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Ana Crelia Dias entrevista Silviano Santiago

 

Ana Crelia Dias: Silviano Santiago é um nome que remete a um ser plural: professor, crítico, ficcionista. De que forma essa pluralidade interfere (ou não interfere) na sua escrita de ficção? E que face desse sujeito múltiplo mais se revela hoje?

Silviano Santiago: Para o escritor, todas as formas de saber e de conhecimento são bem-vindas e benéficas. Por definição, a literatura – tanto a reflexão teórica e a docência, quanto a prática crítica e a criação – é predisposta à multidisciplinaridade, já que o que esteve e está em questão é a condição humana, e não determinado conhecimento disciplinar (no sentimento universitário da palavra) sobre esse ou aquele aspecto da vida social, política, econômica etc., do ser humano em certa nação ou continente. Mais do que um conhecimento (knowledge, para usar a terminologia anglo-saxã), a literatura é portadora de uma sabedoria (wisdom, idem). Seu compromisso fundador – pelo menos nos países do Ocidente – se deu no momento histórico da expansão da tradição filosófica e literária greco-latina. Portanto, aproximações recentes da literatura às disciplinas das chamadas ciências sociais apenas empobrecem seu escopo. Há que tomar cuidado com o verbo empobrecer. Tome, por exemplo, o caso da medicina, muitas vezes o empobrecimento no plano da totalização do conhecimento médico, de que é exemplo o médico generalista, pode redundar num aprofundamento do conhecimento particular, de que é exemplo o médico especialista. Muitas das formas modernas de literatura, ou de crítica literária, repousam no aprofundamento de questões sobre a condição humana que se passam no plano das reivindicações de cunho particular, ou seja, social, político e econômico. Um romance como Vidas Secas, de Graciliano Ramos ou uma coleção de poemas como A rosa do povo, de Carlos Drummond, apesar de mais especializados disciplinarmente, não são menos ambiciosos do que Memórias póstumas de Brás CubasLibertinagem, de Manuel Bandeira. Faço a comparação para acrescentar que chega um determinado momento da avaliação da obra de arte em que o que conta é a genialidade do escritor. Todas as demais teorias bem intencionadas caem por terra.

Falando em particular do romance – um gênero desprovido de poéticas, como dizem os anglo-saxões, um gênero lawless, sem lei, bandido – tudo é permitido e graças a Deus. O progresso do gênero se dá pela transgressão às regras estabelecidas. O GuaraniMemórias sentimentais de João Miramar e Grande Sertão: Veredas são bem ou totalmente diferentes e, no entanto…

Estabelecido esse patamar mínimo para a resposta, acrescento que me sinto muito bem sendo polivalente. E tive a sorte de poder ambicionar a polivalência no momento em que a literatura é julgada como produção de discursos, e não mera expressão em um único gênero da personalidade do autor. Tenho uma boa formação em literatura – isto é, minha curiosidade intelectual foi devidamente satisfeita por determinado conhecimento, determinada erudição –, e o que faço é eleger um dos discursos literários que estão à minha disposição para expressar-me artisticamente do modo que julgo mais conveniente, habilidoso, agradável e convincente.

O discurso reflexivo, por exemplo, requer que o aparato teórico-metodológico adquirido ampare a paciente análise textual a ser feita. O problema é saber se me julgo competente para enfrentar aparato e análise, e movimentá-los com palavras na folha de papel em branco. A experiência didática deu-me a segurança indispensável para tal tarefa. Ela veio de sucessivos experimentos com estudantes em sala de aula. Por outro lado, o exercício do discurso ficcional/poético proporcionou-me um saber que é o de padeiro, ou seja, de quem “já pôs a mão na massa”. Sinto-me, pois, apto a produzir um ensaio. Se dedicar a ele o tempo indispensável à boa realização, publico-o como tal. Não terei vergonha, mais tarde, em juntá-lo a outros e reuni-los em livro, é o caso recente de O cosmopolitismo do pobre.

Ponhamos que tenha elegido o discurso ficcional. Minhas leituras da ficção e da teoria poética no período de formação e as demais feitas no período de exercício da profissão como professor universitário me dão a garantia de ter certo domínio da matéria. Logo depois dos anos 1976, abandonei a análise de romances, contos e poemas, e comecei a trabalhar nos cursos da PUC autobiografias, memórias e correspondência literária – o que se chamou a literatura do eu, recentemente recoberta pelo neologismo autoficção (autobiografia ficcionalizada, ficção autobiográfica). Se quisesse escrever algo nesses gêneros, não me sentiria um escritor espontâneo a pôr em ordem na folha de papel os fatos da vida vivida. Estaria menos próximo de Meus verdes anos, de José Lins do Rego, e mais próximo de Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos. Este se transforma, por assim dizer, em modelo, com tudo o que a palavra contém de positivo (emulação) e de negativo (filiação), que se traduz afinal pela expressão vitoriosa de “a ansiedade da influência” (Harold Bloom). Por outro lado, não posso deixar de viver o momento que vivo. Naquela mesma época, informava-me e me enriquecia com o knowledge, que me chegava através da leitura sobre a realidade sócio-política e econômica do Brasil e da América Latina. Bem lá no fundo da formação, havia a tese sobre André Gide e um paradoxo. Não era ele que dizia que somos mais sinceros quando fazemos ficção do que ao escrever autobiografia? Pois é, misturemos tudo isso numa coqueteleira e teremos o drinque que idealizei, pesquisei e produzi, intituladoEm liberdade, uma ficção. Ainda nessa linha, mas já no novo milênio, senti-me à vontade para aceitar a encomenda da Bem-te-vi e organizar a correspondência de Carlos Drummond & Mário de Andrade. Os laços se atam e se desatam e se reatam. Veja você, por uma questão estratégica posso dedicar-me um ano ou mais a tal ou a tal outro discurso, mas isso não significa preferência. Significa, antes, as contingências da soma de tempo e dinheiro. Um se perde e o outro se ganha. Isso se chama sobrevivência.

ACD: Com uma vasta publicação ficcional e crítica, já poderíamos pensar em ousar a pergunta: qual é a sua grande obra? Por quê?

SS: Pelo rabicho da resposta anterior, você já viu que, em matéria de preferência, sou a favor da obra mais próxima. Por motivos que não vêm ao caso aqui, desde os doze anos de idade fui jogado contra os muros da vida prática. Sobrevivo, trabalhando. Não consigo ser saudosista (ou de maneira brutal: não tenho tempo nem dinheiro para ser saudosista). Tenho memória razoável e com constância revisito o passado. Não tenho prazer em viver no passado nem em revivê-lo no presente. Sigo ao pé da letra a “errata pensante”, de que falou Machado de Assis num de seus romances: “Cada estação da vida é uma edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também, até a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes”. Uma tradução aproximada da metáfora machadiana se encontra no livro de poemas Cheiro forte, e a versão irônica correspondente em De cócoras. No momento, minha grande obra é Heranças, romance que será publicado daqui a dois ou três meses pela Editora Rocco. Aguardo sua leitura.

ACD: Seus textos ficcionais apresentam, especificamente os dois últimos, narradores que se constituem muito mais como antinarradores, dada a reflexão que tecem acerca do processo de criação. Duas perguntas: o que é narrar para você hoje? E o que motiva esse processo de avanço e recuo na narração, muitas vezes até desfazendo o que foi construído: é uma tendência da literatura contemporânea ou é um processo do escritor Silviano?

SS: Respeito sua observação, mas não sei se os chamaria de antinarradores. Em termos de narratividade, performam a ação de maneira semelhante a dos narradores que conhecemos tradicionalmente na ficção ocidental. O romance é narrado de fio a pavio. Tem começo, meio e fim. Os contos são também narrados na integridade da proposta de cada um. O que choca num caso e no outro é o título de cada uma das obras, dicas de novas poéticas da ficção. O falso mentiroso eHistórias mal contadas, respectivamente.

O narrador do primeiro deles perdeu a certeza sobre a própria verdade. Ele constrói ficções dentro da ficção. Estamos acostumados a narradores que têm absoluta certeza sobre o episódio que narram. Quando o escritor (e não mais o narrador) quer passar ao leitor a incerteza do que lhe foi dito pelo narrador X, cria um segundo, terceiro, quarto… narradores. É o caso clássico do filme japonêsRashomon, de Akira Kurosawa, onde temos várias versões para o estupro duma mulher e o possível assassinato do marido. A mesma estória é narrada de quatro ou cinco pontos de vista diferentes, levando o espectador cauto ou incauto a optar por uma das versões ou se naufragar nelas. É o caso ainda de alguns romances de William Faulkner, entre eles e mais sintomaticamente The sound and the fury. O narrador de O falso mentiroso não delega a outro narrador o desmentido da própria palavra. Ele só não tem absoluta certeza sobre a veracidade, por exemplo, duma versão sobre o episódio de seu nascimento (sobre sua filiação, em suma). Em lugar de questioná-la, inventando/propondo um segundo narrador, prefere “inventar” (no sentido de: partir para) uma segunda versão, uma terceira versão. A ficção em estado larvar. Não é o que acontece no trabalho de análise? O trabalho feito por mim é diferente do que acontece no romance de Alain Robbe-Grillet, La jalousie, por exemplo, onde é a lembrança (a memória) do narrador que se julga incapaz de reproduzir exatamente o que aconteceu – veja-se o episódio clássico da centopéia que é esmagada contra a parede. É através do lento trabalho do leitor que se pode chegar a uma decifração (precária, talvez) do episódio A decifração é feita pela justaposição – agora, pela memória do leitor – das diferenças na repetição do episódio. As versões que se repetem do episódio não são idênticas. Não é a somadas semelhanças que traz ao leitor a verdade sobre o esmagamento, mas antes a soma das diferenças – se é que se podem somar diferenças. Como não se podem somar as diferenças, a verdade é um buraco na narrativa. Ao leitor é oferecida umalacuna. A literatura do nada (néant), de que tanto se falou. Minha experiência talvez esteja mais próxima do narrador ficcional beckettiano. Se você resolver o enigma proposto, te dou um doce.

Em O falso mentiroso o leitor pouco pode fazer para ajudar/aconselhar o narrador. Por mais que ele tente justapor/compor as várias versões expressas pelo narrador fica sempre o gosto de cada versão não lhe ter sido bem contada. Não adianta, portanto, reuni-las, analisá-las em conjunto, nas semelhanças ou nas diferenças. Não há buraco, não há lacuna a ser oferecida ao leitor. O mal contado é a essência (se me permite o palavrão) da literatura ficcional.

Já aí passamos para os narradores dos vários contos de Histórias mal contadas. O buraco é mais embaixo, se me permite agora a expressão grosseira, mas feliz. O problema da narratividade (e do narrador) em literatura ficcional é mais complicado do que apresentava o narrador do citado romance. Todas as estórias são mal contadas. Caso não o fossem, seriam chatíssimas e, por isso, deixariam de ser ficção. A graça duma estória está no fato de ser mal contada, competindo ao leitor dar-lhe o significado que lhe escapa. Tradicionalmente – e falo da crítica literária antes do advento da psicanálise – os grandes críticos, aqueles que se destacaram para a posteridade, agiam dessa forma sem terem consciência do que faziam. Em termos analíticos, quero dizer que toda estória literária (e talvez toda narrativa subjetiva, independente do esforço de torná-la artística) parece dizer mais do que aparentemente está dizendo. Isso porque existe um significado latente que é mais poderoso semanticamente do que o significado manifesto. Dou o exemplo mais contundente. Freud ao descobrir que Hamlet era uma história mal contada conseguiu extrair da peça shakesperiana o compromisso da trama com o complexo de Édipo. Sem que o soubéssemos cientificamente, o complexo já estava latente na arte dramática desde a Grécia e o período elisabetano. Depois dessas palavras, talvez se evidencie de maneira mais clara a razão pela qual não me agrada a qualificação de antinarradores para os meus últimos livros de ficção. Deixo claro, no entanto, que não sei o que você entende por antinarrador. Faço-lhe a pergunta.

ACD: O senhor assistiu ao documentário Jogo de cena, de Eduardo Coutinho? Sua obra também faz, em alguns casos, esse jogo entre o real e o ficcional. Em sua opinião, isso é uma tendência da arte em geral?

SS: Não consigo comparar o trabalho ficcional que faço com o trabalho que os documentaristas brasileiros (ou não) realizam. Partimos de premissas muito diferentes – opostas, talvez ? sobre o estatuto da realidade e do real em arte. Estamos mais para o acirrado do jogo entre times diferentes, do que para o empate de dois a dois, ou zero a zero.

ACD: Acredito ser De cócoras sua narrativa de maior nuance lírica, assim como os contos “Ed e Tom”, “O verão e as rosas”, entre outros. O senhor teme sentimentalismos em seus textos? (Que fique claro que não acho piegas nenhum dos textos citados. Ao contrário, eles têm forte aprofundamento lírico e são todos muito bem construídos nesse sentido. A pergunta vem apenas da curiosidade do porquê de não haver muitos textos assim hoje.)

SS: Acreditava que tinha dado a mais plena vazão a um narrador lírico em Keith Jarrett no Blue Note. Será que me engano? Meus livros de ficção anteriores eram muito compostos, trabalhados que tinham sido na cabeça e em sucessivos planejamentos e rascunhos antes de serem trabalhados anarquicamente pelo próprio trabalho de escrita (não há simetria perfeita entre forma imaginada e forma realizada – alerto – mesmo em romances como Em liberdade). No caso de Keith Jarrett deixei que o narrador fosse conduzido pelo andante da música popular norte-americana, sentimental por natureza, pelo improviso que representa o jazz e que o pianista Keith Jarrett representa dentro do improviso no jazz. A letra (the lyrics) da canção não contava, não tinha importância para cada narrador, até mesmo porque estava a escutar um disco instrumental. Contava apenas num importantíssimo detalhe. Falavam todas as letras do amor heterossexual, algo que é consensual na arte popular ou pop. Os contos seriam sobre o amor homossexual. Depois de livro tão trabalhado quanto Stella Manhattan, com personagens tão sofridos na busca da satisfação amorosa (para contraste com o outro livro, veja as inserções poéticas no primeiro capítulo, a ser catalogadas por No money, no fuck, no love), pensei em sublimar as questões propriamente práticas que envolvem o surgimento do amor, e deixá-las serem compensadas pela pobreza/riqueza do sentimento de solidão – dominante em todo o livro. A solidão é o ponto de vista que deixa a descoberto a plenitude da experiência amorosa – paradoxalmente? Qualquer coisa no gênero “esquecer para lembrar”, título de livro de Carlos Drummond. Experimentar o sexo, esquecê-lo para lembrá-lo como amor. O ponto alto da abstração musical do texto escrito está ao meio do livro, no conto “Bop be” (be bob de trás para diante).

Se quisesse trabalhar a letra das canções, o narrador teria que evocá-las. Como se trata de canções muito conhecidas, verdadeiros hits internacionais, pode haver aqui e ali lembranças ocasionais de um ou outro verso. Mas o importante era dar continuidade em palavra ao mistério do improviso de Keith Jarrett (pensava também no “Concerto de Colônia”, dele também). O narrador lírico é, portanto, um narrador em total liberdade (pelo menos para mim), daí também o tom confessional da escrita (se pseudo ou verdadeiro, pouco importa). Certamente, esse é também o caso de De cócoras, onde deixo que meus temas clássicos sejam contaminados pela questão da experiência lírica na tela (o filme Gilda) e a espiritualidade anti-rilkiana (em especial os dois anjos ao final do romance). Minhas narrativas tendem a ser pão pão queijo queijo. Não é o caso do romance em questão e não é o caso do conto “O verão e as rosas” (em segredo, te digo que é uma homenagem a Clarice Lispector). Já o conto “Ed e Tom” escapa ao narrador lírico, pelo menos da maneira que acreditava estar concebendo-o. É um libelo a favor de colega meu, que teve a carreira cortada ainda nos anos 1960 (a não ser o episódio em si, todos os detalhes na caracterização dele foram modificados). Está vendo que nem sempre é bom dar a palavra ao autor. Não é a melhor palavra e muito menos a última. A palavra do autor é semelhante ao andaime, de que se valem os pedreiros para levantar um edifício de apartamentos. Habitado o edifício, qual é o morador que se lembra da importância dos andaimes? Quem se lembra do trabalho incansável e mal remunerado dos pedreiros?

ACD: São muitas as referências do cinema, da literatura, do teatro em sua obra. O senhor acha que um texto que se valha de tais recursos tende à erudição? Isso pode ser empecilho para o grupo que o mercado chama de “leitor comum”?

SS: Toda referência ou alusão é um entrave para o chamado leitor comum (se é que podemos juntar a vasta gama de leitores ingênuos, naïfs, debaixo da única etiqueta leitor comum). A solução para o problema não está em evitá-las. Está antes em torná-las palatáveis, isto é, assimiláveis como uma espécie de alusão a amigo ou a caso notoriamente conhecido, em conversa mole. Se não se pode deixar o leitor entrar na referência ou alusão, há que buscar uma maneira de deixá-lo pelo menos feliz (ou presunçoso) às margens do rio da narrativa. O mesmo problema existe na leitura do poema, como também na leitura do ensaio. No meu caso, quantas referências e alusões me escapam/escaparam ao ler os notáveis ensaios de Jacques Derrida, para ficar com um exemplo? Quantas referências e alusões me escaparam/escapam na leitura de As flores do mal, de Baudelaire, para citar outro exemplo? Apesar de me faltar erudição filosófica ou erudição poética, tenho a impressão de que chego a penetrá-los com relativa segurança. Aliás, acredito que nenhum leitor tem total segurança sobre o texto que lê. Por isso é que relemos os que julgamos notáveis. Há gradações na aproximação dos leitores ao texto, dos espectadores à peça de teatro, ao filme, às obras de artes plásticas. Cada um faz do texto lido o que pode. Às vezes alguém que acredita estar desencavando mistérios num romance está na verdade cada vez mais à flor da pele, a dizer sandices de bom sandeu. Ao passo que um crítico dito impressionista, como Augusto Meyer, flertando aqui e ali com a obra de Machado de Assis, acaba por enunciar verdadeiras pérolas, que até hoje nos encantam e nos enriquecem. Nesse particular, por que não refletir sobre o quinto capítulo de Esaú e Jacó, intitulado “Há contradições explicáveis”. Lá se lê: “Explicações comem tempo e papel, demoram a ação e acabam por enfadar. O melhor é ler com atenção”. Desde que apresentada de maneira palatável, todo bom leitor engole a seco qualquer referência ou alusão.

ACD: A técnica do cinema – a montagem, a direção – encontra na sua obra paralelos estruturais. O senhor lança mão de estruturas muito diferentes de composição a cada texto. O senhor foi crítico de cinema, não foi? Esse recurso estrutural nos romances vem dessa experiência?

SS: Inicia-se lá no Centro de Estudos Cinematográficos (BH), sem dúvida, embora o gosto pela imagem tenha origem mais remota. Já mencionei em entrevistas o fato de que, na infância formiguense, tinha verdadeira loucura pelos gibis. Pelos gibis e pelo cinema que então nos chegava de Hollywood e tratava de temas relacionados à Segunda Grande Guerra (nasci em 1936), eduquei-me como cosmopolita numa cidade interiorana de menos de trinta mil habitantes. Esse tipo de experiência, de experiência da leitura no sentido semiológico do termo, foi trabalhado à exaustão nos poemas iniciais de Crescendo durante a guerra numa província ultramarina, que na verdade faz pendant com Em liberdade e, certamente, com os vários cursos sobre autobiografia e memorialismo que dei na PUC, para não mencionar o livrinho sobre Drummond, que saiu em 1976 na Vozes. O primeiro poema analisado no livrinho é sintomaticamente “Infância”, o segundo em Alguma poesia. Informado isso, acrescento que sempre me senti à vontade na cultura da imagem, tão à vontade quanto na cultura da palavra. Aliás, seria ridículo tentar separá-las em alguém que cresceu e se formou no século 20, o século por excelência da imagem. Como querer ser artista sem freqüentar as salas de cinema e os museus? Como diz ou dizia o mote da revista semanal, “veja e leia”.

É claro que na cultura da imagem cinematográfica é de enorme importância a questão da montagem. Desde cedo, fui apaixonado por ela. Seja pela montagem por atração, cujo teórico maior foi o soviético Eisenstein (há exemplo flagrante dela no romance Uma história de família), seja pela montagem pelo plano-seqüência, cujo grande teórico foi André Bazin da revista Cahiers du cinéma. Tenho dificuldade em aceitar a montagem que se tornou standard nos clipes musicais, ou a montagem pelo recurso à sucessão de close-ups, de que é exemplo a telenovela (devo dizer que Kar Wai faz maravilhas com esta e me causa muita inveja). No entanto, a possível diversidade na composição de meus livros não advém de minha familiaridade com o cinema, ou com as artes plásticas, ou melhor, advém em parte. Advém, antes, de detalhe muito pessoal (quem sabe original) de minha personalidade criadora. Não gosto de repetir o feito. Não gosto de transformá-lo em receita. Para mim, cada obra é um experimento (a não ser confundido com o mero experimentalismo formal). Se por acaso reclamo para mim a condição de vanguardista é porque ponho fé nas graças, mistério e loucura do experimento, à semelhança do doutor Silvana, dos gibis, ou de algum cientista em sofisticado laboratório de pesquisa europeu ou norte-americano. Estou mais perto do doutor Jekyll, ao criar Mr. Hyde, do que da maioria dos nossos escritores que se apegam com unhas e dentes a uma fórmula de romance, ou a um estilo que julgam ser ultra pessoal.

ACD: A formatação de um gênero literário não encontra muita facilidade de adequação em seus textos: eles parecem constituir uma reelaboração do conceito de gêneros. Viagem ao México, por exemplo, promete-nos uma epopéia e transita por diário íntimo, ensaio, biografia e romance. O senhor pensa a arquitetura de um livro com o rigor que se mostra depois da realização?

SS: Tinha pressentido atrás a iminência dessa pergunta. A forma pensada, planejada, posta em rascunhos, não apresenta simetria perfeita com a forma realizada, embora muito daquela esteja nesta. Uma não existe sem a outra, é verdade (a não ser no caso muito especial de Keith Jarrett, onde a forma pensada não existiu, e existiu de maneira mais violenta a correção depois do texto já escrito). Por ser um experimentalista (veja a resposta anterior), não teria sentido que seguisse ao pé da letra as noções de gênero, tal qual expostas nas poéticas. Aliás, atrás também alertava para o fato de que o gênero que elegi com mais freqüência, o romance, é por falta de poéticas e por definição, lawless. Em meus experimentos, procuro levar até as últimas conseqüências esse aspecto do gênero. A tal intensidade levo o experimento, que Heranças, meu último romance, representa o fracasso. Tenta se enquadrar perfeitamente às regras do gênero. Quem vai acreditar? Criei um romance de personagens, com uma dicção realista. No mais, a pergunta está perfeitamente formulada.

ACD: De onde vem o conceito de autoficção de que o senhor fala ao se referir a sua obra?

SS: Desde criança, por razões de caráter extremamente pessoal e íntimo – refiro-me à morte prematura de minha mãe ? não conseguia articular com vistas ao outro o discurso da subjetividade plena, ou seja, o discurso confessional. Não estou querendo dizer que minha personalidade infantil, isto é, meus impulsos vitais e secretos eram-me desconhecidos. Pelo contrário, conhecia-os muito bem. Tão bem os conhecia que sabia de seu alto poder de autodestruição e destruição. Acreditei ter de esconder dos ouvidos alheios a personalidade de menino-suicida e de menino-predador, escondê-la debaixo de discursos inventados (ficcionais, se me permitem), onde eram criadas subjetividades similares à minha, passíveis de serem jogadas com certa inocência e, principalmente, sem culpa no comércio dos homens. Criava falas autobiográficas que não eram confessionais, embora partissem do cristal multifacetado que é o trágico acidente da perda materna. Já eram falas ficcionais e, como tal, co-existiam aos montões. Nenhuma das falas era plena e sinceramente confessional, embora retirassem o poder de fabulação da autobiografia. O dado confessional que poderia chegar à condição plena ficava encoberto, camuflado, para usar a linguagem da Segunda Grande Guerra, então dominante. Não tinha interesse em escarafunchá-lo em público. Os fatosautobiográficos fabulam, embora nunca queiram aceitar a cobertura da fala confessional, visto que se deixavam apropriar pelo discurso que vim a conhecer no futuro como ficcional. O sujeito ressemantizava o sujeito pelo discurso híbrido – o autoficcional. Não estou querendo dizer que não vivia a angústia de não poder articular em público o dado da subjetividade plena, dita confessional. Vivia-o, só que não o exercitava como fala nem o escrevia. Agarrar-me e subtrair-me a essa angústia era o modo vital da sobrevivência do corpo e dos impulsos vitais, era o modo como o discurso autobiográfico se distanciava do discurso confessional e já flertava, inconscientemente, com o discurso ficcional.. Onde mais forte se fazia o sentido da angústia e mais necessária sua subtração era à mesa de jantar ou no confessionário. Fiquemos com este exemplo.

Meu pai não era católico praticante, mas nos obrigava a ser. Segui o catecismo e fiz primeira comunhão. Ia à missa todos os domingos. Aos sábados, diante do padre-confessor de sotaque germânico, no escurinho protegido pelas grades do pseudo-anonimato (morava numa cidade do interior), tinha de fazer exame de autoconsciência e ser sincero ao enumerar e confessar os pecados da semana. Costumava trazê-los escritos numa folha de papel. Uma pitada de paranóia, e acrescento que os pecados eram muitos e, perdão pelo trocadilho, inconfessáveis. Apesar da lista avantajada, não proferia no confessionário uma fala sincera, confessional. Mentia. Ficcionalizava o sujeito – a mim mesmo – ao narrar os pecados constantes da lista. Inventava para mim e para o padre-confessor outra(s) infância(s) menos pecaminosa(s) e mais ajuizada(s), ou pelo menos onde as atitudes e intenções reprováveis permaneciam camufladas pela fala. Essas mentiras, ou invenções autobiográficas, ou autoficções, tinham estatuto de vivido, tinham consistência de experiência, isso graças ao fato maior que lhes antecedia – a morte prematura da mãe ? e garantia a veracidade ou autenticidade. Aos sábados, diante do confessor, assumia uma fala híbrida – autobiográfica e ficcional ? verossímil. Era “confessional” e “sincero” sem, na verdade, o ser plenamente. O menino ao confessionário já era um falso mentiroso, narrava histórias mal contadas. Faço minhas as palavras contundentes de Michel Foucault em A arqueologia do saber: “Não me pergunte quem sou eu e não me diga para permanecer o mesmo: é uma moral de estado civil; ela rege nossos papéis. Que ela nos deixe livres quando se trata de escrever”.

ACD: Loucura é um tema que atravessa sua obra. Existe uma razão para isso?

SS: A razão está num poema de Crescendo durante a guerra numa província ultramarina.

 

Transcrevo-o: Loucura Eram muitos os loucos então: Em cada quintal, Correntes para o acesso. Em cada fundo de quintal, Uma sombra suja, entre árvores, Sombra adulta pastando, Armando arapuca De pegar passarinho. A família o protege E só não o esconde dos íntimos.

 

* Ana Crelia Dias é doutora em Literatura Brasileira. É professora do Colégio de Aplicação da UFRJ e do curso de Especialização em Literatura Infantil e Juvenil da Faculdade de Letras da mesma universidade.

 

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Ocho acercamientos al latinoamericanismo en antropología | Néstor García Canclini

A las dudas manifestadas en distintas épocas acerca de si existe América Latina, puede agregarse que casi no aparece como objeto de estudio en esta disciplina especializada en identidades que es la antropología. Uno de los pocos antropólogos, quizá el último, que trabajó sistemáticamente sobre lo latinoamericano fue Darcy Ribeiro. Desde 1969, cuando publicó Las Américas y la civilización, no tenemos obras con semejante ambición, que consideren el espacio sociocultural latinoamericano como unidad de análisis etnográfico o de teorización etnológica. Han hecho revisiones unas pocas revistas y algunos libros colectivos, por ejemplo los coordinados por Jorge Klor de Alva, Miguel León Portilla, Garry H. Gossen y Manuel Gutiérrez Estévez, en los cuales prevalece lo indígena como “motivo” identificador de lo latinoamericano. Según su repertorio y el de los congresos americanistas, la competencia antropológica se concentra en las sociedades folk o comunitarias tradicionales.

Aquí me propongo, en cambio, explorar la posibilidad de caracterizar lo latinoamericano desde una concepción de la práctica antropológica que en los últimos treinta años construye nuevas perspectivas sobre las “identidades originarias” y al mismo tiempo se revela capaz de escrutar lo urbano, el desarrollo industrial, las comunicaciones masivas y otros procesos de sociedades modernas y complejas.

Como actualmente muchos antropólogos enseñan en centros de estudios latinoamericanos y usan esta denominación en sus escritos, conviene diferenciar los dos sentidos en que se acude a la palabra latinoamericanismo. Tanto dentro de la región como en los institutos dedicados a América Latina en universidades de Europa y Estados Unidos se llaman latinoamericanistas quienes se ocupan de esta área geográfica, aunque la mayoría trabaja sobre un solo país dentro del marco de una disciplina. Estudian, por ejemplo, literatura argentina o brasileña, política colombiana o la cuestión indígena en México. En rigor, son argentinistas, brasileñistas, colombianistas o mexicanistas que se interesan en un aspecto de cada país – la literatura, la política o la etnicidad – y se agrupan parcialmente con los demás especialistas de su disciplina o con otros expertos en la misma sociedad.

En otra acepción, latinoamericanismo designa a una minoría de los investigadores que trasciende la concentración en un país para examinar las tendencias generales de la región. Dado el predominio de los estudios de lengua y literatura en las instituciones europeas y norteamericanas, los análisis comparativos o regionalistas se generan sobre todo en este campo. Algunos historiadores y politólogos también han abarcado la región en conjunto, y en los últimos años la transnacionalización de cuestiones urbanas, económicas, comunicacionales y de seguridad induce a considerar varios países o a América Latina en bloque. Aparecen estudios sobre Mercosur, los tratados de libre comercio, las redes transnacionales de cine y televisión, el narcotráfico, asuntos que involucran a muchas naciones. Una ventaja de estos análisis recientes es que se desprenden de las generalizaciones retóricas del latinoamericanismo voluntarista que postulaba la integración regional a partir de la unidad cultural y política. Suelen basarse, ahora, en estudios empíricos y son más cuidadosos con las diferencias internas.

La antropología hace latinoamericanismo, en la mayoría de los trabajos, en el primer sentido. Dentro de la región, así como en los estudios europeos y estadounidenses, existen especialistas en una etnia, en las “fricciones interétnicas” (Cardoso de Oliveira), o cuando mucho una nación, pero pocas generalizaciones sobre toda el área. Los análisis comparativos toman una dimensión de la vida social o una temática que permite controlar la correlación de los datos: las formas de parentesco o de organización política indígena, los efectos de programas de relocalización por migraciones o represas, las políticas educativas o de salud. Y por lo general estas investigaciones, concentradas en su campo propio, no arriesgan generalizaciones sobre la situación del continente.

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A estas restricciones acostumbradas en los estudios antropológicos es posible añadir que esta disciplina – como también sociólogos, politólogos y analistas del discurso – registra fracasos de los proyectos de integración regional y descreimiento hacia las retóricas continentales (Escobar, Yúdice). Hay que tener en cuenta, asimismo, el avance de prácticas centrífugas, notoriamente las migraciones masivas a Estados Unidos y Europa: ¿qué significa para el latinoamericanismo que el 15 por ciento de los ecuatorianos, una décima parte de los argentinos, cubanos, mexicanos y salvadoreños se hayan ido de sus países? Pensemos también en los discursos de presidentes que durante los años noventa despojaron a Argentina y México de muchos recursos mediante las privatizaciones, Carlos Menem y Carlos Salinas, y se jactaban de que esa apertura económica irresponsable nos situaba en el primer mundo. Migraciones y deseos de adscribirse a las metrópolis sugieren que algo común en varios países de América Latina es no querer ser latinoamericanos.

Podríamos ponernos paradójicos y afirmar que, justamente esta situación agónica del latinoamericanismo, lo vuelve un objeto de estudio atractivo para los antropólogos. Imagino tres líneas de análisis:

a) En primer lugar, el latinoamericanismo es un campo de investigación pertinente para la antropología porque parecería un objeto en proceso de extinción. Aumenta el número de los que se desentienden de América Latina, prefieren conseguir otros pasaportes y vivir en sociedades distintas.

b) En segundo término, como la desintegración actual de América Latina es un resultado del asalto neoliberal a nuestras sociedades y de la descomposición de élites internas, la antropología – en tanto disciplina que se dedica a unidades pequeñas de análisis, o, en una palabra: a minorías – tiene instrumentos para analizar cómo están reconfigurando la región latinoamericana las minorías económicas y culturales que “controlan” la globalización. (No faltan ejemplos de antropólogos que lo hacen de modo muy productivo, desde el estudio de Ulf Hannerz sobre cómo los corresponsales extranjeros administran el asombro ante las diferencias culturales hasta la investigación de Gustavo Lins Ribeiro acerca de las políticas de identidad en las oficinas del Banco Mundial.)

c) En tercer lugar, dada la predilección de muchos antropólogos por los rituales que crean sentido sociocultural más que por las acciones pragmáticas que cambian o conservan las megaestructuras económicas, es un objeto de estudio atractivo el comportamiento ritual que más ha condicionado en las últimas décadas el desarrollo y la decadencia latinoamericanos: la renovación periódica de la deuda externa y las ceremonias políticas en que se trata de conjurar sus efectos destructivos.

Sin embargo, no pienso que la antropología deba ocuparse sólo ni preferentemente de los procesos socioculturales en extinción, ni de las minorías, ni de los rituales. La historia de esta disciplina da instrumentos teóricos y metodológicos para estudiar los movimientos macrosociales e interculturales en ascenso, lo que ocurre en el conjunto de grandes unidades de análisis (hasta llegar a la globalización) y en las prácticas conservadoras o transformadoras, con eficacia pragmática y no sólo simbólica.

En los últimos años, los procesos globalizados intensifican la regionalización. Es difícil examinar lo que sucede en las economías indígenas, en las políticas nacionales y en la industria editorial o televisiva si nos quedamos en una escala local o nacional. Por eso, se multiplican en congresos y revistas las investigaciones comparativas y transnacionales. Se hacen estudios sobre fronteras, en las redes de comunicación globalizadas y acerca de las representaciones que unas sociedades tienen sobre otras. Cabe preguntarse en qué sentido los aportes antropológicos sobre estos procesos son capaces de participar en la redefinición del latinoamericanismo y de las maneras de estudiarlo.

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La antropología ha contribuido, junto a otras ciencias sociales, a desalentar la búsqueda de identidades esenciales, sean de naciones o continentes. Preguntarse por el “ser latinoamericano” es una ocupación todavía prolongada por algunos filósofos o críticos literarios, y por políticos populistas o intelectuales de izquierda, indiferentes a las nuevas condiciones que la globalización tecnológica y sociocultural (no sólo el neoliberalismo) coloca a las utopías de épocas pasadas. La información antropológica y sociológica sobre la transnacionalización de la economía y la cultura quitó verosimilitud a aquellos proyectos sociales y políticos. La noción misma de identidad nacional fue erosionada por los flujos económicos y comunicacionales, los desplazamientos de migrantes, exiliados y turistas, así como los intercambios financieros multinacionales y los repertorios de imágenes e información distribuidos a todo el planeta por diarios y revistas, redes televisivas e Internet. Los modos de organizar experiencias colectivas bajo nombres nacionales durante la primera modernización – argentinos, bolivianos, brasileños, mexicanos – ya no muestran la cohesión ni la certeza que creían tener quienes se agrupaban bajo esos caracteres o identidades comunes.

Desde los años cuarenta a los setenta del siglo XX, se quiso estirar esa concepción nacionalista a escala continental. Se comenzó a imaginar cómo podían articularse sociedades latinoamericanas volcadas hacia adentro. La industrialización y el avance de las ciencias sociales auspiciaron reelaboraciones originales de la situación continental, sobre todo en el desarrollismo de la CEPAL: al tecnificar la producción, ir autoabasteciendo el consumo interno y exportar manufacturas, llegaríamos a superar el deteriorado intercambio de los países periféricos con los centrales. Como se esperaba que acabáramos importando más de otros países de la región que de las metrópolis, se crearon instituciones para organizar el libre comercio y hacer porosas las aduanas: en 1958 el Mercado Común Centroamericano, en 1960 la Asociación Latinoamericana de Libre Comercio, en 1969 el Grupo Andino y en 1973 la Comunidad del Caribe.

Aun cuando entre 1960 y 1980 el producto interno bruto latinoamericano creció 6 por ciento en promedio, el modo de desarrollo concentrador y excluyente, así como el incumplimiento de los convenios que originaron a esos organismos y redes internacionales por conflictos internos de los países involucrados, frustraron los programas de integración continental. Las crisis petroleras de los años setenta y la acumulación irresponsable de deuda externa, más las dictaduras en el cono sur, Brasil y Centroamérica, fueron ahogando la acción independiente de toda la región. Políticas monetarias erráticas, oscilantes entre hiperinflación y devaluaciones, redujeron los salarios, la capacidad de ahorro interno y la flexibilidad en las negociaciones internacionales. Entre tanto, los acuerdos comerciales del GATT impuestos por los países industrializados y los condicionamientos del FMI para “auxiliar” a los gobiernos latinoamericanos estrangulados por las deudas arrinconaron las iniciativas de la ALALC y las solidaridades andinas, centroamericanas y caribeñas.

Ahora, los estudios sobre nación y cultura descreen de aquellas identidades ontológicas (Martín Barbero, Ortiz) y de la reciente etapa de integraciones voluntaristas. Abandonan cualquier pretensión de definir razas, radiografiar la pampa, catalogar esencias identitarias. En la literatura antropológica latinoamericana, como en otras regiones, tiende a entenderse la identidad como el “repertorio de acciones, lengua y cultura que permiten a cada persona reconocer que pertenece a cierto grupo social e identificarse con él”. [2] Este mismo autor finalmente prefiere hablar, más que de identidad, de identificación, para aludir a su sentido contextual y fluctuante. En las interacciones transnacionales un mismo individuo puede identificarse con varias lenguas y estilos de vida. Más que identidades únicas encontramos mapas simbólicos, que se modifican al traspasar fronteras geopolíticas: por ejemplo, cuando un sector significativo de una nación vive, como los cubanos, los mexicanos y los salvadoreños, en el extranjero.

No obstante, suele intentarse contrarrestar los efectos destructivos de la globalización neoliberal exaltando las “identidades locales”. Frente a las deudas y las migraciones que relativizan las fuerzas nacionales, algunos políticos y analistas de la cultura creen encontrar en las tradiciones populares las reservas últimas que podrían jugar como esencias resistentes a la globalización.

Por una parte, es comprensible que la crisis de los modelos políticos nacionales y de los proyectos de modernización de décadas pasadas estimule esta búsqueda de alternativas autonomistas. Su parcial eficacia puede apreciarse en el zapatismo mexicano y otros agrupamientos étnicos o regionales en Chile, Ecuador y Guatemala. Cambios legales a favor de las autonomías indígenas logrados en Colombia, y en partes de México, por ejemplo en Oaxaca, revelan la potencialidad de estas afirmaciones identitarias. Desde hace décadas la antropología acompaña extensamente estos movimientos sociopolíticos, en sus versiones más avanzadas a través de diagnósticos críticos del indigenismo y los programas de etnodesarrollo (Bartolomé, Bonfil, Escobar y Stavenhagen).

Al mismo tiempo, hay que indagar en qué medida la languidez de las economías y los Estados latinoamericanos puede reorientarse o “compensarse” sólo desde afirmaciones de lo local. Algunos movimientos que erigieron utopías desde tradiciones exacerbadas, como Sendero Luminoso, han mostrado sus riesgos. Por otra parte, las frustraciones experimentadas en Venezuela por el gobierno de Hugo Chávez para reorientar y reactivar la economía de su país, hacen dudar de “soluciones” nacionalistas maniqueas que no toman en cuenta la formación heterogénea y compleja de las sociedades latinoamericanas, ni su inserción avanzada en los mercados mundiales. Más que las afirmaciones identitarias aislacionistas, autores como Luis Villoro sugieren retomar de la herencia indígena el sentido comunitario de convivencia. Explica Villoro que quienes ya no nos definimos por el arraigo a la tierra, ni dependemos para subsistir de tareas agrícolas comunes, necesitamos reelaborar esa perspectiva comunitaria en las condiciones de la ciudad moderna (en consejos barriales, obreros y asociaciones de la sociedad civil) y a la medida de un mundo interdependiente.[3]

Ninguna descripción actualizada de la inserción de las sociedades latinoamericanas en las estructuras y los flujos globales permite imaginar aislamientos sustentables. Las sociedades se vuelven cada vez más cosmopolitas, y el ahogo económico de los Estados, que los priva de excedentes para distribuir, descarta cualquier ocurrencia populista. No se ve cómo una ideología fundamentalista-populista, que fracasó cuando las naciones y los sectores populares tenían mayor autonomía e iniciativa, puede contribuir con demandas de corte tradicional a la modernización e integración latinoamericana en esta época globalizada. Reconocen esta dificultad algunos movimientos de reivindicación local o étnica, como el zapatismo, que articulan sus demandas locales y nacionales con la mirada en el contexto mundializado. El proceso “modernizador – desestabilizador” de las formas antiguas de gestión del entorno natural en la Amazonia y en otras zonas tropicales de bosques húmedos ya no afecta sólo a los nativos, sino “como un problema del planeta entero (y, por tanto, de los mismos países industrializados que tienen un evidente interés en proteger una biodiversidad que puede ser una fuente de riqueza…)” Así, ocurre una “verdadera ‘internacionalización’ de la cuestión indígena” que incluye a movimientos transnacionales como las ONG dedicadas a los derechos humanos, la defensa del medio ambiente y a promocionar un desarrollo autosustentable. [4]

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Alentados por estos movimientos, algunos antropólogos encuentran en el indoamericanismo la reserva crítica y utópica de una solidaridad rebelde latinoamericana. Las elocuentes irrupciones ocurridas durante la última década en regiones de Bolivia, Brasil, Ecuador, Guatemala y México son interpretadas por antropólogos y no antropólogos de otras zonas, por poscolonialistas entusiastas, como recursos capaces de nutrir programas para el conjunto de nuestras sociedades. Es indudable que en los países que acabo de nombrar, y en algunos más, la importancia demográfica y sociocultural de los grupos indios debiera tener un reconocimiento mayor en las agendas nacionales, y también en las internacionales. Pero la emergencia indígena no puede leerse como develamiento de sabidurías y modos de vida preglobalizados que mágicamente instalarían, en el hueco dejado por la devastación neoliberal, soluciones productivas y armonías comunitarias arrinconadas. La creciente presencia de los indios sucede al pasar de campos y selvas con baja competitividad económica a ciudades cada vez más inhóspitas, hace irrumpir sus costumbres comunitarias junto con hábitos clientelares, reclamos de autonomía y liberación mezclados con machismos y otras jerarquías autoritarias. [5] Ese cocktail de tradicionalismos, a veces nombrado “América profunda”, está sirviendo en procesos demasiado contradictorios: en ocasiones para impulsar rebeliones, en otros casos para expandir el narcotráfico y otras violencias desintegradoras, según se aprecia con particular dramatismo en Colombia.

Muchos grupos emergentes comprenden que la nueva valoración de las culturas locales no basta para encarar los nuevos desafíos de la globalización, ni para ocupar los vacíos dejados por el derrumbe de utopías modernistas y socializantes. Los indígenas pueden pedir, y a veces lograr, como en Brasil (1988), en Colombia (1991) y en Ecuador (1998), que se redefinan constitucionalmente las naciones, que algunos Estados se declaren pluriculturales, que aliados remotos les den solidaridad por Internet. Pero también descubren que ahora hay menos Estado para atender sus demandas y proteger eficazmente sus derechos. A menudo, los aliados no indígenas confunden los reclamos étnicos con ecologismo, desvían la sabiduría arcaica al esoterismo y convierten la trama compleja de cantos, ceremonias y trabajo en discos de world music. Estos usos desplazados de las “herencias indígenas” a veces son interesantes para preservar la biodiversidad o desarrollar industrias culturales endógenas, pero su reubicación señala la necesidad de repensar las tradiciones nativas en procesos interculturales de mayor escala.

Los movimientos indígenas, en tanto, advierten que la articulación autónoma de sus pueblos no puede convertirse fácilmente en panindianismo dentro de sistemas jurídico-políticos modernos regidos por otra lógica y a la vez erosionados por la rapacidad de los acreedores transnacionales. A esas dificultades se agregan sus propias contradicciones internas como comunidades indias, los equívocos acuerdos con los deseos de comunidad de los demócratas modernizadores, y, en varios casos, con la otra “modernidad” del narcotráfico y la ilegalidad transnacionales. No hay pasajes sencillos de la nación maya al reordenamiento tripartidista del sistema político mexicano, ni del Tahuautinsuyu a la degradación urbana en La Paz o Lima, o a las reglas abstractas y los cabildeos de la “cooperación internacional”. De manera que los movimientos valorados como más exitosos, por ejemplo el zapatismo, oscilan entre reclamar que sus lenguas y tradiciones orales, sus usos y costumbres, encuentren lugar en los códigos modernos nacionales, con pretensiones de universalidad, y, por otro lado, limitarse a proteger el equilibrio con la naturaleza y dentro de sus grupos en el entorno inmediato. Así como en la lengua tzeltal, en Chiapas, el término “derechos” de la Declaración Universal de los Derechos Humanos se traduce por la expresión ich ‘ el ta muk, o sea respeto, los pueblos necesitan ir y venir entre pedir que sus derechos sean reconocidos en el mundo moderno y tratar de al menos ser respetados en su mundo, que por supuesto no está fuera de la modernidad.

Varios antropólogos postulan un futuro distinto para la multietnicidad latinoamericana que en otras partes del mundo. En esta región que, fuera de Europa, fue la primera en desarrollarse bajo la forma moderna del Estado-nación, los actores étnicos parecen estar en mejores condiciones para trabajar en la construcción de “un techo común” [6], un “espacio de protección” [7], “representado por el Estado, su autoridad y sus servicios”, sostiene Christian Gros A esto se agrega que en América Latina habría menores riesgos de integrismo porque “la frontera étnica en construcción puede difícilmente tomar una dimensión religiosa” [8]. Serían más viables naciones laicas, contratos entre ciudadanos diversos.

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Pocas veces se dice, en medio del auge indianista reciente, que América Latina tiene, junto a los cuarenta millones de indígenas, una población afroamericana de varios millones, difíciles de precisar, como una consecuencia más de la desatención que sufren en los planes de desarrollo. En la medida en que la cuestión indígena tiene un papel más claro debido a la importancia histórica y demográfica de los pueblos originarios, al menos viene recibiendo creciente reconocimiento. En cambio, a los grandes contingentes afroamericanos se les ha negado casi siempre territorios, derechos básicos y aun la posibilidad de ser considerados en las políticas nacionales y en los simposios sobre el desarrollo latinoamericano. Existen estudios especializados, por ejemplo sobre la santería cubana, el candomblé brasileño y el vudú haitiano, y últimamente las músicas que los representan son valoradas y difundidas por las industrias culturales. Pero rara vez se incluye a los grupos que sostienen estas producciones culturales en el análisis estratégico de lo que puede ser América Latina.

Lo afro es tomado, como ocurre a veces con las contribuciones indígenas, como contraparte o complemento de la herencia occidental, pero con alcance restringido. Es hora de preguntarnos en el conjunto de la región, no sólo en Brasil y los países caribeños donde “la negritud” es más visible, sino también en el área andina, en México, y en las demás zonas de América Latina, qué significan los carnavales, los templos y rituales religiosos, los usos de las aportaciones afroamericanas en las industrias culturales [9]. ¿Cómo comprender sin esta participación afro danzas como el rap y muchas formas de fusión con el jazz y el rock, el tango y el huaino, configuraciones simbólicas que permean prácticas sociales de muchos sectores latinoamericanos, el multiculturalismo de la CNN y el éxito de otros programas de televisión?

Los muchos modos en que está adquiriendo visibilidad la presencia afroamericana – de formas análogas a lo que ocurre en las diferencias de género – comienza a cambiar la reflexión sobre el multiculturalismo, la ciudadanía y las desigualdades, más allá de las definiciones oficiales de nación y de latinoamericanidad, y también de los cuestionamientos antropológicos construidos predominantemente a partir de la etnicidad indígena. Abre la mirada hacia las muchas formas de ser latinoamericanos (Escobar, Wade).

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La antropología no se ha detenido en lo indígena y lo afro. Viene ocupándose también de los migrantes europeos, sobre todo españoles y portugueses, y asimismo los árabes, italianos y judíos, hasta las migraciones asiáticas más variadas (japoneses, coreanos y chinos). Esta vasta multiculturalidad desdibuja lo supuestamente distintivo, o sea lo indígena y también lo latino de nuestra América. ¿Cómo alcanzar una redefinición más inclusiva de lo latinoamericano? ¿O acaso tanta multietnicidad vuelve imposible la tarea?

Un antropólogo español, Manuel Gutiérrez Estévez, propone concebir a América Latina como un “cadáver exquisito” a la manera del juego surrealista con este nombre, que consiste en formar una frase o un dibujo, entre varias personas, doblando el papel luego de que cada uno escribe para que nadie conozca la colaboración anterior: la frase compuesta por primera vez, que denominó este juego, era “el cadáver / exquisito / beberá / el vino / nuevo”. De modo análogo, nuestro continente se habría formado como un enorme texto inacabado y lleno de pliegues. No un mosaico, ni un puzzle, donde las piezas se ajustan entre sí para configurar un orden mayor y reconocible. Nuestras variaciones culturales no encajan unas en otras. Como un cadáver exquisito, al sumarse indígenas, negros, criollos, mestizos, las migraciones europeas y asiáticas, lo que nos ha ido sucediendo en campos y ciudades constituye un relato discontinuo, con grietas, imposible de leer bajo un solo régimen o imagen. De ahí la dificultad de encontrar nombres que designen este juego de escenarios: barroco, guerra del fin del mundo, amor latino, realismo mágico, narcotráfico, quinientos años, utopía, guerrilla posmoderna. Todo esto tiene en común, dice Gutiérrez Estévez, que fascina a los europeos. Necesitados de nombrar ese vértigo de rupturas, hablan de “los latinoamericanos” o “los sudacas”. Entre el temor y el entusiasmo, según este autor, “orientalismo y latinoamericanismo son las dos enfermedades seniles del europeísmo.” [10]

Esta sugerente visión debe complementarse con el análisis de las estrategias hegemónicas y críticas que han buscado hacerse cargo de esas diversas fuentes socioculturales, de sus temporalidades distintas. La diversidad cultural junto a las roturas o las costuras que le ocurren en las luchas de poder. Lo indígena con lo criollo en México, lo criollo enfrentado o paralelo a lo indígena en Perú, lo afro con lo europeo en Brasil, y así sucesivamente. Hasta las sociedades complejas y transnacionalizadas en que los antropólogos encontramos nuevas formaciones culturales engendradas por la urbanización y aun las megaurbanizaciones (México y Sao Paulo como emblemas de latinoamericanicidad), las industrias culturales y los heterogéneos modos de recepción en culturas diversas (¿qué atributos justifican la telenovela como género latinoamericano?).

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No es posible cerrar el balance de lo que la antropología representa para la comprensión de América Latina sin aludir a la variedad de investigaciones antropológicas e históricas, de estudios culturales y comunicacionales, que en los últimos años buscan trazar líneas de inteligibilidad entre los pliegues y momentos del cadáver exquisito. Las más productivas no pretenden responder a preguntas sobre la identidad latinoamericana, sino comprender las alianzas interculturales que llamamos Caribe o área andina, las áreas económicas que se nombran Norteamérica o Mercosur. Cómo tropezamos en las fronteras y las cruzamos, con que estrategias narrativas y mediáticas se configuran los relatos de lo latinoamericano.

Dos ejemplos rápidos. Por un lado, los estudios comparativos sobre las políticas de desarrollo y la formación de naciones y ciudadanías. Hay que destacar, ante todo, el vasto esfuerzo de Arturo Escobar que sitúa las peripecias de América Latina, especialmente ante los dilemas ecológicos, en el marco de las políticas de los organismos mundiales y de los movimientos sociales transnacionalizados: su libro El final del salvaje es clave para entender cómo debe expandir la antropología su agenda. En otro texto intenté mostrar el giro antropológico que configuran los trabajos de Mónica Quijada y Rita Segato sobre la formación unificada de la Argentina mediante la descaracterización de las diferencias étnicas; las investigaciones de Roger Bartra y Claudio Lomnitz acerca de la formación mestiza de México y el papel de la antropología en las políticas pluriculturales; el análisis de Rita Segato sobre el sincretismo brasileño, donde las identidades son menos monolíticas que en otros países, y la hibridación, a diferencia del mestizaje mexicano, no impide que el sujeto preserve para sí la posibilidad de distintas afiliaciones, pueda circular entre identidades y mezclarlas. Estas y otras reformulaciones de los procesos de hibridación corren el eje de la investigación antropológica: de la identidad a la heterogeneidad y la interculturalidad. Ponen en evidencia los complejos regímenes de pertenencias múltiples que sostienen los actuales ejercicios de la ciudadanía y las políticas de muchos movimientos sociales [11].

La otra línea renovadora que quiero destacar en la reflexión sobre América Latina viene de los estudios sobre migrantes que salen de la región. Pienso, por ejemplo, en los renovadores trabajos de Gustavo Lins Ribeiro con brasileños en California, de Roger Rouse, José Manuel Valenzuela y Stefano Varese sobre mexicanos en la misma zona, los de Dolores Juliano y Verena Stolcke acerca de argentinos en Europa y las nuevas retóricas de la exclusión. Comenzamos a percibir un nuevo mapa en el que deben incluirse porcentajes altos de expatriados. América Latina no está completa en América Latina. Su imagen le llega de espejos diseminados en el archipiélago de las migraciones.

En varias naciones de América Latina y el Caribe las remesas de dinero enviadas por los migrantes representan más del 10 por ciento del producto interno bruto. México recibió en 2001, según un estudio del Banco Interamericano de Desarrollo, 9.273 millones de dólares de sus residentes en Estados Unidos, o sea casi lo mismo que ingresa por turismo y el doble de sus exportaciones agrícolas. Los trabajadores salvadoreños en el exterior enviaron a su país el mismo año 1,972 millones, los dominicanos 1,807 millones y los ecuatorianos 1,400 millones de dólares. En conjunto, América Latina recibió en 2001 una vez y media lo que pagó como intereses por su deuda externa en los últimos cinco años, y mucho más de lo que llega en préstamos y donaciones para el desarrollo.

Si bien estos números importan para apreciar el grado en que los habitantes de América Latina dependemos de lo que sucede fuera de la región, mucho de lo que ocurre en estos procesos extraterritoriales no es medible en cifras. Así como el arribo de inversiones externas dice sólo una parte del estado de la economía, la intensificación de las migraciones está modificando de muchas maneras la ubicación de “lo latinoamericano” en el mundo. Las últimas aperturas de fronteras van junto con formas nuevas de discriminación, las mejores condiciones de sobrevivencia local que hacen posible las migraciones y remesas – en los países centrales y en los periféricos – deben ser vistas al lado del desarraigo y la destrucción o reorganización del sentido histórico. Surgen nuevos conceptos identitarios que desbordan los contenedores nacionales: oaxacalifornianos, argenmex, brasiguayos y muchos otros que están abriendo las antropologías “nacionales” y las nociones estrechas de ciudadanía [12].

Asimismo, se redimensiona el horizonte de lo latinoamericano por la migración de nuestros productos culturales, sobre todo la exportación de músicas y telenovelas. Los muchos rostros de la latinoamericanidad se forman en lo que sucede dentro del territorio históricamente delimitado como América Latina y también en lo que se reinterpreta e inventa fuera de la región, en los mensajes que nos mandan, junto con las remesas de dinero, los migrantes y los editores de sus voces en Los Ángeles y Miami, quienes comentan las novelas de latinoamericanos ahora escritas desde Barcelona.

La música ha tematizado esta multilocalización de los lugares desde los cuales se habla. Es un proceso largo, iniciado al menos desde que la radio y el cine hicieron que Carlos Gardel fuera apropiado en Colombia, México y Venezuela, y también en España y Francia, Agustín Lara en Argentina, Chile y diez países más, los soneros veracruzanos y los salseros puertorriqueños en todas las naciones del Caribe y aún más allá. Los rockeros y los músicos tecnos de distintos países componen discos juntos, y las empresas discográficas transnacionales los hacen circular por todas partes.

“De dónde son los cantantes” sigue preguntando la canción cubana.

Esta difusión translocal de la cultura, y el consiguiente desdibujamiento de territorios, se agudizan ahora, no sólo debido a los viajes, los exilios y las migraciones económicas. También por el modo en que la reorganización de mercados musicales, televisivos y cinematográficos, reestructura los estilos de vida y disgrega imaginarios compartidos.

Sería justo extenderse, si hubiera tiempo, en la reestructurada visión de lo latinoamericano que van componiendo los estudios últimos de la antropología, como en otras disciplinas. Pero prefiero ocupar una página en mencionar la discrepancia entre las condiciones de producción y circulación de un nuevo pensamiento latinoamericano. Desde la perspectiva de la producción intelectual no es difícil reconocer que hace veinte años viene notándose en Argentina, Brasil, Colombia, México y Perú (aunque no son los únicos países) una renovación de los temas y áreas de competencia de la antropología, en las estrategias metodológicas y en la formación de una decena de excelentes posgrados, donde se están formando doctores con nivel equivalente al de las mejores universidades de Europa y Estados Unidos. Pese a las deficientes bibliotecas y los salarios y financiamientos paupérrimos, salvo en Brasil y México, hay investigaciones antropológicas, o socioculturales en las que participan antropólogos, que están cambiando los modos de estudiar las ciudades, comprender los proyectos o fracasos de las integraciones económicas junto a los intercambios íntimos de las fronteras, las comunidades transnacionales de consumidores propiciadas por radio, cine, televisión e Internet, las violencias nacionales y domésticas.

Si se difunde algo de estos avances es porque hasta los investigadores jóvenes viajan más que en el pasado, algunos posgrados tienen alumnado multinacional, los congresos y revistas de un país dan espacio para voces de otros. Pero salvo estas comunicaciones ocasionales, mantenidas precariamente a través de Internet, la balcanización del continente es la política predominante. ¿Hay que asombrarse de que América Latina se diluya como objeto de estudio dentro de la región cuando las editoriales con catálogo y distribución latinoamericana han sido asfixiadas o sometidas a la especulación mercantil de las transnacionales, cuando no hay condiciones institucionales ni financieras para articular investigaciones de alcance internacional y colecciones enteras como los cuadernos de la Universidad de Brasilia, los libros del Instituto Colombiano de Antropología y la Universidad Autónoma Metropolitana de México, ven librada su circulación en otros países a la difusión confidencial de las fotocopias? El latinoamericanismo será un resultado del azar de los encuentros personales mientras no haya redes académicas ni industrias culturales que lo cultiven como esfera pública.

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He tratado de mostrar conjuntamente materiales obtenidos en distintos países latinoamericanos y en los centros metropolitanos que estudian esa región. Soy consciente de que no configuran un conjunto suficientemente articulado, dejan por construir muchas mediaciones y compatibilidades entre las escalas de análisis. Quizá esta tarea sólo pueda ser concebida como fragmentaria e inacabable.

Así como no tiene sentido explorar una identidad común latinoamericana, tampoco podemos construir la noción histórica, abierta y cambiante de un espacio sociocultural latinoamericano como una realidad compacta. La convergencia histórica de la región puede ser todavía un proyecto sociopolítico y cultural deseable, y seguramente más practicable que en cualquier época anterior gracias a facilidades comunicacionales que permiten incrementar intercambios y acuerdos económicos, políticos y culturales. Una tarea posible de los antropólogos es proporcionar conocimientos sobre la diversidad y la unidad de la región que contribuyan a tomar decisiones. Pero para que esas decisiones sean sustentables importa que la antropología aporte también su saber sobre las diferencias y desigualdades, sobre lo innegociable en la interculturalidad, sobre las distancias que ni los programas de homogeneización económica, política ni mediática van a poder suturar, las resistencias étnicas que los Estados no lograron vencer, los perfiles regionales y de naciones que persisten en la globalización.

Vuelve a aparecer, así, la antropología como el saber sobre lo irreductible de las sociedades y las culturas. Pero con un cambio. A diferencia de los tiempos del relativismo a ultranza, muchos antropólogos estamos hoy tan interesados en contribuir a que los grupos marginados se afirmen y desarrollen como a entender las condiciones más amplias que reproducen su marginación y valorar las oportunidades interculturales en que los pueblos buscan ser competitivos, intercambiar con otros y convivir. En fin, no quedarse solos. Por eso, no nos dedicamos sólo a las minorías, ni privilegiamos los rituales y las consolaciones simbólicas. Nos interesa lo latinoamericano como un horizonte donde dejar de ser minorías aisladas y proyectos inconexos.

Es el momento en el que la antropología descubre que vino al mundo, más que para afianzar identidades, para comprender su conflictiva existencia múltiple. No para consolar a las minorías o enfrentar a quienes buscan subordinarlas; más bien describir los trabajos de la convivencia y por tanto las ilusiones de los poderes. Ni siquiera para limitarse a celebrar los rituales que tratan de soldar las fracturas, convertir los choques entre civilizaciones o clases o etnias en eufemismos simbólicos, sino para averiguar cómo actúan las soldaduras y los eufemismos impuestos junto a las heridas abiertas y los acuerdos solidarios.

Néstor García Canclini é Professor e Pesquisador da Universidad Autónoma Metropolitana, Iztapalapa, ciudad de México. Publicou Consumidores e cidadãos. Conflitos multiculturais da globalização. 4ª ed. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1999; Culturas híbridas. Estratégias para entrar e sair da modernidade. 2ª ed. São Paulo: Edusp, 1998 e Globalización imaginada. México: Paidós, 1999, entre outros.

NOTAS


[1] Presentado en la conferencia “The New Latin Americanism: Cultural Studies Beyond Borders”, Universidad de Manchester, 21 y 22 de junio de 2002.

[2] WARNIER, Jean Pierre. La mondialisation de la culture. París: La Découverte, 1999. p. 9.

[3] VILLORO, Luis. De la libertad a la comunidad. México: Cátedra Alfonso Reyes (ITESM), Editorial Planeta Mexicana, 2001. Cap.I.

[4] GROS, Christian. Políticas de la etnicidad: identidad, estado y modernidad. Bogotá: Instituto Colombiano de Antropología e Historia, 2000. p. 102.

[5] BARTRA, Roger. “Sangre y tinta del kitsch tropical”. Fractal. México, n. 8, Primavera, 1998.

[6] GELLNER, Ernst. Nations and nationalism. Oxford: Basil Blackwell, 1983.

[7] ELIAS, Norbert. La société des individus. París: Fayard, 1991.

[8] GROS, Christian. Op.Cit. p. 126.

[9] CARVALHO, José Jorge de. “Las culturas afroamericanas en Iberoamerica: lo negociable y lo innegociable”.In: Seminario auspiciado por la Organización de Estados Iberoamericanos: “Las Culturas Iberoamericanas en el Siglo XXI”. México, 21-22 de enero de 2002.

[10] GUTIÉRREZ ESTÉVEZ, Manuel, “América Latina: un cadáver exquisito” conferencia en la Fundación “La Caixa”, ciclo “En torno a lo latino”, 27 de febrero de 1997.

[11] GARCÍA CANCLINI, Néstor. La globalización imaginada. México: Paidós, 1999.

Idem. Culturas híbridas. Estrategias para entrar y salir de la modernidad. México: Grijalbo, 2001.

[12] CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. “Epílogo I. Fronteras, naciones e identidades. Comentarios”. In: GRIMSON, Alejandro (comp.). Fronteras, naciones e identidades. La periferia como centro. Buenos Aires: CICCUS, La Crujía, 2000.

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Dinamismo e crise dos museus de arte do Brasil | de Moarcir dos Anjos

A missão dos museus de arte é, de acordo com o entendimento consagrado na literatura técnica, coletar, preservar, estudar e divulgar uma determinada produção artística. A mutabilidade das estratégias criativas contemporâneas – freqüentemente baseadas em processos e não em produtos; por vezes perecível ou intangível -, tem posto à prova, contudo, o desejo classificatório e inerentemente redutor que perpassa instituições museológicas, forçando-as a diversificar e a ampliar o conjunto de ações que tradicionalmente as definem. Alguns críticos argumentam, por esse motivo, que os museus deveriam atuar de maneira similar a laboratórios científicos, estabelecendo um compromisso inequívoco com oprocesso inventivo do artista e tornando-se, por conseqüência, instituições que constantemente testariam os próprios limites de atuação. Outros preferem, ainda, definir os museus como instituições discursivas, para as quais os artefatos artísticos que colecionam e exibem seriam quase somente pretextos para a fala transdisciplinar e culta, enunciada quer por meio de exposições, quer por meio da pesquisa. Essa agenda reflexiva dos museus contemporâneos contrasta vivamente, entretanto, com suas agendas de mostras temporárias, as quais, com freqüência crescente, mais divertem que intrigam. Nessas mostras, que regularmente enfocam, de modo ligeiro, um tema ou assunto de interesse corrente, a pesquisa é quase nenhuma e a experimentação cede espaço à mera confirmação das expectativas do público, criadas em um ambiente cultural que opõe o espetáculo ao pensamento.

Essas múltiplas e contraditórias ações que os museus contemporâneos realizam requerem, obviamente, temporalidades distintas de atuação: além da conservação física e simbólica de um acervo ao longo do tempo, é preciso ter disponibilidade para a investigação sem fim certo e, igualmente, para o entretenimento de fruição imediata. E a cada uma dessas temporalidades se associa, é evidente, uma estrutura física, organizacional e curatorial diferente. [1]

Nesse contexto diversificado e pouco conclusivo, talvez seja mais adequado falar de museus como instituições que, tenham ou não essa intenção explicitada, formam, por meio de ações diversas – exposições, publicações, residências, cursos, eventos -, o repertório simbólico com que suas audiências constroem um olhar sobre as artes visuais e criam referências para medir e julgar (em termos estéticos, históricos, políticos) a arte feita por seus contemporâneos. Nos países de tradição museológica assentada (França, Inglaterra, Estados Unidos, México, entre outros), as demandas recentes feitas sobre os museus – sejam aquelas de natureza reflexiva e densa, sejam as voltadas à diversão ruidosa e rasa – foram gradualmente incorporadas pelas instituições mais complexas – ainda que sob o risco de perderem uma identidade lentamente construída – ou, alternativamente, forçaram a melhor definição de responsabilidades entre museus, centros culturais, universidades e espaços autônomos, diversificando a malha institucional voltada às artes visuais. Em outros países, aonde os museus não chegaram a se constituir como parte orgânica de um sistema cultural que incorpora e transmite valores e crenças, aquelas demandas têm causado neles apenas um dinamismo efêmero, ao mesmo tempo em que acentuam, de modo menos ou mais velado, suas deficiências.

O caso do Brasil é paradigmático dessa segunda situação, em que vitalidade momentânea e carência estrutural se reforçam, em uma combinação peculiar de processos de curta e de longa duração. Um indicador claro daquele dinamismo é o fato de que vários museus foram inaugurados ou re-qualificados em todo o país desde meados da década de 1990. [2]

Nesse mesmo intervalo de tempo, ademais, uma quantia inédita de recursos foi investida em suas programações (quase integralmente para custear exposições temporárias e itinerantes), atraindo um montante de público até então desconhecido para o segmento. É justamente nessa história de aparente êxito, entretanto, que, paradoxalmente, também se encontram as principais causas da crise que os museus enfrentam no Brasil. Crise que não seria somente devida a administrações ruinosas ou resultado de litígios políticos, embora ambas as causas estejam presentes em situações específicas. Crise que possui caráter sistêmico e que faz com que a maior parte dos museus de arte do país não possua projetos consistentes e flexíveis de gestão, levando-os, em última análise, a fracassar como instituições capazes de integrar, de forma minimamente equânime, atenção sobre um acervo, ações de reflexão e eventos voltados ao entretenimento.

O entendimento dessa peculiar situação que ata sucesso e fracasso requer destacar que a expansão quantitativa e territorial dos museus brasileiros e o simultâneo crescimento do volume de recursos que passou a circular nessas instituições dependeram, quase que totalmente, do modelo de financiamentopúblico da cultura adotado no país desde o início da década de 1990, o qual se ancora na renúncia fiscal das empresas que dele participam e na prerrogativa destas escolherem – em função de seus interesses corporativos – os projetos culturais beneficiários desses recursos. Foi esse modelo que, direta ou indiretamente, estimulou a criação ou a reestruturação de museus em várias partes do Brasil, de modo que eles pudessem se inserir em um circuito de exposições temporárias coordenadas por produtoras de eventos que articulam, com maior ou menor êxito, interesses de artistas, de curadores e de departamentos de marketing de empresas. Circuito que teve amplitude nacional pela necessidade de amortizar os custos fixos de produção dessas exposições, de obter o máximo de benefícios concedidos pela legislação federal que regula o sistema de financiamento (reservado apenas a mostras itinerantes) e de veicular, em várias capitais do país, as marcas das empresas patrocinadoras das mostras. [3]

São diversas as implicações da constituição dessa rede de interesses. Em primeiro lugar, é razoável afirmar que há, nesse modelo, uma confluência de benefícios virtuosa, pois permite (no melhor dos casos) uma ampliação do repertório visual que é posto à disposição dos habitantes de várias cidades antes colocadas à margem da circulação dessas informações. Em algumas situações, as exposições temporárias em museus são de tal forma incorporadas simbolicamente pelas comunidades a qual servem – possuindo, portanto, importância formativa e afetiva para o seu público – que é razoável considerar as obras nelas incluídas como fazendo parte de um “acervo” simbólico das instituições que as abrigam, ainda que de veloz circulação e sem quaisquer implicações patrimoniais. Em segundo lugar, porém, essas exposições raramente estabelecem relações históricas ou conceituais com as coleções permanentes dos museus onde se realizam, deixando de contribuir para o seu melhor conhecimento. Em terceiro lugar, ademais, não repercutem na qualificação dos quadros técnicos das instituições, posto que, quase como norma, os museus apenas cedem (ou alugam) as dependências físicas necessárias à sua realização. Em quarto lugar, por fim, esse modelo faz os museus se acomodarem à relativa facilidade com que podem programar exposições já concebidas por outros e com patrocínio assegurado junto a empresas integradas ao sistema de financiamento existente, eximindo-se da responsabilidade de tornarem-se, eles mesmos, formuladores e enunciadores de um discurso crítico em relação à produção artística contemporânea.

O processo de adaptação dos museus brasileiros às transformações recentes dos padrões de criação, reflexão e exibição das artes visuais causa e mantém, portanto, um desajuste sistêmico. Se suas funções são efetivamente ampliadas – com isso atraindo, inclusive, um público que antes não os freqüentava -, tais mudanças tornam deficiências antigas mais evidentes. Elas não são capazes de resolver problemas museológicos básicos de formação, catalogação, preservação, pesquisa e divulgação de acervos e tampouco dotam as instituições de mecanismos continuados de interação efetiva com a produção artística em curso. Como resultado, os museus brasileiros, em regra, não atuam como interlocutores críticos dos artistas nem confrontam o olhar e a inteligência de seu público; passivos e auto-satisfeitos, tão somente frustram os criadores e apaziguam sua audiência. [4]

Por mais que se argumente a favor do modelo que dinamizou os museus brasileiros desde o início da década de 1990 – sob critérios que oscilam entre a intenção justa de democratizar o acesso a bens culturais e o preconceito que dissocia lazer e aprendizado -, é certo que ele não é capaz de criar soluções para o atendimento de necessidades que escapem ao imediatismo que o fundamenta.

A situação das instituições museológicas brasileiras sugere, assim, que o Brasil chegou à contemporaneidade tardiamente. Em um momento em que as demandas que o campo das artes coloca para os museus são aproximadamente as mesmas para qualquer país, há uma pronunciada diferenciação entre a capacidade sustentada de resposta das instituições brasileiras a esses requerimentos e a capacidade de adaptação de instituições situadas em países que há muitas décadas estabeleceram um sistema museológico em bases firmes. Não há, entretanto, como atualizar um sistema de artes tardio de modo gradual, o que o torna conceitualmente distinto de um sistema atrasado. Em uma época de internacionalização do capital econômico e simbólico, não há progressão qualquer a ser feita, pois a simultaneidade é a regra. Não é mais possível esperar a lenta consolidação de uma rede institucional fundada no zelo por acervos para só então iniciar o atendimento de outras demandas igualmente relevantes. O fundamental é encontrar os meios adequados (e inovadores) de financiamento e de gestão de museus para lidar com essa condição tardia, não fazendo dela impedimento para assumir a responsabilidade frente às necessidades do meio das artes do país.

Para que os museus adquiram, desenvolvam ou recuperem a capacidade de formulação de um projeto institucional abrangente, entretanto, é necessário pensar em estratégias voltadas à sua profissionalização. Sem um corpo de funcionários com competências específicas nas áreas de curadoria, museologia, educação e captação de recursos, dificilmente os museus brasileiros vão poder escapar de um circuito de exposições imposto por patrocinadores e se consolidar como espaços não só de entretenimento, mas também, e principalmente, de pesquisa e de experimentação sobre seu acervo e sobre a produção em curso. Essa alteração também depende, contudo, de que o sistema de financiamento público de exposições (crucial para o dinamismo que esse circuito apresentou nos últimos anos) deixe de ser episódico e quase sempre mediado por terceiros para se tornar permanente e vinculado diretamente às instituições. Com equipes melhor qualificadas e formas adequadas de financiamento (incluindo, evidentemente, controle social sobre a utilização de fundos públicos), os museus brasileiros poderiam, idealmente, desenvolver séries articuladas de mostras onde focos de atuação seriam estabelecidos e privilegiados, fortalecendo, conseqüentemente, o seu papel formativo. Em vez de apenas se inserirem em um circuito de exposições existente e homogêneo, o alargariam a partir de perspectivas diferentes.

Parte fundamental de um tal projeto institucional autônomo é a concepção e a implantação gradual – à medida que mecanismos de financiamento privados ou públicos sejam criados em resposta às novas demandas que essa autonomia engendra – de um modelo de formação visual que não dependa quase exclusivamente de exposições temporárias feitas com acervos emprestados, mesmo que formatadas a partir dos museus e voltadas para as necessidades das comunidades que os freqüentam. A dominância e a persistência desse tipo de exposição claramente indicam a incapacidade da sociedade brasileira de formar acervos públicos e atualizados até mesmo das produções de seus mais destacados criadores. Por mais relevantes que tenham sido e ainda sejam para a atualização do olhar dos visitantes, é necessário que as exposições temporárias cedam aos acervos permanentes dos museus o lugar de primazia que hoje ocupam, passando a desempenhar, no futuro, um papel especulativo ou de releitura dos juízos de valor assentados por aquelas coleções. Somente assim será possível fazer com que, no correr do tempo, os museus justifiquem, em termos menos defensivos do que aqueles ainda empregados, o porquê de serem, afinal, instituições sociais importantes.

Moacir dos Anjos é PhD em economia pela Universidade de Londres,pesquisador da Fundação Joaquim Nabucoe diretor do Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães – MAMAM. Publicou o livro Local/global: arte em trânsito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, além de textos críticos sobrearte contemporâneaem revistas acadêmicas, catálogos e livros.

NOTAS


[1] Sobre o debate acerca do perfil que os museus deveriam possuir na contemporaneidade, ver Wade, Gavin (org.), Curating in the 21st Century, Walsall, The New Art Gallery Walsall, 2000; Serota, Nicholas, Experience or InterpretationThe Dilemma of Museums of Modern Art, Londres, Thames & Hudson, 2000; Schubert, Karsten, The Curator’s Egg, Londres, One-Off Press, 2000; Thea, Carolle (org.), foci. Interviews with ten international curators, Nova York, Apexart Curatorial Program, 2001; Marincola, Paula (org.), Curating Now: Imaginative Practice/Public Responsibility, Philadelphia, Philadelphia Exhibitions Initiative, 2001; Noever, Peter (org.), the discursive museum, Ostfildern-Ruit, Hatje Cantz Publishers, 2001; Sans, Jérôme e Sanchez, Marc (orgs.), What do you expect from an art institution in the 21st century?, Paris, Palais de Tokyo, 2002.

[2] Entre outros, foram inaugurados o Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães (Recife), o Museu de Arte Contemporânea do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura (Fortaleza), o Museu Vale do Rio Doce (Vila Velha), o Museu de Arte Contemporânea de Niterói e o Museu Oscar Niemeyer (Curitiba). Embora com atuação já consolidada, foram requalificados, física e gerencialmente, o Museu de Arte Moderna da Bahia (Salvador), o Museu de Arte da Pampulha (Belo Horizonte), o Museu de Arte Moderna de São Paulo e a Pinacoteca do Estado de São Paulo.

[3] Esse modelo de financiamento público da cultura também permitiu, ao longo das décadas de 1990 e 2000, a criação e a manutenção de uma rede de centros culturais ligados a instituições financeiras que reinvestem recursos fiscais devidos à Receita Federal (potencialmente destinados a fins diversos) em projetos de exposição realizados em seus próprios espaços. Independentemente do maior ou do menor mérito das atuações desses centros culturais (entre outros, o Centro Cultural Banco do Brasil, o Centro Cultural Santander e o Instituto Itaú Cultural), a utilização de recursos públicos para atender, prioritariamente, interesses privados de divulgação empresarial evidencia a falta de definições estratégicas daquele modelo e, portanto, seu descompromisso com as necessidades que o conjunto do sistema de artes brasileiro – do qual os museus são parte fundamental – possui na contemporaneidade.

[4] A rápida disseminação, na década de 1990, de espaços de criação, reflexão e exposição de arte contemporânea geridos por artistas – entre vários outros, Agora, Capacete (Rio de Janeiro), Torreão (Porto Alegre), Alpendre (Fortaleza) – reflete, em parte ao menos, a incapacidade dos museus atenderem suas demandas específicas.

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Violencia en el Deshielo: Imaginarios Latinoamericanos post-nacionales despues de la guerra fria | de Mabel Moraña

And out in the Wild West,
–you have seen this movie before–
Four lone cowboys and their skinny ponies ride the range
And suddenly up over the ridge
A thousand Indians rise up around the edge of the plateau
Like they came out of nowhere
And there are only 4 cowboys
But the cowboys look at the Indians and they say:
“Lets go get’em.” – Laurie Anderson

Al iniciar su libro Mémoire du Mal, Tentation du Bien. Enquête sur le Siécle (2000) Tzvetan Todorov pasa revista a las atroc idades que marcaron la historia del siglo XX: Primera Guerra Mundial: 8 millones de muertos en los frentes, más de 10 millones en la población civil, seis millones de inválidos. Genocidio de armenios a manos de los turcos. Tremendos saldos de muertos a consecuencia de las guerras civiles en la Rusia soviética. Segunda Guerra: 35 millones de muertos en Europa (por lo menos 25 en la Unión Soviética), exterminio masivo de judíos, bombardeos múltiples a poblaciones civiles en Alemania y Japón, sin olvidar el costo social de la liberación de las colonias. Todorov comienza su libro con una propuesta preliminar: si el siglo XVIII fue el Siglo de las Luces, el XX debería quizá ser conocido como el Siglo de las Tinieblas, un siglo donde la historia es indisociable del totalitarismo y la violencia, en sus diversas formas y contextos.

Latinoamérica siempre ha sido menos efectiva en la tarea de contar a sus muertos. Hasta el día de hoy, no hay métodos consagrados que permitan estimar con cierta exactitud el saldo del colonialismo (incluyendo la muerte por colonización de territorios, superexplotación, condiciones de vida sub-humanas, esclavitud) o el balance dejado por las intervenciones estadounidenses durante los siglos XIX y XX, ni hay números que registren las bajas producidas por los enfrentamientos de pandillas urbanas, las movilizaciones obrero-estudiantiles, la violencia policial, el narcotráfico, la violencia doméstica, las dictaduras o los levantamientos indígenas, ni hay cifras que acumulen el costo social – como suele decirse – de las batallas de la independencia, de la resistencia antiimperialista, anti-totalitaria, las bajas guerrilleras, los que cayeron en la tortura, los que sucumbieron a la miseria escuchando las promesas de orden y progreso y hoy agonizan en los escenarios del neoliberalismo. No hay cifras que den cuenta de quienes han sido y siguen siendo víctimas de la violencia en Guatemala, Nicaragua, El Salvador, Chile, Argentina, Uruguay, Brasil, Perú, Bolivia, Colombia, Venezuela.

Las reflexiones de hoy se enfocan en lo que podríamos llamar el microsistema de América Latina, particularmente en algunas de las dinámicas que en el contexto de la globalidad y el neoliberalismo acompañan la entrada del continente al nuevo siglo. Deseo aquí sugerir solamente algunas bases para el análisis del significado que asume la relación entre nación, violencia y subjetividad en América Latina a partir del fin de la Guerra Fría.

A modo de introducción, habría que señalar que es imposible realizar una crítica histórico-político-filosófica de la violencia en América sin una crítica de las modernidades que desde el período colonial se impusieron a través de una práctica sistemática y articulada de violencia económica, social, cultural, epistémica, sobre las sociedades americanas. Desde la “violencia del alfabeto” que arrasó con los espacios simbólicos de las sociedades prehispánicas, la occidentalización de América y la formación de la nación-estado nacen marcados por liderazgos e intereses de clase que apelan sistemáticamente a la violencia con el apoyo de discursos legitimadores de muy distinto orden que coinciden en la idea de que el progreso y la civilidad dependen de la reducción de todo rasgo, práctica o proyecto que no coincida con los intereses de los sectores dominantes. Así, desde los orígenes de la vida republicana, la práctica democrática y liberal implantada en América Latina propone sofísticamente la coincidencia absoluta entre Estado y sociedad, marginando e invisibilizando a grandes sectores que no se integran productivamente a la estructuración nacional. Con estos precedentes puede afirmarse entonces que la historia de América Latina es la historia de las múltiples e intrincadas prácticas y narrativas de la violencia que atraviesan sus distintos períodos y se entronizan a todos los niveles de la vida política y social de la nación moderna. Sin embargo, lo que hoy nos ocupa es el fenómeno de incremento de diversas formas de violencia ciudadana a nivel continental, y las transformaciones que los modelos de ejercicio y conceptualización de la violencia han sufrido en las últimas décadas.

Así, aunque la historia de la violencia puede rastrearse a lo largo de la historia latinoamericana desde el descubrimiento, deseo referirme aquí específicamente a la indudable relación que existe entre las transformaciones que se registran desde el fin de la Guerra Fría en los países periféricos de América Latina a nivel económico, político y cultural, y el incremento de la violencia, a distintos niveles.

En lo económico, la imposición de políticas neoliberales ha logrado acorralar, en las últimas décadas, a las economías nacionales incrementando las áreas de marginación, de des y subempleo. A los procesos de transnacionalización acelerada y masiva del gran capital e influencia creciente de las empresas transnacionales en la definición de políticas económicas y culturales, se suma la cancelación de canales institucionales para la presentación de demandas populares, eliminación de espacios de debate político, reafirmación de focos hegemónicos a nivel internacional, etc. El estado benefactor, interventor, paternalista, ha ido cediendo lugar a una entidad desdibujada que hipoteca el bienestar de la mayoría a las necesidades de protección y de reproducción del gran capital.

Correlativamente, estos cambios propulsaron una redefinición de la idea de democracia, que se ajusta hoy en día a un modelo mucho más restrictivo y excluyente que el que sirviera para describir a los regímenes modernos: democracia = oligarquía + populismo. Según estudiosos del período (Greg Grandin, por ejemplo) esta redefinición se ha realizado a partir de estrategias tales como la ruptura de alianzas existentes entre elites reformistas y clases populares, el quiebre de movimientos alternativos que quedaron reducidos a estrategias acotadas de resistencia circunstancial, y la destrucción de formas de liderazgo social y político a distintos niveles. Se transforma así radicalmente la relación entre sujeto y sociedad, entre política, ética y subjetividad, reemplazando los objetivos sociales por un individualismo consumista a veces aderezado de remozadas religiosidades tradicionales o de propuestas new age, que prometiendo consuelo y trascendencia ante las traiciones de la modernidad, brindan una alternativa de socialización que permite eludir los desencantos y desafíos de la historia presente.

El vaciamiento político del Estado, el debilitamiento de las políticas partidistas, y la disminución de alternativas ideológicas que permitan pensar lo social desde un afuera – aunque sea utópico – del neoliberalismo, ha incrementado el sentimiento de desprotección ciudadana. Esto se suma al desvanecimiento del estado benefactor, interventor, paternalista, que rigiera con variantes hasta la primera mitad del siglo XX. Los imaginarios urbanos están atravesados por sentimientos de desamparo económico, agotamiento político e inestabilidad social. La “ciudadanía del miedo” de que hablara Susana Rotker, se corresponde con las evaluaciones que realizan politólogos y analistas sociales en las últimas décadas. Si, según la conocida frase de Raymond Aron, “con la Guerra Fría la guerra se hizo improbable y la paz imposible” [1], el fin de ese período ha producido un desbalance en el equilibrio internacional del terror. Hoy en día, “la paz se ha convertido en una guerra latente” [2]: hay un notorio aumento de tipos diversos de batallas internas a nivel nacional, conflictos grupales armados más o menos restringidos a ámbitos locales o transnacionalizados, movilizaciones indígenas, desestabilizaciones radicales y violentas del llamado orden democrático por sectores populares muchas veces desorganizados pero disidentes a los partidos en el poder, aumento del delito común con estrategias innovadoras tales como asaltos colectivos, secuestros, etc., movilizaciones de grupos armados que actúan en un plano subnacional (pandillas) o supranacional (narcotráfico), etc. Aún en sociedades que presentan índices de seguridad ciudadana mucho más altos que los que se registran en Colombia, Venezuela o México, el sentimiento colectivo se mantiene aferrado al miedo cotidiano, a la idea de que en cualquier momento, como señala Robert Kaplan, “cualquier vagón del metro puede volverse una pequeña Bosnia.” Aunque las estadísticas de algunas latitudes registren datos más tranquilizadores, la “ciudadanía del miedo” ha marcado su impronta” y, como ha apuntado Beatriz Sarlo, “con el imaginario no se discute”.

Ya nadie cree que la violencia de estado ejercida a nivel nacional o internacional sea un momento imprescindible en el logro de la paz universal. Como ha indicado Bolívar Echeverría, lo que llamamos paz es apenas un provisional “cese del fuego.” Estos fenómenos que quiebran la utopía de unificación, centralismo y control estatal de la nación moderna requieren nuevas nominaciones: los críticos sociales hablan de “conflictos de baja intensidad” (Martin van Creveld), “guerra civil molecular” (Enzenberger) o “guerras inciviles” (John Keane) que desgarran la trama de lo social indicando “el retorno de lo reprimido”: lo marginado, sometido, o invisibilizado por la modernidad, que vuelve por sus fueros.

La violencia que se registra en América Latina en las últimas décadas ha sido interpretada como una serie de respuestas o reacciones inorgánicas, aunque no por ello menos elocuentes, a los efectos de laglobalización. En algunos casos, la violencia obviamente precede a este período y sus raíces deben ser estudiadas en relación con las políticas modernizadoras, con la aplicación de determinados modelos de nación y de estado, y – a partir, todavía, de perspectivas dependentistas – con la vinculación de los capitalismos periféricos a los grandes sistemas internacionales y a sus agresivas políticas de expansión económica. En otros casos, las formas más actuales, en muchos casos inéditas, de violencia, aparecen como respuestas que surgen y se incrementan ante la imposibilidad de organizar agendas locales, nacionales o regionales que puedan contrarrestar el efecto arrasador de las políticas neoliberales.

Bolívar Echeverría ha estudiado las relaciones entre las manifestaciones de “violencia salvaje” y la disolución de la identificación entre Estado y Sociedad. Las percepciones que acompañan a los procesos de globalización parecen asumir que al haberse ampliado la superficie social que el estado debe cubrir, se ha incrementado la incapacidad institucional para absorber las contradicciones y demandas sociales dando así lugar a “una posible reactualización catastrófica de la violencia ancestral no superada.” Ante el descaecimiento de la utopía de la paz perpetua y las crisis políticas que acompañan el fin de la modernidad, lo único que pervive como propuesta de articulación ciudadana es la creencia en el mercado como el espacio por excelencia de confluencia, participación y libre intercambio de bienes materiales y simbólicos, es decir la concepción de la posibilidad de realización de todos los valores sociales, individuales y colectivos, en el mundo de la mercancía. Libros como Consumidores y ciudadanos, de Néstor García Canclini exploran la vigencia de esa propuesta en épocas actuales. Pero desde posiciones más críticas que descriptivas, quizá es hora de comenzar a entender el mercado ya no como una instancia de socialización participativa, sino como una arena de lucha entre ofertas que entran a la competencia marcadas por las improntas de la desigualdad productiva, el monopolio de las transnacionales, la explotación masiva y la subalternización de vastísimos sectores sociales que sólo alcanzan una integración deficitaria a la cultura política de nuestro tiempo. Si la modernidad creó a través del mito de la productividad el modelo utópico de una sociedad insaciable, atravesada por el deseo inacabado, el escenario posmoderno de la globalidad incrementa al infinito esa voracidad y las frustraciones que su insatisfacción produce, en una dinámica de producción constante y artificial de la escasez (el consumidor ideal es aquel que no puede tener satisfacción, que vive en un estado de carencia permanente). Hoy queda claro que el monopolio estatal de la violencia tendría como cometido fundamental el de “proteger la integridad y pureza del intercambio mercantil, tanto de sus enemigos externos como internos.” (Echeverría) Pero en tiempos postmodernos ese monopolio se encuentra amenazado por las formas salvajes en que se expresa la frustración de los consumidores/ciudadanos, los sectores relegados de las dinámicas integradoras de la legalidad productivista y los que eligen formas anómalas de inserción en el mundo de la oferta y la demanda. No sería excesivo decir, desde esta perspectiva, que al lenguaje supranacional del capital nuestra época responde de manera casi instintiva, dispersa, y aparentemente inorgánica, con el lenguaje supranacional de la violencia. En otras palabras, la lengua universal del capital tiene también sus dialectos particulares. Muchos han caracterizado algunas modalidades de violencia postmoderna como una forma de regresión tribal arcaizante. Robert Kaplan habla de la aparición del segundo hombre primitivo que pasaría a formar una sociedad de guerreros que combina de manera inquietante la falta de recursos con una extensión planetaria sin precedentes, que articula clandestinidad con espectáculo, marginación y protagonismo. Sin embargo, la caracterización deprimitivismo debería revisarse. En civilizaciones “primitivas” (premodernas) algunos investigadores han visto en el carácter bélico un recurso colectivo para mantener la autonomía y para defender a la comunidad de “la aparición de instituciones estatales de carácter opresor” o sea de la posible institución de un Estado centralizado con monopolio de la violencia “legítima”, recurso que podría, en cualquier momento, volverse contra los miembros mismos de la comunidad a la que ese estado debería defender.[3] Pero al mismo tiempo, en muchas culturas, el ejercicio de la violencia se daba a sí mismo mecanismos internos de control. En muchos casos, el jefe que decretaba el movimiento bélico no se limitaba a declarar la guerra ni se mantenía en la retaguardia sino que por su mismo liderazgo debía ser el primero en salir al campo de batalla (y casi seguramente, por tanto, el primero en morir). La gloria consistía justamente en el heroísmo de la muerte por la fe en una causa colectiva que legitimaría la apelación a la violencia que involucraba a toda la comunidad. Muerto el líder, ya no existía la posibilidad de que éste pudiera usufructuar de la violencia políticamente, como una forma de popularidad que serviría, por ejemplo, para una reelección presidencial.

Sin embargo, en América Latina, muchos de los que podríamos llamar “rasgos de estilo” de la violencia tienen una indudable cualidad arcaizante. Dentro de lo que Jean Franco llamara “el costumbrismo de la globalización” aparecen prácticas culturales y textos apocalípticos con estas características, que reflejan el horror de la clase media ante la explosión de su mundo, versiones presentistas que eligen ignorar toda genealogía, toda relación con el pasado colectivo, toda posible proyección de futuro, como si la historia se agotara en la peripecia de la supervivencia individual, el consumo, la transitoriedad y el espectáculo de una rebelión desarticulada y explosiva, casi hollywoodense, contra el status quo. En plena postmodernidad muchas narrativas articuladas al eje de la violencia representan conflictos y personajes que evocan modelos de conducta y discursividades que parecerían anacrónicas en los tiempos que corren. El sicariato, por ejemplo, articula la práctica mercenaria con las matrices de la religiosidad tradicional. El estudio de la llamada sicaresca aproxima la novela de sicarios (La virgen de los sicarios,Rosario Tijeras, etc.) a los modelos de la picaresca por las similitudes en torno al protagonismo del joven marginado que intenta medrar en una sociedad estratificada que lo relega y a la que le es imposible integrarse productivamente. (ver von der Walde) Incluso los narco-corridos remiten a modelos discursivos de épocas anteriores, en un lenguaje popular, paralelo a la retórica política dominante, que reinventa la oralidad, como documentando la cancelación de las formas “modernas” e institucionalizadas de comunicación y socialización.

La violencia articula así, en los sentidos antes aludidos, elementos residuales de la modernidad, dejando al descubierto los puntos ciegos de la política burguesa y liberal. Refiriéndose a las primeras etapas de formación del Estado, Eric Hobsbawm hablaba del bandidismo como de “insurrecciones inorgánicas” que a través de prácticas espontáneas y discontinuas marcaban de manera beligerante los afueras de la emergente institucionalidad burguesa. Hoy en día, la sociedad incivil obliga nuevamente, en el contexto de la crisis epistémica de nuestra época, a revisar los conceptos de gobernabilidad, socialización, y civilidad; obliga a repensar los límites de la tolerabilidad social, los extremos reales y simbólicos del liberalismo y el valor ético de sociedades despolitizadas que no conciben su existencia fuera del fetichismo del capital. A través de estrategias radicales, arcaicas o inéditas, la violencia pone en un primer plano de la escena social justamente a los desplazados, subalternizados y “desechables,” es decir a los núcleos irreductibles nunca completamente articulados a la economía cultural de la modernidad que ponen en práctica formas anómalas de agencia individual o colectiva. Desde una productividad negativa (¿o negatividad productiva?) la violencia enfrenta a la sociedad con sus fantasmas, con lo indecible y lo irrepresentable, inaugura “territorios existenciales” (Guattari), formas alienadas y residuales de subjetividad, sustentadas en formas perversas y cerradas de solidaridad grupal. Se apoya en la producción de lenguajes opacos que descreen de la transparencia comunicativa y la socialización fuera del núcleo de solidaridad grupal y que desconfían de la democracia deliberativa, del consenso, y de la pedagogía nacionalista. La violencia relativiza así lo global frente a lo contingente, lo colectivo frente a lo individual, lo local frente a lo transnacional, y viceversa.

La violencia social en sus múltiples manifestaciones existe así como un mecanismo trans-sectorial, infra o trans-nacional, trans-subjetivo, y también trans-histórico, que opera a partir de una vinculación cruzada de intereses, tiempos, agendas, y recursos, redefiniendo éticas y estéticas que atraviesan lo social integrando de una manera inédita clases, sexos y razas, creando nuevos universos de referencia simbólica y procesos intensos de resignificación cultural y política. Si la que Bhabha llamara “la anodina noción liberal de multiculturalismo” propone reducir los antagonismos y las desigualdades sociales a mera diferencia cultural, la violencia recupera la idea de que la sociedad está atravesada por intereses y modelos identitarios ya no sólo diversos sino esencialmente conflictivos y antagónicos, irreconciliables dentro de las condiciones impuestas por las forma ineficaces, perversas y excluyentes de control estatal. Así, sin glorificar sus métodos, ni estetizar sus prácticas, ni reducir sus consecuencias, debe reconocerse que en su funcionamiento siempre excedido e irracionalista, la violencia implementa formas extremas de socialización intergrupal, funciona dentro de lógicas que el status quo no puede absorber, ni resolver, ni comprender. Redefine las ideas de lealtad grupal, de éxito, poder y valor personal, creando una adecuación otra entre medios y fines. No intenta superar ni reemplazar con algo mejor los mitos de la modernidad, sino que los expone y los extrema, como en un simulacro monstruoso, en el que mundos paralelos reproducen perversamente, en la clave de un desesperado y desesperanzado individualismo, los ideales civiles de las burguesías nacionales: el ideal de la conquista de mercados (narcotráfico), la sustentación de identidades territorializadas (pandillas), el poder de detentar la violencia para la consecución de fines autolegitimados. Redefinen el concepto de elite y liderazgo, la relación entre discurso y cuerpo individual o colectivo, llamando la atención sobre los biopoderes que atraviesan lo social e impactan a distintos niveles el constructo ideológico de la ciudadanía. Como síntoma y también como causa del deterioro de la sociedad, la violencia hace resurgir el trauma del origen (el del colonialismo, la dependencia, la exclusión, la modernización para pocos).

Sin minimizar de ninguna manera las consecuencias perversas y a menudo catastróficas de la violencia, no puede negarse que en su despliegue de acciones, escenarios y signos la violencia es, esencialmente una performance que por medio de prácticas extremas opera a través de la creación de un desorden simbólico. A través de su puesta en escena, de sus extremadas modalidades de dramatización y su frecuentemente obsceno exhibicionismo, la violencia abre un espacio teórico que reconstruye – o destruye – los mitos de orden y progreso, dejando en evidencia la incapacidad del estado para atender demandas, canalizar expectativas y corregir desbordes. Su praxis desbordada y sensacionalista obliga a revisar desde otras perspectivas lo que Josefina Ludmer llamara la “frontera móvil del delito”: los criterios y procesos de legalización y criminalización de prácticas sociales protagonizadas por sujetos considerados un excedente del sistema.

Es obvio que ningún estudio sobre violencia puede prescindir de los deslindes y entrecruzamientos entreviolencia estructural (económica, política), violencia emancipatoria (como en los movimientos de liberación – Lenin decía que no se puede hacer una tortilla sin romper los huevos-), o violencia dialéctica(que se registra en movimientos de carácter político-emancipatorio tanto como en las experiencias del erotismo, el misticismo, etc.[Echeverría]), violencia epistémica, o violencia “salvaje” (no institucionalizada), etc. Es obvio también que en contraste con las consideraciones biologistas, filosóficas, políticas, etc. de corte universalista que trabajan la teoría de la violencia como pulsión o estrategia transhistórica, transcultural, la evaluación crítica de la violencia requeriría más bien constantes contextualizaciones que dejen al descubierto su carácter primordialmente contingente, particularizado; contextualizaciones que implican una toma de posición política frente a las realidades analizadas. Finalmente, es también evidente que no en todos los casos la violencia es “partera de la historia”. Pero también es obvio que en tanto práctica social, la violencia popular que se da al margen o en respuesta a la violencia estructural o institucionalizada, no puede ser simplemente descartada o repudiada desde las posiciones salvaguardadas del orden burgués. En tanto práctica social, toda violencia es un lenguaje cifrado, opaco, que llama la atención sobre sí mismo, que debe ser entendido y decodificado, una lengua a través de la cual se expresan sectores desarticulados de la estructuración social y del status quo. Sectores que responden a la pregunta sobre si puede hablar el subalterno aún con la réplica arcaizante de Calibán: sólo puedo balbucear y maldecir en la lengua del amo.

Mabel Moraña é Professora de Literatura Latino Americana e Estudos Culturais na University of Pittsburgh. Autora deCrítica impura. Madrid: Vervuet, 2004, entre outros.

NOTAS


[1] ARON, Raymond apud KEANE, John. Reflexiones sobre la violencia. Madrid: Alianza Ed., 1996. p. 110.

[2] KEANE, John. Ibidem, p. 132.

[3] Idem.Ibidem, p. 115

BIBLIOGRAFIA


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Globalização, informação e o direito fundamental à privacidade | de Sidney Guerra

I. INTRODUÇÃO

Seguindo a tendência internacional no que concerne à inserção no texto constitucional do direito à privacidade, o Brasil declarou expressamente no artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal a proteção ao supracitado direito: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.

Tal previsão é importante face ao poder das teleobjetivas que invadem o espaço secreto das pessoas possibilitando uma devassa na intimidade das mesmas provocando muitas das vezes dor, sofrimento e discórdia pela revelação de certos dados e particularidades.

Com efeito, o presente estudo não tem o intuito de esgotar todas as questões que envolvem o direito à privacidade até porque não é fácil definir os contornos deste direito pois, como todo valor social, pode transformar-se de acordo com a interpretação que lhe empreste a sociedade. A tentativa de se estabelecer uma padronização e harmonização do que seja privacidade no mundo globalizado seria extremamente complexo e, possivelmente errônea pela própria dimensão, levando-se em conta fatores como religião, costume, grau de desenvolvimento, política etc.

De toda sorte, discutir este interessante tema é imperioso principalmente pelo fato de que todos estão sujeitos a violações do direito à privacidade tanto por parte de pessoas físicas quanto jurídicas e em especial pelos meios de comunicação social.

Desta forma, o artigo intitulado “Globalização, informação e o direito fundamental à privacidade” pretende demonstrar, alicerçado na doutrina e na jurisprudência, a dificuldade de compatibilizar o uso da informação no mundo globalizado e o direito fundamental à privacidade, posto que por vezes a curiosidade em saber da vida alheia é mórbida e que a divulgação de fatos (verdadeiros ou falsos) relacionados a uma determinada pessoa podem trazer danos incomensuráveis e irreversíveis, principalmente na sociedade em que a informação passa a ter papel de destaque traduzindo como sinônimo de poder, portanto a dimensão que toca este assunto, na medida em que há uma valorização da dignidade da pessoa humana trazendo de volta uma antiga discussão das esferas pública e privada.

II. GLOBALIZAÇÃO

O termo “globalização” ou “mundialização” [1], encontra-se na “moda” e a expressão é utilizada em vários segmentos sociais. Não se trata mais de uma predileção dos economistas em fazer uso do termo, mas seu estudo tornou-se assunto obrigatório nas instituições públicas e privadas, na agenda política, na academia (em vários cursos) e sobretudo para o direito cujos efeitos e desdobramentos para o mundo implicam uma nova percepção para o jurista.

Nos dias atuais, países, culturas, etnias e raças vêm sendo empurrados pela globalização, envolvendo praticamente todos os países, uns como hegemônicos, protagonistas ou dominantes, outros como subordinados, dominados ou coadjuvantes e outros como apêndices, com sérias conseqüências para as nações e para os Estados e seus cidadãos.

A globalização vem exigindo a eliminação das fronteiras geográficas nacionais, e difundindo contínua modernização, expansão econômica, política, militar e territorial, fundindo e/ou destruindo identidades nacionais pela imposição de governos e modos de produção, enquanto “mundializa” a cultura.

Diante destas questões tão distintas e complexas em que se manifesta a globalização, estabelecer um conceito é tarefa difícil; entretanto, vários autores [2] têm procurado conceituá-la.

De fato, a globalização do mundo expressa um novo ciclo de expansão do capitalismo, como modo de produção e processo civilizatório de alcance mundial. Um processo de amplas proporções envolvendo nações e nacionalidades, regimes políticos e projetos nacionais, grupos e classes sociais, economias e sociedades, culturas e civilizações [3].

Com efeito, o sistema social mundial põe-se em movimento, se modernizando, vai-se transformando numa espécie de aldeia global. De repente, tudo se articula em um vasto e complexo todo moderno, modernizante, modernizado [4]. Em decorrência deste processo, percebe-se claramente o fenômeno da globalização que estabelece novos paradigmas acerca da questão propiciando a intensificação das relações sociais em escala mundial, que ligam localidades distantes de tal maneira que acontecimentos locais são modelados por eventos ocorrendo a muitas milhas de distância e vice versa. [5]

Sem dúvida, o grande sinal pertinente à modernização parece ser a comunicação, a proliferação e generalização dos meios impressos e eletrônicos de comunicação, articulados em teias multimídias alcançando todo o mundo estabelecendo uma globalidade das idéias, padrões e valores sócio-culturais inimaginários [6].

Os meios de comunicação de massa, com as alterações e criações desenvolvidas por conta da tecnologia, rompem as fronteiras nacionais influenciando culturas, religiões, regimes políticos, economias etc, fazendo com que a sociedade se reorganize.

A informação sendo processada em vias de globalização acaba por produzir efeitos jurídicos nunca antes imaginados cujas barreiras geográficas que antes separavam os Estados cedem lugar a um mundo virtual e universal, onde todas as pessoas podem ter acesso às mesmas informações. 

É neste sentido que devem ser focados os estudos relacionados a globalização pois vão estabelecer desdobramentos para a pessoa humana que se transforma igualmente em um cidadão global.

Ianni [7] adverte que no âmbito da globalização quando começa a articular-se uma totalidade histórico-geográfica mais ampla e abrangente que as conhecidas, abalam-se algumas realidades e interpretações que pareciam sedimentadas. Alteram-se os contrapontos singular e universal, espaço e tempo, presente e passado, local e global, eu e outro, nativo e estrangeiro, oriental e ocidental, nacional e cosmopolita. A despeito de que tudo parece permanecer no mesmo lugar, tudo muda. O significado e a conotação das coisas, gentes e idéias modificam-se, estranham-se, transfiguram-se. Ao globalizar-se o mundo se pluraliza, multiplicando as suas diversidades, revelando-se um caleidoscópio desconhecido, surpreendente. … Entrecruzam-se, fundem-se e antagonizam-se perspectivas, culturas e civilizações, modos de ser, agir, pensar, sentir e imaginar. Tanto se apagam e recriam diversidades preexistentes como formam-se novas. Ao mesmo tempo que expressa e deflagra processos de homogeneização, provoca diversidades, fragmentações, antagonismos.

A globalização afeta o comportamento dos Estados e das pessoas comprometendo e aviltando, muitas vezes a dignidade da pessoa humana. A valorização da dignidade da pessoa humana ganha importância tanto no âmbito do direito interno dos Estados (com a previsão legislativa consagrada nas Constituições substanciais e/ou formais na categoria de direito fundamental e, não tão raramente, na categoria de estrutura organizacional dos próprios Estados) como no plano internacional (em especial, com a celebração de vários Tratados Internacionais).

Sem embargo, grandes mudanças ocorreram no mundo em decorrência da globalização e das comunicações, especialmente em razão da internet [8], que carecem de novas exigências quanto à orientação e formas de intervenção dos agentes econômicos, governamentais e de toda a sociedade.

Destarte, deve-se destacar os efeitos decorrentes da violação ao direito fundamental à privacidade que tenha sido aviltada nesta estrutura social. Daí o ponto nevrálgico da questão: como dissociar a esfera privada da esfera pública num mundo globalizado, onde a informação é processada em tempo quase que instantâneo para o todo?

III. AS ESFERAS PÚBLICA E PRIVADA NA SOCIEDADE GLOBAL

A noção de esfera pública e de esfera privada se integra ao vocabulário político atual. O conjunto de relações em que se envolve a pessoa humana pode ser dividido em relações que interessam apenas aos indivíduos e ocorre na esfera privada ou que envolvem a coletividade e daí a esfera pública. A esfera pública não deve interferir em qualquer âmbito, concreto ou particular, definido como sendo privado.

Há, portanto, uma série de relações como, por exemplo: familiares, de amizade, religião etc., que são personalíssimas, o que faz com que sejam de âmbito exclusivo, de cada pessoa humana, estabelecendo a individualidade ou esfera privada de cada um.

Entretanto, há outra esfera, que seria de interesse público, que estabelece comportamentos genéricos para os cidadãos. O grande problema nos dias atuais é estabelecer aquilo que é público ou privado numa sociedade globalizada. Atente-se para a idéia de Hannah Arendt: “Nenhuma vida humana, nem mesmo a vida do eremita em meio à natureza selvagem, é possível sem um mundo que direta, ou indiretamente, testemunhe a presença de outros seres humanos” [9] .

Esta afirmação decorre da enunciada concepção de Aristóteles de que o homem é um ser eminentemente social. Entretanto Arendt expande o comentário de que a pessoa humana seria titular de duas vidas: a privada e a pública: “O surgimento da cidade-estado significava que o homem recebera, além de sua vida privada, uma espécie de segunda vida, o seu bios politikos. Agora cada cidadão pertence a duas ordens de existência; e há uma grande diferença em sua vida entre aquilo que lhe é próprio (idion) e o que é comum (koinon)” [10] .

Em verdade, a autora sustenta que a distinção entre a esfera da vida pública ou da vida privada corresponde ao fato da existência da família e da política como entidades diferentes e separadas, e assevera: “o que nos interessa neste contexto é a extraordinária dificuldade que, devido a esse fato novo, experimentamos em compreender a divisão decisiva entre as esferas pública e privada, entre a esfera da polis e a esfera da família, e finalmente entre as atividades pertinentes a um mundo comum e aquelas pertinentes à manutenção da vida” [11].

Procurando estabelecer a delimitação da esfera pública e da esfera privada, Nelson Saldanha [12]comparou simbolicamente a primeira com a praça e a segunda com o jardim. Sobre esta questão, volte-se ao magistério de Hannah Arendt: “A passagem da sociedade do sombrio interior do lar para a luz da esfera pública não apenas diluiu a antiga divisão entre o privado e o político, mas também alterou o significado dos dois termos e a sua importância para a vida do indivíduo e do cidadão, ao ponto de torná-los quase que irreconhecíveis. Hoje, não apenas concordaríamos com os gregos que uma vida vivida na privatividade do que é próprio ao indivíduo (idion), à parte do mundo comum, é idiota por definição, mas tampouco concordaríamos com os romanos, para os quais a privatividade oferecia um refúgio apenas temporário contra os negócios da res pública. O que chamamos hoje de privado é um círculo de intimidade cujos primórdios poderemos encontrar nos últimos períodos da civilização romana” [13].

De toda sorte, Habermas [14], em sua reconstrução do direito, aponta que o direito moderno tira dos indivíduos o fardo das normas morais e as transfere para as leis que garantem a compatibilidade das liberdades de ação; estas, por sua vez, obtêm sua legitimidade mediante um processo legislativo que se apoia no princípio da soberania do povo e que a “autonomia privada é garantida, nessa esfera colocada sob a proteção do direito” [15].

Do mesmo modo, evidencia-se que a atuação pública da pessoa humana carece do reconhecimento de sua esfera privada, devidamente tutelada pelo Estado, como se vê: “A atuação pública dos cidadãos, isto é, o desenvolvimento da sua cidadania, não se exerce sem a preexistência de uma autonomia privada garantida por direitos fundamentais. Em outras palavras, sem os direitos que se desdobram dos princípios jurídicos da dignidade, igualdade e liberdade, e que permitem a construção do indivíduo consciente e autônomo, não se pode verificar o exercício consciente e autônomo dos direitos que asseguram sua autonomia pública. Autonomia pública e privada colocam-se em dependência recíproca, sem que os direitos indispensáveis à autonomia privada possam aspirar precedência sobre a soberania do povo ou esta sobre qualquer outro primado.” [16]

Anthony Giddens para enfocar a questão socorre-se dos ensinamentos de Peter Berger e Arnold Gehlen afirmando que: “a esfera privada tornou-se desistitucionalizada, como resultado do predomínio de organizações burocráticas de larga escala e da influência geral das sociedades de massas. A esfera da vida pública, por outro lado, tornou-se excessivamente institucionalizada. O resultado é que a vida pessoal torna-se atenuada e privada de pontos de referência firmes: há uma volta para dentro, para a subjetividade humana, e o significado e a establidade são buscados no interior. … A esfera privada é deste modo deixada enfraquecida e amorfa, mesmo considerando-se que muitas das satisfações primordiais da vida devem ser nela encontradas porque o mundo da razão instrumental é intrinsicamente limitado em termos dos valores de que pode conceber” [17].

Com efeito, a postulação de um direito à intimidade [18] é uma conseqüência das novas realidades do mundo contemporâneo e que torna imprescindível sua discussão, principalmente quando se têm a informação como elemento preponderante nesta estrutura social.

Celso Lafer, interpretando a obra de Hannah Arendt, enfatizou: “Estas realidades vêm levando, de um lado, à interferência crescente na esfera da vida privada por parte do poder público – tanto no exercício cotidiano do poder de polícia quanto na atividade judiciária – e, de outro, à maior possibilidade de terceiros se intrometerem no âmbito da intimidade das pessoas. Para isso vêm concorrendo os artefatos derivados da inovação tecnológica, como teleobjetivas, gravadores de minúsculas dimensões, aparelhos de interceptação telefônica, computadores” [19].

De fato, o direito à privacidade nunca esteve tão ameaçado como nos dias atuais. Entretanto, a preservação da esfera privada é fundamental para o desenvolvimento da personalidade da pessoa humana. Alguns procedimentos, costumes, crenças, amizades, jeito de viver, amores, preferências podem ser disponibilizadas ao público; outras não o podem ser.

A esfera pública pode ser traduzida naquilo que esperamos e conhecemos da pessoa pelo que se apresenta em sociedade e a esfera privada consiste naquilo que lhe é mais privativo. Entretanto, como salientou Jürgen Habermas, “a linha entre a esfera privada e a esfera pública passa pelo meio da casa. As pessoas privadas saem da intimidade de seus quartos de dormir para a publicidade do salão” [20].

A democratização da esfera privada está atualmente não apenas na ordem do dia, mas é uma qualidade tácita de toda vida pessoal que está sob a égide do relacionamento puro. … A democratização da vida pessoal é um processo menos visível, em parte justamente por não ocorrer na área pública, mas suas implicações são também muito profundas. [21]

Deste modo a idéia de esferas pública e privada vêm sofrendo alterações e alguns fatos sociais foram identificados no estudo realizado por Miranda: “Nos últimos tempos, alguns fatos sociais têm ameaçado, não só o modelo entre o público e o privado, mas também, a pacífica fruição da própria vida privada pelo homem contemporâneo a saber: a tirania do individualismo exacerbado; a ação niveladora da cultura de massas; o totalitarismo estatal; a revolução tecnológica” [22].

Em relação ao primeiro aspecto, o autor [23] aponta que afeta o pleno desenvolvimento do direito à privacidade de duas formas: por um lado, inibe a ação das forças básicas da personalidade, tais como o respeito pela privacidade dos outros ou a compreensão de que, uma vez que cada indivíduo é, em certa medida, uma câmara de horrores, as relações civilizadas entre os indivíduos só podem ter continuidade na medida em que os desagradáveis segredos do desejo, da cobiça ou inveja forem guardados a sete chaves. De outra forma, a preocupação consigo mesmo inibe a pluralidade e cria uma confusão entre a vida pública e a vida privada pois as pessoas tratam em termos de sentimentos pessoais os assuntos públicos, que somente poderiam ser adequadamente tratados por meio de códigos de significação impessoal.

No tocante ao segundo, isto é, o totalitarismo estatal, refere que este aliena o indivíduo, tolhe suas ações e escolhas, cria determinismos que impedem cada qual de buscar aquilo que o diferencia entre seus pares, tornando-se uma imensa máquina de dominação que apaga os limites entre o público e o privado.

Quanto à ação niveladora da cultura de massas, assinala que impõe aos membros da sociedade um conformismo que faz com que se pautem por meio de uma só opinião, um só interesse, o que afeta um dos aspectos mais importantes da esfera privada, que é o respeito à singularidade do indivíduo.

Finalmente, indica a revolução tecnológica como sendo responsável por uma infindável ingerência da esfera privada de cada pessoa, de forma aguda e ampla. Sem embargo, a revolução tecnológica com todos seus desdobramentos e, principalmente, com o advento da revolução informática, viola sobremaneira a privacidade da pessoa humana. Neste sentido Paulo José da Costa Júnior sentenciou: “O processo de corrosão das fronteiras da intimidade, o devassamento da vida privada, tornou-se mais agudo e inquietante com o advento da era tecnológica. As conquistas desta era destinar-se-iam, em tese, a enriquecer a personalidade, ampliando-lhe a capacidade de domínio sobre a natureza, aprofundando o conhecimento, multiplicando e disseminando a riqueza, revelando e promovendo novos rumos de acesso ao conforto. Concretamente, todavia, o que se verifica é que o propósito dos inventores, cientistas, pesquisadores, sofre um desvirtuamento, quando se converte de idéia beneficente, em produto de consumo. A revolução tecnológica, sempre mais acentuadamente, ganha um dinamismo próprio, desprovido de diretrizes morais, conduzido por um cientificismo ao qual são estranhas, e mesmo desprezíveis, quaisquer preocupações éticas, metafísicas, humanísticas. Torna-se cega e desordenada, subtraindo-se ao controle até mesmo dos sábios, que a desencadeiam” [24].

E complementa seu raciocínio: “O mais desconcertante não é a verificação objetiva do fenômeno, não é observar que a tecnologia acoberta, estimula e facilita o devassamento da vida privada; é tomar conhecimento de que as pessoas condicionadas pelos meios de divulgação da era tecnológica (a serviço, portanto, de seus desígnios, em termos estritamente apologéticos), sentem-se compelidas a renunciar à própria intimidade. … O conceito de vida privada, como algo precioso, parece estar sofrendo uma deformação progressiva em muitas camadas da população. Realmente, na moderna sociedade de massas, a existência da intimidade, privatividade, contemplação e interiorização vem sendo posta em xeque, numa escala de assédio crescente, sem que reações proporcionais possam ser notadas” [25].

Para efeito deste estudo, o termo privacidade [26] abrange a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem, que gozavam de proteção em nosso ordenamento jurídico como direitos da personalidade, de natureza essencialmente privada, e que passam a ter uma maior proteção a partir da Constituição Federal de 1988, na medida em que foram elevados ao nível de Direitos Fundamentais.

IV. O DIREITO FUNDAMENTAL À PRIVACIDADE

O direito à privacidade goza de proteção em vários países; assim, a título exemplificativo, começamos por Espanha e Portugal que influenciaram sobremaneira o processo de elaboração da Constituição brasileira vigente.

Quanto ao primeiro Estado, há previsão expressa em vários dispositivos constitucionais, como por exemplo, nos artigos 18.1 e 105.2. [27] e na legislação infraconstitucional – Ley Orgánica 1/82 de 5 de maio – que agasalha a proteção à privacidade. De igual forma, Portugal passou a tutelar os referidos direitos no plano constitucional quando declarou expressamente esta previsão no artigo 33 [28] de sua Constituição e infraconstitucional, quando regulamentou a matéria nas esferas penal e cível. [29] Já na França, a Lei nº 70643 de 17 de julho de 1970, em seu artigo 9º informa que todos têm direito ao respeito de sua vida privada. Os juízes podem, sem prejuízo da reparação do dano sofrido, prescrever todas as medidas como sequestro, penhora etc, para impedir ou fazer cessar um atentado contra a intimidade.

Nos Estados Unidos, igualmente é reconhecido o direito à privacidade e este tem se manifestado sob vários aspectos: a) divulgação indevida de fatos de natureza eminentemente privada; b) o uso indevido da imagem, do nome ou de fotografia de uma pessoa para fins comerciais e/ou publicitários; c) violação não autorizada de uma correspondência; d) a escuta telefônica sem o consentimento judicial; e) o acesso e retificação de dados pessoais constantes de registros etc.

Seguindo a tendência internacional no que concerne à inserção no texto constitucional do direito à privacidade, o Brasil declarou precisamente no artigo 5º, inciso X, da Carta Magna a proteção ao supracitado direito:

“são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”

Tal previsão é importante [30] face ao poder das teleobjetivas que invadem o espaço secreto das pessoas como alertado por Celso Bastos: “a evolução tecnológica torna possível uma devassa na vida íntima das pessoas. … Nada obstante, na época atual, as teleobjetivas, assim como os aparelhos eletrônicos de ausculta, tornam muito facilmente devassável a vida íntima das pessoas. … Sem embargo, disso, sentiu-se a necessidade de proteger especificamente a imagem das pessoas, a sua vida privada, a sua intimidade” [31].

Com efeito, a Constituição Brasileira de 1988 foi extremamente rica na expansão de uma nova consciência jurídica dos cidadãos, como constatou Leonardo Greco: “a Constituição de 1988 foI extremamente fecunda na expansão e consolidação de uma nova consciência jurídica dos cidadãos, calcada primordialmente na efetividade dos direitos e garantias fundamentais constitucionalmente assegurados” [32].

Complementando o asserto, identifica a questão da intimidade versus desenvolvimento tecnológico como sendo uma das que devem constituir objeto de preocupação, dada a redução do Estado à incapacidade, que hoje é patente, de proteger as situações de fato teoricamente agasalhadas pelo direito: “Transparência, participação democrática, presunção de inocência, devido processo legal, contraditório, publicidade, intimidade, ampla defesa, são algumas das expressões que se tornaram populares no nosso tempo, como representativas de regras mínimas de convivência social, essenciais para que todos os cidadãos vejam respeitada pelos demais e pelo próprio Estado a sua dignidade humana. … Essa revisão crítica da operatividade das instituições jurídico-políticas e das normas jurídicas assecuratórias dos direitos fundamentais certamente seria extremamente positiva para o aprimoramento da convivência pacífica de todos os cidadãos e de todos os povos, se, paradoxalmente, a sociedade moderna, em decorrência da economia de escala e do frenético desenvolvimento tecnológico, não tivesse potencializado as necessidades humanas, progressivamente modificado a aptidão dos bens materiais de satisfazê-las, massificando as relações econômicas e sociais e os conflitos delas decorrentes, reduzindo o Estado provedor do bem comum à completa incapacidade de atender a todas as demandas e a proteger concretamente todas as situações de fato teoricamente agasalhadas pelo Direito.” [33]

Serão expendidas algumas considerações sobre o direito à privacidade à luz do ordenamento jurídico brasileiro.

O direito à Intimidade e o direito à vida privada [34]

Estabelecer os reais contornos do direito à intimidade e o direito à vida privada é tarefa árdua que têm atormentado vários estudiosos do assunto, como será demonstrado.

Em 1968, em conferência realizada por juristas nórdicos, foi proposta a conceituação do direito à privacidade na medida em que a pessoa teria o direito de ter a mesma protegida contra: a) a interferência em sua vida privada, familiar e doméstica; b) ingerência em sua integridade física ou mental ou em sua liberdade moral e intelectual; c) ataque à sua honra; d) colocação em perspectiva falsa; e) a comunicação de fatos irrelevantes e embaraçosos relativos à intimidade; f) o uso de seu nome, identidade ou retrato; g) espionagem e espreita; h) intervenção na correspondência; i) má utilização de suas informações escritas ou orais; j) transmissão de dados recebidos em razão de segredo profissional.

De forma acertada, Edson da Silva [35] afirma que este indicativo padece de absoluta falta de rigor científico porque inclui no âmbito da intimidade aspectos que dizem respeito a outros direitos, como por exemplo, o direito à honra e o direito à imagem.

Percebe-se que existe uma grande dificuldade de se estabelecer o que é direito à intimidade e direito à vida privada, razão pela qual Luis Alberto David Araújo [36] optou por utilizar as expressões vida privada e intimidade como sinônimas.

Também Pedro Frederico Caldas usa indistintamente as denominações vida privada, intimidade, privacidade ou resguardo “como expressando igual conteúdo de conceito, embora tenhamos preferido, para a titulação do trabalho, o termo vida privada, porque, particularmente, o consideramos a acepção mais abrangente” [37].

René Ariel Dotti denominou a intimidade como sendo “a esfera secreta da vida do indivíduo na qual este tem o poder legal de evitar os demais” [38].

Na verdade, o direito à intimidade tem recebido várias denominações desde o “right of privacy” (no direito anglo-americano), “droit à la vie privée” (no direito francês), o “diritto alla riservatezza” (no direito italiano), o “derecho a la esfera secreta” (no direito espanhol), o direito à privacidade e o direito de estar só (no direito brasileiro), por exemplo.

Com efeito, a elaboração teórica para se determinar o real alcance da esfera da intimidade e da vida privada tem sido motivo de grandes controvérsias na doutrina e até mesmo na jurisprudência, estabelecendo imprecisões no plano conceitual dos referidos institutos. Evidencia-se que em determinados momentos, diante do caso concreto, pode haver a violação [39] do direito à intimidade e/ou do direito à vida privada, bem como do direito à honra e do direito à imagem, isto é, nem sempre e necessariamente quando ocorre a violação de um direito, ocorrerá nos demais.

Quanto a intimidade e vida privada têm sido apontados, dentre outros existentes, a proteção de recordações pessoais, memórias, diários, vida amorosa, situação familiar, costumes do lar, diversões, confidências, dados pessoais, saúde, lembranças, inviolabilidade de correspondência, inviolabilidade de domicílio, sigilo profissional, sigilo bancário e até mesmo do lixo doméstico.

Daí, ter-se a falsa impressão de que todos os direitos elencados no inciso X do art. 5º da Constituição possuem o mesmo significado, o que, em realidade, não ocorre.

Anotamos, à guisa de maior clareza, a remissão de Luis Grandinetti à definição de Aurelia Maria Romero Coloma, que entendeu o direito à intimidade como sendo: “el derecho en virtud del qual excluimos a todas o determinadas personas del conocimiento de nuestros pensamientos, sentimientos, sensaciones y emociones. Es el derecho a vivir en soledad aquella parte de nuestra vida que no deseamos compartir con los demás, bien sea con la sociedad que nos rodea, con todo el mundo que nos circunda, o bien con una parte de ese mundo”. [40]

José Cavero de forma mais precisa atribui conceitos distintos para a intimidade e para a vida privada, a saber: “privacidade, que tem em conta a esfera da vida individual nucleada na ausência do público, ou seja, na esfera de comodidade onde as relações sociais exteriores ao núcleo familiar permanecem resguardadas, ou, em melhor expressão, confinadas no próprio núcleo familiar, repugnando qualquer intromissão alheia. Outro, de intimidade, ainda mais restrito que o de privacidade, que tem em vista exatamente essa interpessoalidade da vida privada” [41].

Assim, para melhor esclarecimento, verifica-se que a intimidade é algo a mais do que a vida privada, ou seja, a intimidade caracteriza-se por aquele espaço, considerado pela pessoa, como impenetrável, intransponível, indevassável e que, portanto, diz respeito única e exclusivamente à pessoa, como por exemplo, recordações pessoais, memórias, diários etc. Este espaço seria de tamanha importância que a pessoa não desejaria partilhar com ninguém. São os segredos, as particularidades, as expectativas, enfim seria, o que vamos chamar de o “canto sagrado” que cada pessoa possui.

Já a vida privada consiste naquelas particularidades que dizem respeito, por exemplo, à família da pessoa, tais como relações de família, lembranças de família, problemas envolvendo parentes próximos, saúde física e mental etc. Seria então aquela esfera íntima de cada um, que vedasse a intromissão alheia. Entretanto, percebe-se que neste caso a pessoa poderia partilhá-la com as pessoas que bem lhe conviesse, sendo da família ou apenas um amigo próximo.

De toda sorte, o constituinte preocupou-se em assegurar a inviolabilidade da intimidade e da vida privada – o primeiro rejeita qualquer espécie de interferência, quer pública quer privada, enquanto que o segundo rechaça a interferência do conhecimento público – pelo fato de tais direitos estarem sendo ameaçados, com bastante freqüência, por investigações e divulgações ilegítimas, realizadas por aparelhos registradores de imagem, sons e dados, infinitamente sensíveis aos olhos e ouvidos. [42]

Diante de tais considerações, verifica-se que vida privada [43], à luz da Constituição Federal de 1988, é o conjunto de modo de ser e viver, como direito de o indivíduo viver sua própria vida. Consiste ainda na faculdade que cada indivíduo tem de obstar à intromissão de estranhos na sua vida privada e familiar, assim como de impedir-lhes o acesso a informações [44] sobre a privacidade de cada um, e também que sejam divulgadas informações sobre esta área da manifestação existencial do ser humano.

Questão interessante ainda nesta seara relaciona-se à pessoas famosas haja vista que, de forma errônea e, principalmente violados pelos profissionais dos diversos meios de comunicação social, que pensam não haver limites para a divulgação dos fatos que envolvem as mesmas, como se estas tivessem aberto mão deste direito fundamental; convêm acentuar pois, que a fama e notoriedade das pessoas não elimina aspectos fundamentais e a proteção destes direitos.

O direito à honra

Como sustenta Aparecida Amarante [45], a honra consiste numa qualidade moral do ânimo, que pode ser ferida, sofrer menoscabro e que deve ser defendida com o mesmo afinco, com a mesma força de quem se afana entre a vida e a morte pois, quem se sente desonrado perde as bases da luta e da superação, cai, se debilita e padece dos mais firmes suportes de sua individualidade.

Do mesmo modo Miguel Reale [46] sobre conduta moral, adverte que os homens não se vinculam em seu agir apenas por valores de transcendência, mas também se ligam por algo que está neles mesmos ou, então, nos outros homens.

Evidencia-se, pois, que no plano da conduta moral o homem tende a ser o legislador de si mesmo. De tal modo que para muitas pessoas, a honra sobreleva a própria vida não havendo a possibilidade de dissociar este elemento, que é de cunho moral e imprescindível à composição da personalidade, já que acompanha a pessoa desde o nascimento com vida até a sua morte.

A idéia de honra traduz-se em “probidade; virtude; consideração; bom nome; fama; glória; culto; graça; dignidade; distinção” [47].

Vale então dizer que a honra é composta pelas qualidades que caracterizam a dignidade da pessoa, o respeito dos concidadãos, o bom nome, a reputação e a dignidade.

A proteção à honra consiste no direito de não ser molestado, injuriado, ultrajado ou lesado na sua dignidade ou consideração social [48]. Assim, Adriano de Cupis enfatizou que “a pessoa tem o direito de preservar a própria dignidade, mesmo fictícia, até contra ataques da verdade, pois aquilo que é contrário à dignidade da pessoa deve permanecer um segredo dela própria” [49].

Percebe-se que existem dois aspectos a serem abordados em relação a honra: o aspecto objetivo e o aspecto subjetivo. No que se refere ao primeiro – aspecto objetivo – verifica-se que esta estaria voltada para a sociedade, ou seja, a idéia que as pessoas fazem daquela pessoa; qual a opinião, a idéia, os padrões que são criados pela própria sociedade, ou seja, o bom nome, a fama, a estima que goza em sociedade. Já no segundo – aspecto subjetivo – está relacionado à questão do próprio “eu”, da auto-estima, da consciência da própria dignidade, isto é, do que a pessoa pensa de si mesma.

Os aspectos subjetivo e objetivo foram tratados por Pontes de Miranda da seguinte forma: “a dignidade pessoal, o sentimento e consciência de ser digno, mais a estima e consideração moral dos outros, dão conteúdo do que se chama honra” [50].

A honra então é um bem inerente ao próprio homem, do qual não poderá divorciar-se. A honra, como descrito, esta diretamente relacionada ao aspecto da moral, dos valores mais importantes da pessoa, de poder andar de cabeça erguida, de ter um nome, das pessoas terem uma boa referência desta pessoa, enfim de poder se olhar no espelho e verificar que, de fato, trata-se de um homem honrado.

No direito à honra [51], a pessoa é vista, frente à sociedade, em função do valor que lhe é atribuído no contexto social. Ocorrendo, então, a lesão da honra, de imediato a pessoa cujo direito foi violado se sente diminuída, desprestigiada, humilhada, constrangida, sofrendo perdas enormes tanto no aspecto financeiro, como no aspecto moral, pois a lesão se reflete de imediato na opinião pública, que, logo, adota em relação a ela uma postura negativa, implicando naquelas perdas.

É assim necessário haja uma proteção da honra, pois como salienta Bittar: “a opinião pública é muito sensível a notícias negativas ou desagradáveis, sobre as pessoas, cuidando o sistema jurídico de preservar o valor em tela, de um lado, para satisfação pessoal do interessado, mas, especialmente, para possibilitar-lhe a progressão natural e integral, em todos os setores da vida na sociedade (social, econômico, profissional, político) [52].

A título ilustrativo, pode-se apontar casos em que tenha havido violação ao direito à honra em razão de alguém ter produzido algum ato ou fato, relacionado ao aspecto objetivo ou subjetivo da honra, que produza à diminuição, a dor, o vexame a outrem que foi dirigido de forma direta ou indireta. [53] Do mesmo modo a doutrina [54] sinaliza com casos específicos de violação do direito à honra, como o crédito pessoal e a concorrência desleal relacionada à honra do comerciante que será aviltada quando são lançadas suspeitas infundadas, fatos inverídicos, quando se qualifica o comerciante de desonesto e até mesmo atacando a qualidade de suas mercadorias, poderá ensejar a diminuição de seus negócios ou o pedido de uma falência ou concordata. [55]

O direito à Imagem

Para Hermano Duval [56] o direito à imagem relaciona-se a projeção da personalidade física (traços fisionômicos, corpo, atitudes, gestos, sorrisos, indumentárias, etc.) ou moral (aura, fama, reputação, etc.) do indivíduo (homens, mulheres, crianças ou bebê) no mundo exterior.

Já Pontes de Miranda identifica o direito à imagem como “direito de personalidade quando tem como conteúdo a reprodução das formas, ou da voz, ou dos gestos, identificativamente” [57].

Outra idéia apresentada por Walter Moraes [58] é a que decorre da apresentação de comerciais de rádio, imitadores de voz, onde são veiculados certos produtos. Neste caso, assegura o autor, estaríamos diante de uma violação de imagem. Defensor também desta tese, Pedro Frederico Caldas entende que a voz é também passível de exprimir a representação da pessoa, lecionando desta forma que: “não quer dizer que o fulcro central do objeto jurídico não seja a representação fisionômica da pessoa, a projeção de todo o seu corpo, ou de partes dele – quando seja possível se relacionar a parte à pessoa -, podendo também compreender a sua voz, quanto igualmente a voz seja passível de exprimir a representação da pessoa”[59].

De certo que tais conceitos estão diretamente voltados ao direito à imagem, concebidos antes da Constituição Federal de 1988 e, portanto, não estariam plenamente justificáveis, haja vista que no novo ordenamento jurídico constitucional são apresentadas outras idéias sobre o direito à imagem: a imagem-retrato e a imagem-atributo, que apesar de parecida com a honra, ganha destaque independente.

Assim sendo, acolhendo o magistério de Luiz Alberto David Araújo, verificamos que a imagem deixa de ser apenas o retrato, a exteriorização da figura para, num campo maior, ser o retrato moral do indivíduo, da empresa, do produto, do seu caráter: “Dessa maneira, podemos afirmar que existem duas imagens no texto constitucional: a primeira, a imagem – retrato, decorrente da expressão física do indivíduo; a segunda, a imagem – atributo, como o conjunto de característicos apresentados socialmente por determinado indivíduo” [60].

Sem dúvida alguma o direito à imagem é de vital importância para as pessoas, pois consiste no seu direito à projeção de sua personalidade física ou moral face à sociedade, incidindo, assim, em um conjunto de caracteres que vão identificá-la no meio social.

O direito à imagem reveste grande relevância, pois que está sendo utilizada largamente em publicidade de produtos, serviços, entidades e pelos meios de comunicação sem a devida autorização, ensejando ações judiciais para a reparação do dano [61].

O direito à imagem foi citado por três vezes na Constituição Federal brasileira, a imagem – retrato (art. 5º, X), a imagem – atributo (art. 5º, V) e a proteção de imagem como direito do autor (art. 5º, XXVII). Quanto a esta última, convêm ressaltar o posicionamento de Luiz David Araújo: “o direito à imagem, no caso do inciso XXVIII, não vem, como no caso dos incisos V e X, dentro das liberdades públicas contra o Estado. Não retrata, como o sigilo de correspondência, a liberdade de opinião, a liberdade de associação, próxima desses valores; estas são liberdades negativas, ou seja, liberdades que exigem o Estado um ato omissivo, protegendo a esfera de atuação do indivíduo. São direitos que limitam o Estado, em favor da liberdade individual” [62].

Este dispositivo está direcionado para o direito do autor, protegendo aquele que criou a obra, bem como a reprodução da imagem e voz humanas, até mesmo nas atividades esportivas. Vale dizer ainda, a respeito desta proteção constitucional da imagem, que se trata do direito de arena, ou seja, incide na fixação de espetáculos desportivos, conexo ao de autor, mas que envolvem os participantes no que se refere ao direito à imagem. Assim, se uma pessoa é figurante em uma novela, tem direito à proteção fixada em lei, mas se, por acaso, estiver passando na rua no momento em que está sendo feita uma filmagem e tem a sua imagem captada pela lente de uma das câmeras: neste caso não há esta proteção.

O direito à imagem é considerado bem inviolável, diretamente voltado à defesa da figura humana, protegido pela garantia de impedir que alguém a utilize indevidamente sem o seu prévio consentimento. Este uso indevido pode ser de uma fotografia ou da exposição da imagem em um filme ou anúncio comercial, por exemplo.

Para que seja lícito o uso da imagem de uma determinada pessoa, é mister que o seja feito mediante consentimento da mesma; caso contrário ensejará a imediata responsabilidade pela exposição indevida, gerando conseqüente reparação do dano [63].

Cabe ressaltar, também, que, nos contratos cujo objetivo seja o uso da imagem, esta só poderá ser utilizada nos limites contratados, pois, se estes forem ultrapassados, a reparação do ilícito será devida.

É tão ampla a garantia do direito à imagem que alcança até, para reprimi-las, as alterações do que teve seu uso autorizado em filmes, videofilmes, videodiscos, revistas, jornais, televisões, computadores etc. Em todos estes casos, podemos afirmar que estamos diante da imagem – retrato, pois, trata-se do reflexo da identidade física e de suas características.

Além da proteção da imagem propriamente dita, o constituinte enxergou a necessidade de proteger um outro tipo de imagem, a imagem – atributo [64], prevista no artigo 5º, V da CF, como já enfatizamos [65]. A concepção desta imagem está ligada diretamente à idéia que fazemos sobre uma determinada pessoa, seja ela física ou jurídica [66].

Outro traço marcante em relação ao direito à imagem reside na independência deste em relação ao direito à intimidade, à vida privada e à honra ,pois a partir do momento que o legislador constituinte cria previsão para cada um destes direitos, depreende-se de forma clara a independência dos mesmos, e qualquer posicionamento contrário a este, não poderá ser aceito em hipótese alguma.

V. INFORMAÇÃO X PRIVACIDADE (COLISÃO DE DIREITOS)
As relações sociais decorrentes da vida em sociedade ensejam vários conflitos que precisam ser compostos para o equilíbrio da paz social. Ao longo da história, constatamos a existência de diversas modalidades de conflitos e que o Estado assume o papel de moderador na resolução dos mesmos.

Dentre estes conflitos, destacamos a liberdade de informação e o direito à privacidade, pois, nesta época em que os meios de comunicação de massa utilizam sistemas internos de televisão, câmeras fotográficas, teleobjetivas, além de toda a parafernália possível e necessária para captação de flagrantes da imagem de uma pessoa, torna-se imperioso discutir tais questões.

Como já descrito, o direito à privacidade foi declarado no artigo 5º do texto constitucional e esta previsão é importante face ao poder das teleobjetivas que invadem o espaço secreto das pessoas. Como foi alertado por Celso Bastos: “a evolução tecnológica torna possível uma devassa na vida íntima das pessoas. … Nada obstante, na época atual, as teleobjetivas, assim como os aparelhos eletrônicos de ausculta, tornam muito facilmente devassável a vida íntima das pessoas. … Sem embargo, disso, sentiu-se a necessidade de proteger especificamente a imagem das pessoas, a sua vida privada, a sua intimidade” [67] .

Nesta linha de raciocínio, Ada Grinover, mesmo antes do assunto ser tratado em nível constitucional verificou que : “a evolução da vida moderna, através da intensificação das relações sociais e do progresso dos meios técnicos, tende a uma limitação cada vez maior da esfera em que se pode viver ao abrigo de interferências alheias. Por isso mesmo, hoje mais do que nunca, coloca-se o problema de tutelar o indivíduo contra a invasão do próximo, bem como das autoridades: se cada um de nós tivesse que viver sempre sob as luzes da publicidade, acabaríamos todos perdendo as mais genuínas características de nossa personalidade, para nos dissolver no anônimo e no coletivo, como qualquer produto de massa”[68].

Neste contexto, surge a problemática envolvendo o direito à privacidade e o direito à informação e o desafio que se apresenta, relaciona-se exatamente como estes direitos que se encontram tutelados no mesmo diploma legal podem ser harmonizados. Qual deve prevalecer, a privacidade ou a informação?

Considera-se existir uma colisão de direitos fundamentais quando o exercício de um direito fundamental por parte do seu titular colide com o exercício do direito fundamental por parte de outro titular. Aqui não estamos perante um cruzamento ou acumulação de direitos, mas perante um choque, um autêntico conflito de direitos. [69]

A informação, inicialmente adstrita a um grupo limitado de pessoas, passa a desempenhar um papel de destaque na sociedade, à medida que seu alcance se tornava infinitamente maior com os meios de comunicação. Como salientou Cristiano German [70], passamos a viver numa sociedade de informação[71].

Com a evolução da sociedade e, em conseqüência, dos meios de comunicação de massa (passando pelos jornais escritos, pelo rádio, pela televisão, até que se chegasse à internet), verifica-se que aqueles que detêm a informação passam a ter grande poder [72].

De fato, na sociedade contemporânea a informação adquire contornos tão significantes a ponto de afirmarem [73] que a arma dos tempos modernos não é a bomba, mas a informação. Quem detém a informação tem o poder [74].

Com a informação pode-se alterar pontos de vista, opiniões, comportamentos, eleger ou destituir presidentes, produzir uma imagem positiva ou negativa … enfim a informação é capaz de provocar inúmeras alterações na vida das pessoas, seja num clube, numa igreja, numa cidade, num País e até no mundo.

Na medida em que chegam a seu destinatário final as informações cumprem seu papel de aproximar pessoas e estabelecer um canal de comunicação entre elas.

Assim, toda a população é “bombardeada” hoje por uma multiplicidade de informações que são passadas pelas pessoas, em geral, e, sobretudo, pelos diversos meios de comunicação. Há informações que produzem malefícios às pessoas por violarem os seus mais elevados segredos, expondo-as ao ridículo, à execração pública, provocando danos incomensuráveis.

Neste século XXI, onde os meios de comunicação são instantâneos, devem estar à disposição do cidadão mecanismos para a proteção contra os possíveis ilícitos atentatórios aos seus direitos, mormente o direito à privacidade, objeto deste estudo.

Mesmo nos Estados Unidos onde a Lei de Liberdade de Informação é tão forte, na medida em que é assegurada na Primeira Emenda da Constituição daquele país, observam-se limites relacionados à questão da privacidade, como leciona Ronald Dworkin: “A Lei de Liberdade de Informação, que foi fortalecida pelo Congresso após o escândalo de Watergate, provê que qualquer um pode obter qualquer informação em poder do governo federal, com certas exceções destinadas a proteger a privacidade pessoal, os segredos comerciais, a segurança nacional e similares” [75].

Na medida em que a pessoa humana passa a ser o centro das atenções em todos os povos civilizados, com a inserção de normas protetivas de sua dignidade nos respectivos textos constitucionais como, também, mediante a celebração de diversos Tratados Internacionais com o mesmo objetivo, evidencia-se que temos o direito de informar, de sermos informados, mas, igualmente, o direito a uma vida protegida da bisbilhotice alheia, cabendo a reparação do dano pelos eventuais abusos cometidos quando da não observância e resguardo do direito à privacidade.

Nesta linha de raciocínio e focando especificamente o processo de massificação, Cláudio de Cicco assevera que os meios de comunicação o aceleram, fazendo com que desapareçam “as características individuais, familiares, culturais e nacionais, para dar lugar a uma massa amorfa de seres que já nada ou quase nada guardam de propriamente humano, sem vontade própria, sem autonomia, sem capacidade de realizar a sua personalidade” [76] .

Nesta conjuntura, pode-se inserir a imprensa já que ela “pode tornar-se veículo de desrespeito à pessoa, pela divulgação apressada e desatenta de notícias, muitas vezes colhidas por um repórter ávido de promoção às custas da divulgação de fatos da vida privada de artistas e homens públicos. Sua intimidade é oferecida a milhares de leitores, sem possibilidade de defesa, pois ineficaz se revela o chamado ‘direito de resposta’ para reparar o dano já causado à personalidade de alguém, ao seu nome ou de sua família etc.” [77]

A imprensa alcança uma autonomia muito grande na sociedade contemporânea, passando a exercer um verdadeiro poder social, consoante Vidal Serrano: “É que a imprensa moderna (os meios de comunicação) se transformou em um verdadeiro poder social, muitas vezes fazendo do cidadão não um destinatário, mas um refém da informação, tornando necessário defender não só a liberdade da imprensa mas também a liberdade face à imprensa” [78].

Neste contexto, é que precisamos verificar os limites que são fixados para a liberdade de imprensa, para que, em função deste exercício de ‘poder’, não se provoquem lesões nefastas na vida das pessoas.

O Estado de Direito é constituído de poderes, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, sendo possível o controle destes poderes através de mecanismos criados pelo próprio ordenamento jurídico. E como se faz o controle do “quarto poder”? Quais são os limites fixados em lei?

De fato, a previsão constitucional insculpida no §1­º do art. 220 é clara quando limita a limita a ação da imprensa quando relacionada aos direitos elencados no inciso X, do art. 5º.

Vimos que a Constituição Federal assegura o direito à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem, não podendo desta forma, a imprensa “a título de informar, devassar o recato privado e íntimo da pessoa”.[79]

Assim sendo, quando uma pessoa aciona o Poder Judiciário para a reparação do dano, por uma notícia mentirosa, pela publicação de uma fotografia ou pela vinculação de notícias nos mais diversos meios de comunicação, não se instalará uma demanda envolvendo a liberdade de imprensa e sim na jurisdição dos direitos civis.

O direito à informação e o direito à privacidade, a todo o momento estão em conflito, [80] criando então um quadro em que, de um lado temos a sociedade clamando por informações e de outro a invasão e conseqüente lesão destes direitos.

É o velho problema: de uma lado a sociedade sente a necessidade de ter uma imprensa digna, precisa, honesta, clara e objetiva e de outro lado temos “os donos da imprensa” preocupados apenas em auferir lucros e confundem a liberdade de imprensa e liberdade de impressão, isto é, a possibilidade de publicar tudo aquilo que é interessante para eles, seja no aspecto político e principalmente o econômico.

Vidal Serrano, em seu estudo sobre os limites constitucionais do direito de crítica jornalística, levanta três questões para elucidar a problemática. A primeira, denominada de regime de exclusão, apregoa o valor absoluto dos direitos da personalidade, fixando a inviolabilidade dos referidos direitos, face ao direito de informação. A segunda, a da necessária ponderação, consiste em estabelecer uma ponderação entre o direito de informação e os direitos da personalidade, verificando se a restrição resultante dessa ponderação está, ou não, justificada constitucionalmente. A terceira e última corrente, defendida pelo autor, fixa o direito de informação como preferencial face aos demais direitos. Neste caso, alega-se que o direito de informação constitui em um verdadeiro alicerce da instituição opinião pública, o que o faz prevalecer em relação aos demais direitos fundamentais, que, em determinadas situações, possam com ele se antagonizar [81].

De fato, temos a exata noção da importância que a imprensa possui dentro de nossa sociedade e que, neste aspecto, levando informação para as pessoas em geral, estabelece um relevante serviço para a sociedade e para a consolidação da democracia. Sem a imprensa, a concepção que temos hoje de democracia e de liberdade certamente seria bastante diferente. A opinião pública é importantíssima neste contexto social de transformações.

Mesmo assim, não partilhamos da idéia de Vidal Serrano, quando afirma que: “o direito de informação, como direito fundamental de primeira geração, por específica disposição constitucional, não pode ser oposto a ele qualquer embaraço, sendo inconstitucional qualquer disposição que restrinja a titularidade do seu exercício; no que tange à atuação dos limites do direito de crítica, existem três linhas doutrinárias desenvolvidas… c) a da concorrência normativa. Esta última, de forma acertada, acentua que, embora limitável, o direito de crítica tem caráter permanente” [82] .

De fato, a liberdade de informação está assegurada na Constituição Federal, entretanto, vale lembrar que os seus limites foram instituídos na própria Constituição. Ora, se no texto constitucional fica evidenciada a limitação da liberdade de informação, não há porque discutir ou afirmar que esta goza de liberdade plena e absoluta [83], sobrepondo-se, inclusive, a estes direitos. Melhor foi o entendimento de Grandinetti, que afirmou que “se limites existem à liberdade de informação, eles decorrem necessariamente da Constituição, e o legislador ordinário não está autorizado a impor outras limitações” [84] .

Cláudio de Cicco [85] afirma, sobre a liberdade sem limitação, que seria preciso, para aceitar a evidência que salta aos olhos, superar o preconceito antigo de que toda limitação à liberdade é um mal. Ora, não se pode falar em proteção aos direitos da personalidade sem admitir uma limitação considerável à liberdade de informação. Irrisória, pois, se torna a garantia da intimidade, se ela puder ser impunemente devassada a qualquer momento pelas máquinas fotográficas e gravadores minúsculos e oferecida à curiosidade mórbida do grande público, sedento de ver o lado prosaico dos homens e mulheres em destaque na Sociedade, através de fotos obtidas sem o consentimento dos interessados, ou por meio de reproduções de conversas particulares.

Havendo conflito entre a imprensa e a intimidade, esta deve prevalecer sobre aquela. Vale citar também Nelson Hungria nesta passagem que afirmou: “a liberdade de imprensa é o direito de livre manifestação do pensamento pela imprensa; mas, como todo o direito, tem o seu limite lógico na fronteira dos direitos alheios” [86].

Assim sendo, a informação não pode se sobrepor à privacidade, pois há limitação clara e expressa no próprio texto constitucional e insistir na afirmação de que a imprensa é plenamente livre, sem exceções, seria uma violência ao próprio Estado de Direito, que concebe de forma clara os direitos fundamentais. O “quarto poder” não pode impor a sua vontade, contrariando a vontade expressa em Lei Maior, com a proteção ainda da imutabilidade de tal questão, por ser tratar de uma cláusula pétrea. Como assevera Costa Júnior, “o cidadão inerme, de uma parte, e os grandes meios de comunicação com a massa, de outra, ressalta de imediato a enorme desproporção de forças entre eles. Do que se depreende a urgente tutela do indivíduo para não ser sufocado pelas forças gigantescas da divulgação, aniquilado e impedido no livre desenvolvimento de sua personalidade” [87].

O Direito Constitucional brasileiro evoluiu, entretanto, precisamos efetivamente fazer valer estes direitos que foram declarados na Carta Magna, para que estes abusos não sejam cometidos de forma tão freqüente.

A indagação que se faz neste momento é a seguinte: Como compor os conflitos entre o direito à informação e à privacidade, tendo em vista que ambos possuem proteção constitucional? [88]

VI. O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE NA SOLUÇÃO DOS CONFLITOS [89]
Como no Brasil não há um indicativo claro e preciso de uma legislação para resolução destes conflitos compete ao Poder Judiciário a solução dos mesmos. Assim, no Direito Constitucional, colocada a freqüente oposição entre direitos fundamentais e a necessidade de serem solucionados, cunhou-se igualmente a observância do princípio da proporcionalidade, transformando-o num cânone interpretativo dirigido, em especial, ao órgão que profere a prestação jurisdicional, sendo que a interpretação investigará a incidência ou não de excesso para cada caso de aplicação, frente ao cumprimento do comando determinado por uma dada norma jurídica. Tudo em prejuízo de algum direito fundamental da pessoa humana envolvida. Ocorrendo, pois, a detecção do suso mencionado, o juiz, pela via da interpretação, se curvará à validade da norma (proporcionalmente) e, assim, verificará a inconstitucionalidade (parcial ou total) diante de sua medida excessiva ou injustificada. Dessa forma, não aplicará a referida norma à situação fática submetida ao seu juízo [90].

Neste sentido, Robert Alexy elabora uma lei denominada “lei de colisão” sobre a conexão de relações de precedência condicionadas e regras e como numa equação matemática, procura explicar: “si el principio P1, bajo las circunstancias C, precede al principio P2: (P1 – P2) C, y si de P1 bajo las circunstancias C resulta la consecuencia R, entonces vale una regla que contiene a C como supuesto de hecho y a R como consecuencia juridica: C – R” [91]. O que Alexy pretende mostrar é que as condições sob as quais um princípio precede ao outro constituem o suposto de fato de uma regra que expresse a conseqüência jurídica do princípio precedente e que existe uma estreita conexão entre a teoria dos princípios e a proporcionalidade, onde se manifestam três máximas: a de adequação, a de necessidade (o meio mais benigno) e a de proporcionalidade em sentido estrito (a ponderação propriamente dita).

Atualmente, o princípio da proporcionalidade é cânone superior, vindo para proteger e impor a observância dos direitos fundamentais e, para tanto, dita molde às leis para fins de filtro de excessos às peculiaridades da situação [92].

Como cânone hermenêutico, o princípio da proporcionalidade é imprescindível para dirimir controvérsias interpretativas ao fornecer subsídios para o esclarecimento de determinada disposição da norma. Assim, quando ocorre a colisão de direitos fundamentais, como, por exemplo, envolvendo a liberdade de imprensa e o direito à imagem [93], a problemática será resolvida de acordo com essa técnica concernente aos princípios.

Sarmento procura igualmente elucidar a questão quando informa que, para solucionar conflitos decorrentes de princípios constitucionais, compete ao juiz a resolução das controvérsias, valendo-se da proporcionalidade como elemento imprescindível na ponderação de interesses: “A resolução dos conflitos entre princípios constitucionais requer uma análise da situação concreta em que emergiu o conflito. O equacionamento das tensões principiológicas só pode ser empreendido à luz das variáveis fáticas do caso, as quais indicarão ao intérprete o peso específico que deve ser atribuído a cada cânone constitucional em confronto. E a técnica e decisão que, sem perder de vista os aspectos normativos do problema, atribui especial relevância às suas dimensões fáticas, é o método de ponderação de bens. (…) O método de ponderação de bens está intimamente ligado ao princípio da hermenêutica constitucional da ‘concordância prática’, o qual, na dicção de Canotilho, ‘impõe a coordenação e combinação dos bens jurídicos em conflito ou em concorrência de forma a evitar o sacrifício (total) de uns em relação aos outros” [94].

Dessa forma, percebe-se que para a composição de conflitos o juiz deve utilizar de todos os elementos necessários para a composição do conflito e ao final, proferir a sentença que melhor couber àquele caso, fazendo, dessa forma, sua prestação jurisdicional.

Lembrando ainda o magistério de J. J. Gomes Canotilho, que, vislumbrando a colisão entre os direitos fundamentais, entende ser necessário ao intérprete harmonizar os dois direitos solucionando os conflitos existentes: “As normas dos direitos fundamentais são entendidas como exigências ou imperativos de optimização que devem ser realizadas, na melhor medida possível, de acordo com o contexto jurídico e respectiva situação fática. Não existe, porém, um padrão ou critério de soluções de conflitos de direitos válido em termos gerais e abstractos. A ponderação e/ou harmonização no caso concreto é, apesar da perigosa vizinhança de posições decisionistas, uma necessidade ineliminável. Isto não invalida a utilidade de critérios metódicos abstractos que oriente, precisamente, a tarefa de ponderação e/ou harmonização concretas: princípio da concordância prática; idéia do melhor equilíbrio possível entre os direitos colidentes” [95].

Sem embargo, o princípio da proporcionalidade é, pois, direito positivo no ordenamento jurídico brasileiro que, muito embora não venha expresso no texto constitucional [96], deflui da leitura do §2º do artigo 5º da Constituição Federal [97], sendo recepcionado pela ordem jurídica nacional por força de Tratado Internacional, equiparando-se, por isso, à norma jurídica infraconstitucional e não à norma jurídica constitucional. Todavia, para outros, o mencionado artigo da Constituição tem força para consagrar os princípios, tornando-os invioláveis. Destarte, o princípio da proporcionalidade consiste num corolário de constitucionalidade e cânone do Estado Democrático de Direito, bem como regra que tolhe a ação ilimitada do poder do Estado no quadro da juridicidade de cada sistema de autoridade.

Ainda quanto a essa questão, cumpre, também, analisar tema que atormenta muitos estudiosos da matéria no que se refere ao fato de que se o citado princípio pode ou não contrariar norma constitucional expressa, evitando a aplicação desta última. Neste sentido, Daniel Sarmento sintetizou: “Mas a questão que nos interessa nesta sede é a da viabilidade da ponderação da norma em tela com outros interesses constitucionais, empreendida ao lume do princípio da proporcionalidade. A questão divide a doutrina. Há aqueles que admitem esta ponderação, como José Carlos Barbosa Moreira, Nelson Nery Júnior e Vicente Greco Filho. Em sentido diametralmente oposto, Luis Roberto Barroso (…)” [98].

De sorte que o referido autor, mesmo antes de chegar a este ponto tormentoso onde teria que defrontar posições antagônicas de renomados juristas, assinalou que “os princípios constitucionais desempenham também um papel hermenêutico essencial, configurando-se como genuínos vetores exegéticos para a compreensão e aplicação das demais normas constitucionais e infraconstitucionais. Neste sentido, os princípios constitucionais representam o fio-condutor da hermenêutica jurídica, dirigindo o trabalho do intérprete em consonância com os valores e interesses por ele abrigados” [99]. E complementou: “entendemos que a estrutura aberta e flexível dos princípios constitucionais, aliada à complexidade das questões com que se defronta hoje a jurisdição constitucional, torna imprescindível o método de ponderação de interesses. A sua utilização, revela-se compulsória nos casos de conflitos entre princípios, em face da impossibilidade material de emprego dos critérios tradicionais para resolução de antinomias” [100].

Assim sendo, partimos do pressuposto de que é possível a aplicação do princípio da proporcionalidade como um cânone hermenêutico para estabelecer a ponderação de interesses, pois, como já alertava Ernane Fidélis dos Santos, “muitos pretendem que a função jurisdicional seja complemento da legislativa, já que, no comum, o juiz aplica o direito ao caso em controvérsia. No entanto, o enfoque é ilusório. A lei não é o direito em si mesma. Ela é somente um dos critérios de apreciação do direito. O Legislador cria a lei e o juiz, ao julgar, regula a situação concreta com o direito que busca no critério apresentado. O critério poderá ser a lei; quase sempre o é, mas não necessariamente, pois outros poderão existir, por imposição da própria lei ou por determinação do próprio juiz, já que ele, ao decidir tem inteira independência. O que importa na jurisdição é a função de regular a situação concreta, nada mais”[101].

Sidney Guerra é Doutor e Mestre em Direito. Professor Adjunto da Faculdade Nacional de Direito (UFRJ). Professor Titular e Coordenador de Pesquisa Jurídica da UNIGRANRIO. Professor do Programa de Mestrado da Faculdade de Direito de Campos. Membro da Inter American Bar Association, da Sociedade Brasileira de Direito Internacional e Associação Nacional de Direitos Humanos, Ensino e Pesquisa. Advogado e Administrador de Empresas no Rio de Janeiro.

NOTAS


[1] ARNAUD, André-Jean. O direito entre a modernidade e globalização: lições de filosofia do direito e do Estado. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 11.

[2] Para GIDDENS, Anthony. Para além da esquerda e da direita. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1997, p. 13, advertiu que a globalização não pode ser entendida apenas como um fenômeno econômico: ” A globalização trata efetivamente da transformação do espaço e do tempo. Eu a defino como ação a distância, e relaciono sua intensificação nos últimos anos ao surgimento da comunicação global instantânea e ao transporte de massa. … A globalização não é um processo único, mas uma mistura complexa de processos, que freqüentemente atua de maneira contraditória, produzindo conflitos, disjunções e novas formas de estratificação.”

[3] IANNI, Octavio. A era do globalismo. 3.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997, p. 7.

[4] IANNI, Otávio. Teorias da globalização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995, p. 93

[5] GIDDENS, Anthony, op. cit., p. 70

[6] IANNI, Otávio, op. cit., p. 93

[7] Idem, p. 35

[8] Do mesmo modo, LORENZETTI, Ricardo L. Comercio electrónico. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 2001, p. 12: “El carácter abierto, interactivo, global de internet, sumado a los bajos costos de transacción que presenta como tecnología, produce un gran impacto en un amplio rango de cuestiones pertenecientes a la sociología jurídica y, luego, en la dogmática: las nociones de tiempo, espacio, frontera estatal, lugar, privacidad, bienes públicos y otras.” (grifos nossos)

[9] ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. 31

[10] Idem, p. 33

[11] Ib idem, p. 38

[12] SALDANHA, Nelson. O jardim e a praça. São Paulo: USP, 1993, p. 13-14: “O jardim é uma parte do espaço que circunda a casa (a casa ou qualquer outro tipo de edificação), uma parte específica pela posição e pelas características. A praça é pensada como espaço amplo, que se abre, na estrutura interna das cidades, como uma confluência de ruas ou de qualquer sorte uma interrupção nos blocos edificados. … O jardim é o lugar das flores, e pertence a casas particulares….a praça vai indicar aqui o espaço público, com específico desligamento em relação à moradia privada.”

[13] ARENDT, Hannah, op. cit., p. 48

[14] HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 113/116

[15] Idem, p. 117

[16] DERANI, Cristiane. Direitos Fundamentais e democracia. Arquivos de Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 69

[17] GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. São Paulo: UNESP, 1991, p. 118

[18] FIORATI, Jete Jane. Os direitos do homem e a condição humana no pensamento de Hannah Arendt. Os direitos humanos e o direito internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 215 afirma que o direito à intimidade é essencial para a preservação da esfera privada: “Essencial para a vida privada é o direito à intimidade. A esfera privada, que se tornou pública por ser o cerne do único mundo comum que todos compartilham através da atividade do labor, somente poderá proteger o ‘diálogo do homem consigo mesmo’ através da proteção de seu direito de alhear-se deste mundo privado compartilhado pelos homens que laboram através da proteção à intimidade”.

[19] LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com Hannah Arendt. São Paulo: Cia das Letras, 1988, p. 240

[20] HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984, p. 62.

[21] GIDDENS, Anthony. A transformação da intimidade. São Paulo: Editora da UNESP, 1993, p.201.

[22] MIRANDA, Rosângelo Rodrigues. A proteção constitucional da vida privada. São Paulo: Editora de Direito, 1996, p. 33

[23] Idem, p. 45.

[24] COSTA JÚNIOR, Paulo José. O direito de estar só. Tutela penal da intimidade. 2. ed. São Paulo: RT, 1995, p. 22.

[25] Idem, p. 24.

[26] WALKER, Kent em artigo intitulado A pragmatic look at the cost of privacy and benefits of information exchange publicado na Stanford Technology Law Review, acessado em 20/08/2001 e disponível em http://stlr.stanford.edu/STRL/Articles/00_STLR_2. Procurou definir privacidade e verificou que a questão pode suscitar vários entendimentos e em alguns casos até certa confusão, como se vê: “Privacy comes from the Latin word meaning “to separate or deprive”, referring to the distinction between what delongs to the individual rather than the state. Thus, our concept of privacy is bound up with our sense of the proper bounds of comumunity (the polis) and commerce. Other understandings of privacy that focus on the distinctions between the personal and public, the market and the state, or private interests and overarching public interests. And many other definitions are certainly possible, but the variety of such definitions leads to confusion.”

[27] “Art. 18.1: Se garantiza el derecho al honor, a la intimidad personal y familiar y la propria imagen. …
Art. 105.2. la intimidad de las personas se configura como límite al acceso de los ciudadanos a los archivos y registros administrativos.”

[28] Art. 33. A todos é reconhecido o direito à identidade pessoal, ao bom nome e reputação e à reserva da intimidade da vida privada e familiar.

[29] Na esfera penal têm-se a Lei nº 3 de 05/04/73 que declara ser crime o ato de alguém interceptar, escutar, registrar, utilizar, transmitir ou divulgar, sem justa causa e sem o consentimento de quem dela participe, qualquer comunicação ou conversação privada. Já na esfera cível, o artigo 80 do Código Civil estabelece que “todos devem guardar reserva quanto à intimidade, da vida privada de outrem.”.

[30] Neste propósito, SILVA, Edson Ferreira da, op. cit., p. 52- 59: “É importante tutelar a intimidade, especialmente porque a revelação de certos aspectos das vidas das pessoas pode por vezes causar discórdia, dor e sofrimento. Imaginem-se as conseqüências de revelar a alguém as relações adulterinas do seu cônjuge; a sua condição de filho adotivo; aos pais, que o filho ou a filha é homossexual; e muitas outras situações em que a dor e o sofrimento, o profundo abalo moral, surgem como conseqüência inevitável de tais revelações.”

[31] BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 194

[32] GRECO, Leonardo. O processo de execução. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 1

[33] Idem, p. 2

[34] ROCHE, Jean, POUILLE, André, op. cit., p. 96 estabelecem o desdobramento em “liberté du domicile; secret de la pensée et de la correspondance; droit à protection de l’intimité de la vie privée; libre choix du mode de vie.”

[35] SILVA, Edson Ferreira da. Direito à intimidade. São Paulo: Oliveira Mendes, 1998, p. 37.

[36] ARAÚJO, Luiz Alberto David. A proteção constitucional da própria imagem. Belo Horizonte: Del Rey, p.37

[37] CALDAS, Pedro Frederico. Vida privada, liberdade de imprensa e dano moral. São Paulo: Saraiva, 1997,p. 43

[38] DOTTI, René Ariel. Proteção da vida privada e liberdade de informação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980, p. 69

[39] Neste sentido vale observar o pedido de danos morais pela jornalista Lilian Witte Fibe referentes a cessão e publicação de fotos e matéria pelas editoras Abril e Caras em que o Superior Tribunal de Justiça se manifestou: RESP 221757/SP; Recurso especial (1999/0059234-4) – Quarta Turma- Relator Ministro Ruy Rosado de Aguiar. Recurso conhecido e provido. Responsabilidade civil. Dano moral. Fotografias. Revista. A cessão de fotografias feitas para um determinado fim, mostrando cenas da intimidade da entrevistada, é fato ilícito que enseja indenização se, da publicação desse material, surgir constrangimento à pessoa, não tendo esta concedido entrevista ao veículo que o divulgou.

[40] COLOMA, Aurelia Maria Romero apud CARVALHO, Luis Grandinetti Castanho de. Liberdade de informação e o direito difuso à informação verdadeira. Rio de Janeiro: Renovar, 1994, p. 34

[41] CAVERO, José Martinez De Pisón apud NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. A proteção constitucional da informação e o direito à critica jornalística. São Paulo: FTD, 1997, p. 91

[42] No mesmo sentido MIRANDA, Rosangelo Rodrigues, op. cit., p. 81 e 82:exemplificou quanto a vida privada e intimidade; quanto a vida privada, apresenta: “informações referentes às opções de convivência, como a escolha de amigos ou convidados ao salão de festas da própria cassa, a freqüência a lugares, os relacionamentos civis e comerciais, ou seja, dados que, embora digam respeito aos outros, não afetam, em princípio, direito de terceiros … a intimidade diz respeito ao direito de estar só, aspecto que se acredita ser comum a toda pessoa. Exemplificando: o diário íntimo, o segredo sob juramento, as próprias convicções, as situações indevassáveis de pudor pessoal, o segredo íntimo cuja mínima publicidade constrange, ou ainda, circunstâncias da vida familiar como o nascimento, o matrimônio, divórcio, enfermidade, falecimentos e a vida amorosa.”

[43] MIRANDA, Rosângelo Rodrigues, op. cit., p. 83 conceituou o direito à vida privada: “Enquanto regra, ele prescreve tanto uma conduta positiva que faculta ao sujeito opor-se aos ataques à sua privacidade, quanto um comportamento negativo que impõe aos estranhos à relação o dever de não se intrometer, sem o imprescindível consentimento do titular, nos segredos alheios. Outrossim, ele impõe ao Estado a necessidade de criar mecanismos eficazes que garantam, não só a proteção à privacidade do indivíduo, mas também, que facultem a este último a possibilidade de moldar a própria singularidade de maneira plena. Ele, precipuamente, tutela a integridade moral do indivíduo, podendo, subsidiariamente, gerar efeitos pecuniários.’

[44] FREGADOLLLI, Luciana. O direito à intimidade e a prova ilícita. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 71 adverte: “nos nossos dias, em nossa civilização de massas, temos o direito público à informação, admitido por decisões jurisprudenciais, porém, esse direito só pode ser exercido se não tropeçar com o direito primordial ao respeito da vida privada de cada indivíduo, e cabe aos tribunais, neste terreno instável, decidir se o limite não foi ultrapassado ou se, pelo contrário, franqueamos o umbral, tendo cada um o direito ao segredo de sua vida privada podendo obter a sua proteção.”

[45] AMARANTE, Aparecida. Responsabilidade civil por dano à honra. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 55.

[46] REALE, Miguel. Filosofia do direito. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 396

[47] BUENO, Francisco da Silveira. Dicionário escolar da língua portuguesa. Rio de Janeiro: FENAME, 1956.

[48] Questão interessante suscitada por Grellet-Dumazeau apud Amarante, op. cit., p. 56, consiste na distinção da honra com a consideração social: “A honra é um sentimento eu nos dá a estima de nós mesmos, pela consciência do cumprimento de dever; a consideração é uma homenagem prestada por aqueles que nos cercam, em virtude de nossa posição social. Um homem considerado pode ser sem honra, um homem honrado pode ser sem consideração. Contestar a probidade de uma pessoa é atacar sua honra; contestar seu crédito é atacar sua consideração.

[49] CUPIS, Adriano de apud AFONSO DA SILVA, op. cit., p. 205

[50] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti apud CALDAS, Pedro, op. cit., p. 25

[51] SILVA, Edson Ferreira da, op. cit., p. 66 salienta que “a defesa da honra do homem contra a sua colocação sob falsa perspectiva perante o corpo social, no que concerne às suas qualidades pessoais, de caráter, de retidão, de apuro profissional. Tutela-se a sua reputação e boa fama contra falsas e desabonadoras imputações.”

[52] BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. 126

[53] Em Ação Ordinária de Indenização por Dano Moral proposta por N. L. L. contra A. A., alegando que via Internet veio a ser ofendido pelo réu de decrépito, múmia aposentada e inimigo do ensino público, insinuando que teria cometido fraude para beneficiar alunos da UFSC, à qual pertence, no exame do Provão, além de outras afirmações injuriosas, teve sua pretensão acolhida na medida que foi fixada indenização no valor de quarenta salários mínimos, acrescidos de juros, bem como a proceder uma retratação através da internet, afora o pagamento da sucumbência. Apelação Cível nº 5468/00 – Décima Sexta Câmara Cível do TJRJ – Relator Desembargador Bernardino Machado Leituga.

[54] AMARANTE, Aparecida, op. cit., p. 147/148

[55] No mesmo diapasão BITTAR, Carlos Alberto. Atentado à honra pela imprensa. Tutela dos direitos da personalidade e dos direitos autorais nas atividades empresariais.São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p. 36 quando afirma que “os reflexos das violações, longe de restringir-se à intimidade da pessoa e à sua textura psíquica ou moral, alcançam também a própria sorte na vida diária, amorosa, afetiva e negocial, podendo até obstar-lhe ou ceifar-lhe a oportunidade de progressão ou, mesmo, de desenvolvimento normal.”(grifos nossos). A violação à honra não se caracteriza apenas para a pessoa física mas igualmente para a pessoa jurídica, como já assentou o Superior Tribunal de Justiça com a Súmula nº 227, que pode sofrer dano moral e conseqüentemente a indenização devida.

[56] Idem, p. 105

[57] PONTES DE MIRANDA apud CALDAS, Pedro, op. cit., p. 29

[58] MORAES, Walter apud ARAÚJO, Luiz op. cit., p. 29

[59] CALDAS, Pedro Frederico, op. cit., p. 28

[60] ARAÚJO, Luiz Alberto David, op. cit., p. 31

[61] A título ilustrativo, destaca-se o posicionamento do judiciário brasileiro a respeito desta matéria, conforme decisões proferidas: RESP 58101/SP – Recurso Especial (94/0038904-3) – Quarta Turma – Por unanimidade, conhecer o recurso e dar-lhe provimento – Relator Ministro César Asfor Rocha. Civil. Direito à imagem. Reprodução indevida. Dever de indenizar. Apelação Cívil 4.324/95 – Terceira Câmara Cível – Unânime – Des. Humberto Perry. Ação ordinária. Fotografias de menor púbere publicadas em jornal. Falta de autorização. Dano material e moral não comprovados. Violação, todavia, do direito à imagem que enseja à indenização.

[62] Idem, p. 107

[63] No RESP 270730/RJ – Recurso especial (2000/0078399-4) – Terceira Turma – Por maioria, conhecer o recurso e dar provimento.Relator Ministro Carlos Alberto Menezes Direito e Relatora para o acórdão a Ministra Nancy Andrighi. Recurso especial. Direito processual civil e Direito civil. Publicação não autorizada de foto integrante de ensaio fotográfico contratado com revista especializada. Dano moral. Configuração. É possível a concretização do dano moral independentemente da conotação média de moral, posto que a honra subjetiva tem termômetro próprio inerente a cada indivíduo. É o decoro, é o sentimento de auto-estima, de avaliação própria que possuem valoração individual, não se podendo negar esta dor de acordo com os sentimentos alheios. Tem o condão de violar o decoro, a exibição de imagem nua em publicação diversa daquela com que se contratou, acarretando alcance também diverso, quando a vontade da pessoa que teve sua imagem exposta era a de exibí-la em ensaio fotográfico publicado em revista especializada, destinada a público seleto. A publicação desautorizada de imagem exclusivamente destinada a certa revista, em veículo diverso do pretendido, atinge a honorabilidade da pessoa exposta, na medida em que se experimenta o vexame de descumprir contrato em que se obrigou à exclusividade das fotos. A publicação de imagem sem a exclusividade necessária ou em produto jornalístico que não é o próprio para o contexto, acarreta a depreciação da imagem e, em razão de tal depreciação, a proprietária da imagem experimenta dor e sofrimento.

[64] Quanto a imagem-atributo ressalta-se as palavras de ARAÚJO, Luiz Alberto David, op. cit., p. 118: “…deixa de ser o retrato, a exteriorização da figura para, em outro campo, pretender ser o ‘retrato moral’ do indivíduo, da empresa, do produto, seu ‘caráter’, … A imagem, assim, ganha esse outro sentido mais próximo da publicidade, distinto do primeiro, e também protegido no texto constitucional. Os jornais constantemente noticiam referências à imagem de certas pessoas, produtos ou empresas. Essas notícias refletem a utilização freqüente do termo ‘imagem’ no sentido aqui defendido”.

[65] GUERRA, Sidney, op. cit., p. 66-69

[66] Em demanda apresentada no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, uma determinada pessoa jurídica intentou ação cautelar e de preceito cominatório objetivando tutela judicial inibitória e retirada de informações veiculadas em sítio na internet, consideradas ofensivas à imagem de sindicato representante de categoria profissional, conforme decisão de 02/10/01, Terceira Câmara Cível. Apelação Cível (2001.001.04009). Relator: Desembargador Luiz Fernando de Carvalho.

[67] BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 194

[68] GRINOVER, Ada P., op. cit., p. 69

[69] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. Coimbra: Almedina, 1996, p. 643

[70] GERMAN, Christiano. On line off line: informação e democracia na sociedade de informação. Informação e democracia. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2000, p. 115: “na verdade, nos encontramos apenas no início da transição da sociedade industrial para a sociedade de informação, muito embora essa mudança se acompanhe de inovações tecnológicas tão radicais em uma velocidade sem precedentes.”

[71] Entende-se por sociedade de informação aquela estrutura social na qual a geração, o processamento e a disseminação de informações ocupam uma posição central.

[72] É nesse sentido o magistério de NYE JR., Joseph apud GERMAN, op. cit . p. 116: “knowledge, more than ever before, is power. The one country that can best lead the information revolution will be more powerful than any other. …Yet, its more subtle comparative advantage is the ability to collect, process, act upon and disseminate information.”

[73] CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti. Direito de informação e liberdade de expressão. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 3

[74] Em igual raciocínio GUIBOURG, Ricardo A., ALENDE, Jorge O. e CAMPANELLA, Elena M. Manual de informática jurídica. Buenos Aires: Astrea, 1996, p. 288: “La información que todos ellos recogen o transmiten tiene valor incalculable, ya que el conocimiento es hoy sinónimo de poder.”

[75] DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 572.

[76] CICCO, Cláudio de. Fundamentos jusnaturalistas do direito da personalidade. O Estado de direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980, p.265

[77] Idem, p. 266

[78] NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano, op. cit., p. 84

[79] CARVALHO, Luis Gustavo G. Castanho de, op. cit., p. 37

[80] Neste sentido, CANOTILHO leciona: a liberdade de imprensa, pode considerar-se em colisão com outros direitos pessoais como o direito ao bom nome e reputação, à imagem e à reserva da intimidade da vida familiar., op. cit., p. 644

[81] NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano, op. cit., p. 85

[82] Idem, p. 104

[83] À época dos jusnaturalistas era comum a apresentação de certos direitos como absolutos, por exemplo o direito à propriedade, considerada sagrada e inviolável, submetidos à radicais mudanças nas constituições contemporâneas.

[84] CARVALHO, Luis Gustavo G. Castanho de, op. cit., p. 31

[85] CICCO, Cláudio de., op. cit., p. 262

[86] HUNGRIA, Nelson apud MIRANDA, Darcy Arruda. Comentários à Lei de Imprensa. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 64

[87] COSTA JÚNIOR apud CICCO, op. cit., p. 262

[88] FARIAS, Edílson Pereira, op. cit., p. 137-147, apresenta a resolução da colisão pelo legislador e pela jurisprudência advertindo, entretanto, quanto a primeira que “embora autorizado pelo texto constitucional para densificar os limites da liberdade de expressão e informação, a fim de prevenir eventuais confronto com outros direitos fundamentais, o legislador pátrio não se preocupou em elaborar lei sobre a matéria, quer na esfera civil, quer na esfera penal, após a promulgação da Constituição Federal em vigor.” Complementando, discorre sobre a resolução da colisão pela jurisprudência: “para solucionar a colisão entre os direitos da personalidade em discussão e a liberdade de expressão e informação, com o sacrifício mínimo dos direitos contrapostos, a jurisprudência realiza uma necessária e casuística ponderação dos bens envolvidos no caso particular. Nessa tarefa, uma vez que não existe um critério dogmático a priori, a jurisprudência guia-se principalmente, pelos princípios da unidade da constituição, da concordância prática e da proporcionalidade, articulados pela doutrina.”

[89] Atente-se para a obra de GUERRA, Sidney, MERÇON, Gustavo. Direito Constitucional aplicado à função legislativa. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002 que aborda no capítulo VII os cânones interpretativos relativos a hermenêutica constitucional.

[90] No mesmo diapasão ALIGHIERI, Dante em artigo não publicado sobre o Direito à privacidade e liberdade de expressão, se manifesta sobre o assunto: “…os Tribunais vêm de ser chamados a compor litígios que, não raro, deságuam em decisões que têm base no chamado princípio da proporcionalidade. Através deste expediente exegético o juiz confronta os interesses em jogo e após um balanço racional estabelece que direito deve prevalecer. Essa técnica tem vicejado no âmbito do processo civil, muito particularmente naquilo que pertine às medidas cautelares e antecipatórias de tutela de forma geral. Sob este ângulo, o princípio se esgueira com a máscara da maior probabilidade de modo que a irreparabilidade cede vez à verossimilhança, mas, implícita no raciocínio está a balança da proporcionalidade. A valoração de direitos oriundos de cláusulas pétreas, quando confrontantes, se define numa complexa operação lógica que envolve, não apenas a apreciação dos fatos em espécie e sua adequação ao modelo legal, ou constitucional, como é o caso, mas também, e principalmente, pelo cabedal de influências subjetivas que permeiam a atuação teleológica do juiz ao decidir. Na maioria dos casos, a decisão muito mais do que em outras demandas, reflete o background cultural, ideológico e as próprias experiências de vida do juiz que assim, avultam de importância na definição dos fundamentos do processo decisório.”

[91] ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Contitucionales, 1997. p. 93.

[92] BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 11. ed. revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Malheiros Editores, 2001. p. 359 afirma: ” ‘cânone de grau constitucional’ com que os juízes corrigem o defeito da verdade da lei, bem como, em determinadas ocasiões, ‘as insuficiências legislativas provocadas pelo próprio Estado com lesão de espaços jurídicos-fundamentais'”

[93] Para melhor esclarecimento da matéria, recomendamos a leitura da obra intitulada A liberdade de imprensa e o direito à imagem, já mencionada anteriormente.

[94] SARMENTO, Daniel. Os princípios constitucionais e a ponderação de bens. Teoria dos direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 55.

[95] CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1996. p. 647.

[96] SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na constituição federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000. p. 95, adverte que o Supremo Tribunal Federal localiza a sede dos princípios da proporcionalidade/ razoabilidade na cláusula do devido processo legal, albergada no art. 5º, LIV da CF e outros no princípio da isonomia e até no princípio da legalidade.

[97] O artigo 5º, § 2º, da Constituição Federal estabelece que: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.

[98] SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na constituição federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000. p. 179.

[99] Ibidem., p. 54-5.

[100] Ibidem., p. 151.

[101] SANTOS, Ernane Fidélis dos. Manual de direito processual civil. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 09.

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Crítica pós-colonial em questão | de Heloísa Toller Gomes*

CRÍTICA PÓS-COLONIAL E O(S) COLONIALISMO(S) EUROPEU(S)

“A colonização falsifica as relações humanas, destrói ou esclerosa as instituições,
e corrompe os homens, colonizadores e colonizados.”
Albert Memmi, Retrato do Colonizado Precedido pelo Retrato do Colonizador 

“…en los suburbios del mundo el sistema revela su verdadero rostro.”
Eduardo Galeano, Defensa de la Palabra.

Ouro Preto/MG, 1984 Foto de Claudio Bergstein

A chamada Crítica Pós-colonial, ou os Estudos Pós-Coloniais (“Post-Colonial Studies”), apresentam-se na academia internacional como um conjunto de estratégias interpretativas voltadas para a rica diversidade de práticas culturais que caracterizam as sociedades colonizadas ou egressas da colonização européia, desde o momento inicial da colonização, no alvorecer da modernidade, com a expansão marítima européia, até o presente. Esta crítica tem-se expandido em todos os continentes, mas trata basicamente do colonialismo enquanto fenômeno acionado pelo Ocidente: ao que eu saiba, em suas configurações acadêmicas deste lado do mundo, não se produziu ainda um corpus voltado para o colonialismo oriental, como o japonês. [2]

Historicamente localizada, a crítica pós-colonial problematiza o processo histórico da colonização empreendida pela Europa nos demais continentes e efetua a leitura desconstrutora de textos colonialistas de diversas ordens (literários, científicos, filosóficos, políticos, jurídicos, jornalísticos, de cunho religioso, etc.), neles destacando as representações européias a respeito dos nativos nas/das colônias e a conseqüente fabricação do “sujeito” colonial. A par disso, a crítica pós-colonial examina a produção de contra-discursos também de diversas ordens que expressam, ostensiva ou camufladamente, projetos de resistência do colonizado e suas estratégias de revide na árdua luta pela autonomia.

Os estudos dos mecanismos atuantes nos encontros e confrontos coloniais avaliam, enfim, o impacto da colonização européia nas antigas colônias e vêm a constituir, eles próprios, um contra-discurso crítico em relação a interpretações culturais etnocêntricas que tenham como parâmetro as excelências da civilização ocidental sem considerar o lado obscuro de tal hegemonia. Diga-se de passagem, as leituras conservadoras ainda hoje norteiam, em sua maior parte, a academia internacional.

Trata-se, portanto, de uma prática interpretativa afim aos estudos literários, mas não circunscrita a estes, que utiliza suportes interdisciplinares para a sua operacionalização. Implementados de início no amplo guarda-chuva dos modernos Estudos Culturais, os Estudos Pós-Coloniais distinguem-se por seu caráter necessariamente polêmico, dada a sua temática central – a oposição e o inevitável antagonismo colonizador/colonizado – em politização notável na obra de seus precursores mais conhecidos: Franz Fanon, Chinua Achebe, Albert Memmi, Wole Soyinka.

Esses grandes precursores, com suas análises demolidoras dos mecanismos coloniais e de sua lógica, forneceram os subsídios interpretativos e o saber histórico indispensáveis para a constituição da disciplina. Note-se que, para o desenvolvimento consistente dos modernos Estudos Pós-Coloniais, é indispensável um conhecimento abalizado sobre o colonialismo em seus diversos rostos, etapas, modos de funcionamento. Uma das críticas a fazer à disciplina dos Estudos Pós-Coloniais e pesquisas correlatas seria, justamente, a teorização de um “pós” fenômeno sem que se conhecesse satisfatoriamente o fenômeno em si, em seus desdobramentos através dos tempos.

Cabe, portanto, começar por um breve rastreamento do(s) colonialismo(s) explicitando que, ao se falar em colonialismo europeu, há que distinguir o seu grande momento inicial, correspondente às descobertas marítimas européias através do Atlântico e de todo o mundo (“se mais terra houvera, lá chegáramos”, no moto dos navegadores lusitanos) e cujo vigor esvaiu-se com a sucessiva independência das colônias americanas; e o chamado colonialismo moderno, ou tardio, que teve seu apogeu entre o último quartel do século XIX e o fim da segunda guerra mundial (a independência da Índia, em 1947, é emblemática de seu ocaso), e cujo feito internacional mais notável foi a partilha da África [3].

Observe-se (aqui, necessariamente de passagem) que significativos resíduos colonialistas perduraram nos desenvolvimentos históricos do imperialismo moderno – após a segunda guerra mundial, sob a supremacia não mais dos exauridos estados-nações da Europa, mas dos Estados Unidos – em processos que têm afetado todo o planeta.

Em relação ao Brasil (e ao continente americano em geral), interessa especialmente a primeira fase, ou seja, o colonialismo inicial, já que o país deixou nominalmente de ser colônia em 1815, quando ascendeu à categoria de “Reino Unido” ao de Portugal e Algarves. Tratava-se, é evidente, de uma categoria ambígua: nem nação independente, nem colônia (Manuel Bonfim, a par de outros historiadores, insistiu na persistência da ambigüidade mesmo após a independência de 1822, alegando que continuamos, durante décadas, ligados ao que ele chama, pejorativamente, de “bragantismo”) [4]. O certo é que, qualquer que seja a perspectiva histórica de que se parta, cumpre examinar as especificidades do colonialismo português (e, dentro deste, do luso-brasileiro) para os estudos da sociedade brasileira da época colonial ao fim da monarquia, assim como para o entendimento do sub-solo de nossa contemporaneidade.

Estudos comparativos têm exposto marcantes diferenças entre o colonialismo português e o dos países ricos – notadamente aquele que mais diz respeito aos portugueses (e a nós, por conseqüência), o britânico, tido em geral como o colonialismo hegemônico por excelência, em razão da duração e extensão de seu poderio. Análises recentes do colonialismo comparativo (dentro ou fora do “Pós-Colonialismo” institucionalizado) vêm sendo empreendidas em nosso país por um crescente número de pesquisadores[5]. Esta crítica clama pela elaboração de um pensamento pós-colonial que, a exemplo das ciências sociais desde a década de 1930, aprofunde a questão da formação social brasileira e de suas vinculações internacionais através da utilização inteligente da moderna crítica nacional e internacional, sem eurocentrismos fascinados. Isto seria ceder à armadilha de novo colonialismo cultural – desta vez, via academia.

O colonialismo português e o luso-brasileiro têm sido analisados com lucidez por cientistas sociais, a exemplo de Boaventura de Sousa Santos. Em seu “Entre Próspero e Caliban – Colonialismo, Pós-Colonialismo e Interidentidade”, o sociólogo português constata:

Os portugueses nunca puderam instalar-se comodamente no espaço-tempo originário do Próspero europeu. Ali viveram como que internamente deslocados em regiões simbólicas que não lhes pertenciam e onde não se sentiam à vontade. (…) Nem Próspero nem Caliban, restaram-lhes a liminalidade e a fronteira, a interidentidade como identidade originária [6].

A observação aponta para aquilo que é uma unanimidade, entre os historiadores de Portugal e de seu colonialismo: a noção da dependência da nação lusitana, passado o apogeu quinhentista e após os anos da anexação espanhola (1580-1640), em relação à Inglaterra. Oliveira Lima diz ter sido Portugal “conhecida feitoria do comércio britânico”, comportando-se na prática como uma colônia informal da Inglaterra; Manuel Bonfim escreve a respeito da “tutela da Inglaterra sobre Portugal dos Braganças”; Alberto Torres, por sua vez, na virada do século XX, assim resumira a situação da metrópole colonial do Brasil:

Conquistado pela Espanha, Portugal não se re-emancipou, senão para viver a mais crítica das existências, numa inútil reação contra a pressão das lutas continentais, colimadas com a fuga de D. João VI, (…) com a definitiva subordinação política à poderosa aliada do norte [7].

Portugal manteve, desde o século XVII (continuamos a seguir o pensamento de Boaventura de Sousa Santos), posição de intermediação entre o centro e a periferia da economia mundial. Nunca assumiu plenamente as características de Estado moderno dos países centrais, sobretudo as que se cristalizaram no Estado liberal a partir de meados do século XIX, e tal situação reproduziu-se em seu sistema colonial. Portugal teve uma conjunção menos direta com o capitalismo, conjunção essa exercida às vezes por delegação, ou seja, por pressão inglesa. Boaventura sintetiza:

Assim, enquanto o Império Britânico entrou num equilíbrio dinâmico entre colonialismo e capitalismo, o Português assentou num desequilíbrio, igualmente dinâmico, entre um excesso de colonialismo e um déficit de capitalismo [8].

O contraste procede, tendo havido, além de rixas e contendas, hierarquias marcantes entre os diversos colonialismos. Essas hierarquias fixaram-se com muita ênfase no domínio cultural. Em seu Orientalismo(1978), Edward Said – referindo-se basicamente ao caso colonial francês – nomeia os dois fundamentos invisíveis, e inseparáveis, da autoridade imperial hegemônica: o saber e o poder, intimamente ligados, em íntima e produtiva colaboração. Textos recentes de Estudos Pós-Coloniais, na academia anglófona, referem-se, por outro lado, à “immensely prestigious and powerful imperial culture” e ao “prodigious power” do saber imperial britânico. Tudo isto se comprova no exame da abundante literatura colonialista difundida na Europa em geral e em suas colônias ou ex-colônias, ao final do século XIX e na primeira metade do século XX [9]. No espaço da hegemonia britânica, a relação colonial, competentemente acionada pela ideologia colonialista, baseou-se na polarização extrema entre colonizador e colonizado, despontando sempre o colonizador como um sujeito soberano, como a “encarnação metafórica do império”. Já no colonialismo português, subalterno tanto no domínio das práticas quanto dos discursos coloniais, a relação colonizador/colonizado desenhou-se em polarização tão atenuada que gerou jogos de autoridade, formas de reciprocidade e de horizontalidade entre o colonizador e o colonizado “insuspeitáveis no espaço do Império Britânico”, escreve ainda Boaventura.

Não representando a ninguém a não ser a si próprio, o colonizador português viu-se, freqüentemente, na contingência de prestar vassalagem ao rei local, como qualquer nativo, e foi um “Próspero” caótico, absenteísta, “miscigenado” (ver nota 6, acima). O processo de colonização assim encetado gerou uma relação colonial de ambivalência, de hibridez, em que o estereótipo do colonizado, assim como o do colonizador, não teve o fechamento daqueles atribuídos ao inglês.

O estudo comparativo dos diversos colonialismos mostra que uma das distinções a trabalhar em relação à auto-representação dos sujeitos ali implicados e à representação do próprio “Império” diz justamente respeito à questão da ambivalência. O projeto de Homi Bhabha em Nation and Narration, por exemplo, explora a ambivalência da língua na construção do discurso da nação. Bhabha argumenta que “a imagem da autoridade cultural pode ser ambivalente porque ela é apanhada, instável, no ato de ‘compor’ a sua imagem de poder”. Ele prossegue: “Pois a nação, enquanto forma de elaboração cultural, é uma agência de narração ambivalente que mantém a cultura em seu grau máximo de posição produtiva.” [10].

O que dizer, por outro lado, da construção do saber e da autoridade por parte de uma potência colonizadora ambivalente e ambígua, não só em seus atos discursivos (enquanto formas de elaboração cultural da “nação”), mas em seu poder em si; não só na construção narrativa da autoridade colonial, mas na prática, no exercício, de seu próprio poderio, diante de si mesma e das demais? A constatação da ambivalência discursiva vai além de eficaz reivindicação de subversão da crítica, na verificação de que a ambivalência é, sobretudo, constituinte identitário, pois que preside a presença-ausência do poder colonial. Toda a questão da hibridez adquire fortes contornos diferenciais, a partir deste decisivo ângulo.

Na colonização do Brasil estivemos, como dizíamos acima, submetidos a um colonizador que, em longos períodos de sua história, foi dependente de um poder maior, o britânico. Se quisermos radicalizar, poderíamos dizer que o Brasil teve na verdade um colonizador direto, o português, e um indireto, o inglês. Fomos, portanto, duplamente colonizados: por Portugal e pelo poderio britânico, sempre atento às periferias de seus domínios [11].

Nem por isto o português foi “menos colonizador” ou teve atitudes menos predatórias do que os demais. “Vaca leiteira” de Portugal, na expressão de Oliveira Lima, o Brasil não só alimentou com seus recursos naturais a economia portuguesa (lembremos a descoberta de ouro em Minas Gerais, ao final do século XVII), mas também enriqueceu a inglesa – e além: segundo C.R. Boxer, em O Império Colonial Português, D. João V enviou quantidades de ouro brasileiro para a corte papal e para os cardeais, fazendo jus ao “título de rei Fidelíssimo em 1748, realizando-se assim o desejo há muito acalentado de igualar oCristianíssimo rei de França e o Mui Católico rei de Espanha.” [12].

O colonizador do Brasil, portanto, vivenciou uma decadência mal digerida, porque com freqüência mesclada à arrogância de “glória e estirpe” e à nostalgia de um passado renomado, definitivamente perdido [13]. Também a sonhos de grandeza tardia: Oliveira Lima defendeu a tese de que o príncipe regente [futuro D. João VI] partira para o Brasil “decidido não somente a se transformar em monarca transatlântico, como a dilatar as fronteiras da sua monarquia”; (pois) “o maior e o mais resplandecente Império do mundo, aí se dizia, poderia surgir dentre as ruínas e os incêndios” das invasões napoleônicas” [14].

O “outro” da Europa, sua população freqüentemente vista como sub-raça por visitantes e observadores estrangeiros, o português reduplicou contra os “seus” colonizados a discriminação e o desdém por ele sofrido, por parte da Europa “mais civilizada”. Não é de admirar que a questão da alteridade, entre nós, tenha se revestido de complexidades tão peculiares.

A IDENTIDADE BRASILEIRA EM SUAS FORMAÇÕES CULTURAIS
“Lá na altura da praça Principal surgiu uma fonte onde dezenas de negras lavavam roupa.”
Paulo Lins, Cidade de Deus.
Darlan Cunha e Douglas Silva no filme Cidade de Deus, direção de Fernando Meirelles, 2002. http://cidadededeus.globo.com/

Desenredar, através da leitura da produção textual brasileira, tramas básicas de nossa formação sócio-cultural e tornar, assim, perceptíveis certos contornos identitários que a marcam (que nos marcam) são interesses prioritários deste estudo. A este respeito, como em tantos outros, trata-se antes de escavar, descobrindo e desvelando o que se encontra coberto e oculto, do que de inaugurar impensadas elucubrações.

Explico melhor: o material discursivo que desde a época colonial logrou, apesar de todos os percalços, perpetuar-se no Brasil em forma escrita, compôs uma grande narrativa (uma formação discursiva, em termos foucaultianos) que, ainda hoje, só é passível de leitura ao se interpelar a letra do texto, no desafio a seus silêncios e no cruzamento de camadas superpostas de significação textual e intertextual. Refiro-me ao empreendimento interpretativo desconstrutor no sentido derridaiano do termo, quando o texto aparece como uma mensagem cifrada, como um enigma cujo sentido se “descobre” em significado já presente, embora oculto à primeira vista. A interpretação assim concebida, inter-textual por excelência, consiste em “tecer um tecido com os fios extraídos de outros tecidos-textos” e, à medida que penetra no corpo do texto em questão, ela o desconstrói, revelando aquilo antes recalcado [15].

A partir dessas breves considerações sobre a especificidade da leitura em pauta, e para encaminhar a questão dos estudos pós-coloniais no Brasil, este texto abre agora um parêntese voltado para a ficção, especificamente para um momento de grande intensidade no romance Cidade de Deus, de Paulo Lins (1997), quando todo um jogo de apropriação literária e de superposição de textos se dá, estimulando o tipo de interpretação acima proposto.

Alguns dados mínimos do enredo encaminham a leitura: em “Cidade de Deus” (“grande favela pós-moderna”, como tem sido chamada), os meninos Busca-Pé e Barbantinho conversam sobre assombrações e, desafiando o medo, combinam um encontro à meia-noite, em local ermo:

Quando deu onze e quarenta e cinco já haviam atravessado a Estrada do Gabinal e entrado no sítio. Subiam a pequenina ladeira de paralelepípedo do casarão mal-assombrado espreitando os interstícios da noite. Ficaram sentados debaixo duma lua cheia que se impunha no estrelado céu de meia-noite. O silêncio era cortado somente pelos grilos, mosquitos e pelos carros que muito raramente passavam (…). Busca-Pé, com voz trêmula e sumida, dizia que esse papo de assombração era coisa de otário.

Já iam embora quando a lua se transformou em sol de meio-dia, as casas e os apartamentos deram lugar a um imenso campo, os outros casarões tomaram a aparência de novos, o rio tornou-se mais largo, com água pura e jacarés nas margens. Os dois ficaram com um grito estrangulado na garganta que não se permitia explodir. Viam os negros trabalhando nos engenhos de açúcar, nas fazendas de café. O chicote repenicava no lombo. O bosque de Eucaliptos avolumou-se, tinha agora um ar imperial. Lá na altura da praça Principal surgiu uma fonte onde dezenas de negras lavavam roupa. No casarão da Fazenda do Engenho D`Água, observavam o entra-e-sai na cozinha de sinhá Dolores nos preparativos da festa de aniversário da esposa do barão da Taquara.

Lá vinha o barão em seu alazão, comandando pessoalmente os negros no transporte de um piano de cauda que ele mesmo mandara buscar em Paris para presentear a aniversariante. Quarenta negros no transporte daquela formosura. Enquanto vinte suportavam o peso do instrumento, os outros quebravam os galhos das árvores mais baixas para não arranhá-lo. Correu gente de toda a várzea para ver o piano de cauda [16].

O texto de Paulo Lins, escrito na e sobre nossa contemporaneidade, atravessa aqui camadas de tempo e recria, especialmente no último parágrafo citado, um universo escravista quase idêntico àquele encenado meio século antes por José Lins do Rego em um dos clássicos da literatura brasileira, Fogo Morto. Leiamos José Lins:

O Capitão Tomás comprou piano no Recife. Fora uma festa quando passara pelas estradas o grande piano de cauda do capitão Tomás. Nunca o povo vira aquilo. Em cima da cabeça de dez negros, e com outros dez atrás para substituir os outros, lá vinha o instrumento enorme (…). Ele mesmo a cavalo, no passo vagaroso, vinha atrás dando ordem.

Nos dois textos brasileiros em questão reverberam, ainda, as tonalidades faulknerianas de Absalom, Absalom:

They saw him pass, on the roan horse beside his four wagons; (…) They just waited while reports and rumors came back to town of how he and his now somewhat tamed negroes had installed the windows and door (.) and the crystal chandeliers in the parlors and the furniture and the curtains and the rugs [17];

Ao assim desdobrar a dimensão espaço-temporal, a cena orquestrada nos três romances do século XX destaca, para seu leitor, o selo do passado escravista na paisagem, tão fortemente marcado que a transforma de forma indelével – permanecendo esta invisível a olho nu, porém passível de ser exposta pelas lentes aguçadas do ficcional. O que é feito, nos fragmentos citados, através do desfile sobranceiro do senhor de terras, servido ostensivamente por seus escravos e cercado pelos circundantes, pasmos diante de tanta grandeza (respectivamente, “o povo”, em Zé Lins; um vago “they” comunitário, em Faulkner; “gente de toda a várzea” e os dois meninos boquiabertos, em Paulo Lins).

Os três romances, para tanto, lançam mão dos mesmos ingredientes: determinados objetos de valor, como pianos e candelabros (a configurarem aquilo que Max Weber chamou “símbolos de status” [18] os quais, ao lado de certas convenções, sinalizam o estilo de vida daqueles que os ostentam); imagens significativas como o cavalo, de onde melhor exerce seu poder e vigilância, qual imponente centauro, o senhor de terras; e, sobretudo, os escravos, exibidos em seu trabalho braçal – resistentes figuras de ébano sem voz, opinião ou qualquer outra expressão humana e, por isto mesmo, com um quê de esfíngico em sua construção romanesca (“sphynx-like”, diria Faulkner em outro momento de Absalom, Absalom!). Quanto do sistema escravista e de suas engrenagens assim se desvenda para o leitor atento.

Em suma, o mundo ficcional elaborado pelos três autores expõe aquilo que o solo pisado por muitas gerações encobre – a escravidão, lastimável alicerce da civilização em antigas colônias como o Brasil (ou no Sul dos Estados Unidos, lembrando ainda Faulkner), escravidão essa que sobrevive, atualmente, transmudada na miséria das favelas.

Em estratégica inversão, Paulo Lins superpõe à favela urbana de hoje o universo agrário da escravidão colonial e monárquica onde, como acabamos de ler, “o chicote repenicava no lombo” dos “negros trabalhando nos engenhos de açúcar, nas fazendas de café”.

Na trama, o antigo quadro é exibido aos olhos dos dois jovens moradores de Cidade de Deus (o texto de Lins, excepcionalmente, ingressa então no universo do fantástico). Por outro lado, em nível de leitura, as duas épocas unem-se em uma só, sendo ambas escandalosamente expostas em seu funcionamento. Genial achado de Paulo Lins, boa pista para a compreensão do grande malogro social brasileiro: a ostentação do vínculo estreito, da dependência não resolvida, da situação emaranhada experimentada pela nossa situação “pós-colonial”, na perpetuação da exploração (da gente, do chão) gerada na renitente base escravista.

QUESTÕES, CONCEITOS E CENÁRIOS
“Nesse sentido, o Brasil é a realização derradeira e penosa dessas gentes tupis, chegadas à costa atlântica um ou dois séculos antes dos portugueses, e que, desfeitas e transfiguradas, vieram dar no que somos: uns latinos tardios de além-mar, amorenados na fusão com brancos e com pretos, deculturados das tradições de suas matrizes ancestrais, mas carregando sobrevivências delas que ajudam a nos contrastar tanto com os lusitanos.”
Darcy Ribeiro. O Povo Brasileiro: A Formação e o Sentido do Brasil
Índios Guarani do subgrupo Mbya: terra Indígena Guarani de Bracuí, Angra dos Reis/RJ, 2004. Foto de Déborah Ruchiga

Hoje, tanto ou mais do que nunca, os estudos relativos à identidade brasileira e suas formas de representação, a questões de exclusão socioeconômica, de cidadania e nacionalidade, à problemática da etnicidade formadora do povo brasileiro e a sua produção cultural passam necessariamente pelo exame da colonização escravista luso-brasileira, no contexto do colonialismo/imperialismo internacional ao qual esteve (tem estado) estreitamente vinculada.

As pesquisas sociais, artísticas e literárias não podem ignorar os subsídios dessa colonização que tanto construiu quanto minou, em suas bases, a sociedade brasileira, e que seguramente foi responsável por muitos de nossos atuais dilemas e mazelas. Sua permanente investigação, na articulação com o presente, ilumina este presente, como o episódio citado acima de Cidade de Deus sugere: tal herança não é coisa do passado, mas está viva e atuante. Darcy Ribeiro especifica:

O Brasil (…) desenvolve-se como subproduto de um empreendimento exógeno de caráter agrário-mercantil que, reunindo e fundindo aqui as matrizes mais díspares, dá nascimento a uma configuração étnica de povo novo e o estrutura como uma dependência colonial-escravista da formação mercantil-salvacionista dos povos ibéricos.

Darcy, ao falar do “Povo Brasileiro” (título de seu último livro), refere-se às “células culturais neo-brasileiras” – verdadeiras “ilhas-Brasil” (diz ele) as quais, desde o século XVI, operaram como núcleos aglutinadores dos contingentes populacionais, “dando uniformidade e continuidade ao processo de gestação étnica, cujo fruto é a unidade sociocultural básica de todos os brasileiros.” Valorizando a população gerada nesse cadinho racial, ele denuncia, em contraste, a “perversidade intrínseca na nossa herança, na nossa classe dominante” [19].

Mas nem todas as visões do Brasil são positivas, a respeito do povo brasileiro. Houve mesmo quem questionasse, a partir de ângulos bem diversos, a sua própria “existência”: “O Brasil não tem povo”, escreveu o francês Louis Couty, não mero visitante ocasional, mas professor da Escola Politécnica do Rio de Janeiro, residente no Rio na transição da monarquia para a república.

José Murilo de Carvalho ao referir-se, em Os Bestializados, a este mesmo comentário (“Aqui não há povo”), sugere que, em lugar de estranharmos a opinião do estrangeiro, ” nos perguntemos pelo sentido de suas palavras, pela realidade que lhes possa ter servido de referência” [20]. E essa realidade diz respeito ao país que tem vergonha de si; ao país que, qual a “Bruzunganga” de Lima Barreto, quer tanto ser européia que deixa de ser ela mesma e não se enxerga – não “mostra a sua cara”, para lembrarmos Cazuza. A frase aparentemente leviana do francês denuncia (talvez a despeito das intenções de seu autor) a exclusão social e política da população, por ele traduzida como inexistência, e experimentada como invisibilidade.

“Que país é este?” perguntou o poeta Affonso Romano. “O País é Este”, respondeu, em recente levantamento sobre as condições de vida da população do Brasil, o documentário do cineasta Zelito Viana [21].

Sendo a questão identitária o eixo temático desta pesquisa, tais depoimentos apontam direções a seguir, instigam o desvendamento de formações discursivas de tantas procedências e motivações étnicas, geográficas, socioculturais, que constituem o material indispensável a percorrer. Guimarães Rosa criou a sua literatura a partir dos espaços agrestes dos sertões e das veredas – “artérias do interior” (retomando a expressão do fotógrafo Orlando Azevedo), onde “a globalização ainda não banalizou e anulou a identidade de um país chamado Brasil” [22]; Gilberto Freyre, por outro lado, e alguns anos antes de Rosa, escrevera sobre um Brasil parcialmente domesticado, aquele que ele conheceu melhor – o das casas-grandes e senzalas, dos sobrados e mucambos. São cenários do Brasil que se encontram, mas que não se completam ou anulam, e cuja exploração intelectual, sempre parcial, não esgota o entendimento do país, sendo tantas as demais vertentes possíveis – as veredas que o atravessam. Poetas contemporâneos como Ricardo Aleixo, por exemplo, privilegiam a matriz africana e entoam loas a “Xangô, Oba Kossô,”

…que anda com porte de rei,
cavalo que manda e desmanda
como um rei, pantera preta,
senhor rei de Agasu – , aganju
que bloqueia o rio e queima
a chuva com o raio.

Márcio Barbosa, por sua vez, louva com o mesmo brilho de linguagem “Oxum rientidade vestida de ouro”. São estes poemas que ostentam a “negrura exposta” de que fala outro poeta, e “…tece[m] vida/ na resposta/ abrindo a porta enferrujada de silêncio” [23].

Entrar pela via, pelos caminhos e descaminhos, da escrita afro-brasileira é o que aqui se sugere. Só e apenas então – a par da atenção aos discursos das demais minoriais populacionais – os Estudos Pós-Coloniais terão a sua singularidade assegurada no Brasil. Não se pode enveredar pelas gentes e cenários brasileiros sem a elaboração, sempre atualizada, da escravidão, da etnicidade, dos entraves e percalços do povo afro-brasileiro cujo lavor construiu este país (já o reconhecera Joaquim Nabuco) e cuja indispensável voz hoje se ergue, se não com poucos obstáculos, sem dúvida com maiores espaços para a sua autonomia, práxis intelectual, criatividade.

À GUISA DE CONCLUSÃO
“…abrindo a porta enferrujada de silêncio”
Cuti, “Cultura Negra”
Cozinha comunitária, Quilombo São José da Serra, Valença/RJ, 2006. Foto de Déborah Ruchiga

Tendo em vista o interesse no desenvolvimento dos Estudos Pós-Coloniais brasileiros, e como seguimento de minha própria pesquisa, aponto sucintamente, “à guisa de conclusão”, algumas das possíveis – e prementes – questões a explorar, tendo sempre a questão identitária (brasileira) como eixo temático central:

1 – Representação e auto-representação.
Assim como constatamos que fomos duplamente colonizados, a nossa representação colonial e monárquica também foi de “segundo grau” (a história da nossa sujeição colonial foi contada em inglês, lembra Boaventura de Sousa Santos – ver nota 6, acima). O longuíssimo silêncio imposto pela censura governamental e eclesiástica em Portugal (em contraste com a atitude relativamente mais liberal dos reis de Castela, ensina Boxer – ver nota 12) abrandou-se apenas sob D. João V, instituindo-se depois, ainda, a “Mesa Censória”, por iniciativa do Marquês de Pombal.

Ao se considerar quão tardias, em conseqüência, foram a implantação da imprensa no Brasil e a instauração de um limitadíssimo ensino superior no país (apenas efetivadas com a vinda de D. João VI), constata-se o quanto se bloqueou na área cultural e quão problemática foi a conjugação representação/expressão identitária entre nós. Mas o silêncio também pode ser eloqüente, e o aparente vazio de representações encerra, na realidade, manobras de representações sub-codificadas a decifrar, como bem adverte Boaventura de Sousa Santos.

Manifestações culturais populacionais, na luta pela inscrição no tecido social, deram-se com muita força e dramaticidade, inclusive através da oralidade. A este respeito, remeto aqui a meu texto “Visíveis e Invisíveis Grades´”: Vozes de Mulheres na Escrita Afro-Descendente Contemporânea”, onde se lê:

Se enveredássemos pelos labirintos ainda insuficientemente explorados do discurso oral, com freqüência clandestino, de mulheres negras, quer na militância abolicionista, quer através da espiritualidade, quer em entranhadas combinações de ambas, ou também por outras modalidades discursivas como o canto, a dança, a arte em geral, incluiríamos nesta discussão a expressão de mulheres como Luiza Mahim, mãe de Luiz Gama (…) entre tantas outras, as quais fizeram-se ouvir, sem deixarem o legado de uma produção escrita[24].”

2 – Caminhos culturais desviantes e alternativos. Deslindar, com os poetas afro-brasileiros, os “Cristóvãos Quilombos”, de que fala Jamu Minka e atingir, assim, realidades mais nossas e mais ricas. Partir das manifestações de cunho popular as quais, pois que desdenhadas e postas de lado pela cultura oficial, desenharam suas formas e cores às margens dessa cultura, apropriando-se sub-reptícia, ou escancaradamente, dos “restos” do saber erudito e cozinhando-os em novos pratos para o apetite aguçado da população. Assinalar como essa população, sim, existe. Observá-la, e ao que a circunda e adentra, com o olhar “de viés” – apanágio da latinidade americana, conforme lembra o escritor argentino Ricardo Piglia; ou “nas abas do Parnaso”, segundo a arguta formulação de Luiz Gama. Uma história cultural de marginalidade, de liminalidade dessa cultura híbrida, afro-brasileira, miscigenada, a explodir, já em pleno século XX, inicialmente carreada pela música, na capital civilizada à francesa por Pereira Passos; depois, pelos movimentos de conscientização das chamadas minorias, em diversas áreas e segmentos da sociedade (mulheres, negros, indígenas, homossexuais).

3 – A questão racial. A problemática da miscigenação e a etnicidade do povo brasileiro. A pesquisa insiste na exploração da expressão cultural afro-brasileira a partir de suas matrizes diaspóricas e dos (des)caminhos da inserção populacional do ponto de vista social, racial (?), étnico. Tal expressão por vezes é conciliadora, por vezes, não: segundo a poesia de Cuti, talvez “o passado aconteça/ amanhã/ ao contrário” [25].

Nesse sentido, mais do que explorar os desígnios do colonizador, interessa o que dali resultou: o mistério dos cultos, mesclando o sagrado e o profano, Iansã e Santa Bárbara, sexualidade e cosmogonia. Os caminhos do ativismo político quilombola, da conscientização racial, das frustrações e conquistas no terreno da cidadania por parte de grupos excluídos do processo civilizatório que hoje exigem autonomia cultural, conforme lembra Silviano Santiago.

4 – Reavaliação de conceitos e de mitos fundacionais que interpretam a formação da nação Brasil e descrevem a identidade brasileira enquanto povo. Revisitar, assim, estudos sobre a família patriarcal como unidade de poder, sobre a “cordialidade brasileira” e a “democracia racial”, conceitos estes que, ao pretenderem explicar os fundamentos da sociedade brasileira e seus desenvolvimentos, apontavam sintomaticamente para a hipertrofia da esfera privada em detrimento da esfera pública no Brasil [26].

Se Portugal foi o Outro da Europa, o Brasil foi parte do “Outro-do-Ocidente-dentro-do-Ocidente, que é a América Latina”, escreve Silviano Santiago em “A Ameaça do Lobisomem”. Assim, as modernas leituras latino-americanas das culturas colonialistas devem “voltar os olhos em lance vanguardista para o passado colonial” subjacente, reapresentando, em sua estranheza, o cotidiano, e transformando em material cultural o “lugar da desordem nos encontros”, na expressão de Silviano.

5 – A questão da nacionalidade, hoje. A desmistificação da condição utópica da nação – aliás, imaginada apenas por sua elite intelectual, política, empresarial (escreve ainda Silviano) – co-incide com a perda do privilégio da literatura canônica e dos universais que precedem o ato da escrita [27]. Coincide também com necessários re-posicionamentos, por parte da intelectualidade atuante.

Cumpre também examinar as transformações na academia e nos meios de produção cultural, em confronto com as transformações da comunicação e dos meios de comunicação a partir da segunda metade do século passado, dia a dia mais vertiginosas ante as possibilidades abertas pela comunicação eletrônica. Nesse sentido, há atualmente, na América Latina, toda uma bibliografia atualizada e instigante a percorrer (Jesus Barbero, Beatriz Sarlo, Nestor García Canclini, Roberto Fernández Retamar, Eduardo Galeano, entre tantos outros), oferecendo rico material de reflexão, e viabilizando fecundo e crescente intercâmbio interamericano.

Há, portanto, uma ampla gama de encaminhamentos a empreender – os quais interpenetram-se mutuamente – e, dentre eles, cinco foram aqui destacados: representação e auto-representação; caminhos culturais desviantes e alternativos; a questão racial; reavaliação de conceitos e de mitos fundacionais; revisão do conceito de nacionalidade e do papel do intelectual brasileiro, hoje, diante das transformações da pós-modernidade.

São estes esboços precários e recortes temporários do que, em termos individuais, pretendo desdobrar em futuro próximo. Sem dúvida o maior dos incentivos será a indispensável troca de idéias com colegas que, dentro de tal abundância, deparem-se com as mesmas questões, compartilhando indispensáveis dúvidas e perseguindo objetivos afins.

Epígrafes:

– Eduardo Galeano, “Defensa de la Palabra”. In: El Tigre Azul y Otros Artículos. La Habana, Instituto Cubano Del Libro/Editorial de Ciencias Sociales, 2002. p.4.
– Albert Memmi, Retrato do Colonizado Precedido pelo Retrato do Colonizador. R.J., Paz e Terra, 1977. p.125-126.
– Paulo Lins, Cidade de Deus. p.177.
– Darcy Ribeiro, O Povo Brasileiro: A Formação e o Sentido do Brasil. p.130.
– Cuti, “Cultura Negra”. In: Negro Brasileiro Negro: Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional nº 25, 1997. Org. Joel Rufino dos Santos. p.137.

*Heloisa Toller Gomes é Doutora em Letras pela PUC-RJ e Professora Adjunta da UERJ. No Estágio de Pós-Doutoramento em Estudos Culturais pelo Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC) da UFRJ, desenvolveu o projeto de pesquisa “Pós-Colonialismo, Etnicidade, Formações Culturais Contemporâneas” (2004-05). É autora, entre outras publicações enfocando a questão afro-descendente, de As Marcas da Escravidão(EDUERJ/Ed.UFRJ), O Negro e o Romantismo Brasileiro (Atual Ed.) e da Edição Crítica e tradução para o português deAs Almas da Gente Negra, de W.E.B. DuBois (Lacerda/Nova Aguilar).

NOTAS


[1] Este texto teve a sua origem no Relatório referente à conclusão do Estágio de Pós-Doutoramento que empreendi no PACC/UFRJ, em 2004-2005. Aqui, discuto a pertinência dos Estudos Pós-Coloniais no Brasil, rastreando alguns dos encaminhamentos básicos desta área de estudos na academia internacional. Enfatizo que a rentabilidade dos Estudos Pós-Coloniais na Universidade brasileira está atrelada ao indispensável entendimento da singularidade da colonização luso-brasileira, responsável por nossa formação populacional e cultural e por muitas das formas que tem assumido o desenvolvimento sócio-econômico em nosso país, da colônia à contemporaneidade. Abordando comparativa e contrastivamente os sistemas de colonização européia, os Estudos Pós-Coloniais no Brasil poderão contribuir substancialmente para a pesquisa sobre questões identitárias (brasileiras), iluminando e sendo iluminados pelas formações culturais do passado e do presente, notadamente as de cunho afro-descendente.

[2] Ver “Preface”, p.xv, xvi. In: The Post-Colonial Studies Reader. Ashcroft, B., Griffiths, G. and Tiffin, H. (eds.). London & New York: Routledge, 1995. Também A Dictionary of Literary and Thematic Terms. Quinn, Edward. U.S., Checkmark Books, 2000.

[3] Recomendo, a respeito, de Henri Wesseling, Le Partage de l’ Afrique 1880-1912 (1991). Trad. francesa do holandês por P. Grilli. Dënoel, 1996.

[4] BONFIM, Manuel. O Brasil (1935). São Paulo: Biblioteca Pedagógica Brasileira/ Companhia Editora Nacional, s/d.

[5] Discordo, portanto, do pesquisador Thomas Bonnici, ao escrever ele que a crítica colonialista “não chegou ainda à literatura brasileira” e “não parece ter chegado nem à teoria literária praticada no Brasil”. Também, e principalmente, quando comenta:

Embora a reflexão teórica sobre estas últimas [obras literárias produzidas nas antigas colônias francesas e portuguesas] seja incipiente, com certeza acompanharia a sistematização introduzida por escritores pós-coloniais de fala inglesa.

BONNICI, Thomas. O Pós-Colonialismo e a Literatura: Estratégias de Leitura. Paraná: Editora da Universidade Estadual de Maringá, 2000. p.264.

[6] SANTOS, Boaventura de Sousa e. “Entre Próspero e Caliban – Colonialismo, Pós-Colonialismo e Interidentidade”. In: Cultura e Desenvolvimento. Rio de Janeiro: Aeroplano Editora, 2004. Org. Heloisa Buarque de Hollanda. p.33.

[7] Oliveira Lima, ver nota 13, abaixo; Bonfim, Manuel, Op.cit., p.25; Torres, Alberto. O Problema Nacional Brasileiro. 3.ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938. p.100.

[8] SANTOS, Boaventura de Sousa e, Op.cit. p.20, 33 e passim.

[9] Ver, a respeito, “General Introduction”. In: The Post-Colonial Reader, p.1.

Como exemplos da difusão do saber/poder colonialista britânico, ver Royal School Illustrated Series, de ampla circulação no Ocidente e no Império Britânico em geral, com narrativas infanto-juvenis (habitualmente com um tom edificante) sobre a presença inglesa nas colônias, como “Stories of Tigers” (“Some years ago, a number of English officers in India went out to hunt.” – n.3, p.61); ou “The English Girl and her Ayah”, abordando de passagem as relações inter-raciais e as diferenças religiosas (” ‘We are lost! Cried the poor Hindoo, ‘lost in the dreadful jungle!` ‘Do not be so frightened, Motee, said the fair-haired English girl; ‘God can save us, and show us the way back.`” n.3, p.75).

London, T. Nelson and Sons, Paternoster Row. Edinburgh, New York, Toronto, and Paris. n.1, s/d; n.3, 1925 (elaboração a partir do programa governamental do Education Department da Inglaterra, de 1872).

[10] BHABHA, Homi K., “Introduction: Narrating the Nation”. In: Nation and Narration. London & New York: Routledge, 1990. p.3. Org. Homi K. Bhabha (traduzi as passagens citadas).

[11] Não é à toa que o arguto Robert Southey, tendo em vista os interesses do Império Britânico, voltou a sua atenção para o Brasil e pesquisou longamente nos arquivos de Lisboa para a elaboração da obra de peso que é a sua History of Brazil (escrita entre 1810 e 1826). Percebendo que o Brasil encaminhava-se para um futuro mais grandioso do que o da sua metrópole (“os portugueses pareciam-lhe selvagens ou semi-bárbaros” – escreve Maria Odila da Silva Dias) Southey observa no prefácio a seu referido livro: “… e o progresso do Brasil desde os seus mesquinhos princípios até à importância que atualmente atinge, tudo isto são tópicos de não vulgar interesse.”

SOUTHEY, Robert. “Prefácio do Autor”. In: História do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981. trad. L.J. Oliveira e Castro.

DIAS, Maria Odila da Silva. O Fardo do Homem Branco: Southey, Historiador do Brasil (Um Estudo dos Valores Ideológicos do Império do Comércio Livre). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1974. p.176.

[12] BOXER, C.R.. O Império Colonial Português (1415-1825). Lisboa: Edições 70, 1969. p.137,330.

[13] Na obra citada acima (nota 11), Boxer transcreve o seguinte, e impressionante, depoimento do Padre jesuíta Manuel Godinho (Lisboa, 1663-1665) sobre a decadência do império colonial português: “O império ou Estado indiano lusitano, que anteriormente dominava a totalidade do Oriente e compreendia oito mil léguas de soberania, vinte e nove cidades capitais de província e muitas outras de menor importância, e que ditava leis a trinta e três reinos tributários, espantando todo o mundo com a sua enorme extensão, assombrosas vitórias, próspero comércio e imensas riquezas, está agora reduzido, por causa dos seus próprios pecados ou devido a inevitável decadência dos grandes impérios, a tão poucas terras e cidades (…). Se ainda não expirou completamente, é porque não encontrou um túmulo digno da sua anterior grandeza. Se era uma árvore, é agora um tronco; se era um edifício, é agora uma ruína; se era um homem, é agora um coto; se era um gigante, é agora um pigmeu; se era grande, não é nada agora; se era a vice-realeza da Índia, está agora reduzido a Goa, Macau, Chaul, Baçaim, Damão, Diu, Moçambique e Mombaça, com algumas outras fortalezas e locais de menor importância (…) que os nossos inimigos nos deixaram, ou como um memorial daquilo que dantes possuíramos na Ásia, ou como lembrança amarga do pouco que, agora, lá possuímos.”

[14] Oliveira Lima. D. João VI no Brasil, 1808-1821. Rio de Janeiro: José Olympio, s/d. p.34,548, 364 e passim.

[15] Glossário de Derrida. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976. Supervisão geral, Silviano Santiago. p.54-55.

[16] LINS, Paulo.  Cidade de Deus. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p.177.

[17] REGO, José Lins do. Fogo Morto (1943). Rio de Janeiro: José Olympio, 1973. p.137. FAULKNER, William.Absalom, Absalom! (1936). New York: Vintage Books, 1972. p.44.

[18] WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1971. p.218-219.

[19] Ribeiro, Darcy. O Povo Brasileiro: A Formação e o Sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p.273.

Em entrevista ao Jornal do Brasil [“Darcy, um Brasileiro” 3/11/96, p.4], o antropólogo mostrou-se amargo, ao observar “…[E]sse apego [do proprietário pela terra] e a brutalidade, que é a maior herança cultural, a mais perversa do Brasil. A brutalidade para com o povo. A herança de termos sido o último país do mundo a acabar com a escravidão hedionda. É a herança da capacidade de gastar gente, de queimar gente como se queimasse carvão. De queimar negro, jogar no trabalho. (…) Essa capacidade de tratar pessoas como coisas, essa perversidade intrínseca, que é a capacidade de matar, de torturar. É uma perversidade intrínseca na nossa herança, na nossa classe dominante. Nossa classe dominante é enferma de desigualdade, de descaso…”.

[20] COUTY, Louis.  L`Esclavage au Brésil. Paris: Librairie de Guillaumin, 1881. p.87. Informação biográfica de Eduardo Silva, em Dom Oba II D`África, O Príncipe do Povo. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p.102, 215.

CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que Não Foi. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p.10.

[21] “O País é Este: Documentário baseado nos dados do Censo 2002 – IBGE”. Direção Zelito Viana. IBGE: Mapa Filmes Ltda, 2002.

[22] AZEVEDO, Orlando. “O Rito do Mito”. In: Expedição Coração do Brasil: Mito. Ministério da Cultura/ IRB-Brasil/ Francisco Alves, 2002.

[23] ALEIXO, Ricardo. “Oba Kossô”. In: Trívio Poemas. Belo Horizonte: Scriptum Livros, 2001. p.46; BARBOSA, Márcio. “Poema-ebó”. In: Cadernos Negros 15. São Paulo: QUILOMBHOJE/ Edição dos Autores, 1992. p.63-64.

[24] GOMES, Heloisa Toller. ” ‘Visíveis e Invisíveis Grades: Vozes de Mulheres na Escrita Afro-Descendente Contemporânea”. In: Caderno Espaço Feminino. Minas Gerais: Universidade Federal de Uberlândia. n.15, v.12, jul/dez.2004. Coord. Vera Lucia Puga de Sousa. p.17.

[25] Cuti, “Branco Negreiro”. In: Cadernos Negros 15. p.27.

[26] Chamo a atenção para a recente releitura de mitos benevolentes da formação brasileira, como o conceito de “homem cordial” (desenvolvido por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil): ver ROCHA, João Cézar de Castro, Literatura e Cordialidade: O Público e o Privado na Cultura Brasileira. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1998. Do mesmo autor, O Exílio do Homem Cordial. Rio de Janeiro: Museu da República, 2004.

[27] SANTIAGO, Silviano. “A Ameaça do Lobisomem”, p.214, 217; “O Cosmopolitismo do Pobre”. p.59 In: O Cosmopolitismo do Pobre: Crítica Literária e Crítica Cultural. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.

 

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Cinema e Esportes: Diálogos | de Victor Andrade de Melo*

Introdução

No ano de 1999, às vésperas de um novo século, o cineasta Marcelo Masagão lançou “Nós que Aqui Estamos por Vós Esperamos”, um filme-memória onde procurou, a partir de recortes biográficos (reais e ficcionais, de personagens notórios e de pessoas pouco conhecidas), traçar uma síntese do século XX. Em uma das seqüências, Masagão compara o movimento das pernas de Garrincha, ao driblar seus adversários, com o famoso bailado de Fred Astaire, em uma de suas performances cinematográficas. Um verdadeiro pas-de-deux.

Olympia, filme de Lei Reifensthal

Não parece exagerado afirmar que o cineasta, de alguma forma, compara a paixão e o fascínio causados por dois expoentes de manifestações culturais de grande importância no século que passou: o cinema e o esporte. Masagão escolheu um astro dos musicais, um dos gêneros cinematográficos mais populares, e um ícone do futebol, sem dúvida o esporte mais difundido em todo o mundo. Astaire e Garrincha fazem parte do imaginário e ocupam lugar de importância no século que passou: de certa maneira são heróis de uma época.

Cinema e esporte, na verdade, estão entre as linguagens mais acessadas no decorrer do século XX, não somente nos seus espaços específicos (as salas de projeção e os estádios), como também em função da ação dos meios de comunicação, que nelas investiram por se tratarem de produtos de grande penetração popular: “El deporte y el cine son las dos principales ofertas de ocio del siglo XX y constituyen hoy los principales contenidos – en tiempo de emisíon y audiencias alcanzadas – de la industria audiovisual en el mundo entero”. [2]

Em todas as redes de televisão aberta podemos identificar uma farta programação de filmes e uma grande oferta de programas esportivos. É difícil encontrar algum jornal ou revista de grande circulação que não possua sessões específicas dedicadas tanto ao cinema quanto ao esporte. Isso se dá a tal ponto que é comum observarmos que atores/atrizes e atletas hoje são tratados em grau de igualdade, como estrelas, por tais mídias.

take do filme Garrincha, Alegria do Povo, de Joaquim Pedro de Andrade

Vale lembrar o espaço que os grandes eventos de ambos ocupam nos meios de comunicação, notadamente os Jogos Olímpicos e as Copas do Mundo de Futebol, que geram os maiores índices de audiência mundial, e os festivais de cinema, destacadamente a entrega anual do Oscar (premiação concedida pela Academia de Artes Cinematográficas de Hollywood).

No Brasil não é diferente: dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) demonstram que cinema e futebol constituem-se em preferências como forma de diversão fora de casa (e não dificilmente também dentro dos lares) em grandes e médios centros urbanos e suburbanos, onde se concentra 75% de nossa população. [3]

Haveria então maiores relações entre esporte e cinema? Não é novidade a discussão sobre as representações de determinados temas/assuntos em filmes. Já temos reflexões, publicadas em livros e periódicos, sobre negros [4] , homossexuais [5] , o sertão [6] , a mulher [7] , entre outros. Contudo, poucas e parciais têm sido as discussões sobre os relacionamentos entre esporte e cinema, notadamente no Brasil, o que parece surpreendente tendo em vista o importante espaço que as práticas esportivas ocupam na formação da cultura e da identidade nacional.

No que se refere às relações entre esporte e cinema, outras considerações devem ser observadas. Não estamos falando de uma simples representação de uma temática por uma linguagem. Obviamente que o esporte é uma temática, entretanto, mais do que isso é também uma linguagem.

Bernard Jeu é um dos autores que defende essa idéia, procurando apresentar os elementos que compõe uma “gramática” do fenômeno esportivo. Para ele, trata-se de identificar nesta prática social a primazia de uma razão poética, o que vem a ressaltar a importância do imaginário para a consolidação de sua presença, de sua importância e de sua popularidade. Explicitamente, ao falar da poética e do esporte, afirma o autor:

O esporte não se sentirá estranho, ele que é freqüentemente perseguido, vivido, representado como uma fabulosa história, com seus heróis mitológicos, os campeões (…) Daí a necessidade de uma estética do esporte. Ele é comunicação e criação.[8]

Jean-Claude Carrière reforça essa compreensão acerca da existência de uma “gramática” do esporte ao tecer uma comparação com a “gramática” do cinema:

É bem provável que um espectador inexperiente, privado de imagens desde o nascimento e subitamente convidado a assistir um filme atual, não conseguisse ver nada – mesmo que conhecesse o idioma – além de um monstruoso embaralhamento do tempo, exatamente como um extraterrestre num estádio de futebol não faria a menor idéia do que estava acontecendo no jogo. Sem conhecer as regras, sem ter os hábitos de espectadores, ele provavelmente veria todos os jogos como um mesmo jogo repetido incessantemente, enquanto sabemos que, de um jogo para outro, é impossível encontrar dois instantes exatamente idênticos .[9]

Assim sendo, parece que podemos pensar em um diálogo entre duas linguagens. Como se estabeleceram tais encontros no decorrer da história? Haveria maiores semelhanças entre o esporte e o cinema enquanto manifestações culturais tão importantes e influentes no decorrer do século XX?

Este artigo tem por objetivo desvendar como se estabeleceram de forma complexa os relacionamentos e similaridades entre esporte e cinema a partir do momento de gênese das duas linguagens, ou, para ser mais preciso, no momento em que surgem os primórdios de uma sociedade que valoriza o entretenimento e as vivências públicas de lazer, instantes iniciais da constituição de uma indústria cultural; no momento da “invenção da vida moderna”, fazendo uso da expressão do livro organizado por Leo Charney e Vanessa Schwartz. [10]

Este esforço de reflexão pode contribuir para o campo dos Estudos Culturais ao trazer uma nova luz para melhor compreendermos o papel da imagem na constituição da sociedade moderna, reafirmando que isso não se deu somente a partir do cinema: outras manifestações também estavam envolvidas nesse processo, inclusive o esporte.

A grande contribuição do cinema foi potencializar esse processo de valorização da imagem, ao ampliar o seu alcance em vários sentidos. Contudo, não forjou sozinho um modus operandis, mas dialogou e construiu sua atuação em conjunto com outras linguagens. Isso pode ser observado com a dança, com a música, com a literatura, entre outras. O que se pretende é discutir como se deu esse processo com o esporte.

Assim, pretende-se chamar a atenção para a necessidade de melhor considerarmos o esporte como objeto de reflexão, concedendo-lhe o espaço que merece por sua importância no decorrer do século XX.

Mais ainda, busca-se discutir uma dimensão que vem sendo somente parcialmente abordada: os aspectos estéticos do fenômeno esportivo. Ao chamar a atenção para as relações entre arte e esporte, identificamos também uma forma de ampliar a compreensão sobre sua presença social. Como bem afirma Jeu:

A arte e a literatura são para o esporte uma sociologia indireta, uma psicanálise, um testemunho (…) A investigação da presença do esporte na arte nos interessa na medida em que nos esclarece sobre a identidade do esporte e sobre o papel do imaginário na constituição das relações esportivas (…) O esporte não é simplesmente o indício de uma sociedade lúdica (ignorada ou tolerada), mas a sociedade lúdica percebida e descrita pelos meios da arte, em um quadro de expressão de sua valorização pela sociedade global. [11]

Este artigo pretende ainda trazer contribuições para os estudos históricos, já que intenta identificar os vestígios do esporte no interior das teias e redes sociais, se alinhando com as iniciativas relacionadas à história cultural. Em certo sentido, é um esforço de promoção de uma “arqueologia” social desta prática.

Esporte, cinema, modernidade

(…) quero destacar que o apelo da imagem não pode ser explicado com base unicamente em práticas econômicas da modernidade. Esse apelo deve ser entendido também pelo reposicionamento da imagem em meio às complicadas práticas discursivas e semióticas que a enquadram. Venho defendendo a tese de que o padrão-imagem resulta do poder de que dispõe a imagem para intervir intersemioticamente, o poder de se transformar em uma moeda comum capaz de unificar o caos discursivo que caracteriza as abstratas e complexas formações sociais da modernidade. [12]

Para começar a discutir as relações entre cinema e esporte, deve-se destacar o fato de que ambos, mesmo possuindo raízes anteriores, são fenômenos típicos da modernidade, se organizando no âmbito de uma série de mudanças culturais, sociais e econômicas observáveis desde o fim do século XVIII, crescentes no decorrer do século XIX e consolidadas na transição e no decorrer do século XX. Não surpreende o fato de que o cinema e os Jogos Olímpicos tenham surgido na mesma época (1895 e 1896, respectivamente) e no mesmo lugar: França, país-chave para entender um novo estilo de vida que estava sendo gestado. [13]

Tanto o cinema quanto o esporte devem ser compreendidos no âmbito do crescimento das cidades enquanto arenas de circulação de mercadorias e a conseqüente construção de uma cultura eminentemente urbana, onde se destacavam as buscas e vivências de lazer. Com isso, observa-se o crescimento das preocupações com o público, com o consumidor, com o corpo como elemento de consumo e de notável atenção e visibilidade.

Além disso, o desenvolvimento científico, uma destacada dimensão a ser encarada quando nos referimos à transição dos séculos XIX e XX, marca a velocidade e a fugacidade como importantes parâmetros de consideração, que impeliam à busca de mecanismos de preservação, de fixação, perante a uma certa perplexidade com a cada vez mais tênue fronteira entre a realidade e suas representações, em uma sociedade que, por tudo isso, tem a imagem como importante elemento de construção.

O esporte se organiza anteriormente ao cinema, já no fim do século XVIII, estabilizando seus sentidos e significados no final do século XIX. [14] Em certo sentido, o cinema é anterior ao cinema; ou melhor, a primeira projeção pública, promovida pelos irmãos Lumière, deve ser entendida no âmbito de um conjunto de ações bastante longínquas de tentativas de captação e exibição da imagem em movimento, onde se destaca o século XIX pelo enorme número de invenções e inovações. [15] Há que se considerar então que:

A cultura moderna foi “cinematográfica” antes do cinema. Este foi apenas um elemento de uma variedade de novas formas de tecnologia, representação, espetáculo, distração, consumismo, efemeridade, mobilidade e entretenimento – e, em muitos aspectos, não foi nem o mais convincente nem o mais promissor. [16]

O esporte e o cinema do final do século XIX devem ser entendidos tanto a partir da idéia de processo quanto na sua ocorrência específica adequada às características peculiares daquele momento histórico, dialogando entre si e com outras manifestações artísticas inseridas no mesmo contexto. Por exemplo, com o cartaz, uma nova forma pública de artes plásticas, que se desenvolveu com força na Paris do século XIX.

Marcus Verhagen [17] demonstra as polêmicas acerca dessa nova mídia, tanto no que se refere a sua validade como arte, quanto às questões ligadas a moralidade pública, informando que foi um produto típico de uma sociedade que valorizava o entretenimento. Podemos destacar que entre as opções de lazer que faziam uso do cartaz para atrair público se encontravam hipódromos, divulgando suas corridas de cavalos, e clubes de remo, convocando a população para as regatas. Os Jogos Olímpicos, em suas origens e até os dias atuais, também sempre foram divulgados fazendo uso de belos cartazes. O esporte, enfim, estava plenamente articulado com as dimensões que marcaram aquele período.

Esporte, cinema, corpo: controle e objetividade

As relações entre cinema e esporte podem ser encaradas, entre outras coisas, no contexto do desenvolvimento de idéias acerca da necessidade de se “desvendar” e de se “controlar” o corpo, buscas constantemente identificadas no decorrer do século XIX.

João Luiz Vieira [18] sugere que não é mera casualidade o fato de que o cinema fora inventado no mesmo momento em que se comemorava a descoberta dos raios X. Desde o século XVIII se observava uma mudança paulatina na relação da prática médica com o corpo. De algo pouco conhecido, ele vai sendo transformando em um objeto legível, traduzível em imagens que poderiam ser expressas em palavras. Se uma nova relação e consideração para com o corpo estavam sendo construídas, um novo sistema de regulação, de disciplinarização, se fazia necessário.

Não por acaso, em função dessas novas preocupações, podemos identificar muitos médicos envolvidos com as origens dos métodos ginásticos e com pesquisas utilizando o esporte como aplicação e/ou preocupação central. Na Alemanha, Suécia, Dinamarca e França, foram os responsáveis pelo desenvolvimento do que eram consideradas práticas adequadas de uso corporal para manutenção da saúde. Eram os responsáveis pelo receituário acerca do que poderia ou não ser executado. No Brasil, não foi diferente: entre as teses apresentadas às Faculdades de Medicina do Rio de Janeiro, Salvador e Recife, muitas eram as dedicadas à Educação Física e ao esporte.

Não é de se estranhar tais envolvimentos. Como o corpo (e seu desvendar, o mais preciso possível) passa a ser uma preocupação denotada para os médicos, as atividades físicas se constituem em um excelente laboratório para seus estudos, ao mesmo tempo que permitiam o difundir de suas considerações “higiênicas”, algo que de forma alguma estava desconectado de uma forte base moral, de controle, de exercício de poder.

Para Vieira, a aceitação unânime do potencial de contribuição do cinema (e da imagem) para a medicina expressava uma compreensão de que seria de grande utilidade para garantir a objetividade das análises: “é uma ética do autocontrole, como conseqüência da recusa em cair na tentação de intervir entre a natureza e a representação almejada pelos cientistas e pesquisadores”. [19] A natureza subjetiva dos sentidos poderia, supostamente, ser afastada pela utilização das imagens que não “mentiam”.

A questão da objetividade por certo também esteve presente nas ligações entre esporte e cinema, no uso de imagens pelas diferentes instâncias componentes do campo esportivo. Como somente os sentidos (notadamente a visão) eram utilizados para a definição dos resultados, havia muitas polêmicas sobre os reais vencedores das competições esportivas. Com o uso da imagem, tais problemas poderiam ser, também supostamente, facilmente solucionáveis. Bastava-se fotografar e/ou filmar as provas para fossem sanadas as possíveis e comuns dúvidas.

Por isso, bem precocemente os recursos de captação de imagens foram introduzidos nas pelejas esportivas, sem que necessariamente tivessem eliminado todos os problemas, pois logo se percebeu que os ângulos de captação (os quais poderíamos denominar de “planos”, se quisermos utilizar a linguagem cinematográfica) podem ser mais subjetivos do que apressadamente pode-se imaginar.

Até os dias de hoje as polêmicas permanecem. Na última Copa do Mundo de Futebol (2002) ficou famoso o episódio em que praticamente todos os jornalistas do mundo afirmaram que o árbitro errara em uma situação polêmica de jogo, fazendo uso para tal de diversas fotografias e takes tomados aproximadamente do mesmo ponto de vista. Até que surge uma foto tirada de outro ângulo, de outro plano, demonstrando que a decisão do árbitro era perfeita.

Outra discussão comum é a possibilidade de utilização do vídeo-tape pelos árbitros em partidas de futebol. Muitos argumentam que tal uso (como ocorre já nas partidas de futebol americano) atrapalharia a dinâmica do jogo e estragaria um dos grandes atrativos do esporte: a polêmica.

Nélson Rodrigues, brilhante cronista, apaixonado por futebol e tricolor doente, exclamou certa vez, quando afirmava que o Fluminense não fora beneficiado pelo árbitro, mas assistira uma imagem que demonstrava o contrário: “o vídeo-tape é burro!”. Sua posição de ressalva ao uso da imagem fica ainda mais clara quando comenta uma partida entre Brasil e Inglaterra, quando os locutores de rádio propagaram que fora um belo jogo, enquanto as imagens demonstravam o oposto:

E o patético é que, quinta-feira, o vídeo-tape de Brasil X Inglaterra nos dera uma versão deprimente do escrete. O povo não sabia como conciliar as duas coisas: o delírio dos locutores e a exata veracidade da imagem. Após a batalha de ontem, eu vi tudo. A verdade está com a imaginação dos locutores. E repito: a imaginação está sempre muito mais próxima das essências. Ao passo que o vídeo-tape é uma espécie de lambe-lambe do passeio público, que retira das pessoas toda a sua grandeza humana e esvazia os fatos de todo o seu patético. [20]

De acordo com Vieira, os médicos acabavam relegando aos pacientes [21] um papel cada vez menos ativo, buscando afastar a subjetividade dos exames e da clínica a partir da utilização de recursos de imagem. Antes, dependiam quase que exclusivamente dos relatos dos indivíduos para tomarem as decisões julgadas necessárias; com os avanços científicos, as imagens é que deviam “falar” objetivamente o procedimento que deve ser tomado.

A utilização de imagens, no decorrer do tempo, também trouxe modificações na postura do observador da prática esportiva. Referindo-se ao papel da torcida, Nicolau Sevcenko [22] recupera a origem da palavra (torcer-se, contorcer-se, remoer-se, contrair-se) para argumentar que se trata de uma função ativa. É o torcedor uma das principais atrações do espetáculo esportivo. É ele que polemiza, influencia, se posiciona.

Nélson Rodrigues constantemente também exaltava o poder da torcida e sua influência na dinâmica dos jogos. Chamava a atenção para o fato de que o torcedor pode até parecer um “pobre-diabo, indefeso e desarmado”, mas isso não passa de ilusão. No fundo, ele tem grande poder, possuindo “armas” próprias.

A posição de Bertold Brecht também parece muito interessante. Ao teorizar sobre saídas para redimensionar o teatro, o poeta e dramaturgo vislumbra uma esperança no público que comparece aos eventos esportivos. Com isso, não propõe que sejam conquistados para o teatro aqueles espectadores, nem tampouco que peças sejam montadas em instalações esportivas, mas sim que se mude a própria natureza da atividade teatral, para que se possa envolver um público que se entusiasme intensamente com o espetáculo, sem que perca uma certa postura de distanciamento. [23]

Para Brecht, isso já acontecia com o esporte: o torcedor é ativo, mas consegue manter um elevado grau de distanciamento ao julgar, tomar posição perante as partidas assistidas:

Acontece que tal parece ser a situação do teatro atual: os atores não se sentem muito bem em sua pele: como “responder” a um público apático? Veja-se o contraste com o público de uma arena de esportes; estas “panelas de cimento” comportam “quinze mil pessoas de todas as classes e com todos os perfis, o público mais inteligente e mais correto do mundo”. [24]

Ressalvas merecem ser feitas a partir de um olhar contemporâneo. Se antes o torcedor dependia basicamente dele mesmo para tomar posicionamentos perante o que estava sendo assistido, a atual utilização de imagens nos espetáculos esportivos acaba por, de alguma forma, retirar um pouco de seu papel definidor, diminuir um pouco o seu papel ativo.

O recurso do video-tape e seus desdobramentos (tira-teimas, programas que calculam “exatamente” o que ocorreu) acabam por ser apresentados como a “verdade”, o objetivo, o “científico”, deixando a opinião do torcedor para o campo da “doxa”. Com isso não se está a afirmar que o uso de imagens “estragou” a prática esportiva, mas a chamar a atenção para as mudanças que foram ocasionadas. Mudanças paulatinas, multifacetadas e cada vez maiores. Como exemplo claro, pode-se lembrar das constantes modificações nas regras de determinados esportes, como no caso do voleibol, para que o jogo se torne mais adequado à transmissão televisiva.

Existe um número enorme de imagens e programas esportivos nas televisões de todo o mundo. O esporte é agora levado para dentro dos lares. Todos têm acesso a um discurso aproximado acerca da prática, mesmo que persistam as polêmicas. E ainda que consideremos o papel ativo do torcedor, não devemos negligenciar o alerta de Pierre Bourdieu, que nos faz lembrar que estamos nos referindo a uma tensão constante na construção de sentidos e significados acerca das práticas sociais:

(…) sem dúvida é pela separação estabelecida entre os profissionais, virtuoses de uma técnica esotérica, e os leigos, reduzidos ao papel de simples consumidores, e que tende a se tornar uma estrutura profunda da consciência coletiva, que ele (esporte) exerce seus efeitos políticos mais decisivos: não é apenas no domínio do csporte que os homens comuns são reduzidos aos papéis de torcedores, limite caricatural do militante, dedicados a uma participação imaginária que não é mais do que a compreensão ilusória da despossessão em benefício dos experts. [25]

Os torcedores são sim ativos, mas lidam com estruturas bastante fortes de convencimento, simultaneamente e em diferentes graus rechaçadas e incorporadas. O importante é entender que a possibilidade de difusão rompeu o limite claro entre o público e o privado, envolveu ainda mais mulheres, famílias, filhos (algo que já era observável anteriormente nas instalações esportivas), mas estabeleceu um acesso mediado pelos “especialistas” a partir de uma idéia de objetividade.

Os “especialistas” em esporte existem desde o início da prática esportiva moderna: jornalistas, comentaristas, cronistas, entre outros. No início, como o esporte era uma manifestação nova, recém estruturado, com uma gramática específica, ocupavam o papel de “tradutores”, responsáveis por passar para o grande público as peculiaridades da nova prática. Com o passar do tempo, sua função permaneceu ativa, mesmo que com sentidos diferenciados. Não há programa esportivo de televisão ou caderno de esportes nos jornais que não disponha de alguns desses profissionais.

Nélson Rodrigues, mesmo que sempre reconhecendo a atuação ativa dos torcedores, chegou a identificar em suas crônicas uma mudança sensível na sua postura, posição que bem se articula com sua irritação com a utilização do video-tape. Ao comentar, no ano de 1955, a postura da torcida em partidas realizadas na década de 10, afirmava:

Naquele tempo tudo era diferente. Por exemplo: a torcida tinha uma ênfase, uma grandiloqüência de ópera. E acontecia esta coisa sublime: quando havia um gol, as mulheres rolavam em ataques. Eis o que empobrece liricamente o futebol atual: a inexistência do histerismo feminino. Difícil, muito difícil achar-se uma torcedora histérica. Por sua vez, os homens torciam como espanhóis de anedota . [26]

Resumindo esta discussão entre resistência e adequação, podemos fazer uso das palavras de Miriam Hansen:

(…) se quisermos compreender o que houve de radicalmente novo e diferente na modernidade do século XX, temos também de reconstruir o apelo libertador do “moderno” para um público de massa – um público que era, em si mesmo, tanto um produto quanto uma vítima do processo de modernização. [27]

Esporte, cinema, corpo: espetacularização

A preocupação com o corpo, segundo Leo Charney, tem forte relação com o clima de hiperestimulação que caracterizou a modernidade na transição dos séculos XIX e XX. A mudança na forma de vivenciar o tempo acabou por valorizar as respostas de natureza sensorial, corpórea:

Dizer que não podemos reconhecer o presente no instante da presença não é dizer que o presente não pode existir. É simplesmente dizer que ele existe como sentido, experimentado, não no reino do catálogo racional, mas no reino da sensação corporal. Essa possibilidade de um presente sensório como antídoto à alienação da modernidade foi o caminho tomado na modernidade.[28]

Articulado com as dimensões anteriores identifica-se um claro processo de espetacularização do corpo, observável denotadamente a partir do final do século XIX. João Luiz Vieira procura trabalhar tal constatação entendendo as relações entre medicina e cinema naquele contexto, encontrando inclusive similaridades na organização espacial e nos sentidos desejados: “Tanto o espetáculo da lição de anatomia, como o cinema, possuem, como terreno comum, o discurso da investigação e da fragmentação do corpo”. [29]

Ao aprofundar sua discussão sobre a relação que o cinema estabeleceu com o corpo, o autor é enfático:

O corpo como atração encontra-se assim presente desde os primórdios do cinema, constituindo-se em sua maior atração, conforme o termo empregado por Tom Gunning (1995). Desde os primeiros tempos, o cinema foi antropomórfico, materializando na tela imagens do corpo humano que agradavam os espectadores. A história do cinema demonstra quanto buscamos prazer ao ver o corpo humano projetado numa tela, quanto nos identificamos com esse duplo projetado. [30]

Aí se encontram elementos que ajudam a pensar as relações entre cinema e esporte. Se o corpo sempre foi a maior atração no cinema, ele também o era no âmbito da prática esportiva, destacadamente depois que o esporte passou a abandonar seu caráter pronunciado de jogo de azar, onde se destaca o remo como esporte que sucede o turfe nas preferências populares, antecedendo o enorme interesse pelo futebol. [31]

No final do século XIX, cada vez mais os corpos musculosos em movimento seriam o grande motivo de atração que conduziria os espectadores aos eventos esportivos. O esporte também era procurado pelo prazer de ver corpos “projetados” (nos gramados, campos, quadras).

Vieira nos lembra ainda que desde as origens do cinema há um denotado interesse e um bom número de filmes que representam seres superdotados. O que eram os estádios se não palcos onde seres “superiores” desafiavam os limites humanos, se aproximando de deuses? Basta lembrar como o Barão Pierre de Coubertin recuperou de maneira bastante estratégica os mitos da antiguidade grega na elaboração de sua proposta para os Jogos Olímpicos modernos. Cinema e esporte juntos celebrariam a modernidade e suas idéias de velocidade, eficiência, produtividade. E cultivariam muitos heróis.

Para a prática esportiva, a chegada da imagem foi bastante útil para a consolidação de seus elementos: heroísmo, superação, coragem, grandiosidade. A imagem foi fundamental para permitir que os “feitos esportivos” pudessem ser definitivamente registrados, preservados e exibidos em grande escala: relembrar, “to record”, o recorde como dimensão central para a continuidade da prática do esporte; é ele que permite lembrar que a necessidade de superação é constante.

Há um ponto de articulação clara entre cinema e esporte no momento de construção da sociedade moderna: “a percepção na vida moderna tornou-se uma atividade instável e o corpo do indivíduo moderno, um tema tanto de experimentação quanto de novos discursos”. [32]

Vejamos só como uma definição de cinema, de Jean Epstein, pode ser tranqüilamente utilizada para o esporte:

Epstein concebia o filme (o esporte) como uma cadeia de momentos, uma colagem de fragmentos que produzia não um fluxo uniforme de atenção, mas altos e baixos repentinos e imprevisíveis. Nesses trancos de atenção o espectador recolheria momentos de pura imersão na imagem. Para Epstein, essa fotogenia indefinível marcou a especificidade do cinema (do esporte) como uma forma de arte única da experiência moderna.[33]

A definição de Epstein tem alguns limites claros. Primeiro porque deixou de discutir adequadamente a importância do som, até mesmo porque naquele momento as películas ainda eram mudas. A invenção do cinema sonoro modificou bastante sua dinâmica e foi na ocasião motivo de grandes polêmicas. É óbvio que cinema é luz, imagem, mas nos dias de hoje não podemos esquecer do importante papel da música, da trilha, dos ruídos.

Além disso, Epstein deixa de considerar outras formas de “arte” também basicamente sedimentadas na fotogenia, como é o caso do esporte. Não é esse aspecto que vai marcar o cinema como “experiência única”, isso marcava o conjunto de linguagens, marcava uma época. Vale destacar que a espetacularização do corpo pode ser observada em muitas outras formas e locais de diversão típicos no final do século XIX, como no necrotério (uma grande atração na Paris do fim do século XIX), nos panoramas e nos museus de cera. [34]

Epstein argumentava ainda que a grande marca do cinema era sua indefinibilidade e instabilidade: sua essência dependia de sua intangibilidade e de sua capacidade de propiciar sensações, não de uma narrativa clássica. Identicamente podemos pensar no esporte: não há uma narrativa tradicional, mas um conjunto de imagens que despertam fortes emoções; imagens absolutamente intangíveis, ainda mais instáveis e indefiníveis, pois não há nenhuma forma de roteiro pré-estabelecido para seu desenvolvimento. Epstein acreditava que o cinema é basicamente movimento. Não o seria também o esporte?

Não estou com isso afirmando que esporte e cinema sejam iguais. Entretanto, mesmo se tratando de linguagens diferentes, creio que seja possível identificar entre elas muitas semelhanças, notadamente no contexto típico da modernidade. Além das já elencadas, podemos ainda pensar na organização espacial de estádios e cinemas, enquanto locais que isolam parcialmente e momentaneamente os indivíduos do “mundo real”; podemos identificar que as narrativas dos espetáculos de ambas as linguagens possuem protagonistas, antagonistas, heróis, uma seqüência inesperada de ações (embora sempre haja previsões ou suposições anteriores), perdedores e ganhadores, incentivados por um público que acredita no poder de sua influência.

Não surpreende então que, em “A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica”, Walter Benjamim tenha comparado diretamente o esporte ao cinema, argumentando que de certa maneira construíram um sentido geral de pertencimento, uma proximidade entre artistas e público, uma sensação no público de que ele pode também tomar parte e se posicionar perante o espetáculo. Afirma Benjamim:

A técnica do cinema assemelha-se à do esporte no sentido de que nos dois casos os espectadores são semi-especialistas. Basta, para nos convencermos disso, escutarmos um grupo de jovens jornaleiros, apoiados em suas bicicletas, discutindo resultados de uma competição de ciclismo. No que diz respeito ao cinema, os filmes de atualidades provam com clareza que todos têm a oportunidade de aparecer na tela. Mas isso não é tudo. Cada pessoa, hoje em dia, pode reivindicar o respeito de ser filmado. [35]

Esporte, cinema, corpo: representações

Nesse mesmo estudo, no item “Exposição perante as massas”, Benjamim dedicou ao esporte algumas linhas de reflexão. Argumenta o autor que antes mesmo do cinema e do rádio, o esporte já funcionava como fator de promoção pública, algo potencializado na modernidade, quando políticos, astros e atletas ocupam espaços similares no panteão social:

O rádio e o cinema não modificam apenas a função do intérprete profissional, mas também a função de quem se representa a si mesmo diante desses dois veículos de comunicação, como é o caso do político. O sentido dessa transformação é o mesmo no ator de cinema e no político, qualquer que seja a diferença entre suas tarefas especializadas. Seu objetivo é tornar “mostráveis”, sob certas condições sociais, determinadas ações de modo que todos possam controlá-las e compreendê-las, da mesma forma como o esporte o fizera antes, sob certas condições naturais. Esse fenômeno determina um novo processo de seleção, uma seleção diante do aparelho, do qual emergem, como vencedores, o campeão, o astro e o ditador. [36]

Ao comentar tal ensaio, Alexandre Fernandes Vaz afirma:

(…) é curioso, mas de forma nenhum inusitado o aparecimento do esporte como exemplar fenômeno que interessa à arqueologia de uma modernidade e suas expressões: à direita, com o fascismo, à esquerda, com o comunismo, ambos enredados com as novas condições de reprodução, inclusive e principalmente do material artístico. [37]

Quais papéis esporte e cinema ocupam na indústria do lazer e do entretenimento? Como têm se constituído enquanto espetáculos que possuem similaridades e como compõe uma sociedade onde o espetáculo é valorizado? As possibilidades técnicas de reprodutibilidade marcam o estabelecimento de uma nova relação dos indivíduos e da sociedade para com as obras de arte e com as diversas linguagens como um todo, algo que envolve profundamente tanto o cinema quanto o esporte.

Ao construir suas reflexões sobre a construção do que chama “sociedade do espetáculo”, Guy Debord identifica que o espetáculo constitui-se em um modelo dominante na sociedade. Assim sendo: “o espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social, mediada por imagens”. [38] O autor acredita que se cria uma idéia de que a realidade aparece no espetáculo e de que o espetáculo é o real.

Nada mais adequado para pensarmos em cinema e esporte. Ambos se constituem em verdadeiros simulacros de realidade, mesmo que estejam efetivamente longe da concretude da vida. Jean-Claude Carrière [39] procura demonstrar, dando exemplos em diversos filmes, o quanto o cinema cria uma realidade que não condiz com o real, mas que é assim encarada em função de uma rede de imagens por demais densa, que nos cerca de maneira muito intricada, estimulando uma certa indolência e sonolência.

Mesmo que permaneçam ativos os indivíduos, não me parece possível negar a força das imagens em um mundo que transitou do “ser” para o “ter” e rapidamente avança para o “parecer”: “o espetáculo, como tendência a fazer ver (por diferentes mediações especializadas) o mundo que já não se pode tocar diretamente, serve-se da visão como o sentido privilegiado da pessoa humana”. [40]

A utilização de imagens e a entrada do esporte nos lares por meio da televisão trazem ainda uma questão que deve ser cuidadosamente considerada: a potencialização do consumo. Se tivermos em conta o número de patrocinadores que a todo instante ocupam as transmissões esportivas, podemos fazer um paralelo com o papel que os catálogos de venda em domicílio ocuparam no início do século XX:

O catálogo como uma forma de esfera pública estava especificamente atado à mercantilização – ele chegava aos lares de sujeitos isolados, e, ao inspirar uma articulação de desejo, os tornava consumidores. Ao serem representados metonicamente por seus formulários de pedido, eram impelidos para uma arena mais ampla de consumo. [41]

O principal é que possamos compreender que cinema e esporte constituem-se em poderosas representações de valores e desejos que permeiam o imaginário do século XX: a superação de limites, o extremo de determinadas situações (comuns em um século onde a tensão e a violência foram constantes), a valorização da tecnologia, a consolidação de identidades nacionais, a busca de uma emoção controlada, o exaltar de um certo conceito de beleza, tudo isso esteve constantemente presente nos filmes e nas competições organizadas no decorrer do século que passou, e por certo continuará presente neste que começa.

Rick Altman adequadamente situa as relações e os papéis ocupados por esporte e cinema na consolidação de imaginários no decorrer do século XX, já que suas “celebridades” de alguma forma conseguem ultrapassar as fronteiras de classes e permitem que o contato visual (imagem) substitua a presença física:

Em uma sociedad capitalista, los consumidores no se limitan a aceptar lo que se les ofrece. Su elección de productos es uma fuente de placer, orgullo e incluso de identidad. De ahí que los géneros, los deportes y las estrellas ocupen um lugar tan destacado em el firmamento del siglo XX. Todo su poder emana de los usuarios, que necesitan la identidad – aunque sea imaginaria – que estos fenômenos proporcionan. [42]

José Luiz Ruiz bem resume as confluências entre esporte e cinema:

El deportista seduce la imaginacion de las sociedades modernas – cuya máxima expresión es el Cine – porque proporciona una versión actualizada del héroe clásico, capaz de suplantar al caballero medieval, al héroe bélico e incluson al incontrolable aventurero moderno, reconvertido y civilizado, acotándole un campo de riesgo controlado. Si el Cine es la transfiguración tecnológica moderna de las artes plásticas clásicas – la Escultura, la Pintura – y es capaz de integrar casi todas la demás, el Deporte es el más plástico (y por lo tanto cinemático) de los juegos/inventos sociales del hombre contemporáneo (…). Y, al tiempo – como sabe bien la fórmula Hollywood , el Cine tiene que emocionar y divertir. Pues bien, nada en el mundo se mueve tanto, emociona tanto y divierte tanto (a millones) como el Deporte. Excepto el Cine. Los dos, Cine y Deporte, aunque capaces también de alienarnos y volvernos contra nostros mismos, como toda actividad que se desnaturaliza, son el mejor ejercicio, imaginário y real, respectivamente, que hemos inventado para encontrar y ampliar nuestra propia medida humana. [43]

Vejamos como Charney e Schwartz se referem ao cinema no contexto da modernidade, uma definição que poderia ser sem problema algum aplicada ao esporte:

Tratava-se de um produto comercial que era também uma técnica de mobilidade e efemeridade. Foi uma conseqüência e uma parte vital da cultura urbana que se dirigia a seus espectadores como membros de um público de massa coletivo e potencialmente indiferenciado. Era uma forma de representação que foi além do impressionismo e da fotografia, encenando movimentos reais (…). Era uma tecnologia destinada a provocar respostas visuais, sensuais e cognitivas nos espectadores que estavam começando a se acostumar aos ataques de estimulação.[44]

Enfim, esporte e cinema ao mesmo tempo em que expressam representações, princípios, sentidos e significados constantes no século XX, também foram fundamentais na consolidação destes. Isso se exponencia quando relembramos o espaço que ocupam na vida cotidiana de grande parte da população.

É importante lembrar do importante papel que hoje ocupam alguns atletas, tanto quanto atores e atrizes, como, por exemplo, Ronaldo Nazário (Ronaldinho) e Michael Schumacher, que receberam até mesmo o título de embaixadores da ONU e da UNESCO, tal a sua penetrabilidade nos mais diferentes países. Aliás, ainda falando do poder de penetração do esporte, curiosamente há mais países filiados à FIFA e ao COI do que à ONU.

Considerados como celebridades, não surpreende, por exemplo, que Pelé e Muhamed Ali tenho sido fotografados por Andy Warhol em sua célebre série “Polaróides”. A forte presença social e o aspecto plástico do esporte têm sido constantemente explorados em propagandas (de produtos esportivos ou não) e já chamou a atenção de muitos artistas, das mais diferentes linguagens.

O esporte já foi tematizado por artistas plásticos (como Rubem Gerschman, Cândido Portinari), literatos (como Machado de Assis, Arthur Azevedo, Raul Pompéia, Carlos Drummond de Andrade, Paulo Mendes Campos), músicos (como Noel Rosa, Geraldo Pereira, Chico Buarque, Pixinguinha, entre muitos outros exemplos, nos mais diferentes ritmos), dramaturgos (Oduvaldo Viana) e por cineastas (Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Oswaldo Caldeira).

Alguns dados à guisa de conclusão

Com tantos pontos de contato, não surpreende que tantos filmes tenham sido produzidos tendo o esporte como tema. Desde os primórdios do cinema, ainda quando as iniciativas documentais superavam as ficcionais, as emoções desencadeadas pelas competições esportivas já eram captadas pelas lentes das primeiras câmeras. O esporte esteve mesmo de alguma forma envolvido no desenvolvimento técnico anterior à exibição da primeira sessão pública de um filme. [45]

Estima-se que mundialmente cerca de 4000 filmes já tenham sido produzidos dedicados ao esporte, alguns ocupando espaço importante na história cinematográfica:

Ora, o cinema – como imagem em movimento que exclui e inclui, potencializa o olho humano, que educa os sentidos para a experiência moderna, como afirma Benjamim – não poderia prescindir do movimento corporal como um de seus privilegiados temas (…) À potencialização do corpo corresponde a potencialização da imagem. [46]

Inicialmente, o esporte era filmado por ser mais uma das práticas comuns no gosto popular. Por isso identificamos tanto o boxe sendo tematizado nos primórdios do cinema norte-americano, nosnickelodeon, muito procurados notadamente pelos imigrantes e membros da classe trabalhadora daquele país.

Lembra-nos Cohen: “A exemplo do que ocorre com os gêneros cotidianos do século XIX, os primeiros curtas-metragens denotam o verdadeiro fascínio pela vida cotidiana” [47] . O novo mundo era exibido nas telas que ocupavam as feiras e lojas abertas nas novas cidades cada vez maiores, e dele fazia parte o esporte, notadamente o boxe, um dos símbolos culturais norte-americanos.

Posteriormente, contudo, sem que deixasse de ser encarado como divertimento do homem comum, o tema, compreendido enquanto símbolo de progresso passa a ser inserido em preocupações de cunho nacionalista (ligadas à construção de identidades, algo bastante notável nos Estados Unidos e na Alemanha no período do nazismo), envolvido com formulações de cunho moral (notável na realidade norte-americana e européia) ou encarado como estratégia de formação política (identificável claramente nas iniciativas de cinema operário realizadas no período da República de Weimar, Alemanha). Ora era tratado a partir de uma perspectiva progressista, como em “Kuhle Wampe ou A quem pertence o mundo?”, filme cujo roteiro esteve sob a responsabilidade de Bertold Brecht, ora do ponto de vista conservador, como em “Olympia”, de Leni Riefensthal. [48]

No decorrer dessa longa relação, podemos identificar atores que também eram atletas e participavam de competições esportivas; atores representando papéis de atletas, técnicos e/ou dirigentes; atletas que se tornaram atores ou representaram papéis em filmes; e muitos foram os cineastas que incorporaram o esporte em suas produções.

Houve também muitas inovações cinematográficas, tanto técnicas quanto artísticas (fatores certamente articulados), desenvolvidas a partir da necessidade de melhor captar as peculiaridades do esporte, como, por exemplo, o tamanho da película (no caso dos pioneiros filmes de boxe) e em casos de tomadas de planos originais (onde podemos citar as experiências de Leni Riefenstahl e mesmo de Joaquim Pedro de Andrade, em “Garrincha, Alegria do Povo”). [49]

As primeiras imagens cinematográficas brasileiras onde aparece o esporte podem ser encontradas já no final do século XIX. Inicialmente eram curta-metragens e cenas em cine-jornais [50] . No que se refere à longa-metragens nacionais, identificamos que em 62 filmes o esporte é o tema central ou ocupa lugar de grande importância como pano de fundo, em 64 ocupa um importante espaço e em 77 é de alguma forma citado, mesmo não sendo central: um total de 203 filmes. [51]

Entre tais películas, mais de 100 tem cenas dedicadas ao futebol, esporte de maior popularidade no Brasil. Destacam-se também o surfe (8 filmes), o automobilismo (8 filmes) e o turfe (8 filmes). Também foram retratados o atletismo, o boxe, a capoeira, o judô, a natação, o remo, o rodeio, o tênis, entre outros.

Os estilos dos filmes são os mais variados: documentários, dramas, aventura, comédia, desenho animado e até filmes de sexo explícito. Entre os cineastas, alguns podem ser destacados: Antônio Calmon, Antônio Carlos Fontoura, Anselmo Duarte, David Neves, Eduardo Escorel, Humberto Mauro, Joaquim Pedro de Andrade, Oswaldo Caldeira, Nélson Pereira dos Santos, Paulo César Saraceni, Roberto Farias, Ugo Giorgetti.

Esses dados são importantes indicadores, contudo, mais do que ver o esporte como tema, interessa-nos mesmo as similaridades das linguagens. Assim, concluo este artigo com uma citação de Leo Charney sobre o papel do cinema na modernidade. Tomo a liberdade de, entre parênteses, colocar a palavra esporte, para expressar minha sensação de que este não foi menos importante do que aquele no forjar dos modus vivendis da modernidade:

Acima de tudo foi essa forma de experiência em movimento que ligou a experiência do cinema (do esporte) à experiência da vida diária da modernidade. A experiência do cinema (do esporte) refletiu a experiência epistemológica mais ampla da modernidade. Os sujeitos modernos (re)descobriram seus lugares como divisores entre passado e futuro ao (re)experimentar essa condição como espectadores de cinema (de esporte). Passado e futuro confrontaram-se não em uma zona hipotética, mas no terreno do corpo. Essa alienação fundamentou-se e surgiu da aspiração moderna para apreender momentos fugazes de sensação como uma proteção contra sua remoção inexorável. A busca para localizar um instante fixo de sensação dentro do corpo jamais poderia ser bem-sucedida.[52]

*Victor Melo é Professor do Programa de Pós-Graduação em História Comparada/IFCS e da Escola de Educação Física e Desportos. Coordena o Projeto “Esporte e Arte: Diálogos”. Pesquisador do Programa Avançado de Cultura Contemporânea. Bolsista de Produtividade em Pesquisa/CNPq. Publicou Futebol por todo o mundo: diálogos com o cinema. FGV, 2006 e O esporte vai ao cinema. Senac Nacional, 2005, entre outros.

NOTAS


[1] Este estudo foi realizado como parte da pesquisa “Representações do Esporte no Cinema Brasileiro”, realizada com incentivos do Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq) e da Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). Tal pesquisa foi desenvolvida no Programa de Pós-Doutorado do Programa Avançado de Cultura Contemporânea/UFRJ.

[2] RUIZ, José Luis. La unión de dos ofertas culturales del siglo XX. Sevilha. 2002. Disponível em:http://www.festivaldesevilla.com.

[3] MURAD, Maurício. “Futebol e cinema no Brasil 1908/1998”. In: COSTA, Márcia Regina da e colaboradores. Futebol: espetáculo do século. São Paulo: Musa Editora, 1999. P. 7

[4] RODRIGUES, José Carlos. O negro brasileiro e o cinema. Rio de Janeiro: Pallas, 2001.

[5] MORENO, Antônio. A personagem homossexual no cinema brasileiro. Rio de Janeiro: Eduff/Funarte, 2002.

[6] CCBB. Miragens do Sertão. Rio de Janeiro: CCBB, 2002.

[7] KAPLAN, E. A mulher e o cinema: os dois lados da câmera. Rio de Janeiro: Rocco, 1995.

[8] JEU, Bernard. Analyse du Sport. Paris: PUF, 1992. P. 20.

[9] CARRIÈRE, Jean-Claude. A linguagem secreta do cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995. P. 114.

[10] CHARNEY, Leo; SCHWARTZ, Vanessa (orgs.). O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac & Naify Edições, 2001.

[11] JEU, Bernard. Op.cit. 21.

[12] COHEN, Margareth. “A literatura panorâmica e a invenção dos gêneros cotidianos”. In: CHARNEY, Leo; SCHWARTZ, Vanessa (orgs.). Op.cit.P. 315.

[13] ASCANI, Franco. Olympic Games and the cinema. Atenas: Mimeo, 1996.

[14] BOURDIEU, Pierre. “Como é possível ser esportivo?” In: Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1993.

[15] MANNONI, Laurent. A grande arte da luz e da sombra. São Paulo: Senac/Editora Unesp, 2003.

[16] CHARNEY, Leo, SCHWARTZ, Vanessa (orgs.). Op.cit. P. 20.

[17] VERHAGEN, Marcus. “O cartaz na Paris fim-de-século: ‘aquela arte volúvel e degenerada'”. In: CHARNEY, Leo; SCHWARTZ, Vanessa (orgs.). Op.cit.

[18] VIEIRA, João Luiz. “Anatomias do visível: cinema, corpo e a máquina da ficção científica”. In: NOVAES, Adauto (org.). O homem-máquina: a ciência manipula o corpo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

[19] Idem. Ibidem. P. 319.

[20] RODRIGUES, Nélson. À sombra das chuteiras imortais: crônicas de futebol. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. P.90. Crônica publicada no jornal O Globo de 14 de junho de 1962.

[21] Vale destacar o uso do termo paciente. Segundo o dicionário, uma das definições é: “resignado, conformado”. É um termo bastante relacionado à passividade.

[22] SEVCENKO, Nicolau. “A capital irradiante: técnica, ritmos e ritos do Rio”. In: Idem.(org.). História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. V.3.

[23] Este posicionamento de Brecht está relacionado ao seu entendimento da relação sujeito-objeto no teatro e sua proposta de abandono de uma compreensão em que o público é considerado passivo enquanto o espetáculo é ativo.

[24] BORNHEIM, Gerd. Brecht: a estética do teatro. Rio de Janeiro: Graal, 1992. P. 72. As palavras entre aspas são citações do próprio Brecht.

[25] BOURDIEU, Pierre. Op.cit. P. 145.

[26] RODRIGUES, Nélson. À sombra das chuteiras imortais: crônicas de futebol. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. P. 9. Crônica “Flamengo Sessentão”, publicada em Manchete Esportiva de 26 de novembro de 1955.

[27] HANSEN, Mirian Bratu. “Estados Unidos, Paris, Alpes: Kracauer (e Benjamim) sobre o cinema e a modernidade”. In: CHARNEY, Leo; SCHWARTZ, Vanessa (orgs.). Op. Cit. P. 502.

[28] CHARNEY, Leo. “Num instante: o cinema e a filosofia da modernidade”. In: CHARNEY, Leo; SCHWARTZ, Vanessa (orgs.). O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac & Naify Edições, 2001. P. 286.

[29] VIEIRA, João Luiz. “Anatomias do visível: cinema, corpo e a máquina da ficção científica”. In: NOVAES, Adauto (org.). Op.cit. P. 322.

[30] Idem, Ibidem, p. 324.

[31] MELO, Victor Andrade de. Cidade Sportiva. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2001.

[32] CHARNEY, Leo. Op.cit. P. 21.

[33] Idem, Ibidem, p. 395. As observações entre parênteses são de minha autoria.

[34] Idem, Ibidem, p. 456.

[35] As versões em português mais conhecidas deste texto podem ser encontradas no livro de José Lino Grunnewald (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1966) e na coleção Os pensadores (Abril Cultural). Trata-se da segunda versão do artigo escrita por Benjamim. Neste livro, trabalhei com a primeira versão do artigo, disponível em: http://www.virginiagil.hpg.ig.com.br/Benjamin(HR).htm

[36] Idem. Ibidem.

[37] VAZ, Alexandre Fernandes. Esporte e modernidade: notas sobre crítica escritura histórica em Walter Benjamim. Lecturas – Revista Digital, Buenos Aires, ano 5, n.26, 2000. Disponível em: www.efdeportes.com
Vaz informa que Benjamim chegou a tecer comentários sobre o esporte e sobre os Jogos Olímpicos nas notas preparatórias deste importante estudo, não desenvolvidas, contudo, nas suas duas versões finais.

[38] DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. P. 14.

[39] CARRIÈRE, Jean-Claude. A linguagem secreta do cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.

[40] DEBORD, Guy. Op.cit. p.22.

[41] KELLER, Alexandra. “Disseminações da modernidade: representação e desejo do consumidor nos primeiros catálogos de venda por correspondência”. In: CHARNEY, Leo; SCHWARTZ, Vanessa (orgs.). Op.cit.P. 234.

[42] ALTMAN, Rick. Los géneros cinematográficos. Barcelona: Paidós Comunicación, 2000. P. 258.

[43] RUIZ, José Luis. Op. Cit.

[44] CHARNEY, Leo. Op. cit. p. 31.

[45] MELO, Victor Andrade de. Esporte e cinema: diálogos. Rio de Janeiro: UFRJ, 2004. Relatório de Pesquisa (Pós-Doutorado em Estudos Culturais). Disponível em www.ceme.eefd.ufrj.br/cinema.

[46] VAZ, Alexandre Fernandes. Esporte e modernidade: notas sobre crítica escritura histórica em Walter Benjamim. Lecturas – Revista Digital, Buenos Aires, ano 5, n.26, 2000. Disponível em: www.efdeportes.com

[47] COHEN, Margareth. “A literatura panorâmica e a invenção dos gêneros cotidianos”. In: CHARNEY, Leo; SCHWARTZ, Vanessa (orgs.). Op.cit. P. 341.

[48] MELO, Victor Andrade de; PERES, Fabio de Faria. O esporte vai ao cinema. Rio de Janeiro: Editora Senac, 2005.

[49] MELO, Victor Andrade de. Esporte e cinema: diálogos. Op. Cit.

[50] Uma lista das imagens pioneiras pode ser encontrada em www.lazer.eefd.ufrj.br/esportearte.

[51] A lista completa desses filmes pode ser encontrada em www.lazer.eefd.ufrj.br/esportearte.

[52] CHARNEY, Leo. Op. Cit. P. 405.

 

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Erotismo é isso, pornografia é aquilo? | de Nízia Villaça*

Sexo é uma selva de epilépticos”
Arnaldo Jabor

O jogo de oposições entre sexo e amor, que Jabor refere em sua crônica e é musicado por Rita Lee, poderia ser parodiado a propósito das distinções/relações entre pornografia e erotismo. As fronteiras, nestes campos, parecem bem mais complexas, como se pode observar em textos teóricos, artísticos e midiáticos.

Tal dificuldade fica patente em lançamento recente de dicionário pornográfico sob a direção de Philippe di Folco[1]. Comenta o resenhista do livro, Patrick Kéchichian[2], que a pornografia apenas recentemente, há uns dez anos mais precisamente, passou a ser considerada como um tema de estudos. Os objetos e práticas pornográficas, ligados a mecanismos de perversão, certamente, não eram, novos ou inéditos, o que evoluiu foi a visibilidade, a publicidade e uma certa banalização dessas práticas. Diversos artigos compõem o dicionário na busca de usos exóticos da sexualidade em viagens que vão da China à Índia, do Japão à Escandinávia.

Voyeur Saló - Os 120 dias de Sodoma de Pier Paolo Pasolini extraído de EntreLivros, ano 1, nº 12

Objeto questionável, verdadeira armadilha lexicográfica, a pornografia parece alimentar-se de todas as contradições a seu respeito. Com efeito, colocar diante de si objetos e pensamentos de intensidades diversas, que nos são interiores, e examiná-los tranqüilamente é problemático. A pornografia apresenta-se mais como “um ponto de vista”, segundo a opinião de um dos articulistas. A característica de mapeamento do dicionário aponta a amplitude do campo e nossa sede de compreensão desta palavra, cuja etimologia grega alude à prostituição e à escritura, ou seja, comércio por um lado e a uma corrente de signos substitutivos do real, por outro. Sem dúvida, a sociedade do espetáculo atual, em seu viés, neoliberal e competitivo, parece tudo querer mostrar, tudo tornar público e isto explica, em parte, a tendência da passagem do segredo erótico à obscenidade pornográfica, questões que vêm sendo discutidas a propósito da temática.

Recente matéria na Folha de S. Paulo comenta a pesquisa da jornalista americana Ariel Levy sobre sexualidade para consumo e a obsessão feminina em parecer estrela pornô. Para a pesquisadora, no pós-feminismo, e nós diríamos também no pós-pornográfico, as mulheres imitam a pornografia: “hoje, as pessoas não têm vergonha de consumir, elas são descaradamente capitalistas, não há resistência ideológica”[3]. Reduz-se a sexualidade a algo que se pode comercializar, seja sob a forma de implantes de silicone, fio-dental de poliéster, venda real de sexo, como na prostituição, pornografia ou strip-tease. Constrói-se gradativamente uma semiologia do travestimento, atrelada à busca de lucro e visibilidade.

Travestismo pornô Jovem americana se exibe em concurso de camiseta molhada. extraído de Folha de São Paulo, 14/11/2005

Entre nós, os recursos teatrais de Tiazinha, corpo-fetiche da mídia contemporânea, bem como a lógica das casas de encontro, exprimem posturas bastante diversas do comportamento dos libertinos, tal como foi explorado e discutido por Bataille, Sade, Sacher-Masoch ou Krafft-Ebing. Nestes últimos, predomina a sexualidade elaborada, lentidão, contratos e nexos político-existenciais, distintos do ludismo superficial ou das escolhas consumistas de novas práticas de servidão, espancamento das lúdicas casas de sexo, etc. São exemplares as matérias publicadas sobre a mercantilização do corpo da atriz sadomasoque Suzana Alves, a Tiazinha. Uma das reportagens falava sobre o “promissor mercado do sofrimento”, apontando o nivelamento superficial que se instalava entre o velar e o desvelar: “escondendo o rosto e revelando peças típicas do sadomasoquismo – o chicote, a máscara e o espartilho –, Suzana Alves (mencionava) e esvaziava, simultaneamente, o obscuro universo de fetiche que cercava o sadomasô”.[4]

Paradoxalmente, Tiazinha, “a delicada sadomasoquista”, a esta altura, ocupava um lugar no imaginário de nove entre dez adolescentes, sendo reproduzida nos objetos infantis os mais diversos. Comentava Luís Fernando Veríssimo: “o Brasil conseguiu outra façanha inédita no mundo: inventou o sadomasoquismo sem maldade”.[5] Aludia Veríssimo a traço da cultura brasileira que separa o símbolo ou talvez, melhor, o signo de seu referente, sugerindo uma tendência fetichista de nossa cultura, ou seja, fazer circular significantes vazios de forma sacralizada.

Recentemente, em sintonia, com a publicização da vida privada, com o show da realidade em que se transforma o cotidiano, a pornografia ocupa um crescente espaço como demonstram títulos de livros recentes como Os florais perversos de Madame de Sade, de Ruth Barros, Marcos Gomes e Heloisa Campos ou O alfabeto da devassa, de Luiz Roberto Nascimento Silva, ambos da Editora Rocco.

Na atualidade, os diversos tons da sexualidade se misturam sempre mais com a diversidade de apelos dos novos suportes midiáticos. Depois do “lesbian chic”, das conotações homoeróticas e do vale-tudo sexual na comunicação das marcas, nos últimos 10 anos, que novos imaginários e sexo pode investir? Em outras palavras, quais os comportamentos que informam novas tendências no mais atemporal dos prazeres humanos, ao lado da alimentação? Investigando sobre o tema, a última revista ViewPoint (www.view-publications.com) lança o “new burlesque”, tendência guarda-chuva, sintoma da “idade do excesso” com um forte perfume decadentista. No coquetel contemporâneo, a revista identifica um exercício do sexo que resgata o divertimento, a emoção e o (verdadeiro) prazer dos sentidos. Ao invés de pornografia, o “show off”. Sinais dessa nova sensibilidade aparecem em alguns sites[6].

Seguindo esta linha mais sutil, canal que até bem pouco tempo atrás era discriminado dentro da própria Globosat (empresa da Globo que o empacota) e que até hoje não tem seu logotipo no site da programadora, o Sexy Hot virou “cult” e foi parar na academia. Sua equipe, composta majoritariamente por mulheres, usa “filtros de gênero” e persegue cotidianamente essa sintonia fina entre a busca da excitação de uns e os limites do aceitável e do gosto médio das mulheres. O caso do Sexy Hot é interessante. Há um programa voltado para a mulher, o “Boa de Cama”, que não usa termos agressivos, como “cachorra”, comenta a socióloga Bianca Freire-Medeiros. Segundo ela, a mulher o consome como “preliminar” do ato sexual com o parceiro, preferindo, filmes com “conteúdo”, que tenham história e não apenas genitálias.[7]

Por outro lado, histórias em quadrinhos são lançadas em formato pornô, reproduzindo as famosas “Tijuana-Bibles”, publicadas ilegalmente nos Estados Unidos entre 30 e 50 e resgatando os famosos catecismos de sexo explícito de Carlos Zéfiro. Por exemplo, o espinafre do velho marinheiro Popeye, quem diria, dá força descomunal a outras partes do corpo, além de braços e pernas, agindo como um precursor do Viagra.

Nos museus e nos quadrinhos Estatueta de cerâmica nepalense Museu Erótico de Madri. extraído de O Globo, 15/02/2001 Gullivera de Milo Manara extraído de Folha de São Paulo, 10/04/2006

Uma série de quatro documentários sobre o sexo no cinema brasileiro entre as décadas de 70 e 80 (a comédia erótica, a pornochanchada e os filmes de sexo explícito) será produzida pelo Canal Brasil tendo em vista o sucesso da temática junto ao público do programa “Como era gostoso meu cinema”, exibido no Canal a partir de 0h30m.

A cena pornô O ator David Crdoso, no galpão do seu sítio. extraído de Folha de São Paulo, 15/01/2006

A discussão das fronteiras entre pornografia e erotismo, normalidade e abjeção, prossegue. Confusões entre as áreas evoluem de forma inacreditável com o auxílio das novas tecnologias. Morte e pornografia viram manchete quando soldados americanos enviam fotos de cadáveres iraquianos a sites de conteúdos explícitos, obtendo acesso gratuito ao material pornográfico especializado em fotos eróticas amadoras. Comenta o correspondente especial, Dorrit Harazim, que não se tem notícias de escambo semelhante em guerras passadas.

A civilização ocidental se desenvolveu a partir da dicotomia do mesmo e do diferente, procurou uma verdade transcendental que balizasse seus referentes, garantindo uma epistemologia fundada nos princípios de perfeição, estabilidade, permanência, unidade e racionalidade. A partir de tal modelo, construiu-se um corpo ideal em oposição a um corpo monstruoso ou abjeto, uma sexualidade normal vs a pornografia.

Nus Anita Malfatti Academia VIII, 1916. Alair Gomes detalhe de Tripítico praia nº 25, 1985. extraídos de "Erotica. Os sentidos na arte.", 2005

A situação certamente vai se distanciando da época em que havia grande preocupação em classificar o pornográfico pela classe dominante no controle de outros grupos. A pornografia parece ter sido, sobretudo, a partir do século XIX, conceito usado “para monitorar e rotular a conduta moral de determinados setores da população” para evitar que se distraíssem das obrigações pátrias perdendo a razão, a objetividade e a disciplina[8].

A nomeação do monstro ou do abjeto era um poderoso aliado do que Foucault chamou de sociedade panóptica, na qual comportamentos polimorfos eram extraídos do corpo dos homens mediante múltiplos dispositivos de poder. Apontar a monstruosidade no outro aliviava a ameaça interna que é co-estruturante do homem, sua finitude, sua imanência.[9]

Paradoxalmente, no contemporâneo, não se tem medo da pornografia e ela é assumida como estandarte por inúmeras pós-feministas que contam em detalhes, sobretudo em “blogs”, suas vidas sexuais. É como se a pornografia fosse uma espécie de fachada sem fundo, aparências que deslizam e se afastam do segredo e da transgressão erótica.

Efeitos eróticos e pornográficos na literatura

O sujeito vem perdendo, hoje, seu “pathos” autoritário, sua referencialidade, estabilidade e controle sobre o objeto, assumindo a etimologia de “subjectum”, assujeitado.
Diminui, sensivelmente, a distância ótima que facultava o discernimento, a classificação e os expurgos efetuados pelos mecanismos da consciência. A tradição filosófica racionalista entra definitivamente em crise com autores como Foucault, Derrida, Deleuze que radicalizaram as tarefas realizadas por Freud, Nietzsche e Marx. O descentramento do sujeito, sua sobredeterminação, sua complexidade são discutidos.[10] Ora, como bem acentua Henri-Pierre Jeudy[11], a partir de Nietzsche, o corpo pensa na imanência mais radical e a representação desta atividade pela consciência corresponde apenas a uma pequena razão, mais grosseira que o pensamento necessário ao nosso organismo. O corpo como irrepresentável impõe, para além de nossa consciência e a despeito dela, sua própria razão expressa, por vezes, em signos e sintomas julgados patológicos, abjetos. É na linha desta perda de controle da subjetividade cartesiana, construída com tanto apreço, que buscamos pensar o pornográfico na literatura paralelamente a publicidade estilo pornô na sociedade do espetáculo.

Em seu artigo sobre a imaginação pornográfica, Susan Sontag[12] fala de três aspectos considerados a propósito do tema: a visão sócio-histórica, a questão psico-sexual e o enfoque artístico. A autora busca livrar o registro artístico da condenação moral de que foi alvo como o provaram processos judiciais contra as obras de James Joyce, D. H. Lawrence, Nelson Rodrigues ou Rubem Fonseca, questionando as justificativas anglo-americanas sobre a diferença de construção e codificação da literatura erótica em relação à pornográfica. Esta última seria mais objetiva, visando a excitação do leitor, seria gratuita e descontextuada, descuidada com a linguagem, meramente instrumental implicando desprezo pela relação entre pessoas, atenta às transações infatigáveis e imotivadas de órgãos despersonalizados. Ora, tais “defeitos estéticos” podem eventualmente funcionar como recurso determinante da coerência literária no diálogo com o contexto de determinada época.

Literatura e pornografia não são antitéticas e a matéria da arte é a variedade de formas de consciência propostas. A escala humana da “conduta normal” parece mal colocada quando se aplica à arte. Um dos meios de fascinação do artista contemporâneo é avançar na dialética do ultraje. O artista moderno é um “corretor da loucura” já que sua autoridade dependerá da consciência do público. Tal arte não pode ser realista e, na realidade, aproxima-se da ficção científica. A pornografia seria um dos ramos da literatura – ao lado da ficção científica – voltados para a desorientação e o deslocamento psíquico. Por outro lado, o uso de obsessões sexuais como tema da literatura assemelha-se ao uso de um tema literário cuja validade bem poucas pessoas contestariam: as obsessões religiosas.

A Sacher-Masoch desagradaria ver seu romance Vênus de peles integrando um quadro de sexualidade patológica, justamente porque, conforme ressaltou Deleuze[13], sua obra discutia a possibilidade de transcender o humano, sua contingência, por meio do desvelamento artístico. O processo compreendia lentidão, silêncio, concentração, características comuns à arte e ao erotismo.

Contra a velocidade, como forma de êxtase presenteada pela revolução técnica, Kundera, por sua vez, opôs a lentidão e seu valor erótico. É sugestiva passagem em que se refere a uma jovem americana que discursa sobre a liberação sexual, repetindo a palavra “orgasmo” 43 vezes. Comenta o autor: “o culto do orgasmo: o utilitarismo puritano projetado na vida sexual; a eficácia contra o ócio […]”[14]. As pessoas, segundo ele, na sua maioria desconhecem o encantamento. Empobrecem de tanto falar, de se ativar. Desdenha-se o esforço que vem de dentro, a esperança das metamorfoses e da espera.[15]

Autores como Sade, Bataille e outros, trabalham a fronteira do erotismo com a vida e a morte. O pensamento trágico de Bataille aponta as ilusões do humanismo numa estética que pretende descer ao inesgotável segredo do corpo. Sade é fonte de inspiração.

Nesta linha, é importante pensar o corpo fantasmático, proposto por Freud, contra as interpretações biológico-comportamentais. O corpo é linguagem atravessada por fantasmas e constituído, basicamente, por uma sexualidade auto-erótica que, posteriormente e secundariamente, cria a ficção de uma unidade, um ideal de “eu”. Corpo é desejo que inclui mesmo aqueles contra a auto-preservação. Eros é pulsão de vida e de morte, e assim foi pensado na literatura erótica.

A literatura que se desdobra no eixo do erotismo, assim como no da abjeção pornográfica, articula um ir além do normalizado, do real, do estereotipado e do crível e desafia as fronteiras com a matéria, a animalidade e o artifício, como bem sublinha Eliane Robert Moraes[16]. Para João Silvério Trevisan[17], a literatura é a arte do desequilíbrio sempre renovado.

Os materiais das obras pornográficas tidas como literatura são, precisamente, uma das formas extremas de consciência humana. Sem dúvida, muitas pessoas concordariam que a consciência sexualmente obcecada pode, em princípio, ingressar na literatura como forma de arte. Mas, em seguida, elas comumente acrescentam uma cláusula ao acordo, que na prática acaba por anulá-lo. Exigem que o autor tenha a adequada “distância” de suas obsessões para que possam considerá-las literatura. Tal padrão é mera hipocrisia, revelando, mais uma vez, que os valores usualmente aplicados à pornografia são, afinal, os pertencentes à psiquiatria e aos estudos sociais, mais que à arte.[18]

O que faz de uma obra de pornografia parte da história da arte, ao invés de pura escória, não é a distância, a superposição de uma consciência mais conformável à da realidade comum sobre a “consciência desordenada” do eroticamente obcecado. Em vez disso, é a originalidade, a integridade, a autenticidade e o poder dessa própria consciência insana.[19]

O importante na literatura é, certamente, sua estruturação simbólica, sua literariedade. É ela que transforma as cenas detalhadas de perversão sexual da História do olho, de Georges Bataille[20], em exemplo máximo de literatura erótica. Eliane Robert Moraes, em prefácio à tradução brasileira[21], comenta que a objetividade da narrativa contrasta com o caráter insólito das fantasias, criando correspondências cósmicas e uma sucessão de metáforas inesperadas do olho que se desdobram em cenário fantástico.

A propósito da relação entre desejo, escrita e visual, Massimo Canevacci[22] fala de uma eróptica em que a racionalidade do olhar se transforma em “tornar-se olho”. “O olho, em seu fazer-se olhar, não tem nada de natural, contudo ele se desloca para novas interzonas fluidas – colíricas – de “comunicacionalidade” fetichista. O olho não é mais apenas o instrumento sensorial do “voyeur”, mas órgão reflexivo que se torna ele mesmo fetiche”. O autor sublinha a importância do olho participante, erotizado, absorvedor e narra o percurso do olho discriminante ao olho destronado de seu poder espiritual, em direção ao olho contaminado, liberado da civilidade de seu poder purificador e metafísico. Bataille[23] e Bellmer[24] são alguns dos autores por meio dos quais Canevacci pensa a multiplicidade, o polissensorial do ir além do corpo. Por outro lado, critica Deleuze & Guattari[25]: quando em Mil platos, enrijecem as categorias das chamadas “perversões”, em suas várias tipologias corpóreas: masoquista, drogado, paranóico etc. Na sua ótica, CsO não é a multiplicidade do eu: é a sua subtração zeradora. “O CsO destrói qualquer significante/significado, subjetividade, organismo”.[26]

A pornografia faria parte de recursos que visam a explorar a dinâmica corpo/mente, dominação/minoria, consciente/inconsciente, inscreve-se num quadro de apropriação/desapropriação corporal. O corpo e seus vários eus, ainda segundo Canevacci, constróem uma eróptica como percepção dilatada pelo desejo que percorre o inédito, o obscuro, o marginal, costura carne e espírito.[27]

O segredo erótico

Na introdução ao livro Intimidades [28], composto por dez contos eróticos de escritoras brasileiras e portuguesas, Luisa Coelho reflete sobre a relação erotismo, pornografia e literatura. Obviamente, apontando para a variação dos conceitos no decorrer da história, a organizadora da coletânea considera pornográfico o discurso em que a descrição das partes do corpo, do ato sexual, bem como o intuito explícito de excitar um terceiro é o objetivo maior da narrativa, esvaziando a sexualidade e seus mistérios. Seria pornográfica, em sua opinião, a representação de uma pulsão primária a-subjetiva, imbuída de uma violência sobre outra pessoa, campo de exercício de poder. É a sexualidade expurgada do erotismo que, por sua vez, mistura instinto e fantasia, interdito e prazer. Já aí fica subentendido o universo mais amplo e enigmático do erotismo. Conclui a autora que os contos apresentados se inscrevem nesta linha.

Em Intimidades, autoras já consagradas dão ao sexo um tratamento erótico/amoroso onde o termo revelação parece recorrente nas muitas narrativas que, trabalhando a memória desvelam segredos antigos, fortes, profundos, de pregnância mortal por vezes. As estratégias da pornografia sem serem predominantes freqüentam os textos. A lógica parece ser a do segredo que é desvelado no embate com as palavras. Seria interessante contrapor esse universo de sedução, mistério e tom menor, à publicidade dada ao sexo na obra de autoras como Clarah Averbuck, Lolita Pille, cujos universos estariam mais próximos do pornográfico, do apelativo e, talvez, não literário. “Reality Shows”, entretenimento para “voyeurs” da sociedade “écran”? Somente um exame atento de cada obra poderia decidir sobre a questão.

Desconstrução e games Niki de Saint Phalle "La Mariée", 1963. extraído de "Big Bang. Destruction et création dans l'art du xx siècle", 2006. Dançarinas virtuais em casa noturna de Second Life. extraído de Folha de São Paulo, 15/02/2006

Esta dúvida sobre o valor literário da sexualidade narrada não paira sobre os textos da coletânea acima referida. As narrativas com títulos sutis são muito bem estruturadas, não pecam por excesso, nomeiam com precisão afetiva as emoções que preparam e atravessam o encontro amoroso bem como a memória deste, freqüentemente, indelével. A contextuação é variada, indo do mais cotidiano a alusões ao cenário político, da cultura erudita a cheiros nauseabundos que atraem: “havia outro cheiro, característico, excluído da literatura por razões misteriosas e que até a mim custa a dizer: a sangue”. (Rita Ferro – O segredo de chiffon, p. 145). A lembrança de desejos perversos infantis, paixões maduras na ponta de uma arma, (Nélida Piñon – O revólver da paixão), amores brutos entre paredes esburacadas de quartos de pensão, são aguçados por contrastes onde reina, soberana, a paixão fatal. O perigo e o interdito são escalados entre golpes e transes: “talvez para morrer eu precise do amor e da família. Mas para acabar de viver, só preciso de ti, desta febre azul a que os outros chamam só sexo”. (Inês Pedrosa – Só sexo, p. 66).

Uma escrita pornográfico-política

A propósito do filme de Pasolini, Salo ou les Cent Vingt Journées de Sodome, livremente inspirado em Sade, Vincent Borel[29] comenta como o cineasta opera uma inversão radical interditando ao espectador toda a possibilidade de identificação com o que é mostrado. Nesta linha, a literatura de Dalton Trevisan parece ilustrar um uso político das estratégias pornográficas.

Se, usualmente, a obra pornô é realista e quase redundante em seu desejo de atender ao seu público, Dalton Trevisan faz justamente o contrário, quando retira qualquer excesso de sentido e mesmo o subtrai do leitor, na linha que poderíamos, na pista de Adorno, chamar de arte crítica, ao contrário das estratégias da indústria cultural na sua ânsia de preencher expectativas. Nesse sentido, ele efetua uma desconstrução do imaginário burguês com sua técnica que coloca em cena personagens desviantes do corpo e do sexo glorioso. São desempregados, bêbados, velhos e todo o tipo de desconformidade, apresentadas de forma grotesca, nada apolínea. A desconstrução dos mitos burgueses se dá, justamente, pela atribuição da fala mítica burguesa a personagens, a significantes que, pela inadequação a tais valores, levam-nos a curto-circuitalos. A fala do poder perde seu suporte.

A figura do Perverso Polimorfo e sua sexualidade infantil, de pulsões parciais e descontroladas parece dominar a obra de Dalton Trevisan. O Perverso Polimorfo representa o deboche, a anarquia, a falta de seriedade e decência, a incapacidade de amar, a ausência de valores espirituais mais nobres, os desregramentos do desejo louco, a violação inconseqüente de qualquer ordem estabelecida, a irreverência pelas tradições, o desrespeito pelo passado, pelos amigos, pela família, a promiscuidade, o arbítrio, a inconstância, a traição, o oportunismo. É o aventureiro sem pátria e sem história.

A incidência de comportamentos perversos indiciam a rebelião contra a submissão da sexualidade à ordem da procriação e contra as instituições que garantem essa ordem? Excluindo ou impedindo a procriação, as práticas perversas representariam uma oposição à continuidade da cadeia de reprodução e, por conseguinte, da dominação paterna – uma tentativa para impedir o reaparecimento do pai, em todos os níveis de sua representação?[30] A A obra do autor não se deixa capturar por nenhuma dialética simplista que silencie a multiplicidade de forças em jogo. Não há as figuras subjetivas típicas da vítima e do algoz, avessos especulares de uma mesma lógica.

O livro “Pico na veia” mantém a linha do autor, sempre mais telegráfico, com traços expressionistas e, vez por outra, poéticos. A tônica é a metonímia que se articula perfeitamente com o mundo fragmentário e mesmo compulsivo descrito pelo autor. É a parte pelo todo, bem longe de qualquer totalidade, como afirma em conto sumário: “Um bom conto é um pico certeiro na veia”.[31]

Fundamental é a exploração do grotesco, a mistura e profanação de espaços e toda sorte de perversão imersas numa naturalidade provinciana desculpabilizada que não parece ter acesso ao simbólico.

Gorda grotesca de coxa grossa/mestra no embuste doutora na fraude/famosa cafetina do talento alheio/galinha pesteada que come os olhos dos pintainhos/falsa loira cavadora de louros/bicha cabeluda onde toca espirram verrugas negras/toupeira cevada nas larvas da traição/entre a vassoura e o chinelo corre maldita corre/ó barata leprosa de botinha e liga roxa“.[32]

O tratamento que dá ao sadomasoquismo é carregado de anticlímax, quebrando desta forma o contrato deste tipo de perversão tal qual descrito por Sacher-Masoch.

– Ergue a blusa.
– …
– Baixa a calcinha.
– …
– Fica de joelho.
– Pede perdão, sua…
– Ai, não. E o chicotinho, pô? Esqueceu? De novo, João?
[33]

A fala final da personagem feminina denuncia o não cumprimento do pacto sadomasoquista e quebra qualquer identificação do leitor com a situação.

Mário Perniola[34] chama atenção para o fato de que Bataille a certa altura de seus escritos critica uma certa transcendência e positividade atribuída as posturas do surrealista Breton. Em Bataille temos a negatividade pura, o irremediavelmente baixo do comportamento humano, sem qualquer aposta de redenção. Tal parece ser a postura do autor Dalton Trevisan que não se inscreve nem na sofisticação da literatura dita erótica, nem nos objetivos da pornografia cultivada pela indústria cultural.

Sugestões eróticas Gravura japonesa. autor não identificado. extraído de Jornal do Brasil, 30/09/2000. Propaganda ellus verão/2006. extraído de Trip setembro/2006

O interessante na obra é a ambigüidade do ponto de vista que oscila entre um distanciamento crítico e uma simpatia por tais seres transgressores “no fundo de cada filho de família dorme um vampiro”. Se predomina a transcrição de diálogos sem narrador, por vezes utiliza a primeira pessoa. “Ai ser a liga roxa que aperta a carne fosforescente de brancura. Ai, o sapato que machuca o pé. E sapato ser esmagado pela dona do pezinho, e morrer gemendo. Como um gato”.[35]

Enfocando a pornografia como conhecimento, subjetivação incorporada, só podemos voltar ao início de nosso texto e, com Jabour e Rita Lee, filosofar: pornografia é isto, erotismo é aquilo. E coisa e tal… E tal e coisa…

*Nízia Villaça – Professora Titular da Escola de Comunicação da UFRJ, Pesquisadora do CNPq, Coordenadora do Grupo Ethos. Autora, entre outros livros, Em nome do corpo, Ed. Rocco, 1998 (co-autoria com Fred Góes); Em pauta: corpos, globalização e novas tecnologias, Mauad, 2000; Impresso eletrônico. Mauad, 2002 e organizadora de O novo luxo. Ed. Anhembi/Morumbi, 2006 ; e Plugados na moda. Ed. Anhembi/Morumbi, 2006.

NOTAS


[1] Dictionnaire de la pornographie. Philippe di Folco (org.); préface de Jean-Calude Carrière. Paris: PUF, 2005. Sobre a temática ver também: OGIEN, Ruwen. Penser la pornographie. Paris: PUF, 2003 e MARZANO, Michela.La pornographie ou l’épuisement du désir. Paris: Buchet-Chastel, 2003.

[2] KÉCHICHIAN, Patrick. “Penser la pornographie”. In: Le Monde, 11 de novembre de 2005. p. 8.

[3] Folha de S. Paulo, Primeiro caderno, 14 de novembro de 2005, p. A 12.

[4] Jornal do Brasil, 21 de fevereiro de 1999, Caderno Cidade, p. 25.

[5] Veríssimo, Luís Fernando. O Globo, 25 de fevereiro de 1999, p. 7.

[6] www.diesel.com e www.satyros.com.br.

[7] CASTRO, Daniel. “Canal de sexo virou “cult”, diz socióloga”. In: Folha de S. Paulo, Caderno Ilustrada, 17 de outubro de 2005, p. E 6.

[8] FREIRE, João. “Prazeres desprezados: a pornografia, seus consumidores e seus retratores”. In: Lugar Comum: estudos de mídia, cultura e democracia. n. 12, setembro-dezembro, 2000. pp. 65-86.

[9] SILVA, Tomas Tadeu da. (Org.) Pedagogia dos monstros: os prazeres e os perigos da confusão de fronteiras. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. p. 46.

[10] DELEUZE, Gilles. “À propos de… Différence et Répétition”. In: Sciences Humaines, Hors-Série Spécial nº 3, mai-juin, 2005. p. 79.

[11] JEUDY, Henri-Pierre. “O corpo da moda intelectual”. Texto mimeo, a ser publicado em janeiro de 2006 no livro Plugados na moda. São Paulo: Anhembi Morumbi.

[12] SONTAG, Susan. “A imaginação pornográfica”. In: A vontade radical. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

[13] DELEUZE, Gilles. Apresentação de Sacher-Masoch: o frio e o cruel. Com o texto integral de A Vênus de peles; tradução Jorge Bastos. Rio de Janeiro: Taurus, 1983.

[14] KUNDERA, Milan. La Lenteur. Paris: Gallimard, 1994. p. 11.

[15] KUNDERA, Milan. Apud, VILLAÇA, Nízia. “O sadomasoquismo em dois tempos”. In: Lugar comum, nº 12. Setembro-dezembro 2000. pp. 51-63.

[16] MORAES, Eliane Robert. O corpo impossível. São Paulo: Iluminuras, 2002.

[17] TREVISAN, João Silvério. Pedaço de mim. Rio de Janeiro: Record, 2002.

[18] SONTAG, Susan. Op., cit. p. 51

[19] Idem, ibidem. p. 52.

[20] BATAILLE, Georges. História do olho; tradução Eliane Robert Moraes. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

[21] MORAES, Eliane Robert. “Um olho sem rosto”. Introdução a BATAILLE, Georges. História do olho.

[22] massimo.canevacci@fastwebnet.ir

[23] BATAILLE, Georges. História do olho. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

[24] BELLMER, Hans. Anatomia dell’immagine. Milão: Adelphi, 2001.

[25] DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil platos: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Ed. 34, 2004.

[26] CANEVACCI, Massimo. Op. cit.

[27] Ver Klossowski Pierre. “La messe de Georges Bataille”. In: La chair et l’esprit. Art press 121.Paris: Baudoin Lebon, mars 1988.

[28] Intimidades (organizadora) Luisa Coelho. Rio de Janeiro: Record, 2005.

[29] BOREL, Vincent. Le Monde, 11 de novembro de 2005, p. 8.

[30] VILLAÇA, Nízia. Cemitério de mitos: uma leitura de Dalton Trevisan. Rio de Janeiro: Achiamé, 1984. p. 50.

[31] TREVISAN, Dalton. “Conto 3”. In: Pico na Veia. Rio de Janeiro: Record, 2002. p. 9.

[32] Idem, ibidem.. “Conto 148”. p. 177.

[33] Idem, ibidem. “Conto 11”. p. 17.

[34] PERNIOLA, Mário. L’instant Éternel: Bataille et la pensée de la marginalité; tradução François Pelletier. Collection “Sociologies au quotidien”, dirigée par Michel Maffesoli. Paris: Meridiens/Anthropos, 1982.

[35] TREVISAN, Dalton. O vampiro de Curitiba. 4 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1973. (90. p. 5).

Tempo de leitura estimado: 27 minutos

Literatura com um projeto – Entrevista com Heloísa Buarque de Holanda

Em entrevista exclusiva a Heloisa Buarque de Hollanda e Ana Ligia Matos, Luiz Ruffato conta como um filho de pais semi-analfabetos se tornou um dos principais escritores contemporâneos e critica a falta de proletariado nos livros brasileiros.
10/03/2006
HBH: Quando penso em você, penso na cidade de São Paulo. Você nasceu lá?

Luiz Ruffato:
Não, eu sou da melhor cidade de Minas, Cataguases. Mas a minha mineiridade é muito relativa, porque, na verdade, os meus avós maternos vieram da Itália no final do século XIX, e os meus avós paternos de Portugal. Então minha mãe e meu pai nem brasileiros são. E eles saíram de Rodeiro e Guidoval, ou seja, da roça, e foram pra Cataguases porque não tinham nenhuma perspectiva de vida na cidade deles. E em Cataguases eles construíram a família.

HBH: Eles faziam o quê?

Ruffato: A minha mãe era lavadeira. Ela era analfabeta e meu pai semi-analfabeto. Com o tempo, ele virou protestante e começou a ler a Bíblia. Apesar de minha mãe ser muito católica, meu pai circulou por algumas igrejas pentecostais até optar pela presbiteriana. Tivemos então, além da experiência da leitura em casa, a convivência com culturas bem diferentes.

HBH: Vocês eram muitos irmãos?

Ruffato:
Não. Éramos três. O meu irmão mais velho formou-se no Senai e foi trabalhar na Conforja, uma das maiores metalúrgicas da América Latina em Diadema. Mas logo ele voltou para Cataguases, não agüentou ficar longe da família. Ocupou um importante lugar na fábrica de tecidos de lá, se casou, teve um filho e morreu eletrocutado por um fio de alta tensão. Dois anos depois, seu filho foi atropelado e morreu também. Minha irmã trabalhava como tecelã na mesma fábrica e depois de casada tornou-se manicure e cabeleireira. Recentemente, passou no concurso para funcionária pública municipal na cidade, onde trabalha agora como merendeira.

HBH: E sua história?

Ruffato:
Minha história era para ser exatamente esta. Meus pais queriam que me tornasse um operário especializado, o grande sonho da classe média baixa de Cataguases. Então eu fui fazer tornearia mecânica no Senai. Mas desde os seis anos eu trabalhava. Trabalhei como caixeiro em botequim, na fábrica Apolo, no setor de algodão hidrófilo, como balconista no Bazar Leitão. Até pipoqueiro, ajudante de meu pai, eu fui.

HBH: E quanto à sua educação formal?

Ruffato:
Tem uma passagem que acho importante porque mostra a fibra do meu pai. Os melhores colégios públicos de Cataguases eram destinados para classe média alta da cidade. E nós, os mais pobres, estudávamos num colégio da Campanha Nacional de Escolas da Comunidade, colégios mantidos pelo Senai, Sesc e Senac. Eram escolas muito ruins. Meu pai era pipoqueiro na principal praça de Cataguases e um senhor apareceu lá, me viu trabalhando com meu pai e perguntou: “Esse menino está estudando, seu Sebastião?” E meu pai disse que eu estava estudando no Antônio Amaro, que não é bom. E esse senhor prometeu arranjar uma vaga para mim no Colégio Cataguases. Provavelmente não passou pela cabeça dele que o meu pai ia levar aquilo a sério. Sei que isso era um sábado. Na segunda-feira meu pai estava lá, procurando o homem, que depois descobriu-se que era o diretor do colégio, que ficou constrangido, constrangidíssimo, com a conversa da vaga para mim. Mas, no ano seguinte, lá estava eu no Cataguases, onde comecei a ter contato efetivo com os livros. O primeiro livro que li foi de um autor ucraniano, Anatoly Kuznetsov, chamado Bábi Iar, um lugar perto de Kiev, onde foram massacrados cerca de duzentos mil judeus. O romance é um relato de umas das famílias, da tentativa de sobrevivência a esse horror.

HBH: Quantos anos você tinha?

Ruffato: Tinha doze. E me lembro de que fiquei com febre. Aquilo era tudo muito novo pra mim. O fato de ler era uma coisa nova, nunca imaginei que houvesse massacres como aquele, guerras, gelo, inverno, nomes estranhos. Comecei mesmo a passar mal. Foi naquele momento que descobri que existiam coisas maiores que o meu bairro, minha cidade, coisas maiores que o Brasil, sobre o qual eu também não tinha muita idéia do que fosse. Ali minha vida deu um salto. Me viciei em livros, passei a freqüentar a biblioteca, lia tudo que me caía nas mãos. Foi nessa época que vi uma novela na Globo, “O Feijão e o Sonho”, na qual o personagem é um poeta que luta contra a mesquinhez da cidade e do mundo. Me encantei e disse para minha mãe que eu queria ser escritor. E ela caiu em prantos porque queria que eu fosse operário.

HBH: Cuidado porque mãe tem sempre razão.

Ruffato: Pois é. Ela queria minha segurança. Foi quando me formei em Tornearia Mecânica. Formado, fui para Juiz de Fora, que não era o destino dos formandos do Senai. Esses iam direto para São Paulo ou para Belo Horizonte por causa da Fiat, que se instalou lá mais ou menos nessa época. Mas eu fui para Juiz de Fora, porque dois colegas meus tinham a idéia de ir para uma universidade e em Juiz de Fora havia a Federal. Lá eu não conhecia ninguém, mas logo arranjei emprego numa oficina mecânica onde arrumei também um quarto nos fundos. Eu não tive em Juiz de Fora um período de profundo aprendizado, porque em 1978 estavam começando de novo as greves nas universidades e as manifestações estudantis. Nessa época era totalmente alienado. Em Cataguases, a esfera política para nós chegava, no máximo, até o prefeito. Meu primeiro encontro com a política foi em Juiz de Fora. Estudava o tempo todo para o vestibular. Trabalhava o dia inteiro, mas fazia o cursinho à noite. Sábado eu ficava direto no cursinho e domingo ficava o dia inteiro estudando. Quando fui afinal me inscrever para a universidade, me perguntaram o que eu iria cursar, eu simplesmente não sabia. Como duas ou três pessoas na minha frente começaram a falar em Comunicação, eu achei que essa opção tinha tudo a ver com tornearia mecânica, puxar fio de comunicação, telefone, essas coisas. Não tinha idéia do que fosse, mas fiz o tal vestibular e passei em primeiro lugar. Só quando o curso começou é que descobri que Comunicação era Jornalismo.

HBH: E como você se manteve durante o período de faculdade?

Ruffato:
O que me restou foi procurar emprego num jornal de Juiz de Fora. Tive sorte e arrumei um emprego no Diário Mercantil logo no primeiro mês de faculdade. E aí, sim, comecei a escrever sistematicamente, comecei a fazer política estudantil, porque era um momento que a UEE em Minas estava sendo recriada – a UNE iria ser recriada logo em seguida. Fui muito usado por uma certa esquerda dentro da faculdade porque era o “representante do proletariado”.

HBH: A leitura parece ter sido muito importante na sua formação. Trabalhando e estudando você continuava lendo ou não dava mais tempo?

Ruffato:
A leitura sempre me acompanhou. A primeira vez que eu comemorei o aniversário, que deve ter sido aniversário de 15 anos, eu já lia tanto que duas colegas minhas me deram de presente um livro de contos da Ática, que tinha a cartomante na capa, era uma capa horrorosa, e o Inocência, do Visconde de Taunay. Quando fui para Juiz de Fora, passava todo o tempo livre freqüentando sebos. Eu achava nos sebos também revistas como FicçãoJosé que, mesmo lidas com dois, três anos de atraso, me trouxeram a literatura brasileira contemporânea. Li o Loyola Brandão, o Ivan Ângelo, os novos contistas, mas sempre de forma errática. Eu não tinha noção da tradição. Com o tempo eu fui tentando fazer uma leitura um pouco mais programática, digamos assim. Como que isso vai se relacionar com o meu desejo de escrever? Eu nunca deixei aquela idéia lá atrás, só que realmente a minha mãe tinha razão, fui cuidar do feijão, mas com esse sonho.

HBH: Como e quando você virou escritor de fato e de direito?

Ruffato: Comecei pela poesia. Neste primeiro momento tive bastante contato com o pessoal que começava a fazer poesia em Juiz de Fora e com os grupos de poesia marginal do Rio. Era um momento muito rico nesse sentido. Na época eu publiquei um pequeno livro de poesia, chamado O homem que tece, sobre um operário, e vendemos tudo, nem eu tenho esse livro.

HBH: Era impresso em mimeógrafo?

Ruffato: Era. E isso naquela época era uma entrada para a gente tentar se socializar vendendo na rua. Para mim, foi um momento em que pensei ser possível viver escrevendo. Mas logo percebi que não. Ainda estudante, me casei com uma menina que fazia Medicina e tivemos um filho. A coisa pesa. E o pior é que o Diário Mercantil, em 1981, começa a entrar numa crise muito séria e a gente faz uma greve. Eu era editor de Cidade e fui mandado embora por conta disso. Resultado: fiquei com família e desempregado. Assim que me formei, me mudei para Alfenas, no sul de Minas, para trabalhar. Lá, ajudei a implantar um jornal, Jornal dos Lagos, que existe até hoje. E dei aula de literatura e de redação num colégio. Fiquei em Alfenas um ano. Depois mais um ano em Juiz de Fora, trabalhando na Tribuna de Minas. No final de 1989, início de 90, já separado, vim para São Paulo e nunca mais saí. Eu me casei com Cecília, uma jornalista e tivemos uma filha que mora comigo, Helena. Em 2001, começaram as grandes perdas. Em outubro minha mãe morreu e, em dezembro, morreu Cecília. Em 2003, morreu meu pai. Portanto, não havia mais razão para eu pensar em sair de São Paulo. Desde essa época, trabalhei num único jornal, Jornal de Tarde.

HBH: Você não trabalha mais em jornal?

Ruffato:
Não. Eu saí há uns três anos, só estou com a literatura. Fiz carreira no jornal. Fui repórter, redator, subeditor, editor, secretário de redação. Acho que tem o momento certo de sair do jornal apesar dessa experiência ser extremante importante.

HBH: Mais do que tudo te dá disciplina.

Ruffato: Disciplina, é exatamente essa questão. Tem horário de fechamento e acabou. E você tem que produzir. Não tem lugar para crises. Você senta e escreve. Tanto que eu brinco quando me perguntam: “Como é o seu processo de criação?” Eu falo: “Meu processo de criação é o seguinte: eu sento e escrevo”.

HBH: E o medo de viver só de literatura?

Ruffato:
Há três anos estou vivendo de literatura. Evidentemente não estou falando de viver só de direitos autorais, existem as palestras, adaptações de sua obra, traduções, prêmios…

HBH: A adaptação para o teatro de Eles eram muitos cavalos foi um sucesso de bilheteria, não foi?

Ruffato: Foi. Com o nome de Mireveja, foi mostrada no teatro e também em nove ou dez dos Centros de Educação Unificada na periferia de São Paulo. Na periferia, havia a apresentação e depois um debate. Os depoimentos das pessoas eram impressionantes. Uma senhora que nunca tinha ido ao teatro disse uma frase magnífica: “É como se eu estivesse vendo São Paulo numa casa sem teto”. Essa foi uma experiência fantástica. Ela ficou dois anos em cartaz. Foi uma peça montada sem grandes expectativas, o teatro foi alugado só por quatro meses, ninguém sabia no que ia dar. Mas deu muito certo e ela ganhou o Prêmio Shell e o Prêmio APCA.

HBH: E o próprio livro ganhou muitos prêmios.

Ruffato
: Ganhou o APCA e o Machado de Assis, da Biblioteca Nacional. Ele está indo para a quarta edição e foi publicado na França, pela Métailié, e na Itália, pela Bevivino. As editoras estrangeiras pagam um adiantamento. Então, eu não diria que vivo especificamente de direitos autorais, mas do entorno. E não tenho queixas. Pago minhas contas, minha filha continua estudando no mesmo colégio em que estudava e hoje acho que tenho uma qualidade de vida bem melhor do que antes. Moro em Perdizes, acordo todos os dias às seis da manhã, caminho peeo bairro, às sete e meia tomo café e às nove começo trabalhar. Ao meio dia, paro, almoço e volto a trabalhar por mais umas três horas.

HBH: Digamos, um horário comercial folgado.

Ruffato: Isso mesmo. Por isso não trabalho nem sábado nem domingo. Nem de noite. Achei que para trabalhar em casa eu tinha que estabelecer um ritmo muito claro pra mim.

HBH: Ouvindo você falar, parece que você é um estrategista compulsivo.

Ruffato:
Olha, desde Juiz de Fora, eu me coloquei uma meta: “Daqui a quinze anos quero ser um escritor profissional”. E fui  programático. Como sentia muitas falhas na minha formação, comecei a tentar sanar essas falhas. Por minha conta, comecei a ler um pouco de filosofia, teoria da literatura, os autores que eu não conhecia, obedecendo mesmo a um programa e sem escrever absolutamente nada, nada, nada, nada…

HBH: Acho que acertei em cheio no diagnóstico.

Ruffato:
E tem mais. Fui programático também na descoberta do que escrever. E comecei a pensar o seguinte: “Bom, eu podia escrever sobre o que eu conheço”. E comecei a procurar a minha realidade na literatura brasileira. E levei um susto. A literatura brasileira não tem uma tradição classe média baixa ou da operária. Só encontramos, no máximo, o pequeno funcionário. Lima Barreto trata a classe média baixa de uma maneira fantástica, mas também não é a classe média baixa que tem que bater cartão, digamos assim, ainda é o pequeno jornalista, o pequeno funcionário público. E eu comecei a perceber que talvez esse fosse um filão rico que eu poderia explorar, porque era um universo que eu conhecia muito bem. E, como projeto político, eu poderia dar uma contribuição neste sentido.

HBH:Você acha que a literatura teria uma função explicitamente política?

Ruffato:
Talvez seja romântico da minha parte, mas acho que sim. Se a literatura foi capaz de me mudar, ela é capaz de mudar as pessoas, e, conseqüentemente, ela é capaz de mudar o mundo. Acredito piamente nisso. E para mim, naquele momento, essa contribuição política tinha a ver com o tema que eu ia tratar. Mas isso me trouxe um grande impasse. Como posso escrever sobre a classe média baixa, sobre o proletariado usando a forma do romance, que foi criado para dar uma visão de mundo da burguesia? Essa era uma contradição imensa e passei muito tempo tentando resolvê-la.

HBH: Resolver teoricamente?

Ruffato:
Teoricamente. Percebi então que na mesma época que nasce o “romanção”, o romance burguês, nasce também um anti-romance, que vai formar uma tradição paralela. Me afundei nesse tipo de literatura, para entender como é que ela funcionava. Quando me considerei mais ou menos pronto, escrevi um primeiro livro, Histórias de remorsos e rancores. O livro tratava do universo proletário, experimentando uma forma de histórias, o que não quer dizer contos. Eu queria ver se aquele tipo de forma poderia ser tomada como um romance. Mas não foi. Era tido como o um livro de contos, o que eu não queria. Mas mandei umas trinta cópias para trinta editoras e 90% delas nem responderam. Quem acabou publicando o livro foi a Boitempo. Então resolvi escrever o segundo livro como contos, mas já sabendo que não eram exatamente contos. Que eram parte um projeto a longo prazo. Esse livro, que se chamou Os sobreviventes, ganhou o Prêmio Casa de las Américas, de Cuba, o que lhe deu uma certa projeção. Já o terceiro resolvi escrever um romance, que não era propriamente um romance. Era o Eles eram muitos cavalos, que considero a radicalização da minha experiência anterior. Onde procurei colocar em xeque a própria forma do romance. Eu queria que a precariedade de São Paulo fosse a precariedade da forma do romance.

HBH: Explica melhor como expressar, na forma romance, a precariedade de São Paulo?

Ruffato:
Por exemplo, a insistência da construção de capítulos estanques, que significariam a precariedade, a falta de permeabilidade das relações sociais. A precariedade das falas das pessoas, que não conseguem se comunicar, porque a comunicação é efêmera em São Paulo. A precariedade da arquitetura da cidade, a precariedade da arquitetura do romance, a precariedade do próprio espaço urbano. Quando o livro saiu e foi entendido como romance, eu me senti à vontade para retomar o meu projeto. Foi um encontro meu com a recepção da obra. Então matei os dois primeiros livros, eles nunca mais vão ser publicados.

HBH: Eles eram muitos cavalos foi sucesso desde seu lançamento?

Ruffato:
Não. Ele chamou a atenção quando, no final do ano, foi a capa d’O Globo como melhor livro do ano e em seguida ganhou dois prêmios. Já em fevereiro saiu uma segunda edição. A partir daí foi muita rápida a aceitação dele.

HBH: Você foi surpreendido por isso?

Ruffato:
Muito. Porque como o que eu pretendi não foi percebido nos meus primeiros livros, resolvi radicalizar formalmente nesse último. Percebi que nos dois primeiros eu não tinha sido suficientemente explícito no que eu queria. Esperei quatro anos e em 2001 ele saiu.

HBH: Você não teria sido severo demais com os primeiros livros? Havia necessidade mesmo de tirá-los de catálogo?

Ruffato:
O que eu fiz foi pegar esses dois livros e reescrevê-los no Inferno provisório. Tanto que as histórias do segundo livro mais ou menos formam a do primeiro volume e as histórias do primeiro mais ou menos conformam o segundo volume e eu ainda tenho uma história de Os sobreviventes que só vai aparecer no quarto volume do Inferno provisório. Tem uma história que saiu num livro da Objetiva, chamado Tarja preta, que vai sair no quinto volume, eu tenho toda essa programação. Na verdade, eu tenho 50 ou 60 páginas de mapas dos personagens porque senão eu me perco.

HBH: Essa construção é uma construção que parece épica. A estrutura parece a de um poema muito longo.

Ruffato:
A idéia exatamente é essa. Pode parecer pretensioso, mas eu queria que o conjunto de minha obra fosse épico no sentido de que fosse a história do proletariado brasileiro.

Ana Lygia: Você não acha que isso é a grande discussão social, o grande nó nacional? Essa classe, esse detrito?

Ruffato:
Quando percebi, no início de minhas leituras sistematizadas, que não existe uma literatura que abarque esse personagem, me pergunto: Por quê? Se vários dos escritores brasileiros tiveram origem proletária ou de classe média baixa, por que eles não trataram dessa questão? Minha hipótese é a de que a sociedade brasileira é tão hierarquizada que tem que esquecer o seu passado.

Ana Lygia: Mas acho que essa ausência é também uma presença eloqüente.

Ruffato:
Sem dúvida nenhuma. Minha pretensão é trazer essa ausência para dentro da literatura, trazer à discussão exatamente o que acontece no Brasil. Talvez isso aconteça porque não reconhecemos o outro. Então eu posso matar o outro, porque o outro simplesmente não existe. Se não temos essa representação na literatura é porque realmente a sociedade não quer ver essas pessoas, não quer identificá-las. Não quero esquecer que nasci num país chamado Brasil, que escrevo português e que vivo numa sociedade extremamente injusta. Tenho um compromisso com a minha época, um compromisso com a formação de uma identidade nacional. Isso pode parecer um discurso ultrapassado, piegas, mas não tenho como não assumir isso. Evidentemente, sei que estou andando contra a corrente.

HBH: Você diz que as pessoas perceberam o seu projeto literário estrutural de Eles eram muitos cavalos, mas quero saber se você acha que entenderam também o projeto político do livro.

Ruffato:
Isso é pouco discutido, é muito pouco discutido. O impacto maior veio de uma discussão da experiência formal. Mas para mim elas são indissociáveis. Tenho insistido muito nessa questão política em Inferno provisório exatamente porque ela não foi percebida antes. Posso estar sendo novamente pretensioso, mas eu gostaria que meu trabalho no Inferno provisório iluminasse o projeto político do Eles eram muitos cavalos.  Porque o Eles eram muitos cavalos seria quase que o final do Inferno provisório.

HBH: Fala mais sobre os dois primeiros volumes do Inferno provisório.

Ruffato:
O primeiro é o Mamma, son tanto felice. Parti, desde o começo, de uma questão formal importantíssima que é a seguinte: escrever um romance não-burguês. Escolhi, como ferramenta um recurso atual, da internet, que é a hipertextualidade. Parti então para uma experiência de construção e reconstrução de histórias, como se o leitor tivesse em cada nome de personagem a possibilidade de clicar e abrir a história daquela personagem. Esse é o meu processo de construção do romance. Por isso que falei que tenho um mapa. Embora alguns fatos não estejam no livro, eu sei, pelo mapa, quando o personagem vai morrer. No Mamma, tentei aprender exatamente o começo do êxodo rural de uma pequena comunidade, e escolhi uma comunidade italiana, porque aí surge também a questão do não-pertencimento. Porque, por incrível que pareça, a identidade italiana na comunidade dos meus avós se perdeu completamente. Para mim, essa questão tornou-se muito importante. Eu queria entender a perda de identidade do imigrante, seja ele italiano ou nordestino, não importa. Então, essa pequena comunidade italiana, no interior de Minas, está num momento de crise entre o sair dos filhos da roça para as cidades. Estão ali entre a comunidade de Rodeiro, que é onde os meus avós estavam, e Cataguases. E o que Cataguases tem de chamativo? É a indústria. Então, no Mamma, embora de uma forma não cronológica, todos as personagens estão, de uma maneira ou de outra, ligados a essa pequena comunidade. E vão estar sempre voltando a essa comunidade, do ponto de vista das relações afetivas, das relações do imaginário. Usei nesse caso uma linguagem que se adequasse ao imaginário rural.

HBH: Você fez pesquisas neste sentido ou usou apenas sua memória?

Ruffato:
Trabalhei com minhas lembranças, essas coisas marcam a pele da gente. Eu passava a minha infância em Rodeiro e ouvia muitas histórias, e sempre tive um ouvido muito bom e o gosto pelas palavras. Mas, é evidente que quando tenho dúvidas eu consulto pessoas mais velhas para me orientar.

Ana Lygia: Mas no Mamma você não retoma essa primeira linguagem, que é impactante. Essa sua primeira tônica me remete a Guimarães Rosa.

Ruffato:
Eu gostaria de talvez estabelecer um diálogo, porque o Guimarães é esterilizante, se você tentar passar por ele, você não consegue chegar a lugar nenhum. Vou contar uma coisa que não está explícita e que é muito da minha cabeça: a primeira história do primeiro livro, “Uma fábula”, é uma tentativa de síntese de todos os cinco volumes, e fiz pensando na Gênesis ao Apocalipse. Ali, o começo, o pai, é um deus terrível, um deus vingativo e mata a filha. E no final do Gênesis, Jesus encontra Pedro e André, que são os irmãos em uma pescaria. Então montei uma pescaria numa quermesse em Rodeiro e, quando eles estão pescando, são encontrados pelo personagem cujo nome é Salvador. Eu precisava entender o que eu ia fazer, e para isso construí aquela primeira história, que, mesmo que não tenha muito a ver com o resto das histórias, pra mim era essencial.

Ana Lygia: E o fato de você reescrever algumas histórias e apontar isso no final do livro? Que efeito você procura tirar disso?

Ruffato: É o meu compromisso com minha obra. E quero deixar isso explícito porque não queria que alguém chegasse e falasse: “Ah, mas essa história aqui eu já li”. Eu mesmo falo: “Você já leu sim, mas é outra coisa agora”. Se fosse possível, o meu objetivo seria o de, ao final do quinto volume, publicar um volume só. Um volume que daria, mais ou menos, umas mil páginas e aí com as histórias reembaralhadas novamente, sem obedecer à seqüência inicial. E no final, haveria uma pequena biografia de todos os personagens.

HBH: Isso é um jogo de cartas…

Ruffato:
Eles eram muitos cavalos deve ser reeditado e dessa vez eu queria que também fosse feita uma edição, não-comercial, de uns 250 exemplares, na qual todos os capítulos estarão dentro de um envelope absolutamente soltos e o leitor constrói o seu próprio Eles eram muitos cavalos. Sei que editorialmente isso é quase inviável, mas na verdade, esse é o meu projeto original.

HBH: Depois dessa declaração, o melhor é voltar à “seqüência normal” de uma entrevista e comentar o segundo volume do Inferno provisórioO mundo inimigo.

Ruffato:
O mundo inimigo já pega esse filho de imigrante se instalando numa pequena cidade, já morando num cortiço. O livro é muito baseado num cortiço e aí faço um diálogo explícito com o Aluísio Azevedo, que é um autor que acho importantíssimo e muito mal estudado. Ele consegue, no universo de um cortiço, falar de um Brasil que ia ser ainda, das relações todas precárias que ele consegue perceber já naquela época. E inclui também o proletariado, que é o pessoal da pedreira e o embate terrível entre o imaginário rural, de onde eles tinham vindo, e o novo imaginário já estava começando a se formar. No primeiro volume do Inferno provisório ainda existem relações de família, inclusive porque são italianos e essas famílias têm núcleos, têm sobrenomes. Já em O mundo inimigo eles vão começar a já não ter mais sobrenome, eles vão começar a ter dificuldade de dialogar com os seus e não conseguirão ter diálogo com os outros. No próximo, que é o terceiro volume, as histórias saem desse cortiço e vão em direção à periferia de Cataguases, mostrando a perda do imaginário rural e o surgimento das relações complicadíssimas que se estabelecem entre o imaginário rural e o urbano. No quarto volume, aí sim, eu quero tratar desse personagem e suas relações com a cidade de São Paulo e do Rio de Janeiro. Aí já é década de 80, 90, e já entra muito a questão do esgarçamento das relações sociais. Acho que o título desse volume vai ser O livro das impossibilidades.

HBH: Este projeto é de uma extensão e ambição quase anacrônica com o nosso momento, não é não?

Ruffato:
É o jeito que eu arranjei para entender o que eu estou fazendo. Parto de um microcosmo para tentar entender o macro, parto de um buraco de Rodeiro e dali eu tento ir expandindo, expandindo, então passa para Rodeiro, depois passa para o beco de Cataguases, depois passa para a Cataguases da periferia, depois passa para Rio e São Paulo, para finalmente, no último volume, no quinto volume, eu pegar os personagens, mostrando assim que, a periferia do Rio e a periferia de São Paulo não são diferentes da periferia de Cataguases hoje. Mostrando que houve uma contaminação das relações sociais, que essa violência que se fala tanto de Rio e São Paulo está presente em Cataguases.

HBH: A questão da violência realmente tem uma presença marcante na sua obra e mesmo na sua linguagem.

Ruffato:
É. Eu tenho um problema sério com a questão de como representar a violência. Penso que a arte e a literatura têm que oferecer alguma coisa a mais do que uma cópia. Têm que oferecer um diálogo com o que você está vendo. Me incomoda muito quando a violência é tratada com certo neonaturalismo, que, nesse caso, é uma forma muito conservadora e reacionária. A possibilidade de pensar que a literatura proporciona é o que faz com que no meu trabalho a violência não seja naturalizada, mas seja uma coisa que está subjacente, que leve o leitor a sentir a violência. Por exemplo, a violência contra a mulher, que é um tema que eu tento retratar muito na minha literatura, não é uma violência em que as pessoas se pegam, mas é muito pior, é uma violência que está imanente, que está o tempo todo presente, onde não precisa acontecer nada, porque ela já está lá. O livro das impossibilidades, pra mim, seria exatamente o momento em que essa violência, provocada pela perda de identidade, pela absoluta falta de possibilidade de diálogo entre classes sociais, entre as pessoas, pela contaminação de um certo imaginário da não ética, valores que estão muito presentes nos primeiros livros, vai se esgarçando. E o quinto volume é isso – eu não sei o título ainda do quinto volume, eu tinha pensado em usar São São Paulo, mas ainda não é bem isso porque, na verdade, vou trabalhar com vários universos, São Paulo, Cataguases e um pouco do Rio.

HBH: Já que você é tão programático, o que você que pensa que vai estar fazendo daqui a 15 anos?

Ruffato:
Daqui a 15 anos vou estar com 59 anos, eu queria ter a felicidade de poder pensar sobre essas questões que me preocupam hoje e dizer: “Bom, estou vivendo num país melhor e, portanto, a minha literatura pode ser diferente da que eu faço hoje”

 

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Mulheres e movimentos | de Cláudia Ferreira

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Estas fotos fazem parte de uma parte da minha história vivida entre os anos de 1989 e 2002. Essa história começa em 1989, quando fotografei o VIII Encontro Nacional Feminista em Bertioga, São Paulo. Quando cheguei lá, eu não sabia para onde olhar. Eram tantas mulheres, tão diversas… Comecei a observá-las primeiro no coletivo, depois em grupos cada vez menores e, por fim, individualmente. Naquele momento desmanchava-se o estereótipo da feminista que eu havia criado na minha cabeça. As feministas estavam em todas as classes sociais, níveis intelectuais, idades, etnias, e tinham distintas experiências de vida. Ali, descobri que era uma delas e passei a segui-las. Nós nos encontramos várias vezes. Nos encontros feministas, nas conferências da ONU, nas passeatas do Dia Internacional da Mulher, nas manifestações de rua. Eu fotografava simplesmente porque não conseguia mais deixar de fotografar, sentindo o imenso prazer de ser observadora participante dessa história.

As feministas começaram a ter para mim contornos mais definidos. Passei a compartilhar com elas o sonho de construir um mundo mais justo e igualitário e fizemos juntas muitos projetos. Projetos de vida, projetos profissionais, projetos pessoais e projetos coletivos. Eu realmente acreditei que poderíamos transformar o mundo e a minha maior contribuição seria registrar a nossa história com o olhar de quem estava participando dela, de corpo e alma.

Quem são essas mulheres que com seus rostos, sorrisos e utopias me motivaram a segui-las? Algumas eu conheço de vista, outras de nome, algumas eu nunca mais vi e outras encontro de vez em quando. A elas, eu quero agradecer o enorme prazer que senti em fotografá-las. Prazer igual ao que senti quando descobri que, com o simples apertar de um botão poderia guardar para sempre uma fração de segundo que me emocionava. Eu tinha seis anos e uma mulher me ensinou a fotografar com a sua câmera. Essa mulher é minha mãe, Carminda, a quem devo o prazer de fotografar.

CLAUDIA FERREIRA é carioca, jornalista, fotógrafa profissional desde 1977. Trabalhou para o Jornal do Brasil, Folha de São Paulo, Correio Braziliense a para a Agência francesa Sippa Press. Na década de 80, trabalhou em cinema como fotógrafa de cena e fez fotos para teatro, ballet e shows musicais. Desde o começo dos anos 90, tem o seu trabalho voltado para a cobertura de eventos do movimento social, com principal ênfase aos movimentos de mulheres e feminista. Sobre esse tema realizou oito exposições individuais no Rio de Janeiro, Porto Alegre, São Paulo, Brasília, Salvador e Paraíba, e participou de várias coletivas. Lançou em 2005, junto com a socióloga Claudia Bonan, o livro Mulheres e Movimentos, pela Editora Aeroplano (www.mulheresemovimentos.com.br/). Recebeu o prêmio Rio Mulher 2004 da Prefeitura do Município do Rio de Janeiro, pelo conjunto do seu trabalho.