse ainda bagagem suficiente da experiência para torná-la aceitável ou natural. E por isso, também, soam, num primeiro instante, mais como “brincadeira” do que como um jogo literário sério. De fato, ao fazê-lo, ele se destaca e se põe fora do contexto narrativo, como se estivesse acima dele, o que dá a sugestão de corpo estranho, de peixe fora d’água, similar como aventura humana à do indivíduo forçado a sair de seu país e incapaz de verdadeiramente entrar num outro. O deslocamento pessoal, para a vítima do mesmo, traz a sensação de não ter cidadania e este handicap comporta duas faces, uma positiva e uma negativa; a primeira, porque, sem direitos, esvaziam-se os deveres; e a segunda, porque, sem direitos, não há, é claro, solidariedade, amparo social, proteção. Ao examiná-lo como fruto da imigração, Sartre entende a trajetória do romancista e a define com sabedoria, esquecendo-se, por outro lado, de que se tratava, não de uma anomalia isolada, mas de uma característica a ser compreendida a partir de parâmetros próprios. A “displaced person”, como comenta Otto Maria Carpeaux num artigo brilhante, é uma figura que se espalha pelo planeta sobretudo depois da expansão do nazismo e da II Guerra. É antecipada por Franz Kafka, em O Castelo, com o personagem que insiste em obter direito de permanência na cidade onde chega, regida por senhores tirânicos, e só o consegue quando se acha na hora da agonia. Aliás, a intensidade dos tumultos no decorrer do século passado, com enormes deslocamentos migratórios, estimulou a estética no caminho das rupturas, impedindo que os costumes se estabilizassem e se apresentassem como padrões. O deslocamento voluntário ou forçado quebra as ossaturas da mente e alarga, de algum modo, a inteligência. Obrigado a agir e a corresponder às dificuldades que surgem, o pensamento se desdobra e aceita trabalhar com associações que antes, na contracorrente da prática, não tinham lugar. Sabe-se que os emigrantes, fechados a infrações morais em sua terra, flexibilizam as opiniões em contato com os povos nos quais se acomodam, reajustando-se aos comportamentos abandonados quando de volta no país natal. O choque cultural se traduz, também, em avanço, apesar dos problemas que cria no cotidiano da existência.

Quando Nabokov escreveu Despair, o Ulisses, de Joyce, já havia causado impacto. Conta-se que o autor irlandês elaborava ainda o seu romance e a notícia que se espalhava pela Europa era de que tinha em gestação uma obra extraordinária, algo que revolucionaria a narrativa e a mudaria para sempre. Lado a lado, os dois adotam posturas políticas opostas, ainda que não possamos atribuir a Nabokov o qualificativo de radical. Os horizontes de um e de outro (com o potencial crítico que possuem) é que se orientam em sentidos opostos. As diferenças não opõem os artistas no plano da forma literária, apesar das ousadias de um e das irreverências prudentes do outro. É como se ninguém pudesse escapar das seduções da tendência e cedessem aos apelos em seu nome. As guerras teriam uma participação importante nas irrupções do experimentalismo. Lembremos que o mundo virou de cabeça para baixo depois dos surtos de beligerância extensivos, como foram os de Napoleão e daqueles que os seguiram no decorrer do século XIX, para não falar das repercussões internas com o uso de barricadas urbanas contra o poder central. No século XX, não se escapou delas. Elas cresceram e se tornaram perigosas, ameaçando, com armas cada vez mais destrutivas, a humanidade por inteiro. Os processos de experimentação teriam, talvez, a ver com a instabilidade, refluindo quando, historicamente, a estabilidade se fizesse hegemônica. Embora o capitalismo gere constantes modificações nos hábitos e no cenário das cidades, com mercadorias introduzidas de tempos em tempos, e embora seja da natureza das suas ambições impor transformações, não é sempre, no entanto, que interessa aos grupos financeiros o uso da violência. É um motivo suficiente para que os conflitos se circunscrevam como última tentativa de regular cobiças, uma vez esgotadas as demais formas de pressão. E a violência, não há dúvida, está por trás do experimentalismo. Para reproduzir atitudes ou para contestá-las, constitui um meio de expor misérias de outro modo cuidadosamente ocultas. Como um vulcão que entra em atividade depois de um século, tensões guardadas podem explodir. Têm maneiras de avisar, através de sinais exteriores que falam sobre angústias e dificuldades.

A violência habitua. Os saltos de violência é que escandalizam, com o avanço da crueldade em suas manifestações inéditas. Idêntico fenômeno se passa com as experimentações formais de início rejeitadas pelo gosto dominante e, aos poucos, aceitas, até que um corte maior, um rompimento inesperado, refaça a surpresa. Já se notou que ambas as aventuras – a da violência e a do experimentalismo – não se esgotam. Onde pareceu haver chegado a paz, recomeça a guerra; onde se imaginou a exaustão, emergem as proporções da fúria e de sua capacidade de se superar.

Benjamin relaciona a violência aos padrões morais porque não deixa de perceber a íntima ligação entre a primeira e a constituição do direito. Toda crítica à violência, diz ele, implica uma visão de mundo. Há situações em que os costumes a admitem, abrindo brechas naquilo que antes não se entendia como possível. Durante a Revolução e por causa dela, interpretou-se a existência de um Direito primeiro, Natural, que explicitaria os movimentos humanos e suas aspirações. Infrações às suas normas provocaram quebras nos sistemas de obediência que, então, trariam justificativas para ações que ferissem os costumes. Mover-se, comer, beber, uma casa para morar, seriam da ordem de uma prerrogativa Natural. Desde que tais experiências se fizeram presentes na modernidade, difundiu-se a concepção segundo a qual Estado nenhum ficaria acima de um conjunto básico de aspirações, sujeito a abalos quando as ignorasse. Embora a ordem jamais devesse ser derrubada, de acordo com Kant, ele mesmo admitiu que, caso isto ocorresse, uma nova ordem, substituta, tivesse que ser obedecida e defendida. No âmbito da violência, haveria, no caso, uma área absolutamente vinculada às necessidades básicas da humanidade, separando-se violência legítima das ilegítimas. Um caminho perigoso seguiu por aí, através do exame dos fins, com crimes nunca de fato resgatados. Benjamin acrescenta ainda que objetivos discutíveis determinaram a inserção de medidas de Estado como o serviço militar obrigatório e a força policial, generalizados entre as ações que se inscrevem na moral. Dentro de semelhante quadro, tentou-se, depois da Revolução Francesa, acrescentar às constituições os chamados Direitos do Homem, documento que estabeleceria limites aos sistemas de agressão, repressão e violência contra a cidadania.

É possível um modo de vida desprovido de violência?

Esta pergunta se ergueu e se impôs como fruto do acirramento dos conflitos e dos exageros do século XX. Não era um tema novo. O cristianismo a colocou, quando pregou o perdão e defendeu o lema da fraternidade. Foi uma mensagem que se restringiu à religião e mesmo dentro dela se transformou em pregação teórica. A verdade é que a narrativa conta uma história que não se liberou da violência, obcecando as mentes. A análise do discurso literário revelará a intensidade de uma contestação aos projetos de violação a sentidos (sociais ou não) da existência, a partir do fracasso das utopias em suas diversas dimensões.

Note-se que a violência representa um foco de repressão – e é contra ela que, por outro lado, se desencadeia. Como romper com o círculo vicioso? De que modo se dissolve na arte uma contestação conscientizadora? Não é pergunta para respostas simples, mas tem a ver com muito do que se viveu no século XX.

Voltemos a Rimbaud:

Le Poete se fait voyant par un long, immense et raisonné dérèglement de tous les sens. Toutes les formes d’amour, de souffrance, de folie; il cherche lui-même, il épuise en lui tous les poisons, pour n’en garder que les quintessences. Ineffable torture où il a besoin de toute la foi, de toute la force surhumaine, où il devient entre tous le grand malade, le grand criminel, le grand maudit, – et le suprême Savant ! – Car il arrive à l’inconnu!. [6]

*Ronaldo Lima Lins é Professor Titular e Diretor da Faculdade de Letras da UFRJ. Entre os seus ensaios incluem-se A indiferença pós-moderna (Editora da UFRJ, 2006); O felino predador, ensaio sobre o livro maldito da verdade, Editora da UFRJ (2002) e Nossa amiga feroz, breve história da ‘felicidade’ na expressão contemporânea (Ed. Rocco, 1993). Publicou também livros de ficção, como, A lâmina do espelho (Ed. Francisco Alves, 1983) e Material de aluvião (Ed. Regra do Jogo, 1975). Pela Record, lançou Jardim Brasil: conto (1997) e é autor de uma peça de teatro:Jacques e a revolução, como o criado aprendeu as lições de Diderot.

NOTAS


[1] Rimbaud, Arthur. Rimbaud, Cros, Corbière, Lautréamont. In: Oeuvres Poétiques Complètes. Paris : Robert Laffont/Bouquins, 1992, pág. 186. « Digo que é preciso ser visionário, fazer-se visionário”.Versão nossa.

[2] Sartre, Jean-Paul. ²Vladimir Nabokov: La méprise². In: Critiques littéraires (Situations, I). Paris: Gallimard/Folio, 2000, pág. 54. Versão nossa.

[3]Nabokov, Vladimir. “Foreword”. In: Despair. New York: Vintage, 1989, pág. XIII. O livro foi escrito em russo, em Berlim, e publicado em fascículos numa revista de emigrados que existia em Paris, em 1934, saindo em livro, dois anos depois, pela Editora Petrópolis, também de emigrados, com o título de Otchayanie. No final de 1937, em versão do próprio autor, apareceu com o selo de uma casa londrina, a John Long LTDA, com o título da atual versão inglesa.

[4]Cf. « Le federaliste » . In : Negri, Antonio. Le pouvoir constituant, essai sur les alternatives de la modernité. Trad. Étienne Balibar e François Matheron. Paris : Puf, 1997, pág. 224. A citação é de Madison. Versão nossa.

[5]Sartre, Jean-Paul. Idem, pág. 56.

[6] Rimbaud, Arthur. Oeuvres Poétique Complètes. Paris : Robert Laffont/Bouquins, 1992, pág. 186. “O poeta se faz visionário através de um longo, imenso e raciocinado desregramento de todos os sentidos. Todas as formas de amor, de sofrimento, de loucura; ele busca a si mesmo, ele esgota em si mesmo todos os venenos, para só deles guardar as quintessências. Inefável tortura na qual tem necessidade de toda a fé, de toda a força sobre-humana, na qual ele se torna entre todos o grande doente, o grande criminoso, o grande maldito, –  e o supremo Sábio! – Pois chega ao desconhecido”. Versão nossa.

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Rua México | de Raúl Antelo

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La vie ne peut plus être une répetition bénie des providences complices du sillon de chiourme assommée au squelette privé de revenant puisque de chaque sillon pareil Zapata fait lever la moisson a jamais mûre des chants deshéritiés.
Benjamin Péret – Air méxicain

Seria fácil demais, além de simplificador, qualificar o deslocamento mexicano de Silviano Santiago, como simples surrealismo etnográfico, à maneira de James Clifford. A título hipotético, e mesmo que paradoxal, diria, entretanto, que o México constitui, na obra de Silviano Santiago, um dispositivo, quase secreto, porém, muito eficiente, para abandonar os estudos literários e, simultaneamente, introduzir a máquina poética no estudo da cultura. É sob esse viés, de não repetição da vida abençoada de que fala Péret, que gostaria de abordar o problema.

Antes de mais nada, cabe esclarecer que, a partir da lição de Foucault, renovada, recentemente por Giorgio Agamben, entendo por dispositivo um conjunto certamente heterogêneo, onde encontramos não só discursos, mas também imagens e instituições, regras e práticas artísticas, normas administrativas, enunciados filosóficos ou preceitos morais, em outras palavras, um conjunto variado do dito, mas também o conjunto daquilo não-dito por uma cultura. O dispositivo constitui-se enquanto rede e ele é, portanto, descontínuo e lacunar. Emerge em situações estratégicas específicas, daí que detenha uma força indisfarçável no jogo do poder. Restaria observar, porém, que o dispositivo é muito mais geral do que um determinado saber por que, enquanto a episteme é um procedimento basicamente discursivo, o dispositivo de que quero falar é não só discursivo, mas também não-discursivo[1]. Em resumo, pretendo analisar uma instância heterogenética, que não obedece a uma teoria do desenvolvimento evolutivo ou linear, mas, por atender à lógica do significante, opera pelo contrário em rede, já que nela se inclui a distinção entre aquilo que é aceito por uma sociedade como enunciado de saber e aquilo que essa mesma comunidade desconsidera como conhecimento cabal.

El anillo de Zapata

Muito antes de Zapata aparecer, em Viagem ao México, aos olhos de Rosita, como uma figura de mural, “montado em seu garboso cavalo branco”, dizendo adeus a “uma mulher que fica sozinha na paisagem desolada de cactos e magüeys”[2], poderia isolar uma das manifestações mais fortes do dispositivo México em um texto fraco, debole, redigido por Silviano quando ele ainda morava em Buffalo. Trata-se do ensaio “Las botas y el anillo de Zapata”[3]. O objeto em foco pertence sem entraves à cultura pop. É um conjunto de canções escritas por Milton Nascimento e Fernando Brandt e, para analisá-las, Silviano Santiago enuncia a hipótese de que las botas y el anillo de Zapata são o traço distintivo, a senha do Clube da esquina. Extrapola Silviano, a partir desse encontro, de homens e roteiros, em caminhos que se bifurcam, uma constante cultural que, esquemáticamente, afirma que “tudo é estrada nas letras do clube da esquina”. Vago ou impreciso quanto às suas metas, o tal clube da esquina – o bando – dança na estrada e, nessa estrada, ainda, compreende que o sujeito, mesmo a contragosto, terá de se definir, um dia, para além das coordenadas gregárias, como a comunidade dos que não têm comunidade.

Você queria ser o grande herói das estradas.
Você tem medo, só pensa agora em voltar.
Não fala mais da bota e no anel de Zapata.
Você ainda pensa e é melhor do que nada.

É, portanto na raiz e no labirinto, na estrada – nos diz o ensaísta – “nesse grande redemoinho da vida que vão se afirmando os mineiros”, com a ressalva, porém, de que essa estrada já não é um lugar de realidade imediata. Ambivalente, ele é um lugar de fuga, mas é também um lugar de encontro, porque a vida do mineiro é basicamente bandeirante, isto é, pertence àqueles que, segundo Silviano, “de-limitaram pela sua força uma região que seus descendentes aceitam agora como limite”[4], daí a necessidade de se impor uma força, atravessia, a mesma que opera, no Grande sertão, para que uma nova cartografia, moderna e des-territorial, venha finalmente se impor.

Todo desespero do mineiro se acumula, se presentifica no seu encontro com a linguagem. Reconhece, num primeiro movimento, seus limites, reconhece, num segundo movimento, que depositou toda sua crença nesta realidade limitada, neste simulacro, nesta cópia reduzida da realidade sem limites, e num terceiro movimento, tende a reconhecer que sua crença (…) tem fronteiras perfeitamente limitadas, ao contrário dos seus olhos que vagam pelos ‘pastos que carecem de fechos’. Por conhecer e saber aquela fronteira artificial, mas básica para a sua sobrevivência de artista da linguagem, as frases no texto dos mineiros se voltam contra si mesmas, num jogo de descrença e ironia, ironia que muitas vezes existe apenas com relação ao dito pela linguagem.

Quer dizer, portanto, que, na constituição do simbólico, haveria uma segunda etapa a ser vencida, a da descrença com relação ao não-dito pela linguagem, que marcaria, de certo modo, a passagem dos estudos literários aos estudos da cultura. Esse passo já tinha sido dado, a rigor, de maneira concomitante, pelo autor, em um texto anterior, de 1971, que logo ficou célebre, “O entre-lugar do discurso latino-americano”. Repare-se, portanto, que, nesse caso pioneiro, odispositivo México já funcionava como uma autêntica senha de clube da esquina. Absolutamente lacunar, limita-se a um único significante: fiesta. Lemos, com efeito, na conclusão do ensaio: “O escritor latino-americano nos ensina que é preciso liberar a imagem de uma América Latina sorridente e feliz, o carnaval e a fiesta, colônia de férias para turismo cultural”. Mas é na frase final do ensaio que o sentido da fiesta se explicita como entre-lugar em que o escritor se depara com as astúcias da linguagem. É pois na fiesta como entre-lugar, nesse grande redemoinho ético, que vem vindo da pedra-obstáculo e do falso fascínio tecnológico dos poemas de Drummond[5], que o escritor latino-americano (o mineiro aí incluído) de-limita, pela sua força de enunciação, uma região que seus antecessores aceitaram até agora como limite, como non plus ultra, mas que ele de-limita como limiar, como pen-última. A fiesta da linguagem liberta instala-se, assim, “entre o sacrifício e o jogo, entre a prisão e a transgressão, entre a submissão ao código e a agressão, entre a obediência e a rebelião, entre a assimilação e a expressão”, aí, nesse lugar “aparentemente vazio, seu templo e seu lugar de clandestinidade”, ali mesmo, nos diz Silviano, se realiza “o ritual antropófago da literatura latino-americana”.

A antropofagia cultural latino-americana está, portanto, construída em torno a um vazio estrutural – o vazio originário – e, a partir dele, busca um movimento paradoxal. Para reivindicar a metafísica do autêntico, enquanto próprio, ela parte da constatação de que a tradição ocidental existe, que ela legisla e funciona, mas postula, a seguir, um desgarrado linde (Alfonso Reyes diria “el deslinde”), um entre-lugar que guarda a memória do dilaceramento fundacional. Buscam-se assim dois valores contraditórios: de um lado, areapropriação do melhor da cultura universal, para usá-la como arma contra o pior dela mesma, ativando essa força a partir de nossa situação cultural e política altamente ambivalente, em que o Ocidente se contempla a si próprio como o Outro de si mesmo. Vale dizer que “o ritual antropófago da literatura latino-americana” seria a constante construção de uma diferença, que é ainda uma busca, en si mesma, de um modo sul-americano e tropical de sermos universais.

Ora, esse entre-lugar, que nada mais é do que um dos nomes do dispositivo México, supõe uma certa positividade e, nesse sentido, é preciso lembrar o esclarecimento filológico de Agamben, quando estipula que Foucault desenvolveu o conceito de dispositivo precisamente a partir da noção depositivité apresentada por seu mestre, Jean Hyppolite, naIntroduction à la philosophie de l´histoire de Hegel. Segundo Hyppolite, a positividade, conceito-chave no pensamento hegeliano, serviu a Hegel para estabelecer uma diferença entre religião naturalreligião positiva. Enquanto a religião natural volta-se à relação que a razão humana mantém com o divino, a religião positiva, i.e. histórica, abrange o conjunto de crenças, regras e rituais que todo indivíduo recebe numa certa sociedade. Ela implica, portanto, sentimentos que são impressos nas almas através de coerção, gerando assim comportamentos que resultam de uma relação “de mando e obediência e que são acatados sem interesse direto implicado” pelos sujeitos em questão[6] .

Isto posto, relembremos que, em sua argumentação, Agamben destaca, precisamente, uma passagem em que Hyppolite assinala que a positividade é considerada por Hegel como um obstáculo para a liberdade humana e, portanto, deve ser condenada. Porém, ao investigar os elementos positivos de uma religião, Hegel reconsidera a positividade como uma força que precisa ser conciliada com a razão, perdendo assim seu caráter abstrato e vindo se adaptar à riqueza concreta da vida. Ou seja, positividade é o nome que Hegel dá ao elemento histórico (o conjunto de regras, rituais e instituições impostas por um poder externo, muito embora interiorizado nos sistemas de crenças e sentimentos de uma sociedade), donde poderíamos concluir, em resumo, que o conceito de dispositivo, construído a partir da positividade hegeliana, funciona, em Foucault, como osuniversais, aqueles elementos que nos permitem transcender a particularidade a partir de três características bem precisas: a) um sentido jurídico rígido, porque o dispositivo é aquele juízo que comporta uma decisão construída por oposição aos motivos; b) um sentido tecnológico, que alude não só ao maquinário, mas também à sua disposição, à série ou constelação em que os elementos associados se dispõem para seu uso e c) um sentido estratégico, que remete a um certo planejamento ou convergência de movimentos na prática. Todos esses sentidos, no uso foucaultiano, funcionam simultaneamente. Já no dispositivo México, mesmo funcionando como ouniversal da condição periférica, o terceiro deles, que ainda conserva a dimensão militar de uma ação de vanguarda, é bem menos decisivo, certamente, do que os dois primeiros. Tentarei mostrar o motivo disso.

John Kraniauskas detectou nas “ruínas mexicanas” sonhadas por Benjamin o embrião para uma leitura pós-colonial no pensador alemão. Mas qual é, no discurso crítico de Silviano Santiago, a estratégia que o dispositivo Méxicovem ativar? Ele obedece, a meu ver, a uma reconfiguração do papel de crenças e rituais no pensamento moderno que teve, na etnografia francesa de inícios do século XX, sua expressão mais acabada. Essa rede parte da circularidade do dom postulada por Marcel Mauss, mestre, entre outros, de Alfred Métraux quem, em 1928, já produzira uma tese sobre a antropofagia ritual tupinambá. Dois outros alunos de Métraux, Georges Bataille e Roger Caillois, dão abundantes exemplos, em sua produção teórica dos anos 30, dessa marca etnográfica de tempo recursivo e ambivalência funcional. Bataille desenvolverá essas idéias, colhidas em Torquemada, Sahagún ou Prescott, de modo mais acabado, em A noção de despesa e nos capítulos sobre cerimônia, jogo e transgressão de Teoria da religião ou O erotismo[7]. Caillois, por sua vez, vai elaborar, em plena guerra, uma teoria da festa que, em seu vaivém transatlântico, além de conquistar o apoio irrestrito de Oswald de Andrade, logo há de lhe fornecer subsídios para uma teoria da guerra[8]. O tópico, longe de produzir a identificação entre os dois amigos, Caillois e Bataille, selará duas tendências antagônicas no interior do acefalismo francês.

Com efeito, as idéias de uma sociologia sagrada, como se sabe, são decisivas, a longo prazo, no início do debate pós-estruturalista na França, quando, em plena Guerra Fria, constata-se a condição hiperbólica do jogo e da guerra. Octavio Paz manifesta-as na sua conferência sobre o surrealismo de 1954.

Frente a la ruina del mundo sagrado medieval y, simultáneamente, cara al desierto industrial y utilitario que ha erigido la civilización racionalista, la poesía moderna se concibe como un nuevo sagrado, fuera de toda la iglesia y fideísmo. Novalis había dicho: “La poesía es la religión natural del hombre.” Blake afirmó siempre que sus libros constituían las “sagradas escrituras” de la nueva Jerusalén. Fiel a esta tradición, el surrealismo busca un nuevo sagrado extrarreligioso, fundado en el triple eje de la libertad, el amor y la poesía. La tentativa surrealista se ha estrellado contra un muro. Colocar a la poesía en el centro de la sociedad, convertirla en el verdadero alimento de los hombres y en la vía para conocerse tanto como para transformarse, exige también una liberación total de la misma sociedad. Sólo en una sociedad libre la poesía será un bien común, una creación colectiva y una participación universal. El fracaso del surrealismo nos ilumina sobre otro, acaso de mayor envergadura: el de la tentativa revolucionaria. Allí donde las antiguas religiones y tiranías han muerto, renacen los cultos primitivos y las feroces idolatrías[9].

Mas essas idéias de uma sociologia sagrada não têm tão somente o sentido reativamente letrado de Paz. Encontram-se também, é claro, em A escrita e a diferença e, além do mais, pautam a realização dos colóquios de canonização dos precursores acefálicos, como Artaud ou mesmo Bataille[10]. Diríamos, em suma, que, enquanto parte fundamental dodispositivo México, o significante fiesta amarra-se à rede que, na falta de melhor rótulo, poderíamos chamar acefálica, rede essa que articula um conjunto de práticas e mecanismos jurídicos, técnicos e mesmo militares, tanto lingüísticos quanto não lingüísticos, com o objetivo de encarar uma urgência histórica e obter um efeito simbólico preciso: sair do modernismo, abandonar a transcendência.

Saber, sentir

Mas para melhor entendermos os alcances dessa urgência e desse efeito, caberia ainda considerar que, a essas alturas do debate pós-estrutural, por ocasião da morte de Breton, quando Foucault precisamente começa a cunhar seu conceito de dispositivo, o arqueólogo do saber avalia o autor dos vasos comunicantes como um nadador entre duas águas, alguém que, no redemoinho ético contemporâneo, soube construir um entre-lugar de sentir e pensar. Não à toa, Foucault julga reconhecer uma espécie de isomorfismo entre as experiências de Breton, as dele mesmo e as dos integrantes do grupo Tel Quel, admitindo, porém, que quando os pós-estruturalistas propunham o retorno ou a reminiscência, não se colocavam em um espaço, digamos assim, psicológico, como os surrealistas, que, de maneira coletiva ou individual, sempre privilegiaram o trabalho do inconsciente. Ao contrário, os telquelistas, segundo Foucault, preferiam situar essas experiências de escritura no espaço neutro do pensamento. Eles tendiam a explorar um certo número de experiências-limites, como as da razão, e tentavam mantê-las sempre num nível enigmático, porém, absolutamente não-psíquico, do pensamento. Tratava-se, segundo ele, de retomar o esforço, muitas vezes interrompido, de Bataille e de Blanchot[11], porque o denso espaço dessas experiências pioneiras tinha sido sempre o da linguagem. Talvez fosse hoje mais correto dizer que o esforço consistia em abandonar uma leitura fenomenológica da psicanálise, em favor da conjunção de Freud e Heidegger, que é, aliás, o mote de Lacan por esses mesmos anos.

É assim, lembremos, que, muito antes disso, em maio de 1939, pleno início da guerra, Breton dedica um dossiê ao México na revista Minotaure. Decidia publicá-lo numa revista que deixara de circular durante quase um ano e que, ao reatar a periodicidade, lançava seu autêntico manifesto, no número 12-13, o número mexicano, proclamando a eternidade da revista já que Minotaure, la révue à tête de bête se diferenciava de qualquer outra publicação “à tête de membre de l´Institut ou de conservateur de musée”. Esse manifesto, “Eternité de Minotaure“, mesmo não assinado, pertence, obviamente, a Breton e seu gesto diferencial, em nome de uma sociologia sagrada, consiste, basicamente, em um texto seu, “Lembranças do México”, que foi concebido sob a chancela de las botas y el anillo de Zapata, cuja imagem, aliás, de corpo inteiro, no traço de José Guadalupe Posada, fecha, por sinal, em forma de vinheta, o caderno mexicano. A linguagem e o espaço aí ativados por Breton inserem-se na rede que nos conduz ao vazio das gerais que Silviano passará a evocar no ensaio de 1973.

Terra roxa, terra virgem impregnada do mais generoso sangue, terra onde a vida do homem não tem preço, sempre disposta como piteira, até se perder de vista, a exprimi-la, para ser consumida como uma flor de desejo e de perigo. Resta, ao menos, um país onde o vento da libertação não decaiu. Esse vento em 1810, em 1910, uivou irresistivelmente com a voz de todos os órgãos verdes que lá aparecem sob o céu de tormenta: um dos primeiros fantasmas do México é o de um desses cactos gigantes, tipo castiçal, por trás do qual aparece, com os olhos em chamas, um homem com um fuzil. Não é preciso discutir essa imagem romântica: séculos de opressão e de louca miséria deram-lhe em duas oportunidades uma deslumbrante realidade, e essa realidade nada pôde fazer para permanecer latente, para continuar sendo gerada pelo sonho aparente das extensões desérticas. O homem armado continua estando ai, sob seus farrapos esplêndidos, como só pode se levantar, bruscamente da inconsciência  e da desgraça. Destacar-se-á, de novo, dos próximos obstáculos no caminho, conduzido por uma força desconhecida, irá em direção aos outros, pela primeira vez se reconhecerá neles. Não nos detenhamos  na rigidez que, ao cabo dessas aventuras, acarreta a formação de toda hierarquia militar: no México, pode se enfeitar com o título de General qualquer um que tenha sido ou que seja capaz ainda de movimentar, por sua exclusiva iniciativa, um certo número de homens recrutados individualmente nos campos. Os ‘Generais’ de que falo, formados em sua maioria na escola rude de Emiliano Zapata, e alguns dos quais mantêm o poder, continuam participando eles próprios, é preciso dizer, nesse admirável mutirão da terra que logo completará trinta anos e conduziu à vitória os peões ou trabalhadores rurais indígenas que constituem o elemento mais horrivelmente espoliado da população. Não conheço nada mais exultante que os documentos fotográficos que nos restituem a luz daquela época, como a vista de um desses acampamentos de insurgentes, de pé no chão, que apesar da disparidade de suas roupas e de suas atitudes, unem-se em uma mesma feroz resolução do olhar. Os grandes enlevos podem parecer caducos, as aldeias construídas sobre o reles intercâmbio de pimenta por cerâmica podem dar a impressão de terem fechado as pálpebras, mesmo se nelas, como em outros lugares, a corrupção deu cabo de uma boa parte do aparelho estatal, mesmo assim, o México arde com todas as esperanças que foram colocadas sucessivamente em outros países – a URSS, a Alemanha, a China, a Espanha -, que no último período histórico tornaram-se dramaticamente frustrantes mas das quais sabemos que acabarão por derrotar as forças que as quebraram, que são inseparáveis da ação humana naquilo que esta tem de mais misterioso, de mais vivo, que é de sua natureza tornar a despontar, até mesmo a partir das ruínas dessa civilização[12].

Foucault julgava existirem duas grandes famílias de fundadores da modernidade. Há os que edificam e colocam a pedra fundamental, e há os que escavam e esvaziam. Labirintos, raízes. Entendia estarmos mais próximos destes últimos, os escavadores de poeira, e por isso sermos mais vizinhos de Nietzsche que de Hegel, mais afins de Klee do que de Picasso. E, surpreendentemente, Foucault inscreve Breton nessa segunda linhagem, com o argumento de que a instituição surrealista mascarou os grandes gestos mudos que abriram o espaço para eles próprios. “Através de ritos que pareciam excluir, fazer crescer o deserto nele colocando limites aparentemente imperiosos”, Breton teria instalado o vazio da linguagem no cerne da escritura; por isso Foucault via a si próprio e à sua geração como um mero conjunto de dançarinos, girando, sem resposta, em torno do “espaço sagrado que envolvia o relicário de um Breton, estirado imóvel e revestido de ouro; isto não para dizer que ele estava longe de nós, mas que estávamos próximos dele, sob o domínio do seu espectro negro. A morte de Breton, hoje – diz Foucault -, é como a reduplicação do nosso próprio nascimento. Breton era, é um morto todo-poderoso e muito próximo”[13]. Não erra quem associe esta cena de Foucault perante o esquife de Breton com Glauber Rocha filmando o enterro de Di Cavalcanti no MAM.

Herdeira da Documents de Georges Bataille e Carl Einstein, como espaço de estudo do homo oeconomicus, a revista em que Breton publica seu dossiê mexicano, Minotaure, além de nos alertar para a reivindicação surrealista de uma mitologia urbana de vanguarda[14], nos instala na noção delabirinto[15], explorada pouco depois por Octavio Paz, quem, por sinal, tinha uma visão extremamente mimética com relação a Breton. O precursor encarnava, a seu ver, a potência ativa do sonho. A passio do saber.

Para él los poderes de la palabra no eran distintos a los de la pasión y ésta, en su forma más alta y tensa, no era sino lenguaje en estado de pureza salvaje: poesía. Breton: el lenguaje de la pasión – la pasión del lenguaje. Toda su búsqueda, tanto o más que exploración de territorios psíquicos desconocidos, fue la reconquista de un reino perdido: la palabra del principio, el hombre anterior a los hombres y las civilizaciones. El surrealismo fue su orden de caballería y su acción entera fue una Quête du Graal. La sorprendente evolución del vocablo querer expresa muy bien la índole de su búsqueda; querer viene dequaerere (buscar, inquirir) pero en español cambió pronto sentido para significar voluntad apasionada, deseo. Querer: búsqueda pasional, amorosa. Búsqueda no hacia el futuro ni el pasado sino hacia ese centro de convergencia que es, simultáneamente, el origen y el fin de los tiempos: el día antes del comienzo y después del fin[16].

Paz, à maneira metafísica de Borges ou Drummond, busca um meio do caminho, anterior ao começo e posterior ao fim[17]. Está nos dizendo que, quando a linguagem começa, o ser já está aí presente e, ao mesmo tempo, quando queremos começar a travessia pela metafísica do ser, sempre nos defrontamos, entretanto, com a ausência de suporte do sentido, a máquina do mundo, o buraco negro da ausência na linguagem. A leitura de Foucault é um pouco mais radical. Ele julga que Breton teria afirmado, à maneira de Gide, o escritor-guia do jovem Silviano, a deliciosa ignorância da literatura, através da inclusão do núcleo indestrutível da sombra colocado no coração mesmo da luz e, por essa via, Breton teria abolido a distância entre saber e escritura, como uma forma de impelir o homem em direção aos seus limites. A imaginação deixava assim de ser um efeito do fundo obscuro dos sentimentos para se tornar uma figura na densidade luminosa do discurso. Por isso diríamos que, a seu modo, Breton joga o primeiro lance do seu peculiar dispositivo México quando anota que

O México convida-nos imperiosamente a esta meditação sobre os fins da atividade humana, com suas pirâmides feitas de várias camadas de pedras correspondentes a culturas muito distantes que foram sendo recobertas e obscuramente penetradas pelas outras. As sondagens dão aos sábios arqueólogos a chance de vaticinar sobre as diferentes raças que foram se sucedendo neste solo e fizeram nele vingar suas armas e seus deuses. Porém, muitos desses monumentos estão ocultos ainda sob a grama e confundem-se, tanto de longe quanto de perto, com as montanhas. A grande mensagem dos túmulos, que por caminhos livres de suspeita difunde-se muito mais do que se decifra, carrega o ar de eletricidade. O México, mal despertando de seu passado mitológico, continua evoluindo sob a proteção de Xochipilli, deus das flores e da poesía lírica, e de Coatlicue, deusa da terra e da morte violenta, cujas efígies, dominando em patetismo e intensidade todas as outras, trocam palavras inspiradas e gritos roucos, de uma ponta a outra do museu nacional, por cima das cabeças dos camponeses índios que são seus visitantes mais numerosos e de maior recolhimento. Este poder de conciliação da vida e da morte é sem dúvida o principal atrativo de que dispõe o México. A esse respeito mantém aberto um registro inesgotável de sensações, desde as mais benignas até as mais insidiosas. Não há nada como as fotografias de Manuel Álvarez Bravo para descobrirmos esses pólos extremos.

É, portanto, na anestetização da experiência, ativada pela mediação tecnológica das fotografias de Álvarez Bravo, que Breton percebe a chave para captar o sentido do sem-sentido, daí ser a máquina do mundo o dispositivo que, apesar dos pesares, nos desvenda o inconsciente ótico – “na vida de minhas retinas tão fatigadas” – configurando assim uma rede significante que, no caso de Breton, é formada pela superposição, entre outros elementos, de uma cabeça e uma mão mumificadas. A pose da mão e o brilho nacarado, fruto da aproximação dos dentes e da unha, descrevem, a seu ver, um mundo suspenso, palpitando em direção a instâncias contraditórias e esse pensamento por constelações lhe permite então concluir que, de uma tal arte, profundamente alegórica, todo acaso parece ter sido excluído em absoluto.

A esse respeito, conta-nos, por exemplo, o escritor que, em seu périplo com César Moro pelas ruas da capital, provavelmente à cata de peças para a exposição surrealista organizada por ambos, descobriu umas fotografias em uma loja de antiguidades que decidiu incluir no dossiê. Encantou-se nelas pela figura de uma Nadja asteca que pousara nua para um desses cartões postais. Era a mulher do próprio antiquário que, por sinal, acabava de ser assassinada, aos noventa anos. Chamava-se madame Vaudeville. Não havia mais espaço, de fato, para o fortuito. Tudo, absolutamente tudo, daí em diante, se tornaria significante[18]. A tal ponto que não podemos atribuir inocência ou acaso ao fato de lermos, no limiar de As raízes e o labirinto da América Latina, uma esclarecedora passagem de Breton em L´amour fou.

Observarei, de passagem, que estes dois achados [um elmo e uma colher de pau semelhante ao sapatinho de Cinderela] que Giacometti e eu descobrimos juntos no Marché aux Puces não correspondem a qualquer desejo de um de nós dois, mas sim ao desejo de um de nós, ao qual o outro, por razões de caráter particular, se encontra associado. […] Aventuro-me a dizer que os dois indivíduos que andam um ao lado do outro constituem uma única máquina de influência engatilhada. […] O elo de simpatia que une dois ou vários seres parece que ajuda a encontrar soluções que cada um, de per si, procuraria em vão[19].

Veremos mais adiante de que modo essa estrada compartilhada por dois amigos opera na escritura de Silviano. Voltemos, porém, à evocação mexicana de Breton. Quando essa sua lembrança do México foi recolhida em La Clé des Champs, o poeta preferiu encerrar a evocação com a frase paradigmática é assim a beleza que, a rigor, soa como um imperativo, assim deve ser a beleza, se não fosse porque, algumas páginas à frente da reportagem de Minotaure, se reproduz uma gravura popular, a cena de um duelo, em meio a uma fiesta com o título “Esta es la vida”, que Breton traduz, duchampianamente, “c’ est la vie”. Coloca-se, assim, de maneira enigmática e cifrada, uma brecha dissolvente entre narrativa e ficção, a mesma, por sinal, que Silviano tentará pôr à narrativa Em liberdade. É sintomático, também, a esse respeito, lembrar que Foucault destacasse, por exemplo, a profunda incompatibilidade entre Sartre (nosso Graciliano) e Breton (nosso modernismo experimental). Argumentava que, enquanto para o primeiro a escrita faz parte do mundo, para o segundo, ela constitui a antimatéria do mundo, a compensar todo o universo perdido. Por isso, muito embora a maioria das descobertas bretonianas já se encontrasse anunciada por Nietzsche ou Mallarmé, coube, entretanto. ao surrealista francês a fixação de um entre-lugar experimental, que já não é o da filosofia, nem o da literatura, nem o da arte[20]. Segundo Foucault, o recorte do domínio da experiência permitiu a Breton descobrir o entre-lugar do escritor europeu, aquele a partir do qual contestar não apenas todas as obras literárias já existentes, mas a própria existência da literatura; aquele a partir do qual abrir à linguagem possíveis domínios, até então, silenciados ou marginais. E isto por um motivo muito simples: porque, como já nos disse Marta Traba, a apreensão da pintura muralista mexicana é fundamentalmente narrativa o que favorece, em contrapartida, a noção de que a cultura da imagem—fotografias, xilogravuras populares, ícones pop – só pode ser lida em chave discursiva ou até mesmo poética. São figuras, sim, mas figuras de linguagem. Qual seria, então, diante dessa dúplice remissão de estratégias de leitura, o entre-lugar do escritor latino-americano?

Cabe, para tanto, voltarmos, mais uma vez, à “Lembrança do México” para analisar um pormenor, o diálogo que Breton manteve com Diego Rivera, acerca de qual seria, por ventura, o romance capaz de dar conta dessa experiência extrema que ambos estavam atravessando no México. Breton não se fez de rogado. Ele logo admite alimentar um desdém, com relação ao romance, que longe de diminuir, fortaleceu-se ao ler o que de melhor se publicara sob esse rótulo, e fundamenta seu juízo crítico porque o romance tentaria tão somente captar “um certo estado da verdade em que ele foi empurrado a adquirir um valor inapreciável, único, e exige, por isso mesmo, um total despojamento”. Contra essa convicção, referencialista, da arte contemporânea, Breton propõe a aposta ficcional do próprio Rivera, cuja linguagem possuiria, na esteira de Maldoror, “esse sentido inato da poesia, da arte, que deveriam, que devem ser feitas por todos, para todos e das quais procuramos desesperadamente na Europa o segredo perdido”[21]. É bom lembrar, por exemplo, que, em 1937, Rivera pinta uma aquarela, Raízes (hoje conservada na coleção Mimi Indaco), que estabelece um vínculo indissociável com a leitura recente de Silviano e que, além disso, a capa do dossiê mexicano para Minotaure, originalmente em cores da terra, é substituída por um amarelo chocante que Rivera certamente deve ter julgado de maior impacto contra o labirinto preto da grafia e dos símbolos nacionais. Talvez seja por isso que Breton reconheça, em Rivera, malgré lui-même, o ato de “projetar uma luz bastante poderosa, não apenas em retrospecto, mas também prospectivamente, elevando-se, para além dos destinos do México, a uma consciência sempre mais alta da marcha do universo”. É o surrealismo a serviço da Revolução, que coincide, aliás, com a opinião de Luis Cardoza y Aragón, quando argumenta ser imperioso conceder importância à obra dos pintores que cada dia mais se afastam do muralismo.

La actitud de estos artistas es más honrada, más apasionada su aparente indiferencia por lo que, vulgarmente, se llama la realidad mexicana. Ningún nacionalismo necio, ningún prejuicio tonto de una supuesta cultura nacional, ningún compromiso con la iglesia creada por el Estado priva en ellos. Arte heroico dedicado al caso verdadero de México; el caso universal de la cultura. Y como el llamado afrancesamiento de las letras, esta actitud de la pintura obedece también a claro concepto de la evolución del arte y su función social. Trata de formar tradición, de ser moderno en el sentido que este vocablo tiene desde la antigüedad, sentido clásico y, por ende, revolucionario. Porque esos compromisos que transforman el arte en academia, esas tentativas de imposible equilibrio, ese juego con la demagogia del Estado, no son nunca arte de proletarios, ni para proletarios[22].

Por isso mesmo, Breton também desdenha as pinturas de Orozco, mesmo que elas obedeçam “ao paradoxo espanhol que julga que a crença deve se manifestar agora e sempre através da blasfêmia”. Não sendo pela via da transgressão linear (que, ao desacatar a norma, mesmo sem querer, renova-a) o dispositivo México apresenta, de uma maneira tão generosa quanto discutível, dois pólos referidos à historicidade que permitem a Breton explicar, no plano sensível, a particularidade e a amplitude desse movimento cultural e social que cresce sob a guerra numa província ultramarina: o anacronismo e a vontade de antecipação.

Fiesta

En vez de hacer arte con la política, se hace política con el arte – como diría Juan Ramón Jiménez. Qué campo es México para darnos cuenta de ello.
Luis Cardoza y Aragón – Pintura Mexicana Contemporánea

Não é possível, todavia, desconhecermos, no dispositivo México, o lastro que a dis-positio mantém com o conceito deGestell do último Heidegger, cuja etimologia, por sinal, é afim à de dis-positio. Agamben nos relembra que dispositivo conecta-se com o alemão stellen, que se corresponde ao verbo latino ponere e, nessa linha de raciocínio, observa que todos esses conceitos referem-se, a seu ver, a umaoikonomia, i.e., a um conjunto de práticas, de saberes, de instituições, cujo objetivo é administrar, controlar e orientar, em um sentido proveitoso, os comportamentos, os gestos e até mesmo os pensamentos dos homens.

Admitindo assim a existência, de um lado, da ontologia das criaturas e, de outro, da oikonomia dos dispositivos que tratam de governá-las, Agamben, na esteira de Foucault, mas não menos do homo oeconomicus dos pensadores acefálicos, redefine o dispositivo como tudo quanto, de algum modo, tenha a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e garantir os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos humanos[23]. Nessa atual reconfiguração do dispositivo teríamos, então, mediando entre os seres vivos e as substâncias, um entre-lugar, o dos dispositivos; e, entre eles, como uma terceira margem, os sujeitos, que resultariam da relação ou, para retomarmos a expressão do próprio Agamben, que seriam fruto do corpo a corpo entre os viventes e os aparelhos. Nesse sentido, a subjetividade não seria nada além de uma simples disseminação dos sentidos, o que acrescentaria ao dispositivo o aspecto de mascarada que, de resto, sempre acompanhou, na cultura européia, a elaboração ficcional da identidade pessoal[24]. É neste ponto que podemos retomar a leitura telqueliana da fiesta.

Se, a princípio, boa parte das elaborações pós-estruturalistas procede da experiência anterior a respeito da linguagem como vazio e se, a seguir, o estímulo para essas elaborações encontra-se na relativa indecidibilidade entre arte e cultura, nas práticas e cerimônias colhidas pelos etnógrafos franceses, em seu estudo da antropofagia ritual, devemos então reconhecer, mesmo que ignorada, a sombra tutelar de Oswald de Andrade na figura da profanação com que Agamben acaba redefinindo a noção foucaultiana dedispositivo. Em outras palavras, o dispositivo México mantém certo isomorfismo com a teoria da profanação desenvolvida por Agamben e esta, por sua vez, com uma antropofagia repotencializada pelo neoconcretismo dos anos 70. Nenhuma surpresa, portanto, na conjunção Silviano Santiago-Hélio Oiticica.

Com efeito, se examinamos a teoria da profanação de Agamben podemos observar que o filósofo italiano parte de uma distinção operativa no direito romano, a de que sagradas ou religiosas eram as coisas que pertenciam aos deuses, pois elas estavam subtraídas ao livre uso e à circulação entre os homens. Não podiam ser vendidas nem outorgadas como empréstimo, não podiam ser cedidas em usufruto ou taxadas pelo imposto. Sacrílego, no entanto, era todo ato que violentasse ou transgredisse essa indisponibilidade dos objetos, que ficavam reservados, exclusivamente, aos deuses celestiais (daí serem sagrados) ou infernais (religiosos). Nesse sentido, se consagrar (sacrare) era o termo que designava a saída das coisas da esfera do direito humano,profanar significava, pelo contrário, restituir um objeto ao livre uso dos homens. Pura, profana, livre dos nomes sagrados chamava-se, assim, a coisa restituída ao uso comum dos homens, algo ao qual não se tem acesso de forma natural, mas através de um conjunto de dispositivos, ou mais especificamente, de um deles, chamado profanação.

Assim definidos os termos do debate, a religião seria aquilo que afasta lugares, animais ou pessoas do uso comum e os transfere para uma esfera separada. Só há religião onde há separação, mas, por isso mesmo, toda separação conserva em si um núcleo autenticamente religioso. O dispositivo que regula a separação é o sacrifício. Através de uma série de rituais minuciosos, pacientemente inventariado por Mauss, Métraux e vários outros autores, o sacrifício sanciona a passagem de algo que pertence ao campo do profano para o campo do sagrado, saindo da esfera humana em direção à divina. Nesta passagem, destaca Agamben, a soleira ou limiar que deve ser ultrapassado pela vítima, a cesura que divide as duas esferas, é de importância crucial. Não há profanação, em outras palavras, sem entre-lugar de verdade e justiça, sem margem entre dizer e fazer. Portanto, uma das formas mais elementares de profanação consiste no contato entre o sagrado e o profano, durante o próprio sacrifício, contato esse que regula a passagem da esfera humana para a esfera divina. Uma parte da vítima, as vísceras, é reservada aos deuses, ao passo que o que dela resta pode ser consumido pelos homens. Basta com que aqueles que participam do ritual toquem nessas carnes puras para que elas sejam profanadas e possam, automaticamente, ser comidas. Há, portanto, um contágio profano, um toque que desencanta e restitui ao uso las botas y el anillo de Zapata,i.e. aqueles atributos que o ritual sagrado previamente separara e petrificara como atributo dos homines sacri.

Mas a passagem do sagrado ao profano pode, certamente, ativar-se através de um uso incongruente do sagrado. É a lógica do jogo e da fiesta estudada pela sociologia sagrada de Caillois e Bataille. Mesmo tomando distância deles, em nome de um uso que ele ainda reputa estético, Agamben não pode desconhecer que a esfera do sagrado e a esfera do jogo estão estreita e mutuamente vinculadas[25]. Essa conexão, a seu ver, encontrou uma formulação superior quando Benjamin observara, logo no início de sua carreira, que o capitalismo é a única religião que dispensa o dogma, em outras palavras, ele se reproduz por profanação e, por isso mesmo, desconhece de antemão a sacralidade de qualquer prática ou objeto. Assim, o capitalismo é, de um lado, uma religião cultual, sendo que esse seu culto é, aliás, permanente, e, em última análise, trata-se de um culto não-expiatório, mas abertamente culpabilizante[26]. Tal a festa tecnológica da sociedade espetacular, segundo o diagnóstico situacionista.

Enrico Maria Santi, por sua vez, observa que, quando Octavio Paz analisa uma instituição como a fiesta, ele está realizando uma operação “etnográfico-surrealista”, que implica “una crítica de la cultura a base de la desfamiliarización y la reordenación de objetos culturales con el propósito de descubrir su contenido latente sagrado y así reinvertirlos de sentido y valor”. É por isso que, no Apêndice a O Labirinto da Solidão, Paz reivindicará a necessidade de resgatar o elemento sagrado da vida cotidiana. A fiesta é, assim, “algo más que una fecha o un aniversario”, já que “abre en dos el tiempo cronométrico para que, por espacio de unas breves horas inconmensurables, el presente eterno se reinstale”. E, da mesma forma em que “el amor y la poesía nos revelan, fugaz, este tiempo original”, “cada poema que leemos es una recreación, quiero decir: una ceremonia ritual, una Fiesta”. Segundo Santi:

Lo que subyace a toda esta operación analítica – lo que permite la lectura fresca que descubre nuevas e insólitas relaciones – es una nueva concepción de la cultura, no por cierto como entelequia (…) sino como laboratorio donde se disuelven, entre otras cosas, las jerarquías entre “alta”y “baja” culturas. Por eso en el libro la letra de un huapango aparece al lado de una cita de La Jeune Parque; reflexiones sobre los mitos aztecas comparten el mismo espacio con otros sobre la Universidad de Berkeley; y las obscenidades más groseras se juntan a los versos más refinados de Rubén Darío. Todo se vuelve fuente de sentido, todo nos revela, si sólo lo miramos con ojos frescos y en relación con lo demás[27].

A máquina do mito

Chegados a este ponto da análise, é bom não perdermos de vista que a fiesta é um dos nomes daquilo que Furio Jesi chamou de máquina mitológica e que se identifica com o próprio eu do artista moderno, até o ponto de coincidir perigosamente com sua possibilidade ou, melhor dizendo, sua impossibilidade de dizer eu. Como argumenta Bataille, o dissidente do após-guerra, o eu é a ausência de eu, a “naderia” da personalidade entendida como potencialização do falso. Nesse sentido, o eu é tão somente o motor de todo mito, um decalque ou máscara subjetivos, mera teatralização a duas vozes da indecibilidade que é todo e qualquer indivíduo. Não em vão lemos em Viagem ao México:

Artaud percebe o homem mexicano como que escondido sob um véu (e não uma máscara) de docilidade. O olhar do outro não se estanca diante do significado em si da máscara, é levado a devassar o que está por detrás do véu, escondido de maneira exibicionista. A docilidade não serve para disfarçar a desigualdade da condição social do antagonista naquela situação e no ambiente do restaurante; ela não tem adornos da teatralidade trágica; é antes o modo envergonhado, quase caricato, cômico, trasvestido, como o ser subalterno expõe ao privilegiado pela sorte e o dinheiro a força inabalável da sua personalidade machucada, amputada pelo trabalho. Se a fala do mexicano se reveste de uma casca suculenta de chocolate e serve para abrir o apetite, a personalidade dele é como a amêndoa escondida que só aparece se a mordida for dada no bombom. E é melhor se preparar para a decepção. Quase sempre a castanha está chocha[28].

A máquina mitológica implica, portanto, não só a possibilidade de conhecer a festa, como também a possibilidade do ego scriptor, tendo tido acesso à própria experiência, se conhecer, enfim, a si mesmo[29]. A festa de Silviano com Graciliano é precisamente essa. Relembremos, porém, que a partir da leitura da festa realizada por Jesi, Agamben conclui que o dispositivo maquínico, que parecia manter distância ótima com relação ao mito, funciona, na verdade, como um paradigma genuinamente poético, estabelecendo-se, a rigor, completa reversibilidade entre linguagem e sociedade. Tanto para Jesi quanto para Agamben, que compartilham, aliás, certo esoterismo rilkiano, o modelo gnoseológico-poético individual, ou no caso de Silviano, o dispositivo México, torna-se, em última instância, a definição mesma da condição ética, já que, como usuário privilegiado da linguagem, o escritor depara-se, afinal de contas, com a não-coincidência, com o vazio fundacional, a mediar entre o tempo do enigma e o tempo da história, aquilo, justamente, que define o cerne de Em liberdade[30]. Em função dessa falta, a máquina mitológica, longe de se opor à linguagem, determina, em última análise, o próprio ser falante do homem, sua estrutura ficcional irredutível.

Sobrancería

Essa solução teria encontrado uma realização superior no projeto que veio ocupando Silviano Santiago nos últimos tempos: As raízes e o labirinto da América Latina (2006). Nesse capolavoro Silviano potencializa o anacronismo e até mesmo a atribuição errônea ao ler, em paralelo, as Raízes do Brasil(1936), de Sérgio Buarque de Holanda, e O Labirinto da Solidão (1950), de Octavio Paz. Silviano vem acrescentar o livro de Sérgio Buarque à constelação dos quatro pilares do ensaísmo de construção identitária proposta por Enrico Mario Santi: Radiografía de la pampa (1933) de Ezequiel Martinez Estrada,Casa Grande e Senzala, do mesmo ano, de Gilberto Freyre e La expresión americana (1947) de Lezama Lima, arrematando a série o ensaio de Paz.

O ponto de vista de Silviano, com o qual, aliás, não custa concordar, é que os dois ensaios canônicos, o de Sérgio Buarque e o de Octavio Paz, marcam, nas respectivas culturas nacionais, o fim do saber literário como fundamento das grandes interpretações da América Latina[31]. Muitos, de fato, são os pontos de contato entre esses autores. Sérgio, a partir da idéia de que “o artista não limita o pensador”, vê, em Goethe ou Pascal, os modelos declarados do intelectual universal; Paz, por sua vez, sente-se integrante de uma cultura cuja história deve ser escrita pela geração a que ele pertence, e para tanto lança mão de Freud, Nietzsche, Borges, Simmel, Caillois ou Lévi-Strauss, entre tantos outros. Além do mais, Paz pertence a uma geração educada, por sinal, no contato direto com os surrealistas, em sua diáspora americana. Ambos, entretanto, buscam inserir seus respectivos países, como diz Silviano, “numa visada não-ocidental, pré-colonial, mas também na extensão ocidentalizada, colonial e pós-colonial”, a partir do impacto do fim da guerra que, segundo Silviano, “retirou a América Latina do protetorado cultural europeu”, para atrelá-la à nova órbita imperial. Se Sérgio, como parte da transculturação sul-atlântica, cresce mirando-se no espelho civilizatório europeu, Paz teve, a partir de 1943, uma profunda experiência norte-americana, como estudante em Berkeley, onde, por sinal, inicia a redação de seu ensaio consagratório, em que as marcas dos discípulos de Durkheim, como Mauss ou Caillois, é inegável[32].

Tanto Raízes do Brasil quanto O Labirinto da Solidão partem, sintomaticamente, do clássico conceito derepresentação, para logo temperá-lo pelo de desterritorialização, de tal sorte que representar passa a ter o sentido de reduplicar. Sérgio, ecoando, mesmo sem o saber, a prévia lamúria borgeana, que definia o tamanho de sua esperança nacionalista e de vanguarda como um processo agônico de desterritorialização, abre também suas Raízes do Brasil vendo seus patrícios como uns desterrados na própria terra. Mas como o enigma identitário já não se resolve por via histórica, nem mesmo sociológica, para ambos os escritores,

A originalidade comunitária está fincada contraditoriamente no individualismo moderno, nacultura da personalidade para usar a expressão do Sérgio, ou na afirmación de la personalidad, para nos valer de Paz. (…) Cultura e afirmação da personalidade determinam o fundamento poético e romanesco das duas interpretações em pauta. Segundo o brasileiro, a cultura da personalidade nos foi transmitida como herança da Espanha e de Portugal, os dois territórios-ponte aquém-Pireneus: “A Espanha e Portugal são […] teritórios-ponte pelos quais a Europa se comunica com outros mundos. Assim, eles constituem uma zona fronteiriça, de transição, menos carregada, em alguns casos, desse europeísmo que, não obstante, mantêm como um patrimônio necessário”. Acrescenta ele que espanhóis e portugueses devem muito da sua originalidade nacional “pela importância particular que atribuem ao valor próprio da pessoa humana, à autonomia de cada um dos homens em relação aos semelhantes no tempo e no espaço”[33].

Vale dizer que a resolução de Sérgio Buarque ou de Paz (ou melhor dizendo, a reconstrução a posteriorique delas nos propõe Silviano Santiago) é bastante próxima da máquina mitológica a que chegam, por outras vias, Jesi ou Agamben. É o dispositivo México que explica a posição “apesar de dependente, universal” da cultura latino-americana em seu conjunto. Mas essa opção pela personalidade como fundamento hermenêutico leva ambos os ensaístas analisados para um segundo sentido de representar, abertamente poético. A rigor, esse sentido poético já se insinuara, em Viagem ao México, quando, de maneira sutil e demoníaca, Ortiz de Orellano aproxima o pensamento de Artaud das atitudes do camponês e do chofer. “O camponês, revolucionário da primeira hora, é responsável pela herança da cultura tradicional, e o chofer, o moderno mexicano, é o que usa e domina a máquina, nossa contemporânea, como a um cavalo”. Vale dizer que “o europeu Artaud”, desde que corretamente lido e interpretado, funciona, como dispositivo México, como uma ponte, um entre-lugar, um confim, entre o camponês e o chofer. Dessa forma, nos diz o narrador, a unidade mexicana passa a ser irreversivelmente atingida[34]. Ora, uma década depois a questão retorna, porém, como problema teórico, em As raízes e o labirinto da América Latina.

As respectivas buscas de identidade do latino-americano se estendem ao catálogo informe e anárquico dos tipos humanos, que resultaram e se concretizaram pelo efeito de desterritorialização do europeu. Estendem-se à análise dos vários tipos que mantiveram estatuto de colono “vis-à-vis” do metropolitano europeu. Os dois intérpretes deveriam eleger no catálogo alguém que, sendo singular, fosse um tipo humano, alguém que, no contexto ocidental, viesse a ser o mais apropriado dos possíveis representantes da atualidade civilizacional latino-americana. (…) Escolhido o tipo humano, ele é dramatizado como singular, transformando-se nas mãos dos intérpretes em personagem literário (umapersonae, uma máscara). Ao se destacar por sua personalidade complexa e comportamento multifacetado, o personagem que está sendo caracterizado representa metafórica ou simbolicamente a coletividade. Sempre lhe faltará um nome próprio, mas éalguém. Alguém que representa a todos. No caso, deve representar a parte pelo todo. E na qualidade de metonímia, deve representar de maneira surpreendente e convincente a singularidade de cada nação latino-americana ou a singularidade continental, ou a ambas. Para chegar ao “round character” latino-americano, Sérgio se calça com a contribuição lingüística e filosófica oferecida pelos territórios-ponte aquém- Pirineus. Em recepção direta da Europa, escuta, acata e reduplica entre nós o vocábulo castelhano “sobrancería” (…), que servia para definir a singularidade do espanhol no contexto europeu. (…) Ao reduplicar o vocábulo sobrancería, Sérgio guarda o significado original, apenas desterritorializando-o. Ao recontextualizá-lo como ferramenta descritiva aclimatada à realidade brasileira colonial, terá de encontrar o equivalente lingüístico em português[35].

Para além da fonte declarada de Antonil, proposta por Silviano, relembremos que sobranceiro é um termo vinculado ao excesso e à transgressão. Aponta aquilo que supera um outro em alguma qualidade. Super,hybris. Vincula-se à metafísica do crioulo, já que sobrar, no Prata, quer dizer humilhar, zombar. Aliás, o estereótipo do neo-crioulo é justamente o de um sobrador, idéia vinculada à “dialética fecal”, como diria Borges, com que o sobrador se vangloria de ter sobrado (penetrado) um parceiro mais fraco.

Mas voltemos, por um instante, e finalmente, às palavras de Foucault em relação a Breton. Poderíamos dizer que, sob certo ponto de vista, os críticos modernistas, como Sérgio Buarque ou Octavio Paz, estavam longe dos pós-críticos como Silviano. Caberia pensar, porém, de outro lado, que Silviano passou a se sentir próximo deles, sob o domínio do espectro que eles deixaram nos pósteros, de tal sorte que a morte do modernismo (e a conseqüente exaustão da autonomia literária) passa a operar como a reduplicação do próprio nascimento da geração pós-modernista, uma vez que não só os indivíduos, mas até mesmo a literatura, é vista como um morto todo-poderoso e muito próximo, encarnada no Estado, como ameaça da autonomia intelectual. É a linhagem que vai de Murena a Monsivais. Reparemos, a título de exemplo, nas palavras de Luis Cardoza y Aragón e constatemos se, em atribuição errônea, elas não funcionam como um autêntico alegato anti-portinarista, o mesmo, por sinal, que lemos, com o semblante esvaziado de Graciliano, Em liberdade.

Diego Rivera es todo un personaje creado por su pintura, que organiza enormes mítines con las muchedumbres de sus frescos. Su obra es autorretrato. Hombre del Renacimiento, nacido tardíamente, habría sido entonces un pintor religioso, acaso completamente incrédulo como el Perusino. Su personalidad es tan grande que no deja ver el paisaje. Se adivina que en el fondo de ese constante autorretrato hay un paisaje delicado, misterioso y nítido, como en las visitaciones italianas. Diego Rivera lo tiene pintado en la espalda. ¿Será otro autorretrato? Rivera sabe muy bien lo que hace, y sabe hacerlo perfectamente. Y seguro de sus posiciones, se mantiene en ellas hasta engendrar una academia. Toda búsqueda de bellezas formales le parece arbitraria y sin razón. Sus mejores progresos han sido técnicos. Su íntima expresión no ha adquirido profundidad. Su pintura se ha tornado deliberadamente decorativa, alegórica y literaria. En el agrarismo artístico que practica el Estado repartiendo muros, alguien ha escrito, Diego Rivera ha sido un latifundista[36].

Por sua vez, em sintonia, aliás, com um tal diagnóstico, Octavio Paz confronta, em “André Breton o la búsqueda del comienzo”, duas concepções de arte, a do artista com a do anartista. Pergunta-se, então, se Duchamp é o princípio ou o fim da pintura, para responder, a partir de um começo anterior ao começo, que

Con su obra y aún más con su actitud negadora de la obra, Duchamp cierra un período del arte de Occidente (el de la pintura propiamente dicha) y abre otro que ya no es “artístico”: la disolución del arte en la vida, del lenguaje en el círculo sin salida del juego de palabras, de la razón en su antídoto filosófico – la risa. Duchamp disuelve la modernidad con el mismo gesto con que niega la tradición. En el caso de Breton, además, hay la visión del tiempo, no como sucesión sino como la presencia constante, aunque invisible de un presente inocente. El futuro le parecía fascinante por ser el territorio de lo inesperado: no lo que será según la razón, sino lo que podría ser según la imaginación. La destrucción del mundo actual permitiría la aparición del verdadero tiempo, no histórico sino natural, no regido por el progreso sino por el deseo. Tal fue, si no me equivoco, su idea de una sociedad comunista-libertaria[37].

Quando esse herdeiro do anartismo duchampiano que é César Aira compõe a pantomima cósmica de O Congresso de Literatura e bola a seqüência em que uma mosquita teleguiada deve clonar a inteligência suprema do escritor modernista, Carlos Fuentes, por sinal, editor de Os signos em rotação, o resultado final é nímio e irrelevante. O animal clona, na verdade, uma célula da gravata impecavelmente azul de Carlos Fuentes. Confunde o substantivo com o acidental, numa perversa irrisão do equívoco identitário que caracteriza a todo professor de literatura reunido em um congresso. Em todo caso, é uma forma de dizer que as raízes e o labirinto da América Latina encontram, na literatura exausta da contemporaneidade, uma forma de esvaziar os ícones do passado. Por isso, se bem se vê, aquilo que Santiago aponta nos intérpretes da cultura latino-americana, ele próprio, enquanto pós-crítico da margem, já o encontrara na cultura pop internacionalizada. São las botas y el anillo de Zapata. É a Rua México. Colada ao Império, mas dele separada por uma vala biopolítica insacrificável.

*Raúl Antelo leciona literatura na Universidade Federal de Santa Catarina e já foi professor nas Universidades Yale, Duke, Texas at Austin e Leiden. É autor, entre outros, de Literatura em RevistaNa ilha de Marapatá; Algaravia. Discursos de nação; Transgressão & Modernidade; Antonio Candido y los estudios latinoamericanos; Potências da imagem e Maria con Marcel. Duchamp en los trópicos.


[1] FOUCAULT, Michel. “Le jeu de Michel Foucault”. [entrevista concedida a um grupo de psicanalistas lacanianos, entre os quais J.-A. Miller e A. Grosrichard, para a revista Ornicar?, nov 1977]. In: Dits et ecrits. Paris, Gallimard, 1994, vol. 3, p.299-329.

[2] SANTIAGO, Silviano. Viagem ao México. Rio de Janeiro, Rocco, 1995, p.348.

[3] IDEM – “Las botas y el anillo de Zapata”. In: Suplemento literário Minas Gerais, Belo Horizonte, 7 abr. 1973. Agradeço ao Arquivo de Escritores Mineiros, através do prof. Wander Melo Miranda, a cessão de uma cópia do texto. Ver também SANTIAGO, Silviano. “Esquema para procura de um western puro ou involução cinematográfica”. Revista de cinema, Belo Horizonte, v. 3, nº 18, out. 1955, p.18-9.

[4] Cf. NANCY, Jean-Luc – “Espace: confins” in Le Sens du monde. Paris, Galilée, 2001, p.61-8 e CACCIARI, Massimo – “Nome di luogo: confini” in aut-aut, nº 299-300, Milano, set-dez 2000, p.73-4.

[5] Cf. SANTIAGO, Silviano. “Camões e Drummond: máquina do mundo”. In: Hispania, v. 49, nº 3 set. 1966, p.389-394; IDEM. Carlos Drummond de Andrade. Petrópolis, Vozes, 1976.

[6] Cf. HYPPOLITE, Jean – Introduction à la philosophie de l´histoire de Hegel. Paris, Seuil, 1983, p.43.

[7] A eles podem acrescentar-se “A América desaparecida” ou “A mutilação sacrificial e a orelha cortada de Van Gogh”, incluídos no primeiro volume de suas Ouevres Complètes (Paris, Gallimard, 1971). Sobre esse particular consultar ainda Écrits d´ailleurs:Bataille et les ethnologues. Paris, Ed. Maison des Sciences de l´Homme, 1987, em especial, o ensaio de Francis Marmande, “Georges Bataille: le motif aztèque”. Ainda de Marmande, “Puerta de la carne. Bestialité de Bataille” in: HOLLIER, Denis (ed.). Georges Bataille après tout. Paris, Belin, 1995. Métraux evoca a relação de Bataille com esse meio intelectual em “Rencontre avec les ethnologues” (Critique, nº 195-6, Paris, ago-set. 1963, p.677-684).

[8] Cf. CAILLOIS, Roger. “Teoría de la fiesta”, Sur, nº 64, jan. 1940, p.57-83; IDEM. Quatre essais de sociologie contemporaine. Paris, Olivier Perrin, 1951; IDEM. “A guerra cortês”. In: Anhembi, nº 31, jun.1953, p.4-13; IDEM.Bellone ou la Pente de la Guerre. Bruxelles, La Renaissance du Livre, 1963. Não nos esqueçamos que La communion des forts. Études de sociologie contemporaine foi estampado, em 1943, pelas edições Quetzal do México e que esses ensaios de Caillois, alguns deles lidos previamente na revista Sur, serão decisivos para a formação intelectual de Octavio Paz.

[9] PAZ, Octavio. Las peras del olmo. 2ª ed. Barcelona, Seix Barral, 1971, p.150-1.

[10] Relembremos que, no colóquio Artaud / Bataille, realizado no verão de 1972, em Cerissy-la-Salle, discutem-se textos hoje incontornáveis, como “As saídas do texto” de Roland Barthes, “Do para além de Hegel à ausência de Nietzsche” de Denis Hollier, “O Estado Artaud” de Ph. Sollers, “O sujeito em processo” de Júlia Kristeva, “A matéria pensa” de Marcelin Pleynet ou “Linguagem do corpo” de Pierre Guyotat.

[11] “Por que será que Bataille foi para a equipe de Tel quel tão importante, a não ser que Bataille fez emergir das dimensões psicológicas do surrealismo alguma coisa que ele chamou de limitetransgressãorisoloucura, para fazer delas experiências do pensamento?”. Cf. FOUCAULT, Michel. “Debate sobre o romance”. In: Estética: literatura e pintura, música e cinema. Ed. Manuel Barros da Motta. Trad. Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2001, p.95.

[12] BRETON, André. “Souvenirs du Méxique”.In: Minotaure. nº 12-3, Paris, 1939, p.29-50. A capa desse suplemento pertence a Diego Rivera.

[13] Cf. FOUCAULT, Michel. “Un nadador entre duas palavras”. In Estética: literatura e pintura, música e cinema,op. cit., p. 243.

[14] Cf. OTTINGER, Didier. Surréalisme et mythologie moderne. Les voies du labyrinthe d´Ariane à Fantomas.Paris Gallimard, 2002. Relembremos, por exemplo, que, enquanto Orozco pinta seu afresco Prometeu em um colégio de Claremont, perto de Los Angeles, recebe a visita de Philip Guston e Jackson Pollock; que pouco depois, instalado já em Hannover, no New Hampshire, Orozco dedica-se à sua obra mais ambiciosa em solo americano, um afresco sobre o mito vivo do Quetzalcoatl, e que pouco depois, ainda, em seu atelier de Union Square, o pintor mexicano passa muitas horas de trabalho comum com Jackson Pollock. Mark Rothko, por sua vez, leitor de Nietzsche nos anos 30, debruça-se sobre os ensaios de T.S. Eliot em favor, não já da história determinista do comunismo, mas dos mitos contemporâneos, de que Ulysses era o padrão máximo. E é, portanto, em 1938, véspera da guerra, que a leitura simultânea de O Ramo de Ouro, um estudo de Eliot sobre o livro de Frazer, estampado em Vanity Fair e a Orestíada de Ésquilo inspiram Rothko para compor uma Antígona. Qualquer semelhança com a biblioteca antropofágica brasileira não é simples acaso.

[15] Ver, a esse respeito, o catálogo Regards sur Minotaure. La revue à tête de bête. Genebra, Musée d´art et d´histoire, 1988. Em especial as contribuições de Michel Butor, Jean Starobinski e José Pierre.

[16] PAZ, Octavio. Los signos en rotación y otros ensayos. Prólogo y selección Carlos Fuentes. Madrid, Alianza, 1971, p.163.

[17] Em “Poética do começo”, Peter Sloterdijk toma o livro de areia de Borges como suporte para sua leitura em que o começo é anterior à decisão de começar (Cf. SLOTERDIJK, Peter. Venir al mundo, venir al lenguaje. Lecciones de Frankfurt. Trad. Germán Cano. Valencia, Pre-textos, 2006, p.33-58). Em sua leitura do modernismo, Silviano nos alerta, recorrentemente, para a diferença entre mito de origem (modernista, utópico) e mito de origem (pós-modernista, exausto).

[18] Breton admite ter se aproximado do México através da leitura infantil de uma obra que também impressionou Rimbaud nessa mesma idade: Costal, o índio, onde ficção e história se encostam à perfeição. Admite, além do mais, que o que ele chama a paisagem mental do surrealismo foi construída, em grande medida, a partir do México, dela retirando, por exemplo, elementos como o helodermo e o axolotl, este último, aliás, mais tarde celebrizado nessa alegoria do transformismo latino-americano que é o conto de Cortázar. Além dos pintores, Breton admite ter tido sintonia, no México, com Carlos Pellicer, Xavier Villaurrutia, Rodolfo Usigli, Adolfo Best-Maugard, Agustin Lazo, Roberto Montenegro, com a bela Lupe Marin, com os feirantes indígenas de Ixmiquilpan e até mesmo com o presidente Cárdenas. Narra, por exemplo, em sua lembrança mexicana, ter feito uma visita à cidade militar de Monterrey, guiado pelo general Almazán, antigo combatente de Zapata. Diante de sua admiração irrestrita perante o exército formado para saudá-lo, Trotski, muito mais cético quanto às virtudes do heroísmo da tropa, tempera seu arroubo de maneira desconcertante, perguntando-lhe o que fazer, em caso de necessidade, com um exército com tais características. Conste, por último, que boa parte dessas informações devem provir das conversas de Silviano com um íntimo amigo dele, o mexicano, nascido na Argentina, por sinal quase na fronteira do Brasil, Luis Mario Schneider (1931-1999), autor de La literatura mexicana (1967), El estridentismo o una literatura de la estrategia (1970), Dos poetas rusos en México: Balmont y Maiakowsky (1973),Ruptura y continuidad. La literatura mexicana en polémica (1975), Viaje al país de los tarahumaras de Antonin Artaud (1975), México y el surrealismo. 1925-1950 (1978), Inteligencia y guerra civil, 1937 (1978), México en la obra de Octavio Paz (1979), Diego Rivera y los escritores. Antología tributaria (1987), Jaime Torres Bodet: crítica cinematográfica (1987) e López Velarde en la nación (1988).

[19] SANTIAGO, Silviano. As raízes e o labirinto da América Latina. Rio de Janeiro, Rocco, 2006, p.7.

[20] “Estamos hoje em uma era em que a experiência – e o pensamento que é inseparável dela – se desenvolve com uma extraordinária riqueza, ao mesmo tempo em uma unidade e uma dispersão que apagam as fronteiras das províncias outrora estabelecidas. Toda a rede que percorre as obras de Breton, Bataille, Leiris e Blanchot, que percorre os domínios da etnologia, da história da arte, da história das religiões, da lingüística, da psicanálise, apaga infalivelmente as velhas rubricas nas quais nossa própria cultura se classificava e revela aos nosso olhos parentescos, vizinhanças, relações imprevistas. É muito provável que se devam essa dispersão e essa nova unidade de nossa cultura à pessoa e a obra de André Breton. Ele foi, simultaneamente, o dispersor e o aglutinador de toda essa agitação da experiência moderna”. Cfr. FOUCAULT, Michel. “Un nadador entre duas palavras”, op.cit. p.246.

[21] Na Exposição Surrealista do México onde, entre outros textos, recolhe-se a teoria do infraleve de Duchamp, o manifesto, assinado por Moro, reivindica o caráter ilegível dos textos aí reunidos, que poderiam escolher como bandeira a profecia de Lautréamont de que a poesia deveria ser feita por todos e não por um. Conste, aliás, que Lautréamont é um claro exemplo de escritura híbrida, não necessariamente transcultural.

[22] CARDOZA Y ARAGÓN, Luis. Pintura Mexicana Contemporánea. México, Imprenta Universitaria, 1953, p.7-8.

[23] Para Agamben, portanto, não se trata, tão somente, de estudar “as prisões, os manicômios, o panóptico, as escolas, a confissão, as fábricas, as disciplinas, as medidas jurídicas, etc., cuja conexão com o poder é em certo sentido evidente, mas também a caneta, a escritura, a literatura, a filosofia, a agricultura, o cigarro, a navegação, os computadores, os celulares e – por que não – a linguagem mesma, que é talvez o mais antigo dos dispositivos, em que há milhares e milhares de anos um primata – provavelmente sem dar-se conta das conseqüências que se seguiram – teve a inconsciência de se deixar capturar”. Cf. AGAMBEN, Giorgio “O que é um dispositivo?” Trad. Nilcéa Valdatti. In: Outra travessia, nº 5, Florianópolis, segundo semestre 2005, p. 9-16.

[24] Para o filósofo italiano os dispositivos provocam o tédio, isto é, a capacidade de suspender a relação imediata com os desinibidores e produzem, além do mais, o Aberto, a possibilidade de conhecer o ente enquanto ente. Porém, com estas possibilidades, também temos a possibilidade dos dispositivos que enchem o Abierto com aparelhos e instrumentos, objetos e tecnologias de todo tipo. Através dos dispositivos, o homem tenta fazer cair no vácuo os comportamentos animais que dele se separaram para poder assim gozar do Aberto poder gozar do ente enquanto ente. Na base do dispositivo está, então, uma promessa de “felicidade”. Silviano Santiago já manifestou sua admiração pelo conceito agambeniano de Aberto, construído a partir de uma leitura minuciosa das Elegias a Duíno de Rilke. Em “Crítica/Poesia” (mais! Folha de S.Paulo, 3 out. 2004), comentando O Aberto, Silviano observa que, desde a leitura de Hölderlin por Heidegger, não se dispunha de um exemplo tão notável de exegese filosófica do saber poético. “A partir da oitava Elegia de Duíno, de Rainer Maria Rilke, citada no título do livro e apenas en passant no texto, Agamben investe contra a máquina antropológica de Charles Darwin, seus discípulos e seguidores, para retornar à questão das origens do homem. Para tal tarefa, vale-se da leitura que Alexandre Kojève fez de Hegel sobre o fim da história, dos primeiros e póstumos escritos de Martin Heidegger (em particular sobre o tédio) e dos esotéricos apocalípticos, apropriados desde 1930 por Georges Bataille”.

[25] “La mayor parte de los juegos que conocemos deriva de antiguas ceremonias sagradas, de rituales y de prácticas adivinatorias que pertenecían tiempo atrás a la esfera estrictamente religiosa. La ronda fue en su origen un rito matrimonial; jugar con la pelota reproduce la lucha de los dioses por la posesión del sol; los juegos de azar derivan de prácticas oraculares; el trompo y el tablero de ajedrez eran instrumentos de adivinación. Analizando esta relación entre juego y rito, Emile Benveniste ha mostrado que el juego no sólo proviene de la esfera de lo sagrado, sino que representa de algún modo su inversión. La potencia del acto sagrado -escribe Benveniste- reside en la conjunción del mito que cuenta la historia y del rito que la reproduce y la pone en escena. El juego rompe esta unidad: como ludus, o juego de acción, deja caer el mito y conserva el ritual; comojocus, o juego de palabras, elimina el rito y deja sobrevivir el mito. ‘Si lo sagrado se puede definir a través de la unidad consustancial del mito y el rito, podremos decir que se tiene juego cuando solamente una mitad de la operación sagrada es consumada, traduciendo solamente el mito en palabras y el rito en acciones’. Esto significa que el juego libera y aparta a la humanidad de la esfera de lo sagrado, pero sin abolirla simplemente. El uso al cual es restituido lo sagrado es un uso especial, que no coincide con el consumo utilitario. La profanación del juego no atañe, en efecto, sólo a la esfera religiosa. Los niños, que juegan con cualquier trasto viejo que encuentran, transforman en juguete aun aquello que pertenece a la esfera de la economía, de la guerra, del derecho y de las otras actividades que estamos acostumbrados a considerar como serias. Un automóvil, un arma de fuego, un contrato jurídico se transforman de golpe en juguetes. Lo que tienen en común estos casos con los casos de profanación de lo sagrado es el pasaje de una religio, que es sentida ya como falsa y opresiva, a la negligencia como verdadera religio. Y esto no significa descuido (…), sino una nueva dimensión del uso, que niños y filósofos entregan a la humanidad”. Cf. AGAMBEN, Giorgio. “Elogio de la profanación”. In Profanaciones. Trad. Flavia Costa e E. Castro. Buenos Aires, Adriana Hidalgo, 2005, p.100-1. Caillois antecipa algumas dessas considerações em “Estrutura e classificação dos jogos”, ensaio acolhido por Paulo Duarte na revista Anhembi (nº 72, São Paulo, nov. 1956, p.446-459).

[26] “Allí donde el sacrificio señalaba el paso de lo profano a lo sagrado y de lo sagrado a lo profano, ahora hay un único, multiforme, incesante proceso de separación, que inviste cada cosa, cada lugar, cada actividad humana para dividirla de sí misma y que es completamente indiferente a la cesura sacro/profano, divino/humano. En su forma extrema, la religión capitalista realiza la pura forma de la separación, sin que haya nada que separar. Una profanación absoluta y sin residuos coincide ahora con una consagración igualmente vacua e integral. Y como en la mercancía la separación es inherente a la forma misma del objeto, que se escinde en valor de uso y valor de cambio y se transforma en un fetiche inaprensible, así ahora todo lo que es actuado, producido y vivido -incluso el cuerpo humano, incluso la sexualidad, incluso el lenguaje- son divididos de sí mismos y desplazados en una esfera separada que ya no define alguna división sustancial y en la cual cada uso se vuelve duraderamente imposible. Esta esfera es el consumo. Si, como se ha sugerido, llamamos espectáculo a la fase extrema del capitalismo que estamos viviendo, en la cual cada cosa es exhibida en su separación de sí misma, entonces espectáculo y consumo son las dos caras de una única imposibilidad de usar. Lo que no puede ser usado es, como tal, consignado al consumo o a la exhibición espectacular. Pero eso significa que profanar se ha vuelto imposible (…). Si profanar significa devolver al uso común lo que fue separado en la esfera de lo sagrado, la religión capitalista en su fase extrema apunta a la creación de un absolutamente Improfanable”. Cf. AGAMBEN, Giorgio. “Elogio de la profanación”, op. cit., p.106-7.

[27] SANTI, Enrico Maria. “Introducción”. In: PAZ, Octavio – El laberinto de la soledad. 12ª ed. Madrid, Cátedra, 2004, p. 103-4.

[28] SANTIAGO, Silviano. Viagem ao México, op. cit., p.288.

[29] AGAMBEN, Giorgio. “Sull´impossibilità di dire Io. Paradigmi epistemologici e paradigmi poetici in Furio Jesi” in La potenza del pensiero. Saggi e conferenze. Vicenza, Neri Pozza, 2005, p.107-120. E ilustra a idéia com uma citação de La festa (1977) de Jesi onde se afirma que  “il ritmo gnoseologico, percepibile dallo studioso, è il ritmo stesso di funzionamento della macchina antropologica … Essa, la macchina, funziona, e funziona secondo il ritmo – a lei peculiare – del disvelarsi e dell’occultarsi del quotidiano in termini di esperienza gnoseologica (non di esperienza epifanica). Il quotidiano nell’instante in cui si disvela è il diverso – l’uomo, nell’istante in cui ci appare nello stavo festivo, è il diverso. Il quotidiano nella fase di occultamento e l’uomo nello stato non festivo sono il noto e l’uguale. Ciò vale anche per quanto riguarda l’io dell’osservatore, dell’etnologo. Ma l’etnologo moderno non dispone della facoltà di disvelarsi a se stesso, di apparirsi in stato festivo: gli è quindi vietato accedere al proprio io, nella misura in cui tale accesso presuppone una preliminare distanza, diversità, fra chi osserva e il suo io…”

[30] Diz Agamben que “la macchina-io contiene necessariamente un nucleo di non-conoscenza. E il modo in cui il soggetto conoscente e parlante si mantiene in relazione con la propria zona di non-conoscenza, la strategia attraverso cui vive ed elabora il proprio segreto -la cura di sé, nel senso di Foucault -determinano il rango e la sobrietà della sua conoscenza”. Cf.  “Sull´impossibilità di dire Io”, op.cit., p.116.

[31] Cf. SANTIAGO, Silviano. As raízes e o labirinto da América Latina. Rio de Janeiro, Rocco, 2006, p.15. Para uma leitura pormenorizada do ensaio de Paz, ver o prefácio de Enrico Maria Santí, op. cit, p.11-137.

[32] Cf. CAPETILLO-PONCE, Jorge. “Deciphering the Labyrinth. The Influence of G. Simmel on the Sociology of Octavio Paz”. In Theory, Culture & Society, vol. 22, nº 6, dez. 2005, p.95-124.

[33] Cf. SANTIAGO, Silviano. As raízes e o labirinto da América Latina, op. cit., p.21. É bom notar que, numa versão anterior desta passagem (“Eterna travessia” in Mais! Folha de S.Paulo São Paulo, 9 out. 2005), a ordem dos atributos da construção hermenêutica ainda não era poética e romanesca, como lemos no livro, porém, romanesca e poética. A alteração da ordem coincide, sugestivamente, com os argumentos de Jesi e Agamben a respeito da máquina mitológica.

[34] IDEM. Viagem ao México, op. cit., p.376-7.

[35] IDEM. As raízes e o labirinto da América Latina, op. cit.,p.24. Em “O silêncio, o segredo, Jacques Derrida”, intervenção no colóquio em homenagem a Derrida pouco antes de sua morte (Rio de Janeiro, 2005), Silviano relembra a lição de Greimas, na Semântica estrutural, no sentido de que “ao inventar vocábulos (…), seqüestrar um vocábulo do dicionário da língua francesa, inseminá-lo artificialmente e, posteriormente, re-introduzir o neologismo no seu habitat natural, disseminando-o, impede que se lhe atribua uma individuação cuja história ou cuja evolução semântica poderia ser narrada. O vocábulo castiço e casto é paradoxalmente mundano, e o violado, paradoxalmente privado – e a ser divulgado urbi et orbi, sob pena de desaparecer com o correr dos anos. Por isso, Derrida pode afirmar que o neografismo, na sua radicalidade, marca a morte de certa língua (tal como estava sendo descrita pelas recentes pesquisas em lingüística) e de certa filosofia (tal como estava sendo pensada desde o momento grego)”, produzindo, como em Mallarmé, o silêncio do “espaçamento” torna-se moeda congratulatória na desconstrução, isso porque tempo e espaço da escrita não se congratulam mais, antes se suplementam um ao outro. O espaçamento mallarmaico, por não ser signo lingüístico, no sentido preciso da expressão, torna-se moeda inaugural da gramatologia”.

[36] CARDOZA Y ARAGÓN, Luis. Pintura  Mexicana Contemporánea, op. cit., p.230.

[37] PAZ, Octavio – Los signos en rotación y otros ensayos, op. cit., p.172.

 

 

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Fingimentos | de José Carlos Avelar

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
que chega a fingir que é dor
a dor que deveras sente.
Fernando Pessoa, Autopsicografia

Resumir o que acontece no filme mexicano La tarea (1991) deixa quem não o conhece meio desconfiado. Um filme de um plano só e de apenas dois personagens, a câmera todo o tempo numa única posição, enquanto dois personagens conversam, parece indicar um espetáculo mais próximo de teatro ou de novela de televisão que de cinema, porque um filme, o espectador sabe até de olhos fechados, se faz com muitas imagens e muitas ações mostradas de diferentes e variados ângulos; filme que é filme, assim parece, não perde nada de vista e vê quase tudo o que há para ver no mundo. Quase hora e meia sem movimento, muita conversa e pouca ação, não parece coisa de cinema. Pode não parecer, mas é, porque nada neste filme de Jaime Humberto Hermosillo é assim como parece.

Um plano só – e de certo modo todos participamos de sua preparação. Antes do começo da história, uma imagem breve: antes do plano que de fato faz o filme, uma mulher se ajeita para receber uma visita e esconde uma câmera de vídeo em baixo da mesa, por trás de uma cadeira. A câmera é ligada e a partir daí passamos a ver como se estivéssemos olhando pelo visor desta câmera de vídeo, no chão, de baixo para cima: vemos o pé da cadeira perto da mesa, as almofadas encostadas na parede à direita, um pedaço da estante à esquerda e ao fundo a porta que dá para a sala. A mulher entra em quadro, já pronta, com o vestido vermelho para receber a visita, mas ainda de óculos, para ver se a câmera está mesmo bem escondida. A campainha anuncia a chegada da visita, ela coloca os sapatos de salto alto e sai de quadro para abrir a porta em algum lugar à direita do quadro. Começa então a história de Virgínia e de Marcelo: um reencontro de namorados que não se viam há algum tempo a chamado dela, para conversar, para ver como andavam as coisas.

O prólogo prepara a tensão que alimenta o filme. O espectador sabe que o encontro está sendo filmado e participa dos inúmeros artifícios armados pela mulher para que o homem não perceba a câmera nem prejudique a imagem, cobrindo a visão com o paletó, preferindo a cadeira fora de quadro em lugar das almofadas arrumadas no chão, ou sugerindo o mais confortável sofá da sala, que a câmera não pode ver.

O espectador se diverte porque participa de um jogo de saber das coisas pela metade: ele sabe que a câmera está filmando o homem, que não sabe que está sendo filmado. Sabe que a mulher está nervosa, mas não sabe por que ela está filmando às escondidas aquela conversa mole de quem sabe muito bem o que pretende com aquele encontro e sublinha o pretendido, fingindo não saber o que os manteve afastados: Marcelo esqueceu de telefonar, Virgínia esqueceu de telefonar para perguntar por que ele não telefonava; ele não sabe por que esqueceu, pois na verdade até teve vontade de telefonar para voltar a vê-la; timidez, falta de jeito masculina talvez. Ela não sabe por que esqueceu de telefonar, pois na verdade só tinha boas lembranças dele; timidez, inibição feminina talvez. E agora, o telefonema depois de tanto esquecimento, ela não sabia por que tinha feito o convite, ele já se esquecera por que tinha aceitado.

Ninguém sabe de nada com um jeito de quem sabe de tudo.

Virgínia, Marcelo, a câmera e o espectador formam um triângulo de quatro lados fingidores: ela finge que está à vontade, mas na verdade está preocupada; não quer que ele perceba a câmera debaixo da mesa. Ele finge que está à vontade, mas alguma coisa o incomoda: não sabe o que é; sente a desagradável sensação de estar sendo observado. E o espectador, que para melhor se divertir com a sensação agradável de observar, desde há muito tempo se acostumou a fingir que não está num cinema, finge tão completamente que finge que nem existe. Finge que é a câmera: espia como se estivesse escondido debaixo da mesa ao lado dos dois sabidos amantes que representam, um para o outro, o papel de ingênuos esquecidos.

Estimulado pelo grau de fingimento solicitado por tudo quanto é filme e pelo comportamento do casal em cena, o espectador desde cedo desconfia que a imagem aqui finge tanto quanto Virgínia e Marcelo. Enquanto mostra, ela encobre algo. E ao encobrir assim, mostrando, ela insinua algo do mesmo modo que sugere ou revela os outros cômodos do apartamento e a rua lá fora, ausências adivinhadas e presentes pelos muitos sinais visuais e sonoros que invadem o espaço visível. Na chegada de Marcelo, por exemplo, a ação propriamente dita se passa fora de nosso campo de visão enquanto a câmera insiste em permanecer em baixo da mesa, como se dali fosse possível ver o essencial para o perfeito entendimento da cena. Ou seja, a história começa quando Virgínia sai de quadro e deixa o espaço vazio. Começa se referindo a uma ação que não aparece imediatamente visível na imagem. Podemos ouvir, mas não vemos a chegada de Marcelo.

Este jogo faz do plano único que compõe o filme uma imagem múltipla. Ela é sempre a mesma e sempre diferente. A mesmice se altera bastante com a movimentação dos personagens: eles se aproximam, se afastam, chegam bem perto, aparecem de corpo inteiro ou quase desaparecem de cena, o que dá ao quadro desenhos bem diferentes a cada instante. Mas não vem daí a renovação disto que de fato é sempre a mesma coisa. O que de fato se movimenta e se renova é o olhar. A imagem única parece múltipla porque observada a partir de constantes mudanças no modo de ver. Primeiro ela é só o que materialmente é: o chão, o tapete, as almofadas, a parede à direita, a estante à esquerda, a porta, a sala, os dois personagens. Depois, passa a ser o que não é, os outros espaços do apartamento. Passa a ser não propriamente o que revela e sim o que encobre. Continua ali, mas não se interessa pelo que está ali – estimula o olhar a imaginar a cozinha, o banheiro, o corredor, os espaços em que se passa algo percebido só por ruídos e sombras. E finalmente, fachada que denuncia o interior que não se vê, esta mesma imagem passa a ser uma representação da conversa de Virgínia e Marcelo. Eles dizem algumas coisas para encobrir outras, mas de quando em quando se contradizem, representam mal, e desmontam esta espécie de camuflagem que usam para se proteger e se comunicar, para se esconder e se mostrar. Na realidade eles se mostram como são, gente que se esconde assim como a câmera esconde o resto da casa. Não sabemos o que a câmera esconde nem o que a conversa esconde. Ver, aqui, sugere que devemos ver o espaço diante dos olhos como incompleto, como fragmento, corte, máscara, escudo, representação, fingimento. Pedaço, sim, mas inteiro. A parte é o que melhor representa o todo. Ver cria uma tensão visual. O que vemos, desde o prólogo quando uma câmera de vídeo é escondida em baixo da mesa, não mostra: oculta. O que oculta é o que mostra. O que o espectador vê sugere que o que ele viu anteriormente talvez devesse ter sido visto de outro modo, de outro ângulo: algo se passou ao alcance dos olhos e ele não percebeu.

O cinema, a questão aqui aparece de modo bem claro, não é o que olhamos, é o olhar. Quem vê está consciente do ponto de vista de onde vê. Quem vê um filme recebe não um sentimento igual ao dos personagens que vivem a cena, mas sim o sentimento da pessoa que por trás da câmera torna a cena visível. Enquanto vê um filme o espectador não se limita a fazer um recenseamento dos objetos que compõem o cenário e dos gestos e palavras dos personagens. A ação na tela é uma projeção do olhar do realizador, ou do personagem através do qual ele narra a história. É um estímulo para o olhar do espectador. O cinema é bem este momento em que se cruzam os olhares da pessoa que fez o filme e da pessoa que vê o filme. La tarea revela e brinca com este mecanismo ao reduzir a câmera à caricatura de quem vê um filme: a câmera que Virgínia esconde em baixo da mesa é o espectador simultaneamente na platéia e na cena, imóvel, os olhos para cima. Aqui e ali ele perde parte do que acontece porque o paletó de Marcelo ou o sapato de Virgínia cobre a visão; mais ou menos assim como se um outro espectador tivesse entrado na metade da sessão e sentado na poltrona da frente. A cabeça grande que cobre um canto da tela não impede que continuemos a ver o filme passando por cima da mancha escura que apaga parte da imagem. A câmera é uma caricatura do espectador capaz de ver um filme até de olhos fechados, mas não se limita a ficar na platéia. Salta para a cena. Rouba a cena. Apesar de imóvel é a personagem que mais se movimenta em cena. Ela (ou ele, o espectador, o personagem que ela representa) é a verdadeira protagonista. E por isso, lá pela metade da história, quando a câmera de vídeo é descoberta por Marcelo – no chão, meio sem roupa, ele percebe a pequenina luz vermelha debaixo da mesa e dá um pulo para trás – é como se o espectador tivesse sido descoberto pelo filme. É como se lá da tela ele tivesse identificado o olho do espectador brilhando na platéia, pequenina luz vermelha no escuro, e recuasse envergonhado: “Estão nos olhando!”.

A história dá uma reviravolta. Marcelo (e com ele o espectador) passa a saber que estava sendo usado para um trabalho escolar, uma tarea, um dever de casa. Virgínia tinha que fazer um filme de uma imagem só para o curso de direção de cinema na universidade e decidira filmar o encontro, espécie de cinema verdade a partir de uma pequena mentira.

O novo rumo da história torna a imobilidade da câmera ainda mais divertida: a imagem que não muda, muda completamente. Muda o sentido de tudo o que o espectador viu até então, muda o que ele vê naquele instante: Marcelo, ofendido por ter sido usado para um filme quase pornográfico, agarra a câmera no chão e larga-a de qualquer jeito sobre a mesa, toda torta, pega suas roupas e se retira furioso. O quadro cuidadosamente arrumado se desarruma. Mas o que mudou muda de novo: sozinha em cena, Virgínia ajeita a câmera sobre a mesa e começa a falar para ela, a lamentar o quanto é desajeitada e torta na vida.

Com a descoberta da câmera descobre-se também uma nova cara dos personagens. A fúria de Marcelo não dura muito, o sofrimento passa logo. Virgínia nem terminara de se lamentar para a câmera, ele retorna. Finge, diz que esquecera algo, que viera só para buscar o que esquecera. Mas retoma a conversa naquele mesmo tom mole, de duplo sentido, de quem faz de conta que não sabe o que faz. Olha para a câmera, curioso, interessado. Diz que não gostaria de prejudicar o trabalho da ex-namorada e que por isso está pronto a aceitar a proposta. Entra no filme meio envaidecido. Afinal, entre inúmeras outras possibilidades, fora ele o namorado escolhido. Virgínia passa a se comportar algo mais solta e desinibida, e Marcelo, de ofendido por não ter sido previamente avisado a cheio de si com a escolha, passa a se exibir para a câmera, que ajuda a recolocar debaixo da mesa, na posição inicial. E então, os que fingiam inocência começam a fingir esperteza. Marcelo tenta representar o amante irresistível assim como se faz no cinema: cuida da aparência, controla os gestos com uma falsa e exagerada naturalidade, age para a câmera, mas pretende que ela não está ali debaixo da mesa. Virgínia também se preocupa com a câmera: disfarça a nudez porque está gorda, sugere um véu para suavizar a imagem. Ligam o monitor para controlar como vão aparecer no vídeo. Ela e ele querem aparecer bonitos e elegantes como artistas de cinema.

Não se trata aqui de levar adiante este resumo da história contada em La tarea como se pretendêssemos substituir o filme na tela por um amontoado de palavras no papel. Importa, isto sim, suge­rir o que na imagem – na imagem mesmo e não na história dentro dela –  prende a atenção do espectador.

O plano é fixo, a câmera não sai do lugar, mas muita coisa se movimenta dentro do quadro. Primeiro a luz. Depois o som. Luz e som que estão fora do espaço visível e colocam dentro da cena o que o quadro não vê. Alguma coisa se move na rua, ilumina a janela que não vemos, projeta sombras dentro do escritório que é tudo o que efetivamente vemos. Pequenos sinais, como uma rede, uma cortina, uma porta de correr, mais uns ruídos que vêm da direita ou da esquerda, definem a arquitetura do apartamento em volta do escritório: a sala ao fundo, cozinha e banheiro do lado direito, o corredor que leva ao quarto do lado esquerdo, a porta de entrada do lado direito, a janela que dá para a rua, que vemos apenas na imaginação. A ação fechada num espaço limitado, pequenino, está permanentemente se referindo a alguma coisa que acontece fora deste espaço. Incorpora ao imediatamente visível o que se encontra fora de quadro – da mesma forma que os diálogos mostram, no jeito de dizer, na pontuação, o que as palavras encobrem. Não importa quão precisas sejam estas informações: o que vale é saber que o que vemos e sabemos não é tudo o que importa.

Este plano imóvel e fechado revela uma das características mais vivas da imagem cinematográfica: o seu jeito de ser um lugar sem limites, o seu jeito de ser informação aberta para todos os lados, equilíbrio instável, recorte que chama a atenção para o fato de ser fragmento permanentemente invadido pelo que não está ali, mas que apesar de longe dos olhos está perto da ação. Todos os filmes, e este aqui mais do que todos, não são só o que o espectador efetivamente vê. São também, e principalmente, o que o espectador afetivamente vê. A imagem se movimenta mesmo quando parada. Quando Marcelo dá um empurrão na câmera e entorta o quadro torna mais evidente algo percebido desde muito antes de ficarmos sabendo por que a câmera está escondida em baixo da mesa: o desenho do quadro é mais importante que os personagens dentro dele.

O espectador vê as imagens da primeira metade de La tarea interessado em saber por que vê daquele especial ponto de vista do qual ele é duplamente cúmplice: cúmplice porque viu no prólogo a câmera colocada ali e cúmplice porque está acostumado a ver tudo quanto é filme daquele mesmo ponto de vista. No cinema, não importa saber se existem outras pessoas ao lado, o espectador se sente sozinho; sozinho e no escuro como se observasse às escondidas, como se olhasse de baixo para cima; de baixo para cima ou porque a tela está lá no alto ou porque tem dimensões enormes; de baixo para cima porque um filme, enquanto passa na tela, parece maior que a vida e mantém o espectador tão agarrado no chão e tão inclinado para cima quanto a câmera de vídeo que Virgínia escondeu debaixo da mesa. Na platéia, em qualquer platéia de cinema, estamos como no chão, no escuro, debaixo da mesa, vendo o filme que se passa lá em cima.

Repetir, como estamos fazendo aqui, que a câmera está na platéia, no lugar do espectador, e que este está na cena, no lugar da câmera, coloca a questão no papel tal como o filme a coloca na tela. Este artifício de composição é tão comum na dramaturgia cinematográfica mais amplamente divulgada que já nem é percebido como um artifício, e a insistência em mostrá-lo, mantendo a câmera imóvel ou girando o texto em torno dele, permite analisar o efeito mais comumente obtido com o fingimento de que a câmera é uma extensão natural do olho humano: o cinema parece, então, um fato tão natural quanto a visão. O público de cinema discute com freqüência com os personagens em cena, mas raramente com o ponto de vista de onde os personagens são vistos porque está convencido de que a câmera vê sempre do ponto de vista correto, e por isso natural.

La tarea tem uma estrutura de composição apoiada bem no limite entre a visão mais natural e objetiva possível (a que permanece quieta, neutra, a que não interfere na ação) e a mais antinatural possível (a imobilidade que recusa o trabalho de seleção e montagem que o olho humano, atraído por uma forma, cor ou movimento, faz diante de qualquer cena real). Esta solução parece resultar, ao mesmo tempo, de uma preocupação expressiva – questionar a posição do espectador – e de uma preocupação econômica, a busca de um esquema capaz de garantir, pela rapidez de execução e pelo custo reduzido de produção, a realização de filmes com regularidade em sociedades como as nossas, condicionadas, pelo subdesenvolvimento, a existir imobilizadas, como espectadoras dos produtos dos grandes centros industriais.

O filme foi completado em apenas três semanas: “El rodaje en sí fueron cinco dias. Hubo una semana de ensayos previos, pero con cámara y negativo fueron cinco dias de trabajo“, contou Hermosillo em entrevista a Nelson Carro para a revista mexicana Dicine. O diretor repetia então a solução usada pouco antes em Intimidades en un cuarto de baño,(1989) que narra, também com a câmera fixa numa única posição  – por trás do espelho do banheiro do apartamento de uma família de classe média –  a história de dois casais: um mais velho, um mais jovem, um espelhando o outro, o primeiro uma visão antecipada do futuro do segundo. O texto e os movimentos da cena foram cuidadosamente estudados antes do início da filmagem, e assim o registro das cenas pode ser feito em apenas quatro dias: “El plan de trabajo era para cinco dias y lo hicimos en cuatro; el equipo se alquiló por una semana y se regresó incluso un día antes de lo que se habia previsto. Practicamente filmamos uno a uno; gastamos menos de diez mil pies de material. Todavia nos sobró negativo para los créditos“.

O plano único, solução de linguagem e de produção, é também uma transcrição para o cinema de agora de uma tradição narrativa popular que vem se expressando entre os mexicanos desde sempre através da novela de rádio, da música que chora infelicidades amorosas, da dramaticidade e das grandes dimensões da pintura mural e do cinema de grandes rasgos dramáticos feito em estúdios para melhor situar seus personagens num espaço ideal, de sonho, de ficção melodramática. O hábito de trabalhar em cenários artificiais, que durante os anos 60 e 70 deu aos filmes mexicanos uma forma particular no quadro do Novo Cinema Latino Americano (então principalmente feito em exteriores, com a câmera na mão e um tom de documentário), o hábito de trabalhar em estúdios uma estrutura melodramática, é um dos pontos de partida de La tarea. O filme de Hermosillo brinca com a tradição, propõe uma transcrição crítica, ri do sofrimento dos personagens, revela a comicidade do fingido melodrama que eles representam para si mesmos. E ao rir do que os personagens vivem a sério, o filme coloca o espectador ainda mais dentro da cena, parte integrante e central dela, personagem principal. O que de fato se traduz na imobilidade da câmera é o sentimento de quem vê um melodrama: uma sensação de que nenhuma ação é possível, porque uma qualquer lógica vizinha da tragédia comanda o sofrimento dos personagens e porque o sofrimento na tela não provoca mais sofrimento no espectador. O espectador não sofre: finge que sofre; olha, vê, presencia. Finge sentir que é dor o prazer que deveras sente. Sai da projeção mais leve, pois no espaço mágico do filme os heróis já sofreram tudo por ele.

Convém repetir uma vez mais: o verdadeiro protagonista de La tarea não é propriamente a câmera que Virgínia esconde por baixo da mesa, mas o personagem que ela representa em cena, o espectador. E a imobilidade da câmera de vídeo representa não propriamente a atitude do espectador naquele instante em que, meio acordado meio dormindo, vê o filme. Representa o sentimento. Ele é um olhar que sente. Não se identifica com os personagens na cena, não sofre o mesmo que eles. O espectador de fato se identifica é com o ponto de vista de onde foi feita a imagem.

Nesta brincadeira que se refere ao melodrama do cinema mexicano dos anos 40 e 50, a câmera observa a lição dos espectadores e os atores observam a lição dos heróis daquele período, que como deuses vieram ao nosso mundo para sofrer ao extremo e assim nos livrar de todo o mal. Não por acaso a história se encerra com uma grande fotografia de Pedro Armendáriz: Quando Marcelo, que não se chamava Marcelo, e Virgínia, que não se chamava Virgínia, param de fingir de todo (ou pelo menos assim parece) e fecham a porta do escritório, até então aberta, revelam o grande cartaz em preto e branco com a imagem do ator tantas vezes usado para figurar o herói típico dos melodramas mexicanos. Fecha-se ainda mais o espaço físico, o cenário fica ainda menor, abre-se ainda mais o espaço da representação. Uma última e decisiva informação sugere para o espectador que o que ele de fato viu não foi nada daquilo que pensou que estava vendo. Marcelo e Virgínia são de fato José Partida e Maria Partida, um casal, o marido tentando ajudar a mulher a preparar um dever de casa, a mulher tentando terminar o trabalho antes da chegada dos filhos. O marido, interessado em experimentar o dever de casa com outra mulher, diz que deveriam repetir tudo com uma atriz de verdade, pois assim ele poderia atuar melhor. A mulher, interessada em ampliar o tempo para suas reflexões no meio e no final da história, também pensa em filmar tudo de novo, porque ele voltara muito rápido e ela nem teve tempo de dizer todo seu texto depois da “descoberta” da câmera. E no final, as crianças chegaram antes do previsto e atrapalharam tudo. Nem tudo saiu como previsto, mas marido e mulher se divertem ao imaginar que este dever de casa poderia ser refeito e apresentado como um filme pornográfico, para tentar salvar o casamento do tédio e melhorar a economia da família Partida.

Con los actores yo hacía el comentario de quel subtítulo de La tarea, o de cómo la pornografía salvo del tedio y mejoró la economía de la familia Partida, en realidad era una broma. Porque no consideraba pornografía lo que estaban haciendo“, explicou Hermosillo na entrevista a Nelson Carro. “En realidad, el subtitulo real debía ser: La tarea o de cómo la creatividad salvo del tedio y mejoró la economía de la familia Partida. Porque la pareja que se muestra en la película es una pareja con la cual la instituición matrimonial con todas sus pretenciones de fidelidad, etcétera, etcétera, lleva obligadamemte al aburrimiento marital. Y entonces, una de las salidas puede ser jugar con un video, para hacerse la ilusión de que son otros. Algo que hacen muchas parejas, a veces no grabándose en video, pero si encontrándose en la calle y yéndose a un hotel como si no se conocieran. Esas fantasías son muy comunes. En el caso de La tarea, como ambos tienen inquietudes artísticas, ella como realizadora y él porque deveras le atrae la cosa de la actuación, encuentran a través de su trabajo una salida a esa rutina sexual y matrimonial“.

O espectador talvez tivesse observado de outro modo detalhes que passaram como coisa de pouca importância se conhecesse de antemão o que só se revela no final. Muda tudo quando se revela o mecanismo da representação. O que o espectador viu como certo estava errado. Mas ele não se enganou nem foi enganado. Sabia desde o começo (fingia esquecer, mas sabia) que estava diante de uma representação onde o divertido é não saber de nada com um jeito de quem sabe de tudo. Revelação feita, terminada a projeção, é como se o filme começasse de novo. O prazer de presenciar o espetáculo se renova na análise da coisa vista. Desloca-se a atenção da câmera para os atores que contracenaram com e para ela. Para serem fiéis aos seus personagens, um homem e uma mulher que fingem que são outros, os atores vivem uma representação dupla: cada um deles representa para o outro, José faz de conta que é Marcelo, Maria que é Virgínia; os dois representam para a câmera – e de quando em quando os atores fazem como se estivessem interpretando mal, como se fossem maus atores: como se José tivesse errado um gesto de seu Marcelo e Maria um diálogo de sua Virgínia. O erro é a melhor maneira de mostrar o casal que faz o dever de casa: revela a representação enquanto tal, mexe uma outra vez com o olhar do espectador: o que ele viu como errado estava certo, porque os atores do filme de Hermosillo fingiam que não sabiam representar o filme que José e Maria estavam fazendo sobre o casal de namorados Marcelo e Virgínia.

Esta reflexão em torno do espectador a partir do modelo de relação estabelecida entre o público e o melodrama (melhor: todo o cinema que trabalha a tradição do melodrama) apenas se esboça em La tarea. Quando o espectador imagina que já viu tudo, quando está ainda reorganizando as imagens na memória, a questão se reabre e se amplia em La tarea prohibida (1992). E aqui resumir o que se passa deixa o espectador ainda mais desconfiado. Primeiro vem a sensação de que se trata da repetição de uma fórmula de produção que deu certo e foi bem recebida: no terraço de uma casa, um jovem se ajeita para receber uma visita e esconde uma câmera de vídeo por trás da pequenina janela de um cômodo que serve de armário ou depósito. Liga a câmera, ajusta a zoom para enquadrar todo o terraço, verifica se os microfones funcionam e grava um teste para se certificar de que está tudo pronto. A visita chega. É uma atriz mais velha, há algum tempo afastada do teatro e do cinema. Vem ajudá-lo a fazer um dever de casa para o seu curso de cinema – um filme de um plano só. E a história surge mais ou menos como a de Virgínia e Marcelo com os papéis invertidos, ou seja, começa uma conversa fingida, e não demora muito para que comecemos a desconfiar que o fingimento é um jogo de conquista. O jovem estudante de cinema tenta reconquistar a atriz exatamente assim como a Virgínia do primeiro dever de casa fez para seduzir o antigo namorado: se mostra frágil e desajeitado. E a atriz recusa e consente, comanda e ao mesmo tempo se deixa comandar, ameaça ir embora  mas se deixa ficar, assim como Marcelo no filme anterior. As semelhanças entre as duas tareas são muitas e evidentemente intencionais, porque também aqui se discute o olhar do espectador a partir de uma relação familiar. Por isso o verdadeiro ponto comum entre estes dois filmes não está no que primeiro aparece, na semelhança da ação, mas no idêntico modo de ver, no olhar sugerido pela ação, no deslocamento da atenção do drama imediatamente visível no terraço para aquele outro, mais forte, que se estabelece na relação entre o olhar do espectador e a cena em que ele vê.

La tarea prohibida conta com o conhecimento do filme anterior, ou pelo menos por filmes de narrativa melodramática, e se encontra, por isso, em posição mais cômoda para seguir a história assim como ela se apresenta  – conhecida, igual, fácil de seguir, familiar aos olhos. No primeiro filme a câmera permanecia imóvel. Agora a história é que não se mexe, que aparentemente repete o mesmo conflito como se escrita como referência direta ou espelho da anterior. No instante em que, por exemplo, a atriz propõe ao jovem realizador uma grande coberta de plástico semitransparente para suavizar a nudez na cena de sexo é impossível deixar de pensar na sugestão de Virgínia para suavizar a cena de sexo em La tarea, cobrir a câmera com um véu. Mas uma outra vez o realizador faz um filme onde nada é assim como parece.

O prólogo que coloca em destaque toda a aparelhagem cinematográfica antes da filmagem do plano inicial – os atores, o diretor e os técnicos se espalham pelo cenário, e quando está tudo pronto se retiram para que o filme comece. O espectador não é mais apenas o que espia escondido por trás do visor do vídeo: vê através dos olhos de toda a gente de cinema, da equipe e do público do melodrama, público habitualmente à vontade diante de uma câmera que repete com diferentes imagens uma história parecida com outra contada anteriormente. E o epílogo, mais longo que o do primeiro dever de casa, impõe um redimensionamento mais profundo da coisa vista. Do tom de brincadeira sobre o melodrama saltamos bruscamente para uma solução melodramática.

A partir do instante em que, como no filme anterior, o espaço fechado da representação é invadido por personagens alheios à cena, o espectador percebe que não está, e aqui nunca esteve, no centro da ação, mas o fingimento neste caso não é uma ilusão de ótica dirigida apenas para ele, para brincar com sua condição de indivíduo que espia. O fingimento aqui é o único comportamento possível para os personagens. Só através do fingimento eles podem dizer o que de verdade querem dizer um ao outro. E para ser realmente verdadeiro e sincero, o fingimento, aqui, precisa ser mal fingido.

É bastante provável que em alguns momentos desta segunda tarea o espectador se sinta inquieto diante de soluções na aparência francamente simplórias: por que tanto interesse na canção de amor que o jovem estudante de cinema canta com uma voz desafinada para tentar conquistar a atriz mais velha que ele? Por que a câmera se aproxima do rosto deste cantor desajeitado como se quisesse produzir imagem igual à que num antigo musical de Hollywood se conseguia com um cantor de verdade, ou dublando com uma boa voz o rosto do ator? Por que, se nem o rosto nem a voz do ator parecem especialmente expressivos para garantir o tempo da imagem? E por que, ao fazer a atriz mais velha diante do quase garoto que canta desajeitadamente, a intérprete fixa o olhar no rosto do jovem ainda mais carinhosa e atenta que a câmera? E, sobretudo, por que uma vez terminada a canção começa logo em seguida um novo número musical? Por que repetir uma cena que não tem coreografia nem musicalidade elaborada?

Até que terminada a projeção seja possível reorganizar o filme na memória as respostas a estas perguntas parecem imediatas: os intérpretes perderam o pé, o diretor perdeu a cabeça.

Só quando conta com todos os dados à mão é que o espectador percebe que na verdade viu duas pessoas fingindo sentir o que de verdade sentiam: a atriz mais velha e o estudante de cinema eram de verdade mãe e filho. Ela uma antiga atriz mesmo. Ele um estudante de cinema mesmo, precisando da ajuda da mãe para fazer um dever de casa, um filme de uma imagem só. No filme ela deveria fingir que era o que de fato é, uma atriz que abandonou o teatro e o cinema para se dedicar à família. Ele deveria fingir que era o que de fato é, um estudante de cinema apaixonado pela velha atriz. A história do filme dever de casa, um estudante de cinema apaixonado pela atriz, fingia a verdade, o filho apaixonado pela mãe. A filmagem foi o meio de expressar a paixão incestuosa através de um mecanismo capaz de ser aceito pelas censuras de mãe e filho: um e outro fingem que estão fingindo. E duplamente: fingem que estão fingindo um para o outro e que estão fingindo para a câmera, para o espectador – agora não mais um observador imóvel, ponto de vista precisamente identificado, mas sim espectador coletivo, múltiplo, cheio de olhos que cercam mãe e filho com uma ameaça de condenação e impõem o fingimento.

O que mãe e filho fingem no terraço se interrompe bruscamente quando o fingimento escapa do controle pouco antes da chegada do pai e da filha mais nova, que haviam saído a passeio. Começa então um outro fingimento, a mulher pretendendo que está tudo bem enquanto prepara nervosa o jantar para o marido e a filha  – ação narrada em poucas imagens, tensas, quase sem ação e sem diálogos, espécie de entreato feito só para os olhos. Entreato, porque o trecho final de La tarea prohibida age como uma pausa que prepara o segundo ato do filme, uma reorganização das imagens vistas até então que começa na cabeça do espectador tão logo termina o se passa na tela. Repete-se o mecanismo do primeiro dever de casa, mas com maior intensidade. E possivelmente o que primeiro se acende na memória é o filme realizado entre as duas tareasEncuentro inEsperado (1993), título que se desenha na tela bem assim, para funcionar como imagem ambígua, para sugerir logo que o inesperado do encontro era só um fingimento.

Também aqui a ação se passa num único cenário e entre duas personagens fingidoras: uma atriz de cinema e uma arrumadeira – mãe e filha. Uma finge que é ainda a estrela famosa de tempos atrás, a outra finge que é uma arrumadeira para reencontrar a mãe que a abandonou quando ela era ainda uma recém-nascida e jamais quis saber dela. Este primeiro fingimento logo se desmonta para dar lugar a um outro mais complexo: a mãe diz que nunca teve filha alguma, embora admita ter tido um amante com o mesmo nome do pai da arrumadeira; a filha diz que não se interessa pelo reconhecimento da mãe, quer apenas que ela vá ver o pai muito doente. A conversa tensa aqui é seguida por um olhar que se mexe quase todo o tempo em movimentos laterais por dentro da casa, com a imagem em formato longo, horizontal, acentuando a horizontalidade do cenário, a cama no quarto, os sofás na sala e as cadeiras esticadas em torno da piscina, e mantendo mãe e filha quase todo o tempo dentro do quadro numa mesma imagem, a mãe fingindo que não vê a filha, a filha fingindo que só tem olhos para o pai que deixou em casa. É possível que a estrutura dramática da segunda tarea tenha nascido aqui – mais precisamente, que as duas estruturas tenham nascidas de um mesmo impulso comum, a construção da imagem como um espaço meio-armadilha, meio-gaiola, meio-prisão aberta onde os personagens se debatem e não sabem como escapar. Mãe e filha que se odeiam como introdução para mãe e filho que se amam e como continuação da família Partida que pensa em sair do tédio pela pornografia.

Três filmes que fazem-de-conta que se interessam só pelo pequeno melodrama familiar que ocupa a imagem para estimular o imaginário a perceber melhor o que pressiona certos fingimentos sociais. Talvez, diante deles, enquanto finge ver apenas um melodrama como qualquer outro, meio distante do seu cotidiano, o espectador perceba sem dificuldade a presença de uma série de sinais que invadem a cena para sugerir que a sociedade se relaciona com seus filhos deste mesmo modo, incestuosamente. Talvez enquanto finge que vê só os fingimentos como se eles não fingissem nada, o espectador perceba em silêncio o exagero gritado do melodrama como um meio de dizer, através de um artifício aceito pela censura social, o que, em nome da mãe pátria e de uma união fraterna, o subdesenvolvimento exige de seus filhos.

* * *

Nenhum filme de Jaime Humberto Hermosillo chegou a ser exibido no Brasil. Nem estes três citados aqui, nem quaisquer outros dos muitos que ele realizou antes e depois desta trilogia. Discutir, como proposto aqui, três filmes que o espectador brasileiro não conhece, e dedicar a estes filmes não exibidos uma discussão um pouco mais longa, é um modo de revelar a relação que estabelecemos com o cinema dos outros países latino-americanos, a partir do que o mercado audiovisual nos impõe sob o fingimento de que segue o exemplo do mundo desenvolvido e procura fazer bem a lição de casa.

*José Carlos Avellar é crítico de cinema, colaborador das revistas CinemaisEl ojo que piensahttp://www.elojoquepiensa.udg.mx/espanol/ . Tem ensaios publicados em livros como: The cinema of Latin America, organização de Alberto Elena (Wallflower Press); Anos 70, ainda sob a tempestade (Ed. Aeroplano) e Framing Latin American cinema, organização de Aan Marie Stock (University of Minnesota Press). É autor, entre outros, de A ponte clandestina, teorias de cinemas na América Latina (Ed. 34/USP) e Deus e o diabo na terra do sol (Ed. Rocco).

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O artista em meio à arte e o indivíduo: trilhas periféricas no imaginário brasileiro | de Rosza W. vel Zoladz

O indivíduo ancorado ao grupo social, às instituições por meio da arte

Ao criar um círculo aconchegante para a vida concreta, o segredo ancora numa das características da existência social, ou seja, incorpora o indivíduo aos grupos, à vida organizada, e assim por diante.

O meu irmão por exemplo que é cientista e mora em Paris, é astrofísico – conta Tiziana.  Ele dizia: “Quando eu tomo banho e sinto aquelas gotinhas de água caírem, aí me vêem as idéias.”  Eu tenho a impressão que é isso, que o artista é um pouco diferente, porque se abstrai mais da vida de cada dia.  Mas hoje…  Hoje é o caos (TIZIANA BONAZZOLA, 84 anos, artista plástica, professora de arte da Escolinha de Arte do Brasil).

A presença de Tiziana nas artes plásticas no Brasil desde 1949, no Rio de Janeiro, é bem expressa no que caracteriza como específico à artista: “Os temas são sempre assim. Ligados ao amor pela natureza ou ligados ao amor pelo trabalho.”

É nessa “oscilação” que o artista mantém uma relação amorosa e, mais que isso, do que pude observar em diferentes exposições que Tiziana realizou no Rio de Janeiro: são facetas lúdicas, embebidas, por vezes, numa atmosfera onírica, como pode ser constatada no quadro “Os meninos da rua Uruguai”.  É o que poderia ser dito desse quadro, que tem a presença do que Tacussel diz ser uma espécie de poesia sem escritas[1] .  Segundo o sociólogo, teríamos enormes dificuldades de apreendê-la com a ajuda de instrumentos estatísticos.  Acrescento aí instrumentos convencionais que precisam, no entanto, ser motivo de credibilidade, como é o fazer fé[2] naquilo que se afirma e que encobre a luta pelo monopólio da legitimidade em nome da qual ele é travado[3] .  Num empenho parecido com o do arqueólogo, a autora mostra o que Howard Becker denomina de mundo das artes, respondendo ao que este sociólogo indaga: Quem é e artista? Qual é sua identidade?.  Mas há também enfoques políticos que precisam ser mostrados, como resultantes do exercício de uma liderança no meio da categoria artista, aqui especialmente considerada:

Olha, eu acho que o artista é o que tem mais consciência, aquele que tem o sentimento ou a consciência do vazio.  Quer dizer, parece-me que o artista vive esta situação.  Ela, na verdade, conflita no artista a necessidade de preencher espaços afetivos e de organizar esse afeto.  Então, eu acho que à medida em que o não artista se identifica com o artista este, sim, tem consciência de que existe um grande vazio, que se pode atribuir a varias coisas.  Inclusive o vazio que se dá no intervalo da relação entre você e você mesmo.  É o artista que os aproxima.  Isso me parece que é a coisa mais interessante na arte.  Então, artista me parece é o que administra afeto (LUIZ ÁQUILA, 62 anos, artista plástico, ex-diretor da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, RJ).

Essa correspondência entre as características mediadoras do artista, que se estabelecem no plano de sua função social, está no princípio que Antonio Gramsci diz ser sinalizador do que é esperado do artista.  Isso parece ser tão verdadeiro, que vale a pena ouvir um pouco mais sobre essa função social do artista[4] .

Isso é uma questão que está permanentemente em discussão até hoje.  O artista tem um papel fundamental na sociedade, ele tem que captar tudo o que está no ar, ele tem que corresponder ao seu tempo e traduzir isso tudo pela linguagem das artes plásticas, traduzir em novas formas, gerar reflexões  (LICIUS BOSSOLAN, 34 anos, bacharel em pintura pela EBA/UFRJ.  Mestrando do PPGAV-EBA/UFRJ – Linha de Pesquisa Estudos da Imagem e das Representações Culturais).

Mas o curioso é que a questão da mediação que cabe ao artista, tem conotações políticas, movidas por algo como a afeição que se irradia do fazer artístico aparentemente não servindo para nada.  É o que Jean Duvignaud sugere:  o que não serve para nada é que deve ser motivo de atenções [5] .

A afeição, como algo sem peso em nossos dias, num mundo de coisas que enaltecem cegamente o progresso, os resultados e a objetividade exacerbada, é considerada e se aproxima muito do que Simmel[6] compreende como função política do amor.  Com isso, quer dizer que há conotações políticas nela, como as distribuições de direitos que essas conotações englobam.  Simmel não tratou especialmente da afeição, mas tratou de algo que lhe é bem próximo, como o amor.  É evidente que aí cabe uma observação quanto ao que foi por ele considerado primordial nesta categoria.  Faz dela uma categoria primordial, porque não tem nenhum outro fundamento, além de si mesmo.  Ela é precisamente isso, porque determina o objeto na totalidade de ser último, e nada como tal, na ausência de toda existência prévia.  Como repercussão desses dados concretos, o que daí decorre e o que se tem é no nível da coesão – e a vida social depende disso, conforme Simmel [7] , dá-se uma espécie de sintaxe diagonal que ondula os movimentos, sempre difíceis de acompanhar nas suas formas sinuosas.  Nelas se dá a participação social e, nem por isso, deixando de se mostrar diversificada e rica.

É evidente que aí cabe uma observação.  O que se tem e o que se observa e que se torna muito útil entender o que Rancière denomina exemplarmente de A partilha do sensível [8] que dá título ao seu livro.  Ali é proposta uma espécie de deslocamento de uma discussão, colocando-a fora do lugar habitual, em que a arte é geralmente despolitizada.  Para Rancière, torna-se importante pensar a articulação que deve se dar com as maneiras de fazer arte, as formas em que se manifesta a visibilidade dessas maneiras e suas relações.  A noção de fábrica do sensível, enunciada por Rancière, é entendida primeiramente pelo entrelaçamento de uma pluralidade de atividades humanas.  A idéia de “partilha” do sensível implica algo mais.  Diz ele que um mundo comum não é nunca simplesmente o ethos, a estada comum, que resulta da sedimentação de um determinado número de atos entrelaçados.  Ao tratar do artista e seus envolvimentos com a política, coloca-se, para Rancière, a questão da relação entre o lado ordinário do trabalho e a “excepcionalidade” artística.  Não é só isso:  Platão, em sua República, mostra para nós o quanto é perniciosa a divisão de trabalho que o levou a excluir os artesãos do todo espaço político comum.  Para ele, o fazedor da mímesis (recriador da realidade) é, por definição, um ser duplo.  Ele faz duas coisas ao mesmo tempo, quando o princípio de uma sociedade bem organizada, segundo Platão, é que cada um faça apenas uma só coisa, aquela à qual sua “natureza” o destina.  Por aí se vê, conforme Rancière (id., p. 64), que a idéia do trabalho está vinculada à política, como deu para observar no mito de Midas, em que o desempenho de um papel diversificado para um rei somente poderia ser uma atividade determinada e, por isso, Midas é impedido de ultrapassar o que se esperava dele:  os direitos ao exercício de um papel já estão como que prescritos para o rei e o as you like it não lhe era dado experimentar.

Nesse ponto, detemo-nos um pouco mais nos aspectos políticos que estão embutidos na formação do artista.

O que é um artista?  Eu tenho a impressão.  Eu vou improvisar.  Ele coloca socialmente solicitações que não estão no horizonte do possível, do imediato, do pensável.  E é uma produção um tanto insólita, vinda, portanto, de uma pessoa que tem um nível de ligação concreta com essa sociedade.  A produção dele tem a ver com a sociedade.  Quer dizer, o artista hoje em dia participa, emerge da sociedade.  Ontem mesmo estava vendo um programa, por incrível que pareça na TV Câmara?.  Domingo à tarde.  Era um DVD que foi lançado pela Gravadora Biscoito Fino.  Acho que são cinqüenta anos de comemoração de Carlos Lyra.  E eu fiquei espantado porque a gente não se dá conta, mas com quinze anos ele já fazia as suas composições com Tom Jobim.  Eu acho que essa precocidade mostra essa natural tendência do artista.  É uma singularidade qualquer na personalidade.  Eu acho que, em música popular, isso se manifesta, então, muito espontaneamente.  No caso específico das artes plásticas, é a mesma coisa.  O professor, uma escola, uma instituição podem promover um contato do aluno com a cultura das artes plásticas.  Quer dizer com a tradição, com a cultura no sentido do debate que o precede  (CARLOS ZILIO, 61 anos.  Artista plástico.  Doutor em Artes Plásticas pela Université de Paris.  Professor de Pintura no Curso de Graduação e na Pós-Graduação em Artes Visuais da EBA/UFRJ – Área  Linguagens Visuais).

Nada mais político do que esse debate proposto pelo artista plástico, pesquisador e professor que, ao tempo da ditadura militar, amargou a prisão e guardou pratos nos quais lhe eram servidas “refeições” para serem transformados em suportes sobre os quais fez pinturas.   Esses pratos foram mostrados no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ) na exposição que realizou no ano de 2002.  O que é preciso aí explicar é o autoritarismo daquele período que vinha junto com a intolerância, o menosprezo aos intelectuais, artistas.  Não há como não reconhecer no procedimento do Zílio um vigor enorme, movido pela esperança de futuro, em que aquelas “circunstâncias” certamente não se perpetuariam.  Na sua mais recente exposição (2005), que se deu no Paço Imperial (RJ), chamaram a minha atenção os trabalhos que realizou, tendo como suporte a pouca valorizada folha de papel.  Utilizou-se de grandes dimensões desse material.  O efeito extraordinário desse ato político mostra-se mais claramente no que o artista continua dizendo, em resposta ao que assinalei como contribuições, que deu e continua dando na Escola de Belas Artes no plano político.

É pelo menos ali no âmbito da EBA que vejo isso, porque fui dar aula de pintura na graduação.  Vejo como eles estão muito mobilizados, quer dizer, vêem que ali existe, na pós-graduação, um terreno que os inquieta.  Provoca-os.  Eu acho que isso foi positivo (Idem).

O termo inquietação tem, evidentemente, um sentido enorme no que tange aos aspectos políticos da formação do artista, que se deve ocupar deles para a aquisição de consciência  (conhecimento – cum nacer) que perpetua e renova, e isso se dá implicando poder (cum).  É oportuno citar o artista plástico Augusto Rodrigues, idealizador da Escolinha de Arte do Brasil, que me fez a sugestão de criar um Centro de Inquietação [9] .  Uma proposição dessa natureza deriva, obviamente, da longa e ininterrupta convivência que teve com artistas, críticos de arte, intelectuais, chefes de Estado, professores, artistas populares.  No caso de Augusto Rodrigues, é preciso dizer que a sua atuação como artista plástico, caricaturista, pedagogo, deu-se, não só no Brasil, mas também na América Latina, por meio de exposições e conferências de que participou na Argentina, no Chile e no Paraguai.

Também conviveu com estudantes, educadores e artistas que eram das regiões sul-americanas e procuraram a Escolinha de Arte do Brasil para seguir cursos ou unicamente visitá-lo.  Foi também contemplado com o Prêmio de Viagem ao Exterior no Salão de Arte Moderna em 1954.  Com esse prêmio pôde participar da Sessão Inaugural da INSEA (International Society for Education Through Art) na Unesco, em Paris, que teve repercussões no desenvolvimento do seu projeto no Rio de Janeiro, no Recife (PE) e na Argentina.

É preciso dizer que as observações que Augusto Rodrigues tecia não se fundamentam em algum embasamento teórico, ainda que admirasse as idéias do crítico de arte inglês Herbert Read e do educador Anísio Teixeira.  A sua vivência, a experiência com a arte, com a educação, serviam de seta para as reflexões que fazia.  Essa vivência, embebida num grande envolvimento emocional com o que se referisse à arte, à educação artística, transparece também no que o artista plástico Luiz Áquila diz a esse respeito, no plano político:

Quer dizer, o que eu vejo na minha própria experiência, e é uma experiência empírica, não tem nenhuma base teórica para ser mais exato.  Mas o que me parece é que as escolas reúnem as pessoas.  Reúnem essa pessoas que encasquetaram, resolveram que vão ser artistas e vão lidar com esse   mundo tão movediço como é o das artes plásticas.  Eu acho que existe o artista.  Então, uma boa escola de artes (…) é aquela que possibilita o maior número de encontros possíveis.  Quer dizer, eu acho que a escola mais produtiva, que eu conheço é a do Parque Lage (RJ), que é, na verdade, uma extensão das experiências do Museu de Arte Moderna (MAM). Os professores do Parque Lage, os que valorizam mais o Parque Lage em geral, tinham sido alunos do MAM, pessoal da minha geração.  Então, acho que essa experiência do MAM, passou a ser uma escola mais solta e mais boêmia, no sentido assim do fazer.  A escola foi muito bem instituída por Rubens Gerchhman. Décio Pignatari, que foi muito corajoso, rompendo com a tradição que havia.  Ainda era o período da ditadura militar, quer dizer a Escola do Parque Lage tinha um sentido catárquico de encontro.  Nesse sentido catárquico constitui-se o que é a Escola do Parque Lage que vai até hoje.

A complexidade das coisas, dos procedimentos que atuam na construção do que se denomina de formação do artista, pode ser também vista num contexto formal de ensino da arte:

Respeito o autodidata;  o artista sempre traz suas vivências, todos têm que ser respeitados.  Traduzem sua linguagem de forma própria os que se inserem num circuito profissional.  A academia, por sua vez, é uma instituição para gerar conhecimento;  o que a gente tem aqui é muito bom, é uma troca, e a gente aprende a reverter isso para a sociedade de forma consciente.  O acadêmico tem a vivência e mais a cultura e uma visão lúcida de seu papel como profissional  (LICIUS BOSSOLAN, Mestre em Artes  Visuais do PPGAV – EBA – UFRJ, Linha de Pesquisa Imagem e Cultura).

Entre o encontro informal fora da sala de aula e o que se dá, sustentando uma relação formal entre aluno e professor, dá-se um fato curioso e que parece peculiar às escolas de arte.  Do que pude observar, as peculiaridades de cada uma dessas instâncias dão-se no nível do que têm como projeto.  Na Escola de Belas Artes da UFRJ, na qual trabalhei ao longo de quase vinte anos, é justamente a distinção de propostas profissionalizantes, que tem como compromisso o preparo que é exigido ao atendimento das solicitações advindas do mercado de trabalho.  Não nos iludamos:  em ambos os contextos visões do mundo, idéias, valores perpassam o que se ensina e o que o aluno deixa de ver no que aprende ou faz.  Isso se dá e aparece  em qualquer instituição integrante de uma sociedade diversificada, complexa, que tem objetivos de fornecer quadros para as especializações.  Essa é uma das características sociais do Brasil e nada impede que o artista tenha um desempenho de seu papel mais bem preparado.  Está bem distante a aceitação do que Goethe disse como peculiar ao artista, ou seja, ele faz e não fala.

Evidentemente, o ingrediente político que passa por aí é bem visível e, hoje, a complexa configuração da vida social, os inter-relacionamentos entre múltiplos contextos que caracterizam a existência coletiva serão refletidos e, ao mesmo tempo, reflexos desse quadro de coisas nas obras do qual o artista é autor. Se bem que existam obras que são bem mais interessantes do que os seus autores…

Isso se dá no plano local das artes plásticas, e aí se chega a um ponto que retoma a ênfase do lado político da arte que afeta o Brasil, cada vez mais interdependente da internacionalização crescente do mundo da arte [10] .  Mas nem tudo está perdido, e podemos vislumbrar uma dimensão capaz de ser generalizada:

Partindo de um nada a expressar.  O desejo de expressar.  A partir de um não saber, a criação de um saber que vai se construindo, de um pensamento que vai se articulando.  A partir também de um diálogo com o trabalho, um pensamento que vai andar na entrelinha do que se conseguiu e do que não se conseguiu, do que foi possível criar e do que não foi possível criar.  Entre o que foi feito e o que resta a fazer, entre o que se desejava fazer e o que foi realmente criado.  Aí surge o caminho do novo trabalho (LENA BERGSTEIN, 59 anos, artista plástica)

As coisas apontadas por Lena não são tão simples.  O que quer dizer trabalho – relação com o mercado, com a criação – nos dias atuais depara-se com uma nova ordem capitalista, ainda que contenha suas dimensões anteriores num novo mundo globalizado.      Observa-se, segundo o sociólogo, o novo complexo de reestruturação produtiva no Brasil, no qual há a tendência de desenvolver uma radical precarização do trabalho, da qual a terceirização, anteriormente presente em atividades suplementares  à produção, tomou nova figura:  tornou-se ativa, conforme Alves[11] , no coração das atividades diretamente vinculadas à produção, promovendo alterações importantes na materialidade do capital e nas formas de atuação do trabalho produtivo.

Esse desenho sugestivo indica mutações em curso, que afetam igualmente o campo do fato artístico:  a montagem de uma exposição num centro cultural, num museu cujas galerias têm dimensões bastante expressivas e pode se dar, ao mesmo tempo, em várias salas, envolve seguramente na sua realização, cerca – ou mais – de cinqüenta funcionários, empregados, nem todos  remunerados pela instituição que oferece a oportunidade: o patrocínio financeiro. O que se segue no que o artista Carlos Zílio transmitiu-me numa conversa informal, bem como outros tantos terceirizados (administração, curadoria, divulgação, montagem e segurança), ou seja, sem vínculos trabalhistas como os conhecemos, alcançam igual número de pessoas.  Essas tendências vêm predominando nas grandes cidades do Brasil e se deparam com o que se conhece diretamente vinculado ao fato artístico.

Então, deparamo-nos com um novo complexo de reestruturação produtiva, no dizer de Alves, que atingiu a objetividade e a subjetividade do mundo do trabalho.  Esse mesmo jogo – que é bem anterior aos nossos dias – que se dá na fronteira do pragmatismo e dos aspectos pessoais – que emerge na luta dos critérios que, na França, vão determinar o que era classificado com artes úteis ou necessárias, idéias essas  que englobavam também as artes manufaturadas [12] .  É preciso dizer que grandes conquistas no campo da arte foram concretizadas com o desenvolvimento das noções de autenticidade, de individualidade, de originalidade: essas vieram junto com a defesa da pintura de história, um pouco ali negligenciada.  Com todos os aspectos assinalados colocava-se também a questão dos amadores que a defendiam.

No que foi assinalado por Lena Bergstein – e aí volto um pouco para trás – tem-se claramente indicações de um fato artístico que se apresenta de forma inacabada.  Fica evidente que para Duvignaud as categorias classificatórias não se reduzem à simples constatação de uma diferença entre elas:  ultrapassam, seguidamente, a idéia que fazem desses sistemas.  Acresce o fato de que aí são incluídas questões da profissionalização do artista que necessitam levar em conta as relações atuais com o trabalho, que vão além delas ao nos determos no cotidiano.  É por esses planos e níveis que passa a compreensão singular do artista e da criação artística,  linkados ao trabalho [13] .

A categoria trabalho clareando o fato artístico

A categoria trabalho deve ser considerada de maneira a elucidar a natureza do fato artístico em suas relações com o que se convenciona como próprio ao desempenho profissional, isto é, formação profissional, remuneração equivalente, direitos trabalhistas, valor financeiro atribuído ao seu trabalho.

Esses indicadores de um exercício profissional afetam até mesmo os artistas que podem ser considerados bem sucedidos [14] :  “Sei dar preço para uma obra minha.  Eu não tenho nenhum problema para dar preço para os meus trabalhos.”

Fica-se com o que a artista plástica afirma, sem saber como esse preço foi calculado, de que maneira e quais os critérios que foram aí sinalizadores na mediação com os compradores.  Isto quanto ao preço cobrado.  Mas há algo que necessita ser mencionado e que, de muitas maneiras, revela o que dimensiona a presença do indivíduo, acoplada ao artista:   “Existem outra riquezas que não são só as materiais. Há a riqueza dos amigos, ser dono do tempo, renúncias do mundo capitalista. A vida é só uma. Tem-se de cuidar da vida” [15] (WLADIMIR MACHADO, 54 anos, artista plástico, professor do Ateliê de Pintura da EBA/UFRJ, Doutor em História Cultural pela USP).

Por aí se vê que a contestação das normas do capitalismo, ou seja, produzir, vender, consumir não é menos entrecruzada com contradições naquilo que o artista considera como autonomia, gerir sua vida com poucos recursos, pouca adesão ao consumo e assim por diante. O artista que age e pensa assim se depara com um fato intransponível, conforme Jean Duvignaud [16] :   “Sua obra precisa ser comunicada.  Não pode ser, portanto, algo que se mantenha escondido, pois nenhum artista tem como objetivo produzir para si.”

É preciso levar em conta que o artista hoje é também multimidiático, conforme Medeiros [17] .

*Rosza W. vel Zoladz é aposentada da EBA/UFRJ, onde orienta teses e  dissertações da Linha de Pesquisa Estudos da Imagem e das Representações Culturais no PPGAV e pesquisadora visitante do PACC (Programa Avançado de Cultura Contemporânea) do FCC / UFRJ. Recentemente recebeu homenagem do Ministério da Cultura e Comunicação da França, com o Título de Chevalier de l´Ordre dês Art set dês Lettres. É também Conselheira Emérita do Conselho de Minerva da UFRJ.


NOTAS:

[1] Cf. TACUSSEL,  Patrick.  “À altura do cotidiano”. In:  A propósito da obra de Michel Maffesoli.  Notas sobre a pós-modernidade.  O lugar faz o elo.  Atlântica Editora, Rio de Janeiro, 2004, p. 110.    O que deve ser acrescentado ao que é feito por Tacussel é dizer que, dessa maneira, se cria um compromisso com novas aberturas epistemológicas.

[2] São muitos os assuntos e procedimentos guiados e movidos pela crença.  No dia em que tratava desse aspecto, em sala de aula, com alunos do PPGAV-EBA, na Linha de Pesquisa “Estudos da Imagem e das Representações Culturais” (2005/II), analisava questões como o capital simbólico, a leitura da arte. Exemplificava com o correio e a crença que existe no envio da correspondência.  No mesmo dia, à noite, a TV mostrava o escândalo do mensalão, dando-se justamente no Correio Nacional.

[3] Cf. Fleury, Catherine Arruda, Ellwanger. “Reflexões sobre arte e artistas”. In: Rosza W. vel (Org.) Imaginário Brasileiro e Zonas Periféricas. Algumas Preposições Sociologia da Arte. FAPERJ / 7 Letras, 2005. pp 188 – 226

[4] Cf. GRAMSCI, Antonio.  Os intelectuais e a organização da cultura.  Civilização Brasileira, Rio de Janeiro,  1995.  As sucessivas edições da obra que modificam uma ou outra passagem dão, no entanto, como permanentes as injunções socioculturais que interferem na formação das diversas categorias intelectuais.   O que Gramsci sugere é tomá-las como mediadoras entre grupos sociais que, de outra maneira, não se relacionariam.  É oportuno citar MICELI, Sérgio.  Intelectuais à brasileira.  Companhia das Letras, São Paulo, 2001.  Aí as implicações históricas devem ser consideradas.

[5] Cf. DUVIGNAUD, Jean.  Les prix des choses sans prix. Actes Sud, France, 2001.  O exemplo costumeiramente dado por Duvignaud em aulas, conferências, artigos, é ilustrado pela Torre Eiffel, que se transformou no símbolo da França, sem ter sido construída com esse propósito.  O monumento foi construído por ocasião da Exposição Universal de Paris (1889).

[6] SIMMEL, Georg.  Como as formas sociais se mantêm. MORAES FILHO, Evaristo (Org.) Simmel.  Editora Ática, São Paulo, 1983, pp. 45-58.

[7] Cf. SIMMEL,  Georg.  Filosofia do amor.   Martins Fontes, São Paulo, 1993, p. 124.

[8] Cf.  RANCIÈRE , Jacques.  A partilha do sensível.  Estética e política. Editora 34, São Paulo, 2005, p. 63.  O precioso livro enfatiza aspectos novos, que denomina de impregnação política da arte, fora de engajamentos partidários, doutrinários.

[9] Cf. ZOLADZ,  Rosza W. vel.  Augusto Rodrigues.  O artista e a arte, poeticamente.  Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1990 e Idem, Imaginário Brasileiro e Zonas Periféricas.  Algumas proposições da Sociologia da Arte.  7 Letras/FAPERJ, 2005.

[10] Essa situação, no entanto, está muito distante de ser generalizada ou ser mais freqüente do que o inverso.  Não se tem ainda, como há na França, artistas que produzem para acervos de museus importantes, como é o caso dos artistas plásticos tchecos Tylek e Tylecek, naturalizados franceses.  A produção artística desses artistas plásticos é adquirida pelo Mihama Museum, Japão.  Mas há, num trajeto inverso, a produção artística de Michel Lablais, adquirida por um colecionador brasileiro.  Isso se dá há muito tempo no percurso França-Brasil, pois Lablais é francês, com importantes exposições na Europa, nos Estados Unidos e na  Ásia.

[11] Cf. ALVES, Giovanni.  O novo (e precário) mundo do trabalho. Bomtempo/FAPESP,  São Paulo, 2005.

[12] Cf. HEINICH, Nathalie.  Du peintre à l’artiste.  Artisans et académiciens à l’âge classique.  Lês Éditions de Minuit, Paris, 1993, pp. 193ss

[13] Cf.  ALVES.  Idem, 2005.

[14] Depoimento da artista plástica Adriana Varejão à jornalista Nina Lemos.  IN Revista Gol.  Tipo Exportação, dezembro, 2005, pp.54-60.

[15] Cf. SANSOT, Pierre.  Les gens du peu. PUF, Paris, 1991.  Isso ocorre em sociedades afluentes, em que se prefere viver com os subsídios estatais que são alocados para os desempregados no lugar de se submeterem ao estresse, às pressões da vida do trabalho formal.   O fato se dá, em menor número, também entre nós, como pode ser visto nesse depoimento elucidativo de um tipo de projeto que se mescla com a vida ativa do artista.   Ver também a esse respeito MAFFESOLI, Michel.  O tempo das tribos,  Forense, Brasil, 1987.

[16] Cf. DUVIGNAUD, Jean, 2001.

[17] Cf. MEDEIROS, Rogério.  A arte hoje, 2005 (digitado).

Carlo Zílio - Lugar - s/d - 174 x 141 cm

 

Luiz Áquila - A pintura e o interior da lareira s/d - 80 x 130 cm

 

Wladimir Machado - Banhista lendo - s/d - 110 x 150 cm
Martha Werneck - As trilhas de Denecourt 2004 - 120 x 138 cm

 

Enéas Valle - Gemini - s/d - 200 x 150 cm

 

Lícius Bossolan - Vestígios do século XX s/d - 120 x 180 cm

 

 

Tiziana Bonazzola - Os meninos da rua Uruguai s/d
Martha Werneck - As trilhas de Denecourt 2004 - 120 x 138 cm

 

 

 

Lena Bergstein - Bloco de anotações s/d - 120 x 80 cm

 

Um homem tão abrangente que ocupasse o mundo todo menos o próprio espaço de seu corpo poderia sair-se muito bem como assistente de um mau atirador de facas. Milton Machado - Homem muito Abrangente

 

Michel Lablais - "Amazônia" - s/d 195 x 10 cm

 

Michel Lablais - Le repas de Salomé s/d - 195 x 10 cm

 

Henri Morez 1 - Sans s/d - 10 x 97 cm

 

Henri Morez 2 - Sans s/d - 146 x 97 cm

 

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Vozes da periferia | de Numa Ciro

Grafite de Chico, Grupo Nação Situado na av. Presidente Vargas, Rio
Com o rap “O soldado morto”, o rapeador carioca MV Bill[1] dá voz a um morto. Mas este morto não é qualquer um, é mais um entre os milhares de jovens moradores das favelas e periferias brasileiras que são assassinados diariamente, numa espiral crescente de violência que já alcança as proporções de um verdadeiro genocídio.

Diante de um quadro de tal natureza, este ensaio procura sintonizar o dial de sua reflexão na freqüência das vozes que se levantaram do silêncio imposto pela miséria e pela violência nesses espaços marginalizados. Hoje, essas vozes se fazem ouvir através das mais variadas formas de manifestações artísticas e ecoam para além das fronteiras de seu lugar de origem:

São as vozes apolíneas do rap que, através do canto – falado, se deixam apanhar em sua forma de verso. Ao mesmo tempo, escapam do verso e se oferecem à crônica desse desespero;

São as vozes dionisíacas da festa irreverente, notadamente os bailes funk onde os artistas se permitem cantar e dançar os signos proibidos. Soltam a língua e vociferam sobre a emergência do desejo através de novas construções imaginárias dos seus corpos;

Atraindo significações inusitadas para o binômio sexo e violência, as manifestações do desejo, no universo do funk e do hip hop, instauraram uma ética própria engendrada no fundo desses acontecimentos;

É importante sublinhar as vozes que se equilibram nas linhas e entrelinhas das produções literárias e poéticas, chamadas marginais, que atualmente ocupam espaços editoriais e da mídia, jamais atingidos pela literatura de cordel, com seus séculos de criação, permanência e desenvolvimento formal;

As vozes que ressoam das explosões de cores e traços dos grafites espalhados pelos muros das ruas e avenidas;

As vozes que gritam ainda mais alto soltam impropérios, fazem ameaças e expõem conflitos através das pichações das paredes das edificações principais das cidades;

As vozes que ressoam dos corpos que dançam a língua das ruas e ecoam a partir das coreografias dos atletas de um cotidiano exaustivo e opressor.

Na mixagem dessas vozes que ousam “desafiar os limites entre classes sociais e fronteiras culturais”, no dizer de Heloisa Buarque de Hollanda[2], é interessante observar o tom dessa autonomia criativa e o timbre criador das subjetividades engendradas nesse processo.

ECOS DA PERIFERIA NOS CENTROS ACADÊMICOS

Grafite de Preas, Grupo Nação Situado na rua Gomes Freire, Lapa, Rio

A partir dos anos 80, começaram a surgir novas configurações no cenário cultural brasileiro que não puderam ser interpretadas, imediatamente, em seu status nascente. As novas cenas que se desenrolavam e os novos atores que as representavam causaram uma estranheza que aos poucos se transformou em múltiplas formas de reação.

Era difícil avaliar as proporções desses fenômenos artísticos que nasciam nas periferias e favelas das grandes cidades e conseguiam atrair multidões de jovens: o hip hop, para o seu movimento, e o funk, para os seus bailes. A estranheza, aliada à desconfiança era, uma vez mais, reanimada diante dessas manifestações artístico-culturais que surgiam com uma força impactante do interior das comunidades onde estão impressas as marcas do que se reconhece como popular. As questões sobre esse tema foram se ampliando de acordo com o deslocamento desses jovens na ocupação da cidade, que seguiam conquistando espaços cada vez mais centrais.  Essas manifestações chamadas de estéticas da periferia tiraram da invisibilidade milhares de jovens que só eram contados nas estatísticas de criminalidade.

Aos poucos, foram surgindo os primeiros pesquisadores interessados em seguir a novidade. Foi preciso que se criassem novas formas de abordagem e novas categorias metodológicas mais apropriadas para a análise dessas manifestações que desafiavam as antigas matrizes de compreensão dos fenômenos de massa. A partir das pesquisas iniciais, aparece em primeiro plano uma nova configuração do perfil dessa juventude. Esse novo perfil apontava para um panorama cultural muito mais complexo a ser investigado, do que uma simples mudança figurativa para se contemplar. Era preciso, portanto, não apenas olhar, mas, sobretudo, ouvir. A aproximação do foco na boca desse perfil nos despertou de um sono profundo. A periferia começava a falar de seu próprio lugar, em seu próprio nome, realizando o transmudamento da clássica resistência em ação.

Essa transmudação no mundo em volta, de fora para dentro e de dentro para fora, é o que faz eclodir o acontecimento, como é teorizado por Allain Badiou[3]. A juventude das periferias brasileiras deu início a um processo de mudança sem precedentes, operando um corte profundo nos tradicionais sistemas de políticas culturais, em seu estatuto transgressor mais radical.

É possível imaginar que, sob o impacto do primeiro contato com a experiência do funk ou do hip hop, alguém se pergunte: “Onde estive todo esse tempo em que esse vulcão de som e fúria, ritmo e poesia preparavam tal irrupção?”. Hermano Vianna, um pioneiro em estudar essas “tribos urbanas” no Brasil, através do seu livro, O mundo funk carioca, se tornou uma referência obrigatória para o conhecimento e a compreensão não só do funk; hoje ele é um dos responsáveis pelo mapeamento da música popular periférica em todo o território brasileiro. Numa entrevista, Vianna[4] fala de sua perplexidade frente ao desconhecimento da mídia e de alguns setores da sociedade brasileira em relação ao fenômeno do funkcarioca, nos primeiros tempos. No seu texto publicado em vários jornais, por ocasião do lançamento de um programa de televisão, “Central da Periferia”, Vianna[5] expõe a radicalidade com que as periferias em todo o Brasil estão tomando as rédeas de sua história. A prova maior dessa transformação pode ser observada através dessas novas políticas culturais que as periferias estão desenvolvendo, numa velocidade impressionante, sem intermediações formatadas nos modelos de representação.

Atualmente, esses artistas ditam seus padrões estéticos e já podem contar com um centro próprio, criador de estratégias de mercado. Isto não quer dizer que não haja intelectuais, pesquisadores, agentes culturais e artistas de outros setores da sociedade envolvidos com os projetos das periferias. Porém, o que há de novidade nesse momento é que o lugar que a academia, alguns setores da classe artística e as ONGs ocupam em relação às políticas culturais da periferia, é o lugar das parcerias. Isso porque no fechar e abrir dos séculos XX e XXI, respectivamente, se tornou impossível ignorar a importância de tal acontecimento: esse pequeno giro, a partir da posição que as periferias ocupavam na cidade, operou uma mudança dos lugares de poder e expressão, que tem nos processos de parcerias o signo desse deslocamento.

Esse acontecimento, que chamo o levante das vozes, é a expressão de um novo protagonismo que está se formando entre as lideranças das ações de políticas sócio-culturais. Este novo protagonismo não é apenas insurgente, mas, acima de tudo, criador de redes de produção com autonomia, deixando para trás os papéis de coadjuvantes, a partir dos quais eram requisitados e/ou se ofereciam apenas como objetos de estudo. É o que Sílvia Ramos[6] definiu como novos mediadores:

As marcas específicas dos novos mediadores são: a liderança dos grupos pelos próprios jovens oriundos das favelas e a produção de um discurso sobre a favela na primeira pessoa; a capacidade de expressar signos com os quais os jovens das favelas se identificam e ao mesmo tempo criar modelos que recusem as imagens tradicionais dos jovens das favelas; a criação de novas metáforas por força das histórias de vida; a capacidade de transitar na grande mídia e na comunidade, entre diferentes classes socais, facções e governos, isto é, transitar entre o local e o universal.

Na constituição desses novos mediadores, isto é, esses novos atores políticos na cena das políticas de cultura, o lugar do intelectual também sofreu os seus efeitos e se encontra vulnerável aos deslocamentos e à recomposição da geografia cultural em conseqüência dessas mudanças. Assim, o papel do intelectual, tanto na academia, quanto na sociedade, exige ser repensado. Heloisa Buarque de Hollanda[7] nos adverte para o que há de fundamental na determinação dessas mudanças:

Seguramente não é mais possível pensar as manifestações estéticas e culturais hoje sem articulá-las às questões básicas do desenvolvimento econômico e social. Por toda parte, emergem novos territórios culturais e disseminam-se novas dinâmicas de criação e intervenção que rapidamente se articulam como respostas e interpelações aos efeitos contraditórios dos processos neoliberais de globalização e transnacionalização da cultura e da informação.

Nesse processo, o intelectual, em parceria com os artistas, tem bastante campo para cultivar sementes híbridas que prometem frutos culturais e artísticos promissores, ainda que não totalmente dimensionados nesse momento. Pensar a universidade hoje, levando em consideração essas mudanças, torna-se urgente. O presente não nos ilude como nos advertem MV Bill e Celso Athayde[8], em dois trabalhos que comprovam a emergência desse novo protagonismo. Ao escreverem o livro Falcão, sobre os meninos no tráfico, os dois autores fazem uma verdadeira etnografia desta situação. O mais interessante é podermos observar em cada linha escrita a dicção e o tom de dois observadores que analisam a situação de dentro, a partir de seu próprio pertencimento. Numa outra ocasião, escreveram, em parceria com o antropólogo Luiz Eduardo Soares, o livro Cabeça de porco, que trata também do mesmo tema e que nos serve também de exemplo pelo cruzamento entre a voz do intelectual e as vozes dos novos protagonistas. Vejamos como MV Bill e Athayde abrem o seu livro Falcão aos seus leitores:

Esses jovens têm sua própria linguagem, têm suas próprias leis. Se realmente quer entendê-los, terá que fazer um esforço, tanto para compreender suas expressões gramaticais, quanto suas atitudes, e, para isso, cada um de nós temos que se despir de todo ódio que nutrimos e de todo medo que desenvolvemos a partir dele. Temos que renunciar ao que nos foi ensinado sobre o Bem e sobre o Mal. Este provavelmente é o bilhete mais seguro para viajar na boléia desta compreensão, mais próxima de uma realidade que muitas vezes até a própria favela desconhece.

A voz da rapper carioca Nega Gizza, no seu rap “Filme de terror”[9], mostra a mesma preocupação ao dizer:

O Brasil nos condena a viver como animal irracional /
vamos fingir que vai passar / vamos fingir que é natural /
o tempo do conformismo passou

Fingir que vai passar, fingir que é natural são versos que demonstram claramente que a artista sabe o que está acontecendo à sua volta e consigo mesma. A impotência para resolver os problemas com a urgência que eles requerem se traduz em irônico fingimento da ignorância. Da academia, a voz de Beatriz Resende[10] também se alia a essa problemática:

Na literatura, o sentido de urgência, de presentificação, se evidencia por atitudes, como a decisão de intervenção imediata de novos atores presentes no universo da produção literária, escritores moradores da periferia ou os segregados da sociedade, como os presos, que eliminaram mediadores na construção de narrativas, com novas subjetividades fazendo-se definitivamente donas de suas próprias vozes.

Nesse processo está em jogo uma mudança dos valores simbólicos a qual nos obriga a redimensionar as questões vinculadas ao binômio ética / estética, no contexto das dinâmicas políticas e econômicas em âmbito mundial. Na trama dos discursos transgressores, no Brasil, essas vozes que se fazem ouvir como fios condutores desse processo nos dão a dimensão exata das diferenças culturais que se estabelecem a partir de desigualdades sociais e que repercutem diretamente na desigualdade dos direitos. A desigualdade dos direitos civis, jurídicos e até de sobrevivência são os espectros das desigualdades no Brasil camufladas em formações heterogêneas. Do centro da heterogeneidade da nação brasileira, a importância do momento atual se deve exatamente pelas vozes que vêm compor a narrativa do re-mapeamento da geografia humana do país. Beatriz Sarlo[11] diz, a propósito:

Uma cultura deve estar em condições de “nomear as diferenças que a integram”. Do contrário, a liberdade cultural torna-se um exercício destinado unicamente a realizar-se nos espaços das elites estéticas ou intelectuais.

Uma rede de televisão poderosa como a Globo exibe um programa cujo formato parece reconhecer a autonomia dos empreendimentos das periferias. Vianna enfatiza que este programa apenas se rendeu ao fato de que a periferia está em toda parte e agora ela é que engloba o centro e não mais o contrário, como sempre tinha sido. O programa não se constituiu para dar oportunidades a esses artistas, mas, diz Vianna[12]:

Para colocar todas essas questões em discussão, trazendo essa realidade periférica – e suas festas, e seus problemas – para a TV (mesmo tendo a humildade de saber que a cultura periférica não precisa mais da TV para sobreviver).

Diante desses novos fatos, aquela indiferença, aquela estranheza, tanto da mídia, quanto de alguns setores da sociedade, paulatinamente, foram se transformando em reações diversas e adversas. As adesões ao hip hop e ao funk por um número bastante significativo dos filhos das classes favorecidas, representavam um perigo e um alerta para os seus pais. Assim, as primeiras reações à indiferença ou à estranheza, deram lugar a uma antipatia que, não raro, se transmutou em processos de rejeição sistemáticos que culminaram, muitas vezes, na interferência judicial e em concomitantes proibições dos bailes funk. Em relação ao hip hop, não há um rapper ou DJ que não tenha uma história para contar de perseguição policial e até de prisão. As semelhanças com episódios da história do samba não são meras coincidências.

“PERIFERIA É PERIFERIA EM QUALQUER LUGAR”[13]

Grafite de Ment, Grupo Nação Situado no centro, Rio

“Estou em casa”, disse Chuck D., um dos pioneiros do hip hop americano, assim que chegou ao conjunto habitacional Cidade de Deus, levado pelo rapper carioca MV Bill, morador desta comunidade, na zona oeste do Rio de Janeiro. Chuck D. pertence ao Public Enemy, um dos mais famosos grupos de hip hopdo mundo e esta cena aconteceu quando o grupo veio ao Brasil, em 2003, para participar da Semana Hutus de Hip Hop, promovida pelo movimento hip hop carioca.

Essa afirmação, “estou em casa”, nocauteou definitivamente toda e qualquer polêmica, que muitos ainda se esforçam para levantar, sobre a legitimidade da arte popular pelo viés das identidades nacionalistas. O movimento hip hop no Brasil já foi inúmeras vezes acusado de ser uma manifestação artística dos americanos, imitada pelos brasileiros. A fragilidade dessas acusações se torna mais evidente quando elas são apresentadas como apoio à argumentação de que o hip hop não é arte, o rap não é música nem poesia e o funk é música de bandido.

Essas reações negativas e discriminatórias ao hip hop e aos bailes funk são comuns e, de certa forma, já naturalizadas, pois estão referidas aos produtos criados pela cultura popular. Em cada momento, quando surge uma nova manifestação de arte reconhecida como oriunda do universo popular, uma nova tensão se estabelece e são trazidas à ba(i)la as mesmas dúvidas de sempre: se é arte ou não, ou se se constitui como legítima manifestação de alguma identidade local, regional ou nacional. Néstor Garcia Canclini[14] nos oferece uma definição bastante precisa dessa problemática. Ele diz:

O popular é nessa história o excluído: aqueles que não têm patrimônio ou não conseguem que ele seja reconhecido e conservado; os artesãos que não chegam a ser artistas, a individualizar-se, nem a participar do mercado de bens simbólicos “legítimos”; os espectadores dos meios massivos que ficam fora das universidades e dos museus, “incapazes” de ler e olhar a alta cultura porque desconhecem a história dos saberes e estilos.

A essa forma de exclusão de que nos fala Canclini, se sobrepõe a associação que se faz entre o funk, por exemplo, e os processos de violência ligados ao tráfico de drogas. Micael Herschann[15], atento a esta questão, comenta:

Se, por um lado, a imagem do funkeiro aparece nos meios de comunicação de massa e no imaginário social constantemente estigmatizada / demonizada e associada inclusive ao narcotráfico, por outro, atesta-se um grande interesse da indústria cultural pelo conjunto de expressões culturais manifestadas por esses jovens.

Ecio de Salles [16] discute, nas suas pesquisas sobre o rap, essa problemática específica sobre o estatuto de arte que deve ou não ser conferido ao hip hop e se o rap pode ou não ser considerado um fato literário. Já existem vários estudos sobre esta questão em todos os países onde o hip hop se estabeleceu, e apontarei apenas alguns entre os mais interessantes. Dentro desta perspectiva, Salles[17]afirma  sobre os rappers brasileiros que:

Eles estabelecem um vínculo entre arte, cultura e o cotidiano de suas comunidades, o qual implica uma recuperação de aspectos do fazer artístico há muito superados na história da cultura ocidental, realizando uma arte profundamente arraigada na cotidianidade, nos problemas e nas belezas que fazem parte da vida dos setores populares.

Chistian Béthune, pesquisador francês, conhecido pelos seus estudos sobre o jazz (enquanto categoria estética), faz uma reflexão substancial sobre o fenômeno do rap na França[18]. Lá, como aqui, a arte popular também sofre discriminações de toda espécie. Assim, dentro desta ocorrência, o autor aponta erros fundamentais nas análises apressadas deste fenômeno, sublinhando o esquecimento dos críticos em relação às particularidades locais, através de comentários de cunho esquemático e preconceituoso. Sobre isso, diz Béthune[19]:

n’ont pas hésité à dénoncer la culture hip – hop comme un effet supplémentaire de l’américanisation généralisée des nos vieilles sociétés et à considérer le rap français comme un simple succédané du rap américain.

A análise deste autor sobre as particularidades do hip hop na França, principalmente quando ele compara a produção do jazz com a do rap, nos diz que é impensável uma evolução estilística do jazz em seu país, enquanto o rap se afirma de uma maneira muito mais autônoma. Vê-se que essa autenticidade não é cobrada do jazz e assim somos levados a concluir que a mão pesada da crítica em relação ao rap é um fenômeno global e não apenas brasileiro. Ou seja, “periferia é periferia em todo lugar” não é um verso caído dos céus na boca do rapeador Gog.

No Brasil, essas manifestações artístico-culturais quando pensadas sob os aspectos do universal versus local ganham um colorido especial pela própria constituição da sociedade brasileira. Originadas de um mosaico de etnias, e espalhadas por um país de proporções continentais, as produções culturais tupiniquins apresentam uma diversificação que se coaduna com as diferenças profundas entre as várias regiões e com diferenças marcantes até mesmo dentro de cada região do Brasil. Contraditoriamente, isto não impede o desenvolvimento de processos de intolerância em relação às diferenças, que alcançaram patamares de violência inaceitáveis. No entanto, as contradições fazem parte da própria caracterização híbrida, também oriunda dos processos migratórios, entre outros, assim como é formulado por Néstor Garcia Canclini[20]:

Sem dúvida, a expansão urbana é uma das causas que intensificaram a hibridização cultural. (…) Passamos de sociedades dispersas em milhares de comunidades rurais com culturas tradicionais, locais e homogêneas, em algumas regiões com fortes raízes indígenas, com pouca comunicação com o resto de cada nação, a uma trama majoritariamente urbana, em que se dispõe de uma oferta simbólica heterogênea, renovada por uma constante interação do local com redes nacionais e transnacionais de comunicação.

O que está em jogo aqui é essa vocação antropofágica da cultura brasileira, já tão cantada e decantada pela arte modernista. Por isso, entre as causas que fazem com que o movimento hip hop exista no Brasil, aquelas que se relacionam com a identidade negra ultrapassam, de longe, questões nacionalistas, por exemplo. Então, é absolutamente inoperante a análise que se quer sustentar baseada em pensamentos ideológicos de fundo patriótico. Neste ponto, é importante dar a palavra a Rodrigo Pimenta[21], carioca, filho de nordestinos, adepto do hip hop:

Não só no Brasil, mas todos os negros do mundo se identificam com o negro americano. Quando a gente busca uma identidade negra, a gente se baseia no negro americano, porque a gente vê, mesmo nos filmes, o negro se juntando e lutando contra um estado racista e enfrentando a morte. (…) eles creram, eles lutaram, são de um país racista, mas o negro tá lá. Conquistou o seu lugar. A lição de bom que a gente tem que tirar deles é ter a identidade negra assim, em termos mundiais e, ao mesmo tempo, a identidade negra brasileira.

Sobre a improcedência das críticas ao hip hop que tentam invalidá-lo por ser um produto de expressão norte-americana, independente do país onde está sendo recriado, é importante voltar a Béthune[22], fazendo-o dialogar com Pimenta:

Parti d’un modèle américain parciellement assimilé, le rap hexagonal a su se forger une personnalité littéraire et musicale en prise directe avec les préoccupations poétiques d’une jeunesse en quête d’une forme adaptée à ses aspirations créatices. Mettant en scène un vécu propre, utilisant avec discernement tant les influences africaines et maghrébines que certains modes d’expression populaire issus du terroir, dans sa diversité le rap français a su prendre ses distances avec l’Oncle d’Amérique sans pour autant renier sa dette.

Para acentuar o diálogo, voltemos a Pimenta: “Aqui a gente costuma brincar que o rap é embolada do americano. Então, a gente sempre costuma fazer uma coisa, mas botando a nossa cara”. E mais, no momento em que as versões locais do rap desmentem a acusação de que o rap, em qualquer país onde se desenvolveu, é nada mais que uma cópia do rap americano, as argumentações se apropriam de outras ideologias classistas e hierárquicas e volta-se para o ponto inicial: as mídias e as classes dominantes de qualquer país só enxergam a arte popular de forma paternalista ou excludente.

Portanto, a importância maior deste momento se deve às novas configurações que as estéticas da periferia imprimem no panorama da geografia cultural das cidades. Vianna oferece uma grande janela[23]para olharmos para esse panorama. Ele diz:

O pano de fundo para essa grande transformação das periferias não é apenas brasileiro, mas reflete uma tendência global. A população urbana do mundo hoje é maior que toda população do planeta em 1960. O número de habitantes das grandes cidades cresceu vertiginosamente num período em que a economia da maioria desses centros urbanos estava (e continua a estar) estagnada, sem gerar empregos. Mesmo assim a migração para as cidades não parou, e hoje – pela primeira vez na história da humanidade – há mais gente vivendo em cidades do que no campo.

Assim, a arte pode ser vista como um passaporte entre as fronteiras mais intransponíveis e uma forma de aliar os povos de diferentes nacionalidades, ou diferentes regiões de um mesmo país. Sobre isto, ouçamos mais uma voz na mesa virtual deste ensaio, Darco[24], um importante grafiteiro franco-alemão, entrevistado por Patrícia Osganian. Ele diz:

Pour moi, le hip hop a toujours été une culture plus ouverte que toutes les autres, ne serait-ce que parce qu’il abolit les préjugés traditionnels de l’art. Quand tu regardes un graffiti dans la rue, même s’il y a la signature, tu ne sais ni qui l’a fait, ni qui le regarde. Cela touche tous types des gens. Et il y a aussi um certain anonymat qui n’a rien à voir avec celui de séries imposées par les pubs et la culture de masse. On déconstruit les clichês. On transgresse les règles. On abolit les frontières. Il y a plus de liberté.

Pensar no quinto elemento do hip hop, o do conhecimento, leva necessariamente à questão das políticas culturais. Existem incontáveis veredas que podem nos levar ao centro dessa questão, mas o próprio centro da questão se constitui pelas suas confluências. B. de Hollanda[25] põe em relevo essas confluências e sublinha a importância de se promover:

a discussão e o mapeamento dos movimentos civis e culturais emergentes e novas perspectivas críticas para a compreensão dos fenômenos culturais surgidos nas grandes periferias urbanas e seu alcance de inclusão e desenvolvimento social.

Assim, o procedimento da análise semiológica desses fenômenos multiculturais nascidos das periferias e com grande vínculo com a violência revelam a complexidade das letras do rap e da festa do funk através de um olhar deslocado que acompanha o deslizamento do lugar da criação. Canta o rapper BNegão:

Humanidade mude, que tal mudar um pouco nosso próprio ponto de vista? / paciência sem subserviência é a combinação mais poderosa desse mundo.

O texto de B. de Hollanda cruza os versos do rapeador BNegão no centro desse debate que se refere aos processos de criação. Os parâmetros éticos e estéticos que circunscrevem esse tema margeiam outros solos correlatos e mostra essa urgência em re-pensar o lugar do intelectual na nova diagramação espacial da contemporaneidade. Não mais a era dos grandes especialistas, nem das criações espetaculares. Não mais arautos, nem porta-vozes. Que fatores se impõem para o entendimento dessa mudança? B. de Hollanda[26] entrega uma chave imprescindível:

Nesse quadro, a evidência sinaliza a ocorrência de uma significativa alteração na função social da arte e a entrada definitiva da produção cultural no mercado e na economia, tornando-se elemento-chave nos processos de afirmação da cidadania, de geração de emprego e inclusão social.

Isso faz lembrar o artigo de Frederic Jameson (2003) “O espaço, a fronteira final” no qual ele compara o tempo a um verbo na ativação do amadurecimento que traz à tona a transformação. Acrescento que para se dar essa transformação é preciso agir. Como seriam então dados os próximos passos? Beatriz Sarlo (2001: 220-221) diz que não há nenhuma saída fácil, mas arrisca refletir “no para salir do atolladero (Horacio González me aconseja no salir de los conflictos por el camino de la reforma) sino para seguir pensando dentro de él“. Imagino que o ato de pensar com os pés presos no atoleiro impede uma visão de longo alcance. Assim, o que precisa ser pensado é a própria condição do atoleiro, que se evidencia como impasse. BNegão fala assim desse atoleiro:

Enxugando gelo, sua realidade segura por um fiapo de cabelo / apego pelo tempo, melhor não tê-lo; não quero, nem há como contê-lo.

A paciência e a espera contradizem a urgência do momento. Por isso, BNegão grita: “Lembre-se: conselho depois do erro é como remédio depois do enterro”. Se o tempo é paradigma do moderno e o espaço é a condição do pós-moderno, as reflexões de B. de Hollanda e os versos de BNegão advertem para a urgência de ações que façam frente aos abusos de uma globalização que conduz o tempo e o espaço às prateleiras dos mercados. Por sua vez, as leis do mercado se deslocam numa velocidade incompatível com o tempo dos processos de significação e de re-significação dos quais emergem as criações artísticas e as produções culturais. Silêncio. O momento é de escutar as vozes.

*Numa Ciro é Psicanalista e doutoranda em Ciência da Literatura na UFRJ.


[1] MV Bill. CD, Declaração de guerra.

[2] HOLLANDA, Heloisa Buarque. “Apresentação”. In: _____________ (org.) Cultura e desenvolvimento. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2004 p. 8.

[3] BADIOU, Allain. O ser e o evento. Tradução, Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., Editora UFRJ, 1996.

[4] VIANNA, Hermano. A MPB em discussão – entrevistas. Santuza Cambraia Naves, Frederico Oliveira Coelho, Tatiana Bacal (orgs). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006,  275 p.

[5] VIANNA, Hermano. “Central da Periferia”. In: Folha de S. Paulo, 8 de abril de 2006, p. A 6.

[6]RAMOS, Sílvia. “Brazilian responses to violence and new forms of mediation: the case of the Grupo Cultural AfroReggae and the experience of the project ‘Youth and the Police’ “. In: Ciência e Saúde Coletiva, June 2006, vol.11, no.2, p.419-428. ISSN 1413-8123.

[7] HOLLANDA, Heloisa Buarque. “Apresentação”. In: _____________ (org.) Cultura e desenvolvimento. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2004 p. 7.

[8] ATHAYDE, Celso & BILL, MV.  Falcão –  Meninos do tráfico. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006. P.10

[9] NEGA GIZZA, CD: Na humildade.

[10] RESENDE, Beatriz. “A literatura brasileira na era da multiplicidade”. In HOLLANDA, Heloisa Buarque (org).Cultura e desenvolvimento. Rio de Janeiro: Aeroplano 2004: p. 161.

[11] SARLO, Beatriz. Cenas da vida pós-moderna – Intelectuais, arte e videocultura na Argentina. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2004. 2004: 181.

[12] VIANNA: 2006. Idem.

[13] GOG, CD Mensagem Positiva.

[14] CANCLINI, 2003: 205. Idem.

[15] HERSCHMANN, Micael. “Na trilha do Brasil contemporâneo”. In Abalando os anos 90 – Funk e Hip hop . Globalização, violência e estilo cultural. Rio de janeiro: Editora Rocco, 1997: 66.

[16] SALLES, Ecio de. “A narrativa insurgente do hip hop“. In Literatura das margens. Revista de literatura brasileira contemporânea. Brasília: 2004. p. 92.

[17] SALLES, Ecio de. “A narrativa insurgente do hip hop“. In Literatura das margens. Revista de literatura brasileira contemporânea. Brasília: 2004. p. 92.

[18] Le rap: une esthétique hors la loi (Béthune: 1999).

[19] BÉTHUNE, Christian. Le Rap: Une esthétique hors la loi. Paris: Éditions Autrement – Collection Mutations n.º 189, 1999: 80.

[20] CANCLINI, Nestor. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. Tradução Heloísa Pezza Cintrão, Ana Regina Lessa. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2003: 285. – (Ensaios Latino Americanos, 1)

[21] PIMENTA, Rodrigo, numa entrevista a Numa Ciro, realizada no dia 3 de novembro de 2003, na Semana Hutus de hip hop. In CIRO, Numa. Rap: A crônica poética de um genocídio.  Rio de Janeiro. Disponível em:http://www.overmundo.com.br/registro/confirma_registro.php?c=790&s=e5cb7c411f1d9a67f68deff4a954cfbc.

[22] BÉTHUNE, Chistian. Le Rap: Une esthétique hors la loi. Paris: Éditions Autrement, 1999: 179.

[23] Programa Central da periferia. Rede Globo. Último sábado de cada mês. 2006.

[24] OSGANIAN, Patrícia. “Darco, Mode 2: le graff sur le fil du rasoir”, in Dossier: hip hop. Les pratiques, le marché, la politique. Paris: Mouvements, n º 11, p. 8, 2000.

[25] HOLLANDA, Heloisa Buarque. “Apresentação”. In: _______ (org.) Cultura e desenvolvimento. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2004 p. 8.

[26] HOLLANDA, Heloisa Buarque. “Apresentação”. In: _______ (org.) Cultura e desenvolvimento. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2004 p. 7.

 

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Identidades urbanas na era do rádio | de Amara Rocha

Nos anos 1950 havia um objeto sagrado em praticamente todos os lares brasileiros: o rádio. Enquanto o país embarcava numa onda modernizadora definida pela política do Estado desenvolvimentista, pelas ondas do rádio a população experimentava a sensação de pertencer a uma grande comunidade, que tinha na lendária Rádio Nacional do Rio de Janeiro sua principal condutora. Através do rádio podia-se saber dos “acontecimentos”, manter-se “atualizado” e, ao mesmo tempo, “sonhar” dentro de um repertório coletivamente compartilhado. Os aparelhos de rádio e, anos depois, os de televisão tornaram-se itens de consumo imprescindíveis estabelecendo uma relação de cumplicidade e afeto com o público. Num país ainda predominantemente rural e com altos índices de analfabetismo estas mídias vão se tornando espaços fundamentais onde circulam sentidos contraditórios de nação, nacionalidade e modernização, que dão significado para toda uma época e ainda hoje estão presentes na cultura. Na década de 30 a música As cantoras do rádio fala da capacidade do rádio em “unir corações de norte a sul” do país.

As cantoras do rádio, de João de Barro com Cármen e Aurora Miranda  

As décadas de 1950 e 1960 foram significativas para a estruturação da mídia eletrônica no Brasil. Até meados dos anos 1950, o rádio exerce um papel central na produção cultural e artística do país, vivia-se o que ficou conhecido como a Era do Rádio.  Nesta fase a emissora mais popular, ouvida de norte a sul do país, era a Rádio Nacional do Rio de Janeiro, que durante anos ditou padrões no meio radiofônico e na cultura de maneira mais ampla. A partir de 1960 a expansão será mais significativa no setor televisivo que, ao se estruturar, passa a disputar a audiência e as verbas publicitárias do rádio e também da mídia escrita, ao mesmo tempo que absorve e recicla toda uma tradição radiofônica.

Como negócios bem sucedidos, a maioria das emissoras ia distanciando-se do improviso de seus primeiros anos de funcionamento. O setor radiofônico encontrava-se plenamente estruturado quando surgiu o setor televisivo. Uma parte considerável do capital necessário para a implantação das emissoras de TV provinha do setor radiofônico. Além do capital, a televisão vai beneficiar-se da tradição cultural e profissional do rádio e, em menor escala, do teatro e do cinema, personificada em profissionais que começam a atuar também na televisão. Ao mesmo tempo o setor publicitário passa por significativas mudanças com padrões de criação afinados com a expectativa crescente de urbanização e modernização. Esta proximidade com a publicidade, e, em menor escala, com o teatro e o cinema, e o mecanismo de constituição das emissoras como empresas, formam circuitos que configuram a produção radiofônica e televisiva, fundamentais na constituição de identidades urbanas no pós Segunda Guerra.

Nas décadas anteriores o meio radiofônico integrou-se ao cotidiano e estava consolidado em termos empresariais. Em torno dele, do teatro de revista e do cinema de chanchada, gravitava uma parte importante da produção cultural e artística do país. Esta conjunção vai se modificando na medida em que o rádio vive uma fase mais promissora, enquanto o teatro de revista e o cinema de chanchada passam por um processo de esgotamento de suas possibilidades comerciais, especialmente após 1946 quando o governo Dutra proibiu o funcionamento dos cassinos deixando muitos cantores e atores do teatro de revista desempregados. A maioria deles já participava esporadicamente de programas de rádio e passa a fazer dele seu principal meio de vida.

A implantação da televisão ocorre a partir desta experiência radiofônica. Como uma tecnologia ainda desconhecida, que incorpora o uso da imagem como elemento inovador, o meio televisivo vai constituir-se como espaço de experimentação e resignificação de padrões culturais. O rádio e a televisão trazem diferenças na relação mídia e cotidiano, anteriormente construída entre mídia impressa e o público. O caráter instantâneo das transmissões aumenta a sensação de interação e proximidade que os meios de comunicação proporcionam.

Rádio, televisão e vida doméstica

O momento em que o rádio já havia se consolidado, e a televisão começa a formar um público, corresponde a uma fase importante de crescimento urbano no Brasil. Em 1950, mais da metade da população, ou seja, 64% viviam na área rural. Em 1970 este percentual diminuiu para 44%, e inverte a relação com a maior parte da população passando a viver em área urbana. O nível de analfabetismo em 1950, era de 51% da população adulta. Em 1970 este índice cai para 34%.   Num país de vasta extensão territorial, diferenças regionais marcantes e alto índice de analfabetismo, a estrutura radiofônica desempenhou o papel de elo de ligação entre as áreas urbanas e rurais.

Com a urgência e as dificuldades em obter informações durante a Segunda Guerra, o rádio foi valorizado mundialmente, mostrando-se como alternativa para as contingências que sofria a imprensa escrita, com a restrição do uso de papel e maquinários, devido ao esforço de guerra e dificuldades na distribuição. Terminada a guerra, o hábito da escuta radiofônica havia aumentado, e o rádio foi se tornando um bem de consumo bastante disseminado. Em algumas cidades brasileiras, o número total de domicílios com rádio ultrapassava o dobro daqueles que possuíam enceradeira e refrigerador, dois bens de consumo bastante apreciados na época. Até mesmo nas camadas da população com menor poder aquisitivo, em que o consumo de eletrodomésticos é bastante inferior, a taxa de consumo de rádio chegava a 85,2%, conforme pesquisa nacional de consumidores de maio-junho de 1952 realizada pelo IBOPE.

A presença do rádio nos lares brasileiros, na década de 1950, é um tema recorrente nas biografias, como a de Paulo Cesar Ferreira que atuou nas Rádios Continental e Nacional, Rede Globo e que teve seu primeiro contato como radiouvinte, durante a infância pobre no bairro carioca de Pilares e que mantém viva na memória:

Enquanto seu Manoel [o pai] sonhava com um futuro melhor para o filho, minha mãe tratava de investir num presente mais confortável, ou melhor, mais divertido, para todos. Naquele ano, 1945, ela limpou o cofre para comprar, em seis prestações, no bazar do Isaac, o primeiro aparelho de rádio. Um Cacique valvulado. A geladeira elétrica, sonho de consumo do meu pai, ficou para depois. De repente, de um dia para o outro, estavam todos lá na sala: Radamés Gnatalli e sua Orquestra Carioca, Libertad Lamarque, Dorival Caymmi, Ataulfo Alves, João de Barro, Glenn Miller, Orquestra Tabajara, Emilinha Borba, Marlene, Adelaide Chiozzo, Carlos Galhardo, Francisco Alves…[1]

No início dos anos 1950 na cidade do Rio de Janeiro, aonde o rádio chegava a quase 95% das residências, havia uma média geral de três ouvintes por aparelho, de segunda a sábado, aumentando para quatro aos domingos.  À noite e aos domingos, a audiência masculina aumentava. Aos domingos, concentra-se a maior parte dos programas dedicados ao esporte. Durante o restante da semana, a maior parte do público ouvinte era composta por mulheres e crianças. A mulher converteu-se para a publicidade na “rainha do lar”, aquela que decidia quais os produtos a serem consumidos pela família. Para ela, era produzida uma parte importante da programação. Os produtos de higiene e beleza patrocinavam as novelas que faziam sucesso, tanto nos horários noturnos, considerados nobres, quanto nos diurnos, quando era maior a audiência das donas de casa.

As crianças também cultivavam o hábito de ouvir rádio. Numa pesquisa feita pelo IBOPE, sob encomenda dos produtos alimentícios Toddy, concluiu-se que, em 1956, cerca de 78% das crianças, entre  8 e 15 anos, tinham o hábito de ouvir programas de rádio. Para o público infantil não havia uma programação específica e as crianças assistiam, em geral, a mesma programação dos adultos. Conforme mencionado anteriormente, as referências à escuta radiofônica, como uma parte importante da experiência de vida, é uma constante nas biografias de toda uma geração. Mário Brassini,  aos doze anos de idade, ao sair de Ponta Grossa no Paraná para uma visita a uma tia em São Paulo, realizou o que era o seu grande desejo de menino, visitar a Rádio Cultura e o programa Nhô Totico

Para um menino que passava quase todas as horas de folga (além de algumas roubadas ao tempo destinado às lições de casa) grudado no Telefunken de ondas longas e curtas, ter a oportunidade de ouvir Nhô Totico e, ao mesmo tempo, vê-lo cara a cara, foi um acontecimento único. Pela primeira vez eu deixava de ser apenas um ouvinte solitário, podia rir e ouvir as risadas de outras pessoas, como se todo mundo estivesse numa festa, e, ainda mais, desvendar o mistério da transmissão radiofônica. (…) Minha admiração por Nhô Totico cresceu ainda mais a partir daquele dia, em que, desconfio, fui contagiado pelo “micróbio do rádio”: alguns anos depois, inconformado com o papel de simples ouvinte, só me dei por satisfeito quando consegui um lugar na emissora da minha cidade.[2]

Paulo Cesar Ferreira conta ainda sua experiência ao ouvir os programas de rádio ao lado da mãe:

Com o Cacique [marca de rádio] sobre a mesa, era como se Lamartine Babo puxasse uma cadeira na cozinha e pusesse na vitrola, só para a gente, valsas, divinas valsas. Em seguida, Almirante pedia licença para tomar um café e contar curiosidades musicais, sob o patrocínio da Philips. Eu enfrentava os inimigos e encarava qualquer desafio no embalo dos programas de aventura, enquanto minha mãe vivia as mais românticas e dramáticas histórias de amor, ao som de capítulos inebriantes das novelas O jardim das folhas mortas e O direito de nascer. (…) Juntos, ao pé do rádio, acompanhávamos com a mesma ansiedade as peripécias de Romário, o “homem-dicionário”. Multidões lotavam o auditório da Rádio Nacional só para desafiar, e testemunhar, a memória inabalável do sujeito.[3]

O mundo do rádio era sedutor e o público buscava um contato mais direto. O prédio da Rádio Nacional na Praça Mauá no Rio de Janeiro era ponto turístico não só para os cariocas, como para os que viam de longe. Visitar uma grande emissora de rádio nos anos 1950 significava descortinar um mundo mágico. Alguns programas, devido a grande freqüência do público, não cabiam mais nas dependências das emissoras e eram realizados em teatros. Participar de um deles era uma experiência inesquecível, como a descrita nas memórias de Paulo César Ferreira:

Numa manhã de sol, vesti minha melhor roupa, abri meu melhor sorriso e saltei para o primeiro bonde, ao lado de minha mãe. Iria viver uma das experiências mais eletrizantes da minha infância. Como por encanto, entrei no rádio, vi as válvulas por dentro, a máquina em marcha do Trem da alegria. Um dos programas de auditório mais concorridos do Brasil já nem cabia mais no salão de trezentos lugares da Rádio Tupi. E nós tomamos o rumo do imenso Teatro Carlos Gomes para acompanhar de perto (…) o festival de prêmios e jogos promovidos pelo Trio de Osso: os magricelas Heber de Bôscoli, “o maquinista”, Yara Sales, “a foguista”, e Lamartine Babo, o “guarda-freios”. No palco, uma maria-fumaça apitava a toda hora e, na platéia, a criançada saía dos trilhos. Eu mal conseguia respirar. Nem minha mãe. Saímos os dois do auditório, de olhos esbugalhados, agarrados aos brindes gentilmente oferecidos pelos patrocinadores: águas de colônia Regina e potes de farinha de banana Flacs. Naquele dia, eu me senti parte do rádio. [4]

Para o público ouvinte “sentir-se parte do rádio” como descreve Paulo César Ferreira era, acima de tudo, uma experiência marcante que tornava a relação com o rádio ainda mais intensa. A idéia de que as transmissões eram frutos das manifestações de grandes talentos num ambiente alegre e descontraído exercia um grande fascínio no público ouvinte. No entanto, as emissoras de rádio além de corporificarem-se como “fábrica de sonhos”, eram lugares de complexos sistemas de trabalho que envolvia um grande número de profissionais, que se dividia nas mais diversas funções. Uma aura de glamour envolvia os que trabalhavam naquele mundo, como se o simples fato de conviver naquele ambiente os tornassem pessoas especiais, usufruindo de pequenas doses da química dos grandes ídolos da época, esses sim, verdadeiros “deuses do Olimpo”.

As publicações especializadas, especialmente a Revista do RádioRadiolândia, freqüentemente estampavam em suas páginas matérias sobre o padrão de vida dos artistas com destaque para a vida doméstica, fartamente ilustrada com fotos onde se reforçava a imagem de famílias harmônicas desfrutando de apartamentos decorados com “elegância”, onde não faltavam os aparelhos eletrodomésticos. Típico quadro do que era o desejável estilo de vida moderno, urbano e bem sucedido. Os salários fabulosos e o estilo de vida apresentados nestas publicações, reproduziam um padrão de vida que era alcançado apenas por uma mínima parcela de privilegiados. O cotidiano da grande maioria dos profissionais do rádio era bem diferente do glamour que lhe era atribuído. Nos depoimentos daqueles que atuavam no rádio são recorrentes as referências, quanto à distância entre este tipo de imagem, e as condições em que vivia a a maior parte deles.

A cantora Emilinha Borba, em entrevista à Revista do Rádio, descreve a maneira como era abordada com pedido de presentes para aqueles que consideravam que para os artistas do rádio tudo era possível:

Pensam que ganhamos milhões… entre as cartas que recebo.. .meus fãs me pedem máquinas de costuras, aparelhos de rádio, vestidos para o aniversários das mãezinhas  queridas, um par de sapatos e até mesmo um vestido de baile.[5]

Em contrapartida aos salários pouco atrativos, o prestígio dado pelo rádio abria para os artistas possibilidades de outros campos de atuação. Através de excursões pelo Brasil e o exterior os artistas promoviam sua imagem, seus discos e filmes.  Nas cidades do interior eram recebidos com verdadeira comoção. As pessoas queriam ver e tocar aqueles que somente eram ouvidos de longe e que eram considerados autênticos embaixadores das “maravilhas urbanas”.

No setor musical os cantores e cantoras eram os mais conhecidos do público e muitos se tornavam celebridades nacionais, podendo chegar a ser conhecidos até internacionalmente. Os programas de auditório contribuíam ainda mais para promover os artistas e tornaram-se verdadeiros fenômenos. Aparecer num programa de auditório no rádio como cantor implicava numa mudança radical de hábitos de vida e de status. Ingressar no rádio significava ter o seu talento reconhecido e respeitado como diz a letra do samba Grã-fino respeitado, de autoria do compositor Metade e cantado em 1946 por Domores Soares, que se intitulava “O satanás do samba”:

Sou brasileiro
Sou do Rio de Janeiro
Sou grã-fino respeitado
Em altas malandragens
E com vantagem
De ser bem considerado
Meu nome vive em cena
Na boca das pequenas
O meu cartaz é conhecido até demais
Como artista competente
Todos sabem meu valor
Eu sou cantor de microfone
Sou feliz…
Quando acabo de cantar
O auditório pede bis…
[6]

No momento em que não havia um mercado fonográfico consolidado, os cantores e compositores dependiam muito mais das emissoras para divulgar suas músicas. Para aqueles que não conseguissem chegar a esta estrutura, a possibilidade de reconhecimento social ficaria remota, conforme descrito no samba Maestro caixa de fósforo, de Germano Augusto e Gabriel Meira, gravado por Araci de Almeida em 1943, e que sugestivamente traz como frase de abertura: “Sai pra lá, maestro caixa de fósforo!”:

Nunca ouvi seu nome
Lá no microfone
Seu samba
Nasce e morre no botequim
Quanto tempo perdido
Quanto café pequeno
Quanto papel rabiscado
Quantas noites de sereno
Sai pra lá, sai prá lá!
[7]

Além dos radioatores, cantores e animadores de auditório havia o grupo dos locutores que concorria com os outros três em popularidade. Alguns speakers, como eram chamados, eram assediados por fãs tanto quanto os artistas da música e do teatro. Era muito comum que alguns anunciantes exigissem que seus anúncios fossem lidos por um determinado speaker, que muitas vezes se tornava um profissional semi-exclusivo daquele produto.

A intimidade como mediadora do consumo

Essa busca de uma relação próxima, de intimidade, é freqüentemente reforçada na linguagem utilizada pelos artistas e locutores, que se dirigem ao público sempre de uma maneira bastante pessoal: “a você, que está me ouvindo”; “ouça agora, minha amiga”, “vou cantar para vocês”, entre outras.  O universo dos ouvintes é amplo e heterogêneo, mas uma parte expressiva busca uma participação ativa, através de telefonemas e envio de cartas.  As emissoras estimulam a atuação participativa dos ouvintes, beneficiando-se do sentido de criação coletiva, que imprimem ao rádio, elevando a audiência e, conseqüentemente, despertando maior interesse junto aos anunciantes. A contar pela participação do público, o mecanismo funciona. De 1945 a 1955, o Setor de Correspondência da Nacional recebeu quase 8 milhões de cartas. O slogan utilizado pela emissora era “Na Nacional o público é o juiz”.

Um outro elemento desta relação do rádio com os ouvintes é a forma como sua linguagem é incorporada ao cotidiano. Mário Brassini afirma que, em viagem pelo país, no início dos anos 1950, pode verificar que:

(…) na região norte já não se falava aquela linguagem tão purista e acadêmica em função, exatamente, dos animadores dos programas de rádio que não falavam uma linguagem invejável e que inventavam cada um suas gírias para se caracterizarem. Então eu cheguei a São Luiz do Maranhão (…) e não encontrei ninguém falando castiço, encontrei moças repetindo aquelas deformações de linguagem:… “Figura de fulano de tal”, quando queriam apresentar alguém. Não sei exatamente qual foi o animador de auditório que lançou essa expressão: ” figura de fulano, figura de Emilinha Borba, figura de Marlene”. Não existia na linguagem brasileira do tempo. Já era influência do rádio (…) unificando nacionalmente a linguagem.[8]

A certa “unificação da linguagem” promovida pelo rádio, soma-se sua capacidade de narrar a vida cotidiana, o que significa produzir sentidos para a própria vida. Uma série de charges de Walter Braga, publicadas na revista Radiolândia m 1950 capta este tipo de integração. Nelas vê-se a personagem Risoleta em suas atividades diárias, sempre acompanhada da “voz do rádio”. Enquanto enfrenta os incômodos do trem lotado, Risoleta houve pelo rádio “Estamos no Trem da Alegria, programa de Héber de Bôscoli”.

Na charge seguinte, ao cuidar das tarefas domésticas a personagem imagina uma coroa enquanto o rádio anuncia “a rainha canta”. Em seu passeio pela orla marítima escuta a letra que lhe diz “Copacabana princesinha do mar…” A identificação do público com esta narrativa é grande, pois, o meio radiofônico, além de espaço legitimador de referências culturais, é para o ouvinte, antes de tudo, um companheiro que  preenche de sentidos o dia-a-dia.


Algumas publicações reforçavam estes laços, funcionando como extensões do próprio meio. As duas principais, na década de 1950, foram a Revista do Rádio, cuja primeira edição é de 1948 e Radiolândia, iniciada em dezembro de 1953.  Estas publicações incentivavam e alimentavam continuamente a curiosidade pública, no que se refere à vida “por trás dos bastidores”. Todo um discurso acerca das personalidades artísticas como padrão de moral e sucesso econômico é reforçado. Além de dissecar a vida pessoal dos artistas, reservando espaço para rixas pessoais e problemas familiares, destaca-se sempre o lado “invejável” do padrão de vida que levavam.

Capa da Revista do Rádio - acervo particular
As matérias da Revista do Rádio associavam com freqüência a imagem do artista à família, como representações de “lar ajustado e feliz”, ilustradas com muitas fotografias em que se destacam os bens adquiridos como casas e reformas de apartamentos, fruto do “sucesso e de batalha pessoal”. Nas duas publicações havia espaço reservado para cartas dos leitores, onde o público se pronunciava acerca de suas preferências, mandava recados para os seus ídolos, tanto “queixosos” quanto “elogiosos”.  Este espaço colocava-se como um canal aberto entre o público e os artistas.

Todo o empenho em tornar público o “mundo do rádio” incentivava a emergência de um tipo especial de ouvinte – os fãs – que, organizados formalmente em fãs-clubes participavam da corte do artista escolhido, promovendo-o, sistematicamente, com homenagens públicas e demonstrações de carinho e afeto. Os fãs-clubes tinham um caráter disciplinador, organizando a formação da corte e permitindo a aproximação com os ídolos. Para os artistas, o fã-clube tinha um lado prático bastante positivo, pois por trás do relacionamento despretensiosamente carinhoso, funcionava um mecanismo valioso de publicidade e termômetro do sucesso alcançado.

Os fãs-clubes marcavam diferenças entre si. A partir do perfil público do artista, seus admiradores se organizavam de modo a confirmar esse perfil, conformando-o por determinados sinais de identificação sociocultural. Em torno dessas diferenças, alimentavam-se rivalidades que promoviam os envolvidos. Neste tipo de disputa, tornou-se marcante a atuação dos fãs-clubes de duas das cantoras mais famosas da época, Marlene e Emilinha Borba. Marlene se dizia existencialista, gostava de viagens e de experimentar a vida. Emilinha fazia o estilo mais tradicional, gostava de cozinhar e de cuidar da casa. Numa seqüência de reportagens da Revista do Rádio em 1956, dedicada às trajetórias das duas cantoras, afirma-se que elas se conheceram no início das carreiras e a rivalidade entre as duas não existia de fato, pois Emilinha era madrinha do casamento de Marlene.  No entanto, estimulava-se a rivalidade entre as respectivas fãs. Os fãs-clubes procuravam superar-se um ao outro na homenagem às suas estrelas.

O relacionamento bem sucedido das estrelas com seus fãs dependia de um sistema de cumplicidade. Emilinha afirma que, num episódio em que quis preservar-se do assédio de seu fã- clube, foi vítima de um protesto que jamais esqueceu. A cantora sentindo-se indisposta ao sair de uma apresentação, driblou as fãs que queriam acompanhá-la e, na apresentação seguinte, as fãs revidaram:

Quando entrei no auditório da Nacional, elas estavam todas sentadas. Cantei o primeiro número e a fanzocada, braços cruzados, nem me aplaudia. (…) Na segunda-feira seguinte lá estavam elas gritando: ‘Minha estrela, minha rainha, minha querida’. Cruzei os braços e pedi a direção da Rádio que colocasse um disco de palmas, porque estava muito magoada com as minhas fãs. Mas tudo isso não passou de um breve desentendimento e logo ficamos de bem.[9]

Quando o objeto de adoração evita a corte, o pacto é abalado, mas o equilíbrio é recuperado, assim que ambas as partes manifestam sua insatisfação, e tudo fica “bem”. Além dos fãs-clubes, havia outras formas de organizar o contato com os artistas, como a escolha de Reis e Rainhas do Rádio. A escolha era feita pelo público através do envio de cupons organizados pela Revista do Rádio. As vencedoras, além do título de Rainha do Rádio e de toda promoção decorrente, recebiam prêmios como jóias, viagens, automóveis e apartamentos. No concurso de 1949 a vencedora foi Marlene, que fazia parte de uma campanha da Companhia Antarctica Paulista, de um de seus produtos – o Guaraná Caçula. A Antarctica deu um cheque em branco para cobrir qualquer quantia e financiou o envio de cupons fazendo com que  Marlene superasse suas adversárias. A cantora foi eleita e manteve o título até 1951.[10] A foto de Marlene com a faixa de Rainha do Rádio, trazendo às mãos o Guaraná Caçula, foi amplamente divulgada na imprensa. A Revista do Rádio e outras publicações faziam a cobertura completa de todo o concurso que prosseguiu até os anos 1960 chegando a editar concursos regionais.

A proximidade entre os artistas e o público criada pelo rádio, e reforçada pelas revistas, transformavam os primeiros, em intérpretes “da alma emotiva” e, ao mesmo tempo, em padrões de consumo que chegavam aos pontos mais distantes do país pelas ondas sonoras. Junto à imagem dos artistas de rádio eram divulgados produtos de beleza, higiene, roupas, farmacêuticos etc. Na campanha do sabonete Eucalol, a cantora Emilinha estampava um sorriso por ter escolhido o produto, depois de selecionar e comparar, pois ela “precisa conservar-se linda… ela usa o sabonete Eucalol”, pois, “no palco, na tela ou no microfone, Emilinha Borba conquista sempre novos trunfos e maiores admiradores”. No mesmo anúncio são publicados os depoimentos de atrizes do teatro e da televisão, que afirmam a mesma escolha. Um espaço em branco é reservado ao retrato da consumidora que, ao fazer a opção pelo sabonete Eucalol, passa a ocupar um lugar bem próximo das estrelas que admira.

Os locutores, que também eram adorados pelo público, com suas vozes aveludadas num timbre macio e até mesmo sensual, tornavam-se tão conhecidos como os artistas, transformando-se em objetos de paixões platônicas, ao mesmo tempo em que anunciavam para todo o Brasil, removedores de calos, laxantes, lojas de roupas e vários outros produtos.

Com a implantação da televisão vai se configurando um novo canal de produção e circulação de produtos culturais e publicidade. Como bem de consumo, inicialmente restrito às camadas mais ricas da população, para a televisão converge a verba de publicidade do que seria o grande manancial do período pós-guerra – os eletrodomésticos. Em 1956, a TV inaugura seu horário diurno, entre onze e treze horas. Os canais ampliam paulatinamente sua capacidade de transmissão para regiões mais distantes dos grandes centros. Acompanhando o aumento do consumo de televisão, as Revista do Rádio, Radiolândiaabriram seções específicas para o meio televisivo, com matérias e reportagens. Surgem ainda, publicações específicas como a Revista da Televisão (1956), TV Programa (1955) Intervalo (1963). O Jornal, das Emissoras Associadas, a pioneira no ramo de televisão, passa a incluir, na década de 1960, nas edições de domingo, um encarte especialmente dedicado ao novo veículo.

O tratamento é bastante parecido àquele dedicado ao mundo do rádio. Entrevistas e reportagens sobre os programas e a vida íntima dos artistas, sucedem-se às seções dedicadas à opinião dos “teleouvintes”.  A TV Programa, abre uma seção especialmente dedicada à publicação de suas cartas. Nelas verifica-se, que o público age com a televisão como se fosse um especialista, opinando sobre aperformance dos atores e a produção dos programas. As críticas são mais severas que aquelas publicadas na Revista do Rádio. Trata-se de um momento em que há uma distinção entre estes públicos. Enquanto o rádio é um meio nacionalmente popular, a televisão é vista apenas pela camada mais rica da população. Os artistas comentam acerca do tratamento que recebem através de telefonemas para as emissoras ao final das apresentações para cumprimentar os artistas, numa atitude similar à ida aos camarins aos finais dos espetáculos realizados em teatro.

A publicidade investe na idéia, de que televisão é sinônimo de status. O apelo para compra do televisor é feito por sua associação à “qualidade” e afinidade com outros bens de consumo, com o mesmo tipo de denotação. Numa outra peça publicitária de divulgação da TV Coroados, das Emissoras Associadas, publicada pela revista Manchete, em fevereiro de 1967, é apresentada a imagem de uma família ideal, um casal de aparência jovem e feliz, acompanhado por dois filhos, cercado de eletrodomésticos. A emissora de TV Coroados é simbolizada como o “veículo ideal para anunciar qualquer produto: ela fala a um público que compra muito, e que a ‘escuta’ mais ainda”.


Os programas de rádio vão sendo adaptados para o formato da tela. Como, também, tem início uma série de experiências, com relação a uma produção especificamente voltada para a constituição de uma linguagem televisiva, o que vai ocorrer, especialmente, com o jornalismo, a produção de dramaturgia e a publicidade. O público já havia experimentado a imagem através do cinema, porém, a capacidade da televisão de trazer a imagem para dentro das casas, numa fase em que é ao vivo, potencializa a força da imagem como narrativa do cotidiano.

Esta credibilidade da televisão foi sendo construída juntamente com certa sedução tecnológica. O conceito de programação televisiva vai se formando em conjunto com a expansão do mercado de bens de consumo, valorizando o que seria o seu diferencial: o hábito de audiência. A programação passa a ser dividida em segmentos: infantil, feminino, masculino e jovem. No caso do público jovem a diferenciação, como parte da constituição de uma sociedade de consumo, é ainda mais marcante. Conforme afirma Beatriz Sarlo:

A juventude não é uma idade e sim uma estética da vida cotidiana. (…) O mercado ganha relevo e corteja a juventude, depois de instituí-la como protagonista da maioria de seus mitos. (…) A renovação incessante, necessária ao mercado capitalista, captura o mito da novidade permanente que também impulsiona a juventude. Nunca as necessidades do mercado estiveram afinada tão precisamente ao imaginário de seus consumidores.[11]

A experiência da modernização inclui, necessariamente, segmentações de gostos e públicos, através das quais vão sendo criadas novas formas de identidade, que passam pelo consumo de bens cada vez mais diferenciados. Os aparelhos portáteis de televisão vão se disseminando, incentivando a audiência individual em que cada um pode ver “o que quer”, “quando quiser”. No ano de 1968, em plena era do AI-5, o governo providencia a liberação de crédito ao consumidor e a compra de aparelhos de televisão aumenta cerca de 32%. O sonho da “televisão própria” torna-se mais exeqüível  para uma maior parcela da população brasileira. A intimidade que a televisão vai estabelecendo com o público, tal qual o rádio anteriormente, lhe assegura a posição de lugar privilegiado, onde se produzem e circulam narrativas fundamentais para experimentação da modernização e a ampliação do sentimento de incorporação social, numa sociedade em que, contraditoriamente, se acirram os contrastes sociais.

*Amara Silva de Souza Rocha é Doutora em História Social pela UFRJ, Historiadora e Pesquisadora Associada do Programa Avançado de Cultura Contemporânea da UFRJ e Coordenadora do projeto “Produção e consumo cultural nas periferias urbanas”, financiado pela FAPERJ. Autora de vários artigos sobre teorias da modernização e do consumo, história urbana e história da mídia e do livro Nas ondas da modernização. O rádio e a TV no Brasil de 1950 a 1970, Rio de Janeiro: Aeroplano/FAPERJ, 2007.


[1] FERREIRA, Paulo Cesar. Pilares via satélite: da Rádio Nacional à Rede Globo. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. p. 34

[2] Depoimento de Mário Brassini publicado na Revista USP,jan/2002/fev/2003, nº 56. “Dossiê Oitenta anos de rádio”. p. 27.

[3] FERREIRA, Paulo César. Op. cit. p.34. A citação ao Romário, o “homem-dicionário”, tem a ver com um programa de perguntas e respostas, da época em que notabilizou este indivíduo, que durante longo tempo respondia perguntas sobre os mais variados assuntos, ganhando vários prêmios e ficando nacionalmente conhecido por esta façanha.

[4] FERREIRA, Paulo César. Op. cit. p. 35.

[5] Revista do Rádio, 8/12/1956, “Como subiram duas estrelas: Marlene e Emilinha”.

[6] Letra conforme publicação em número do Jornal de Modinhas de 1946. In: TINHORÃO, José Ramos. Música popular: do gramofone ao rádio e à TV. São Paulo: Ática, 1981. p.130-1.

[7] GERMANO AUGUSTO e MEIRA, Gabriel. Maestro caixa de fósforo (samba). In: TINHORÃO, José Ramos. Op. Cit. p.131: “Gravado por Araci de Almeida, conforme indicação do jornal A Modinha, de dezembro de 1943, onde está transcrita a letra aqui reproduzida.”

[8] Depoimento de Mário Brassini dado ao NEP/Funarte em 1982.

[9] Jornal o Brasil, 29/01/1975, Caderno B.

[10] Depoimento de Marlene ao Museu da Imagem e do Som em 5/10/1971.

[11] SARLO, Beatriz. Cenas da vida pós-moderna. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2000. p. 40-1.

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O Rio de Janeiro aos olhos do cronista popular | de Fred Góes


É quase redundante dizer que a cidade do Rio de Janeiro seja a grande musa inspiradora da crônica brasileira. Foi capital federal, berço dos principais fatos da nossa história, farta em acontecimentos relevantes, ao que se soma a desconcertante beleza natural, fonte permanente de inspiração dos artistas, queiram ou não vozes dissonantes.

No que tange à crônica, forma literária eminentemente urbana, foi aqui que se desenvolveu, se aclimatou e ganhou fisionomia brasileiríssima como lugar de experimento de quase a totalidade de nossos escritores de prosa e de poesia. Foi também aqui que ultrapassou os limites do literariamente consagrado, ganhando feição peculiar nos versos do compositor popular.

Nossos cronistas da canção, como os literatos, põem em foco a vida cotidiana, os fatos circunstancias, as bugigangas poéticas da cidade, dando voz a ela.

Restringindo-me ao universo dos sambas e das marchinhas carnavalescas, procuro revisitar a cidade, sublinhando momentos da vida carioca no século XX. Entre os anos 30 e 60, a marchinha e o samba eram, de outubro a fevereiro, os gêneros absolutos do rádio. De tal forma, que a música popular se dividia entre música de meio de ano e música de carnaval.

Relembrando as marchinhas, damo-nos conta de que apesar dos tantos “bota abaixo”, “liftings“, e “aplicações de botox” de que o Rio foi vítima, jamais perdeu a soberania. Afinal, é a única cidade das Américas que um dia foi capital metropolitana do reino. Mais que isso, o que se percebe é que, quando pensamos esse segmento musical no contexto da crônica, fica evidente que esta forma literária acompanhou, no seu processo de produção, as transformações da cidade, se impondo, mais e mais, como espaço de experimentação poética, sendo sempre capaz de se adaptar aos novos suportes de mídia, sejam periódicos, rádio, televisão, sejam os recursos das mídias eletrônicas. Talvez essa capacidade mutante da crônica seja mesmo de ordem genética já que seu texto é trama tecida com fios de história e de estória.

Em verso ou em prosa, a cidade segue atraindo os olhares ora atentos, ora perplexos, ora aterrorizados, mas sempre apaixonados de quem a  flagra textualmente.

Antes de entrarmos, especificamente, em nosso nicho musical, há que se destacar que, na canção popular brasileira, há um número representativo de compositores cuja atividade poética tem a marca evidente da crônica. Tal fato não se restringe ao cancioneiro tradicional, consagrado. O que a rapaziada do rapfunkhip-hop faz nada mais é que crônica, sendo que agora, nos é apresentada a vivência, o cotidiano das comunidades carentes, marginalizadas, periféricas, que, até pouco tempo, não eram ouvidas. “Eu só quero ser feliz/ Andar tranqüilamente na favela onde eu nasci”, há pouco, era o recado pacífico cantado por Claudinho e Bochecha.

Quem melhor que Noel Rosa retratou o Rio de Janeiro da década de 30 do século passado? Se Lima Barreto e João do Rio são os que registram a cidade nas duas primeiras décadas do século XX, é Noel quem vai comentar a verticalização, o surgimento dos arranha-céus, o nascedouro da industrialização. É quem ouve o apito da fábrica de tecidos que ecoa entre as chaminés do progresso.

Entremos, pois, na folia conduzidos por João do Rio que, na sua famosa crônica, Cordões, constante deAlma encantadora das ruas, cita a passagem de uma famosa associação carnavalesca pelas ruas centrais da cidade, na aurora do século XX, 1908. Diz a quadra selecionada: No Largo de São Francisco/ quando a corneta tocou/ Era o triunfo _ Rosa Branca/ Pela rua do Ouvidor. Neste período, não se identificava a diferença entre cordão, bloco, rancho e as outras formas de associação populares. A rua do Ouvidor era a principal passarela oficial dos desfiles, onde se apresentavam as Grandes Sociedades do carnaval “civilizado”, de sabor parisiense. Expressão enaltecida pelos intelectuais que militavam nas páginas diárias, inimigos ferrenhos do entrudo popular que insistia em sobreviver. Além disso, era na rua do Ouvidor onde se localizava a maioria das redações promotoras dos concursos carnavalescos. Deixar de fazer o circuito significava não existir no carnaval.

No carnaval de 1904, o grande sucesso foi a polca Rato, rato, de autoria de Casemiro Rocha, pistonista da Banda do Corpo de Bombeiros, e Claudino Costa, cujo tema está atrelado à grande campanha de saneamento empreendida por Oswaldo Cruz contra a febre amarela e a peste bubônica, durante o período Pereira Passos. Nesse momento, os caçadores do indesejado animal recebiam uma quantia em pagamento. A letra, ao longo de seu desenvolvimento, revela, sem meios tons, um preconceito anti-semita de causar arrepios, evidenciando o comportamento da sociedade brasileira com relação aos segmentos sociais minoritários. Relembro que os compositores são representantes do proletariado, portanto, a descriminação não é de caráter social e sim religiosa ou racial. Os versos iniciais dizem: Rato, rato, rato/ Por que motivo tu roeste meu baú?/ Rato, rato, roto/ Audacioso e malfazejo gabiru. Os versos a que me refiro como laivados de preconceito dizem: Quem te inventou?/ Foi o diabo, não foi outro, podes crer./ Quem te gerou?/ Foi uma sogra pouco antes de morrer!/ quem te criou?/ Foi a vingança, penso eu/ Roto, rato, rato/ Emissário do judeu.

Ainda dentro deste tema, há uma história deliciosa contada por Edigar de Alencar[1]. O autor relata que, como pagavam aos que caçavam ratos, apareceu um requerimento na Saúde Pública reclamando um pagamento astronômico, no valor de oito contos e trezentos e trinta tantos mil reis pelo fornecimento de noventa mil ratos. Descobriu-se, depois de muito averiguar, que o requerente era de Niterói e que andava caçando ratos por todo o estado, além de criá-los em sua residência. Tal fato suscitou uma cançoneta também de sucesso no carnaval de 1904 e que dizia: Faço negócio com rato/ Sou uma grande ratazana/ sustento um mano e uma mana/ Três filhos e quatro gatos./ O que me faz afligir/ O que agora mais me dói/ É não poder impingir/ Mais ratos de Niterói.

Quando me propus apresentar e discutir letras exemplares que revelassem a cidade, não poderia me limitar àquelas que apresentassem aspectos geográficos, históricos. Procurei, portanto, dar ênfase às que revelassem a alma da nossa gente.


Nas duas primeiras décadas do século XX, a música composta especificamente para o carnaval não havia ainda se fixado, isso ocorrerá, de forma sistemática, a partir dos anos 30, período em que o samba se fixa como forma e que corresponde, também, ao período de desenvolvimento da radiodifusão, que ganha formato popular.

No carnaval de 1925, no entanto, encontramos já uma marchinha de autoria de Pedro de Sá Pereira e Américo F. Guimarães, que chama atenção para moda arrojada daquele momento, a moda das melindrosas que serão eternizadas no traço de J. Carlos, e dá início ao diálogo com uma série de outras marchinhas que observam o comportamento feminino como Menina vai, Chiquita Bacana, A filha da Chiquita Bacana. A marchinha em referência se chama Á la garçonne, como era chamado o corte de cabelo que imortalizou as coquetes dos anos 20. Dizem alguns versos: Hoje no Rio o que está na moda/ E o que se usa com perfeição/ Qualquer menina de alta roda/ Faz um mocinho andar contra mão/…/ à la garçonne/ É a tal moda de sensação/ Cabelos curtos, bem aparados/ lindos cangotes nos deixam ver/.

Em 1928, a expressão popular “eu quero é nota” enseja Artur Faria a compor um samba que recebe como título a expressão. Serve aqui como um claro exemplo das diferenças sociais que, em quase nada, modificaram nosso quadro sócio-econômico nos últimos 90 anos. Diz a segunda parte do samba: Eu queria ter dinheiro/ que fosse em grande porção/ Eu comprava um automóvel/ E ia morar no Leblon/ Eu como sou operário/ E não posso ser barão/ Vou morar na Mangueira/ Num modesto barracão.

Nos anos 30, no período que antecede ao Estado Novo, e posteriormente, quando da candidatura à presidência, o populista Getulio Vargas foi tema de várias marchinhas, sendo imortalizado na última que clamava “bota o retrato do velho outra vez/ bota no mesmo lugar” e que nos faz recordar a tradição que se mantém até hoje, herdada dos regimes totalitários, repetindo a moda dos reis demiurgos, de afixar em toda e qualquer repartição pública o retrato do mandatário.

A canção que vai enaltecer a cidade do Rio e acaba por tornar-se hino oficial, Cidade Maravilhosa, de autoria de André Filho, data de 1935. É, portanto, contemporânea do Estado Novo, momento em que foram compostos os deslumbrantes sambas de exaltação do nosso cancioneiro, gênero em completo desuso, no contemporâneo. O curioso e típico dessa forma de composição é que não há um único traço característico da singularidade da cidade enaltecido. O que se observa é uma seqüencial enumeração de elogios genéricos da ordem do maravilhoso: “encantos mil; coração do meu Brasil; berço do samba e das lindas canções que vivem na alma da gente; jardim florido de amor e saudade; terra que a todos seduz; ninho de sonho e de luz”.

No carnaval de 1941, surgem duas músicas, que tratam da questão das diferenças sócio-econômicas que se revelam a partir do lugar de enunciação. A primeira, de autoria de Artur Vilarinho, Estanislau Silva e Paquito, trata da dificuldade de se cumprir horário de trabalho em virtude dos atrasos do trem e da humilhação e preocupação do trabalhador diante do patrão, em virtude da possibilidade de perder o emprego. Dizem os versos de O trem atrasouPatrão o trem atrasou/ Por isso estou chegando agora/ Trago aqui o memorando da Central/ O trem atrasou meia hora/ O senhor não tem razão de me mandar embora// O senhor tenha paciência/ É preciso compreender/ Sempre fui obediente/ Reconheço meu dever/ um atraso é muito justo/ quando há explicação/ sou um chefe de família/ preciso ganhar o pão/.

Neste período, a valorização do trabalho e a figura do trabalhador estão em grande voga, tanto com o propósito de inibir o enaltecimento ao malandro, comportamento recorrente no cancioneiro de então, quanto para corroborar as leis trabalhistas instituídas pelo governo populista de Vargas. Observe-se os versos de Eu trabalhei, de Roberto Roberti e Jorge Faraj: Eu hoje tenho tudo, tudo que um homem quer/ Tenho dinheiro, automóvel e uma mulher!/ Mas, pra chegar até o ponto em que cheguei/ Eu trabalhei, trabalhei, trabalhei//. Nesta temática, são ainda relevantes dois outros sucessos carnavalescos O bonde do horário já passou, muito cantado no carnaval de 1930, de Edgar do Estácio, que narra a história de um malandro que há cinco dias perde o horário do trabalho, e o famoso O bonde de São Januário, de Wilson Batista e Ataulfo Alves que segue o mote da valorização do trabalho nos versos: Quem trabalha é quem tem razão/ Eu digo não tenho medo de errar/ O bonde São Januário/ Leva mais um trabalhador/ Sou eu que vou trabalhar. Nas entrelinhas fica evidente a conversão do malandro em trabalhador.

Recorrente é também, no universo das marchinhas e do samba carnavalesco o lamento ou protesto face às reformas empreendidas na cidade. Exemplar é o samba de Herivelto Martins e Grande Otelo, de 1942,Praça Onze, cuja estrofe inicial diz: Vão acabar com a Praça Onze/ Não vai haver mais Escola de Samba, não vai/ Chora o tamborim/ Chora o morro inteiro/ Favela, Salgueiro/ Mangueira, Estação Primeira/ Guardai os vossos pandeiros, guardai/ Porque a Escola de Samba não sai. Neste período, o desfile das escolas de samba ainda não era oficial. A Praça Onze era o local onde as escolas se apresentavam, onde a comunidade do samba se reunia sem a mediação do poder público. Era ali onde se realizava o carnaval proletário que se distinguia do “oficial”, do corso, das Grandes Sociedades e dos bailes da elite.

Muitas são as marchinhas e sambas que se configuram como canções de protesto avant la lettre como é o caso de Sapato de pobre, de Luiz Antônio e Jota Júnior, 1951: Sapato de pobre é tamanco!/ Almoço de pobre é café/ Maltrata o corpo como quê, porque:/ O pobre vive de teimoso que é. Da mesma dupla de compositores, e defendido pela mesma Marlene, no ano seguinte, o grande sucesso do carnaval foi Lata d’ água, que considero um dos mais tocantes exemplos do retrato da cidade cindida entre o asfalto e o morro. Dizem os versos: Lata d’água na cabeça/ Lá vai Maria, lá vai Maria/ Sobe o morro e não se cansa/ Pela mão leva a criança/ Lá vai Maria// Maria lava roupa lá no alto/ Lutando pelo pão de cada dia/ Sonhando com a vida no asfalto/ Que acaba onde o morro principia.

Muitas são, também, as marchinhas que denunciam as deficiências urbanas como Tomara que chova, de Paquito e Romeu Gentil. Tomara que chova/ três dias sem parar/ A minha grande mágoa/ É lá em casa não ter água/ Eu preciso me lavar. Decisiva, neste segmento é Vagalume, de Vitor Simon e Fernando Martins: Rio de Janeiro/ Cidade que me seduz/ De dia falta água/ E de noite falta luz// Abro o chuveiro/ Não cai um pingo/ Desde segunda/ Até domingo…/ Eu vou pro mato/ Ai, pro mato eu vou/ Vou buscar um vagalume/ Pra dar luz ao meu chatô.

Há ainda a série de marchinhas que, muitas vezes, prenhes de preconceito, observam o comportamento sexual ou a moda mais ousada como Cabeleira do Zezé, Vai ver que é, e já na fase da decadência do gênero, Maria Sapatão.


Fui buscar um samba de partido alto para exemplificar o quão musical é a cidade e quão engenhosos, poeticamente, são nossos compositores. Em Geografia popular, Marquinho de Oswaldo Cruz, Edinho Oliveira e Arlindo Cruz tiram proveito do itinerário do trem da Central do Brasil para fazer a cartografia sentimental do samba, a partir das diferentes paradas (estações), onde o gênero marca presença. Dizem os versos: Gente boa, onde Aniceto está?/ Foi pra bem longe/ Quero ver quem vai dizer em verso/ Onde se esconde// Vou sair, mas volto já, meu bem/ Eu não demoro/ Vou pegar o parador ali/ Em Deodoro// Lá em casa do Osmar/ Tem um pagode bem legal/ Eu sai de Deodoro e cheguei/ Em Marechal// Salve Lira do Amor/ Escola de grandes partideiros/ E depois de Marechal, o que é que vem?/ Bento Ribeiro// Vou pra terra de Candeia/ Onde o samba me seduz/ Pois lugar de gente bamba, onde é?/ Oswaldo Cruz// Lá na Portela ninguém fica de bobeira/ Mas o Império Serrano também é/ Em Madureira// Quem é bom já nasce feito/ Quem é bom não se mistura/ Que saudade do pagode do Arlindo/ Em Cascadura// Já pedi pro meu São Jorge/ Pra guiar o meu destino/ Na igreja do ferreiro eu rezei/ Lá em Quintino// Tem botija, Água Santa, Usina/ E Universidade/ Alô Caixa, alô, 18, alô, alô, povão/ Da Piedade// Vou seguindo a trajetória/ Mas o trem tá muito lento/ E a parada obrigatória, onde é? No Engenho de Dentro// Méier, Engenho Novo, Sampaio, Rocha, / Que canseira/ Riachuelo, São Francisco e, até que enfim,/ Minha Mangueira/ Maracanã, São Cristóvão/ Lindo bairro imperial/ Só depois de Lauro Muller/ Amor, cheguei lá na Central.

Destaco ainda um samba cuja temática é a crítica do compositor popular ao crítico pseudo-intelectual, jornalista metido a conhecer o mundo do samba e que se assume como mediador entre o universo popular e o letrado. O samba chama-se Sinal aberto, de autoria de Casquinha: Pode dizer que meu samba é sambinha/ Pode me meter o malho/ Enquanto você diz que meu samba é sambinha/ Encontra matéria para seu trabalho// Mocinho bonito que quer ser locutor/ Quer ser jornalista e até produtor/ Espera o crioulo do morro errar/ Pra ir pra coluna do jornal malhar// Aponta um erro insignificante/ Ficando famoso e até importante/ Esquece de que “nego” é chefe de “famia”/ Que tem cinco “fio”, “muié” e três “fia”// Errei desta feita pra você corrigir/ Juntar  sua patota e ficar a sorrir/ Dizendo que o “nego” de fato é boçal/ Pra ele não tem singular nem plural// E ficam metidos a intelectuais/ Se chegam a jurados de televisão/ E esquecem de que se não fossem os boçais/ Jurado aqui não era profissão// Mas quando chega fevereiro/ Pra encher seu baú de dinheiro./ Freqüentam os ensaios com pinta de bamba/ No meio dos “criolos” da escola de samba.

O samba transcrito, como já observado, critica o jornalista pseudo-intelectual que se tem como grande conhecedor da “expressão popular”, que a considera como uma espécie de exotismo cultural, ao mesmo tempo em que a vê como forma menor, em cujo “registro lingüístico prevalecem as variantes da norma culta”. Criticar a crítica não é novidade no mundo do samba. O samba de Casquinha dialoga com Pra que discutir com Madame, de Haroldo Barbosa e Janet de Almeida, composto em 1956, que se tornou uma dos marcos do repertório de João Gilberto que o reinventou na batida de seu violão. O samba em referência tornou-se emblemático da postura de certo segmento jornalístico reacionário com relação à música popular, sendo este também um bom exemplo da crônica político-social brasileira da década de 50 através da canção.  Transcrevo a letra: Madame diz que a raça não melhora/ Que a vida piora/ Por causa do samba/ Madame diz que o samba é pecado/ Que o samba coitado/ Devia acabar/ Madame diz que o samba tem cachaça/ Mistura de raça, mistura de cor/ Madame diz que o samba é democrata/ Que é música barata/ Sem nenhum valor// Vamos acabar com o samba/ Madame não gosta que ninguém sambe/ vive dizendo que o samba é vexame/ Pra que discutir com Madame// No carnaval que vem também com o povo/ Meu bloco de morro vai cantar ópera/ E na avenida entre mil apertos/ Vocês vão ver gente cantando concerto/ Madame tem um parafuso a menos/ Só fala veneno/ Meu Deus que horror/ O samba brasileiro, democrata/ Brasileiro na batata é que tem valor.

A madame a que o samba se refere chamava-se Magdala da Gama de Oliveira, uma crítica de rádio que também mantinha uma coluna no jornal Diário de Notícias, onde assinava com pseudônimo Mag. A tal “madame” ganhou espaço na história da MPB como um dos seus mais célebres algozes.

Eu, da minha parte, concordo em número e grau com meu parceiro musical, o baiano Moraes Moreira, ao afirmar, cantando o Rio: “ Meu coração bate e apanha/ entre o mar e a montanha/ Sou Rio de Janeiro”.Sorrio, sorrio, sorrio…

*Fred Góes é Professor Doutor do Departamento de Ciência da Literatura da Faculdade. de Letras da UFRJ, onde atua na graduação e na pós-graduação. É compositor, letrista, ensaísta e autor dos livros: Nas Fronteiras do Contemporâneo, organizado com Nízia Villaça, Ed. Mauad, 2001; 50 Anos de Trio Elétrico, que recebeu o prêmio 2000 da Associação Brasileira de Comunicação Empresarial; Em Nome do Corpo (com Nízia Villaça), Ed. Rocco, 1998; Os melhores poemas de Paulo Leminski (com Álvaro Marins), Ed. Global, 1995; O que é Geração Beat (com André Bueno), Brasiliense, 1984; Gilberto Gil. Ed.Abril Cultural,1982 e O País do Carnaval Elétrico, Corrupio,1982.


[1] ALENCAR, Edigar. O Carnaval Carioca Através da Música. Rio de Janeiro: Francisco Alves 3ª ed.1979. p.93

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Entrevista com Bernardo Carvalho

Beatriz Resende entrevista Bernardo Carvalho
abril de 2007

Beatriz Resende: Depois do sucesso dos premiados Nove Noites e de Mongólia, você lança um romance bastante diferente: O sol se põe em São Paulo. Como você caracteriza esta última obra?

Bernardo Carvalho: O livro foi escrito, de certa forma, em reação à recepção do Nove Noites e doMongólia. A certa altura, me dei conta de que o que realmente atraía a maioria das pessoas nesses dois romances era o efeito de realidade, a idéia de que liam uma história real, baseada em fatos reais, como se o romance estivesse reduzido a um relato da realidade, como se a invenção, a criação e a imaginação fossem o de menos. E isso começou a me incomodar, porque era a negação daquilo em que eu mais acredito, a negação da própria literatura. Não foi um projeto deliberado, porque em literatura as coisas não acontecem assim, são mais ambíguas e mais complexas. O Sol se Põe em São Paulo não é a ilustração de uma tese prévia. Mas, de fato, tem um lado militante. De algum jeito, acabou sendo resultado de uma inquietação diante da perda do interesse dos leitores pela ficção na literatura. O romance é uma máquina desvairada de produção de ficção.

Beatriz Resende: Como é, para você, que nasceu no Rio de Janeiro, viver em São Paulo? Se você tivesse total liberdade para escolher, viveria aonde?

Bernardo Carvalho: Para mim, é fundamental o sentimento de não pertencer a um lugar, um certo deslocamento que impossibilita a integração e o reconhecimento, permitindo ao mesmo tempo que você siga vendo as coisas de fora. Quando vim para São Paulo, a cidade funcionou um pouco dessa maneira, como terra estrangeira dentro do Brasil. Isso foi muito importante para eu conseguir fazer as minhas coisas, para conseguir escrever. A distância faz você enxergar melhor. Há várias cidades do mundo onde eu gostaria de viver hoje. Mas em todas elas o que eu sempre procuro é essa excitação do estranhamento.

Beatriz Resende: Por que sua deriva geográfica é agora pelo Japão? Você acha a literatura japonesa realmente importante para leitores latino-americanos?

Bernardo Carvalho: Não tem nada muito específico nem programático. Sempre fui fascinado pela literatura do Tanizaki, que é uma figura muito presente nesse romance. Parte do livro pode ser lida como um pastiche dos romances do Tanizaki, narrado por uma das personagens principais. O Japão produziu grandes escritores no século XX. E isso em termos absolutos, mundiais. No caso desse romance, o que me interessava era o deslocamento do qual eu vinha falando, o Japão no Brasil e o Brasil no Japão, as coisas fora do lugar. E o curto-circuito que a inadequação e o estranhamento podem provocar na criação de outros pontos de vista, de outras maneiras de ver. Há uma frase no final do livro que resume esse sentimento e essa vontade: “o oposto é o que mais se parece conosco”.

Beatriz Resende: Em  seu O mundo fora dos eixos, importante obra de reflexão teórica sobre literatura, você faz um enfático  o elogio da ficção e propõe uma formulação que não é simples ao ver ” a imaginação como elemento constitutivo da realidade e não um artigo supérfluo”. O que você acha da forte tendência da literatura brasileira contemporânea ao realismo e ao documental?

Bernardo Carvalho: É uma tendência natural. Quanto maior a violência dessa realidade, mais ela vai impor uma representação unívoca, mais ela vai reduzir as possibilidades de representação. A questão não é representar ou deixar de representar a realidade (até porque, de alguma forma, ela sempre acaba representada), mas não sucumbir a uma determinada idéia de representação da realidade como modelo e paradigma. A imaginação é um elemento complexo da realidade. A literatura e a arte cessam quando você passa a aceitar modelos para a criação.

Beatriz Resende: No auge de sua carreira como romancista, você fez uma pausa e se dedicou a uma nova experiência, como autor dramático, na criação junto com o Teatro da Vertigem de BR-3.

Como foi esta experiência autoral? Como foi o processo de criação partilhado, como é proposta do grupo? O resultado obtido valeu a pena? O espetáculo correspondeu às expectativas?

Bernardo Carvalho: O processo de criação do BR-3 foi muito longo, intenso e violento. Quando fui convidado para escrever o texto, o projeto ainda estava numa fase muito incipiente, tudo se resumia a uma vontade um pouco difusa e aberta de falar do Brasil por meio de três lugares (Brasilândia, na periferia de São Paulo; Brasília e Brasiléia, na fronteira do Acre com a Bolívia) e à idéia genial do diretor, Antonio Araújo, de montar o espetáculo em barcos e nas margens do rio Tietê. Eu podia propor o que bem entendesse e logo deixei bem claro que não me interessava fazer uma sucessão de cenas ou esquetes. Queria tentar encenar um texto narrativo, com personagens que tivessem uma história e seguissem um percurso do início até o final da peça. E queria que o texto tivesse uma dimensão trágica. É lógico que, pelo histórico do Vertigem, a idéia não era escrever uma peça aristotélica, nem criar personagens psicológicos. O próprio cenário, o rio Tietê, um esgoto a céu aberto cortando a cidade mais rica do país, funciona como emblema do fracasso de um projeto industrial de modernização na periferia do capitalismo e reforça a perspectiva alegórica de um projeto teatral que pretende falar do Brasil bem ali. Eu queria muito escrever um texto contemporâneo e narrativo que se passasse em vários planos de tempo e de espaço. No início, até pensei em usar o rio como uma linha do tempo, localizando o passado, o presente e o futuro no espaço (no final das contas, isso acabou se tornando impossível, pelas próprias dificuldades da montagem, que eram imensas). Em princípio, eles aceitaram a minha proposta. Durante um ano, trabalhamos em vários lugares de Brasilândia, oferecendo oficinas para adolescentes etc. Aprendi um monte de coisas nessas idas a Brasilândia, duas vezes por semana, ao longo de um ano. Depois, fomos de caminhão até Brasiléia, passando por Brasília, numa viagem de pesquisa. A viagem durou um mês. Foi a minha lua-de-mel com o grupo. Na volta, apresentei uma proposta de enredo, uma sinopse, uma estrutura dramática e narrativa, com os personagens e alguns diálogos esboçados. E foi aí que começaram os conflitos com os atores que tomaram a experiência do espetáculo anterior, Apocalipse 1,11, como paradigma do processo de criação colaborativa do grupo. Alguns ficaram incomodados que eu tivesse criado os personagens e um enredo, se sentiram tolhidos da autoria. Essas dificuldades se estenderam por todo o processo e acabaram repercutindo no próprio texto. Minha sorte foi encontrar no Antonio Araújo, que é um diretor incrível, um grande parceiro e um defensor do texto. Adoraria voltar a trabalhar com ele, mas não no mesmo esquema. Acredito em autoria individual. Que eu saiba, não existe nenhum grande texto de teatro que não tenha sido escrito por uma única pessoa. É claro que existem grandes espetáculos de teatro criados coletivamente. Mas não se pode dizer a mesma coisa dos textos. Há uma tendência, em alguns meios, a ver na autoria individual um resquício burguês e reacionário. Eu acho que é justo o contrário. A autoria individual é a possibilidade da diferença, da inadequação ao que é comum e compartilhado, e isso é fundamental para a idéia de liberdade. Pode ser até uma ilusão, mas prefiro viver com ela.

O resultado desse trabalho foi incrível. É claro que há coisas de que não gosto nem um pouco, mas há outras sensacionais. Montar essa peça no rio Tietê exigiu esforços hercúleos e uma entrega heróica de todos os que participaram do projeto. O problema é que, pela grandiosidade do projeto e pela escassez de recursos e meios, eles mal conseguiram ensaiar (ou pelo menos não o suficiente para poder estrear com o espetáculo pronto). Houve um ensaio, sob chuva torrencial, que foi para mim, de longe, a coisa mais bonita que já vi em teatro em toda a minha vida.

Beatriz Resende: O Teatro da Vertigem tem planos de encenar BR-3 no Rio de Janeiro?

Bernardo Carvalho: Havia uma possibilidade. Não sei a quantas anda.

Beatriz Resende: Fala um pouco de como você vê a literatura brasileira hoje? Como ela se situa em relação a produção internacional?

Bernardo Carvalho: Não acompanho com muita atenção. Você certamente saberá responder melhor do que eu.

Beatriz Resende: Quais são os próximos planos? Você pensa em repetir a experiência de criação de texto dramático?

Bernardo Carvalho: Estou tateando num novo projeto de romance. Adoraria voltar a escrever para teatro.

Beatriz Resende: Duas perguntas pessoais, você responde se quiser, o que quiser. 1) Dá para viver de literatura? E seria bom viver disso ou a própria literatura poderia sofrer com isso?

Bernardo Carvalho: Eu não consigo viver de literatura. Mas acho que seria bom viver disso.

Beatriz Resende: Não só vivo, mas na casa dos quarenta, super jovem. Como é para você ser um autor tão estudado, tema de tese e dissertações?

Bernardo Carvalho: Infelizmente, não dá mais para dizer que sou um escritor jovem. Não conheço a produção universitária sobre os meus livros. Talvez seja melhor assim.

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Luciano Figueiredo: do jornal à pintura | de Antonio Cícero

A esplêndida exposição retrospectiva da obra de Luciano Figueiredo que o Paço Imperial abrigou entre 05 de setembro e 05 de novembro de 2006, no Rio de Janeiro, revelou uma trajetória ao mesmo tempo múltipla, complexa e singularmente consistente.

O título “Do jornal à pintura”, não deixa de dar, por alto, uma descrição sumaríssima dessa trajetória. Caso se tratasse, porém, do título de um capítulo da biografia de Luciano, então – dado que, nos seus anos de formação, na Bahia, ele se dedicou à pintura – esse capítulo teria que ser precedido por outro, intitulado “Da pintura ao jornal”. Tudo somado, teríamos, portanto, “Da pintura ao jornal” e “Do jornal à pintura”: em suma, “Da pintura à pintura”. Posto isso, não pretendo, de maneira nenhuma, diminuir a importância do jornal na obra de Luciano. Ao contrário, ele é central no percurso que, muito esquematicamente, descreverei a seguir.

No final da década de 1950 e de 1960, no Brasil, no campo das artes plásticas, a partir do Concretismo e do Neoconcretismo, os artistas de vanguarda, baseados em considerações e experimentações sob alguns aspectos semelhantes, mas, sob outros, diferentes das que haviam sido feitas na Europa pela vanguarda histórica, sentiram a necessidade de quebrar as compartimentações, as categorias e os gêneros artísticos. O Tropicalismo, por sua vez, levando a experimentação ao terreno da mídia (que estava então sendo repensada, de modo revolucionário, por Marshall McLuhan), ocasionou na prática o questionamento da própria distinção entre o erudito e o popular, entre a vanguarda e a indústria cultural. Ao pôr em xeque as hierarquias culturais tradicionais, bem como as formas convencionais de arte e de vida, a contracultura dos anos 60 e 70, não só no Brasil, mas em todo o mundo, abriu a perspectiva da produção de invenções, transformações e cruzamentos antes insuspeitados.

Frente às possibilidades criativas então disponibilizadas e à atração da experimentação, Luciano – que, no entanto, já havia participado da Bienal Nacional de Artes Plásticas (1966) e da Bienal Internacional de São Paulo (1967) – perde o interesse pela carreira convencional de pintor. Em vez disso, a partir de 1969, quando decide morar no Rio de Janeiro, ele estabelece parcerias extremamente fecundas com artistas como o poeta Waly Salomão (fazendo, por exemplo, o cenário do show de “Fa-tal”, de Gal Costa, e, junto com Óscar Ramos, o layout da revista Navilouca) e Hélio Oiticica (fazendo o cenário do espetáculo “Gal deixa sangrar”). Fortemente atraído pelo Concretismo e pelo Neoconcretismo, ele dirige seus estudos, pesquisas e experimentos numa direção construtivista. Nessa mesma época, Luciano produz diversas capas de discos e livros.

Em 1972, Luciano vai morar em Londres e, livre do fetichismo da pintura, deixa-se impregnar pela poesia, pelo cinema, pelo grafismo, elementos que estarão, a partir de então, presentes em quase todas as suas obras. Já nas colagens como “Solaris Compass”, “Noir” e “Chiaroscuro Sky” pode-se observar que ele não parte da natureza nem tenta encontrá-la. É no imaginário artificial de nossa época, produzido pelo cinema, pela canção, pela literatura, pelo jornal, que vai buscar os elementos heterogêneos – tais como sintagmas retirados de poemas de Ezra Pound ou trechos de diálogos de filmes de Nicholas Ray – que reúne ao construir ou editar obras que funcionam como verdadeiros ideogramas, em que sobreposições visuais e verbais surpreendentes e estimulantes solicitam a revitalização da nossa sensibilidade e do nosso intelecto.

Ainda em Londres, Luciano descobre as possibilidades plásticas do jornal. “Todo jornal, da primeira linha à última, não passa de um tecido de horrores”, dizia Baudelaire, numa sentença que Luciano gosta de citar. Puramente instrumental, ele é diariamente lido, descartado e usado como papel (anti-)higiênico pelos mendigos. Para quem o lê, a notícia – a mensagem – é a única coisa que importa. Ora, invertendo a hierarquia que preside à lógica instrumental tanto do cotidiano quanto da sociedade que o produz, Luciano desinstrumentaliza o jornal. “Foi precisamente o que não era notícia no jornal que chamou minha atenção”, diz ele, já de volta ao Brasil, em 1984. “Comecei a ver as páginas como um mosaico, com todas as suas variações cromáticas: o chiaroscuro, as linhas, a qualidade das fotografias impressas. Tudo isso me fez consciente de uma espécie de natureza particular, não calculada, não destinada a fazer parte da notícia. As páginas começaram a agir como um resíduo muito excitante. À medida que me afastava da notícia em si, uma contra-leitura provocava novas relações de espaço-luz-sombras. As páginas tornavam-se vibrações óticas sugeridas pela realidade inesperada que continham.” É, portanto, de um dos produtos dos cálculos da indústria cultural que a arte de Luciano extrai uma espécie de natureza incalculável. É no mundo existente, no dado, no mediato, no midiático que ela mergulha para redescobrir o lugar (o topos, não a utopia) do espanto.

A oportunidade de observar as etapas através das quais o desenvolvimento e o aprofundamento da experimentação com o jornal conduz à pintura é certamente o aspecto mais fascinante da presente exposição. Por volta de 1990, a cor que ele introduz nas obras intituladas “Relevo” realça as qualidades plásticas das dobras, dos cortes, dos caimentos do papel do jornal. Ou bem essas obras são inteiramente monocromáticas ou uma única cor contrasta com a cor original do jornal.

Em 1998, ele declara que o que lhe interessa é “uma espécie de dinâmica de planos, produzida pela manipulação de páginas, folhas, pelo ato de virar as páginas, pelos volumes, pela luz e a sombra, peloschiaroscuros. Os movimentos das figuras retangulares demonstravam uma operação orgânica revelada pelo contato com as páginas”. A partir de 2000, ele produz a belíssima série “Diorama”, de obras retangulares que consistem em acrílico sobre jornal, papelão e/ou madeira. De modo fiel à etimologia da palavra (“aquilo que é visto através”), todos os elementos que compõem essas obras se encontram à mostra. Assim, vários planos transparentes de jornais e de cor se sobrepõem sem ocultar uns aos outros, e sem escamotear sequer o suporte sobre o qual se colam, de modo que este – a madeira, por exemplo – também funciona como um componente formal da obra.

A partir de então, o jornal que, enquanto tal, passara a ser apenas um dos constituintes da obra total, é até capaz de desaparecer totalmente. É o que acontece nos “Muxarabiês” que, consistindo em acrílico sobre madeira, são pura pintura. Entretanto, como essas obras incorporam o que Luciano aprendeu com o jornal, a memória deste é, de certo modo, preservada por elas. A própria presença formal da madeira, a transparência dos planos, a sutileza cromática, a articulação construtiva da cor e do espaço, a exclusão de qualquer ilusionismo, em suma, a ambição de que todos os componentes da obra, sem mistificação alguma, se revelem e, ao se revelar, resplandeçam, tudo isso nos induz a uma espécie de arqueologia visual que remete, como a uma matriz, às experimentações de Luciano com o jornal. Da pintura à pintura: vê-se que foi necessário abandonar/perder a pintura para poder um dia reencontrá-la: ou melhor, reinventá-la.

*Antonio Cicero, poeta e ensaísta, é autor, entre outras coisas, dos livros de poemas Guardar (1996) e A cidade e os livros (2002), e dos livros de ensaios filosóficos O mundo desde o fim (1995) e Finalidades sem fim (2005). Organizou, em parceria com Waly Salomão, o volume de ensaios O relativismo enquanto visão do mundo e, em parceria com Eucanaã Ferraz, a Nova antologia poética de Vinícius de Morais. Também é compositor, tendo parceiros como Marina Lima, Adriana Calcanhotto e João Bosco, entre outros.

 

 

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Ocho acercamientos al latinoamericanismo en antropología | Néstor García Canclini

A las dudas manifestadas en distintas épocas acerca de si existe América Latina, puede agregarse que casi no aparece como objeto de estudio en esta disciplina especializada en identidades que es la antropología. Uno de los pocos antropólogos, quizá el último, que trabajó sistemáticamente sobre lo latinoamericano fue Darcy Ribeiro. Desde 1969, cuando publicó Las Américas y la civilización, no tenemos obras con semejante ambición, que consideren el espacio sociocultural latinoamericano como unidad de análisis etnográfico o de teorización etnológica. Han hecho revisiones unas pocas revistas y algunos libros colectivos, por ejemplo los coordinados por Jorge Klor de Alva, Miguel León Portilla, Garry H. Gossen y Manuel Gutiérrez Estévez, en los cuales prevalece lo indígena como “motivo” identificador de lo latinoamericano. Según su repertorio y el de los congresos americanistas, la competencia antropológica se concentra en las sociedades folk o comunitarias tradicionales.

Aquí me propongo, en cambio, explorar la posibilidad de caracterizar lo latinoamericano desde una concepción de la práctica antropológica que en los últimos treinta años construye nuevas perspectivas sobre las “identidades originarias” y al mismo tiempo se revela capaz de escrutar lo urbano, el desarrollo industrial, las comunicaciones masivas y otros procesos de sociedades modernas y complejas.

Como actualmente muchos antropólogos enseñan en centros de estudios latinoamericanos y usan esta denominación en sus escritos, conviene diferenciar los dos sentidos en que se acude a la palabra latinoamericanismo. Tanto dentro de la región como en los institutos dedicados a América Latina en universidades de Europa y Estados Unidos se llaman latinoamericanistas quienes se ocupan de esta área geográfica, aunque la mayoría trabaja sobre un solo país dentro del marco de una disciplina. Estudian, por ejemplo, literatura argentina o brasileña, política colombiana o la cuestión indígena en México. En rigor, son argentinistas, brasileñistas, colombianistas o mexicanistas que se interesan en un aspecto de cada país – la literatura, la política o la etnicidad – y se agrupan parcialmente con los demás especialistas de su disciplina o con otros expertos en la misma sociedad.

En otra acepción, latinoamericanismo designa a una minoría de los investigadores que trasciende la concentración en un país para examinar las tendencias generales de la región. Dado el predominio de los estudios de lengua y literatura en las instituciones europeas y norteamericanas, los análisis comparativos o regionalistas se generan sobre todo en este campo. Algunos historiadores y politólogos también han abarcado la región en conjunto, y en los últimos años la transnacionalización de cuestiones urbanas, económicas, comunicacionales y de seguridad induce a considerar varios países o a América Latina en bloque. Aparecen estudios sobre Mercosur, los tratados de libre comercio, las redes transnacionales de cine y televisión, el narcotráfico, asuntos que involucran a muchas naciones. Una ventaja de estos análisis recientes es que se desprenden de las generalizaciones retóricas del latinoamericanismo voluntarista que postulaba la integración regional a partir de la unidad cultural y política. Suelen basarse, ahora, en estudios empíricos y son más cuidadosos con las diferencias internas.

La antropología hace latinoamericanismo, en la mayoría de los trabajos, en el primer sentido. Dentro de la región, así como en los estudios europeos y estadounidenses, existen especialistas en una etnia, en las “fricciones interétnicas” (Cardoso de Oliveira), o cuando mucho una nación, pero pocas generalizaciones sobre toda el área. Los análisis comparativos toman una dimensión de la vida social o una temática que permite controlar la correlación de los datos: las formas de parentesco o de organización política indígena, los efectos de programas de relocalización por migraciones o represas, las políticas educativas o de salud. Y por lo general estas investigaciones, concentradas en su campo propio, no arriesgan generalizaciones sobre la situación del continente.

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A estas restricciones acostumbradas en los estudios antropológicos es posible añadir que esta disciplina – como también sociólogos, politólogos y analistas del discurso – registra fracasos de los proyectos de integración regional y descreimiento hacia las retóricas continentales (Escobar, Yúdice). Hay que tener en cuenta, asimismo, el avance de prácticas centrífugas, notoriamente las migraciones masivas a Estados Unidos y Europa: ¿qué significa para el latinoamericanismo que el 15 por ciento de los ecuatorianos, una décima parte de los argentinos, cubanos, mexicanos y salvadoreños se hayan ido de sus países? Pensemos también en los discursos de presidentes que durante los años noventa despojaron a Argentina y México de muchos recursos mediante las privatizaciones, Carlos Menem y Carlos Salinas, y se jactaban de que esa apertura económica irresponsable nos situaba en el primer mundo. Migraciones y deseos de adscribirse a las metrópolis sugieren que algo común en varios países de América Latina es no querer ser latinoamericanos.

Podríamos ponernos paradójicos y afirmar que, justamente esta situación agónica del latinoamericanismo, lo vuelve un objeto de estudio atractivo para los antropólogos. Imagino tres líneas de análisis:

a) En primer lugar, el latinoamericanismo es un campo de investigación pertinente para la antropología porque parecería un objeto en proceso de extinción. Aumenta el número de los que se desentienden de América Latina, prefieren conseguir otros pasaportes y vivir en sociedades distintas.

b) En segundo término, como la desintegración actual de América Latina es un resultado del asalto neoliberal a nuestras sociedades y de la descomposición de élites internas, la antropología – en tanto disciplina que se dedica a unidades pequeñas de análisis, o, en una palabra: a minorías – tiene instrumentos para analizar cómo están reconfigurando la región latinoamericana las minorías económicas y culturales que “controlan” la globalización. (No faltan ejemplos de antropólogos que lo hacen de modo muy productivo, desde el estudio de Ulf Hannerz sobre cómo los corresponsales extranjeros administran el asombro ante las diferencias culturales hasta la investigación de Gustavo Lins Ribeiro acerca de las políticas de identidad en las oficinas del Banco Mundial.)

c) En tercer lugar, dada la predilección de muchos antropólogos por los rituales que crean sentido sociocultural más que por las acciones pragmáticas que cambian o conservan las megaestructuras económicas, es un objeto de estudio atractivo el comportamiento ritual que más ha condicionado en las últimas décadas el desarrollo y la decadencia latinoamericanos: la renovación periódica de la deuda externa y las ceremonias políticas en que se trata de conjurar sus efectos destructivos.

Sin embargo, no pienso que la antropología deba ocuparse sólo ni preferentemente de los procesos socioculturales en extinción, ni de las minorías, ni de los rituales. La historia de esta disciplina da instrumentos teóricos y metodológicos para estudiar los movimientos macrosociales e interculturales en ascenso, lo que ocurre en el conjunto de grandes unidades de análisis (hasta llegar a la globalización) y en las prácticas conservadoras o transformadoras, con eficacia pragmática y no sólo simbólica.

En los últimos años, los procesos globalizados intensifican la regionalización. Es difícil examinar lo que sucede en las economías indígenas, en las políticas nacionales y en la industria editorial o televisiva si nos quedamos en una escala local o nacional. Por eso, se multiplican en congresos y revistas las investigaciones comparativas y transnacionales. Se hacen estudios sobre fronteras, en las redes de comunicación globalizadas y acerca de las representaciones que unas sociedades tienen sobre otras. Cabe preguntarse en qué sentido los aportes antropológicos sobre estos procesos son capaces de participar en la redefinición del latinoamericanismo y de las maneras de estudiarlo.

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La antropología ha contribuido, junto a otras ciencias sociales, a desalentar la búsqueda de identidades esenciales, sean de naciones o continentes. Preguntarse por el “ser latinoamericano” es una ocupación todavía prolongada por algunos filósofos o críticos literarios, y por políticos populistas o intelectuales de izquierda, indiferentes a las nuevas condiciones que la globalización tecnológica y sociocultural (no sólo el neoliberalismo) coloca a las utopías de épocas pasadas. La información antropológica y sociológica sobre la transnacionalización de la economía y la cultura quitó verosimilitud a aquellos proyectos sociales y políticos. La noción misma de identidad nacional fue erosionada por los flujos económicos y comunicacionales, los desplazamientos de migrantes, exiliados y turistas, así como los intercambios financieros multinacionales y los repertorios de imágenes e información distribuidos a todo el planeta por diarios y revistas, redes televisivas e Internet. Los modos de organizar experiencias colectivas bajo nombres nacionales durante la primera modernización – argentinos, bolivianos, brasileños, mexicanos – ya no muestran la cohesión ni la certeza que creían tener quienes se agrupaban bajo esos caracteres o identidades comunes.

Desde los años cuarenta a los setenta del siglo XX, se quiso estirar esa concepción nacionalista a escala continental. Se comenzó a imaginar cómo podían articularse sociedades latinoamericanas volcadas hacia adentro. La industrialización y el avance de las ciencias sociales auspiciaron reelaboraciones originales de la situación continental, sobre todo en el desarrollismo de la CEPAL: al tecnificar la producción, ir autoabasteciendo el consumo interno y exportar manufacturas, llegaríamos a superar el deteriorado intercambio de los países periféricos con los centrales. Como se esperaba que acabáramos importando más de otros países de la región que de las metrópolis, se crearon instituciones para organizar el libre comercio y hacer porosas las aduanas: en 1958 el Mercado Común Centroamericano, en 1960 la Asociación Latinoamericana de Libre Comercio, en 1969 el Grupo Andino y en 1973 la Comunidad del Caribe.

Aun cuando entre 1960 y 1980 el producto interno bruto latinoamericano creció 6 por ciento en promedio, el modo de desarrollo concentrador y excluyente, así como el incumplimiento de los convenios que originaron a esos organismos y redes internacionales por conflictos internos de los países involucrados, frustraron los programas de integración continental. Las crisis petroleras de los años setenta y la acumulación irresponsable de deuda externa, más las dictaduras en el cono sur, Brasil y Centroamérica, fueron ahogando la acción independiente de toda la región. Políticas monetarias erráticas, oscilantes entre hiperinflación y devaluaciones, redujeron los salarios, la capacidad de ahorro interno y la flexibilidad en las negociaciones internacionales. Entre tanto, los acuerdos comerciales del GATT impuestos por los países industrializados y los condicionamientos del FMI para “auxiliar” a los gobiernos latinoamericanos estrangulados por las deudas arrinconaron las iniciativas de la ALALC y las solidaridades andinas, centroamericanas y caribeñas.

Ahora, los estudios sobre nación y cultura descreen de aquellas identidades ontológicas (Martín Barbero, Ortiz) y de la reciente etapa de integraciones voluntaristas. Abandonan cualquier pretensión de definir razas, radiografiar la pampa, catalogar esencias identitarias. En la literatura antropológica latinoamericana, como en otras regiones, tiende a entenderse la identidad como el “repertorio de acciones, lengua y cultura que permiten a cada persona reconocer que pertenece a cierto grupo social e identificarse con él”. [2] Este mismo autor finalmente prefiere hablar, más que de identidad, de identificación, para aludir a su sentido contextual y fluctuante. En las interacciones transnacionales un mismo individuo puede identificarse con varias lenguas y estilos de vida. Más que identidades únicas encontramos mapas simbólicos, que se modifican al traspasar fronteras geopolíticas: por ejemplo, cuando un sector significativo de una nación vive, como los cubanos, los mexicanos y los salvadoreños, en el extranjero.

No obstante, suele intentarse contrarrestar los efectos destructivos de la globalización neoliberal exaltando las “identidades locales”. Frente a las deudas y las migraciones que relativizan las fuerzas nacionales, algunos políticos y analistas de la cultura creen encontrar en las tradiciones populares las reservas últimas que podrían jugar como esencias resistentes a la globalización.

Por una parte, es comprensible que la crisis de los modelos políticos nacionales y de los proyectos de modernización de décadas pasadas estimule esta búsqueda de alternativas autonomistas. Su parcial eficacia puede apreciarse en el zapatismo mexicano y otros agrupamientos étnicos o regionales en Chile, Ecuador y Guatemala. Cambios legales a favor de las autonomías indígenas logrados en Colombia, y en partes de México, por ejemplo en Oaxaca, revelan la potencialidad de estas afirmaciones identitarias. Desde hace décadas la antropología acompaña extensamente estos movimientos sociopolíticos, en sus versiones más avanzadas a través de diagnósticos críticos del indigenismo y los programas de etnodesarrollo (Bartolomé, Bonfil, Escobar y Stavenhagen).

Al mismo tiempo, hay que indagar en qué medida la languidez de las economías y los Estados latinoamericanos puede reorientarse o “compensarse” sólo desde afirmaciones de lo local. Algunos movimientos que erigieron utopías desde tradiciones exacerbadas, como Sendero Luminoso, han mostrado sus riesgos. Por otra parte, las frustraciones experimentadas en Venezuela por el gobierno de Hugo Chávez para reorientar y reactivar la economía de su país, hacen dudar de “soluciones” nacionalistas maniqueas que no toman en cuenta la formación heterogénea y compleja de las sociedades latinoamericanas, ni su inserción avanzada en los mercados mundiales. Más que las afirmaciones identitarias aislacionistas, autores como Luis Villoro sugieren retomar de la herencia indígena el sentido comunitario de convivencia. Explica Villoro que quienes ya no nos definimos por el arraigo a la tierra, ni dependemos para subsistir de tareas agrícolas comunes, necesitamos reelaborar esa perspectiva comunitaria en las condiciones de la ciudad moderna (en consejos barriales, obreros y asociaciones de la sociedad civil) y a la medida de un mundo interdependiente.[3]

Ninguna descripción actualizada de la inserción de las sociedades latinoamericanas en las estructuras y los flujos globales permite imaginar aislamientos sustentables. Las sociedades se vuelven cada vez más cosmopolitas, y el ahogo económico de los Estados, que los priva de excedentes para distribuir, descarta cualquier ocurrencia populista. No se ve cómo una ideología fundamentalista-populista, que fracasó cuando las naciones y los sectores populares tenían mayor autonomía e iniciativa, puede contribuir con demandas de corte tradicional a la modernización e integración latinoamericana en esta época globalizada. Reconocen esta dificultad algunos movimientos de reivindicación local o étnica, como el zapatismo, que articulan sus demandas locales y nacionales con la mirada en el contexto mundializado. El proceso “modernizador – desestabilizador” de las formas antiguas de gestión del entorno natural en la Amazonia y en otras zonas tropicales de bosques húmedos ya no afecta sólo a los nativos, sino “como un problema del planeta entero (y, por tanto, de los mismos países industrializados que tienen un evidente interés en proteger una biodiversidad que puede ser una fuente de riqueza…)” Así, ocurre una “verdadera ‘internacionalización’ de la cuestión indígena” que incluye a movimientos transnacionales como las ONG dedicadas a los derechos humanos, la defensa del medio ambiente y a promocionar un desarrollo autosustentable. [4]

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Alentados por estos movimientos, algunos antropólogos encuentran en el indoamericanismo la reserva crítica y utópica de una solidaridad rebelde latinoamericana. Las elocuentes irrupciones ocurridas durante la última década en regiones de Bolivia, Brasil, Ecuador, Guatemala y México son interpretadas por antropólogos y no antropólogos de otras zonas, por poscolonialistas entusiastas, como recursos capaces de nutrir programas para el conjunto de nuestras sociedades. Es indudable que en los países que acabo de nombrar, y en algunos más, la importancia demográfica y sociocultural de los grupos indios debiera tener un reconocimiento mayor en las agendas nacionales, y también en las internacionales. Pero la emergencia indígena no puede leerse como develamiento de sabidurías y modos de vida preglobalizados que mágicamente instalarían, en el hueco dejado por la devastación neoliberal, soluciones productivas y armonías comunitarias arrinconadas. La creciente presencia de los indios sucede al pasar de campos y selvas con baja competitividad económica a ciudades cada vez más inhóspitas, hace irrumpir sus costumbres comunitarias junto con hábitos clientelares, reclamos de autonomía y liberación mezclados con machismos y otras jerarquías autoritarias. [5] Ese cocktail de tradicionalismos, a veces nombrado “América profunda”, está sirviendo en procesos demasiado contradictorios: en ocasiones para impulsar rebeliones, en otros casos para expandir el narcotráfico y otras violencias desintegradoras, según se aprecia con particular dramatismo en Colombia.

Muchos grupos emergentes comprenden que la nueva valoración de las culturas locales no basta para encarar los nuevos desafíos de la globalización, ni para ocupar los vacíos dejados por el derrumbe de utopías modernistas y socializantes. Los indígenas pueden pedir, y a veces lograr, como en Brasil (1988), en Colombia (1991) y en Ecuador (1998), que se redefinan constitucionalmente las naciones, que algunos Estados se declaren pluriculturales, que aliados remotos les den solidaridad por Internet. Pero también descubren que ahora hay menos Estado para atender sus demandas y proteger eficazmente sus derechos. A menudo, los aliados no indígenas confunden los reclamos étnicos con ecologismo, desvían la sabiduría arcaica al esoterismo y convierten la trama compleja de cantos, ceremonias y trabajo en discos de world music. Estos usos desplazados de las “herencias indígenas” a veces son interesantes para preservar la biodiversidad o desarrollar industrias culturales endógenas, pero su reubicación señala la necesidad de repensar las tradiciones nativas en procesos interculturales de mayor escala.

Los movimientos indígenas, en tanto, advierten que la articulación autónoma de sus pueblos no puede convertirse fácilmente en panindianismo dentro de sistemas jurídico-políticos modernos regidos por otra lógica y a la vez erosionados por la rapacidad de los acreedores transnacionales. A esas dificultades se agregan sus propias contradicciones internas como comunidades indias, los equívocos acuerdos con los deseos de comunidad de los demócratas modernizadores, y, en varios casos, con la otra “modernidad” del narcotráfico y la ilegalidad transnacionales. No hay pasajes sencillos de la nación maya al reordenamiento tripartidista del sistema político mexicano, ni del Tahuautinsuyu a la degradación urbana en La Paz o Lima, o a las reglas abstractas y los cabildeos de la “cooperación internacional”. De manera que los movimientos valorados como más exitosos, por ejemplo el zapatismo, oscilan entre reclamar que sus lenguas y tradiciones orales, sus usos y costumbres, encuentren lugar en los códigos modernos nacionales, con pretensiones de universalidad, y, por otro lado, limitarse a proteger el equilibrio con la naturaleza y dentro de sus grupos en el entorno inmediato. Así como en la lengua tzeltal, en Chiapas, el término “derechos” de la Declaración Universal de los Derechos Humanos se traduce por la expresión ich ‘ el ta muk, o sea respeto, los pueblos necesitan ir y venir entre pedir que sus derechos sean reconocidos en el mundo moderno y tratar de al menos ser respetados en su mundo, que por supuesto no está fuera de la modernidad.

Varios antropólogos postulan un futuro distinto para la multietnicidad latinoamericana que en otras partes del mundo. En esta región que, fuera de Europa, fue la primera en desarrollarse bajo la forma moderna del Estado-nación, los actores étnicos parecen estar en mejores condiciones para trabajar en la construcción de “un techo común” [6], un “espacio de protección” [7], “representado por el Estado, su autoridad y sus servicios”, sostiene Christian Gros A esto se agrega que en América Latina habría menores riesgos de integrismo porque “la frontera étnica en construcción puede difícilmente tomar una dimensión religiosa” [8]. Serían más viables naciones laicas, contratos entre ciudadanos diversos.

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Pocas veces se dice, en medio del auge indianista reciente, que América Latina tiene, junto a los cuarenta millones de indígenas, una población afroamericana de varios millones, difíciles de precisar, como una consecuencia más de la desatención que sufren en los planes de desarrollo. En la medida en que la cuestión indígena tiene un papel más claro debido a la importancia histórica y demográfica de los pueblos originarios, al menos viene recibiendo creciente reconocimiento. En cambio, a los grandes contingentes afroamericanos se les ha negado casi siempre territorios, derechos básicos y aun la posibilidad de ser considerados en las políticas nacionales y en los simposios sobre el desarrollo latinoamericano. Existen estudios especializados, por ejemplo sobre la santería cubana, el candomblé brasileño y el vudú haitiano, y últimamente las músicas que los representan son valoradas y difundidas por las industrias culturales. Pero rara vez se incluye a los grupos que sostienen estas producciones culturales en el análisis estratégico de lo que puede ser América Latina.

Lo afro es tomado, como ocurre a veces con las contribuciones indígenas, como contraparte o complemento de la herencia occidental, pero con alcance restringido. Es hora de preguntarnos en el conjunto de la región, no sólo en Brasil y los países caribeños donde “la negritud” es más visible, sino también en el área andina, en México, y en las demás zonas de América Latina, qué significan los carnavales, los templos y rituales religiosos, los usos de las aportaciones afroamericanas en las industrias culturales [9]. ¿Cómo comprender sin esta participación afro danzas como el rap y muchas formas de fusión con el jazz y el rock, el tango y el huaino, configuraciones simbólicas que permean prácticas sociales de muchos sectores latinoamericanos, el multiculturalismo de la CNN y el éxito de otros programas de televisión?

Los muchos modos en que está adquiriendo visibilidad la presencia afroamericana – de formas análogas a lo que ocurre en las diferencias de género – comienza a cambiar la reflexión sobre el multiculturalismo, la ciudadanía y las desigualdades, más allá de las definiciones oficiales de nación y de latinoamericanidad, y también de los cuestionamientos antropológicos construidos predominantemente a partir de la etnicidad indígena. Abre la mirada hacia las muchas formas de ser latinoamericanos (Escobar, Wade).

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La antropología no se ha detenido en lo indígena y lo afro. Viene ocupándose también de los migrantes europeos, sobre todo españoles y portugueses, y asimismo los árabes, italianos y judíos, hasta las migraciones asiáticas más variadas (japoneses, coreanos y chinos). Esta vasta multiculturalidad desdibuja lo supuestamente distintivo, o sea lo indígena y también lo latino de nuestra América. ¿Cómo alcanzar una redefinición más inclusiva de lo latinoamericano? ¿O acaso tanta multietnicidad vuelve imposible la tarea?

Un antropólogo español, Manuel Gutiérrez Estévez, propone concebir a América Latina como un “cadáver exquisito” a la manera del juego surrealista con este nombre, que consiste en formar una frase o un dibujo, entre varias personas, doblando el papel luego de que cada uno escribe para que nadie conozca la colaboración anterior: la frase compuesta por primera vez, que denominó este juego, era “el cadáver / exquisito / beberá / el vino / nuevo”. De modo análogo, nuestro continente se habría formado como un enorme texto inacabado y lleno de pliegues. No un mosaico, ni un puzzle, donde las piezas se ajustan entre sí para configurar un orden mayor y reconocible. Nuestras variaciones culturales no encajan unas en otras. Como un cadáver exquisito, al sumarse indígenas, negros, criollos, mestizos, las migraciones europeas y asiáticas, lo que nos ha ido sucediendo en campos y ciudades constituye un relato discontinuo, con grietas, imposible de leer bajo un solo régimen o imagen. De ahí la dificultad de encontrar nombres que designen este juego de escenarios: barroco, guerra del fin del mundo, amor latino, realismo mágico, narcotráfico, quinientos años, utopía, guerrilla posmoderna. Todo esto tiene en común, dice Gutiérrez Estévez, que fascina a los europeos. Necesitados de nombrar ese vértigo de rupturas, hablan de “los latinoamericanos” o “los sudacas”. Entre el temor y el entusiasmo, según este autor, “orientalismo y latinoamericanismo son las dos enfermedades seniles del europeísmo.” [10]

Esta sugerente visión debe complementarse con el análisis de las estrategias hegemónicas y críticas que han buscado hacerse cargo de esas diversas fuentes socioculturales, de sus temporalidades distintas. La diversidad cultural junto a las roturas o las costuras que le ocurren en las luchas de poder. Lo indígena con lo criollo en México, lo criollo enfrentado o paralelo a lo indígena en Perú, lo afro con lo europeo en Brasil, y así sucesivamente. Hasta las sociedades complejas y transnacionalizadas en que los antropólogos encontramos nuevas formaciones culturales engendradas por la urbanización y aun las megaurbanizaciones (México y Sao Paulo como emblemas de latinoamericanicidad), las industrias culturales y los heterogéneos modos de recepción en culturas diversas (¿qué atributos justifican la telenovela como género latinoamericano?).

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No es posible cerrar el balance de lo que la antropología representa para la comprensión de América Latina sin aludir a la variedad de investigaciones antropológicas e históricas, de estudios culturales y comunicacionales, que en los últimos años buscan trazar líneas de inteligibilidad entre los pliegues y momentos del cadáver exquisito. Las más productivas no pretenden responder a preguntas sobre la identidad latinoamericana, sino comprender las alianzas interculturales que llamamos Caribe o área andina, las áreas económicas que se nombran Norteamérica o Mercosur. Cómo tropezamos en las fronteras y las cruzamos, con que estrategias narrativas y mediáticas se configuran los relatos de lo latinoamericano.

Dos ejemplos rápidos. Por un lado, los estudios comparativos sobre las políticas de desarrollo y la formación de naciones y ciudadanías. Hay que destacar, ante todo, el vasto esfuerzo de Arturo Escobar que sitúa las peripecias de América Latina, especialmente ante los dilemas ecológicos, en el marco de las políticas de los organismos mundiales y de los movimientos sociales transnacionalizados: su libro El final del salvaje es clave para entender cómo debe expandir la antropología su agenda. En otro texto intenté mostrar el giro antropológico que configuran los trabajos de Mónica Quijada y Rita Segato sobre la formación unificada de la Argentina mediante la descaracterización de las diferencias étnicas; las investigaciones de Roger Bartra y Claudio Lomnitz acerca de la formación mestiza de México y el papel de la antropología en las políticas pluriculturales; el análisis de Rita Segato sobre el sincretismo brasileño, donde las identidades son menos monolíticas que en otros países, y la hibridación, a diferencia del mestizaje mexicano, no impide que el sujeto preserve para sí la posibilidad de distintas afiliaciones, pueda circular entre identidades y mezclarlas. Estas y otras reformulaciones de los procesos de hibridación corren el eje de la investigación antropológica: de la identidad a la heterogeneidad y la interculturalidad. Ponen en evidencia los complejos regímenes de pertenencias múltiples que sostienen los actuales ejercicios de la ciudadanía y las políticas de muchos movimientos sociales [11].

La otra línea renovadora que quiero destacar en la reflexión sobre América Latina viene de los estudios sobre migrantes que salen de la región. Pienso, por ejemplo, en los renovadores trabajos de Gustavo Lins Ribeiro con brasileños en California, de Roger Rouse, José Manuel Valenzuela y Stefano Varese sobre mexicanos en la misma zona, los de Dolores Juliano y Verena Stolcke acerca de argentinos en Europa y las nuevas retóricas de la exclusión. Comenzamos a percibir un nuevo mapa en el que deben incluirse porcentajes altos de expatriados. América Latina no está completa en América Latina. Su imagen le llega de espejos diseminados en el archipiélago de las migraciones.

En varias naciones de América Latina y el Caribe las remesas de dinero enviadas por los migrantes representan más del 10 por ciento del producto interno bruto. México recibió en 2001, según un estudio del Banco Interamericano de Desarrollo, 9.273 millones de dólares de sus residentes en Estados Unidos, o sea casi lo mismo que ingresa por turismo y el doble de sus exportaciones agrícolas. Los trabajadores salvadoreños en el exterior enviaron a su país el mismo año 1,972 millones, los dominicanos 1,807 millones y los ecuatorianos 1,400 millones de dólares. En conjunto, América Latina recibió en 2001 una vez y media lo que pagó como intereses por su deuda externa en los últimos cinco años, y mucho más de lo que llega en préstamos y donaciones para el desarrollo.

Si bien estos números importan para apreciar el grado en que los habitantes de América Latina dependemos de lo que sucede fuera de la región, mucho de lo que ocurre en estos procesos extraterritoriales no es medible en cifras. Así como el arribo de inversiones externas dice sólo una parte del estado de la economía, la intensificación de las migraciones está modificando de muchas maneras la ubicación de “lo latinoamericano” en el mundo. Las últimas aperturas de fronteras van junto con formas nuevas de discriminación, las mejores condiciones de sobrevivencia local que hacen posible las migraciones y remesas – en los países centrales y en los periféricos – deben ser vistas al lado del desarraigo y la destrucción o reorganización del sentido histórico. Surgen nuevos conceptos identitarios que desbordan los contenedores nacionales: oaxacalifornianos, argenmex, brasiguayos y muchos otros que están abriendo las antropologías “nacionales” y las nociones estrechas de ciudadanía [12].

Asimismo, se redimensiona el horizonte de lo latinoamericano por la migración de nuestros productos culturales, sobre todo la exportación de músicas y telenovelas. Los muchos rostros de la latinoamericanidad se forman en lo que sucede dentro del territorio históricamente delimitado como América Latina y también en lo que se reinterpreta e inventa fuera de la región, en los mensajes que nos mandan, junto con las remesas de dinero, los migrantes y los editores de sus voces en Los Ángeles y Miami, quienes comentan las novelas de latinoamericanos ahora escritas desde Barcelona.

La música ha tematizado esta multilocalización de los lugares desde los cuales se habla. Es un proceso largo, iniciado al menos desde que la radio y el cine hicieron que Carlos Gardel fuera apropiado en Colombia, México y Venezuela, y también en España y Francia, Agustín Lara en Argentina, Chile y diez países más, los soneros veracruzanos y los salseros puertorriqueños en todas las naciones del Caribe y aún más allá. Los rockeros y los músicos tecnos de distintos países componen discos juntos, y las empresas discográficas transnacionales los hacen circular por todas partes.

“De dónde son los cantantes” sigue preguntando la canción cubana.

Esta difusión translocal de la cultura, y el consiguiente desdibujamiento de territorios, se agudizan ahora, no sólo debido a los viajes, los exilios y las migraciones económicas. También por el modo en que la reorganización de mercados musicales, televisivos y cinematográficos, reestructura los estilos de vida y disgrega imaginarios compartidos.

Sería justo extenderse, si hubiera tiempo, en la reestructurada visión de lo latinoamericano que van componiendo los estudios últimos de la antropología, como en otras disciplinas. Pero prefiero ocupar una página en mencionar la discrepancia entre las condiciones de producción y circulación de un nuevo pensamiento latinoamericano. Desde la perspectiva de la producción intelectual no es difícil reconocer que hace veinte años viene notándose en Argentina, Brasil, Colombia, México y Perú (aunque no son los únicos países) una renovación de los temas y áreas de competencia de la antropología, en las estrategias metodológicas y en la formación de una decena de excelentes posgrados, donde se están formando doctores con nivel equivalente al de las mejores universidades de Europa y Estados Unidos. Pese a las deficientes bibliotecas y los salarios y financiamientos paupérrimos, salvo en Brasil y México, hay investigaciones antropológicas, o socioculturales en las que participan antropólogos, que están cambiando los modos de estudiar las ciudades, comprender los proyectos o fracasos de las integraciones económicas junto a los intercambios íntimos de las fronteras, las comunidades transnacionales de consumidores propiciadas por radio, cine, televisión e Internet, las violencias nacionales y domésticas.

Si se difunde algo de estos avances es porque hasta los investigadores jóvenes viajan más que en el pasado, algunos posgrados tienen alumnado multinacional, los congresos y revistas de un país dan espacio para voces de otros. Pero salvo estas comunicaciones ocasionales, mantenidas precariamente a través de Internet, la balcanización del continente es la política predominante. ¿Hay que asombrarse de que América Latina se diluya como objeto de estudio dentro de la región cuando las editoriales con catálogo y distribución latinoamericana han sido asfixiadas o sometidas a la especulación mercantil de las transnacionales, cuando no hay condiciones institucionales ni financieras para articular investigaciones de alcance internacional y colecciones enteras como los cuadernos de la Universidad de Brasilia, los libros del Instituto Colombiano de Antropología y la Universidad Autónoma Metropolitana de México, ven librada su circulación en otros países a la difusión confidencial de las fotocopias? El latinoamericanismo será un resultado del azar de los encuentros personales mientras no haya redes académicas ni industrias culturales que lo cultiven como esfera pública.

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He tratado de mostrar conjuntamente materiales obtenidos en distintos países latinoamericanos y en los centros metropolitanos que estudian esa región. Soy consciente de que no configuran un conjunto suficientemente articulado, dejan por construir muchas mediaciones y compatibilidades entre las escalas de análisis. Quizá esta tarea sólo pueda ser concebida como fragmentaria e inacabable.

Así como no tiene sentido explorar una identidad común latinoamericana, tampoco podemos construir la noción histórica, abierta y cambiante de un espacio sociocultural latinoamericano como una realidad compacta. La convergencia histórica de la región puede ser todavía un proyecto sociopolítico y cultural deseable, y seguramente más practicable que en cualquier época anterior gracias a facilidades comunicacionales que permiten incrementar intercambios y acuerdos económicos, políticos y culturales. Una tarea posible de los antropólogos es proporcionar conocimientos sobre la diversidad y la unidad de la región que contribuyan a tomar decisiones. Pero para que esas decisiones sean sustentables importa que la antropología aporte también su saber sobre las diferencias y desigualdades, sobre lo innegociable en la interculturalidad, sobre las distancias que ni los programas de homogeneización económica, política ni mediática van a poder suturar, las resistencias étnicas que los Estados no lograron vencer, los perfiles regionales y de naciones que persisten en la globalización.

Vuelve a aparecer, así, la antropología como el saber sobre lo irreductible de las sociedades y las culturas. Pero con un cambio. A diferencia de los tiempos del relativismo a ultranza, muchos antropólogos estamos hoy tan interesados en contribuir a que los grupos marginados se afirmen y desarrollen como a entender las condiciones más amplias que reproducen su marginación y valorar las oportunidades interculturales en que los pueblos buscan ser competitivos, intercambiar con otros y convivir. En fin, no quedarse solos. Por eso, no nos dedicamos sólo a las minorías, ni privilegiamos los rituales y las consolaciones simbólicas. Nos interesa lo latinoamericano como un horizonte donde dejar de ser minorías aisladas y proyectos inconexos.

Es el momento en el que la antropología descubre que vino al mundo, más que para afianzar identidades, para comprender su conflictiva existencia múltiple. No para consolar a las minorías o enfrentar a quienes buscan subordinarlas; más bien describir los trabajos de la convivencia y por tanto las ilusiones de los poderes. Ni siquiera para limitarse a celebrar los rituales que tratan de soldar las fracturas, convertir los choques entre civilizaciones o clases o etnias en eufemismos simbólicos, sino para averiguar cómo actúan las soldaduras y los eufemismos impuestos junto a las heridas abiertas y los acuerdos solidarios.

Néstor García Canclini é Professor e Pesquisador da Universidad Autónoma Metropolitana, Iztapalapa, ciudad de México. Publicou Consumidores e cidadãos. Conflitos multiculturais da globalização. 4ª ed. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1999; Culturas híbridas. Estratégias para entrar e sair da modernidade. 2ª ed. São Paulo: Edusp, 1998 e Globalización imaginada. México: Paidós, 1999, entre outros.

NOTAS


[1] Presentado en la conferencia “The New Latin Americanism: Cultural Studies Beyond Borders”, Universidad de Manchester, 21 y 22 de junio de 2002.

[2] WARNIER, Jean Pierre. La mondialisation de la culture. París: La Découverte, 1999. p. 9.

[3] VILLORO, Luis. De la libertad a la comunidad. México: Cátedra Alfonso Reyes (ITESM), Editorial Planeta Mexicana, 2001. Cap.I.

[4] GROS, Christian. Políticas de la etnicidad: identidad, estado y modernidad. Bogotá: Instituto Colombiano de Antropología e Historia, 2000. p. 102.

[5] BARTRA, Roger. “Sangre y tinta del kitsch tropical”. Fractal. México, n. 8, Primavera, 1998.

[6] GELLNER, Ernst. Nations and nationalism. Oxford: Basil Blackwell, 1983.

[7] ELIAS, Norbert. La société des individus. París: Fayard, 1991.

[8] GROS, Christian. Op.Cit. p. 126.

[9] CARVALHO, José Jorge de. “Las culturas afroamericanas en Iberoamerica: lo negociable y lo innegociable”.In: Seminario auspiciado por la Organización de Estados Iberoamericanos: “Las Culturas Iberoamericanas en el Siglo XXI”. México, 21-22 de enero de 2002.

[10] GUTIÉRREZ ESTÉVEZ, Manuel, “América Latina: un cadáver exquisito” conferencia en la Fundación “La Caixa”, ciclo “En torno a lo latino”, 27 de febrero de 1997.

[11] GARCÍA CANCLINI, Néstor. La globalización imaginada. México: Paidós, 1999.

Idem. Culturas híbridas. Estrategias para entrar y salir de la modernidad. México: Grijalbo, 2001.

[12] CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. “Epílogo I. Fronteras, naciones e identidades. Comentarios”. In: GRIMSON, Alejandro (comp.). Fronteras, naciones e identidades. La periferia como centro. Buenos Aires: CICCUS, La Crujía, 2000.

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