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Apresentação | Octavio Aragão

Existe a cultura de massa, com todas as típicas frivolidades e subtextos de dominação social e ideológicos, porém expressivos e eventualmente donos de um léxico original, e existem os guetos dentro dessa cultura, becos especializados que sofrem críticas tanto do chamado mainstream cultural quanto de sua versão mais, digamos, popularesca. Esses são os párias, os desonrados, os humilhados e ofendidos.

É nessa vila – sim, onde residem os “vilões” – que se localizam as histórias em quadrinhos e a ficção científica, dois filhotes da literatura (alguns diriam subliteratura) de gênero que despontou com a revolução industrial. A primeira, ao menos como a conhecemos no ocidente, descende dos panfletos irreverentes e críticos da sociedade impressos pelo holandês Rodolphe Töpffer e das cruéis narrativas infantis ilustradas pelo germânico Wilhelm Busch. A segunda nasce dos escritos da inglesa Mary Shelley e do norte-americano Edgar Allan Poe, onde a percepção das maravilhas da modernidade e o poético andavam de mãos dadas, provavelmente tremendo de medo, com o grotesco e o arabesco, e influenciando posteriormente autores como Júlio Verne e H. G. Wells.

Ambos os subgêneros sobreviveram aos pudicos anos de 1950 do século 20, durante os quais sofreram perseguições e censuras nos Estados Unidos e no Brasil, sedimentando a base do repúdio que até hoje persegue essas variantes culturais, desabonando suas claras qualidades artísticas e educacionais. Assim, se cada uma dessas manifestações – ou, melhor dizendo, “expressões” – sofre seu quinhão de preconceito, que se reflete até em termos econômicos, muitas vezes dificultando a sobrevivência de seus entusiastas e especialistas, obrigados a diversificar suas atividades para reforçar a féria, não causaria surpresa que, quando irmanadas, o repúdio duplicasse, principalmente quando ousam angariar algum grau de respeitabilidade, seja no mercado seja na academia.

Não é de se estranhar que ainda hoje, mesmo quando analisadas por críticos especializados em uma ou outra encarnação, as HQ de FC (sempre é bom recordar que os aficionados e profissionais da área se referem a seus objetos de culto pelas iniciais ou apelidos e abreviaturas como “gibis” e “Sci-Fi”) sejam relegados ao mais baixo dos círculos infernais da subcultura. E se isso acontece com a produção internacional, imagine com a incipiente ficção científica literária ou, principalmente, em quadrinhos produzida no Brasil.

Eis porque a Revista Z Cultural vem com a intenção de reunir vozes de áreas distintas para analisar conceitualmente não apenas os produtos de todas as vertentes – sejam ficção científica, narrativas pulp ou histórias em quadrinhos –, como também seus meios de distribuição e construção comercial no Brasil e nos Estados Unidos.

Octavio Aragão
Organizador

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Visões do futuro do pretérito: a ficção científica nos quadrinhos brasileiros no século 20 | Octavio Aragão*

Desenhando o futuro com ironia

A primeira história em quadrinhos a se assumir como uma peça de ficção científica foi a tira diária Buck Rogers, iniciada em 7 de janeiro de 1929, com base na novela Armageddon – 2419, de Philip F. Nowlan, publicada um ano antes no número de agosto da revista Amazing Stories (Duin, 1998, p. 62). Nowlan teria sido convencido a escrever o roteiro para os desenhos de Dick Calkins, e as aventuras de Anthony Rogers (cujo nome foi alterado para “Buck”) foram distribuídas para diversos jornais norte-americanos por intermédio do National Newspaper Service Syndicate, que tornou o personagem conhecido mundialmente.

Mas isso não significa que antes desse início oficioso, elementos de ficção científica não estivessem presentes em narrativas gráficas desde o século XIX. O holandês Rodolphe Töpffer, por exemplo, em uma de suas séries de litografias cômicas, utilizou conceitos como voo por intermédio de artefatos mecânicos (anteriormente vistos em diversas obras de protoficção científica, como A viagem à lua, de Cirano de Bergerac). A série em questão é Voyages et aventures du Docteur Festus, de 1829 (Horay, 1975, p. 5). O cenário dessas aventuras, diferentemente das outras séries de Töpffer, são países imaginários como Gouvernais, os reinos de Vireloup e de Roundeterre, e a narrativa lança mão de elementos insólitos, como a descoberta de um planeta e as diversas tentativas frustradas de se chegar até o astro por intermédio de um telescópio voador, cujo design antecipa os foguetes interplanetários de hoje, com divisões em estágios e três tripulantes.

Töpffer, assim como o alemão Wilhelm Busch, criador do poema humorístico ilustrado que contava as peripécias fantásticas dos irmãos Max und Moritz, de 1859, sucesso comercial que chegou a ser traduzido no Brasil por poetas como Olavo Bilac e Guilherme de Almeida (Fonseca, 1999, p. 96), aparentemente exerceram alguma influência sobre artistas europeus que trabalhavam no Brasil na mesma época. Um deles, Henrique Fleuiss, editor da Semana Illustrada, chegou a ser acusado de plagiar a obra de Busch (Cagnin, 1996, p. 6). O mais interessante é que o acusador era aquele que seria considerado por pesquisadores como Athos Eichler Cardoso e Moacy Cirne como o pioneiro dos quadrinhos brasileiros, Angelo Agostini (Aragão, 2002, p. 89).

Agostini parece estar correto. As semelhanças entre os dois trabalhos é gritante, mas talvez possamos considerar Fleuiss não como um plagiário, mas como alguém inteirado com o imaginário europeu de sua época. Agostini, por sua vez, era, apesar de italiano, por demais identificado com o Brasil para se permitir influências conscientes de artistas europeus. Ainda assim, apesar de valorizar de maneira roussoniana a raiz tríplice do brasileiro – com ênfase na suposta perfeição das “raças” que comporiam o mosaico nacional: o caucasiano, o negro e o índio – também demonstra familiaridade com preceitos positivistas que atribuem à tecnologia e ao avanço científico-racionalista as bases para a construção de uma identidade brasileira (Agostini, 1883, p. 4 e 5).

A modernidade sociopolítica na corte

Angelo Agostini contestava a paixão de Pedro II pela ciência, estabelecendo uma relação direta entre os interesses do monarca e a decadência das instituições públicas. Não é raro vermos nas charges de Agostini o imperador retratado como um velho distraído, com a cabeça nas nuvens e os olhos num telescópio enquanto roubalheiras campeavam a seu lado, ou dormindo no trono, com o jornal O Paíz esquecido ao colo.

A modernidade republicana paga um tributo às suas raízes. No Império, bancara a avestruz, para não se envolver na luta contra a escravidão, que poderia lhe custar o apoio dos fazendeiros republicanos escravistas. Agora, comprometida até a medula dos ossos com o poder oligárquico, revela-se incapaz de incorporar os principais valores gerados pelas sociedades então consideradas modernas: a igualdade e a democracia (Lemos, 2001, p. 31).

Robert Scholes (1975, p. 5) recorda que a literatura se separaria em mimesis e poiesis, ou cognição e sublimação, sendo que o elemento identificador das partes seria a representação temporal. Se o tema refletir o tempo presente, uma construção do real perceptível pelos sentidos, será mimesis/cognição. Porém, se não estabelecer uma relação clara com o “hoje”, se buscar algum tipo de “escapismo” ela será poiesis/sublimação. A ficção científica, por lidar quase sempre com projeções do futuro, seria poiesis.

Já a charge política, por tratar de um momento específico situado no presente, seria mimesis. O Cândido, de Voltaire, e o Gulliver, de Swift, são sátiras voltadas a seus respectivos tempos e especificam seus alvos, logo não seriam escapistas. A ficção científica de Júlio Verne raras vezes assume um viés de crítica do tempo presente (uma exceção seria Vinte mil léguas submarinas), optando pela extrapolação pura, pelo foco no “e se”, com forte intenção de embasar esses exercícios com plausibilidade. Nas charges que apresentam elementos de ficção científica há pouco de científico além de um verniz superficial, pois a intenção é sempre o momento presente. Auerbach postula que a utilização do humor já seria um limite para a representação do realismo, uma “limitação da consciência histórica” (2007, p. 29), então, a sátira, a crítica de costumes, a importância social das charges seria reduzida a mera anedota.

Um chargista, para atingir objetivos e significados mais complexos – inseridos no conceito de disjunção humorística, segundo Violette Morin –, precisaria utilizar instrumentos conhecidos, signos mais simples.

“ (…) A charge ofende, atiça ou revoluciona não apenas por generalizar imagens, mas por utilizar tais estereótipos como ponte para um sentido mais amplo, emocionando o público e, em consequência, sensibilizando – para o bem ou para o mal – algumas instituições públicas” (Aragão, 2006, p. 59).

Max Yantok (1881[?]-1964) e as viagens de Kaximbown

Max Yantok começou a carreira como ilustrador em O Tico-Tico e desenvolveu alguns plots inspirados em temas desenvolvidos por escritores de ficção científica, tais como os de seu amigo Júlio Verne e H. G. Wells. De acordo com Lima, a série de Yantok, iniciada por volta de 1910 no Tico-Tico, chama-se As Aventuras de Kachimbown, Pipoca, Pistolão e Sábado em Fantasiópolis, na Pandegolândia, na G’astronomia, no Pólo Norte ou no fundo do mar. Durou quatro décadas e, apesar de claramente baseada no sucesso das Viagens extraordinárias de Verne, foi especialmente no episódio do Pólo Norte, que a influência dos autores citados tornou-se clara. A descrição do Eixo da Terra, máquina subterrânea responsável pela rotação do planeta, e mantida pela “Companhia Elétrica da Rotação Terrestre” (Figura 2), apesar da superficialidade nas descrições científicas e da diferença de veículos – história em quadrinhos e romance –, remete a algumas passagens de Verne. Reproduzimos o trecho de Yantok e, em seguida, um extrato de Vinte mil léguas submarinas.

Figura 1 - Kachimbown e o Eixo da Terra. Yantok, M. 1912 - 1963, p. 1.263.
Figura 1 – Kachimbown e o Eixo da Terra. Yantok, M. 1912 – 1963, p. 1.263.

“De repente Kaximbown chegou à beira de um abismo, e ficou cheio de surpresa. Viu um enorme eixo movido a eletricidade, com tantos maquinismos e geografia, apesar disso, ele logo disse que se tratava do Eixo da Terra, que ele julgava fosse imaginário” (Yantok apud Lima, 1963, p. 1.261).

Acompanhei o Capitão Nemo pelos bailéus e cheguei ao centro da embarcação, onde havia uma espécie de poço aberto entre dois tapamentos impermeáveis. Uma escada de ferro, engatada nas paredes, levava à extremidade superior. (…) Essa sala das máquinas, muito bem iluminada, não media menos de vinte metros de comprimento e era naturalmente dividida em duas partes: na primeira estavam os elementos que produziam a eletricidade; na segunda o mecanismo que transmitia o movimento à hélice (Verne, 1869, p. 112 e 114).

Arriscamos que, além de Verne e Wells, pelo tom irônico e crítico à sociedade da época, a influência de Jonathan Swift no texto de Yantok parece-nos evidente. Longe de buscar a acuidade científica, Yantok estruturava suas aventuras sobre a mais desabrida fantasia, sempre com um pequeno enfoque satírico e contemporâneo, mas, como visava o público infantil, as críticas não eram tão ferinas. As viagens interplanetárias de Kaximbown em G’astronomia revelavam não as propriedades reais dos astros, mas mostravam Marte em forma de tomate, Saturno e a lua como queijos ou Vênus como uma bolacha, e as HQs sobre a vida dos micróbios eram crônicas da alta sociedade, com microorganismos frequentando saraus e “desvendando segredos de alcova de bactérias e protozoários”, publicadas na revista Dom Quixote. Apesar disso, o autor introduzia informações sobre astronomia, zoologia, física e náutica. Assim, o forte da ficção científica de Yantok são seus desenhos de engrenagens e mecanismos, que remetem às ilustrações de George Roux para as primeiras edições de Julio Verne. Outro exemplo de casamento entre mimesis, na construção satírica das narrativas, e poiesis, no escapismo infanto-juvenil.

Outro humorista que lançou mão da iconografia tecnológica para criticar o ambiente sociopolítico da década de 1930 foi Alexandre Ribeiro Marcondes Machado, o Juó Bananére. Satirista de grande sucesso desde 1911, Bananére foi considerado um precursor do Modernismo no Brasil (Bananére, 2001, p. 22). Em 1933, no Diário de Abax’o Piques, Bananére apropriou-se de um imaginário visual próximo da ficção científica e propôs trens acoplados a zeppelins e sistemas de embarque automatizados, com desenhos minuciosos que antecipavam os infográficos de hoje, como alternativas para fugir do pedágio cobrado pela Light (Saliba, 2002, p. 244). Quadrinhos e charges do início do século 20 passavam mais próximo da sátira que da narrativa de ficção científica, mas isso não foi empecilho para exercícios de antecipação científica, sempre visando à crítica social. Por conta dessa preferência e valorização crítica de uma narrativa focada no “hoje”, o florescer de uma ficção científica com texto e arte bem trabalhados teve de esperar até a década de 1960, quando surgiram as HQs de Flávio Colin, Nico Rosso, Mozart Couto e Shimamoto, que inseriam elementos de ficção científica em argumentos de horror ou produziam séries parecidas com aquelas publicadas pela revista francesa Metal Hurlant. Paralelas, de Couto, é um exemplo: foi influenciada pelos experimentos de quadrinistas franceses como Moebius, Bilal e Druillet. Antes, nos anos 1930 e 40, houve projetos pontuais voltados à aventura e com vago sabor de ficção científica nas páginas do Suplemento Juvenil, como As aventuras de Roberto Sorocaba, de Monteiro Filho, e O enigma das pedras vermelhas, de Fernando Dias da Silva, que também usavam trabalhos estrangeiros como base, no caso os americanos Milton Canniff e Alex Raymond (Cirne, 1990, p. 37), mas não sedimentaram a ficção científica nos quadrinhos brasileiros. Hoje, porém, trabalhos de Edgar Franco, Patati, Allan Alex, Manoel Magalhães e, com destaque, Luiz Gê e Laerte Coutinho parecem apontar para uma sedimentação do gênero no Brasil, com quadrinhos que se assumem como obras de ficção científica sem apelar para a sátira, clichês do cinema ou dos comics norte-americanos.

Figura 2 - Uma antecipação bem-humorada do que viria a ser uma ponte aérea Rio-São Paulo no início do século 20, por autor anônimo.
Figura 2 – Uma antecipação bem-humorada do que viria a ser uma ponte aérea Rio-São Paulo no início do século 20, por autor anônimo.

O território insustentável de Luiz Gê (1953-) e Laerte Coutinho (1951-)

Luiz Geraldo Ferreira Martins e Laerte Coutinho, mais conhecidos como Luiz Gê e Laerte, são dois expoentes de uma geração de quadrinistas que despontaram nas décadas de 1970 e 80, nas páginas de revistas underground como Balão, Circo e Chiclete com Banana, cujo repertório inclui o imaginário da ficção científica cinematográfica dentre vários elementos de cultura pop e erudita, literatura e música.

Duas obras merecem destaque: A insustentável leveza do ser, de Laerte, publicada no terceiro número da revista Circo, em 1987, e Perdidos no espaço, de Luiz Gê, parte do álbum Território de Bravos, de 1993. A primeira, uma história em seis páginas, se apropria do tema de um dos autores mais referendados da chamada New Wave of Science Fiction, Philip K. Dick, e narra a história de um rapaz que descobre que nada em seu mundo é real, nem o próprio mundo. Numa sucessão de reviravoltas amarradas por uma narrativa segura e traço forte, cartunesco, Laerte despe as camadas da vida de Renato, o protagonista, revelando os pais que são atores travestidos, a irmã garota de programa, a epiderme sintética sobre pele branca 1998, Truman Show, de Peter Weir, Renato descobre a natureza da realidade.

Cirne aponta essa história de Laerte como “uma estória que já nasceu antológica em sua crueza contra os valores da classe mérdia branquicela” (sic) (1990, p. 82). Ou seja, no caso de A insustentável leveza do ser, os elementos de ficção científica são indispensáveis para a compreensão e a força da narrativa, emprestando maturidade à trama.

Perdidos no Espaço relata as desventuras da tripulação de um veículo minúsculo em forma de artrópode que explora os cômodos de um apartamento como se esse fosse um território alienígena. Assim como o título da história de Laerte faz referência ao romance de Milan Kundera, Luiz Gê cita o bem-sucedido seriado de Irwin Allen, produzido de 1965 a 1968, mas a estrutura narrativa traça paralelos a outros seriados de grande popularidade, Land of Giants (1968-1970) e Star Trek (1966-1969). Aqui é o contraste entre as imagens expressionistas em preto, branco e retícula aplicada e o diálogo melodramático que desperta a estranheza, o sense of wonder desta peça de ficção científica hard. É interessante notar que os aspectos hard, ou seja, de acuidade científica, não estão no texto, mas nos desenhos de Gê, que constroem e embasam uma realidade crível, porém fantástica, muitas vezes recriando os ângulos de câmera em grande angular do seriado Land of Giants, e, em menor grau, da série em quadrinhos Little Nemo in Slumberland, de Winsor McCay. O diálogo pode ser interpretado como uma versão histérica de algumas passagens dos roteiros de Star Trek, no qual a tripulação tenta conter um tenente em pânico enquanto o comandante lida com as pressões do trabalho e as dificuldades do ambiente hostil. O fato de não vermos os tripulantes ou o rosto do homem que habita o apartamento cria um distanciamento que reitera a impressão de solidão e estranheza alienígena. Sem os desenhos, os diálogos seriam uma coleção de clichês. Sem os diálogos, os desenhos não passariam de um exercício técnico.

Ao tornar hostil um ambiente residencial contemporâneo por intermédio da alteração das proporções dos cenários e dos pontos de vista do leitor, Gê recria a sensação de horror de obras de Richard Matheson – The incredible Shrinking Man (1956) –, H. G. Wells – Food of the gods (1904) – e até do autor brasileiro Monteiro Lobato – A chave do tamanho (1942), mas, diferentemente desses autores, a opção por um desenho com arte final limpa, distante dos trabalhos dos ilustradores que trabalharam com Wells, Lobato e Matheson, como Alvin Correa, André LeBlanc e Steve Niles, traz uma originalidade que distancia Perdidos no espaço do pesadelo gótico geralmente associado a tais narrativas. Gê faz uma crítica da sociedade onde vive, inserindo de maneira diferenciada a nave microscópica no contexto icônico que Ginway chama de “The Icon of the Spaceship”: “Since the ship reflects the society from which it originates, its crew is often a mock family, or a reflection of domesticity and the home and, as I view it, a microcosm of the traditional Brazilian male-female relations” (Ginway, 2004, p. 70).

A nave em Perdidos no Espaço, diferente dos modelos de correção norte-americanos que apareciam nas séries televisivas nas quais Gê busca referência, refletiria a condição de uma família disfuncional, com o comandante/pai em crise de autoridade e o tenente/mãe tentando um motim. Dessa maneira, tanto a história de Luiz Gê quanto a de Laerte poderiam ser encaradas como análises críticas das instituições familiares, percepções diferenciadas da realidade e sátiras sociais construídas com o auxílio de uma linguagem de ficção científica. Pode-se dizer que, se retirássemos os elementos de ficção científica de seus enredos, comprometeríamos seu entendimento e fruição.

O território que esses artistas cartografam em seus quadrinhos é tão brasileiro em essência quanto aquele que Angelo Agostini e Max Yantok retratavam, mas com uma percepção globalizada que eleva a produção a um patamar quase poético, resultando em ficção científica de alta qualidade. Para eles, a ficção científica é mais um meio de contar histórias sobre uma realidade burguesa, que ganha expressividade e força poética pois, como sugere Jameson (2004, p. 288), representaria o sentido de construção de história da classe média, uma busca pelo passado e por vários futuros. Os quadrinhos de Luiz Gê, Laerte e outros, porém, ocupariam em termos ideológicos um espaço intermediário entre a cultura de massa e a das minorias, e talvez por isso seja insustentável comercialmente, partindo do pressuposto que não se admite completamente imerso em um ou em outro, sofrendo preconceitos de ambos. Hoje, finalmente, talvez sejam mimesis e poiesis.

Considerações finais: o futuro é sempre

A junção de duas formas de expressão vítimas de preconceito como a ficção científica e as histórias em quadrinhos é, no mínimo, um desabafo que pode ser interpretado como a vontade de afirmar “sei que não gostam do que falo, mas grito mesmo assim”. São raros os quadrinistas que, no Brasil, podem dizer com orgulho que sobrevivem de seus trabalhos, mas ao menos existem premiações nacionais, como o HQ Mix e o Prêmio Angelo Agostini. Infelizmente, a produção local de ficção científica sequer é reconhecida pelo público, resumindo-se a simples tempero em obras que não se comprometem com o gênero. Se isso pode ser um entrave para a profissionalização dos autores dedicados à ficção científica, também dá uma liberdade experimental que não seria possível caso o mercado estivesse sedimentado.

Mas não é apenas nas livrarias que os quadrinhos de ficção científica têm prosperado. A internet tem se mostrado um terreno fértil para as mais diversas manifestações e, de acordo com o pesquisador Scott McCloud, essa pode se tornar a maior vertente das HQs, provocando uma revolução nos hábitos de consumo e fruição: “When I talk about digital delivery, I’m referring to comics that travel as pure information from producer to reader” (McCloud, 2000, p. 163). Nesses casos, forma e função atingem patamares inimagináveis, com custo baixo, atingindo um público maior. Há vários exemplos e podemos começar com a iniciativa hard de Gian Danton e Jean Okada, Exploradores do Desconhecido, em http://exploradoresdodesconhecido.wordpress.com, onde a intenção é fazer divulgação científica por intermédio da ficção científica. O traço de Okada remonta à estética das décadas de 1950 e 60, criando um efeito semelhante ao que Jameson chama de “pós-nostalgia” (2004, p. 293). Outro grande desdobramento é a parceria entre empresas de viés tecnológico com iniciativas de quadrinhos, como ocorre com a Oi, especializada em telefonia digital, no site http://quadrinhos.oi.com.br/hqs-online.html. Das cinco séries publicadas, três são a respeito de super-heróis com base na ficção científica e o fato de uma empresa estar por trás dos projetos é uma garantia de remuneração para os autores envolvidos. Outro expoente é Edgar Franco, autor que compõe pequenas histórias de ficção científica psicodélicas e art nouveau, também na linha de franceses como Duillet e Caza, em http://www.ritualart.net/ritual4b.htm.

Nos últimos dois anos, acompanhando a expansão do mercado nas livrarias e o fortalecimento de novas editoras especializadas, como Zarabatana, Aeroplano, Nemo, Barba Negra e diversas outras, surgiu um número maior de álbuns em quadrinhos dedicados à ficção científica. Destacaremos três dos lançamentos mais recentes, a saber, Astronauta Magnetar, de Danilo Beyruth, pela Panini Comics, em 2012, O Coronel, da dupla Valladão e Magalhães, lançado pela Nemo em 2013, e Tune 8, série independente de Rafael Albuquerque, inicialmente publicado on-line no site www.tune-8.com e depois em fascículos, pelo próprio autor  devido às suas particularidades e características diferenciadas dentro do que vinha sendo produzido no Brasil até então.

A escolha desses três exemplos é motivada pelas transformações que as obras representam na maneira como se passou a produzir e consumir HQs no Brasil e, em consequência, como a ficção científica, pegando carona no bom momento comercial, tornou-se uma possibilidade narrativa mais acessível a um público maior e envolvido com as novas formas de divulgação e distribuição tornadas possíveis pelo advento e popularização da Internet.

Astronauta Magnetar, uma ficção científica hard tradicional, com forte influência dos textos de Arthur C. Clarke e que busca adequar a narrativa das HQs a uma leitura diferenciada do tempo vivido pelo protagonista, é na verdade um projeto potencialmente arriscado que acabou se revelando um sucesso editorial do mais famoso quadrinista brasileiro, Maurício de Sousa.

Em 7 de dezembro de 2011, um mês depois de seu lançamento, a Panini Comics divulgou que a primeira tiragem da versão em capa dura do álbum esgotou e ganharia reimpressão. A versão em capa dura, para livrarias, era mais cara (R$ 29,90), mas havia outra versão, mais acessível (R$ 19,90) em capa cartonada. Ainda assim, a edição em capa dura esgotou mais rápido. A Panini e a Maurício de Sousa Produções não divulgaram os números da tiragem inicial ou da reimpressão, mas o feito é digno de nota. Os motivos para tal sucesso derivam de uma série de decisões e projetos editoriais que, elencados em sequência, chamaram a atenção do público, criando uma grande expectativa em torno da primeira graphic novel de uma série que visava recriar os populares personagens infantis de Maurício de Sousa em cenários e situações diferentes.

A escolha do artista Danilo Beyruth, recentemente laureado pelo álbum Bando de Dois, para ilustrar a história do Astronauta perdido no espaço revelou-se acertada. Lançando mão de recursos diagramáticos e páginas com experimentos radicais, Beyruth emprestou maturidade e relevo psicológico a um personagem secundário, que nunca foi título principal de nenhuma revista. Leitor assumido de escritores da Golden Age e da New Wave da ficção científica norte americana, como Isaac Asimov, Arthur Clarke, Philip K. Dick e Frank Herbert, o ilustrador – que também é o roteirista do álbum – recheia as 74 páginas com imagens típicas desses autores, tais como estrelas que se apagam (possível referência a Os nove bilhões de nomes de Deus, conto de Clarke), o uniforme/escafandro do Astronauta (que remete a 2001, filme de Kubrick baseado em conto de Clarke), o protagonista solitário, paranóico no espaço (citação a diversos contos de Philip K. Dick, onde a realidade se confunde com a loucura e a paranoia toma conta de espaçonautas solitários) e a transcendência mística através da memória e da alucinação (marca de Duna, obra seminal de Herbert).

Como se pode perceber, trata-se, ao menos no que diz respeito aos detalhes da trama, de um roteiro mais complexo do que os tradicionalmente desenvolvidos para qualquer história da Maurício de Sousa Produções, cheio de termos e conceitos cientificistas, além de um certo didatismo quando elementos de astronomia, como o próprio Magnetar do título, vêm à tona. Tradicionalmente considerado um gênero “difícil” e de alcance limitado, o álbum foi distribuído em bancas de jornal, a um preço acessível, apostando na visibilidade e na exposição maciça. O público respondeu positivamente e a HQ tornou-se um raro exemplo de sucesso de comercial e de crítica, provando que, ao contrário do que se acreditava, em condições ideais é possível vender ficção científica no Brasil.

O caso de O Coronel é um pouco diferente, mas entrelaçado em diversos pontos com Magnetar. Originalmente concebido como uma HQ de cinco páginas para a 1ª Bienal de Quadrinhos do Rio de Janeiro, de 1992, a história do soldado colonizador de outro planeta dominado pela consciência da arma que carrega foi adequada para constar da antologia MSP50, um projeto comemorativo anterior da Maurício de Sousa Produções, que, no ano do cinquentenário do quadrinista-empresário, oferecia ao público cinquenta HQs desenvolvidas por um igual número de artistas reunidas em um álbum.  Nessa segunda encarnação da história o astronauta genérico torna-se O Astronauta de Maurício de Sousa, ligeiramente alterado graficamente para fazer uma citação gráfica ao Tintin, personagem do belga Hergé. O cerne do conto gráfico, porém, que se manteve intacto na transposição, foi ampliado e ganhou contornos de fábula, tornando-se uma parábola sobre as relações entre pais e filhos.

É interessante perceber que, das três HQs selecionadas, duas tenham relação direta com o mesmo personagem, o que talvez represente uma identificação com tópicos realçados por Ginway e tratados neste artigo, mais especificamente a nave espacial e o mundo devastado.

Parece-nos então que, diante dessa nova vertente, os quadrinhos de ficção científica no Brasil tendem a uma maior visibilidade e a se estabelecerem como uma vertente expressiva. Se por um lado podem escorregar em eventuais reinvenções da roda ao ignorar o material produzido anteriormente, por outro trilham caminhos tecnológicos e econômicos jamais imaginados por seus antecessores, o que pode resultar em novas relações, novos temas e, principalmente, novos mundos.


*Octavio Aragão é doutor e mestre em Artes Visuais pela EBA-UFRJ, onde também se graduou em Comunicação Visual. Pós-graduado pelo PACC/UFRJ, é professor adjunto na ECO-UFRJ onde ministra as cadeiras de Jornalismo Gráfico 1 e 2 desde 2009, além de ser Coordenador de Intercâmbio. É autor dos livros A mão que cria (2006), Reis de todos os mundos possíveis (2013) e coautor de Imaginário brasileiro e zonas periféricas (2006).

Referências

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Tempo de leitura estimado: 27 minutos

El Nestornauta: a HQ El Eternauta e o imaginário nacionalista na Argentina kirchnerista | Amaury Fernandes*

Montoneras, Peronismo, Montoneros, Kirchnerismo

(…) se os signos não enganam, todo o aparato filosófico começa a ser uma casca vazia de vida
(Simmel, 2008, p. 219).

O peronismo não é compreensível para alguém que não seja peronista. A frase anterior pode parecer um absurdo do ponto de vista da ciência política, mas sob a ótica peronista é a mais acabada das verdades. No entanto, por menos que creiam os peronistas, como todo movimento político o peronismo é compreensível e passível de análise. Neste ensaio é explorado um dos aspectos mais marcantes desse movimento: a relação entre o peronismo e a cultura de massas. O objeto de estudo é a apropriação do personagem El Eternauta pelo kirchnerismo1 na criação da figura de El Nestornauta. São exploradas também as mudanças na representação do herói Juan Salvo nas duas HQs de El Eternauta, que propiciam essa apropriação.

O peronismo nasce marcado por um aspecto típico da cultura política argentina: o personalismo. Na longa guerra civil que ocorre após a libertação do domínio Espanhol os diferentes caudilhos disputam o poder em uma luta na qual há largo emprego da mais popular formação militar argentina: la montonera.

O individualismo constituía sua essência, o cavalo sua arma exclusiva, o pampa imenso seu teatro. (…) Massas imensas de ginetes que vagam pelo deserto, oferecendo combate às forças disciplinadas das cidades (…), presentes sempre, intangíveis por sua falta de coesão, débeis no combate, porém fortes e invencíveis em uma longa campanha, na qual, ao fim, a força organizada, o exército, sucumbe dizimado pelos encontros parciais, as surpresas, a fadiga, a extenuação. A montonera, tal como apareceu nos primeiros dias da república sob as ordens de Artigas, já apresentou esse caráter de ferocidade brutal e esse espírito terrorista (Sarmiento, 2010, p. 59).

A montonera, tropa de cavaleiros hábeis na guerra e incivilizados nas maneiras, marca a formação de tropas militares das primeiras disputas na Argentina. Lideradas por nomes como Artigas, López, Ibarra, Facundo e Rosas, essas massas de ginetes determinam a forma de disputa pelo poder que se instaura no começo da nação, a disputa do poder pela força e o culto ao líder que engendra o personalismo platino.

Fundamentado na liderança, na força política e nas formulações ideológicas de Juan Domingo Perón, e extremamente vinculado em seu imaginário à figura de Eva Perón, o peronismo nasce com as marcas tradicionais da política argentina: um forte personalismo e a constante tentativa de imposição de seus princípios. Sua doutrina é o justicialismo e, segundo os escritos de Perón (2007), representa uma terceira posição do espectro político, distante tanto do capitalismo como do comunismo. Do ponto de vista da tradicional tipificação política entre direita e esquerda o peronismo pode ser catalogado como um projeto político de centro, com movimentos pendulares ao longo da sua história, tendendo ora à direita, ora à esquerda, em função dos fatos históricos com os quais se confronta e dos apoios que encontra na sociedade argentina.

Perón é o primeiro político argentino a efetivamente compreender o papel que a comunicação de massa exerce nas sociedades modernas. Investe pesadamente na construção de um imaginário que vincule o peronismo, e sua inicial proximidade com a doutrina social-cristã, com aspectos como valorização da família, justiça social, distribuição de renda, melhora das condições de trabalho e do operariado e construção de um país rico economicamente e de uma sociedade sem conflitos de classes.

A tendência ao movimento pendular na política faz com que o peronismo seja complexo em seus aspectos ideológicos, e que seu percurso histórico como movimento político seja marcado por oscilações quase incompreensíveis para quem o estuda a partir de uma visão mais ortodoxa e com pouco conhecimento da história argentina.

O peronismo é dividido em períodos de acordo com a situação política do país. Surgido dos eventos de 17 de outubro de 19452, o chamado peronismo clássico compreende os dois primeiros mandatos presidenciais de Perón e se encerra com a sua deposição em 1955. Nesse período a progressiva perda de apoio dos oficiais militares, do empresariado e das antigas lideranças políticas leva o peronismo a uma aproximação das classes populares e do operariado. Os discursos em tom inflamado de Eva Perón contra as oligarquias e os “vendepátrias”, seu acercamento com a população mais carente, somados à perda de apoio de Perón entre as elites, levam o governo peronista a um movimento pendular à esquerda, com ações de cunho mais populistas. Desse quadro resulta um processo de crise, agravada pelos aspectos da economia mundial após 1950, que deixa de favorecer ao tipo de pauta de exportação da Argentina e dificulta o ingresso de recursos no país.

Em 1955 ocorre um golpe de Estado, há a proscrição legal do justicialismo e o peronismo passa por um período de mais de 18 anos de ilegalidade. Essa fase se encerra com o retorno de Perón em 1973 e sua terceira eleição para a presidência da Argentina, o que configura um segundo período de exercício do poder para o general. A aproximação progressiva com os seguimentos mais conservadores do peronismo leva a uma ruptura no movimento e a criação de um conflito com a chamada esquerda peronista, com a qual se alinha Oesterheld. A morte de Perón em 1974 leva ao poder sua esposa María Estela Martínez de Perón e o agravamento da crise política iniciada ainda com Perón vivo e os confrontos entre grupos armados de extrema direita e extrema esquerda levam a Argentina a um golpe de Estado e a instauração de novo período de ditadura militar.

É entre meados dos anos 1960 até a luta armada de enfrentamento com a ditadura militar liderada pelo general Jorge Videla que a organização Montoneros3 atua. Inicialmente fundada na ideologia social-cristã, aos poucos se converte em um grupo marxista que prega o socialismo nacional, teoria política própria da chamada esquerda peronista que mescla aspectos do socialismo com o justicialismo e as características específicas do processo sócio-político argentino. Com o afastamento de Perón de sua “juventude maravilhosa”4 o grupo segue se autoidentificando como peronista, mas passa ao confronto armado, intensificando as contradições ideológicas internas e se aproximando cada vez mais do socialismo utópico, que acredita na luta armada como único caminho para a resolução da luta de classes.

Devido ao forte personalismo da política argentina, no peronismo as correntes internas são identificadas através do nome de seus principais expoentes. Se, em seu começo o peronismo é profundamente identificado com as figuras de Perón e Evita, na década de 1970 essas mesmas figuras identificam dois ramos internos, com a imagem de Perón mais colada à fração conservadora e Evita identificada como o grande símbolo da denominada esquerda peronista, que se autoidentifica como evitista.

Nos anos 1990 o peronismo ressurge vinculado à figura de Carlos Menem e o menemismo faz com que o peronismo seja vinculado às políticas neoliberais que grassam no cenário político mundial da época. O começo do século XXI na Argentina é marcado por uma profunda crise econômica, política e social, resultante do fracasso das políticas econômicas do menemismo e da inabilidade político-administrativa do seu sucessor, Fernando de la Rúa. Em um breve intervalo a Argentina tem cinco presidentes diferentes, terminando o processo na assunção do poder por Eduardo Duhalde, um peronista que consegue estabilizar a política e a economia do país.

Nas eleições de 2003 o peronismo apresenta várias candidaturas e um candidato que parecia improvável em um primeiro momento se torna presidente da Argentina: Néstor Kirchner ganha o primeiro turno das eleições com 22% dos votos e, em função das pesquisas de opinião apontarem sua vitória com ampla margem no segundo turno, a desistência de Carlos Menem do pleito leva Kirchner à vitória definitiva.

O governo kirchnerista pode ser analisado como um prosseguimento da tradição personalista da política argentina. Constrói sua representação política ligada ao pensamento da juventude peronista dos anos 1970. O discurso oficial e toda a prática comunicacional do governo argentino de Néstor Kirchner e, posteriormente, de sua esposa Cristina Fernández de Kirchner é amparada na visualidade do peronismo clássico e da juventude peronista setentista5. É dentro da construção desse imaginário político e através das formas de representação identitária na sociedade de massas que surge a possibilidade da sobreposição entre a figura do presidente e a do herói da história em quadrinhos.

El viejo, sus historietas y su amigo

Héctor Germán Oesterheld nasce em Buenos Aires no ano de 1919. Apesar de ter formação profissional em geologia é a escrita que o atrai, publica contos infantis e histórias em quadrinhos desde o começo dos anos 1950. Já com histórias em parceiras com Paul Campani, Solano López e Hugo Pratt, em 1957 Oesterheld funda a editora Frontera e passa a publicar seus trabalhos nas revistas Hora Cero e Frontera. É através das páginas de Hora Cero que é publicada a primeira história de El Eternauta, entre 1957 e 1959, exatamente no momento de maior intensidade da repressão ao peronismo pela ditadura liderada pelo general Pedro Eugenio Aramburu.

Em fins dos anos 1960, Oesterheld se compromete politicamente ainda mais com os movimentos da chamada esquerda peronista. Escreve, junto com Alberto e Enrique Breccia, a biografia de Ernesto Guevara, um roteiro para filmobiografia de Eva Perón, faz os roteiros da história em quadrinhos La guerra de los Antartes, publicada no jornal Noticias, e a série Latinoamerican y el imperialismo, esta publicada nas páginas do semanário montonero El Descamisado.

A década de 1970 reserva para Oesterheld um roteiro nada amistoso. Na ilegalidade desde meados da década, o roteirista se isola em um refúgio no rio Tigre. Escreve o roteiro de El Eternauta II (ou El Eternauta segunda parte) entre 1976 e meados de 1977. Em função das atividades políticas da família, os órgãos de repressão e grupos paramilitares promovem o assassinato ou a desaparição de três de suas filhas entre junho e novembro de 1976. Além disso, como duas delas estavam grávidas, há o desaparecimento de dois de seus netos. Oesterheld é igualmente sequestrado e ilegalmente detido em abril de 1977. Há registros de suas passagens pelos centros ilegais de detenção do Campo de Mayo, “El Vesubio” e “El Sheraton”. Dados obtidos pela Conadep (Comissão Nacional de Desaparição de Pessoas) asseguram que o escritor é visto vivo em janeiro de 1978, após essa data não há registros relativos ao escritor e seus restos mortais seguem desaparecidos. A revista Skorpio publica as tiras da história entre dezembro de 1976 e abril de 1978.

O coautor de El Eternauta, Francisco Solano López nasce em Buenos Aires em 1928 e começa a desenhar profissionalmente no começo dos anos 1950. Desenha para a editora Frontera Rolo el marciano adoptivo, Amapola negra e Ernie Pike, entre outros. Em 1957 e em 1976 é o desenhista responsável por dar forma visual ao roteiro de Oesterheld para El Eternauta. Seu filho Gabriel é ilegalmente detido pelos órgãos de repressão em meados de 1977. Em função de suas relações pessoais, Francisco Solano López consegue sua libertação e a família segue para o exílio na Espanha, onde o desenhista finaliza as artes da segunda história.

El Eternauta e o peronismo clássico

O imaginário do peronismo é perpassado por referências contraditórias. Primeiro movimento político que sabe como lidar com a comunicação em uma sociedade de massas, o peronismo constrói todo um discurso para difundir suas ideias. Perón e Evita elaboram formas de argumentação para validar o imaginário constituído a partir de uma interpretação da realidade histórica e política da Argentina: o justicialismo desenvolvido por Perón.

Nessa construção de imaginário se desdobra uma identidade nacional forte, calcada no discurso de uma sociedade sem disputas entre suas classes, e completamente com base na intermediação do Estado para resolução de quaisquer conflitos, sempre em nome do bem comum e da vocação pacífica do povo argentino (Perón, 2007). A produção da comunicação do Estado é centralizada e fortemente organizada no sentido de influir na compreensão da realidade pelo povo argentino de acordo com a ideologia justicialista.

A necessidade de estabelecer uma doutrina única, gerada desde o Estado e que fixaria os objetivos da nação toda, se converteria durante o governo de Perón em um dos componentes cruciais do discurso peronista. O Estado deveria inculcar essa doutrina ao ponto de convertê-la em uma espécie de “marco mental coletivo” através do qual a realidade deveria ser interpretada. A doutrina devia unificar as leituras da realidade e, ao mesmo tempo, fixar claramente os limites do dissenso (Plotkin, 1994, p. 45).

Os papéis de gênero igualmente estão claramente definidos. Aos homens cabe prover o lar e às mulheres os cuidados com a casa e os filhos. Qualquer complementação de renda que as mulheres possam obter deve ser fruto de trabalhos que não a afastem fisicamente do lar. “E cada dia o mundo necessita em realidade de mais lares e, para isso, mais mulheres dispostas a cumprir bem seu destino e sua missão” (Perón, 2010, p. 137).

No campo visual o discurso desenvolvido é curiosamente vinculado ao imaginário socialista e a do New Deal, apesar de erroneamente se vincular o peronismo com os movimentos fascistas em função dos anos de formação de Perón na Itália de Mussolini.

Enquanto a propaganda nazista e fascista apelava às construções ideais míticas com o fim de legitimar a nova base das grandes tradições nacionais, a gráfica soviética e a do New Deal, assim como a do peronismo na década seguinte, glorificavam o presente superador do passado de atraso tecnológico e desigualdade social, mediante um clichê que é comum aos três casos. Representados conjuntamente e sem distinções hierárquicas, o operário fabril e o camponês referiam simultaneamente às categorias de “trabalhador” e “Nação” (Gené, 2005, p. 96).

O enfrentamento com o imperialismo, o desenvolvimento de uma indústria de capital argentino e a independência econômica da nação são as metas propugnadas, a família é a base de tudo, e os descamisados de Evita são convertidos em um exército a serviço dos propósitos políticos do justicialismo e do bem da Argentina, e de Perón.

Com a morte de Evita, em 1952, o regime sofre um profundo baque. Perde não só sua primeira dama, mas aquela que era a figura de proa e o motor da política assistencialista do Estado. Em 1955, muito em função das contradições internas, mas também em função da mudança do quadro econômico externo, Perón é derrubado do poder por um golpe de Estado. A violência da oposição anti-peronista chega ao ponto da promulgação de leis de desperonização da Argentina. Uma verdadeira fúria iconoclasta dos golpistas promove a destruição maciça de imagens e signos peronistas. A resistência dos peronistas passa ao campo do sutil, e é nesse quadro que a primeira historia de El Eternauta se enquadra.

Juan Salvo é constituído como uma referência ao homem peronista típico, chefe de família, trabalhador e com um pensamento voltado às ações empreendedoras que levariam a Argentina a se consolidar como uma sociedade justa, livre e independente. Ele é um profissional que constrói sua pequena “fábrica de transformadores”, o que permite que se conceda “aquele tipo de prazeres simples”, e este é seu horizonte.

Figura 1 – El Eternauta (Oesterheld, Lopéz, 2008, p. 90).
Figura 1 El Eternauta (Oesterheld, Lopéz, 2008, p. 90).

Na primeira história, o heroísmo é de certa forma coletivizado. Se cabe a Juan Salvo um protagonismo outros personagens (como Favalli ou Franco) assumem atitudes similares. Ao final, quando se vê só, após a queda de seus amigos, é à proteção da família que Juan se volta, o mesmo que ele busca em desespero no começo da história. Ao final do relato retorna aos braços de Elena e de Marta e é apagado de sua memória tudo o que viveu.

Nesse quadro a narrativa de cunho peronista se dilui em uma alegoria humanista, típica do próprio movimento, e o personagem assume uma postura coletivista, de um homem que, apesar de viver uma incrível aventura, retorna à sua função social de chefe de família e se esquece de sua participação direta na defesa da sociedade espelhando um anonimato que dissolve a individualidade em benefício do grupo social.

Figura 2 – El Eternauta (Oesterheld, Lopéz, 2008, p. 349).
Figura 2 – El Eternauta (Oesterheld, Lopéz, 2008, p. 349).

El Eternauta II e a juventude peronista

Em El Eternauta II o quadro narrativo se altera. A história é escrita com Oesterheld vivendo na clandestinidade e a visão de mundo do autor perpassa todo o relato. O personagem assume um protagonismo que fundamenta a narrativa; a família já não é o foco central, mas sim a salvação do “povo das covas”, uma alegoria relativa ao povo argentino em si; a postura de Juan Salvo não é de quem compõe um grupo, mas de quem lidera um grupo e está disposto a tudo para vencer os invasores, inclusive ao autossacrifício.

Figura 3 – El Eternauta II (Oesterheld, Lopéz, 2007, p. 170).
Figura 3 – El Eternauta II (Oesterheld, Lopéz, 2007, p. 170).

Essa transformação do personagem pode ser lida como uma alegoria sobre a situação da militância da Juventude Peronista. A mesma que para Perón passa de uma “juventude maravilhosa” a um grupo de “imberbes e estúpidos”6, a que se lança em uma luta feroz contra os grupos paramilitares que promoverão assassinatos e desaparecimentos durante mais de uma década. São grupos que propugnam o socialismo nacional, como as FAR (Forças Armadas Revolucionárias) e Montoneros, que após a decepção com Perón (e especialmente após a sua morte) assumem a luta armada como caminho para a construção de outra sociedade. É à ideologia desses grupos que Oesterheld e sua família se vinculam.

Figura 4 – El Eternauta (Oesterheld, Lopéz, 2007, p. 157).
Figura 4 – El Eternauta (Oesterheld, Lopéz, 2007, p. 157).

Mais que em qualquer sequência são os três quadros destacados acima de El Eternauta II que expõem essas mudanças. Enquanto na primeira história Juan Salvo é movido pela solidariedade aos seus companheiros e é representado como mais um no grupo, aqui seu protagonismo e sua liderança se tornam evidentes. Enquanto no quadro mais ao alto sua figura se impõe em meio ao grupo pela postura, pela centralidade de sua imagem no quadro e pelo tratamento do claro-escuro que a destacam, nos dois quadros seguintes o diálogo estabelece o tipo de relação e de prioridades que a luta contra a dominação dos invasores determina em seu caráter. O sacrifício pedido ao primeiro grupo do comando para possibilitar a infiltração do segundo é visto como uma obrigação necessária pelo salvamento do “povo das covas”. Essa passagem expressa de forma cabal o tipo de pensamento que movia os jovens montoneros que lutavam pela “libertação do povo argentino”. Os paralelos são inevitáveis, ainda que esse tipo de interpretação dependa do conhecimento das condições sociais, políticas e culturais da Argentina do período.

Nessa segunda narrativa Juan Salvo se transmuta de um homem peronista clássico em um líder montonero. O chefe de família dá lugar ao homem capaz de abandonar os seus para partir em uma missão que permita “libertar o povo”, mesmo que isso implique sua morte; o seu empreendedorismo abandona o egoísmo e passa a servir os interesses coletivos e da resistência; seus planos passam a ser os que lhe permitirão a consecução de objetivos políticos e militares, não mais almeja “aquele tipo de prazeres simples” resultante da vida familiar em um bairro de classe média em Buenos Aires.

Em resumo: em El Eternauta II há uma permuta no caráter de Juan Salvo, a personagem passa da representação do ethos do peronista típico do período clássico do movimento, do peronista ortodoxo e conservador, ao ethos do militante da juventude peronista dos anos 1970.

El Nestornauta

Nestor Kirchner é um jovem estudante na Universidade de La Plata nesse período. Como muitos, participa de grupos militantes e se envolve com a política. Seu grupo de amigos e companheiros de política nessa época é composto fundamentalmente por pares da geração setentista. É nesse imaginário que seus discursos vão beber e é no ethos dessa militância que o kirchnerismo se apoia para elaborar o seu próprio imaginário.

As características de coragem, capacidade de liderança, autossacrifício em favor da sociedade e de fidelidade a causas maiores que o personagem El Eternauta assume na segunda narrativa são oportunamente bem-vindas para a representação de um político cujo discurso se articula muito ao redor das expressões e representações que esse universo discursivo pode vincular à sua imagem.

Figura 5 – Imagens de El Eternauta, no desenho de Solano López, e El Nestornauta, em estêncil (fonte: http://en.wikipedia.org/ e http://www.taringa.net/).
Figura 5 – Imagens de El Eternauta, no desenho de Solano López, e El Nestornauta, em estêncil (fonte: http://en.wikipedia.org/ e http://www.taringa.net/).

É nesse quadro que o estêncil de El Nestornauta surge. Interessante perceber que a imagem selecionada para a criação do desenho é originária da primeira história, na qual o personagem ainda mantém características mais coletivistas e uma postura menos heroica com relação ao enfrentamento dos invasores. Uma vez que o lapso de tempo entre a publicação das duas narrativas é de quase 20 anos, as imagens da primeira narrativa são as que mais profundamente se consolidam como parte do imaginário peronista da Argentina, e com muita amplitude. A segunda narrativa, apesar de não mais apresentar a imagem com a roupa isolante que permite sua circulação em meio à nevasca radioativa que tudo mata, não substitui a imagem tradicional de Juan Salvo que é utilizada na criação de El Nestornauta.

Alguns autores afirmam que há uma predominância do ethos militante setentista na formação do imaginário kirchnerista, o que efetivamente permite a construção de um paralelo entre o discurso de Néstor Kirchner e a figura de Juan Salvo na segunda história, uma vez que no período de sua juventude, quando se forma como quadro da militância da juventude peronista “(…) a prática política implicava uma dimensão de sacrifício, audácia, voluntarismo e alto compromisso pessoal e político, compromisso que se figurava como um mandato, um legado ou uma missão herdado de lutas históricas precedentes” (Montero, 2012, p. 131, grifos do original).

No entanto, alguns aspectos denunciam o quanto o ethos kirchnerista mescla as heranças peronistas. O uso de uma imagem que se origina da primeira história é um primeiro fato que aproxima o personagem criado do peronismo clássico, assim como a supressão do rifle. Essas características acentuam a vinculação com uma dada versão do peronismo como força política que vai bem além da herança setentista.

El Eternauta é parte de um corpus de imagens que vinculam o peronismo setentista ao peronismo clássico, centrado na doutrina justicialista e com uma reinterpretação relativa dos seus preceitos básicos. A complexidade e as contradições do peronismo plasmam a construção do imaginário do kirchnerismo, que não nega suas vinculações, por mais que as dissimule em determinados momentos através da valorização da memória geracional na qual se inscrevem tanto Néstor Kirchner quanto Cristina Fernández de Kirchner. Esse movimento engendra a seleção de imagens que viabiliza a formação de um imaginário com múltiplos vínculos com diferentes fases do peronismo, o que viabiliza as diferentes leituras necessárias para a identificação por diferentes frações do peronismo. Daí a utilização de uma imagem de um Juan Salvo clássico e não da sua versão montonera.

Figura 6 – Cartaz da festa de 25 de maio em Buenos Aires no qual se vê a associação explícita entre as imagens de alguns dos personagens centrais do peronismo para o kirchnerismo: Perón, Cámpora, Néstor e Cristina (fonte: https://www.facebook.com/7Diciembre2012).
Figura 6 – Cartaz da festa de 25 de maio em Buenos Aires no qual se vê a associação explícita entre as imagens de alguns dos personagens centrais do peronismo para o kirchnerismo: Perón, Cámpora, Néstor e Cristina (fonte: https://www.facebook.com/7Diciembre2012).

Considerações finais
Dentro da realidade política do peronismo, a mescla de quadrinhos e poder é uma combinação absolutamente compreensível. Primeiro movimento político argentino a se confrontar seriamente com as necessidades do processo da comunicação em uma sociedade de massas, a adoção da história em quadrinhos como forma de expressão do pensamento político se torna um caminho natural para seus simpatizantes e partidários.

Figura 7 – El Eternauta (Oesterheld, Lopéz, 2007, p. 208).
Figura 7 – El Eternauta (Oesterheld, Lopéz, 2007, p. 208).

Para as gerações de argentinos nascidos após 1945 as HQs de El Eternauta constroem um discurso positivo sobre o peronismo e antagônico aos seus perseguidores, uma vez que nas duas épocas em que são publicadas o movimento está sob repressão de governos autoritários. O personagem Juan Salvo passa por um processo de ressignificação que o adapta às diferentes realidades sócio-históricas com as quais o movimento se confronta. A criação de uma figura como a de El Nestornauta é mais uma ressignificação e em seu bojo vincula o peronismo clássico, o peronismo de esquerda setentista e o kirchnerismo, os associando a ideias positivas da doutrina justicialista como nacionalismo, humanismo, justiça social e idealismo.

Nesse contexto, os quadrinhos finais da segunda história, já plenos de significação uma vez que a ação se passa em um suposto dezembro de 1976, ressignificam o peronismo e o inserem em um todo discursivo que reforça seu confronto e a luta contra os regimes autoritários que provocaram tantas decepções e dores ao povo argentino. Assim como Germán, Nestor se alia de forma definitiva a Juan Salvo na luta contra a dominação alienígena.

Voltando ao pensamento de Simmel, se El Nestornauta não nos enganasse e vinculasse o imaginário kirchnerista com uma visão totalizante do peronismo, não exerceria sua função sígnica plenamente, pois deixaria de ser uma parte axial da elaboração desse discurso complexo e não nos brindaria com uma expressão visual plena de vida.


*Amaury Fernandes é diretor da Escola de Comunicação da UFRJ, professor do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da EBA-UFRJ, pós-doutor em Economia-Política da Comunicação pela Universidad Nacional de Quilmes, doutor em Ciências Sociais pelo PPCIS-UERJ, mestre em História da Arte pelo PPGAV-UFRJ, designer pela EBA-UFRJ. Autor do livro Fundamentos de produção gráfica para quem não é produtor gráfico e de diversos artigos sobre artes gráficas, imagem, design e comunicação.

Referências

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FEINMANN, José Pablo. El flaco: diálogos irreverentes con Néstor Kirchner. Buenos Aires: Planeta, 2001.
GALASSO, Norberto. De Perón a Kirchner: apuntes sobre la historia del peronismo. Buenos Aires: Punto de Encontro, 2011.
GENÉ, Marcela. Un mundo feliz: imágenes de los trabajadores em el primer peronismo, 1946-1955. Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica, 2005.
MONTERO, Ana Soledad. ¡Y al final un día volvimos! Los usos de la memoria en el discurso kirchnerista (2003-2007). Buenos Aires: Prometeo, 2012.
OESTERHELD, Hector G.; LÓPEZ, Francisco Solano. El eternauta: edicción especial. Buenos Aires: Doedytores, 2008.
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PERÓN, Eva. La razón de mi vida. Buenos Aires: Bureau, 2010.
PERÓN, Juan Domingo. La comunidad organizada. Buenos Aires: Quadrata, 2007.
PLOTKIN, Mariano. Mañana es San Perón: propaganda, rituales políticos y educación em el regime peronista (1946-1955). Buenos Aires: Ariel, 1994.
POLLASTRI, Sergio. Las violetas del paraíso: una historia montonera. Buenos Aires: El cielo por asalto, 2004.
ROMERO, José Luis. Breve historia de la Argentina. Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica, 2012.
SARLO, Beatriz. La audacia y el cálculo: Kirchner 2003-2010. Buenos Aires: Sudamericana, 2001.
SARMIENTO, Domingo F. Facundo. Buenos Aires: Terramar, 2010.
SIMMEL, Georg. De la esencia de la cultura. Buenos Aires: Prometeo, 2008.

Notas

1 Kirchnerismo é a designação que agrupa os seguidores políticos de Nestor Kirchner e Cristina Fernández de Kirchner na Argentina contemporânea. Sobre o assunto ler Sarlo (2011) e Feinmann (2011).

2 Através de sua participação no golpe de Estado de 1943, Perón ascende ao cargo de Secretário de trabalho e Previdência. No exercício dessa função consegue angariar apoios políticos de militares, empresários e trabalhadores e ascende à vice-presidência. Esse aumento de poder gera receio em outras frações do exército que conseguem seu aprisionamento no começo de outubro de 1945. Na noite de 17 de outubro de 1945 centenas de milhares de manifestantes ocupam a tradicional Plaza de Mayo, em Buenos Aires e exigem sua libertação. Desde então o 17 de outubro é considerado a data natal do peronismo e esse dia é conhecido como “Dia da lealdade” (Romero, 2012). Sobre a história do peronismo, ler Galasso (2011).

3 Sobre o grupo Montoneros ler Pollastri (2004) e Bonasso (2011).

4 Em 1969 o grupo Montoneros sequestra o general Aramburu (líder do golpe de Estado de 1955) e o executa por ter ordenado o fuzilamento de peronistas que resistiram ao golpe. Perón, desde o exílio, qualifica esse agrupamento de “juventude maravilhosa” e os reconhece como “formações especiais do movimento peronista” (Pollastri, 2004, p. 16).

5 Sobre o setentismo ler Amato e Bazán (2008).

6 Na festa do 1º de maio de 1973 houve um confronto entre Perón e os grupos de jovens que se alinhavam sob as bandeiras da Juventude Peronista e dos Montoneros no tradicional ato na Plaza de Mayo. Enquanto Perón defendia as lideranças sindicais, mais vinculadas ao peronismo ortodoxo e ao conservadorismo, os jovens cobram com seus cânticos o reconhecimento de sua militância que havia contribuído para o retorno de Perón do exílio. Ao final Perón qualifica esses jovens de “imberbes e estúpidos” e os grupos de jovens se retiram da praça em meio ao ato entoando cânticos de protesto.

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A revolução da independência: considerações sobre o Catarse e quadrinhos independentes como opção para o mercado editorial | Victor Almeida*

Nos últimos anos, o mercado editorial vem passando por um processo de inquietação devido à inclusão do livro digital nas livrarias. Essa mudança levou a uma série de debates, eventos, artigos e preocupações sobre como essa nova e significativa fase poderia afetar o futuro do livro, seja pela diversificação de plataformas de publicação, seja pelo papel do editor em meio a tantos novos casos de autopublicação. Será o fim do livro de papel em longo prazo, agora que o mercado digital começou? O que farão as pequenas livrarias, agora que a compra de um livro ocorre instantaneamente, com o apertar de um botão? E principalmente: como isso afetará o nosso país?

O Brasil, até a data deste artigo, encontra-se em processo de adaptação, de reposicionamento, e os livros digitais (ou e-books), embora já sejam uma realidade, consequentemente ainda não apresentam grandes resultados em vendas. Carlo Carrenho, fundador do site Publishnews e especialista em mercado editorial, a partir das previsões da DLD (Distribuidora de Livros Digitais) estabelece que, embora esteja em uma curva ascendente de crescimento (ver Figura 1), o mercado digital em 2013 correspondeu a apenas 2,63% do total de vendas (Carrenho, 2013).

Figura 1 - Venda de e-books no Brasil (2012-2013). Fonte: <http://www.tiposdigitais.com/2013/01/o-tamanho-do-mercado-de-ebooks-no-brasil.html>.
Figura 1 – Venda de e-books no Brasil (2012-2013).
Fonte: http://www.tiposdigitais.com/2013/01/o-tamanho-do-mercado-de-ebooks-no-brasil.html.

Um dos motivos básicos para tal dado é a continuidade da pouca prática de leitura em território nacional. Embora o consumo de livros tenha aumentado nas classes C, D e E, avalia-se que a média de leitura brasileira seja de apenas quatro livros por habitante ao ano. Se cogitarmos a aceitação dos e-books, a situação é ainda mais crítica: 45% dos entrevistados nunca ouviram falar de uma versão digital para os livros (Instituto Pró-Livro, 2012).

Logo, a transição continua concentrada nas mãos de poucos. O que pode ser contraditório, já que a principal mudança nesse processo não é a do fim do papel e o início da tela de e-ink com alta resolução. A principal mudança nessa transição, como bem aponta o editor, administrador e teórico Júlio Silveira, está no acesso, na facilidade de publicação, na facilidade do produto chegar à mão do leitor sem intermediários. Como resultado, vemos cada vez mais casos internacionais de autores reconhecidos com projetos de self-publishing e a Amazon defendendo abertamente o fim das editoras na Feira do Livro de Londres ao apresentar o Kindle Direct Publishing, seu serviço de publicação independente, iniciando uma “revolução para novos autores” e uma reação furiosa dos editores (Silveira, 2013).

No caso dos quadrinhos, um exemplo positivo dessa lógica está em uma HQ nacional com trilha sonora, criada por autores desconhecidos (até então) pelo grande público. O que poderia parecer um projeto financeiramente inviável para algumas editoras, tornou-se realidade no fim de 2011, quando a HQ Achados e perdidos do roteirista Eduardo Damasceno, do ilustrador Luís Felipe Garrocho e do músico Bruno Ito passou a ser, com a ajuda de 571 apoiadores, um dos primeiros quadrinhos publicados de forma bem-sucedida por uma plataforma de crowdfunding, ou melhor, de financiamento coletivo.1

O projeto, planejado desde 2007, acabou se tornando um material impresso de 212 páginas de quadrinhos e extras, acompanhado por um CD encartado. Para os leitores/ouvintes, fica a opção de ler a obra sem ouvir o CD, ouvir o CD separadamente ou unir as duas mídias para uma experiência completa. Para a impressão do álbum e gravação dos CDs seriam necessários 25 mil reais como custo de produção. O trio arrecadou mais de 30 mil reais e se tornou um exemplo para novos artistas publicarem pelo mesmo caminho. Em 2012, a HQ passou a ser publicada pela editora Miguilim.

Ao ser questionado sobre o motivo pelo qual publicaram por essa forma de financiamento, pouco explorada na época, Damasceno alegou que

essa forma de financiamento (…) está muito de acordo com o que a gente acredita em relação à produção de entretenimento. A ideia de as pessoas que querem ver o livro pronto bancarem a produção dele é sensacional. Não vejo tanto como renovação, ou algo do tipo porque ainda acho tanto as editoras quanto os editais formas interessantes, consolidadas e bem estruturadas de se viabilizar projetos. Mas pra gente, nesse momento, o crowndfunding se encaixou perfeitamente no que estávamos querendo e na forma como produzimos. Espero sim que com o tempo e à medida que mais projetos forem acontecendo assim se torne mais uma plataforma de publicação. Não tenho nenhum tipo de ranço com o sistema de publicações por editoras ou coisa do tipo. Nós somos dois, e ambos extremamente exigentes com o nosso trabalho, com o de cada um e com o do outro. Tentamos fazer o melhor que podemos sendo nossos próprios editores (grifos meus). 2

Em sua resposta, o roteirista citou dois pontos relevantes, que serão abordados neste artigo: a) O que necessariamente é o crowdfunding/financiamento coletivo e qual a sua vantagem na publicação de quadrinhos? e b) Qual é o papel do leitor de quadrinhos nessa plataforma de publicação?

O mercado independente de quadrinhos e o crowdfunding

Uma das maiores surpresas do mercado editorial de quadrinhos no Brasil nos últimos anos foi a quantidade de títulos lançados de maneira independente. Não apenas a quantidade, mas a qualidade, comprovada pelos prêmios recebidos pelos artistas.

Embora já haja categorias específicas para publicações desse tipo,3 o Troféu HQ Mix, uma das mais tradicionais premiações dos quadrinhos brasileiros, deu a Vitor Cafaggi,4 roteirista e quadrinista independente, o prêmio de “Novo Talento – roteirista” em 2012. No mesmo ano, Birds, um trabalho independente e sem nenhum balão de texto, deu a Gustavo Duarte o prêmio de “Publicação de Aventura/Terror/Ficção”.5 Achados e perdidos recebeu uma homenagem especial.

Esse número de indicações só aumenta se avaliarmos a lista de indicados ao HQ Mix 2013, divulgada em abril deste ano.6 E com uma interessante surpresa: muitos dos títulos nascidos por projetos de crowdfunding e artistas que ou optaram ou estão optando por publicar dessa forma. Mas o que é crowdfunding? De forma bem simples, o termo é usado para designar as iniciativas de financiamento colaborativas em que:

Os diversos projetos como, por exemplo, (…) a produção de um CD de uma banda ou a publicação de um livro, são hospedados em um site voltado para captação de doações coletivas em prol da efetivação do trabalho apresentado (Cocate & Pernisa Júnior, 2012, p. 135-136).

Dessa forma, o autor estabelece a quantidade necessária para possibilitar a realização do seu projeto ou negócio, espalha a sua ideia, e depois recompensa os que o apoiaram financeiramente. Essas recompensas, por sua vez, dependem do valor investido no projeto. No caso do Achados e perdidos, por exemplo, as recompensas variaram desde o nome do colaborador na página do livro, caso investisse R$10; um pacote com livro, CD, pôster, postal, bóton, camiseta, adesivo, caderno, esboços originais autografados, caso investisse R$100 e até uma música original do Bruno Ito, caso investisse mais de R$1.000.

Um estudo divulgado pela consultoria Massolution mostrou que só em 2012 esse tipo de financiamento movimentou US$2,7 bilhões no mundo. E, para 2013, a previsão era de US$5,1 bilhões (Mello Dias, 2013).

No quesito livros, o primeiro grande caso de sucesso referente a financiamento coletivo foi a plataforma britânica Unbound, criada por John Mitchinson, um dos diretores da cadeia de livrarias Waterstone (Silveira, 2012). Nela, interessados em publicar apresentam a sinopse do livro. Os leitores/internautas que apoiarem a história “compram” a ideia. Essa “compra” consiste em valores de 10 a 250 libras. Além de ser uma ótima ferramenta de feedback, já que os leitores podem opinar ou sugerir os temas para os próximos livros, todos os colaboradores têm seus nomes publicados no final de cada obra e recebem participação nos lucros, caso o mesmo seja publicado. Quando a quantia necessária não é atingida, os colaboradores/investidores são reembolsados ou recebem a opção de investir em outro projeto.

E para os quadrinhos? O teórico e quadrinista Scott McCloud afirma em seu livro Reinventando os quadrinhos que “temos de perguntar o que os quadrinhos podem fazer num ambiente digital e quais dessas opções se mostrarão valiosas a longo prazo”. (McCloud, 2005, p. 207). Para o mercado independente, ou seja, para os autores que apostam em publicar suas obras sem a presença de um editor, a solução pode estar no Comixology ou no Catarse.

Para artistas que preferem publicar apenas digitalmente, ou seja, sem um formato físico de capa, miolo e tinta, o Comixology é uma boa opção. Inicialmente, o site trabalhava apenas como plataforma de distribuição, busca e organização de títulos digitais das principais editoras norte-americanas, tendo atualizações semanais. Mas a partir de março de 2013, ficou disponível o portal ComiXology Submit, para que criadores de HQs possam submeter suas histórias gratuitamente. Após a inscrição e submissão do material, os quadrinhos são avaliados e, caso sejam aprovados, são exibidos no portal principal, onde podem ser comprados pelos leitores em versões para iPad, iPhone, Android, Kindle Fire, Windows 8 e Internet. O lucro com as vendas é dividido entre o autor e o ComiXology, mas o artista mantém integralmente os seus direitos sobre a sua criação.7

Lançado em janeiro de 2011, o Catarse, por sua vez, é a primeira plataforma brasileira de crowdfunding. Inspirado no Kickstarter8 e criado em 2008, tem o seu perfil mais voltado ao empreendedorismo cultural e artístico. Utilizando a estratégia de apresentar o projeto, buscar colaboradores e recompensá-los, como explicado anteriormente, o autor tem até sessenta dias (prazo máximo) para captar o dinheiro necessário para cobrir as despesas de produção. O valor financiado pelos apoiadores é repassado ao idealizador do projeto, e este paga ao Catarse 13% da quantia recebida, sendo que este valor inclui tanto a comissão do Catarse como a taxa do meio de pagamento, que processa as transações. Sendo assim, se o projeto não atingir o objetivo e não arrecadar a quantia estipulada, o valor pago pelo apoiador é devolvido.

Desde a sua criação até meados de 2013, o Catarse já havia levantado R$7,3 milhões, financiando assim 520 projetos. Embora as áreas de música e cinema liderem em número, a categoria mais bem-sucedida é a de quadrinhos: 75% dos projetos atingem a meta (Mello Dias, 2013) alguns ultrapassam em 100% o valor dessa meta pretendida (ver projetos em negrito na Tabela 1).

Na prática, a plataforma acaba superando em número de lançamentos nacionais (de artistas diferentes) as editoras especializadas no gênero. Por exemplo, nos anos de 2012 e 2013 a Quadrinhos na Cia., selo de quadrinhos da editora Cia. das Letras, publicou dez obras nacionais, de autores como Angeli, Luiz Gê e Lourenço Mutarelli (Tabela 2). No mesmo período, o Catarse possibilitou a produção e publicação de 60 projetos.

Título Autor(es) Período de finalização do projeto Quantidade levantada Porcentagem conquistada
O beijo adolescente 3 Rafael Coutinho 29/12/2013 R$ 41.366 105%
Mistiras – volume 1 Ary Santa Cruz Netto 02/12/2013 R$ 6.765 106%
Mês Mês Zines 30/11/2013 R$ 15.101 116%
Portais Octavio Cariello 30/11/2013 R$ 30.795 123%
Golden age – a era de ouro dos quadrinhos Marcelo e Alice Feldmann 29/11/2013 R$ 38.923 112%
Objetos inanimados João Bandeira 24/11/2013 R$ 9.815 119%
Visualizando Citações Milena Azevedo 19/11/2013 R$ 8.065 124%
Ana e o Sapo: quadrinhos de um quadro só Ana Lu Medeiros 19/11/2013 R$ 8.580 143%
A Vida com Logan para Ler no Sofá Flavio Soares 18/11/2013 R$ 16.990 113%
Fazendo o Homem Acreditar Felipe Morcelli 17/11/2013 R$ 14.880 148%
Zine XXX Vários 14/11/2013 R$ 20.649 187%
Passaporte Jão 09/11/2013 R$ 8.145 116%
Conexão Nanquim Impressa! Caique Felipe Suikin 31/10/2013 R$ 8.276 118%
Peixe Peludo 2 Rafael Moralez 29/10/2013 R$ 7.470 114%
Lost Kids: Buscando Samarkand Felipe Cagno 27/10/2013 R$ 45.464 151%
Ozman Nêmesis André Freitas 27/10/2013 R$ 6.210 103%
Ghilan Mariá Raposa Branca 27/10/2013 R$ 5.290 176%
Coletânea Tarja Preta Volume I Matias Maximiliano 26/10/2013 R$ 14.031 112%
São Paulo dos Mortos Daniel Esteves 23/10/2013 R$ 16.250 146%
Quad! Diego Sanches 13/10/2013 R$ 25.905 172%
Revolta! André Caliman 08/10/2013 R$17.540 116%
Oigo edições 02 e 03 Diego José 05/10/2013 R$ 2.915 107%
Nem morto – Apocalipse Leonardo Finocchi 03/10/2013 R$ 8.161 136%
Terapia – vol. 1 Portal Petisco 01/10/2013 R$ 40.730 135%
Por dentro do Máscara de Ferro Bernardo Aurélio 30/09/2013 R$ 2.815 140%
Maki Lobo limão 23/09/2013 R$ 15.407 154%
Perpetuum Mobile Diego Sanchez 16/09/2013 R$ 9.574 478%
Cara, eu sou legal! Marília Bruno 07/09/2013 R$ 5.465 182%
Mercenary Crusade Alex D’Ates 25/08/2013 R$ 5.605 101%
Coprólitos – Antologia Marcatti 20/08/2013 R$ 15.557 185%
Ícones dos quadrinhos Ivan Costa 20/08/2013 R$ 61.665 181%
Ciranda da Solidão – EntreQuadros Mário Oliveira 08/08/2013 R$ 9.942 111%
Votu – O Demônio da Amazônia Mario Cavalcanti 30/07/2013 R$ 5.056 115%
Guias do SEXO ilustrados Lasiva 25/07/2013 R$ 15.469 130%
Cuecas por cima das calças Rafael Koff 07/07/2013 R$26.113 522%
Apagão – vol. 1 – cidade sem lei/luz Raphael Fernades 05/07/2013 R$ 21.347 190%
Egum André Luiz Alonso de Assis 14/06/2013 R$28.157 117%
A maldição de Boa Fortuna André Só 24/05/2013 R$24.010 112%
Gnut Paulo Crumbim 20/04/2013 R$25.836 143%
O monstro Coala 05/04/2013 R$43.643 201%
Libre! Librecoletivo 29/03/2013 R$14.931 212%
Abaité: bandeirantes Richard Dantas Guarani-Kayowá 21/03/2013 R$5.499 122%
Shogum dos mortos – vol. 1 – Crepúsculo dos samurais Daniel Wernëck 16/03/2013 R$30.976 333%
Combo rangers Fabio Yabu 19/02/2013 R$67.540 169%
Freddy and Jason have fun Rafael Koff 08/02/2013 R$6.200 206%
Livro comemorativo 10 anos de tira Vida de leiturista Karlo Campos 04/02/2013 R$6.070 101%
Mascate – Motioncomic Yves Santaella Briquet 26/01/2013 R$13.265 110%
Tools challenge volume 1 Max Andrade 18/01/2013 R$6.305 126%
Samba 3 (SAMBA) 09/12/2012 R$17.655 117%
Ryotiras Omnibus Ricardo Tokumoto 27/09/2012 R$33.059 220%
Álbum de coletânea do Petisco Cadu Simões 21/09/2012 R$16.535 110%
Tirinhas do Zodíaco (2ª edição) Rafael Koff 11/09/2012 R$8.745 174%
Happy Slap! Maxx Figueiredo 31/08/2012 R$8.960 100%
Salomão Ventura – Caçador de lendas #3 Giorgio Galli Neto 30/08/2012 R$2.246 124%
Last RPG Fantasy – Livro jogo Lobo Limão 26/08/2012 R$16.852 129%
O beijo adolescente – Segunda temporada Rafael Coutinho 19/08/2012 R$36.735 114%
Revista Café Espacial nº 11 Café Espacial 13/08/2012 R$5.621 112%
Zinecórnio nº3 Mayara Pascotto 21/07/2012 R$300 142%

Tabela 1 – Produções financiadas nos anos de 2012 e 2013.
Fonte: http://catarse.me/pt/explore#quadrinhos.

Título Autor(es) Ano de publicação
Campo em branco Emilio Fraia e DW Ribatski 2013
O lixo da história Angeli 2013
V.I.S.H.N.U. Eric Acher, Ronaldo Bressane e Fábio Cobiaco 2012
Guadalupe Odyr e Angélica Freitas 2012
A máquina de Goldberg Vanessa Barbara e Fido Nesti 2012
Monstros! Gustavo Duarte 2012
Toda Rê Bordosa Angeli 2012
Diomedes – A trilogia do acidente Lourenço Mutarelli 2012
Deus, essa gostosa Rafael Campos Rocha 2012
Avenida Paulista Luiz Gê 2012

Tabela 2 – Lançamentos nacionais da Quadrinhos na Cia.
Fonte: http://www.companhiadasletras.com.br/busca.php?b_categoria=77&b_filtro=livro.

A relação de sucesso dessas publicações pelo Catarse leva a conclusão de que o modelo crowdfunding funciona melhor, sem dúvida, nos casos em que a pessoa que incentiva o faz porque gosta e se identifica com os projetos. E o seu público-alvo bem específico talvez seja a explicação para os quadrinhos serem, até agora, uma das áreas do mercado editorial que melhor teve aceitação nesse novo modelo.

Se a “preocupante” revolução digital está sendo bem-sucedida com os quadrinhos, a diferença pode estar na presença de seus fãs. No seu carinho pelo trabalho dos autores e por sua cada vez maior participação no mercado.

O papel do fã no crowdfunding

Um bom exemplo da relação dos fãs com plataformas de financiamento é o projeto brasileiro Queremos. A ideia nasceu da vontade de trazer ao Brasil a banda sueca Mike Snow em setembro de 2010. Conquistada a meta, dois meses depois, uma nova proposta foi proposta: trazer a banda escocesa Belle & Sebastian, há nove anos ausente de nosso país. Para tanto, seria necessário captar o valor de 56 mil reais.

Um site foi criado e o plano mais uma vez foi bem-sucedido ao convencer 280 pessoas a pagar R$200 por ingresso reembolsável. Com o custo do show pago, os organizadores iniciaram a venda do restante dos ingressos por R$100. Ao atingir certo número de ingressos vendidos, as 280 pessoas que financiaram o projeto tiveram retorno integral do investimento. Os shows e o projeto continuam até hoje com imenso sucesso.9

Este é apenas um exemplo de uma mudança recorrente na posição do consumidor na sociedade. A globalização modificou drasticamente o consumo e a produção de sentidos, ao mesmo tempo que, finalmente, possibilitou o fim da relação unilateral entre os produtores de conhecimento e seus receptores, que deixam de viver em uma sociedade de consumo taylorista/fordista, em que o papel do consumidor é de simples aquisição do produto, passando para a era do chamado “capitalismo cognitivo”:

No contexto do capitalismo cognitivo, o consumo não é mais destrutivo e sim produtivo, de forma que a articulação das novas tecnologias, a ‘convergência multimídia’, faz com que os usuários/consumidores transformem-se em usuários/produtores, rompendo a tradicional separação entre trabalho e meios de produção – o antigo controle sobre as tecnologias de produção e comunicação que centralizava e emissão de conteúdos em poucos grupos monopolistas – e entre mundo do trabalho e mundo da vida privada. Os novos parâmetros de produção no capitalismo cognitivo estabelecem-se justamente na interação entre produtores e usuários que formam, através do uso e apropriação das ferramentas informacionais (os softwares), redes coletivas de interação produtiva (denominadas netwares) (Gabbay, 2003, p. 3).

Na equação de sucesso dos quadrinhos independentes pelo Catarse, acrescenta-se a esse novo posicionamento o conceito de LoveMark. Em Cultura da convergência, Henry Jenkins o define como as marcas que conquistam o amor e o respeito do consumidor por meio de um novo discurso em marketing e pesquisa que “enfatiza o envolvimento emocional dos consumidores” (Jenkins, 2008, p. 333).

Leitores são fiéis a autores. Leitores de quadrinhos são fiéis a autores, ilustradores, universos e, em alguns casos, ao formato pelo qual tais histórias são transmitidas. Embora não tenha o poder de criar um best-seller, considerando que é um nicho de mercado, são um público-alvo fiel. E convidá-los a participar da construção desse universo é uma forma de fidelizá-los ainda mais.

Dessa forma, em meio à terra da Internet, lugar de Photoshops, blogs, vlogs, fotologs e youtubes, onde nascem cada vez mais homenagens e histórias alternativas por meio de fanfics (contos), fanarts (ilustrações), vídeos remixados etc., os fãs, em seu posicionamento de também produtores, acabam incentivando e difundindo a indústria. Eles conseguem assimilar as convergências midiáticas, as sucessivas atualizações e determinações tecnológicas e desenvolver esses universos ricos. São consumidores e propagadores. De acordo com Jenkins, eles são “os grandes defensores da marca (…) aqueles que sugerem melhorias e espalham novidades sobre a marca nos meios em que podem publicar. O consumidor mais valioso pode ser o mais passional” (Jenkins, 2008, p. 47).

Assim, por meio dessa cultura participativa, o fã tem a oportunidade de tomar parte mais ativamente, evoluindo do consumidor passivo para uma parte integrante do negócio e, nesta nova etapa de financiamento coletivo, de parte integrante do negócio para responsável pela produção.

Um bom e recente caso que combina a cultura da participação e o LoveMark nos quadrinhos é a série Combo Rangers. Idealizada em 1998 por Fábio Yabu, hoje mais conhecido como o criador da série Princesas do mar, a série de webcomics feitas em Flash era uma paródia dos seriados super sentai10, como Flashman, Changeman etc. Neste caso, cinco crianças eram escolhidas por um herói aposentado, Poderoso Combo, para receber poderes e defender a Terra de ameaças alienígenas.

A divertida série infantojuvenil resultou em três temporadas11 e duas versões impressas, uma pela editora JBC, em 2000, e uma pela Panini Comics, em 2004, ano em que foi aposentada pelo autor. Mesmo com as críticas e pedidos dos leitores, Yabu decidiu não dar continuidade ao universo dos Combo Rangers nos últimos dez anos e começou a se dedicar a outra série, voltada mais para o universo infantil feminino: Princesas do mar. As princesas do mundo de Salácia renderam ao autor oito livros e uma série animada exibida no canal Discovery Kids. Nesse meio-tempo, Yabu escreveu alguns livros, como Raimundo, cidadão do mundo e Apolinário, o homem-dicionário (Panda Books) e A última princesa (Galera Record). Sob o pseudônimo de Abu Fobiya, lançou ainda pela editora Nerdbooks Branca dos Mortos e os sete zumbis (posteriormente reeditada pela Editora Globo, em 2013)e a HQ Independência ou mortos.

Os meus quadrinhos são feitos para pessoas de várias idades e gostos. Aos 17 anos, eu já tinha leitores fiéis por conta dos Combo Rangers. Fui amadurecendo e comecei a fazer trabalhos diferentes. E o que acho mais interessante é que, hoje, falo com várias gerações, às vezes na mesma casa. Tenho vários leitores fãs do Combo Rangers que têm filhos fãs das Princesas do Mar (Gama, 2013).

O carinho dos fãs de seu primeiro trabalho o levou a lançar, em dezembro de 2012, uma campanha de financiamento coletivo no site Catarse para criação de dois álbuns dos Combo Rangers12 com distribuição pela editora JBC. De acordo com o autor, o momento era apropriado porque “com as redes sociais e o advento do crowdfunding, autores e fãs podem trabalhar juntos para realizar projetos que antes eram impossíveis”.

Os fãs retribuíram o apelo: em menos de duas semanas foram arrecadados os R$40 mil suficientes para tocar o projeto, que recebeu o investimento de R$67.940.

Considerações finais

O caso Combo Rangers tem um diferencial interessante: a inclusão de uma editora. Embora o custo de produção seja dos leitores por meio do financiamento coletivo, a distribuição e impressão serão feitas pela editora JBC. Esse caso entre uma plataforma interessante para publicações independentes e o trabalho tradicional de uma editora, porém, não é isolado. Em setembro de 2012, o escritor e ilustrador Loureço Mutarelli se aliou à editora independente Pop e colocaram no Catarse o projeto bem-sucedido Os sketchbooks de Lourenço Mutarelli, uma coleção de cadernos de esboços do autor. Em maio de 2013 o roteirista Raphael Fernandes se aliou à editora Draco, onde trabalha como editor de quadrinhos, para viabilizar Apagão vol. 1 — Cidade sem lei/luz, obra em quadrinhos que também já alcançou sua meta para publicação.

Embora essas propostas nasçam de editoras pequenas, é interessante notar que existam iniciativas que fogem do tradicional processo cujo fim é tão somente a livraria. Ao mesmo tempo que tornam condizente a abertura para publicações de nicho, já que optam por um canal que vai ao encontro dessa lógica, inicia-se uma compreensão de que o crowdfunding vai muito além do papel de financiador. “O que se obtém ao fim de uma campanha é visibilidade. Antes mesmo de o livro ser lançado, o público já ouviu falar (bem) dele” (Silveira, 2012).

Ainda que o futuro do status quo do mundo editorial ainda seja incerto, é benéfico que o mercado preste atenção a essas “revoluções digitais” e (por que não?) agregue parte dessa lógica à sua rotina editorial. Seja por iniciativas e flertes com o financiamento coletivo seja pelo interesse pelos artistas que se destacam em projetos nascidos desse meio. Não foi, portanto, tão surpreendente que três das equipes criativas dos novos projetos de adaptação dos personagens de Maurício de Sousa para graphic novels, anunciados durante o Festival Internacional de Quadrinhos de 2013, fossem de coletivos independentes: Eduardo Damasceno e Luís Felipe Garrocho, da webcomic Quadrinhos Rasos e do grupo Pandemônio, assinarão a história do Bidu. O casal Paulo Crumbim e Cristina Eiko, da Quadrinhos A2 e também do grupo Pandemônio, serão os responsáveis pelo Penadinho. E a Turma da Mata será repensada pelo trio Greg Tocchini, Artur Fujita e Davi Calil, do coletivo de artistas Dead Hamster.

O diferente, às vezes, surge para ser compreendido, não combatido. Lançamentos exclusivos para o digital ou projetos que dão a chance para os leitores investirem e financiarem um livro esquecido de catálogo, por exemplo, podem garantir uma nova vida para esses títulos. Serão best-sellers? Não, mas quando somados… eis a cauda longa (Anderson, 2006).13

O futuro dos livros e dos quadrinhos ainda está sendo decidido. Os autores podem negligenciar as livrarias físicas e as casas editoriais ou novas relações de negócios podem surgir, em que as grandes, médias e pequenas editoras terão que reavaliar seus valores, cada uma à sua maneira, e os papéis do editor e do autor poderão ser repensados. Pensando no melhor para o leitor, obviamente.


* Victor Almeida é pós-graduando em Literatura Infantojuvenil pela Universidade Federal Fluminense (UFF), especialista em Publishing Management pela Fundação Getulio Vargas (FGV) e graduado em Comunicação Social com habilitação em Produção Editorial pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Editor-assistente de literatura estrangeira na editora Arqueiro, do grupo Sextante.

Referências

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Notas

1 Dados retirados da página do projeto, acessível em http://catarse.me/pt/238-achados-e-perdidos.

2 Trecho retirado da entrevista concedida por Eduardo Damasceno e Luís Felipe Garrocho ao Garagem Hermética Quadrinhos. Acessível em http://gHQ.com.br/entrevista-eduardo-damasceno-e-luis-felipe-garrocho/

3 Publicação independente de autor, publicação independente de grupo e publicação independente edição única.

4 Esse destaque ao trabalho de Cafaggi resultou no convite do estúdio Maurício de Sousa para ilustrar e roteirizar uma graphic novel da Turma da Mônica com sua irmã, Lu Cafaggi. O novo trabalho, intitulado Laços, foi lançado no mês de maio de 2013. Durante o Festival Internacional de Quadrinhos de 2013, o editor do projeto, Sidney Gusman, anunciou a produção de uma continuação da obra para 2015.

5 Gustavo já havia conquistado o Troféu HQ Mix de desenhista revelação em 2010. Em 2011, recebeu o Prêmio Angelo Agostini como melhor cartunista brasileiro e outro HQ Mix como melhor caricaturista nacional. Suas obras Có! e Táxi também deram a ele prêmios na categoria “Publicação independente edição única” em 2010 e 2011, respectivamente. Em 2012, Birds também foi escolhida como melhor “Publicação independente de autor”. Gustavo participou também do projeto MSP, ilustrando e roteirizando uma graphic novel do Chico Bento. Em 2014, a editora Dark Horse Comics publicou nos Estados Unidos a coletânea Monsters and other stories, contendo as histórias Có!, Monstros! e Birds.

6 Lista acessível em http://oglobo.globo.com/blogs/gibizada/posts/2013/04/11/os-indicados-ao-HQmix-2013-493037.asp.

7 Dados retirados do site, acessível em http://www.comixology.com/submit.

8 Página do projeto, acessível em http://www.kickstarter.com/.

9 Página do projeto, acessível em http://www.queremos.com.br/.

10 Super sentai é uma franquia japonesa para televisão. A premissa básica é a de um grupo de geralmente cinco heróis que ganham poderes especiais, usam roupas de cores variadas e possuem um robô gigante para combater ameaças alienígenas ou vindas da própria Terra.

11 Combo Rangers (1998-1999), Combo Rangers Zero (1999-2000) e Combo Rangers Revolution (2000-2001).

12 Página do projeto acessível em catarse.me/pt/comborangers.

13 O termo “cauda longa” descreve a teoria do físico e escritor Chris Anderson em que produtos de baixa demanda ou com um baixo volume de vendas podem coletivamente alcançar uma fatia do mercado que rivaliza ou excede os poucos mais vendidos, se a loja ou canal de distribuição for grande o bastante. Por exemplo, uma porção significativa das vendas da Amazon é proveniente de livros obscuros que não estão disponíveis em lojas físicas.

Tempo de leitura estimado: 22 minutos

Perpetuação e fatalismo em Um contrato com Deus de Will Eisner: palavra, imagem e narrativa | Rogério Câmara*

Um contrato com Deus é uma trilogia formada por Um contrato com Deus e outras histórias de cortiço (1978), A força da vida (1988) e Avenida Dropsie: a vizinhança (1995), que se passa na Avenida Dropsie, uma vizinhança ficcionalizada por Will Eisner, localizada ao sul do Bronx, em Nova Iorque. Com Um contrato com Deus, Eisner inaugura a produção do que ficou conhecido como graphic novels. Muito já se discutiu sobre a origem da expressão, se fora ou não criada por Eisner, quando o próprio veio a identificar o uso anterior do termo. A originalidade de Eisner, no entanto, reside em propor uma espécie de obra literária popular tendo os quadrinhos como meio. Eisner repensa o uso do espaço, o formato, a relação entre o texto e a imagem e toda a estrutura narrativa. No período em que desenvolveu o primeiro volume da trilogia, Eisner começa a ensinar na School of Visual Arts, o que o levou a sistematizar os seus métodos, dando origem à publicação dos manuais Quadrinhos e arte sequencial (1985) e Narrativas gráficas (1996) e postumamente Expressive Anatomy (2008). A partir da trilogia e de suas reflexões teóricas analisa-se, neste artigo, a concepção e produção das graphics novels, problematizando-se as analogias que o quadrinista estabelece entre a linguagem verbal e a narrativa gráfica da ação. É significativo o fato de Eisner concluir sua trilogia com Avenida Dropsie: a vizinhança, um relato histórico protagonizado pelas relações de vizinhança, enquanto os dois primeiros têm como foco alguns moradores residentes na avenida. Avenida Dropsie é um épico que trata dos períodos de vida das vizinhanças, as quais, segundo Eisner, “nascem, evoluem, amadurecem e morrem” (2004). O foco não é o declínio dos prédios, pois “as vidas dos habitantes são a força interna que gera a decadência. As pessoas, não os prédios, são o coração da matéria” (idem). Eisner se expressa em personagens preocupados com os desafios da vida cotidiana e suas relações nem sempre amistosas.

Dropsie seria o sobrenome de uma família de fazendeiros holandeses, os primeiros a ocuparem o local ainda no século XIX. A chegada de ingleses marca a primeira tragédia. Hendrik Dropsie, ao lado da filha, da mulher e de Dirk, o irmão bêbado, observa com admiração e complacência o crescente domínio estrangeiro. Revoltado, Dirk resolve atear fogo no cultivo daqueles que por ele são considerados usurpadores e acaba atingindo a sobrinha que tentava impedi-lo. Hendrik, ao ver com desgosto a perda da filha, mata o irmão a tiros e os enterra no jardim. Duas décadas depois, Hendrik Dropsie, em situação de pleno abandono, acidentalmente ateia fogo na própria casa. Nesse momento, a avenida já era dominada por casas de luxo, sonho de consumo de qualquer boa família inglesa. A nova configuração é perturbada pela compra do terreno dos Dropsie por novos ricos irlandeses. E, nesse relato histórico da avenida, sucedem-se diversas transformações urbanas, acompanhadas de conflitos étnicos, sobretudo entre ingleses, irlandeses, judeus, negros e latinos. Pessoas que, segundo Eisner, em sua maioria não arredavam o pé dali, pois vieram de lugares bem mais hostis (Eisner, 2007, p. 9). As relações de vizinhança descritas por Eisner são violentas, apaixonadas, solitárias, desequilibradas e, sobretudo, humanas. Todos procuram uma forma de sobreviver.

No conto “Um contrato com Deus”, Eisner coloca em questão as possibilidades de aliança com Deus, seu valor e o sentido do infortúnio. O personagem Frimme Hersh tem todas as suas crenças destruídas após a morte de sua filha adotiva. Fato que não era para ele admissível, pois Hersh havia cunhado em pedra um contrato com Deus, no qual se comprometia a se dedicar ao bem, o que, supostamente, o livraria de todos os reveses. Com o infortúnio rompe seu contrato e, se apossando dos títulos de uma sinagoga que lhes foram zelosamente confiados pelos rabinos, adquire um prédio na Avenida Dropsie e se torna um empresário e proprietário implacável. Os proprietários são sempre os inimigos comuns dos moradores da avenida, já anunciara Eisner na introdução ao conto. Mais tarde, já rico e poderoso, devolve com juros o dinheiro extraído da sinagoga e solicita aos rabinos, em troca de uma doação, um novo contrato com Deus. Este, agora, seria validado por sábios conhecedores da palavra santa. Os rabinos relativizam a demanda para não confrontarem a lei de Deus. De posse do “genuíno” contrato, Hersh chora na expectativa de uma nova vida — se casar e ter uma filha. Logo a seguir, num rompante, Hersh desafia Deus a violar um contrato com testemunhos e cai fulminado por um enfarte. Anos mais tarde, Eisner, que havia perdido sua única filha para a leucemia com a idade de dezesseis anos, assumiria a natureza autobiográfica de sua história. Para Eisner, escrever a história seria uma forma de exorcizar sua “raiva contra uma divindade que eu acreditava que havia violado a minha fé” (apud: Schumacher, 2013, p. 232).

Em A força da vida, o personagem Jacob se vê desempregado após sua “tarefa sagrada” de construir uma sala de estudo numa sinagoga. Caído em um beco e completamente desiludido, se questiona sobre os desígnios de Deus: “se o homem criou deus…então a razão pra viver está apenas na cabeça do homem. Por outro lado se… Deus criou o homem.. então, a razão da existência ainda é só um palpite… no frigir dos ovos… quem realmente conhece a vontade de Deus?” (Eisner, 2007, p. 24). Em sua angústia, Jacob deduz que o ponto em comum entre a sua vida e a de uma barata é simplesmente manter-se vivo. A coletânea detalha a coragem, a alegria e a tragédia do cotidiano da cidade na fluência do estilo gráfico de Eisner, que faz uso evocativo da textura e da atmosfera.

Eisner inicia sua carreira nos anos 1930, quando os quadrinhos rompem com a fronteira das charges e das tirinhas de jornais e passam a ser veiculados também em revistas e em livros. Em sua origem os livros de histórias em quadrinhos pouco tinham de literários mas conquistavam espaço junto aos jovens e já se via a necessidade do desenvolvimento de uma linguagem específica. Eisner, preocupado com o alcance do meio e sua colocação no mercado, teve participação ativa em todos os campos do processo de produção. Ele veio a atuar como empresário, editor, sindicalista e, sobretudo, como autor e desenhista de histórias em quadrinhos. Com o lançamento do primeiro volume da trilogia Um contrato com Deus e outras histórias de cortiço, em 1978, Eisner se aventura a pensar um produto que obtivesse atenção do adulto e dimensão literária. 

Realiza um álbum com configuração distinta de uma revista em quadrinhos, adotando o formato brochura e ilustração de capa que se distanciasse da literatura infantil. Schumacher relata o diálogo de Eisner com um livreiro e a dificuldade deste em encontrar o setor adequado para o livro em sua livraria, em função da pouca familiaridade com a graphic novel naquele momento. A publicação passa pela seção de destaque com certo sucesso. Com a chegada dos novos lançamentos, é deslocado para a seção de livros religiosos. Após protestos de um cliente, passa à seção de humor e, enfrentando novas insatisfações, termina numa caixa alojada no sótão (Schumacher, 2013, 241).

Propondo estabelecer linguagem apropriada ao novo gênero literário, Eisner relata suas exigências:

Ao contar essas histórias, tentei me ater à regra do realismo, que requer que a caricatura ou o exagero aceitem os limites da factualidade (…) Para atingir essa dimensão, tive que deixar de lado dois limitadores básicos que constantemente inibem a criação nesse meio — o espaço e o formato. Cada história foi, portanto, escrita sem preocupação com o espaço que iria ocupar, e seu formato surgiu da própria narrativa. Aos quadrinhos normais associados à arte sequencial (HQ) foi dada a liberdade de tomar suas próprias dimensões. Por exemplo, em muitos casos uma página inteira é usada para um único quadro. O texto e os balões estão interligados à arte. Eu os considero como fios de um mesmo tecido e faço uso deles enquanto linguagem. Caso eu tenha atingido meu propósito, não haverá interrupções no fluxo da narrativa, porque figura e texto serão tão interdependentes a ponto de serem inseparáveis (apud Schumacher, 2013, p. 234).

Estas definições são o fundamento da escritura gráfica de Eisner. O uso recorrente da monocromia em suas graphic novels favorecem a relação estreita entre o universo do verbal e da imagem, mantendo-os sob os mesmos atributos gráficos. Em Um contrato com Deus e outras histórias de cortiço o autor chegou a cogitar o uso de cores, mas terminou por optar pelo uso da cor sépia, conferindo não só uma maior dramaticidade às histórias, como também uma visualidade estrutural que integra, em princípios comuns, o universo do verbal e da imagem. A linguagem gráfica é definida pela linha, elemento próprio da escritura, que serve tanto ao desenho da letra, como aos personagens e aos cenários. Estabelece-se, assim, uma coerência formal e visual entre os elementos, reforçando-se um princípio de síntese em que os planos cromáticos nem sempre favorecem. A escritura se dá na contraposição do negro do traço e do branco do papel.

Eisner inicia suas reflexões teóricas sobre a estrutura narrativa dos quadrinhos, apropriando-se de uma gramática estabelecida na escrita alfabética:

A descrição da ação nesse quadro pode ser esquematizada como uma sentença. Os predicados do disparo e da briga pertencem a orações diferentes. O sujeito do “disparo” é o vilão, e Gerhard Shnobble é o objeto direto. Os vários modificadores incluem o advérbio “Bang, Bang” e os adjetivos da linguagem visual, tais como postura, o gesto e a careta (Eisner, 1999, p. 10) (Figura 1).

Figura 1 - Eisner, 2001, p. 9.
Figura 1 – Eisner, 2001, p. 9.

A relação estabelecida não é incomum. Com a vulgarização do uso do alfabeto a partir da imprensa, cresceu no mundo ocidental a confiança e a primazia das virtudes do alfabeto abordando-se a escritura somente sob o ângulo do fonetismo. O sistema alfabético foi tomado como fundamento universal para todo tipo de composição, estabelecendo-se uma espécie de relação hierárquica entre o alfabeto e a imagem.

No entanto, Eisner não se detém na questão da imagem, mas na da narrativa. Sua discussão aponta justamente para a necessidade da compreensão da atividade de leitura num sentido mais geral, sobretudo como forma de atividade de percepção. Ele procura nesse processo não somente a analogia entre a compreensão da palavra e da imagem, como também a organização destes elementos numa escritura articulada. Para Eisner, a escritura verbal deve ser lida como imagem inserida no universo gráfico. São signos óticos associados à linguagem oral. O universo sonoro, entretanto, não se apresenta como no cinema, ele depende das projeções feitas pelo leitor, a partir das modulações propostas pelo autor. Não é incomum aficcionados por determinada história em quadrinhos se decepcionarem com as vozes quando transpostas para um filme de animação. Esses leitores já haviam introjetado uma voz própria para os personagens. Sem dúvida, os signos sonoros e os signos óticos remetem a imagens diversas, mas estão relacionados pela dimensão tátil dos elementos da página.

Na abertura do conto “Um contrato com Deus”, não só o personagem Frimme Hersh e o cenário parecem se dissolver sob a chuva que cai “sem piedade”, como também a informação verbal pontua e reforça a dramaticidade da cena. Os quadros únicos das páginas estendem o tempo de caminhada do personagem e de sua profunda desilusão. A textura verbal é constituída da mesma matéria gráfica da imagem. O letreiramento é organizado em blocos, reforçando o clima e a inflexão sonora. Alguns blocos ganham as mesmas hachuras que dramatizam toda a cena. As terminações das letras n, m e h se estendem em movimento descendente como garras. O balão é usado, segundo Eisner, como “recurso extremo” para “captar e tornar visível um elemento etéreo: o som” (2001, p. 26). A disposição dos balões em relação à fala e à ação contribuiriam para a compreensão do tempo. O letreiramento e a configuração do balão servem para caracterizar o som e acrescentar significado à narrativa, assim como para dar dimensão ao personagem. O título do conto é iconizado como um texto gravado numa pedra, numa alusão, segundo o autor, à permanência e evocação aos dez mandamentos de Moisés. A mistura da “letra hebraica versus uma letra romana” teria o “intuito de forçar esse sentimento” (Eisner, 2001, p. 11) (Figura 2).

Figura 2 - Eisner, 1988, p. 15.
Figura 2 – Eisner, 1988, p. 15.

As letras do alfabeto e a imagem visual amalgamadas dão expressividade e sentido à narrativa. Os elementos que compõem a linguagem gráfica são contextuais, não têm um sentido absoluto. Implicam noções de possibilidade. Trata-se do exercício do olhar, indefinidamente subjetivo, antes de nomear. A leitura é operada entre os elementos, no que está em aberto, de acordo como estes são estruturados. O sistema de fenômenos visuais exige o pensamento plenamente mobilizado, trabalhando sucessivas interpretações, o reconhecimento das mais visíveis similitudes, do encadeamento das coisas, por suas atrações e afinidades. Eisner apresenta como referência os princípios ideográficos por deixarem espaço para a interpretação do leitor (2001, p. 15). A questão não se coloca somente na leitura, mas na perspectiva de envolvimento profundo daquele que o lê. Na classificação de McLuhan os quadrinhos são meios frios, o leitor deve construir e completar a informação. A construção ideográfica exige um esforço de leitura que ultrapassa as linhas visíveis ou a assimilação metódica das coisas. Em prol da intenção original, o desenho indica o movimento gerador. Investe-se de articulações poéticas, por confrontos entre diferenças e semelhanças. Surgem, dessa maneira, as metáforas, as alegorias oriundas do contato momentâneo entre as coisas e o movimento que se distancia da representação da coisa em si. Na exploração dessa escritura, introduzindo variações nos dados, ensaia-se a realidade de maneira virtual. 

Como estratégia, Eisner parte do “símbolo básico, derivado de uma atitude bem conhecida”, e este “é amplificado por palavras, roupas, plano de fundo e interação (com outra postura simbólica) para comunicar significados e emoção” (2001, p. 16) (Figura 3). Valendo-se dos princípios econômicos, o que é próprio de qualquer natureza de escritura, Eisner faz uso de códigos já assimilados pelo leitor, da representação da coisa em si mesma – a pictografia antes da ideografia. Um clichê, visto que se trata de uma imagem sensório-motora da coisa, do qual, introduzindo esquivas, propõe metáforas (Deleuze, 2005, p. 31). Aos modos de um calígrafo, a obra de Eisner prima pela plasticidade e pela relação espacial dos elementos. Os movimentos dos traços são imprecisos e equívocos, não proporcionam a legibilidade “transparente” das expressões. Os traços não são retilíneos, esquemáticos ou padronizados. O intento de seu desenho não é a conquista do valor construtivo ou o detalhe claro e bem delineado proporcionado pelo talhe da pena, ele está muito mais voltado às possibilidades de modulação de um pincel, em traços fluidos, turvos e embaçados. Desse modo, o caráter expressivo dos personagens e dos demais elementos ganham potencialidade de sentido e extensão.

Figura 3 - Eisner, 2001, p. 16.
Figura 3 – Eisner, 2001, p. 16.

A questão do tempo e do enquadramento é recorrente nos estudos teóricos de Eisner. Ele evidencia a influência da estrutura narrativa do cinema sobre os quadrinhos, guardadas as particularidades das tecnologias apropriadas aos mesmos. A emulação da estrutura narrativa de outras mídias deve considerar as especificidades de um meio impresso. No cinema, as cenas seguem uma a outra e precedem outra, dispostas ao longo de uma linha animada de um sentido, girando em torno de um eixo. Segundo Butor (1962), desagradável seria procurar um detalhe nesta sequência e verificar qualquer coisa. O espectador se veria obrigado a desenrolar esta linha com base num tempo que se julga aproximado do momento em que viu determinada cena. Butor sugere a vantagem primeira do livro impresso que é fazer durar os elementos ali dispostos — o que permite não somente reproduzir a narrativa uma centena de vezes, como deixar à disposição dos olhos o que se teria deixado escapar.

Sobre a forma de disposição das linhas decompostas umas sobre as outras a formar uma coluna, tais como se configura no livro tradicional, ele assinala que o ideal seria que este corte nas linhas corresponda a uma unidade já articulada metricamente, permitindo que cada linha da escrita, cada movimento contínuo do olho, corresponda a uma unidade de significação e de audição. Butor afirma que “numa coluna de prosa, a linha é cortada não importa onde, segundo um módulo de números de signos que é perfeitamente independente do texto ele mesmo” (p. 931).  O corte nas linhas seria, então, determinado aleatoriamente conforme a bitola da coluna, que pode variar de edição para edição. Essa unidade de significação estaria no discurso, de acordo com Butor, na estrofe ou parágrafo – “a estrofe é a página perfeita como o verso é a linha perfeita” (p. 932). Conclui:

O livro tal que nós o conhecemos hoje em dia, é portanto a disposição do fio do discurso no espaço em três dimensões segundo um duplo módulo: comprimento da linha, altura da página; disposição que tem a vantagem de dar ao leitor uma grande liberdade de deslocamento em relação ao desenrolar do texto, uma grande mobilidade, que é o que se aproxima mais de uma apresentação simultânea de todas as partes de uma obra (Butor, 1962, p. 932).

Butor explicita o livro como uma certa unidade e sua decupagem em outras unidades linguísticas. Uma totalidade de informações à mão do leitor recuperáveis a partir de determinadas operações. Pode-se avançar linearmente a leitura, retornar, saltar parágrafos e páginas, deixar o livro de lado e retomá-lo com facilidade.

O livro deve ser projetado de forma a criar dispositivos de localização das informações e de conexões entre elas. Explora-se potencialmente o caráter indicial do livro. A compreensão de sua estrutura permite o acesso a elementos diversos que se conectam a partir de ações espaço-temporais que integram a informação: o folhear, a localização da página e o movimento da vista na página. A entrada e a saída respondem à dinâmica de leitura e à sinestesia do pensamento. Assim como no cinema, os quadros definem os recortes que promovem o espaço que está inscrito no interior do enquadramento e aquele exterior ao enquadramento. A participação afetiva, porém, é distinta numa mídia e noutra. Para Eisner “o cinema pretende transmitir uma experiência real, enquanto os quadrinhos a narram” (2005, p. 75). A leitura dos filmes se dão no plano da tela, e objetivam o efeito janela de captura do espectador. A câmera, em sua expressividade, pode movimentar-se traduzindo uma infinidade de pontos de vista, o que é objetivamente permitido pela montagem, mantendo o fluxo contínuo de imagens. Os fotogramas se sucedem em tempo linear e congregam tanto a visualidade da superfície como a espacialidade do som (Flusser, 2007, p. 109). Nos quadrinhos o leitor domina o seu tempo de leitura, pode folhear, deter-se numa imagem ou retornar.

Para Eisner, os quadrinhos devem se apropriar dos clichês cinematográficos já introjetados pelos espectadores, mas seria improdutivo simular a câmera cinematográfica, já que eles propiciam um ritmo de leitura mais lento e dependem da informação intelectual derivada da experiência real do leitor. A montagem dos quadros e o seu uso como indicativo da duração do evento não estão atrelados a formatos e a tamanhos fixos como ocorre no cinema ou nos quadrinhos tradicionais, nos quais os quadros têm um único formato e seguem o movimento da esquerda para a direita e de cima para baixo. Na prática, não há uma norma absoluta. O autor parte do princípio que a unidade é a página e ali constrói uma cena relacionada à sequência de páginas e de outras cenas. A cena pode ser composta de um quadro que preenche toda página ou de uma sucessão de quadros, ditando-se o ritmo da narrativa. O leitor, num primeiro momento, apreende a página como um todo e a explora temporalmente, num movimento que não segue, necessariamente, o modo de se ler um texto verbal. A leitura é topográfica e exige do leitor compreender e combinar a sequência das palavras à narrativa das imagens. O recorte no quadro permite destacar determinado detalhe, num processo metonímico de se apresentar a parte pelo todo, num jogo entre o espaço contido e o fora do quadro, o que provoca o leitor a completar a imagem de acordo com a sua experiência. As molduras, ou os requadros, podem variar e são elementos de linguagem, traduzindo atmosferas de sonhos, de conflito, de ação e de infinitude. 

As vizinhanças da avenida Dropsie são fruto das experiências vividas por Eisner em Nova Iorque. Vizinhanças de molecagens, paixões, violências e crimes. Rostos e corpos carregados de infortúnio diante do irremediável. Um local pleno em vozes e de escuros labirintos que fazem dos cortiços as imagens do fundo do poço social, sem reverberação dos cânones reivindicatórios que apresentem uma alternativa.  Na avenida Dropsie, um jovem soldado idealista que retorna da guerra é coagido a mudar uma estação de local, o que acaba por transformar a avenida num grande cortiço. Uma jovem paralítica vive sonhos se dedicando ao jardim da última casa da avenida e termina por se casar com um ladrão mudo que, desavisado, se refugia no seu jardim. Décadas depois ela retorna como uma magnata capaz de comprar a região, já totalmente destruída, para fundar uma nova comunidade residencial de casas com jardins. Uma beata se mobiliza contra a presença de um prostíbulo e é jogada do terraço de um prédio. Um catador e vendedor de quinquilharias extrai, dos resíduos da cidade, a possibilidade de comprar um prédio. Uma menina seduz um porteiro solitário, envenena seu cachorro e rouba suas economias. O porteiro, se vendo acusado de maníaco sexual ao persegui-la, se mata com um tiro na cabeça. Uma enamorada grávida que aborta é estigmatizada como vagabunda e vê o seu destino selado. Eisner traduz em seus traços a crueza da vida. A marca de cada gesto é definitiva e não pode ser velada. Ao mesmo tempo não é possível colocar um ponto final na história de um lugar enquanto ali houver pessoas. Não existem lugares, existem pessoas. Eisner pensou os desígnios dos quadrinhos e construiu uma literatura completamente particular. Ele constituiu, com a criação da avenida Dropsie, um mundo imaginário inspirado em suas próprias observações sobre a cidade, nas quais se manifestam os desejos, os sonhos e os mitos do homem.


* Rogério Câmara é doutor e mestre em comunicação pela Escola de Comunicação – UFRJ, graduado em comunicação visual pela PUC-RJ e professor adjunto da Universidade de Brasília. Atua nos programas de pós-graduação em artes e em design, ambos da UnB. Realiza pesquisas sobre poesia visual com interesse nas relações entre escrita e cidade, é autor do livro Grafo-sintaxe concreta: o projeto noigandres e organizador dos sites Enciclopédia Visual e Poema Processo, entre outras publicações.

Referências

BUTOR, Michel. “Le livre comme objet”. Critique, Paris, n. 186, p. 929-946, nov. 1962.

DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 2005.

EISNER, Will. A força da vida. São Paulo: Devir, 2007.

______. Avenida Dropsie: a vizinhança. São Paulo: Devir, 2004.

______. Narrativas gráficas. São Paulo: Devir, 2005.

______. Quadrinhos e arte sequencial. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

______. Um contrato com Deus e outras histórias de cortiço. São Paulo: Brasiliense, 1988.

FLUSSER, Vilém. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. São Paulo: Cosacnaify, 2007.

MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo: Cultrix, 2000.

SCHUMACHER, Michael. Will Eisner: um sonhador nos quadrinhos. São Paulo: Globo, 2013.

Tempo de leitura estimado: 18 minutos

Ficção científica literária e compra por impulso: como alavancar o livro em papel num mercado pós-moderno | Ivo Heinz e Octavio Aragão*

Essas capas abstratas parecem coisa de autor e editor que
têm vergonha de publicar ficção científica.
Jorge Luiz Calife

Neste artigo vamos nos ater à compra de livros nos pontos-de-venda, isto é, as livrarias e bancas que expõem este tipo de produto. Mesmo sabendo que nos tempos de e-commerce o avanço das ferramentas de procura e concorrência são muito grandes, normalmente o comprador/usuário que utiliza o meio virtual possui outras maneiras de buscar seu produto. Assim, o bordão “a distância entre você e seu concorrente é um clique do mouse” pauta este trabalho, no qual analisaremos os processos decisórios que levam o consumidor de livros a optar por esta ou aquela obra, mesmo numa compra por impulso, ou quando acaba não levando nenhum produto depois de passar os olhos pelas prateleiras de uma livraria.

Muito se comenta sobre a entrada de dispositivos de leitura eletrônica (Kindle, Kobo, aplicativos de smartphones), e da facilidade de ler através de arquivos eletrônicos, e-books, mas a velocidade em que os e-books ganham mercado está desacelerando: nos Estados Unidos, após um crescimento nas vendas de e-books da ordem de 252% em 2010, as vendas aumentaram 159% em 2011, 28% em 2012 e, segundo números da Association of American Publishers (AAP), somente 5% nos primeiros três meses de 2013 (Figura 1).

Figura 1 - Tabela indicativa do crescimento de vendas de e-books nos EUA, em 2013 / Fonte: AAP.
Figura 1 – Tabela indicativa do crescimento de vendas de e-books nos EUA, em 2013 / Fonte: AAP.

Nessa mesma linha de entendimento do comportamento do mercado, de acordo com pesquisa da Nielsen no Reino Unido, as vendas de e-books em detrimento dos livros digitais estão se estabilizando, com cerca de 10,3% da receita total e 21,7% do total de exemplares vendidos. Portanto, as vendas físicas de livros continuam a ser importantes para o mercado varejista livreiro, situação que deve perdurar ainda por algum tempo. Se, além disso, levarmos em consideração algumas premissas, os livros podem ser considerados commodities, porque são itens padronizados. Em qualquer livraria física ou virtual o consumidor vai encontrar o mesmo item, portanto o livro em si tem de possuir algum destaque que chame a atenção do consumidor e a livraria terá de se diferenciar no serviço.

Como estratégias para fornecimento de commodities são bastante limitadas e a rentabilidade desse tipo de negócio costuma ser baixa, recomenda-se sempre investigar a possibilidade de transformar um produto ou serviço indiferenciado em algo único, diferente dos demais, exclusivo, ao menos na cabeça de quem vai comprá-lo ou usá-lo (Costa, 2009, p. 170).

Varejo físico

Num fenômeno que já ocorreu no varejo em geral, a concentração de grandes redes no comércio e a diminuição das pequenas lojas começou a ser visto aqui no Brasil a partir da década de 90, graças ao aumento de renda da população e uma economia mais estável. O varejo no geral teve um grande impulso, e mesmo no varejo livreiro isto não foi exceção: grandes redes internacionais desembarcaram aqui e o mercado começou a se concentrar, uma rede comprando ou se associando à outra (como no caso da compra da Siciliano pela Saraiva) ou montando operações próprias como a Fnac etc.

Essa concentração do varejo em geral permite operações administrativas mais enxutas, minimizando parte do custo fixo, gerando maior capacidade de investimento em relação ao seu faturamento e, devido ao tamanho, negociando preços diferenciados com a indústria. Por outro lado, a indústria também se concentra e sente sua margem de lucro diminuindo pela concorrência e descontos praticados pelas grandes redes.

Estamos vendo este mesmo fenômeno no mercado livreiro, com o qual acaba tendo mais semelhanças do que diferenças, permitindo ao cliente andar por entre as prateleiras, a divisão e setorização do ambiente por áreas, usando classificações de estilos versus tipo de produto, a possibilidade de verificação da embalagem ou capa etc.

Na Economia, o ser humano é colocado como agente e paciente de processos de produção e troca. O homem tem necessidade e desejos finitos que se contrapõem às suas possibilidades finitas e limitadas de satisfazê-los. Não podemos adquirir tudo que desejamos, por isso, temos de escolher. Nessa situação, o consumidor busca a maximização do prazer, em um processo racional de solução de problemas (Gade apud Giglio, 1980, p.11).

Chegamos ao caso do consumidor dentro da livraria, num resumo muito simplista: ele já se dirige ao atendente perguntando sobre determinada obra ou onde encontra livros de um determinado autor. Nesses casos já existe um desejo preliminar do consumidor, seja por uma indicação anterior ou informação prévia, em buscar certa obra e parte da decisão já está tomada, o interesse já existe mesmo antes de adentrar a livraria. A estratégia, então, deve ser, além de possuir o livro almejado, tentar mostrar títulos semelhantes, obras do mesmo autor ou de tema parecido (não é por acaso que livros de autores que alcançaram sucesso recente nas livrarias, como George R. R. Martin e Susanna Clarke, são comparados em suas capas, por intermédio de blurbs publicitários a J. R. R. Tolkien, autor de fantasias épicas que ostentaram grandes vendas no passado). Se a livraria não possuir o título procurado, pode-se considerar como um caso de ruptura, que discutiremos mais adiante.

Compra por impulso

Um dos objetivos secundários deste artigo é discutir a compra por impulso, pois muitas vezes o consumidor em potencial está passando os olhos pela prateleira em um determinado assunto e acaba tendo sua atenção voltada a um título em especial. Giglio chega a falar do “Inconsciente do consumo”:

Na Psicologia Clínica, a teoria de Freud afirma que as pessoas não conhecem seus verdadeiros desejos, pois existe uma espécie de mecanismo de avaliação que determina quais deles poderão tornar-se conscientes e quais não (Giglio, 1980, p. 38).

Outra possibilidade é o consumidor vagar entre as gôndolas ou prateleiras, examinando lombadas ou livros dispostos nas mesas defronte os corredores. Eis uma oportunidade para a livraria conseguir uma compra por impulso. Como, porém, se pode definir uma compra por impulso?

Os relatos e explicações apontam para o conceito de um processo rápido e não planejado, guiado por estimulação momentânea. Profissionais do varejo aceitam o conceito de compra por impulso em oposição à compra racional (Gade apud Giglio, 1980, p. 216).

Podemos, assim, considerar uma compra impulsiva como uma aquisição não planejada? Ao contrário do que escrevemos no início deste texto, o consumidor que não entrou na loja sabendo qual livro queria, não inquiriu o atendente e não fez uma rápida coleta do seu livro na prateleira fez uma compra por impulso?

Talvez, mas temos de levar em conta que as grandes livrarias são, hoje, estabelecimentos de varejo de autoserviço; o consumidor pode, muito bem, dirigir-se a um determinado corredor ou prateleira que tenha os títulos de seu autor de preferência e/ou estilo, checar se havia o título que necessitava, pegar o livro e ir para o balcão pagar. Nesse exemplo, não foi uma compra por impulso, pois o consumidor já sabia de antemão o que queria, apenas não pediu auxílio. Ainda assim, o tempo que o consumidor gastou na procura pode ser útil para que perceba outro título de seu interesse, ou ainda uma nova obra de um autor já conhecido e acabe levando mais de um livro.

De qualquer forma, é importante que a compra por impulso seja facilitada ao consumidor, sendo um ponto a mais na estratégia da livraria para aumentar o faturamento:

Títulos dispostos por tema: uma atitude logística que ajuda bastante, pois o consumidor pode procurar um determinado autor e, na mesma prateleira, ver obras do mesmo gênero, ou ainda trabalhos semelhantes ao de outros autores que já tenha lido ou ouvido falar.

Separação por autores ou em ordem alfabética dentro do mesmo tema: se possível separar por autor ou título, isto facilita a procura quando há muitos autores ou diversos títulos dentro de um mesmo tema. Muito usado para os livros de autoajuda, mas também para os de fantasia, policiais e ficção científica. Nesse caso, a ficção científica sofre com o desconhecimento do lojista, que tende a classificar autores especializados em pseudociência, como Erich Von Danniquen, como ficção científica, criando confusão e potencial insatisfação do público alvo, geralmente especialista no que consome.

Cuidado ao alinhar os livros: algumas editoras usam a formatação de lombadas no padrão francês, outras no padrão americano; na primeira a lombada é legível, quando vista com o livro em pé, de baixo para cima; já a outra é ao contrário, com o livro em pé, a leitura se faz de cima para baixo. Isto pode complicar a visualização do consumidor, pois ele estará correndo os olhos pela prateleira da esquerda para a direita, por exemplo, e, se um livro se apresentar com a lombada diferente dos demais, não será lido nesta sequência. É bom lembrar que nem sempre o consumidor passa os olhos pela prateleira na sequência inversa.

Figura 2 - As diferenças de formatação de lombadas, segundo os padrões franceses e ingleses.
Figura 2 – As diferenças de formatação de lombadas, segundo os padrões franceses e ingleses.

Portanto, se o comprador já conhece a obra, boa parte do impulso pode (ou não) ser resolvido, pois uma boa referência ajuda a querer conhecer mais daquele autor. Se o consumidor não teve boa referência anterior, o efeito é o contrário, o que compromete uma potencial segunda (ou terceira) passada de olhos. Mas, quando chegamos ao ponto de o consumidor pegar o livro nas mãos, ou mesmo visualizá-lo nas pilhas das mesas, locais onde, à semelhança com o varejo, são negociados com as editoras, aí temos mais um ponto na tomada de decisão do consumidor: a capa.

A princípio, uma visão imediatista indicaria que uma capa com grafias de difícil interpretação pode atrapalhar o entendimento do consumidor, diminuindo seu interesse, e, consequentemente, as chances de vendas, o que nos jogaria automaticamente na coleção de clichês ilustrativos geralmente relacionados a cada gênero da literatura de cunho popular. No caso da ficção científica, torna-se difícil não imaginar, automaticamente, naves espaciais, robôs e cenários de planetas inóspitos. Uma capa que consiga trazer estes elementos, mesmo se o autor é completamente desconhecido do consumidor, o insere em um gênero e o auxilia a tomar sua decisão. Porém, diferente dos gêneros policial e romance açucarado, a ficção científica guarda características únicas que obrigam os designers gráficos a deixarem os clichês de lado, ousando em prol de uma combinação entre o conteúdo nem sempre simplório e signos gráficos evocativos de profundidade semelhante sem incorrer no risco de matar o maravilhamento típico da literatura. A questão é que uma iconografia clichê, apesar de indicar ao leitor desavisado a que gênero o livro pertence, também depõe contra uma eventual profundidade conceitual e de forma.

Porque a ficção científica é um gênero tão estranho, capaz de mesclar ideias abstratas com manifestações concretas, é quase sempre representada por material pictórico de alta qualidade, apesar de em muitos casos, o leitor ser convidado a conjurar em sua própria mente os detalhes das ilustrações em parceria com a imaginação do artista. Eis porque o lado pictórico da ficção científica tem atraído tanto a atenção do público quanto o conteúdo intelectual se tornou mais popular (Kyle, 1975, p. 10).

Um bom exemplo da dicotomia entre uma capa com clichês e um conteúdo denso, é a ilustração de capa da primeira edição de Neverness, de David Zindell, onde se vê um foguete sobrevoando uma paisagem futurista – no sentido retrô, ou seja, o futuro que era divisado nos anos de 1940 e 50, com arranha-céus fálicos e dourados. O romance, famoso por seu aprofundamento filosófico em questões sérias como incesto e complexos edipianos, ganha uma capa que vende uma aventura escapista, esquecível e igual a diversas outras, afastando um público mais refinado e atraindo outro tipo de consumidor, que busca tramas mais simples. O resultado potencial disso é que o público alvo pode não ser alcançado, enquanto que o consumidor atraído pode se sentir enganado pelo livro adquirido.

Figura 3 - Capa de Neverness, romance de David Zindell: elementos que apelam aos clichês do gênero.
Figura 3 – Capa de Neverness, romance de David Zindell: elementos que apelam aos clichês do gênero.

Caso inverso ocorre com algumas capas da coleção de ficção científica da editora brasileira Aleph, que exibem um esmerado projeto gráfico pensado não apenas para compor uma releitura do conteúdo do romance, mas também para criar um jogo mental com o leitor. Tais capas, apesar de obedecerem aos parâmetros ideais de um projeto de design, muitas vezes desagradam o consumidor, que não as identifica com o gênero. A capa do livro Encontro com Rama, de Arthur C. Clarke, por exemplo, que usou de um abstracionismo geométrico para emular a nave espacial que é o cerne da história, gerou reclamações por parte de alguns especialistas em ficção científica, mais notadamente o escritor Jorge Luiz Calife, autor de “2002”, conto que inspirou Clarke, autor de “2001”, a conceber a continuação “2010”. Em um blog que comentava o design da capa, Calife expôs sua opinião:

Alfredo Machado, fundador da editora Record, dizia que a embalagem de um livro devia ser tão bonita e sedutora quando a embalagem de um sabonete. Para atrair o interesse do leitor na livraria. Quem vai se interessar por um livro com um canudo de papel na capa? Isso é delírio de artista gráfico que não está nem ligando se o livro vai vender bem ou não. (…) Essas capas abstratas parecem coisa de autor e editor que tem vergonha de publicar ficção científica e quer esconder que o livro é de ficção científica (Calife).

Figura 4 - Capa de Encontro com Rama, romance de Arthur C. Clarke: design geométrico e polêmico.
Figura 4 – Capa de Encontro com Rama, romance de Arthur C. Clarke: design geométrico e polêmico.

Resumindo, para que haja uma compra por impulso, é necessário que vários fatores interajam, num equilíbrio por vezes precário e que varia de acordo com a expectativa em torno de cada peculiaridade relacionada aos gêneros, para que o consumidor tome o livro em suas mãos, leia a contracapa e até a lombada. Se isto não acontecer, se o consumidor não pegar o livro em mãos para analisar melhor, a chance de uma compra por impulso será bem menor.

Ruptura

Como se não houvesse problemas advindos de poucas redes distribuidoras, diversos títulos na mesma prateleira ainda correm o risco de sofrer o que se costuma chamar de ruptura. No varejo, conceitua-se ruptura como “uma situação onde há algum item regularmente comercializado por um ponto de venda, ocupando um espaço determinado nas gôndolas, e esse item, não está disponível na área de vendas ao consumidor no momento da compra” (Aguiar, 2010).

Como consumidor, é desgastante ir a qualquer estabelecimento de varejo e não encontrar o produto desejado. No caso dos livros e outros tipos de varejo, é um complicador a mais nos tempos de e-commerce, pois pode reforçar no consumidor a vontade de pesquisar em casa, onde pode encontrar o título pela internet, ou seja, retira-se mais uma venda do varejo de livros real em prol do varejo virtual. E, lembrando sempre, no varejo virtual a distância entre dois varejistas é apenas um clique de mouse.

Como cita Ballou:

A telentrega de fast food, os caixas automáticos dos bancos, a entrega via aérea/24 horas e o correio eletrônico na internet criaram entre nós, consumidores, a expectativa de produtos e serviços disponibilizados em prazos cada vez mais reduzidos. Paralelamente, sistemas de informação aperfeiçoados e processos flexíveis de produção levaram o mercado à padronização em massa. Em lugar de clientes obrigados a aceitar filosofia do tipo “tamanho único”, hoje são os fornecedores que se veem forçados a oferecer variedade cada vez maior de produtos para satisfazer necessidades e exigências crescentemente diferenciadas dos clientes (Ballou, 2006, p. 38).

Logicamente, o estoque que o livreiro tem em seu estabelecimento estará sujeito às incertezas que têm uma influência direta nas suas políticas.

Há dois tipos de incertezas que têm influência direta nas políticas de estoque. O primeiro diz respeito às incertezas da demanda, as quais dão origem a flutuações nas quantidades de vendas durante o ciclo de atividades. O segundo tipo abrange incertezas relacionadas com a duração do ciclo de atividades, as quais dão origem a variações no ciclo de ressuprimento de estoque (Bowerson & Closs, 2001, p. 242).

Considerações finais

O mercado, apesar de continuar crescendo e mostrar a tendência de que os livros físicos continuarão a ter boa vendagem, é cada vez mais competitivo, pelo aumento do e-commerce ou da própria concorrência entre as redes de livrarias. É fundamental que tanto quem produz livros quanto quem os vende entenda que as oportunidades de venda são eventos raros e que envolvem muitos dados aos quais não temos controle, pois dependem da preferência de um número grande e não uniformizado de decisões dos consumidores.

Conseguir atrair a atenção destes consumidores para livros de gênero, seja com capas que exaltem os clichês seja, ao contrário, com as que criam uma nova possibilidade interpretativa, boa apresentação, ordenamento por assunto e autor, planejamento do estoque etc. é um grande desafio, mas também pode ser a chance de aumentar o sucesso nas vendas, ou ao menos evitar o fracasso.


* Ivo Heinz é engenheiro de produção pela FEI e pós-graduado em Metodologia e Didática na mesma instituição. Professor de disciplinas de Logística no grupo Anhanguera (campus Brigadeiro), colaborador de material de apoio para Ensino à distância dos cursos de tecnologia em Logística. Trabalhou com a logística de livros e publicações e deu consultoria a editoras diversas em títulos de vários temas.

* Octavio Aragão é doutor e mestre em Artes Visuais pela EBA-UFRJ, onde também se graduou em Comunicação Visual. Pós-graduado pelo PACC/UFRJ, é professor adjunto na ECO-UFRJ onde ministra as cadeiras de Jornalismo Gráfico 1 e 2 desde 2009, além de ser Coordenador de Intercâmbio. Autor dos livros A mão que cria (2006), Reis de todos os mundos possíveis (2013) e coautor de Imaginário brasileiro e zonas periféricas (2006).

Referências

AGUIAR, F. et al. Gestão da ruptura no varejo de alimentos. XXX Encontro Nacional de Engenharia de Produção, São Carlos (SP), outubro de 2010. Disponível em http://www.abepro.org.br/biblioteca/enegep2010_TN_STO_113_741_15651.pdf

CALIFE. J. L. Comentário disponível em http://esooutroblogue.wordpress.com/2011/07/14/capas-de-encontro-com-rama-qual-a-melhor/. Acesso em 25 fev. 2014.

CÔNSOLI, M. A. et al. Estratégias de rede de empresas: o associativismo no pequeno varejo alimentar. VII SEMEAD – Gestão de Varejo. FEA-USP, São Paulo, 2004. Disponível em http://www.ead.fea.usp.br/semead/7semead/paginas/artigos%20recebidos/Varejo/VAR10__-_Estrat%E9gias_Peq_Varejo.PDF

COSTA, E. A. Estratégia e dinâmica competitiva. São Paulo: Saraiva, 2009.

BALLOU, R. H. Gerenciamento da cadeia de suprimentos / Logística empresarial. Porto Alegre: Bookman, 2006.

BOWERSOX, D. & CLOSS, D. Logística empresarial. São Paulo: Atlas, 2001.

GIGLIO, E. M. O comportamento do consumidor. São Paulo: EPU, 1980.

KYLE. D. A pictorial history of science fiction. London: Hamlyn, 1975.

Links consultados:

http://www.slideshare.net/IfBookThen/ibt-final-edit

http://www.bic.org.uk/files/pdfs/Understanding%20ebook%20migration_Andre%20Breedt.pdf

http://www.thebookseller.com/news/fiction-rules-2012-e-book-sales.html

http://publishingperspectives.com/2012/10/looking-at-us-e-book-statistics-and-trends/

Tempo de leitura estimado: 27 minutos

Mitografia sequencial: fabulação, pastiche e o universo de Wold Newton nos quadrinhos americanos das últimas cinco décadas | Sean Lee Levin*

O que é Wold Newton e quem o inventou

Em seus livros seminais, Tarzan alive e Doc Savage: his apocalyptic life, o recentemente falecido Philip José Farmer, considerado um mestre da ficção científica, pretendeu contar as histórias reais dos homens a respeito de quem os autores Edgar Rice Burroughs e Lester Dent, criadores de Tarzan e Doc Savage, escreveram em suas séries de aventuras muito populares nas primeiras décadas do século 20. Indo além do pastiche1, ele confeccionou uma vasta árvore genealógica, na qual não apenas o Rei das Selvas e o chamado “Homem de Bronze” eram aparentados, como também diversos dos grandes heróis e vilões da literatura popular, os chamados pulps, romances de aventuras e mistério2.

A hipótese de Farmer era que, em 1795, um grupo de pessoas estaria em carruagens, atravessando o vilarejo de Wold Newton, em Yorkshire, quando um meteoro atingiu a terra não muito longe dali (o evento da queda do meteoro em Wold Newton é real, mas todas as pessoas identificadas por Farmer eram ficcionais). De acordo com Farmer, a ionização e radiação decorrente da queda do meteoro teriam afetado os homens e as mulheres próximos ao impacto, muitos dos quais já possuidores de excepcionais características hereditárias. Algumas das mulheres estariam em estado adiantado de gravidez e suas proles resultariam em indivíduos extraordinários e essa nova geração, graças a casamentos entrecruzados, também produziria uma descendência fora do comum, possuidora de habilidades físicas e mentais muito acima do homem comum.

Além dos já mencionados Tarzan e Doc Savage, Farmer incluiu dúzias de heróis e vilões ficcionais àquilo que batizou de Wold Newton Family, incluindo Sherlock Holmes e seu arqui-inimigo, professor Moriarty; A.J. Raffles; Professor Challenger e seu amigo Lord John Roxton; Nero Wolfe; Bulldog Drummond e o vilão Carl Peterson; Dr. Fu Manchu e seu adversário Sir Denis Nayland Smith; o Sombra; o Aranha; G-8; o Vingador; Travis McGee; C. Auguste Dupin; Lord Peter Wimsey; Arsène Lupin; Ludwig Horace Holly; Monk Mayfair, um dos cinco auxiliares de Doc Savage; John Clay, aka Colonel Clay; Dr. Caber; e muitos mais.

O exercício de Farmer em “mitografia criativa” (usando um termo cunhado por ele próprio)3 inspirou outros autores, tais como Alan Moore e Kim Newman. Moore admitiu abertamente a influência dos preceitos de Farmer em sua série As aventuras da Liga Extraordinária4, produzida em parceria com o ilustrador Kevin O’Neill, que apresentava um grupo de personagens originários de um número incontável de obras ficcionais convivendo num mesmo universo.

Philip José Farmer foi uma influência seminal (sobre a Liga Extraordinária). Quer dizer, li seus Tarzan alive e Doc Savage: his apocalyptic life, que têm toda aquela árvore genealógica da família “Wold Newton” conectando todos os heróis de aventuras pulp. Apesar de termos ido um pouco mais longe que isso com a Liga, não sei se teríamos sequer pensado nisso se não fosse o exemplo primordial de Philip José Farmer (Moore, s/d).

Por diversas vezes Kim Newman declarou seu respeito por Farmer pelo fato de ter sido um antecessor para sua série literária Anno Dracula5, uma audaciosa história alternativa na qual o Conde Drácula triunfa sobre o grupo liderado pelo professor Van Helsing, contrai matrimônio com a rainha Vitória e revela ao grande público a existência de vampiros. Anno Dracula é cheio de participações especiais e referências a diversos personagens históricos e ficcionais.

Não faço questão de ser considerado o inventor desse estilo – Philip José Farmer fez isso nos anos 70, Howard Waldrop criou uma tonelada de histórias e consigo pensar em muitos, muitos outros precedentes, de Henry Fielding a Nicholas Meyer, chegando a uma temporada do seriado televisivo Doctor Who, nos anos 60 (Newman, s/d).

Um grupo inspirado pelos textos de Wold Newton foi o Wold Newton Meteoritic Society, que publicou cinco números de um fanzine chamado The Wold Atlas, responsável por expandir conceitos de Farmer. Durante o processo, o grupo também incluiu personagens que não constavam da “família Wold Newton”, mas que estariam associados por aproximação. Em 1997, um admirador de Farmer chamado Win Scott Eckert, a princípio desconhecendo a existência da Wold Newton Meteoritic Society, criou o primeiro website dedicado à família Wold Newton. Uma parte do site era dedicada à “cronologia do universo de Wold Newton”, onde um tipo de artifício parecido com o jogo conhecido por Six degrees of separation, que estabelece seis graus de separação entre todas as pessoas do mundo, foi usado para importar personagens de outros trabalhos ficcionais por intermédio de histórias que demonstrassem a possibilidade de sua convivência com personagens já considerados como membros da família Wold Newton. Um dos exemplos favoritos de Eckert é o romance de David McDaniel, The rainbow affair, baseado na série de TV O agente da U.N.C.L.E., muito popular nos anos 1960. Nesse livro, os agentes Napoleon Sole e Illya Kuryakin encontram versões disfarçadas ou não diretamente mencionadas de Sherlock Holmes, Sir Denis Nayland Smith e Fu Manchu, John Steed e Emma Peel, o Santo, Miss Marple, Padre Brown, Tommy Hambledon e inspetor Roger West. O Departamento Z, James Bond e Neddie Seagoon também são mencionados.

De acordo com a metodologia de Eckert, já que Holmes, Smith e Fu Manchu são estabelecidos como membros da família Wold Newton, os elementos de outros personagens envolvidos na trama necessariamente fazem parte do mesmo universo ficcional, que Eckert batizou como “The Wold Newton Universe”, ou WNU (Eckert, 2010, p. 2). Encontros subsequentes (ou, em inglês, crossovers) entre personagens “de fora” com os membros da família, automaticamente importava os novatos para dentro desse universo. Isso, porém, não significa que esses recém-chegados sejam também parte da família. Para usar um exemplo do próprio Farmer, em Doc Savage: his apocalyptic life é revelado que o herói teria desenvolvido as bombas de gás que foram usadas para capturar King Kong. Em seguida, Farmer escreveu o conto “After King Kong fell”, onde Doc Savage, seus cinco auxiliares, juntamente ao Sombra e sua parceira Margo Lane (nenhum diretamente nomeado para evitar processos), testemunham a queda fatal de Kong do topo do Empire State Building. Já que o gorila gigante não é humano ou sequer um descendente de europeus, parece extremamente improvável que os progenitores do símio tenham sido expostos à radiação do meteoro de Wold Newton.

Diversos sites dedicados ao Wold Newton Universe surgiram na esteira da página de Eckert, que, em 2010, transformou a Crossover Chronology em uma obra em dois volumes publicada pela Black Coat Press e intitulada Crossovers: a secret chronology of the world. Como muitos dos crossovers no livro envolvem personagens que não foram incluídos na árvore genealógica de Wold Newton por Farmer, Eckert batizou esse plano onde acontecem os encontros de Crossover Universe. Este artigo discorrerá sobre algumas das histórias em quadrinhos incluídas em Crossovers, assim como outras que se encaixam na continuidade e nos personagens estabelecidos por Farmer no universo de Wold Newton.

A mitografia em quadrinhos

Um número considerável de membros da família Wold Newton tem aparecido em crossovers de histórias em quadrinhos. Tarzan tem sido o protagonista de muitas histórias publicadas pela editora Dark Horse Comics. Le monstre apresenta Tarzan em conflito com o Fantasma da Ópera, mas também é inserido nos eventos ocorridos durante o primeiro romance de Burroughs. A mesma equipe criativa produziu The modern Prometheus, história na qual o Senhor da Selva enfrenta o monstro de Frankenstein. Já em Tooth and nail, que sucede o encontro com a criatura de Shelley, Tarzan duela com o Mr. Hyde, de Robert Louis Stevenson. Em Tarzan vs. the Moon Men, Lord Greystoke e seu filho Korak são transportados para o futuro retratado na trilogia Moon, também escrita por Edgar Rice Burroughs, criador de Tarzan. Deve-se notar que, já que os livros da série Moon descrevem uma versão alternativa do final do século 20, muito diferente daquela que vivenciamos em nossa realidade, alguns pesquisadores do universo de Wold Newton argumentam que aquela talvez deva ser considerada uma realidade alternativa6 e não o futuro direto de Tarzan e seu filho. A minissérie em quatro partes Batman/Tarzan: Claws of the Cat-Woman, da dupla Ron Marz and Igor Kordey, colocam Tarzan em parceria com o Cavaleiro das Trevas (deve-se perceber, porém, que Eckert e alguns outros pesquisadores são da opinião que crossovers entre personagens que não são superpoderosos e os super-heróis das tradicionais editoras DC e Marvel Comics não necessariamente atraem outros supers para o universo de Wold Newton, já que eles necessariamente eclipsariam os mais tradicionais personagens dos pulps e dos romances de aventura. Além disso, a noção de centenas de super-heróis pelo mundo violaria a premissa de que o WNU se parece com o mundo que vemos através de nossas janelas. Ainda assim os supers incluídos na cronologia geralmente assumem uma versão muito menos poderosa que suas contrapartes nos quadrinhos e operam por um tempo muito menor que aquele sugerido por suas histórias. Tarzan/Carson of Venus mostra o Homem Macaco unindo forças com outro herói criado por Burroughs, assim como acontece em Tarzan/John Carter: warlords of Mars. Talvez o eclético dos crossovers da Dark Horse envolvendo Tarzan tenha sido Tarzan vs. Predator at the Earth’s Core, que reuniu tanto os filmes da série Predador, quanto os romances de Burroughs sobre Pellucidar, uma terra selvagem no centro da Terra, que também já havia sido cruzada com Tarzan pelas mãos do próprio autor no romance Tarzan at the Earth’s Core. Fechando o ciclo com Tarzan, Tarzan in The land that time forgot inseriu o Lorde das Selvas no cenário das novelas de Burroughs sobre a ilha de Caspak, situada na Antártida e lar de diversas raças que derivam da pré-história.

Figura 1 - Doc Savage encontra o Sombra pela primeira vez, na revista The Shadow Strikes (1989-1992), da DC Comics.
Figura 1 – Doc Savage encontra o Sombra pela primeira vez, na revista The Shadow Strikes (1989-1992), da DC Comics.

Foi nos quadrinhos que Doc Savage encontrou por duas vezes seu parente woldnewtoniano, o Sombra. Em The conflagration man, uma história em quatro partes dentro dos títulos The Shadow strikes! e Doc Savage, publicados pela DC Comics, fica implícito que ambos aprenderam a arte marcial conhecida como baritsu com o criador do estilo. Baritsu, um tipo de boxe japonês, foi na verdade inventado pelo escritor Arthur Conan Doyle em uma aventura de Sherlock Holmes chamada The adventure of the empty house. Outra minissérie, dessa vez em dois episódios, The Shadow and Doc Savage, lançada pela Dark Horse, mostrava os heróis encontrando o mesmo Dr. Reinstein que mais tarde seria o responsável pela criação do “soro do super-soldado” que transformaria Steve Rogers no personagem conhecido como Capitão América. Além de si próprios, o Sombra e Doc Savage encontraram outros heróis dos quadrinhos e dos pulps em narrativas ilustradas. Nas histórias Who knows what evil—? e The night of the Shadow, Batman e o Sombra juntaram forças, e o Cavaleiro das Trevas revelou que o herói mais velho foi uma de suas grandes inspirações. Em The night of the Avenger, o Sombra trabalhou com o herói dos pulps criado por Paul Ernst, Richard Henry Benson, mais conhecido como o Vingador, também identificado por Farmer como membro da famíllia Wold Newton. Em Body and soul, um arco de histórias criado por Andy Helfer and Kyle Baker para a controversa série do Sombra da década de 1980, que adequava o personagem para a contemporaneidade, uma versão envelhecida de Benson aparecia e os encontros anteriores entre os personagens eram citados.

Quando a Marvel Comics tinha os direitos de publicação de Doc Savage, na década de 1970, produziram dois crossovers entre ele e os personagens de seu catálogo. Em The yesterday connection, o Homem-Aranha resolveu uma ameaça com a qual Doc havia lidado anteriormente, em 1930. Em Black Sun lives, Doc Savage e seus assistentes Monk Mayfair e Renny Renwick são lançados no futuro até os dias atuais, onde combatem um vilão ao lado do Tocha Humana e do Coisa, dois membros do Quarteto Fantástico (apesar de alguns estudiosos do universo de Wold Newton não incluírem equipes de super-heróis, o Quarteto Fantástico é, geralmente, considerado aceitável, e, com exceção do Coisa, todos têm laços de parentesco, o que vai de encontro ao foco de âmbito genealógico do universo ficcional. Eles também têm uma origem em comum, enquanto outros grupos como os Vingadores, a Liga da Justiça ou os X-Men possuem diversos membros que começaram suas carreiras sob circunstâncias diferenciadas).

The Rocketeer, de Dave Stevens, apresenta um anônimo Doc Savage como o inventor da mochila a jato usada pelo personagem principal, Cliff Secord. Na sequência, The Rocketeer: Cliff’s New York Adventure, o protagonista encontra um homem chamado Jonas, que é o Sombra disfarçado. Um crossover incluindo Doc Savage que não é geralmente aceito como parte da continuidade do universo Wold Newton Universe é a série de curta duração produzida pela DC, batizada como First Wave. Tais histórias, que mostravam Doc Savage coexistindo com o Vingador, Batman e o Spirit, criação de Will Eisner, e tendo como cenário um século 21 alternativo com ares da década de 1930. Como argumento para a rejeição da parte dos críticos, é o fato de muitos dos personagens terem sido desnecessariamente alterados, sendo o Vingador, em particular, o que mais sofreu mudanças radicais, transformando-se em um anti-herói matador de criminosos, em lugar de armar situações para que os bandidos fossem vítimas de seus próprios esquemas, como acontecia em suas aventuras originais, nas revistas pulp.

Figura 2 - Rocketter, personagem nostálgico de Dave Stevens, nas edições da Comico Comics (1988).
Figura 2 – Rocketter, personagem nostálgico de Dave Stevens, nas edições da Comico Comics (1988).

Além de uma série de romances e novelas, incluindo algumas de autoria de estudiosos de Wold Newton, tais como Eckert ou Matthew Baugh, a editora Moonstone publicou diversas revistas em quadrinhos com personagens já estabelecidos, assim como crossovers que introduziram outros ao WNU. Sherlock Holmes and the Clown Prince of London mostrou o maior de todos os detetives encontrando o Ladrão de Casaca criado por Maurice Leblanc, Arsène Lupin, outro membro da família, de acordo com Farmer (sempre cabe notar que Leblanc fez com que Lupin encontrasse Holmes em diversos romances anteriores, sendo que no primeiro deles Holmes foi rebatizado como “Herlock Sholmes” ou “Holmlock Shears”, nas traduções inglesas, por questões de direitos autorais). Sherlock Holmes & Kolchak the Night Stalker, uma minissérie em três números, apresentava Holmes e o investigador vivido por Darren McGavin no seriado televisivo homônimo dos amos 1970 investigando o mesmo evento em séculos diferentes. Tanto Blooded quanto a história em dois números Domino Lady/Sherlock Holmes mostravam Sherlock colaborando com a heroína mascarada dos pulps “picantes” escritos por Lars Anderson. O especial Kolchak: the night stalker and Dr. Moreau tinha Carl Kolchak encontrando o herdeiro do cientista louco de H.G. Wells e outra edição única, Honey West & Kolchak, mostrava Carl em parceria com a sexy detetive criada por G.G. Fickling. Já Honey West/Captain Action/That man Flint: Danger-A-Go-Go apresentava Honey cruzando o caminho dos agentes secretos Derek Flint (interpretado por James Coburn nos filmes O Homem chamado Flint e Flint contra o gênio do mal) e Miles “Captain Action” Drake (herói de uma série de brinquedos dos anos 1960).

A graphic novel Return of the originals: battle for L.A. era estrelada por Domino Lady unindo forças com diversos heróis dos pulps, tais como o Phantom Detective, de Robert Wallace, Black Cat, de G. Wayman Jones, G-8, piloto aventureiro criado por Robert J. Hogan e Secret Agent X, de Brant House. A edição especial The Spider and Domino Lady mostrava a heroína curvilínea enfrentando as forças do mal ao lado de outros personagens incluído na árvore genealógica de Wold Newton por Farmer. Phases of the moon, minissérie que se passava em diferentes décadas, encabeçada pelo Aranha, Domino Lady, Honey West, Kolchak, a rainha da selva Sheena e Buckaroo Banzai (do filme australianoThe adventures of Buckaroo Banzai across the 8th dimension). Domino Lady’s threesome mostrava a protagonista combatendo um alienígena ao lado de Golden Amazon, criação de John Russell Fearn, e The Veil, personagem criado por Hopkins e que teve sua primeira e única aparição, devido à morte do autor em 2012. Três dentre os quatro Return of the monsters especiais publicados pela editora Moonstone apresentaram crossovers. Domino Lady vs. Mummy fazia referência a Ravenwood, personagem de Frederick C. Davis’. The Phantom Detective vs. Frankenstein mostrava o combate do protagonista com o monstro de Mary Shelley. Na mesma história aparecia um descendente de Victor Frankenstein e são mencionados Domino Lady, Black Bat, o Aranha e I.V. Frost (um dublê de detetive e cientista criado por Donald Wandrei). Black Bat and Death Angel vs. Dracula, escrito por Mike Bullock, tinha Bat e o personagem de Bullock enfrentando o mais famoso vampiro da literatura7.

Nas décadas de 1970 e 1980, Marvel publica a série O mestre do Kung Fu, que apresentava Shang Chi, filho de Dr. Fu Manchu, outro dos membros da família Wold Newton. Diversos personagens dos romances de Sax Rohmer apareceram na série, com destaque para Sir Denis Nayland Smith, identificado por Farmer como sobrinho de Sherlock Holmes. Outro coadjuvante, Clive Reston, foi apresentado como filho de James Bond e sobrinho-neto de Holmes. Eckert optou por não considerar os crossovers entre Shang Chi e os super-heróis da Marvel se não fizessem referências diretas a Fu Manchu ou Smith. Isso incluiu os encontros de Shang Chi com o Homem-Aranha, Nick Fury e a Viúva Negra, além de sua aventura ao lado de Rom, Cavaleiro Espacial. Em um especial Shang Chi encontrou o Punho de Ferro e, na edição 19 de Master of Kung Fu, dividiu a cena com o Homem-Coisa, criação de Steve Gerber. A edição 19 também mostrou o encontro com o andarilho filósofo e praticante de rates marciais identificado como Kwai Chang Caine, herói da série televisiva Kung Fu. Os números 85 e 86 de O Mestre do Kung Fu mostraram Shang Chi e seus companheiros visitando uma casa noturna em Casablanca cujo dono se chamava Richard. Com certeza, Richard representava Rick Blaine, personagem do clássico filme dirigido por Michael Curtis, Casablanca, apesar da história não explicar a discrepância da aparência jovial do personagem.

Casos pontuais: a Liga Extraordinária e Vampirella

The League of Extraordinary Gentlemen, de Alan Moore e Kevin O’Neill, é um interessante exemplo de crossover em quadrinhos que apenas pode ser parcialmente inserido no WNU. Os diversos volumes de Liga Extraordinária acontecem em um mundo onde todos os personagens ficcionais já criados existem. Diversos personagens também incluídos por Farmer na família Wold Newton aparecem, entre eles Allan Quatermain, capitão Nemo, Mycroft Holmes e o Professor Moriarty, respectivamente irmão e nêmesis de Sherlock Holmes. Há ainda outro, Campion Bond, um provável antepassado vitoriano de James Bond. Apesar de os dois primeiros volumes de League se encaixarem de maneira cômoda nos parâmetros do WNU, os subsequentes se tornaram problemáticos e são quase sempre considerados como pertencentes a um universo alternativo. The black dossier acontece em um 1958 diferente do nosso, pouco depois dos acontecimentos narrados no romance 1984, de George Orwell, referidos no álbum como The big brother years, nos quais a Inglaterra possui um imenso, ativo espaço, o que não condiz com o conceito adotado por Eckert e outros, que o WNU, ao menos na superfície, é bem próximo de nosso mundo. Igualmente problemáticos são os personagens Jimmy e Hugo Drummond, que correspondem aos membros da família woldnewtoniana James Bond e Hugh “Bulldog” Drummond. Ambos são retratados em The black dossier de uma maneira bem pouco elogiável que amplifica alguns aspectos politicamente incorretos que apareciam de maneira mais discreta nos romances nos quais foram apresentados: Jimmy é um espancador de mulheres que não vê problemas em assassinar um homem inocente para favorecer a América num contrato de venda de armamento em lugar dos ingleses, o que tornaria os eventos narrados no romance O satânico Dr. No, de Ian Fleming, nada além de uma mentira inventada para encobrir suas atividades. Drummond é descrito como um racista raivoso que, ao final da história, é morto por Jimmy quando descobre os atos de traição do colega.

Century, cujos três capítulos acontecem nos anos 1910, 1969 e 2009, constrói um perfil do jovem mago Harry Potter que é incompatível com a obra de J.K. Rowling. O capítulo 1910 possui diversas referências ao 14 Duque de Gurney, do filme The Ruling Class; porém, o filme mostra o Duke se referindo a Mao Tse-Tung e Timothy Leary, o que sugere que a história se passa na contemporaneidade, além do fato do vestuário no filme parecer mais próximo daquele usado em 1972, ano de sua produção. Em 2009, Jimmy é retratado como um idoso decrépito, sofrendo de sífilis e cirrose hepática, tendo sido substituído por uma série consecutiva de agentes mais jovens, uma referência aos diversos atores que representaram Bond no cinema. Nada disso bate com o que os escritores John Gardner e Raymond Benson, responsáveis pela continuidade das histórias de Bond, retrataram em suas obras. A personagem M, que nos filmes é vivida por Judi Dench, revela-se como Emma Peel, uma agente secreta da série televisiva britânica The avengers, enquanto Raymond Benson, no romance Os fatos da morte, diz que o nome real da personagem é Barbara Mawdsley. Finalmente, os Estados Unidos e o Reino Unido são descritos, nas HQ, travando uma guerra com Qumar, um país ficcional do Oriente Médio, em lugar do Iraque.

A pequena graphic novel Nemo: Heart of ice descreve o personagem do menino inventor Tom Swift, de Victor Appleton (nome cuja grafia foi alterada por Moore para “Swyfte”), de uma maneira tão agressiva quanto o tratamento dado a Bond e Drummond. “Swyfte” é um racista que atira na perna de seu colega inventor Frank Reade apenas para diminuir a velocidade do ataque de um shoggoth, abandonando-o para morrer.

O caso de Vampirella, cujas aventuras têm aparecido em histórias das editoras Warren, Harris Comics e Dynamite Entertainment, é um desafio para qualquer estudioso de mitografia, pois as tentativas de organizar uma lógica interna sempre esbarrou em dificuldades organizacionais, fazendo dela um dos personagens mais confusos das HQ americanas, às vezes vilã, outras heroína, e até uma alienígena. A vampira encontrou-se diversas vezes com Drácula, o que, já que ela não é uma super-heroína, serviu para trazê-la para o WNU e, a partir daí, a vampira sexy serviu de ponte para que diversos personagens de editoras menores também entrassem na família Wold Newton. Em sua primeira passagem pela Warren, Vampi encontrou em mais de uma ocasião com Restin Dane, também conhecido como The Rook, cujo avô, o viajante do tempo de H. G. Wells, foi elencado por Farmer como membro da família ficcional (Farmer deu um nome ao personagem, não revelado no romance A máquina do tempo, de Wells, que seria Bruce Clarke Wildman, enquanto nos quadrinhos The Rook foi apresentado como Bruce Dane. Porém, apesar desses fatos, a genealogia de Adam Dane, pai de Bruce Dane, diverge da história da família de Bruce Clarke Wildman de acordo com Farmer. O pesquisador Dennis Hager resolveu o conflito de dados identificando o viajante do tempo como Adam Bruce Clarke Wildman, cuja conexão com a família Dane aconteceria por intermédio de sua esposa, Louise Dane). A história Vampirella and the Time Force mostra Vampi encontrando the Rook e um grupo de outros personagens da Warren, notadamente Dr. Richard Harris, da tira em quadrinhos “Pie.”

The thing in Denny Colt’s grave estabeleceu Vampi como existindo no mesmo universo que o Spirit, herói mascarado criado por Will Eisner. The headless Horseman of All-hallows eve levou Vampi e seu ajudante Pendragon a visitar a cidade de Sleepy Hollow, cenário da novela homônima de Washington Irving. Os crossovers continuaram depois que a personagem foi adquirida pela editora Harris, na década de 1990. Na minissérie de 1997, Catwoman/Vampirella: the furies, Vampi uniu forças com a ladra com um coração de ouro e tradicional inimiga/aliada de Batman (Eckert argumenta que o manto do morcego, sua tradição em combate ao crime e consequente mitologia seguiu com diversos sucessores depois da aposentadoria de Bruce Wayne, o Batman original dos anos 30. John Allen Small teorizou que a Mulher-Gato que encontrou Vampirella seria a filha de Batman com a Mulher-Gato mostrada em Claws of the Cat-Woman, o já mencionado crossover com Tarzan). Ao final da década de 1990 e durante a primeira década do século 21, foram publicados diversos crossovers de Vampirella com personagens da editora Top Cow Comics, como Magdalena, Witchblade e The Darkness. Em 2012, Dynamite Entertainment lançou uma minissérie chamada Dark Shadows/Vampirella, na qual Vampi conheceu os personagens do seriado televisivo de mesmo nome, num combate contra a vampira Elizabeth Bathory.

Além de Vampirella, a vigilante Painkiller, criada por Jimmy Palmiotti, também cruzou os caminhos de The Darkness, Ariel Darkchylde, Hellboy e do Justiceiro. Por sua vez, the Darkness encontrou Batman, os cinematográficos Aliens e Predadores, Lara Croft, Hulk, Wolverine (cuja contraparte woldnewtoniana jamais fez parte dos X-Men), Eva, Daughter of Dracula, Pitt, e Darkchylde. Hellboy, o demônio, conheceu Ghost, que também encontrou o Sombra. Hellboy já fez parceria com Batman e Starman em uma história que sugeria que os mitos de Cthulhu, de H.P. Lovecraft, tinham fundamento na realidade.

Apesar de existirem mais crossovers que se encaixariam no esquema do universo Wold Newton, este artigo visa prover um guia de encontros entre personagens que serviram para expandir o conceito cunhado originalmente por Farmer. O artifício do crossover tem sido usado na ficção por séculos e os quadrinhos utilizam essa ferramenta constantemente. Mesmo depois de quarenta e dois anos da publicação de Tarzan alive, ainda atestamos novas adições à família Wold Newton e o universo expandido não mostra sinais de exaustão. Este admirador e estudioso do conceito de Wold Newton não poderia estar mais feliz.


* Sean Lee Levin é um pesquisador norte-americano de cultura pop especializado na obra do escritor Phillip José Farmer, com ênfase nos trabalhos que envolvem a construção de uma narrativa pós-moderna relacionada ao universo ficcional de Wold Newton, criado pelo autor e desenvolvido por outros artistas. É também editor assistente do site de cultura pop She never slept (http://sheneverslept.com/newsandreviews/) e desenvolve um novo volume da série Crossovers: a secret chronology of the world, com base na obra de Win Scott Eckert.

Referências

CLUTE, J. & NICHOLLS, P. The encyclopedia of science fiction. New York: St. Martin’s Griffin, 1995.

ECKERT, W. S. Crossovers: a secret chronology of the world. Volumes 1-2. USA: Black Coat Press, 2010.

FARMER, P. J. Tarzan alive: a definitive biography of Lord Greystoke. USA: Bison Books, 2006.

______. Doc Savage: his apocalyptic life. USA: Meteor House, 2013.

______. “After King Kong fell”. In: ECKERT, W. S. & CAREY, C. P. Tales of the Wold Newton Universe. USA: Titan Books, 2013.

HAGER, D. “The great danes”. In: An expansion of Philip José Farmer’s Wold Newton Universe, aka The Wold Newton Universe. Disponível em http://pjfarmer.com/woldnewton/Articles8.htm#Danes

McDANIEL, D. The man from U.N.C.L.E. #13: the rainbow affair. USA: Ace Books, 1967.

SCHOLES. R. Structural fabulation – an essay on fiction of the future. USA: University of Notre Dame Press, 1975.

MOORE. A. Dark is the sun, by Philip José Farmer. Disponível em http://www.librarything.com/topic/116336.

NEWMAN. K. Casting a play. Entrevista disponível em http://intemblog.blogspot.com.br/2008/05/casting-play-interview-with-kim-newman.html

SMALL, J. A. “Kiss of the Vampire”. In: ECKERT, W. S. Myths for the Modern Age: Philip José Farmer’s Wold Newton Universe. USA: MonkeyBrain Books, 2005.

Notas

1 De acordo com Win Scott Eckert, os livros de Farmer inseridos na série Wold Newton seriam pastiches, a princípio e apesar de sua qualidade, por não contarem com a aprovação dos autores ou de seus representantes legais (Eckert, 2010, p. 3).

2 O conceito de mitografia, biografias de personagens fictícios como se fossem reais, é anterior a Farmer, sendo que as obras que influenciaram o autor americano, não apenas em Tarzan alive como também no conceito da “família” woldnewtoniana, foram as biografias Sherlock Holmes of Baker Street (1962) e Nero Wolfe of West 35th Street (1969), escritas por William Stuart Baring-Gould, que estabeleciam um parentesco entre os dois detetives.

3 A mitografia poderia ser considerada uma variação do conceito de “Fabulação Estrutural”, desenvolvido pelo teórico Robert Scholes, segundo o qual o grande trabalho do escritor é desafiar as interpretações “confortáveis” por parte do leitor por intermédio de uma estrutura narrativa convincente, apesar de fantástica. Assim, a mitografia, por criar um paradoxo crível (o relato biográfico de seres inexistentes) desafia o leitor e cria um novo senso de realidade com base em uma estrutura (logo, um elemento crível, mensurável) fabular (logo, uma fantasia, um devaneio) (Scholes, 1975, p. 46).

4 Disponível em http://www.librarything.com/topic/116336. Acesso em 20 fev. 2014.

5 Disponível em http://intemblog.blogspot.com.br/2008/05/casting-play-interview-with-kim-newman.html. Acesso em 20 fev. 2014.

6 Realidade paralela é um conceito oriundo da física, que postula a possibilidade de universos fractais derivados do nosso e nascidos de toda e qualquer opção, criando infinitas possibilidades de histórias. Logo, toda vez em que um indivíduo se vê diante de uma escolha, automaticamente dois ou mais universos surgem, um no qual a atitude foi tomada, outro onde nada foi feito, um terceiro onde se optou por uma ação conciliatória, um quarto onde a solução foi o conflito e assim infinitamente (Clute e Nicholls, 1995, p. 23).

7 Para conciliar as diversas versões de Drácula, Chuck Loridans propôs que o Rei dos Vampiros teria a capacidade de criar “clones de almas”, implantando suas memórias e alguns poderes em determinados seres humanos, que se tornariam vampiros comandados à distância pelo próprio Drácula, temporariamente afastado ou incapacitado. Disponível em http://www.pjfarmer.com/secret/contributors/Children-of-the-Night1.htm. Acesso em 21 fev. 2014.

Tempo de leitura estimado: 19 minutos

Novos mapas da pós-humanidade: a ideia de personalidades ciberneticamente compartilhadas em Emissaries from the dead e Embassytown | Fábio Fernandes*

Microfísica da pós-humanidade

O que define a pós-humanidade? Somos capazes de dizer que existe uma pós-humanidade no mesmo sentido de humanidade, isto é, uma espécie única, étnica e culturalmente diversa, mas sem diferenças genéticas entre seus membros?

Quinze anos depois da publicação do clássico How we became posthuman, de N. Katharine Hayles, estamos sendo confrontados com novas formas e sabores da pós-humanidade – não novas raças, pois o conceito de raça é obsoleto, mas certamente novos modos, novas maneiras de viver a condição pós-humana.

E, como parece ser o caso na maioria das vezes, a ficção científica é o meio escolhido para essa exibição pós-humana; é a ficção científica que nos mostra o caminho, oferecendo soluções para problemas que sequer sabíamos que tínhamos – ou, às vezes, na melhor tradição das fábulas, cautionary tales, histórias que nos pedem cautela (no caso da ficção científica, como é bastante comum, relacionadas ao mau uso da tecnologia – vide Frankenstein, por exemplo).

Como escrevemos antes em outro artigo, ser pós-humano é viver em um estado constante de mudança. Portanto, segundo uma visão canguilhemiana, do ponto-de-vista do “normal”, o pós-humano é sempre crítico: o pós-humano é sempre patológico.

Devemos nos lembrar, entretanto, que esse tipo de suposição está sujeito a mudanças – e o que é mais mutante que o futuro? Se estivermos dispostos a aceitar sem discussão a definição de pós-humanidade de Hayles (uma construção diferente que, em suas palavras, “pensa no corpo como a prótese original que todos nós aprendemos a manipular, de forma que estender ou substituir o corpo com outras próteses se torna uma continuação de um processo que começou antes de nascermos”), rapidamente nos vemos aprisionados por uma rede que já pode estar ficando pequena e restrita para o século 21, uma rede de conceitos que abrange em sua grande parte espaços virtuais, dando menos atenção a ciborgues, corpos com DNA alterado ou aprimoramentos de nanotecnologia, na qual a ficção científica recente tem nos levado a crer.

Steven Shaviro aborda essa questão indiretamente em seu ensaio The singularity is here, comparando a singularidade através das obras de Ray Kurzweil e Charles Stross. The singularity is near, de Kurzweil, e Accelerando, de Stross, tratam ambos da singularidade (Figura 1), embora o primeiro a considere garantida como algo que acontecerá com certeza até 2049 (!) e o segundo seja pura ficção científica. Ambos concordam que este evento será um momento interessante e empolgante para a espécie humana, e não seu momento mais difícil, ainda que Kurzweil seja bem mais otimista que Stross. Para ele, segundo Shaviro,

Após a Singularidade, Kurzweil nos assegura, saúde, riqueza e imortalidade – isso para não mencionar os mais incríveis games de computador e simulações – estarão disponíveis para todos de graça. Escassez será coisa do passado. Todas as barreiras e oposições binárias cairão: não haverá distinção, pós-Singularidade, entre humano e máquina ou entre realidade física e virtual (Bould, 2009).

Figura 1 – The singularity is here, de Ray Kurtzweill, e Accelerando, de Charles Stross.
Figura 1The singularity is here, de Ray Kurtzweill, e Accelerando, de Charles Stross.

Kurzweil partilha essa mesma visão de mundo otimista com Hans Moravec, que talvez seja ainda mais radical que seu colega e amigo. Moravec, em seu livro Mind children, propôs o download da consciência de corpos para computadores como a chave para a imortalidade.

Mas uma coisa que tanto Moravec quanto Kurzweil parecem ter ignorado em suas obras é o que chamarei aqui de possibilidade remix, isto é, a possibilidade de que você pode não só fazer o download de sua própria mente para um dispositivo, como também misturar sua mente com outra (ou outras) em uma espécie de caldeirão, onde você poderá preservar sua personalidade e ao mesmo tempo se misturar com outras, tornando-se, na verdade, uma espécie de terceira margem do rio, uma entidade inteiramente diversa, que não existia até então.

Essa possibilidade remix não é de minha invenção, mas é o que a ficção científica com o passar do tempo veio a chamar de mente-colmeia, em obras seminais como Last and first men, de Olaf Stapledon, The green brain, de Frank Herbert, ou The midwich cuckoos, de John Wyndham. Ao invés de uma terra de ninguém, este território está sendo mapeado já há um bom tempo, desde o mais famoso dos subgêneros da ficção científica, a space opera.

Essa “terra de muitos alguéns” vem sendo apresentada em uma ampla variedade de mentes grupais, seja no formato de diversas personalidades ocupando um único corpo, como o caso de Alia Atreides em Filhos de Duna, ou muitos corpos conectados para compor o que poderíamos considerar uma supramente (como no caso dos indivíduos que acabam se fundindo na obra clássica de Theodore Sturgeon, Além do humano).

No século 21, dois romances se destacam até o momento apresentando versões ligeiramente diferentes desse conceito de personalidades compartilhadas, acrescentando a ele a cibernética (e, portanto, um novo tipo de pós-humanidade, mais “incorporado” que a variedade mais virtualizada proposta por Hayles): Emissaries from the dead, de Adam-Troy Castro, e Embassytown, de China Miéville.

Como essas personagens vivem e progridem (ou não) nas histórias de Castro e Miéville? Qual é a natureza da relação entre ele e com outros seres humanos “normais” – mesmo se levando em conta que diversos desses ditos humanos normais seriam eles próprios considerados pós-humanos pelos padrões de hoje?

Dois humanos são um humano

Em Emissaries from the dead, somos apresentados a Andrea Cort, agente do Dip Corps (Diplomatic Corps, Corpo Diplomático em português) da humanidade, que, nesse futuro distante, é mais conhecida por uma forma abreviada de sua espécie, Hom. Sap.

Figura 2 – Emissaries from the dead, de Adam-Troy Castro.
Figura 2Emissaries from the dead, de Adam-Troy Castro.

A história acontece no mundo artificial de One One One, criado pela AIsource, que é a coisa mais alienígena que podemos ter, porque não só é uma inteligência artificial como também é um consórcio de diversas inteligências artificiais realmente alienígenas que decidiram se reunir sob sua própria agenda insondável, provavelmente milhões de anos antes que a humanidade sequer surgisse sobre a face da Terra. Então aqui somos apresentados não ao pós-humano, mas ao seu exato oposto (se tal coisa pode ser dita), uma entidade pós-alienígena.

Cort, que está nesse local para solucionar um assassinato, acaba sendo obrigada a ter de lidar com um casal de agentes de segurança cylinkados, Skye e Oscin Porrinyard. Conforme eles deixam bem claro para ela desde o começo, o fato de que são dois é um mero detalhe físico, mas irrelevante:

A mulher falou sozinha. “Nasci apenas Skye. Ele nasceu apenas Oscin.” Então os dois voltaram a falar juntos, naquela voz compartilhada que era musical, porém incômoda. “Fomos linkados aos quinze anos, e assumimos o sobrenome Porrinyard” (Castro, 2008).

Conforme eles continuam em sua explicação, uma parceria cylinkada indica que os parceiros abriram mão por complete de suas personas anteriores para criar uma terceira, que é a soma de suas partes.

Cort está intrigada, pois nunca havia visto um casal cylinkado antes. Personalidades cylinkadas são algo do qual se ouve falar e não são exatamente incomuns (“Havia, até onde eu sabia”, Cort diz a si mesma durante esse primeiro contato com os Porrinyards, “menos de três mil pares vivos”), mas também não são considerados a norma na sociedade Hom. Sap.:

Cylinking, uma operação ilegal na maioria dos mundos humanos, era um dos serviços mais desagradáveis que a AIsource Medical oferecia a outras raças sencientes. Em troca de uma percentagem de ganhos futuros, a AIsource podia conectar as personalidades de dois indivíduos separados, através de uma matriz de transmissão intangível. O processo substituía os dois indivíduos com uma gestalt maior que experimentava a vida como uma pessoa combinada. Em teoria, isso aumentava sua inteligência compartilhada diminuindo a necessidade de dedicar precioso espaço craniano com informação redundante que não precisava mais ser conhecida por ambos (Castro, 2008).

É importante dizer que Andrea Cort também não é considerada um ser humano normal, nem pelos padrões de outros humanos, nem mesmo pelos seus próprios. Após participar ativamente de um massacre em seu mundo natal ainda criança, matando tomada de fúria cega um membro de sua família, ela passou metade da vida internada em instituições até que o Dip Corps concluiu que ela poderia ser mais bem aproveitada como uma agente trabalhando para eles em regime vitalício de servidão.

Ela se considera um monstro sem sombra de dúvida, e, sendo uma espécie de detetive hardboiled à moda antiga (pensem em Sam Spade, de Dashiell Hammett, ou Philip Marlowe, de Raymond Chandler), ela é cínica mas não julga os outros – entretanto, mesmo eles levam um tempo para parar e entender uns aos outros, como na cena em que ela acabou de ter uma entrevista com a misteriosa AIsource e encontra apenas Oscin Porrinyard esperando por ela do lado de fora da sala de reuniões:

Murmurei: “Onde está sua outra metade?”
“Por quê, Conselheira? Ficaria mais à vontade com ela?”
“Não preciso estar à vontade. Só estou surpresa por ver vocês dois separados.”
O próximo sorriso dele veio completo com olhos fechados. “Meus componentes nunca estão separados, Conselheira, mas não precisamos necessariamente estar fisicamente próximos um ao outro para estarmos juntos” (Castro, 2008).

Essa explicação e várias outras ao longo da narrativa não só farão Andrea compreender mais esse ser pós-humano (e, por um breve momento no meio da narrativa, até mesmo se perguntar como seria ser um componente de uma personalidade cylinkada), como eles acabarão por se envolver romântica e sexualmente.

Até que ponto um monstro e uma personalidade cylinkada podem se relacionar? Um segundo romance de Andrea Cort lançado em 2009, The third claw of God, começou a se aprofundar mais nas questões de amor pós-humano e no desejo de ser outro, já que Andrea Cort ainda se pergunta se o procedimento de cylinking poderia ser a resposta para o que, acredita ela, é uma doença que a corrói por dentro. Ela seria o terceiro componente na personalidade cylinkada Porrinyard, o que daria origem a mais um ser. Na matemática da pós-humanidade, onde dois eram um, três continuarão sendo um. Se este um é mais que a soma de suas partes, cabe aos seus componentes responder.

Um humano é menos que humano

Em Embassytown, de China Miéville, o leitor vê o reverso da medalha.

Esse romance também apresenta duplas aprimoradas, mas no caso são gêmeos alterados geneticamente que também estão conectados ciberneticamente mas permanecem cada qual com sua própria identidade. Esses gêmeos são criados para serem Embaixadores no mundo dos Anfitriões, ou Ariekei, seres cuja linguagem é tão complexa que precisa ser falada por dois seres ao mesmo tempo, cada qual pronunciando uma palavra diferente em uma entonação diferente.

Figura 3 – Embassytown, de China Miéville.
Figura 3Embassytown, de China Miéville.

A protagonista, Avice Benner Cho, é uma Imersora – uma humana dotada de habilidades que lhe permitem viajar pelo espaço (os limites dessa habilidade nunca são explicados em detalhes, o que deixa o leitor concluir que pode ser uma característica genética – uma pós-humana em um futuro distante em que a humanidade sequer se lembra onde fica a Terra), mas que antes, em sua infância, executou uma símile para os Embaixadores.

Esse ato, difícil de descrever (e até mesmo de compreender segundo os hábitos e costumes do século 21) significa basicamente que um humano é recrutado para servir como uma função da linguagem para uma espécie alienígena cuja ideia de comunicação é tão diferente da nossa que precisa ter uma analogia física da função (um exemplo tosco seria ter um mapa do tamanho do território disposto sobre este para que uma pessoa que jamais tivesse visto um mapa em sua vida pudesse entender o conceito – o que não funcionaria de todo, embora pudesse ajudar). Após o ato ritual, no qual os Embaixadores não falaram com Avice na linguagem de seus Anfitriões mas a falaram, Avice veio a saber que sua símile foi “Havia uma garota humana que, sentindo dor, comeu o que lhe foi dado em um quarto velho construído para comer no qual há algum tempo já não se comia”.

Um ex-embaixador, Bren, dá a Avice uma certa orientação antes do ato, mas não pode fazer muito mais que isso, pois ele havia sido expulso não só das funções de embaixador como também de todo o convívio humano. Bren é um dividido, isto é, uma pessoa que um dia teve um gênero ciberneticamente conectado (ou um doppel, como o chamam), mas ele foi morto e Bren não pode sequer dizer mais seu nome completo (que era BrenDan – sendo Dan seu irmão gêmeo, obviamente) de modo correto.

Quando Bren finalmente conta sua história a Avice, anos mais tarde, ele lhe mostra uma caixa contendo os dois links que ele e seu doppel usavam. E explica porque ainda os conserva:

Se eu tivesse jogado o dele fora e guardado o meu, você acharia que eu estava me agarrando à minha identidade morta, ou lamentando a morte dele. Se eu jogasse ambos fora, você me veria agir em negação. Se eu guardasse o dele mas não o meu você diria que eu estava me recusando a deixá-lo partir. Não há nada que eu possa fazer que você não teria tentado. A culpa não é sua. Você não pode evitar, é o que nós fazemos. O que quer que eu faça, será uma história ou outra (Miéville, 2011).

Apesar da série de eventos que ainda se desdobrarão em Embassytown (em uma estranha mas talvez não surpreendente similaridade com Emissaries from the dead, Avice irá mais tarde ter um par de doppels, CalVin, como amantes), a citação acima pode nos servir por ora, especialmente a última frase de Bren: “O que quer que eu faça, será uma história ou outra”. Faria diferença qual história seria no fim? Se Bren tivesse morrido e Dan tivesse sido o sobrevivente, a história teria tomado um curso diferente? Talvez sim, pois eles tinham personalidades diferentes. Mas eles ainda compartilhavam uma vida mais intimamente do que qualquer tipo de casal casado poderia jamais ter imaginado. Por isso, Bren se sentia metade de um homem – e como tal era visto pela sociedade, tanto humana quanto Ariekei. O que quer que ele fizesse, não teria lugar para onde ir. Aqui, nesse cantinho matemático da pós-humanidade, onde dois eram um, um é apenas meio. E, se este um é ainda menos que a exata divisão da anterior soma de suas partes, talvez nem mesmo o componente que sobreviveu saiba a resposta.

Queremos saber a resposta?

Em ambos esses futuros, estar fora da norma culturalmente aceita não é visto como sendo algo saudável. O interessante é que os dois romances foram escritos por homens (um deles marxista, que chegou a tentar o caminho da política há algum tempo), e os dois apresentam personagens do sexo feminino, fortes e não-estereotipadas – não-estereotipadas a ponto de serem fora da curva, desequilibradas, no desvio (novamente, todos esses comentários precisam ser analisados em profundidade – quem pode dizer que elas são desequilibradas? O autor deste artigo, um homem branco ocidental que é, pelo menos em seu país natal, visto como parte do padrão de gênero e etnia dominante? Esta questão, infelizmente, não será respondida aqui – mas deveria [consulte Gayatri Spivak, Edward Said, Homi Bhabha em busca de respostas]).

Talvez o fato mais importante a se destacar seja o de que ainda existe uma norma a seguir no futuro. Isto é, existe uma maioria de seres humanos que, mesmo com uma grande quantidade de dispositivos implantados (no caso de Emissaries), ainda são morfologicamente reconhecíveis para o humano do começo do século 21 – nossa própria época, o que é apenas lógico, pois não temos meios de prever o futuro, e qualquer extrapolação só pode ser feita a partir do que existe aqui e agora, e o corpo do homo sapiens é o que temos como base sobre a qual construir qualquer coisa.

Se o pós-humano é visto como exótico em muitos casos, então dentro do pós-humano, com o tempo, foram surgindo diversos outros subgrupos que vieram a ser considerados inaceitáveis até mesmo pelos padrões pós-humanos – muito embora não exista em nenhum momento a dúvida do status humano em cada parte envolvida. Em Emissaries, a AIsource desempenha um papel que certamente não pode ser desprezado, pois eles parecem ser os criadores do procedimento de cylinking – assim como os Ariekei em Embassytown, o que provoca a pergunta: os monstrous são sempre uma maldição do Outro? Os aliens são o Outro; mas, ao executarem esses procedimentos “indizíveis”, para usarmos o adjetivo lovecraftiano, os humanos automaticamente se tornariam uma espécie diferente e anormal de pós-humanos, e portanto a espécie errada? Eles estão errados porque são tão diferentes, e mais em mente do que em corpo? A pós-humanidade, portanto, não cometeria os mesmos erros da humanidade, atribuindo valores às diferenças e segregando seus membros às categorias de seres normais e anormais?

Isso traz à memória o ensaio “Dos canibais”, de Michel de Montaigne, escrito em 1562, aproximadamente quinze anos apóso filósofo francês ter conhecido, em Rouen, um nativo da tribo dos Tupinambás que havia sido levado à França pelo explorador Villegagnon. Essa reflexão, que introduz uma nova visão multiculturalista na cultura europeia, e é em si mesma uma espécie de protoguia para a humanidade, no sentido de que Montaigne critica a visão que se tinha então, em sua sociedade, dos índios sul-americanos como sendo bárbaros, e volta sua lente de aumento para estudar seus compatriotas europeus:

Creio que não há nada de bárbaro ou de selvagem nessa nação, a julgar pelo que me foi referido; sucede, porém, que classificamos de barbárie o que é alheio aos nossos costumes; dir-se-ia que não temos da verdade e da razão outro ponto de referência que o exemplo e a ideia das opiniões e usos do país a que pertencemos. Neste, a religião é sempre perfeita, perfeito o governo, perfeito e irrepreensível o uso de todas as coisas. Aqueles povos são selvagens na medida em que chamamos selvagens aos frutos que a natureza germina e espontaneamente produz; na verdade, melhor deveríamos chamar selvagens aos que alteramos por nosso artifício e desviamos da ordem comum (Montaigne, 1993).

Lembrando Georges Canguilhem em O normal e o patológico, conforme mencionado em nosso artigo acima, “se ‘a norma para o corredor de longa distância não é a mesma para o de curta’, se ‘cada um de nós muda suas próprias normas de acordo com a idade e suas próprias normas anteriores’, logo as normas para o organismo pós-humano não podem ser as mesmas normas do organismo humano em razão de suas mudanças”.

Portanto, o diferente é apenas diferente, nem superior nem inferior – uma lição que Montaigne já havia inferido por observação e Canguilhem aprendido por estudo biológico e fisiológico. Só podemos torcer para que esses antigos pensadores, juntamente aos mais recentes “ficcionautas” apresentados neste artigo, possam se revelar verdadeiros cartógrafos, tanto para nos oferecer visões do que poderemos nos tornar no futuro quanto para desenvolver uma ética pós-humana atribuindo a cada indivíduo seus direitos de viver sob o status de normalidade – o que quer que esta palavra possa significar no futuro.


* Fábio Fernandes é doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP e professor dos cursos de graduação em Jogos Digitais e Tecnologia e Mídias Digitais daquela universidade, além da pós-graduação em Tecnologias da Inteligência e Design Digital (TIDD). Autor dos livros Interface com o vampiro (2000), A construção do imaginário cyber (2006), Wild mood swings (2008), Os dias da peste (2009) e No tempo das telas (2014). Membro do Steering Group de Visions of Humanity in Cyberculture, Cyberspace and Science Fiction, associado à University of Oxford, e membro do The Internet of Things Council (http://www.theinternetofthings.eu/). Formado pelo Clarion West Writers Workshop de Seattle em 2013.

Referências

BOULD, Mark & MIÉVILLE, China (eds.) Red planets: marxism and science fiction. London: Pluto Press, 2009.

CANGUILHEM, Georges. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.

CASTRO, Adam-Troy. Emissaries from the dead. New York: Harper-Collins, 2008.

COPELAND, Jordan J. (ed.) The projected and prophetic. Oxford: Inter-Disciplinary Press, 2010.

HAYLES, N. Katharine. How we became posthuman: virtual bodies in cybernetics, literature, and informatics. Chicago: The University of Chicago Press, 1999.

MIÉVILLE, China. Embassytown. New York: Del Rey Books, 2011.

MONTAIGNE, Michel de. The complete essays. (ed. and translated by M. A. Screech.) London: Penguin Classics, 1993.

Tempo de leitura estimado: 24 minutos

A conversão ao standing e o "Elastagel": análise de elementos da HQ Promethea, de Alan Moore e J. H. Williams III | Carlos Hollanda*

Foi sob um clima de expectativa e incertezas quanto ao futuro que foi elaborada a série Promethea, do muitas vezes premiado roteirista Alan Moore e de um dos mais talentosos artistas de quadrinhos da atualidade, Jim H. Williams III. Seu lançamento foi quase concomitante ao do filme Matrix (1999), dos irmãos Wachowski. Ambas as obras, cada qual à sua maneira, tratam em parte de suposições acerca da criação de “realidades” através de códigos escritos e visuais. Em Matrix, os códigos computadorizados representam pessoas, cidades, comportamentos, circunstâncias. Em Promethea, os códigos são as narrativas que se mantêm numa dimensão imaginária que é acessada de tempos em tempos por pessoas muito criativas que terminam por trazer ao mundo esses aspectos e o transformam de algum modo. Igualmente, os códigos imaginários referenciados pelos autores da série remetem a mitos em torno da criação do universo (mitos cosmogônicos) e de crenças que têm como matrizes temas oriundos do neoplatonismo, do gnosticismo e do hermetismo renascentista, apropriados por estudiosos de ocultismo do século XIX, que serão citados mais adiante. Moore e Williams enveredam por um sincretismo simbólico, sobretudo através de concepções esotéricas em torno da Alquimia, da Cabala, do Tarot e da Astrologia, cujos símbolos e correlações são representados visualmente na série com recursos estéticos capazes de comunicar com originalidade as analogias com os mundos intangíveis e surreais descritos na narrativa.

Moore é autor de outras séries de sucesso, algumas delas transformadas em obras cinematográficas como “V de Vingança”, “Liga Extraordinária” e “Watchmen”. Tal como em seus demais roteiros, ele impôs em Promethea um de seus principais diferenciais: um final previsto. A maioria das histórias em quadrinhos de personagens fixos e outras produções midiáticas como séries televisivas são mantidas indefinidamente. À medida que continuam dando lucro e estimulando a demanda dos consumidores destes gêneros, elas seguem sendo publicadas. O modus operandi de Moore difere substancialmente das demais produções do gênero, que recriam situações típicas e contextos repetitivos à exaustão.

Sua personagem tem como base visões pertencentes a organizações iniciáticas e entre suas inspirações encontram-se os já referidos arcanos do Tarot, que constituem grande parte da estrutura da HQ. Mais especificamente o deck de Tarot (“Tarot de Toth”) pintado por Frieda Harris (1877-1962), entre 1938 e 1945, sob a supervisão de Aleister Crowley (1875-1947), mago britânico que fundou e participou de organizações iniciáticas como a Golden Dawn e a Ordo Templi Orientis (O.T.O.). O roteiro privilegia o modelo de distribuição dos arcanos maiores daquele deck na Árvore da Vida segundo as premissas de seu supervisor, Crowley.

Um panorama geral

Para que haja um maior entendimento sobre o que aqui será tratado, eis um breve panorama da série e do perfil de sua protagonista: Sophie Bangs, jovem estudante de literatura, faz pesquisa sobre Promethea, uma figura literária que surge de tempos em tempos a partir de autores diferentes, em relatos, contos, quadrinhos antigos etc. Ela acessa a dimensão imaginária em que habita a personagem e passa a manifestá-la no mundo físico. Promethea é uma expressão dos deuses da comunicação e da escrita, o egípcio Toth e o grego Hermes. A personagem viaja por níveis diferentes de realidade, todos representando manifestações de uma ideia multifacetada de divindade, expressão ecumênica que admite modelos pagãos europeus, budismo, hinduísmo etc. e uma visão da condição humana sob a mística judaico-cristã, os arcanos do Tarot e símbolos astrológicos. Na HQ, ela alcança essa unidade divina e, ao final, promove o Apocalipse e a libertação da humanidade de maneira muito peculiar às crenças de Alan Moore. Além de tudo isso, promove a ideia de que a realidade pode ser criada também pela escrita/código e pela imaginação, como já visto na menção a Matrix. Tudo ocorre simultaneamente a situações mundanas, numa Nova Iorque imaginária de 1999 em que a tecnologia é muito mais avançada do que a realmente existente naquele fim do século. O nome Sophie Bangs contém propositalmente “sofia”, “conhecimento”, “saber”, em grego, radical de “Filosofia” (“amor ao saber”, etimologicamente falando) e Big Bang. A interpretação dificilmente seria diferente, já que na HQ, em sua supressão de sentido entre palavras, contextos e imagens, a temática oferece como foco central um esquema hermético da criação do universo, algo análogo e alusivo ao Big Bang proposto pela ciência (uma espécie de “momento zero” da Criação). “Sophia” é também parte do mito gnóstico de criação do universo e seria, em resumo, segundo essa doutrina, a geradora do mundo “ilusório” com o qual lidamos cotidianamente (o mundo da forma) devido à intenção de igualar-se ao “Deus Pai”, então a fonte de toda a existência (Rudolph, 1987, p. 53-88). Esta personagem mítica é análoga a uma das transformações pelas quais passa a protagonista numa parte adiantada da série e sua redenção equivale ao processo que levará à redenção da humanidade ao final da HQ.

Estes são pontos importantes na decodificação dos signos visuais e linguísticos da obra dos autores em questão para prosseguirmos com o foco no tema proposto no título: a crítica à “conversão ao standing”, nas palavras de Jean Baudrillard, em seu O sistema dos objetos. Na série, a edição número 11 (dezembro de 2000) é um tanto expressiva quanto ao processo que, entre outras particularidades, indica a publicidade como elemento de consumo, mais do que apenas os objetos que anuncia. Igualmente, apresenta de maneira sutil e em imagens o modo como o elemento coercitivo do imaginário suscitado pela propaganda leva a uma espécie de imposição do consumo. Visto isso, analisemos adiante o modo como os autores representam a supracitada coercitividade em torno dos “produtos do momento”.

“Patricinha” em busca de identidade

As necessidades humanas seriam, como vimos, deslocadas e respondidas, aparentemente, pelo consumo de mercadorias que prometem mais do que o produto pode oferecer. É o que Baudrillard vai chamar de separação entre produto (historicamente produzido) e bem de consumo, um objeto que se apresenta com uma “personalidade” própria que, no momento da compra, classifica seus consumidores, numa inversão de dominação, onde os objetos nomeiam homens, “um sistema de objetos”. Os produtos vão estabelecer hierarquias sociais, então, de forma que podemos pensar o consumo, num primeiro momento, como um modelo de concorrência, pela qual buscamos o “mais avançado”, o “último tipo” – “fetiche imperativo da valorização social (ZILIOTO, 2003, p. 29-30).

A passagem acima guarda profunda relação com boa parte das representações da edição número 11, sobretudo com a segunda figura mais importante em toda a série: Stacia Vanderveer. Ela é a amiga mais próxima de Sophie Bangs e uma espécie de seu oposto complementar. É a figura de consumo e alienação, a adaptação extrema a uma sociedade guiada pelos símbolos de status, pelo domínio das marcas e do “último modelo”. Enquanto Sophie se preocupa com sua interiorização e com questões transcendentes, Stacia mantém-se no nível imanente, vinculada às coisas do mundo. Entretanto, esse mundo no qual Stacia se encontra tão à vontade, independente de ser paupável, é na verdade construído por um intenso processo de simbolização. Todavia, trata-se de uma simbolização que distancia o indivíduo de qualquer reflexão acerca das condições em que vive. Não há “realidade” nesse mundo, exceto a realidade dos símbolos e de sua manipulação em torno do consumo, da inserção no sistema.

Stacia, neste caso, assume o posto de protagonista, especialmente quando o tema ora tratado representa um sistema de consumo da linguagem publicitária e a emergência do desejo, dirigido por esta última à assimilação das normas do grupo.

Stacia vive em busca de identidade e seus objetos de consumo, cada qual vinculado retoricamente a temporalidades diferentes (vestido anos 60, cabelo cor-de-rosa, enfeites punk dos anos 70) representam a desreferencialização pós-moderna (ver figuras 1 e 4). Seus excessos consumistas equivalem a nenhum referencial identitário específico, correspondem, no âmbito coletivo, ao que Stuart Hall diz a seguir:

A identidade plenamente identificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente (Hall, 2002, p.7-22).

Stacia é o protótipo da adesão ao imperativo e os indicativos publicitários e da profusão de identidades, algo constatável pela convivência de diversas “temporalidades” e elementos estéticos contrastantes em suas vestimentas e comportamento.

Vimos acima alguns jogos de palavras com o nome de Sophie Bangs, bastante contextualizados às ideias inerentes à série. Podemos fazer algo semelhante com Stacia. Uma breve análise de seu nome já introduz o que será verificado, logo em seguida, nas imagens da cidade e da inserção da personagem no meio urbano, além do uso de um produto que, no contexto da HQ, está plenamente na moda e que mais adiante será analisado. “Stacia” pode provir de “stack”, em inglês, que significa “pilha”, “monte”, ou coloquialmente “grande quantidade”, “abundância”, ao que se pode acrescentar “exagero”, dadas as características a serem detalhadas. Seu sobrenome, “Van der Veer”, numa primeira observação, mostra parentesco com holandeses (“van”). Entretanto, o final “veer”, em inglês significa “mudança”, “mudar de direção”, “guinada”, “giro”. Stacia mantém-se em constante e profusa mutação, a propósito. Seus cabelos, de rosa passam ao verde e de um tipo de penteado a outro em questão de capítulos ou algumas páginas. Suas vestimentas cada vez mais exóticas a cada aparição, mesclam casacos de pele de onça com motivos plásticos (ver Figura 5). Van der Veer, em holandês vem de “da passagem”, e é traduzido por “ferry”, no inglês: “passagem”, “balsa”, “barco de passagem”, “travessia”. Podemos acrescentar “transição”. Nos dicionários holandeses Veer também pode significar “pena”, “pluma”, “penacho”, “plumagem”, “enfeite”. Dá origem ao verbo “emplumar-se”. De fato, Stacia é “toda emplumada”, alguém que na gíria brasileira poderia receber a alcunha de “perua”. Os resultados das combinações seriam semelhantes a “muito efêmera” e “exageradamente enfeitada”. É como Stacia sempre se encontra, ao usar tudo aquilo que se adéqua à sua suposta individualidade. Entre esses usos está o do produto que simboliza o maior dos fetiches de valorização social e dos avanços tecnológicos cujo consumo é menos uma necessidade do que uma identidade outorgada temporariamente: o Elastagel.

O Elastagel: “último modelo” e signo de personalidades amorfas

Quais as relações entre Stacia e o Elastagel? Para compreendermos, antes é preciso analisar o modo como este último é representado. Produto fictício, um dos referenciais sígnicos dos avanços científicos da realidade alternativa daquelas personagens, o Elastagel funciona simultaneamente como reiteração visual de algumas das propriedades “mercuriais” da HQ e como substituto para diversos outros materiais. Ele ocupa o lugar de plásticos, borrachas, tecidos, vidros e é programado em conformidade com as necessidades e/ou desejos de cada consumidor. É reaproveitável e sua estrutura é construída em bases nanotecnológicas. Disso decorre sua plasticidade e possibilidade de programação tal qual um software. Como vestimenta, amolda-se ao corpo, permite o ajuste a cada usuário pelo tamanho e pela especificidade da forma. É indeformável: se rasgado ou danificado, sua “nanoprogramação” imediatamente se prontifica a reparar o dano, tornando a vestimenta nova em folha. O Elastagel seria, afinal, a suprema personalização num sistema de objetos, nos termos de Baudrillard:

(…) em uma era de consumo ou que assim se pretende, é a sociedade global que se adapta ao indivíduo. Não somente vai ao encontro de suas necessidades, como toma bastante cuidado em se adaptar não a esta ou àquela necessidade sua, mas ao indivíduo próprio pessoalmente (Baudrillard, 2002, p. 178).

A questão é tratada, como se pode ver, numa obra ficcional e certamente não se possui, até o momento, algum material com tamanha versatilidade e praticidade. Entretanto, a suposta personalização ideal daquele produto é o mote para uma crítica à conversão ao standing. No roteiro, não há a menor necessidade de substituição dos materiais existentes. Entretanto, as medidas publicitárias estimuladoras do consumo contribuem fortemente para o uso desse último modelo, desse material mais “moderno”, mais “condizente com o estilo da época”. A publicidade com sua função gratificante, infantilizante, satisfaz as instâncias imaginárias, enquanto o progresso técnico e o produto visam satisfazer as necessidades materiais. No entanto, que necessidades seriam essas? A publicidade constrói e responde a outras construções, cria necessidades que não as fisiológicas ou as de sobrevivência, mas sim as de convivência e de conformidade ao imperativo coletivo, a autoinserção na massa, ainda que através do discurso da diferenciação e da formação identitária. Baudrillard a esse respeito cita textos publicitários como “materiais novos para afirmar o estilo de nossa época. (…) Depois da idade da pedra e da madeira, vivemos, em matéria de mobiliário, a idade do aço” (Baudrillard, 2002, p.178). Se a publicidade fosse realizada na HQ, o final do texto seria substituído por “a idade do Elastagel”. O sentido é basicamente o mesmo.

Uma obra de ficção, como qualquer outra que expressa o imaginário da época de sua produção, comporta os anseios, preocupações, temores e expectativas que fazem parte das práticas e representações sociais vigentes, assim como seus tabus e exclusões. Não é aleatório o uso dessa figura retórica e também visual, nem tampouco se encontraria ali apenas com a finalidade de ocupar espaço na narrativa e entreter seus leitores. Mais do que isso, constitui um discurso de quem vive um momento em que as produções industriais e a publicidade atingem um nível de sedução das populações em prol de um consumo muito além das necessidades físicas. É a discussão acerca do que é realmente necessário, a indicação literária de uma dependência do desejo e do seu avassalador estímulo via meios de comunicação. Vai-se além, ainda, das necessidades de integração social, tal como em décadas anteriores. O sistema de obsolescência planejada recria e impõe uma outra necessidade de integração, com mecanismos de inserção do indivíduo não num grupo que se identifica pela classe ou por um paradigma ideológico, mas sim pelo ingresso numa poderosa corrente de desejo e descarte, de autogratificação e insatisfação ininterruptos. Saciam-se vontades, não necessidades (Campbell, 2006, p. 49). Na edição 11, essas representações fazem eco ao que diz Denise Macedo Ziliotto:

(…) se consumimos signos e não objetos, o consumo é uma prática idealista total que faz com que não haja fim para o consumo, que ele não seja saciável. Dinamizado por um projeto sempre frustrado e subentendido no objeto, o consumo se fundaria, então, numa ausência irreprimível (Ziliotto, 2003, p. 33).

É esta a questão. Mesmo inexistente, pelo menos por enquanto, o fabuloso material da moda na HQ, que teria suas virtudes, a propósito, é a imagem retórica de mais um contributo à obsolescência de numerosos materiais. Objetos que tornar-se-iam sucata em favor da satisfação provisória dos desejos, e não exatamente das necessidades, até que fosse produzida uma nova substância cujas propriedades e diferenciais substituíssem as do Elastagel. Não seria, portanto, o material em si ou aquilo no que ele se transforma, mas o símbolo que ele carrega e seus aspectos inovadores, o diferencial, o fator que os demais não possuem e que pode possibilitar o exprimir de uma identidade.

Num ponto mais adiantado do capítulo, todos os artefatos feitos de Elastagel sofrem um “defeito” e ganham vida nos corpos de seus usuários, nas ruas, em todos os objetos e estruturas, que então somam milhões de toneladas, unindo-se em algo comparável a um oceano de massa amorfa esverdeada (ver Figuras 2 e 3). Ao tornar-se amorfo e monstruoso, o que passa a ser representado é o caos subjacente àquela aparente ordem. Naquele ponto, eis a deixa para a entrada em cena da heroína.

A “Pseunami”, título dado ao capítulo ora estudado, uma mescla de “pseudo” (falso) e “tsunami” (onda gigante), se por um lado inscreve-se nos temores coletivos do final do século XX de catástrofes naturais, por outro representa a ilusão veiculada pela publicidade, que é consumida como uma segunda coisa, além do próprio produto. Tsunami, devido à gigantesca produção de objetos de consumo cuja necessidade é duvidosa, mas que inserem o consumidor individual num sistema universal, o standing. Seria essa conversão ao standing, que ao mesmo tempo propõe a suprema individualização/personalização, mas condiciona à aquiescência dos códigos de valores coletivos submetidos às normas do consumo do capitalismo industrial. A função da publicidade seria, segundo Baudrillard, converter-nos a tais valores. Quanto ao standing e aos códigos supracitados, o autor acrescenta:

Este código é totalitário, ninguém lhe escapa: escapar a ele em caráter privado não significa que deixamos de participar a cada dia de sua elaboração no plano coletivo. Não crer nele é ainda crer que os outros nele creiam o bastante para entrar, mesmo ironicamente, no jogo. Mesmo as condutas refratárias a tal código são consideradas em função de uma sociedade que a ele se conforma (Baudrillard, 2002, p. 203-203).

Como crítica, a representação de uma Pseunami formada pela liquefação de um “último modelo”, como uma massa homogênea que submerge no caos todas as identidades (homogeneidade por trás da particularidade), elimina as possibilidades de identificação e traz à tona a matriz cultural do temor diluviano ou do julgamento. Ali, porém, o dilúvio é o da perda de referenciais. Seria preciso uma super-heroína para tornar a fazer sentido e exaltar o que seria subjacente ao consumo.

Figura 1 - Páginas 5 e 6 da edição número 11, de dezembro de 2000.
Figura 1 – Páginas 5 e 6 da edição número 11, de dezembro de 2000.
Figura 2 - Página 9 da edição número 11, de dezembro de 2000.
Figura 2 – Página 9 da edição número 11, de dezembro de 2000.
Figura 3 - Páginas 7 e 8 da edição número 11, de dezembro de 2000.
Figura 3 – Páginas 7 e 8 da edição número 11, de dezembro de 2000.
Figura 4 - Páginas 5 e 6 da edição número 1, de agosto de 1999.
Figura 4 – Páginas 5 e 6 da edição número 1, de agosto de 1999.

Conforme indicado inicialmente, a Figura 4, logo acima, apresenta a personagem Stacia Vanderveer, amiga de Sophie Bangs logo na primeira edição da série. Desde o início, a propósito, nota-se a representação do grande apelo ao consumo ao longo da cidade através dos outdoors e luminosos. Aqui, finalmente, encontramos as relações entre os significados do nome e da visualidade de Stacia e a conversão ao standing na forma do uso generalizado do Elastagel. Excesso de mudanças, usos de objetos em profusão, a identificação com o último modelo, individualismo, desreferencialização identitária e assim sucessivamente, tornam Stacia, da edição 1 a 11, o protótipo do consumidor pós-moderno e o Elastagel seu mais perfeito indicador de personalidade.

No primeiro dos quadros acima, em primeiro plano, lendo uma revista, está ela, exótica e superficial, cujo visual, não custa reiterar, é marcado pelo consumismo e hibridismo, além do sincretismo/inclusivismo. Nela convivem um comportado cabelo armado ao estilo dos anos 50-60, com uma flor como enfeite conferindo um toque infantil ao visual que mescla sensualidade, adolescência e agressividade. Stacia usa uma gargantilha com rebites ao estilo Heavy Metal, um maroto vestido curto quadriculado, com as pernas à mostra e uma jaqueta de couro à moda “bad boy”. Seus óculos, cujo desenho remete ao visual “gatinha”, são acompanhados de duas excêntricas lâmpadas para ler em locais escuros sua estranha revista do “Gorila Chorão”. A seu lado, a nada extravagante Sophie, acentuando, por contraste, o exotismo da amiga. A imagem pede uma breve análise como a que se segue, visando estabelecer os nexos entre ela e as questões aqui associadas à pós-modernidade e à crítica ao consumo e conversão ao standing.

A cena é composta por duas sequências, uma de ambiente externo outra no interior do táxi flutuante, futurista, mas cujo design da carroceria é o de um carro que lembra os anos 1970, inclusive com seu parachoques metálico, pouco comum no final do século XX, em que a indústria automobilística passara a produzir mais frequentemente essa peça em material plástico. A diagramação e a sequencialização transmitem a ideia de simultaneidade entre os dois ambientes. O recurso situa o leitor no contexto em que vivem as personagens ao mesmo tempo em que oferece uma dimensão do plano psicológico das mesmas, apresentando-as em alguns de seus maneirismos ao leitor. Sophie, com suas características icônicas sugerindo simplicidade, pouco afins com o ambiente externo e com Stacia, se destaca mais pela diferenciação que pelo “olhar da câmera” do artista. Este mantém a vista em contre-plongée, isto é, de baixo para cima, gerando a impressão de superioridade, enormidade, alongamento. Isso ocorre tanto na representação do trânsito e dos grandes prédios quanto na comparação entre Stacia e Sophie. A primeira aparece “dignificada”, perfeitamente identificada com a totalidade do ambiente. Note-se que as falas do primeiro quadro confirmam a ideia de que o consumo e a superficialidade seriam mais atraentes para os habitantes daquele mundo do que a busca por sentido que motiva Sophie. Numa tradução livre, ali se lê: “Promethea, o mesmo nome de poemas do século XVIII, tiras de jornal, revistas pulps e em quadrinhos. Isto é que é interessante! ‘Gorila Chorão’ não faz sentido!”, diz Sophie. “Não há sentido, esta é a genialidade do ‘Gorila Chorão’”, retruca Stacia, vista de baixo para cima. Esta é a fala da personagem, a princípio, inconsciente das “artimanhas” dos autores, que situam o Gorila Chorão numerosas vezes, nesta e noutras edições, em outdoors e publicações. Sutil e estrategicamente, colocam-no em cenas nas quais suas falas criam um clima de ironia sobre o que dizem e vivem os demais personagens naqueles momentos. Na cena em questão, por exemplo, o Gorila da revista de Stacia diz: “choke – Modern life makes me feel so alone! (“suspiro”, a vida moderna me faz sentir tão sozinho!), uma dica a respeito do excesso de individualismo das sociedades pós-modernas representadas ali por Stacia, que parece perfeitamente adaptada, mas que requer as compensações dos objetos a preencherem seu “vazio identitário”.

Ainda em relação aos códigos visuais, há plongée, vista de cima para baixo, achatando as personagens, apenas no quadro intermediário do detalhe da conversa e no terceiro quadro, à direita, em que Sophie se encontra de costas. A forma de Stacia, no entanto, permanece bem maior que a de Sophie, que nesse quadro, devido ao plongée, acentua sua pequenez. É interessante notar que a pequena e humilde Sophie tornar-se-á, algumas páginas depois, uma semideusa de quase dois metros de altura, com poderes incalculáveis. A proposta de Moore, afinal, também abarca a ideia de que a imaginação suplanta todo tipo de limitação e é a verdadeira ponte de ligação entre a potencialidade e a realidade, o mecanismo, por excelência, que possibilita o conhecimento ou o “fazer sentido”. Os objetos de consumo representados na obra da mesma forma fazem parte desse universo do sentido, quando, por intermédio das construções midiáticas e da propaganda, suprem as “necessidades”, ou melhor, representam identidades e satisfazem “vontades”. No entanto o fazem sem saciar necessidades propriamente ditas. De fato aquela sequência revela a seguinte relação salientada por Baudrillard:

Os que negam o poder de condicionamento da publicidade (dos mass media em geral) não apreenderam a lógica particular de sua eficácia. Não mais se trata de uma lógica do enunciado e da prova, mas sim de uma lógica da fábula e da adesão. Não acreditamos nela e todavia a mantemos. No fundo a demonstração do produto não persuade ninguém: serve para racionalizar a compra que de qualquer maneira precede ou ultrapassa os motivos racionais. Todavia, sem “crer” neste produto, creio na publicidade que quer me fazer crer nele (Baudrillard, 2002, p. 175-176).

Assim, Stacia, na verdade, não “acredita”, naquilo que consome, mas sim naquilo que o produto representa enquanto construção publicitária.

A visão em contre-plongée também enfatiza os “discos voadores” da cena, na verdade veículos policiais daquela Nova Iorque alternativa, que direcionam seus fachos de luz para uma minúscula figura humana no alto de uma construção. É como se o sujeito no espaço urbano fosse aniquilado pelas marcas, pela monumentalidade das edificações. A imagem ainda sugere que aquela figura humana está sob suspeita de um controle absoluto dos poderes vigentes ou submetida aos imperativos da visibilidade e do desejo: não se escapa do sistema, não se fica na penumbra impunemente.


*Carlos Hollanda é doutor em Artes Visuais pela EBA/UFRJ com tese ganhadora do Troféu HQMIX e mestre em História Comparada (IFCS/UFRJ). Coordenador e professor da pós-graduação em História da Arte da UCAM Ipanema, professor de Semiótica no IED-RIO e editor da revista “História, imagem e narrativas”.

Referências

BARBOSA, Lívia & CAMPBELL, Colin. Cultura, consumo e identidade. Rio de Janeiro: FGV 2006.

BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. São Paulo: Perspectiva, 2002.

DOUGLAS, Mary. O mundo dos bens – para uma antropologia do consumo. Rio de Janeiro: UFRJ, 2004.

GODWIN, David. Cabalistic encyclopedia. Saint Paul: Llewellyn Publications, 1997.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.

MOORE, Alan, WILLIAMS III, J.H. Promethea # 11: Promethea under attack. USA: America’s Best Comics, 2000.

MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX – o espírito do tempo – 1 – Neurose. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1981.

RUDOLPH, Kurt. Gnosis, the nature & history of gnosticism. New York: Harper-Collins 1987, p. 53-88.

ZILIOTO, Denise Macedo. O consumidor: objeto da cultura. Petrópolis: Vozes, 2003.

Fanpage sobre o selo America’s Best Comics: disponível em http://www.leguy.de/comics/abc/. Acesso em 3 ago. 2009.

Artigo acerca do documentário sobre Alan Moore, do diretor Dez Vylenz: disponível em http://www.omelete.com.br/cine/100002225/_i_The_mindscape_of_Alan_Moore__i_.aspx. Acesso em 4 ago. 2009.

Referência do sobrenome Van der Veer em holandês: disponível em http://www.veerhuis.org/genealogy/VanDerVeer.html. Acesso em 14 ago. 2009.

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Apresentação | André Telles do Rosário

Diversos saraus habitam as grandes cidades brasileiras, onde a poesia é servida quente, trocada no calor das relações humanas presenciais. A poesia falada e corporalmente compartilhada nunca foi tão popular, no Brasil. Nunca o foi tanto quanto ao número de pessoas envolvidas em eventos espalhados por todo o país; quanto à origem delas, oriundas das classes populares, em sua maior parte. E popular também porque algo que se destaca nestas cenas é a centralidade cultural das periferias, onde a maioria destes recitais se encontra.

É possível perceber que a poesia compartilhada e, especialmente, a produzida nos ambientes destes eventos, tem uma relação muito especial com o suporte em que é trocada – o corpo – e com o local onde se dá essa troca – o território. São eventos cuja própria existência, muitas vezes, é um manifesto cultural, de intervenção e apropriação urbana. E eventos onde o ato de falar é performativo em sua própria condição de recriador do mundo.

Esta edição da Revista Z Cultural vem observar a confluência de dois temas muito comuns na produção e no pensamento cultural contemporâneos, Corpo e Território, em suas relações com a poesia corporalmente compartilhada hoje.

De um lado, os estudos de performance, e das dinâmicas de oralidade e letramento, aplicados à poesia usufruída coletivamente. A busca de entendimentos mais profundos sobre as estruturas, e estratégias, destes recitais. Como a corporalidade da poesia se manifesta diferentemente em cada lugar, e quais as constantes que se podem retirar de observações distintas entre si.

Por outro lado, os estudos de geografia cultural, as identidades envolvidas no uso dos territórios. A realização dos saraus como um gesto ousado de autonomia e independência cultural de alguns específicos lugares dentro de específicas cidades. Pontos de aglutinação de pessoas e troca de conhecimentos. Centros coletivos de produção de discursos políticos identitários, tanto dentro das comunidades quanto para fora delas – reflexão e projeção.

Para buscar renovadas leituras críticas sobre tais corpoeticidades – onde a poesia vira habitação; e a cidade, linguagem – a Revista Z Cultural propõe a presente reflexão sobre Corporalidade e Territorialidade na Poesia Falada contemporânea.

André Telles do Rosário (Organizador)

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A poesia marginal no cinema pernambucano: poética do deslocamento | Camilo Soares*

[…] eu vi os expoentes da minha geração consumindo / muito álcool, na Rua do Hospício em busca da loucura, / chapando insistentemente no Beco da Fome para / recitar na Sete de Setembro contra o auto-otarismo e o autoritarismo em voga, / andando pelas ruas da Boa Vista feito zumbis / bêbados, ansiando fumar um nos miseráveis / apartamentos / sem água e sem luz, flutuando sobre os tetos da / cidade […] (Jordão, 2013, p.13).

A poesia marginal do Recife há cerca de três décadas requalificou a cidade e seus becos como fundamento poético de uma geração. A vivência da cidade dentro do fazer poético fez a presença do corpo no ambiente urbano e o deslocamento incessante no fluxo contínuo da cidade elementos indissociáveis ao ato de criar e à construção de uma linguagem peculiar. Não por acaso, outras manifestações artísticas locais, sobretudo o cinema – arte de corpos e movimentos –, incorporaram tal poesia em algumas de suas produções recentes, voltando a câmera para as vísceras da urbe e para os poetas urbanos em seus descaminhos de criação, frustração, drogas, bebedeiras. Não se propõe aqui mapear tais interstícios, mas tentar buscar formalmente e conceitualmente marcas do legado dessa geração de poetas sobre o cinema pernambucano atual, sobretudo em sua relação com a cidade.

Poetas marginais, alternativos, urbanos ou escritores independentes são nomes para um mesmo grupo de poetas da Região Metropolitana de Recife, uma geração que desde os anos 80 apresenta suas poesias em recitais pela cidade, em fanzines ou em livretos autoproduzidos. Mais do que isso, é uma geração de poetas que desceu do Parnaso da literatura culta e pisou na rua, qual Baudelaire em sua Paris do século XIX, tirando da cidade não apenas sua inspiração, mas fazendo da travessia de becos, bares e ruas a essência de sua poética. Erickson Luna, Jorge Lopes, Miró da Muribeca, Valmir Jordão, Lara, Zizo, Ivan Maia, Samuca, Fred Caminha, Chico Espinhara, Ivan Marinho, França, entre tantos outros, fizeram do contexto urbano o ambiente propício a suas palavras e imagens gestuais. O estar-no-mundo virou, simplesmente, estar-na-cidade; o corpo, em sua vivência e memória, tornou-se a base dessa poética, fundindo-se não apenas com os vocábulos do urbano, mas tornando corpo e cidade quase indissociáveis em seus versos.

Figura 1: O poeta Erickson Luna (foto: Camilo Soares, do livro Poesia, mesa de bar e goles decadentes, 2012)
Figura 1: O poeta Erickson Luna (foto: Camilo Soares, do livro Poesia, mesa de bar e goles decadentes, 2012)

Canto de Amor e Lama I

Choveu
e há lama em Santo Amaro
nas ruas
nas casas
vós contornais
eu não
a mim a lama não suja
em mim há lama não suja
eu sou a lama das chuvas
que caem em Santo Amaro
Vosso scotch
pode me sujar por dentro
cachaça não
vosso perfume
pode me sujar por fora
suor nunca
porque sou suor
a cachaça e a lama
das chuvas que caem
em Santo Amaro das Salinas
(Luna, 2004, p. 43)

Poética do concreto, mas não escrava da matéria, tais versos foram, aos poucos, subvertendo a objetividade da cidade por uma subjetividade do olhar, reconstruindo a urbe através de pilares instáveis de sua arquitetura afetiva, onde as coisas finalmente se transfiguram em imagens. Na poética urbana, o indivíduo trabalha seu estar-na-cidade de maneira a restituir para si a capacidade de interpretar e usar o ambiente urbano de forma diferente das prescrições implícitas no projeto de quem o determinou ou, como diz Argan, de reagir ativamente a esse ambiente. A cidade vira, para ele, um sistema de informação, com possibilidade de flexão e elasticidade de um sistema linguístico. A estética da cidade assume um lugar cabal nessa possibilidade de comunicação, e os poetas, em suas perambulações de bar em bar, fizeram-se pioneiros na arte de sentir e captar essa transição:

Incontestavelmente, a cidade é feita de coisas, mas essas coisas nós as vemos, oferecem-se como imagens à nossa percepção, e uma coisa é viver na dimensão estreita, imutável, opressiva, cheia de arestas, das coisas. É uma passagem que a cidade moderna deve realizar, a passagem da concretização, da dureza das coisas, à mobilidade e mutabilidade das imagens (Argan, 2005, p. 219-220).

Não por acaso, Kevin Lynch já falava dessa construção de cidade a partir de mecanismos perceptivos e cognitivos. Para ele, a paisagem urbana está inerentemente ligada ao bem-estar do homem, por sua qualidade visual de legibilidade, imaginabilidade (capacidade de provocar forte impressão sobre o observador) e, finalmente, identidade (Lynch, 1997, p. 37). A poesia marginal recifense mantinha naturalmente todas essas relações com a cidade: textos rápidos, coloquiais, diretos e quase violentos, somados à presença do poeta em recitais, seu corpo interagindo com as luzes da cidade, tornando-se parte dos becos e bares da metrópole. Tal imanência fez do poeta um cronista urbano ou uma espécie de fotógrafo que revela em palavras o pitoresco e o banal cotidiano, no foco de sua objetiva.

Avenida Caxangá

Lá vem o sol de novo
A chatear meus dias
Me jogando a pensar
Conjecturas
Pra onde vou
O que fazer
Falar o que
O que falar?
agora chove,
Sombrinha e guarda-chuvas
Enfeitam calçadas
E o riso na cara
Do cara da funerária
Anunciando mortes e lucros.
(Miró apud Soares, 2012, p. 26)

Figura 2: O poeta Miró da Muribeca (foto: Camilo Soares, do livro <em>Poesia, mesa de bar e goles decadentes</em>, 2012)
Figura 2: O poeta Miró da Muribeca (foto: Camilo Soares, do livro Poesia, mesa de bar e goles decadentes, 2012)

Assim, o grande elo entre tantos poetas não pode ser associado apenas à linguagem escrita, mas a sua presença física na cidade. Primeiro, uma presença na captação da crônica urbana, do observador em constante deslocamento; segundo, na expressão dessa poética com gestos e vozes dentro de um espaço urbano. Para abordar tal característica da poesia de Miró, mas também aplicável a outros poetas do grupo, André Telles do Rosário cunhou o termo Corpoeticidade ao juntar corpo, poética e cidade num só conceito, formando três dialéticas: poesia e corpo, corpo e cidade, cidade e poesia.

No primeiro, A poesia no corpo, traços de performaticidade […], a forma com que o corpo modula as manifestações do poema. No segundo, O corpo na cidade, um olhar sobre a subjetividade deste indivíduo urbano, quais as fronteiras para a movência e para o usufruto da urbe: a cor, a classe e a intimidade deste habitante que é o ponto-de-vista das imagens de suas invenções. E no terceiro, A cidade na poesia, como as representações geográficas tradicionais (principalmente da cidade, mas também da região e da nação) são desconstruídas e reinventadas em poemas seus (Rosário, 2007, p. 84).

A cidade não é, portanto, apenas fonte inspiradora, ela entra num jogo de transformar e ser transformada constantemente por toda sua gama de códigos e linguagens, tanto de forma simbólica quanto física. Devemos, como aponta Rosário, observar além do significado meramente linguístico ao apreciar esses poemas, ou seja, perceber a ação do corpo na construção da mensagem, desde a voz e o gestual, até a indumentária, o local e a ocasião. Tudo isso ajuda a compor, junto a prédios, postes e muros, a imagem da cidade para esses poetas e para os que os leem ou os veem declamar. Tais gestos, roupas e sons influenciam até mesmo na formatação da versão impressa dos poemas em livretos, geralmente leves, finos, estreitos, fáceis de carregar.

No cinema desse gênero[1], pode-se observar facilmente tal corpoeticidade. Os filmes de Wilson Freire com Miró (Miró, Preto, Pobre, Poeta e Periférico, 2008, e Breve Ensaio sobre a Bestialidade Humana, 2010) parecem ser tratados cinematográficos sobre a corpoeticidade, pois corpo, poética e cidade estão intrinsecamente arraigados em cada cena, conduzindo a estética e narrativa do filme, destruindo-se e reconstruindo-se mutualmente. Já no filme de Antônio Carrilho, Poeta Urbano (2012), mais clássico em sua concepção, o poeta perambula para vender seus fanzines de poesia pelos bares da cidade. Urbano é seu nome, pois é completamente parte da cidade que tanto o maltrata (a ele e à sua arte). Carrilho filmou em 35mm para dar uma certa nobreza a uma arte desprestigiada, o que talvez tenha limitado sua experimentação, perdendo um pouco da agilidade inerente a tal poesia.

Documentário Miró, Preto, Pobre, Poeta e Periférico (Wilson Freire, 2008)

Linguagem e contexto urbano

Como à poesia que faz referência, em tais filmes pernambucanos, a imagem da cidade tampouco é construída apenas numa relação de plano de fundo; poética, cinema e cidade intervêm uma nas outras como grafias que formam uma linguagem em comum. Para Argan­­ –­ que tece a analogia entre o linguista e o urbanista tendo em vista a similitude do processo de formação, agregação e estruturação do espaço urbano com a formação, agregação e formação da linguagem – a proximidade da apreensão da cidade como leitura subjetiva com a compreensão de associações linguísticas (como na poesia e, por que não, no cinema?) é incontestável:

A configuração humana, enfim, não seria mais do que o equivalente visual da língua, e não tenho nenhuma dificuldade em admitir que os fatos arquitetônicos estão para o sistema urbano assim como a palavra está para a linguagem (Argan, 2005, p. 237).

Tais interações linguísticas desenham relações bastante complexas, pois além do discurso, associam-se na memória, na afetividade do interlocutor. Ele usa a classificação saussuriana de relações linguísticas, dividindo essas em sintagmáticas (lógicas e presenciais) e associativas (subjetivas e virtuais). Para Saussure, o espaço também é percebido dessa maneira, dando o exemplo de uma coluna de um edifício: de um lado temos sua função com a arquitrava que sustenta (sintagmática), de outro lado a coluna é de ordem dórica, evocando a comparação com outras ordens (jônica, coríntia, etc.), que são elementos não presentes no espaço (associativo) (Saussure apud Argan, 2005, p. 239).

Para Argan, as duas esferas são importantes no campo puramente linguístico e no campo urbanístico, e cita Saussure.

Uma língua que funcionasse apenas por relações associativas não permitiria fazer um discurso coerente; uma língua que funcionasse apenas só por relações sintagmáticas seria lógica, mas de uma extrema pobreza. Assim no contexto urbano que fosse apenas o conjunto das imagens urbanas de cada indivíduo seria um caos; um contexto urbano que fosse apenas o mecanismo de uma função não teria profundidade histórica, seria indiferenciado, não comunicaria nada que não possa ser comunicado por fórmulas (Saussure apud Argan, 2005, p. 239).

Através da corpoeticidade, a poesia urbana talvez seja o maior exemplo dessa interação entre contexto urbano e linguístico (sobretudo o associativo, de onde a poesia tira sua força, subvertendo mas não apagando por completo a relação sintagmática). Aqui juntaremos uma terceira expressão ligada ao corpo, o estar-no-mundo (ou na cidade, especificamente) de forma imanente, com seus gestos e deslocamentos, pois tal poética urbana só se complementa, segundo Rosário, quando o corpo interage com a cidade e com a poesia.

Nas releituras da urbe, interpreta, simbolicamente, tanto a estrutura social, quanto as representações culturais do lugar. Novas e velhas conformações se misturam, na cartografia de Recife e do Mundo – mapas de uso deste espaço geográfico ligados a classe, etnia, gênero, identidades. Pontos onde o indivíduo socialmente envolvido (o “anônimo”) encontra voz, remonta discursos e cria imagens da sua cidade, tomando para si seu espaço no Mundo, através da expressão de uma relação afetiva (ou menos) com o lugar que habita (Rosário, 2007).

Nessa criação da cartografia da cidade a partir de representações culturais do lugar, entramos aqui em uma dinâmica orgânica entre artista, espaço e percepção (não só do artista como também de quem contempla a obra). Em sua Poética do Espaço, Gaston Bachelard contrapõe o estar-no-mundo poeticamente, o que chama de fenomenologia da imaginação, com a visão objetiva (sintagmática) do espaço, o que tanto na literatura quanto no cinema é diferença fundamental na articulação e formação de novos discursos sobre a cidade, sobre o mundo, a partir de imagens.

O espaço captado pela imaginação não pode permanecer espaço indiferente à revelia da medida e da reflexão do geômetra. Ele é vivido. E ele é vivido não apenas na sua positividade, mas com toda a particularidade da imaginação (Bachelard, 2007, p. 17).

Não há dúvidas que a cidade é vivida visceralmente pela poesia marginal do Recife, longe de uma visão mítica e saudosa (Bandeira) ou ontológica e sociológica (Cabral).[2] Mas a agregação do espaço como imagem vivida é um diferencial do cinema pernambucano recente, no cenário nacional e mesmo internacional; não é por acaso que tal poesia se faz presente nessas telas, por homenagem ou por confluência.

Cláudio Assis (com seu roteirista Hilton Lacerda), por exemplo, escolhe fechar sua trilogia mergulhando na poética marginal do Recife com o filme Febre do Rato (2011). Fazendo uma homenagem a essa geração através do poeta Zizo, o incansável divulgador de poesia com seu fanzine Caos de quem emprestou o nome de seu protagonista. Assis e Lacerda transcorrem não apenas as ruas da cidade, como também seus rios e pontes, anunciando verdades inaceitáveis à hipocrisia reinante pelos atos de terrorismo poético do personagem. A dureza da cidade é vivida e reconstruída pela poética de Zizo. Recife vira fluxo de sons, descaminhos e palavras.

Figura 3: O poeta Zizo (foto: Camilo Soares, do livro <em>Poesia, mesa de bar e goles decadentes</em>, 2012)
Figura 3: O poeta Zizo (foto: Camilo Soares, do livro Poesia, mesa de bar e goles decadentes, 2012)

O mesmo poeta Zizo foi co-diretor e co-roteirista do curta metragem Sue – Turbulenta aberração, de Camilo Soares. Baseado na personagem Sue de seus fanzines, jovem mulher, poeta, libertária e libertina, que perambula pela urbe na busca de suas várias identidades. Não apenas Sue é o anagrama de Eus, como esses se misturam aos sons e imagens da cidade, palco perfeito para tal poética, suas dores, suas dúvidas…

Figura 4: Frame do filme <em>Sue</em> <em>-</em> <em>Turbulenta aberração</em> (Camilo Soares e Zizo, 2013)
Figura 4: Frame do filme Sue Turbulenta aberração (Camilo Soares e Zizo, 2013)

Trailer de Sue – Turbulenta aberração:

Assim sendo, é uma poesia de fluxo, mais do que de flanerie, pois é uma literatura que só sobrevive no deslocamento, no gesto e na voz misturada a sons, cheiros e demais estímulos da cidade, seja pela venda cotidiana dos fanzines, de mesa em mesa de bares, seja pelos recitais organizados ou espontâneos em diversos espaços, sobretudo no centro da cidade. Não há muito dessa contemplação e desaceleração do flaneur. Cidade, poetas e poesia passam como movimentos, construindo-se na fluência caótica de seus vários elementos. Tal leitura do espaço, como diz Bachelard, é construída da própria brevidade da imagem: “A fenomenologia da imaginação deve assumir a tarefa de captar o ser efêmero” (Argan, 2005, p.197).

O cinema, arte fenomenológica por excelência, não poderia ficar apático dessa incessante construção do Recife em tempo e espaço. Nos filmes que retratam tal universo também se faz sentir esse deslocamento, esse fluxo, essa corpoeticidade. Nos dois filmes já citados de Wilson Freire sobre Miró, o primeiro um documentário, o segundo um experimental, o poeta está sempre em deslocamento pelo Recife e periferia. A poesia é presente não apenas em palavras, mas também no movimento do corpo do poeta e na vibração da urbe diante do espectador privilegiado que é a câmera, que percebe ao mesmo tempo em que provoca tal interação, sem ser artificial, pois esse interstício já está intrínseco na sua poética.

Igualmente no filme Poeta Urbano, de Antonio Carrilho, seu personagem transcorre a cidade no árduo trabalho de vender seus livretos, em cenas exageradamente ficcionais, até culminar num êxtase de declamações em Olinda, que escapa do controle do cineasta e encontra finalmente a força libertária dessa poesia, quando o filme entra no interstício, comum ao estilo do diretor, entre ficção e documentário. A íntegra desse encontro virou outro filme: Recital de poesia nos Quatro Cantos de Olinda no dia de São Jorge (2012).

A marginalidade de estar fora de sistemas editoriais, hoje faz pouco ou nenhum sentido devido à internet. No entanto, a cultura do fanzine ainda é forte, pois são poetas cuja divulgação é sobretudo feita por si mesmos, em recitais e na venda de seus livretos em bares. Caso interessante é o filme Poemainflamado (2013), de Mariano Pikman, sobre o poeta França. Desbravador de becos de Recife e Olinda, o poeta, com sua veia política, entoava um frevo (na verdade, um clarim, tão comum ao Carnaval local) depois dos versos em off sobre um passeio da câmera por favelas da cidade:

Olinda está muito mal
Em decúbito ventral
Desde o primeiro Carnaval
Tendo sido incendiada
Por legiões de urbanos
Tal qual era colonial
E a dos greco-romanos
(França, 2011, p. 137).

Ora, que outro registro além do cinema seria tão capaz de expressar a ironia desse poema de canto, ritmo, corpo, sangue e história. Esse cinema se difere, portanto, de odes a urbes que marcaram a história do cinema, como O Homem com a Câmera (1929) de Dziga Vertov e a Berlim: Sinfonia de uma metrópole (1927) de Walter Ruttmann. No cinema pernambucano atual não calha mais a visão de cidade sinônimo do progresso. Há mais um canto desesperançado das consequências sociais e urbanísticas de sinais de dito progresso, até então tão pouco coletivo; temos aqui um claro olhar crítico e ácido, como no poema de França, do colonialismo que ainda parece reinar sobre a construção e planejamento da cidade. E os sons e movimentos do cinema caem como luvas para interpretar tal espessura sem cair em simplificações.

A cidade não é uma máquina perfeita futurista, nem está condenada à fuga dos românticos; a cidade é um lugar a ser ocupado, físico e afetivamente. Nisso a poesia marginal foi pioneira, na reocupação da cidade como fundamento de sua estética (escrita, gestual). A poesia urbana é política, além de suas palavras, é política em seu corpo, em seu corpus, abrindo a perspectiva de que a cidade atual carece de presença, de vivência, para não se tornar apenas vias de escoamento de bens de consumo e mão de obra, entre áreas de especulação imobiliária. A presença (vivência) na cidade é a primeira etapa da cidadania urbana, em busca da qualidade dos espaços, de zonas de convivência. O artista toma de assalto a cidade, para preencher o vazio e o frio da existência puramente funcional destinada à urbe. Uma poesia de presença, mas não presença parada, de presença no fluxo, movimento entre ruas, becos e esquinas da cidade (não seria essa a bandeira de movimentos de ocupação ao redor do mundo?). Seria também a gasolina do cinema pernambucano, voltando suas lentes para a cidade, na construção de um olhar crítico ao desenvolvimentismo de shopping centers e arranha-céus pouco preocupado com história, identidade, convívio.

Figura 5: #OcupeEstelita (28/04/2013, Recife), movimento contra projeto imobiliário que prevê a construção de treze torres na região central da cidade
Figura 5: #OcupeEstelita (28/04/2013, Recife), movimento contra projeto imobiliário que prevê a construção de treze torres na região central da cidade

Nesse universo, o cinema aparece como ferramenta ideal para expressar tal poética feita de palavra, voz, corpo e movimento na cidade. Sem dúvida, o maior legado da poesia marginal para novas expressões não é o fanzine, pois a internet supriu essa necessidade de livro, editoras e livrarias, mas a presença do contexto urbano na alma desse fazer poético. Tal contexto apresenta hoje um indiscutível teor político, de ocupação da cidade física e imaginária, não apenas realizado pelo cinema, mas pelas mais diversas artes que hoje sentem a necessidade de sair de espaços institucionais para ganharem as ruas, seja em intervenções urbanas, recitais, espetáculos de danças e teatro de rua. O cinema, com seu olho mecânico, registrador e parabólico, observador e instigador, talvez seja o parceiro ideal para captar tal movimento.


* Camilo Soares é mestre em Estética: cinema e audiovisual pela Paris 1 Panthéon-Sorbonne e professor de Cinematografia da UFPE.

Referências

ARGAN, Giulio Carlo. Histoaria da Arte como História da cidade. 5° ed., São Paulo: Martins Fontes, 2005.

BACHELARD, Gaston. La poétique de l’espace. Paris: Quadrige, 2007.

FRANÇA. Poeminflamado. Recife: Fundarpe, 2011.

JORDÃO, Valmir. Aos pariceiros dos anos 80 (um uivo recifense). Poemas diversos. Recife: Escalafobética, 2013.

LUNA, Erickson. Do moço e do bêbado. Recife: edição do autor, 2004.

LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

ROSÁRIO, André Telles do. O poeta Miró e sua literatura performática. Dissertação (Mestrado em Letras). Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2007.

______. Corpoeticidade: algumas relações entre corpo, poesia e cidade na literatura performática do poeta Miró. Disponível em: http://interpoetica.com/site/index.php?option=com_content&view=article&id=889&catid=0

SOARES, Camilo. Poesia mesa de bar e goles decadentes: descaminhos de três poetas marginais do Recife. Recife: Nectar, 2012.

Notas

[1] Ouso afirmar que o cinema sobre poesia marginal é um gênero pernambucano, pois o tema, como veremos, é bastante corrente, ao contrário de outras poéticas mais acadêmicas.

[2] Talvez apenas Carlos Pena Filho tenha lançado sementes para esse tipo de vivência com o Recife.

Tempo de leitura estimado: 19 minutos

Nomadismo Corpoético | Ivan Maia*

O fluxo de criações corpoéticas que experimentei nos últimos 24 anos se instaurou a partir do contato com práticas artísticas, políticas e terapêuticas vivenciadas desde o início de 1989, quando fui cursar uma disciplina básica do doutorado em Matemática no IMPA (Instituto de Matemática Pura e Aplicada) no Rio de Janeiro. Eu fazia mestrado em Matemática na UFPE em Recife, depois de ter deixado o curso de Engenharia Aeronáutica no ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica) e estudava geometria diferencial. Durante o curso, entrei num devir cinéfilo que me levou a assistir três filmes por dia no antigo Cineclube Estação Botafogo, no Rio de Janeiro. Uma aventura existencial iniciou seu processo uterino no cinema, o que me conduziu a uma viagem de carro de Recife a Porto Alegre, junto com a namorada, a partir da qual comecei a sentir um impulso existencial voltado para a experimentação de práticas artísticas, terapêuticas e políticas, que me levou a deixar o estudo de matemática e lançar-me em leituras e estudos filosóficos, literários, artísticos e de ciências humanas, assim como práticas experimentais corporais ligadas a esses saberes.

O primeiro contato com poetas recitadores foi com o movimento organizado por Juareiz Correya, poeta de pernambucano de Palmares, das caminhadas poéticas pelo centro de Recife, com recital itinerante nas paradas em alguns pontos cruciais do Recife. Em Olinda ocorria uma serenata itinerante nas sextas-feiras com música de violões, violinos, bandolins que costumava ter um poeta recitando no ponto final. Miró foi o primeiro poeta performático que vi apresentar-se interpretando poemas seus e de outros poetas, numa performance que me marcou a sensibilidade artística quando eu só escrevia e publicava oportunamente, sem recitar ou interpretá-lo de modo performático. Ele surgiu por trás das pessoas aglomeradas no pátio do Centro de Artes e Comunicação da UFPE interpretando a letra da canção Família, do grupo de rock Titãs, com ar de deboche vestindo um blazer cinza e com grandes dread locks no cabelo rastafári. Foi aplaudido entusiasmadamente pelo público que ali reverenciava um ícone da irreverência contracultural pernambucana.

Em 1991, experimentei minha primeira performance poética. Depois de ter assistido aos poetas Bernardo Costa e Ivan Marinho, além de Miró, juntei-me a alguns amigos de uma comunidade de Somaterapia com quem convivi, e lemos poemas meus, em meio a movimentos sensuais, cobertos por um lençol e à luz de velas.

Em 1992, entrei no Curso Básico à Formação do Ator da Fundação Joaquim Nabuco, em Recife, com duração de um ano, ao final do qual participei da encenação de uma peça do dramaturgo Felipe Botelho chamada Janos Adler, premiada em concurso nacional de dramaturgia. A formação de ator me deu condição para elaborar ainda mais as performances poéticas e assim formei, em 1992, o grupo corpoema e passamos a realizar tais performances nos eventos do bar Antropófago, no Espaço de Cultura Libertária (E.C.L.).

No Espaço de Cultura Libertária, atuávamos também como garçons e na administração autogestionária do espaço, que tinha também a Livraria e Locadora de Livros Outras Palavras, a qual nos abastecia com uma abundância de livros de poesia. Ao mesmo tempo, alternando com a participação no Sopa Caraíba, evento semanal do bar Antropófago, começamos o movimento itinerante Poesia na Praça, de recitais poéticos nas praças de Recife, Olinda e Jaboatão, nas tardes de domingo.

Figuras 1 e 2: Os poetas Miró (à esquerda) e França
Figuras 1 e 2: Os poetas Miró (à esquerda) e França

O corpoema, com formação variável, contava quase sempre com a participação minha, da atriz Cláudia Harmes, do poeta e músico Carlos Cardoso e dos poetas Miró, Valmir Jordão, Lara, entre outros poetas, atores e músicos que eventualmente se juntavam ao grupo. Foram dois anos intensos, de preparação semanal de performances, apresentadas no Antropófago, e alegres festas da poesia nas praças. Aos domingos, costumávamos fazer grandes almoços coletivos, cada um trazendo um prato de casa que juntávamos no E.C.L. Após o almoço, pintávamos os rostos, preparávamos as roupas mais estranhas, obtidas colocando as peças fora do lugar convencional, e íamos para a praça escolhida e anunciada no domingo anterior, onde nos espalhávamos para convidar o público para aproximar-se do local. Nele, nos reuníamos novamente de mãos dadas gritando três vezes: “Poesia na praça!”. Aconteceu de tudo com todo tipo de gente que se juntava ao animado grupo mambembe que ocupava poeticamente as praças nesses anos 92-93. O processo de singularização subjetiva desencadeado com essas experiências influenciou significativamente a geração de poetas que, posteriormente, ganhou maior visibilidade na cena literária pernambucana com a publicação da coletânea Marginal Recife em cinco volumes, que reuniu poetas que há mais tempo faziam movimentos poéticos em Recife e Olinda, como Jorge Lopes e Erickson Luna, aos quais foram agregados alguns novos como Eunápio Mário e Du Nascimento.

Alguns chegaram a fazer performances em outros estados, como em São Paulo, onde nos apresentamos em 1992 durante a realização do encontro Outros 500, que fez um contraponto libertário às comemorações dos 500 anos da invasão de nosso continente pelos europeus. Em 1993, participamos do I Encontro Anarco-Cultural de João Pessoa, no qual fizemos performances poéticas que foram recebidas com grande entusiasmo pelo público de anarco-punks, anarco-sindicalistas, anarco-pacifistas, anarco-ecologistas das cidades de Natal, Campina Grande e Recife que se juntou aos paraibanos da capital no espaço cultural Coletivo Arte e Luta, no centro da cidade. Além das performances em outros locais, como a orla de Tambaú e dentro de ônibus urbano.

Outro momento marcante, ainda nesse ano, foi a apresentação feita com crianças e adolescentes ligados ao grupo Ruas e Praças, que realizava trabalho social com crianças em situação de risco. Os jovens, que já não estavam mais vivendo nas ruas do Recife, participaram de uma oficina de teatro que oferecemos durante um mês no E.C.L. E ao final nos apresentamos no centro do Recife, encerrando a Passeata contra a Fome e a Miséria, liderada por Betinho, e na Assembleia Legislativa de Pernambuco, para os deputados estaduais e os movimentos sociais, que ocuparam as arquibancadas durante as comemorações do 1º de Maio. Foi impressionante como os meninos se expressaram com altivez no plenário da Assembleia diante dos parlamentares, interpretando uma colagem de poemas de grandes autores, como Drummond, e textos elaborados na oficina pelos próprios participantes, alguns dos quais membros do Daruê Malungo, grupo de percussão que, junto com Chico Science e Nação Zumbi (CSNZ), agitou a cena cultural pernambucana. O Daruê Malungo apresentou-se no E.C.L. poucos dias antes de participarmos, interpretando nossos poemas, de um grande show com várias bandas, entre as quais Mundo Livre S.A. e Chico Science e Nação Zumbi.

Figura 3: <em>Performance</em> do poeta Lara
Figura 3: Performance do poeta Lara
Figura 4: Ivan Maia declama poemas de seu livro <em>Azulírico</em> na Bienal do Livro de Salvador
Figura 4: Ivan Maia declama poemas de seu livro Azulírico na Bienal do Livro de Salvador

Em 1994, o Antropófago deixou de funcionar após dispersão do grupo que o mantinha de forma autogestiva, mas antes fizemos ainda várias apresentações em escolas públicas, universidades, manifestações sindicais e de movimentos sociais, bares e espaços culturais de vários tipos em Recife e Olinda, as quais passavam pelos efervescentes tempos de surgimento do movimento Mangue Beat, que, com sua musicalidade marcada pelos ritmos da terra e danças populares, bem como sua poética da marginalidade, deu novo acento à corpoeticidade da poesia marginal, independente, alternativa, pernambucana.

De 1995 a 1997 experimentei junto com minha companheira na época uma aventura existencial de criar novo modo de vida na mata atlântica da Paraíba, próximo à praia de Tambaba. Preparamos condições para o parto domiciliar de meu filho e nos dedicamos à agricultura ecológica produzindo um sistema agroflorestal. A poesia passou para as artes plásticas e produzimos camisas pintadas com versos de poemas ou poemas curtos, que procuravam dar à roupa uma corpoeticidade que agora era experimentada enquanto estética da existência. Em 1997, um plantador chegou à região onde vivíamos e começou um desmatamento que se consumou com grande incêndio, o qual devastou boa parte da mata próxima ao sítio onde morávamos. Isso transformou a tal ponto a região que desistimos do projeto existencial que iniciávamos. Assim, voltamos pra Recife e retomamos a participação nos movimentos poéticos, como os saraus organizados por Eduardo Monga (Du Nascimento), que ocorriam na UFRPE, a universidade rural, dos quais participei até o ano de 2000, quando me mudei pro Rio de Janeiro decidindo fazer mestrado em filosofia.

Esse período foi marcado ainda por uma viagem de seis meses, em 1998, por vários locais dos estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Goiás, Bahia e Distrito Federal, na qual experimentei me manter economicamente com a venda de publicações de poesia em folhetos, livretos e camisetas pintadas, que eram oferecidas em espaços culturais a partir de performances poéticas que buscavam sensibilizar o público para o valor dessa linguagem. Essa aventura existencial em busca de viver de poesia em belos lugares, como Visconde de Mauá, Sana, Lumiar, Seropédica, Paraty, Trindade, São Tomé das Letras, Ibitipoca, Caraívas, Arraial da Ajuda, Chapada Diamantina, Chapada dos Veadeiros, Chapada dos Guimarães, Pirenópolis, Alto Paraíso, foi uma das experiências mais desafiadoras e singularizantes de minha vida. Ela me levou a reformular a proposta da Oficina Corpoema, que ofereci em Recife em 1999 e que passei a ministrar a partir de 2000 no Rio de Janeiro, no IFCS/UFRJ, enquanto cursava a graduação em filosofia e em 2001, na UERJ/Maracanã, durante a especialização em filosofia contemporânea.

As práticas de poetização do corpo e incorporação da poesia experimentadas na Oficina Corpoema foram também enriquecidas com a prática da improvisação em dança que eu realizava desde 1989 e que, no Rio, passou a outro estágio quando comecei a praticar o Contato-improvisação no Studio Corposeguro, em Botafogo. A expressividade corporal dialógica dessa prática potencializou a expressão corpoética das performances coletivas que realizamos no CEP 20.000 no Teatro Sérgio Porto a partir de então. Tais espaços (Sergio Porto, Corposeguro, UFRJ e UERJ) foram extrapolados, e participamos de eventos na UNIRIO da Urca, no Castelinho do Flamengo, no Parque das Ruínas, no Santa Poesia na Rua Hermenegildo, nas festas do bloco Céu na Terra no Largo das Neves em Santa Tereza, na Fundição Progresso e no canteiro de obras de revitalização do Circo Voador na Lapa, no Teatro SESC em Copacabana, no Posto 9 de Ipanema, entre outros espaços culturais nos quais ocorriam recitais, jams sessions, festas, shows musicais e vários tipos de eventos.

Depois de concluir as componentes curriculares do mestrado em filosofia, passei três meses em Recife, quando comecei a escrita da dissertação de mestrado. Por pouco tempo, interrompi a escrita da dissertação ao assumir o cargo de professor de filosofia na Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, em Salvador, onde ensinei por cinco anos. A poesia, então, foi retomada como experiência em salas de aula. Oficinas de contato-improvisação e recitais poéticos para estudantes ou professores ocorreram em meio a estudos, pesquisas e experimentações pedagógicas, como a componente optativa do currículo do curso de Psicologia, em que fizemos um estudo em torno dos Édipos e anti-Édipos de Sófocles, de Freud e de Deleuze e Guattari, e preparamos uma dramatização da tragédia grega.

Figura 5: <em>Performance</em> de Ivan e Lilian
Figura 5: Performance de Ivan e Lilian
Figura 6: Ivan Maia em recital na Praia dos Livros, Salvador
Figura 6: Ivan Maia em recital na Praia dos Livros, Salvador

Instituída curricularmente no ambiente acadêmico, a experiência corpoética encontrava dificuldades para ser vivida com considerável liberdade. No ensino médio, ainda mais, pelo caráter disciplinador da educação privada da classe média. Ensinei em dois colégios em Salvador e cheguei a criar uma Sociedade dos Filósofos Vivos, onde líamos poemas filosóficos como provocação dos estudos. A retomada de uma experiência corpoética mais rica se deu só com o estágio na UFBA como professor substituto do Bacharelado Interdisciplinar em Artes da UFBA. Na componente curricular Ação Artística, experimentamos com treze estudantes a radicalização da proposta corpoética. E foi então realizado um ritual antropofágico de devoração dos corpoemas, em que foi erguido, junto à Biblioteca Central, uma instalação em forma de um grande “T”, como totem do tesão, o prazer da estética da existência corpoética que foi celebrado no ritual antropofágico de “transformação do tabu em totem”. A dança dos corpoemas, que interpretavam poemas corporais com os corpos pintados ao redor do fogo, foi a performance heterotópica resultante da componente curricular.

Figura 7: Aula de Ação Artística, curso de Artes da UFBA
Figura 7: Aula de Ação Artística, curso de Artes da UFBA
Figura 8: Ritual antropofágico, curso de Artes da UFBA
Figura 8: Ritual antropofágico, curso de Artes da UFBA

Essa experimentação corpoética foi vivida ao mesmo tempo nos encontros de contato-improvisação no Teatro XVIII no Pelourinho, e nos encontros poéticos na Praia dos Livros, no Porto da Barra, em Salvador, onde reunimos muitos poetas baianos e de outros lugares em eventos e festas multimidiáticas.

Figura 9: Ivan Maia na Fliporto 2011
Figura 9: Ivan Maia na Fliporto 2011

Ao concluir o doutorado com a tese intitulada Autopoiesis do corpoema: a vida como obra de arte, fiz concurso e comecei a ensinar numa universidade federal no Ceará, onde estou há um ano e meio como professor adjunto do Bacharelado em Humanidades e Coordenador de Arte e Cultura da UNILAB. A experimentação corpoética agora segue com o projeto de extensão chamado Curso de Teatro CORPOEMA. O devir poema do corpo acontece agora como teatralidade performática que os estudantes da universidade e de outras faculdades, junto com professores e estudantes de escolas da região do Maciço do Baturité, experimentam em aulas e apresentações.

Figura 10: Aula do curso de teatro Corpoema
Figura 10: Aula do curso de teatro Corpoema

A tese faz do corpoema um conceito básico para conceber uma estética da existência corpoética, na qual o corpo é pensado a partir da perspectiva de Friedrich Nietzsche e outros pensadores influenciados pelo filósofo alemão, principalmente Oswald de Andrade, Martin Heidegger, Michel Foucault, Gilles Deleuze, Felix Guatari e Dante Galeffi. Assim, as noções, respectivamente, de antropofagia (no sentido de Oswald), acontecimento apropriativo e poesia (segundo Heidegger), estética da existência (Foucault), singularização subjetiva (Deleuze e Guatari) e vita poemática (Galeffi), foram utilizadas para elaborar o conceito de corpoema em seis campos da experiência humana, visando projetar um modo de vida corpoético centrado na expressão poético-performática de natureza artística e estendendo sua estética para o âmbito da existência de modo mais abrangente.

Figura 11: <em>Performance</em> antropofágica na UECE
Figura 11: Performance antropofágica na UECE
Figura 12: <em>Performance</em> antropofágica na UECE
Figura 12: Performance antropofágica na UECE

O primeiro campo abordado na tese refere-se ao campo de experimentação do espaço e discute as possibilidades de constituição de espaços existenciais configurados esteticamente para ambientar a expressão artística. Algumas experiências artísticas como as que foram realizadas na ecovila Terrauna, município de Liberdade, ou no Vale do Gamarra, município de Baependi, ambos em Minas Gerais, onde uma comunidade de artistas cria coletivamente um evento e um modo de vida. No primeiro caso, de forma tão sustentável que permanece há dez anos, com residências artísticas mensais. No segundo caso, de forma mais improvisada, durante uma semana de julho de 1998, num espaço singularmente configurado para a expressão artística e convivência sustentável. As performances ganharam nesses lugares uma inaudita força telúrica de intensificação expressiva.

O segundo campo de experimentação abordado é o da experiência corporal dos impulsos criadores que visam fazer do corpo uma obra de arte, âmbito essencial da estética corpoética. Aqui se propõe a poesia mais completa de um corpoeta que entoa seus versos em meio à dança de um corpo pintado com as cores do desejo de fazer da vida uma obra de arte. Compartilhei com o poeta França, de Olinda, um tal momento performático corpoético ao som de tambores ao redor da fogueira na noite de lua cheia de julho de 1997, num evento com mais de 200 pessoas de vários lugares do Brasil que ficou como referência estética para outras experimentações e criações como a que ocorreu em 2003, entre outras no CEP 20.000 no Teatro Sérgio Porto no Rio de Janeiro, com o grupo de percussão OPA! de Santa Tereza.

O terceiro campo refere-se à experiência política das relações de poder nas quais a estética da existência corpoética se volta para as possibilidades de criar práticas de liberdade para uma experiência artística coletiva mais autônoma, particularmente quanto à expressão poética em sua performance corporal coletiva. Uma prática de liberdade coletiva mantida de forma autogestionária durante dois anos foi o evento Sopa Caraíba que se constituiu em espaço de experimentação performática para uma grande parte dos poetas pernambucanos que se situavam à margem dos meios literários mais prestigiados, compondo uma outra cena, alternativa, com produção independente, no Bar Antropófago, em Recife, que clandestinamente criou um conceito de “bar de boca em boca” para sua condição de existência. Ele se manteve por menos tempo e em condições mais modestas que as do consagrado CEP 20.000.

O quarto campo da experiência humana em que se configura a formulação da estética da existência corpoética é o da experimentação dos afetos, no qual é elaborada uma compreensão da experiência afetiva voltada para a valorização ética dos afetos, paixões, desejos, impulsos que aumentam a potência vital, individual e coletiva, do corpoema. As muitas parcerias constituídas para realização de performances poéticas surgem como experiências singulares de agenciamento de uma afetividade vitalizante. Particularmente os afetos compartilhados com parceiros de criação com os quais a amizade se desenvolve, especialmente aquelas pessoas com quem se desenvolve uma ligação mais íntima por afinidade ou amor, quando a intensidade do vínculo potencializa a vitalidade das criações. Isso se manifesta hoje nas performances poéticas que faço com minha amada atriz e dançarina, a médica Lílian Carvalho, com quem me apresentei em diversos espaços culturais desde a rua aos mais esteticamente constituídos como a Praia dos Livros, no Porto da Barra, em Salvador.

O quinto campo de experimentação existencial aborda a expressão, sobretudo por meio de linguagens poéticas, nas quais o corpo é poetizado e esteticamente mobilizado para servir à expressão corpoética. A linguagem corpoética é expressão de uma poesia visceral, sutil e dramática, comovente e intuitiva, libertária e vitalizante como a que se mostrou nascendo dos corpos nas experimentações do grupo Corpoema no Espaço de Cultura Libertária, da Oficina Corpoema na UFRJ e na UERJ, na apresentação final do curso na componente Ação Artística do Bacharelado Interdisciplinar em Artes da UFBA e no Curso de Teatro Corpoema, projeto de extensão universitária da UNILAB, em Redenção, Ceará. Nelas, o corpo sangra palavras vivas de intensa expressão poética.

O sexto campo de experimentação corpoética é o da compreensão da existência, no sentido de interpretar os acontecimentos e elaborar uma possibilidade harmônica de lidar com o vir-a-ser da vida, com uma espécie de sabedoria intuitiva que permita a cada corpoema tornar-se capaz de dar sentido a sua existência.

Uma tal cartografia da corpoeticidade, além de descrever os espaços diferenciados que se abriram para as performances mais singulares, pode ainda trazer à tona a heterogeneidade estética das mesmas na perspectiva de uma elaboração da cartografia de performances corpoéticas em meio a espaços-tempos constituídos como heterotopias.


 

* Ivan Maia de Mello é poeta, letrista, ator, dançarino, diretor de teatro e professor de Filosofia da UNILAB (Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira). Doutor em Filosofia da Educação pela UFBA com a tese Autopoiesis do corpoema: a vida como obra de arte e mestre em Filosofia pela UERJ. Publicou ensaios filosóficos e poemas, sendo Azulírico sua mais recente publicação (2009). Nascido em Recife, mora atualmente em Fortaleza.

 

Referências

DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Tradução de Peter Pal Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 1997.

FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

______. Microfísica do poder. 8ª ed. Tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1989.

GUATTARI, Felix. Caosmose. Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Claudia Leão. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.

MELLO, Ivan Maia de. A autocriação de Zaratustra, como caminho crítico de criação do pensamento de Nietzsche. 2005.Dissertação de Mestrado em Filosofia – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2005.

______. Autopoiesis do corpoema: a vida como obra de arte. Tese de Doutorado em Educação. Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2012.

NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. 12ª ed.Tradução de Mário da Silva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

Tempo de leitura estimado: 18 minutos

Rimas das ruas | Rôssi Alves Gonçalves*

Rua é o lugar de onde eu vim / e é de lá que eu conheço vários igual a mim….
(MC Allan Selva)

As ruas do Rio de Janeiro abrigam diariamente encontros que têm na rima a protagonista de um espetáculo que denomino de “feliz encontro de parnasianos e modernistas”. Esse encontro, a princípio conhecido como Rodas de Rima, atualmente denomina-se Rodas Culturais e faz parte do Circuito Carioca de Ritmo e Poesia. Rodas Culturais são reuniões de jovens artistas (cantores, MCs, grafiteiros, pichadores, fotógrafos, praticantes de malabares e outras artes) com o objetivo de ocupar o espaço público com arte e ativismo.

O Circuito Carioca de Ritmo e Poesia, conhecido como CCRP, é um projeto que consiste numa grande reunião de jovens, unidos pela ideia de ocupar lugares públicos e levar diretamente arte e cultura às pessoas de forma horizontal e interativa. Rodas Culturais acontecem semanalmente em diversos bairros do Rio de Janeiro, com a participação de poetas, músicos, grafiteiros, artistas plásticos, formando uma grande rede cultural, que interliga bairros distintos da cidade, como Bangu, São Cristóvão, Lapa, Vila Isabel, Botafogo, Méier, Jacarepaguá, Barra. O CCRP une pessoas de classes sociais e culturais diferentes, aproveitando-se de praças e ruas, proporcionando união e consumo sem a necessidade de gastos elevados (a entrada e participação são gratuitas e os produtos vendidos são comercializados quase ao valor de custo).

O mais interessante nesse movimento artístico público é o fazer poético que se realiza como um enorme sarau, em que o artista pode improvisar, declamar um texto originalmente composto para ser cantado, cantar, sozinho ou em dupla, com acompanhamento de instrumentos ou de beatbox. Mas há um investimento no movimento como uma teia cultural que receba, cada vez mais, contribuições de todas as expressões culturais, transformando essa poesia da rua em um movimento plural e que tem seus desdobramentos no rep e em outras sonoridades e formas artísticas. Ou seja, a rima foi o movimento iniciador. E através dela, formou-se um espaço cultural plural e fundamental para a cidade.

Figura 1: Roda Cultural de Botafogo
Figura 1: Roda Cultural de Botafogo

Este estudo considera a produção poética das Rodas Culturais e Batalhas de Rima como uma nova expressão poética – urbana e carioca. Para tal, ampara-se em dois críticos literários: Paul Zumthor e Antonio Candido.

Rodas Culturais e Batalhas de Rima – a realização de uma literatura urbana carioca

Rima é assim / um trabalho instável / além de ser convincente / também tem que ser impecável (Nissin).

Zumthor, em seus estudos de poesia oral, performance e recepção, reconhece como realização poética o produto dos transmissores orais que, mesmo sem o recurso da escrita – pressuposto, para alguns críticos, para que possa haver literatura–, devem ser inseridos na categoria de poetas. Verificando as distinções entre as duas formas literárias, a escrita e a oral – especificidades apontadas com esmero em seus estudos –, o teórico é assertivo na legitimação da poesia oral:

A noção de literariedade se aplica à poesia oral? O termo é indiferente: eu defendo a ideia de que existe um discurso marcado, socialmente reconhecível como tal, de modo imediato. A despeito de uma certa tendência atual, descarto o critério de qualidade, devido à sua grande imprecisão. É poesia, é Literatura, o que é público – leitores ou ouvintes – recebe como tal, percebendo uma intenção não exclusivamente pragmática: o poema, com efeito (ou de forma geral, o texto literário), é sentido como a maior manifestação particular, em um dado tempo e em dado lugar, de um amplo discurso constituindo globalmente um tropo dos discursos usuais proferidos no meio do grupo social (Zumthor, 2010, p. 39).

Ilustrando com maestria esse tipo de poesia está a produção das rimas das ruas do Rio de Janeiro, cuja forma mais comum de composição é o Freestyle em suas variações o improviso “desinteressado” e o apresentado nos duelos das Batalhas de Rima. Esse contexto de elaboração poética produz significativa diferença no resultado da rima (não se intenta aqui fazer um julgamento de valor!), sobretudo por ter finalidades distintas.

O freestyle “desinteressado” é a rima de improviso criada em situação de descontração, cujo objetivo é construir uma poesia da qual emane emoção e mensagem. Há normalmente uma narrativa, pois parte-se, comumente, de um tema “proposto” pelo primeiro a rimar (a exceção dá-se quando o rimador faz seu freestyle sozinho, podendo “passear” por vários temas) e, numa socialização e respeito à roda de rimadores, mantém-se o tema, desenvolvendo-o.

Essa rima é bastante devedora dos estímulos externos. Na ausência de um tema específico (ou mesmo sob a tutela desse), o rimador,  liberto para criar, pode construir sua poesia em torno de fatos do cotidiano, temas abstratos, situações em curso…

A rima criada por um MC em momento de batalha, embora se deseje emocionante e portadora de mensagem, nem sempre resulta nisso, dada a grande pressão que envolve o candidato, no momento da realização – curtíssimo tempo para elaboração da rima, tensão por participar de um duelo, expectativa da plateia, entre outros fatores. Esse tipo de rima, invariavelmente faz grande investimento no humor, mas sofre uma quebra; ou seja, é raro haver uma mensagem desenvolvida; os versos surgem soltos, muitas vezes descontextualizados. Entretanto, é essa rima que mais se eterniza, pelos vídeos, pelas repetições por parte do público, pelos posts nas redes sociais.

A poesia apresentada pelo movimento das Rodas Culturais e Batalhas de Rima tem a sua construção no momento de apresentação. Embora muitos MCs declarem haver sempre algumas estruturas – versos, palavras, combinações – pré-concebidas, ela é, no mais das vezes, criada, em sua totalidade, em tempo real, atravessada por estímulos externos, mas, sobretudo, produzida a partir do “sentimento”. Questionados sobre os recursos de composição, inúmeros MCs revelam que é fundamental ter “sentimento”. Apesar de conhecimento ser citado como um dos elementos essenciais, há uma tendência a atribuir à sensibilidade, ao dom, uma primazia sobre as demais técnicas propiciadoras da rima.

Os poetas de rua falam de sentimento como o poder da criação: a inspiração superior, uma espécie de contato com o divino, o que parece sugerir que criar rimas independe, de certa forma, da elaboração intelectual do MC. É comum o MC não recordar/compreender o que disse no improviso e buscar, depois, o entendimento daquela rima, o porquê do verso ter saído àquela forma – perfeita ou irregular. Buddy Poke, MC bastante conhecido e respeitado nas batalhas de rima nacionais, explica sua produção:

Produzir as rimas é algo muito diferente, algo muito mágico, muito fácil pra quem sabe e muito complicado pra quem está de fora. Dizem que pra saber rimar é preciso ler muitos livros, ler o dicionário, ter estudos em excesso etc. Eu digo que não é verdade: nunca gostei de ler livros e nunca fui muito chegado a dicionário. Rimas são mágicas, é necessário criatividade, principalmente em batalhas. A agilidade de pensar, a forma de expressar as rimas e o jeito de praticar não têm explicação; simplesmente fluem.
(Poke, 2013).

Tomando-se o que muitos autores da literatura escrita revelam sobre o processo de composição, causa certo estranhamento que um poeta saliente não haver esforço no “preparo” para a concepção, mas, sim, inspiração. Por essa inspiração constituir-se de elementos tão distintos da poesia escrita, por ela se inscrever dentro de outra lógica de produção, é comum que soe estranha aos teóricos e consumidores da poesia escrita e aos não iniciados na poesia oral. Essa é uma poética que requer, forçosamente, certa intimidade com o movimento das ruas e suficiente distância dos critérios de avaliação da Literatura escrita para melhor ser percebida.

Entretanto, dentro dessa “mágica”, desse algo “inexplicável”, existe a referência: as ruas constituem fundamental escola para essa produção. Acompanhar o movimento das rodas culturais e batalhas, ouvir rep e outros ritmos, atentar para o vocabulário dos MCs, retomar fragmentos memoráveis são alguns recursos que possibilitam rimas mais elaboradas, mais emocionantes. Ou seja, o “sentimento”, tão enaltecido por MCs, é formado por tradição, afetos, releituras. A produção da rima traz consigo outras rimas, outras temporalidades e espaços, construções fixadas na memória do MC. Não se pode falar de uma rima “pura”; a poesia das ruas é reinvenção.

E a recepção, pelo público, desse trabalho como poesia, pode ser mais bem compreendida considerando-se a performance como o meio agenciador da literariedade, já que o ato envolve locutor e ouvinte, numa combinação de dependência para a “realização” poética. Ou seja, há um poeta que só ganha existência, bem como sua arte, na medida em que o público o completa, porque assim o deseja. Atua o ouvinte como um coautor.

A componente fundamental da “recepção” é assim a ação do ouvinte, recriando, de acordo com seu próprio uso e suas próprias configurações interiores, o universo significante que lhe é transmitido (…) Poderíamos, sem paradoxo, distinguir assim, na pessoa do ouvinte, dois papéis: o de receptor e o de autor (Zumthor, 2010, p. 258).

Nas Rodas Culturais e Batalhas de Rima, a participação do público não se limita à assistência passiva. Através de gritos, como wow, braços levantados em homenagem ao artista, acompanhamento do canto – formando quase uma segunda voz –, sinais com os braços indicando que acabou a disputa, “fazendo barulho”, batendo palmas no ritmo da batida, entre outras intervenções que cedem material para as rimas (é comum o MC utilizar-se de elementos da vestimenta, de trejeitos da plateia), o público assina a sua participação na obra.

De outra forma, ainda que raro, algumas apresentações ocorrem praticamente sem sensibilizar o ouvinte que, mesmo incitado pelo locutor e/ou apresentador, pode silenciar. Ou seja, é preciso haver uma “pré-disposição” por parte da plateia para a realização da poesia. E essa “pré-disposição” deriva de uma certa simpatia pelo locutor, de um apreço por determinada rima, do percurso artístico do rimador, do território de origem do MC, da idade do poeta…

Assim, a vitória, no caso dos duelos de MCs, nem sempre cabe à melhor rima; ou seja, o conceito de melhor rima extrapola a perfeita coincidência de sons, a seleção vocabular, a organização sintática, a métrica etc. A melhor rima pode ser aquela que é proferida pelo mais querido, o recordista de vitórias, o “apadrinhado” por um MC “com moral” na cena, por outros recursos estilísticos que não constam no manual da poesia tradicional. Carregando essa “bagagem poética”, o MC pode se converter, repentinamente, em um dos mais representativos nomes do rep carioca.

Rua – o lugar da rima

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O teórico Paul Zumthor fala em uma “falsa reiterabilidade”, a respeito da poesia oral: “A obra transmitida na performance, desenrolada no espaço, escapa, de certa maneira, ao tempo. Enquanto oral, não é jamais reiterável: a função de nossa mídia é de suprir essa incapacidade” (Zumthor, 2010, p. 275). Mas nem mesmo a mais moderna forma de tecnologia é capaz de reproduzir, minimamente que seja, a grandeza da apresentação da poesia oral, seja ela nas Rodas Culturais ou nas Batalhas de Rima.

O verso emitido em parceria com a euforia do público, a expectativa do ouvinte, o momento de tensão (caso das batalhas) ou a descontração de um 4×4 (cada rimador apresenta quatro versos e, assim, a rima vai rodando) ganha uma dimensão e um valor que, deslocados daquele contexto da rua não são mensuráveis. Um verso transcrito ou mesmo “revivido” pelo vídeo não carrega a poeticidade/ironia/graça que possui no instante da sua recitação:

Cleo:
Essa é a realidade / Eu posso ser solteira / mas ter um relacionamento de verdade / sem falsidade, sem pilantragem, sem trairagem.
Henrique:
Sem trairagem, não pode traição / porque o encontro de duas almas não é à toa não / é amor pela flor / o amor de todo compositor.

Por mais “completa” que seja a “reconstrução” do momento, caso dos inúmeros vídeos das rimas, essa arte poética oral não se deixa capturar pelas lentes e papéis. A imagem, a letra reproduzida, em sua quase totalidade, não contêm o poder de encantamento do instante de verbalização da poesia, ali, na rua. Altera-se o suporte e a rima se “perde”.

Experimentei esta situação quando iniciei a transcrição dos versos para ilustrar minha pesquisa. Não compreendia o motivo de aquela rima selecionada – e essa seleção envolvia a qualidade, beleza, repercussão –, no papel, parecer-me tão comum, vulgar. Vivi um estranhamento às avessas. Não aquele de que nos fala o protetor do cânone, Bloom – “um tipo de originalidade que ou não pode ser assimilada ou nos assimila de tal modo que deixamos de vê-la como estranha” (Bloom, 1995, p. 12). Mas uma surpresa desagradável e não “misteriosa”.

Fria, desritmada, fácil, previsível – assim a rima se nos apresenta fora das ruas, das festas em que é criada. Não supõe o ouvinte (leitor) distante as aflições, agressões, o ar debochado, descolado, os risos, as delícias, os beats surpreendentes, enfim, os tantos sentimentos que rimador e plateia experimentam ao vivo e que irrompem na poesia. Solta no papel ou (menos) no vídeo, a rima parece pouco comover ou absorver o ouvinte. Talvez ela só exista na rua. Este, sim, o único palco onde a produção poética, por mais vulgar que seja, seduz o ouvinte: “Sabe por que tu não rima nada? / O cara trocou a batida e tu não trocou a porra da levada” (Allan Benevenutto). Wow!! É festa na plateia!!

Ainda que a transcrição esforce-se por trazer à luz toda a performance – e aí se incluem luz, espaço, música, olhares, trejeitos, sons externos, risos, pausas, malemolência –, tal tarefa é complexa e dificilmente cumprirá, minimamente que seja, os efeitos da sua realização no palco. E destituída da performance, a poesia fica, então, incompleta, desalinhada.

As inúmeras tentativas que as redes sociais criam, reproduzindo as rimas, a fim de eternizar os encontros ou mesmo formar públicos para estes eventos são, frequentemente, um meio de aquela plateia que lá esteve presente verbalizar os sentimentos vividos na ocasião da produção da rima.  Não são, comumente, a forma eficaz de formar públicos. Só a presença aos eventos e a coparticipação dividem, com o rimador, a grandeza do teor poético da rima.

Quando parnasianos e modernistas se encontram

As Rodas Culturais cariocas recebem, em média, um público de 300 pessoas, por noite; número que se eleva, consideravelmente, quando há nomes famosos da cena rep alternativa participando. Como não há palco – as apresentações de todas as atividades acontecem em meio ao público, sem nivelamento (no máximo, o uso do microfone concede ao portador uma aura diferenciada, artística) –, os lugares do poeta e do público se confundem, amalgamam-se, desconstruindo uma certa hierarquia entre o criador e o seu ouvinte.

Isso radicaliza a questão discutida por Zumthor sobre a coautoria do público, porque o mesmo, por ora, pode utilizar-se do mic, atravessar o “palco”, protagonizar a cena, tão ou mais intensamente que o próprio artista ali se apresentando. Ou pode, ainda, numa cena bastante comum na arte de rua, ocupar o palco, a convite do artista ou espontaneamente.

Figura 2: Público da Batalha do Real, Lapa
Figura 2: Público da Batalha do Real, Lapa

Como as Rodas Culturais ocorrem diariamente e possuem um público diversificado e fiel, e ainda incentivam uma enorme poética, através de freestyle, rodas de rima e batalhas de rima, este trabalho aponta esse movimento como uma criativa manifestação literária carioca urbana. Ou seja, uma tendência dentro das inúmeras possibilidades do fazer literário atuais que se destaca pela  irreverência e atenção aos movimentos da sociedade: “Indignação ao ver esta sociedade / que é zero de compaixão / que é zero de humildade / onde se vê pouco respeito / e tá cheio de covarde / que tem muito preconceito / pra tão pouca igualdade” ( MC CT).

Antonio Candido, em “A literatura na evolução de uma comunidade”, diz que: “Se não existe literatura paulista, gaúcha ou pernambucana, há sem dúvida uma literatura brasileira manifestando-se de modo diferente nos Estados.” (Candido, 2006, p.147). E as Rodas Culturais cariocas são, há alguns anos, o lugar especial de produção de uma literatura carioca e urbana.

Segundo Candido (2006), para haver literatura, é necessário uma congregação; grupo formal com afinidades; um estilo; um sistema de valores que delineie a produção; ressonância e herança. As Rodas Culturais cariocas, à exceção desse último aspecto – obviamente não se pode falar em herança no sentido proposto por Candido, dado o recente surgimento do circuito que, nesse formato de Roda Cultural, existe há cerca de três anos – apresentam os demais elementos formadores de uma expressão literária.

Essas rodas e batalhas realizam-se semanalmente e têm, em cada edição, a realização da poesia, em tempo real ou a promoção de uma rima elaborada anteriormente. E a rima comparece ligada à preocupação social – com a ocupação do espaço público de forma democrática, o acesso à arte por todos, a participação indistinta dos artistas, a exposição de livros, a solidariedade, a campanha de arrecadação de alimentos e roupas, entre tantos outros projetos defendidos pela arte de rua. E esse é um aspecto singular que não se pode desconsiderar na proposta deste movimento como expressão literária urbana carioca. Ocorre, portanto, um antes impensável encontro de parnasianos e modernistas, nas ruas do Rio de Janeiro.

Figura 3: Feira de livros da Roda Cultural do Engenho do Mato
Figura 3: Feira de livros da Roda Cultural do Engenho do Mato

A primeira década do século XXI foi especialmente prolífica para a Literatura de periferia, em São Paulo – hoje, com reconhecimento e lugar na história da Literatura Brasileira. Da cena literária de periferia no Rio, na mesma época, não se tem notícia, tendo despertado, ano passado, com a FLUPP – a Festa Literária das Periferias. No entanto, pode-se afirmar que esse silêncio não existia na literatura urbana carioca que, no início da década passada, já gritava seus versos pelas ruas. O registro, podemos encontrar no youtube, nas redes sociais, na memória afetiva dos jovens que ocupam as praças com atitude, sons, cores e rimas: “MC que é MC rima em qualquer tema / qualquer esquema, qualquer esquina vira cena de cinema / se destaca pelo que pensa, reconhece a recompensa / alcança as grandes mídias sem assessoria de imprensa” (Nissin).


* Rôssi Alves Gonçalves é professora do Programa de Pós-Graduação em Cultura e Territorialidades e do Curso de Produção Cultural – UFF. Pós-Doutoranda no PACC/UFRJ, onde desenvolve a pesquisa: “Poesia e ocupação do espaço público – um estudo do Circuito Carioca de Ritmo e Poesia”, com bolsa da FAPERJ.

Referências

BLOOM, Harold. O cânone ocidental. Trad. Marco Santarrita. Rio de Janeiro: Objetiva, 1995.

CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2006.

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ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a literatura medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

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______. Introdução à poesia oral. Trad. Jerusa Pires Ferreira; Maria Lucia Diniz Pochat; Maria Ines de Almeida. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

Tempo de leitura estimado: 20 minutos

Saraus de poesía: una geografía afectiva de la periferia de la ciudad de San Pablo | Lucía Tennina*

La Ciudad de San Pablo es la mayor ciudad de Brasil. Está dividida en 31 subprefecturas, una división territorial administrativa oficial que establece un “centro” que funciona como punto de referencia para los índices de riqueza, alfabetización, educación, violencia y nivel de vida, que suelen tener porcentajes más ideales que las regiones que están a una mayor distancia de ahí. La enormidad de la ciudad y las dificultades en relación con la movilidad marcan aún más la diferencia entre esa región y los barrios aledaños. De todos modos, la “periferia” de la Ciudad de San Pablo no se amedrenta ante las distancias inmensas geográficas y porcentuales ni ante la deficiencia de un transporte público que suma la limitación horaria de circulación a un diagrama monocéntrico, de pocos recorridas transversales entre barrios periféricos. La “periferia” de San Pablo viene conformando desde el año 2001 un nuevo mapa que toma como puntos de referencia espacios literarios llamados saraus de poesia, desde donde se articula un autodenominado Movimiento de Literatura Marginal que se manifiesta también con cursos, publicaciones, conferencias y mesas debate. Se trata, para definirlos en pocas palabras, de reuniones en bares de diferentes barrios de las regiones suburbanas de San Pablo donde se declaman o leen textos propios o ajenos frente a un micrófono durante dos horas. Hay más de veinte saraus y el número sigue creciendo año a año. Estos espacios poéticos conforman un circuito y una red de frecuentadores que, sin detenerse en las dificultades de movilidad ni las controversias climáticas de la “terra da garoa” (como se conoce dicha ciudad debido a las constantes lluvias), andan de barrio en barrio siguiendo el cronograma de saraus da periferia que completan la agenda de la semana casi todos los días[1]. Esta nueva cartografía no solamente está trazada por los frecuentadores, sino también por los libros que los saraus van lanzando en forma de compilaciones o de autores individuales. Tanto unos como otros circulan por la “periferia” de San Pablo teniendo como referencias los saraus. Con en esa nueva manipulación del espacio van resignificándose, además del mapa, los estigmas que hacen a los relatos del terror que alimentan la retórica de la seguridad de los medios de comunicación.

Una constante en el paisaje de los barrios alejados del centro son los bares, espacios intermedios entre el trabajo y la casa, donde suelen ocurrir los actos que se vuelven estadísticas asociadas a la “periferia”: el alcoholismo y los asesinatos. Lugares, también, en los que se ejerce la dominación desde las prácticas mínimas, o, en otras palabras, donde se articula la microfísica del poder al mantener la estructura machista (generalmente son hombres los que van a beber a los bares) y de resignación ante la rutina y las dificultades diarias, canalizadas con el alcohol. En los bares de la “periferia”, que pueden entenderse como un dispositivo de dominación, es donde se empezaron a organizar los saraus. “El único espacio público que el Estado nos dio fue el bar. De pronto los bares se llenaron también de mujeres, niños y poetas. Se imaginaron que íbamos a terminar bebiendo cachaça y transformamos los bares en centros culturales, así que se jodieron, ya no tienen forma de controlarnos, porque lo que no falta son bares en la periferia”, dice Sérgio Váz, el organizador del Sarau da Cooperifa, el más reconocido entre los saraus da periferia por ser el primero de dichos encuentros poéticos en bares que en el 2001 impuso el nombre de tradición letrada sarau[2] y muchas de las fórmulas que hoy en día todos repiten – como el silencio durante las declamaciones y los fuertes aplausos al final de cada una de ellas, independientemente del “gusto” personal[3].

En este mundo de la literatura periférica, la periferia no funciona como una porción de tierra, no es una extensión. Tampoco se entiende desde los criterios dominantes de una estructura de posiciones dada entre “centro” y “periferia”, que localiza a esta última como clase desplazada. La periferia desde ese universo está vinculada a un valor afectivo sostenido a partir de la idea de una experiencia compartida ligada por la solidaridad, el sacrificio y la fuerza. Y es en el sarau donde se ponen en práctica y se exhiben los elementos que hacen a tales valores. Así, ser de la periferia se vuelve también un capital de naturaleza simbólica que reúne saberes vinculados a dichas vivencias compartidas en ese espacio, es decir deja de ser definido desde la negatividad (la periferia no es, no tiene, no hay, etc.) y adquiere una definición positiva (la periferia es, tiene, hay, etc).

Texto y cuerpo

La mayor parte de los textos que se escuchan en los saraus tienen como temática la realidad de las periferias, que se incluye en una operación de estetización y gana otro significado, diferente al de los relatos oficiales y mediáticos.

Dice, por ejemplo, el poema “Periferia é um exército” de Zinho Trindade:

Então avante / Somos todos um / Sem general ou comandante / Já nascemos em trincheiras / E sempre prontos para a guerra / Somos quase todo o planeta terra // Uma grande família / Uma grande nação / Derrubando o opressor / Sem fé e religião / Na contramão do sistema / Que quer copiar / A lei agora é favela / E você e não vem imitar// Coloca na rádio / Filme, novela, televisão / A armadilha já tá pronta / Ninguém segura o povão // Já recebi instrução, coquetel tá na mão / Até colhi o grão, cumprindo a missão // Se não fosse por nóis / Ninguém comia / Se não fosse por nóis / Ceis não sorria // Aproveita enquanto é tempo / Que a periferia tá a milhão / Agora a burguesia quer ser gueto / E tá no padrão // Quer ser favela então vou te ensinar / Primeira coisa é ser por no seu lugar / Segundo passo é saber respeitar / Mas o terceiro eu não vou te contar / Pois de nada vai adiantar.
(Trindade, 2010, p. 70)

En este poema de Zinho Trindade se puede percibir la consideración del ser de la favela como un bien preciado, como un capital que no puede ser aprendido ni imitado por quien no forma parte de un nosotros marcado por una experiencia común. Es esa voz plural, articulada aquí desde un yo lírico que representa al conjunto, la única que se presenta como legítima para hablar sobre ese espacio. Frente a la espectacularización de la pobreza en los medios de comunicación, la voz autorizada del yo plural del poeta periférico.

Ahora bien, la resignificación de la noción de periferia que se escucha en los textos declamados en los saraus no solo se centra en el espacio “favela” en términos generales, sino que también considera los elementos y detalles que la componen. Uno de los focos centrales de resignificación son los borrachos y el espacio mismo del bar, alrededor de los cuales se construyen relatos que los estetizan, desligándolos del estigma de las estadísticas de muerte y alcoholismo. En este sentido, vale citar el poema “Sarau”, de Hûguera.

Entre sons de copos e goles de cervejas, O Poeta fecha a conta do poema arrastado, que trouxera preparado de casa:
…regozijai-vos amantes da lua,
regozijai-vos nessa hora que se completa
pois, amanhá, a morte é certa!
Parecendo muito ofendido com o que acabara de ouvir, O Bêbado, que já estava com um dos pés para fora do bar, torna a entrar e grita, para que todos ali o ouvissem:
– Pois, eu acho a morte erradísima!
E vai embora, deixando as palmas ecoando pelo bar.
(Hûguera)

Figura 1: Poema de Huguêra
Figura 1: Poema de Huguêra

El “Bêbado” no aparece aquí como un intruso que interrumpe el fluir del ritual poético, sino que está efectivamente incorporado en el espacio sarau y el elemento que lo hace formar parte es el aplauso de los que estaban escuchando. Las mayúsculas que el escritor eligió para nombrar tanto al poeta como al borracho evidencian la posición de “personajes” de este sarau que ambos sujetos alcanzan por igual, es decir, colocan en un mismo nivel de importancia a los dos sujetos. Ahora bien, las itálicas elegidas para las palabras del “Poeta” y la ausencia de ellas en las del “Bêbado” parecen colocarlos en un diferente horizonte de realidad: mientras que el primero de ellos presenta su palabra estilizada y cargada de un aura ficcional, el segundo parece imponerse de forma cruda y real, viene a funcionar como la figura del doble que impacta en el equilibrio del poeta. El “Bêbado” adquiere un valor en tanto contraste real de lo que dice el poeta, y en esa valoración, se vuelve un bien periférico relevante. El cuerpo enfermo del alcohólico en el espacio del sarau se vuelve un cuerpo culturalizado y por esto mismo pasa a formar parte del mismo. Como señala Michel Yakini, poeta y organizador del sarau “Elo da corrente”:

Como é que a gente pode fazer para integrar um cara que ele tá alcoolizado, mas ele tem necessidade de falar e ele quer ir lá no microfone porque ele percebeu que aquilo é um espaço que é ‘a fala’. E, é um cara que ele está truncado, o corpo dele está, ele passou dificuldade no trabalho. Ele tá mal com a família e ele tá indo no bar pra poder simplesmente descarregar aquilo. Quando ele vê um microfone, ele toma coragem. Então, é um exercício (…) porque a gente a gente faz arte, mas faz uma arte que tem intenções, intenções de re-encantar as pessoas. De re-encantar a nós mesmos. Intenção com que as pessoas se reconheçam como uma cultura valorosa. Reconheçam que tem cultura dentro do seu espaço porque as pessoas ainda trabalham, no senso comum, que não existe cultura aonde se tem um meio popular. Que a cultura é o lance acadêmico, intelectual? Não! Cultura é onde se tem vida, onde tem vida tem cultura, então a gente tem um meio cultural também e reconhece as diversidades dentro dela também. É periferia (…) Essa periferia toda aí. Tá ali trocando. E há uma coisa que a gente acredita que é: quanto mais isso aflorar, quanto mais a diversidade aflorar, vai ser mais tenso. Não vai ser mais ameno. Não vai ser mais harmônico. (…) O dinamismo, ele vai trazer conflitos. Isso é importante (Yakini, 2010).

La culturalización de los borrachos, de acuerdo con lo que se puede leer en las palabras de Yakini, no significa que se los vuelva un objeto cultual ni que se los se consideran como un personaje decorativo, sino que forman parte de la dinámica de los saraus a partir de la tensión que acarrea su presencia, es desde el conflicto que pasan a formar parte del mismo. De hecho, es así como se plantea su presencia en el poema de Hûguera anteriormente citado.

La voz y la letra

Como podemos notar a partir del poema “Sarau”, de Hûguera, la poesía marginal periférica que se escucha en los sarau adquiere una forma específica en el papel. En este sentido, cabe considerar que los saraus no son solamente espacios de declamación, sino que impactan también en la escritura. Existe de hecho una conciencia sobre la diferencia de estos dos discursos. En otras palabras, la declamación no funciona en los sarau da periferia como una forma de expresión instintiva y única, sino que es una opción que se piensa como un capital simbólico con valor propio, diferente del valor de la escritura, que también se practica.

No es solamente la voz el único modo de expresión en los espacios del sarau, sino que se establecen negociaciones y vínculos – medidos y controlados – con la tradición letrada[4]. De todos modos, el eje desde el cual se estructura la poesía periférica en los saraus son las declamaciones. “O sarau é o coração creativo do movimento”, dice Allan da Rosa, dando a entender que ahí se gestan y se mantienen vivos los textos. La declamación pasa a ser, así, una elección para la expresión estética y política que implica un trabajo específico y especializado, diferente al de la escritura.

Figura 2: Cartaz na porta do Bar do Binho e Biblioteca do Sarau
Figura 2: Cartaz na porta do Bar do Binho e Biblioteca do Sarau

La declamación se encuentra cargada de una altísima valoración y resulta ser una de las mejores armas para conseguir comenzar a vencer las dificultades y una de las principales armas es el acceso a la escritura a partir de las declamaciones y la participación en los saraus. El estereotipo del letrado que considera al estudio como la palanca privilegiada para conquistar el ascenso social ya no se encuentra en los libros sino en el establecimiento de otro tipo de valor con la palabra. Muchos de los frecuentadores de esos espacios da periferia pasaron, efectivamente,  de la declamación a la publicación de libros. A su vez, algunos de los saraus en los últimos tiempos comenzaron a funcionar también como grupos que organizan cursos y seminarios en las bibliotecas del barrio o en espacios improvisados para la ocasión. Y es común escuchar a muchos poetas de los saraus señalar a dichos espacios como su “academia”, el espacio que les permitió tener acceso a la lectura – a la cultura escrita – y muchas veces hasta los impulsó a continuar sus estudios. “A Cooperifa é minha Academia Brasileira de Letras”, dice Rodrigo Ciríaco, organizador hoy en día del Sarau dos Mesquiteiros y autor del libro lanzado en el 2007 bajo las Edições Toró[5], titulado Te pego lá fora. Este tipo de afirmaciones evidencian que los saraus no se proponen como espacios que quieren situarse fuera del proyecto moderno y proponer alternativas radicales, sino que pretenden proponen representaciones y prácticas menos jerárquicas y materialmente más justas y en este sentido es que se piensan en su conjunto como un Movimiento.

Movimiento social y literario

Figura 3: Poeta declamando no Sarau da Brasa (Bar do Carlita)
Figura 3: Poeta declamando no Sarau da Brasa (Bar do Carlita)

Varios son los saraus de la periferia y cada uno de ellos tiene sus propios nombres y se piensan y entienden como singularidades. Sin embargo, hay una acción en común, hay un proyecto. Los saraus funcionan como una de las prácticas más importantes del Movimiento de Literatura Marginal, en tanto, a partir de la frecuencia y de la estructura variadamente repetida, afianzan los lazos y el sentido de pertenencia. El Movimiento de Literatura Marginal se articula, así, como un “movimiento social” que al tiempo que afianza su identidad y define a su enemigo, apunta a cambios en relación con el modo de vida de una identidad desvalorizada socialmente.

Es importante señalar, por otro lado, que el campo de acción de estos espacios no se centra únicamente en preocupaciones sociales. El mundo en el que este grupo de escritores se autoagencia es el de la “literatura”, por lo que hay una intención de posicionamiento en dicho campo. El espacio literario también se propone como arena de disputa en relación con este Movimiento. Señala al respecto Vagner, uno de los organizadores del Sarau Poesia na Brasa:

“Não todos os escritores. Acho que depende do lugar de onde você está falando. Agora, assim, eu acho que ao mesmo tempo, assim, a gente vê a coisa toda como um movimento. Quando a gente fala de Sarau da Brasa, Elo da Corrente, Cooperifa, Binho, Sarau da Ademar e outros aí, a gente enxerga essa coisa como um movimento…que no fundo, no fundo, quase todos tem o mesmo discurso, assim,  de…no sentido de usar a palavra como instrumento de transformação. Então, eu enxergo essa coisa como um movimento social e um movimento literário no sentido que o estilo de escrever é muito parecido, também, né? Aí, o pessoal fala assim: “Porra! Mas literatura é tudo literatura!” mas eu falo: “Porra! Mas também teve várias correntes dentro da literatura brasileira!”. Então eu acho que a gente também é uma corrente dentro da literatura brasileira, que se permite falar gírias, variação linguística várias, né? Então eu acho que é um movimento sim… e aí, por exemplo assim, por exemplo, no contexto de Carolina Maria de Jesus… estava ela escrevendo, né? Não tinha um ‘grupão’ junto com ela, na mesma linha. E eu acho que, hoje em dia, a gente consegue ter um grupo que escreve, não igual, mas tem semelhanças na escrita, e, nesse sentido, acho que é um movimento tanto social e um movimento literário, também. Por que não?” (Vagner, 2010).

Figura 4: Poeta declamando no Sarau da Brasa
Figura 4: Poeta declamando no Sarau da Brasa

La afirmación de Vagner permite ampliar la noción de “movimiento”: no se trata solamente de un Movimiento Social, sino que se autodefine, asimismo, como un Movimiento Literario. Hay una intención de reconocer su lugar en la literatura brasileña a partir del trabajo con una lengua propia y una genealogía particular, que refuerza y legitima esa literatura en el tiempo. Ese “¿por que no?” que cierra la afirmación de Vagner, en el que resuena la canción “Alegria alegria” de Caetano Veloso, evidencia, la arbitrariedad de los límites del campo literario: ¿cuál es la frontera que establece qué es literatura y qué no?

De lo que se trata en el Movimiento Literario y el Movimiento Social, en definitiva, es de modificar el mapa, ese mapa de la periferia en tanto lugar apartado y el mapa del campo literario brasileño como cerrado a la trayectoria letrada. En palabras de Marcelino Freire (escritor ya consagrado con el premio Jabuti[6] y “aliado” al Movimiento): “El artista, el gran artista, el artista inquieto, ese que quiere modificar alguna cosa, interfiere en la geografía de las cosas” (Alves, 2010).


* Lucía Tennina é doutoranda em Letras, mestre em Antropologia Social e professora de Literatura Brasileira e Portuguesa na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires, Buenos Aires, Argentina. Pesquisadora Associada ao Programa Avançado em Cultura Contemporânea da UFRJ. E-mail: luciatennina@gmail.com

Referências

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TRINDADE, Zinho. Tarja Preta. São Paulo: Coletivo Maloqueirista, 2010.

VAGNER. En entrevista con Lucía Tennina, octubre, 2010.

YAKINI, Michel. En entrevista con Lucía Tennina, noviembre, 2010.

Notas

[1] Los lunes, por ejemplo, está intermitentemente el “Sarau do Binho” (en Campo Limpo, Zona Sur), los martes el “Sarau Suburbano Convicto” (en Bixiga, Centro), los miércoles el “Sarau da Cooperifa” (en Pirapoirinha, Zona Sur), los jueves el “Sarau Elo da Corrente” (en Pirituba, Zona Este), los sábados el  “Sarau Poesia na Brasa” (en Brasilândia, Zona Norte), los domingos el “Sarau do Ademar” (Ademar, Zona Sudeste) –esta enumeración peca de la falta de muchos nombres de saraus, pretende tan solo ejemplificar la existencia de saraus todos los días de la semana.

[2] Existían antes del 2001 encuentros vinculados a la literatura. “Noites da vela”, por ejemplo, era un encuentro para declamar poesías en el bar de Binho, donde hoy se realiza todos los lunes el Sarau do Binho, comandado por Binho Padial. Si bien la declamación era el centro, este tipo de encuentro aún no sostenía el orden ritualizado que a partir de Cooperifa se impuso, con un día y un horario fijos. Dichos encuentros previos tampoco se relacionaban al nombre “sarau”.

[3] Cfr. Tennina, 2013.

[4] Un ejemplo de la vinculación con la tradición letrada es la presencia de las bibliotecas en los saraus: todos los bares donde se realizan “saraus” hay una biblioteca de seis  a diez estantes llenos de libros.

[5] Edições Toró es una colectivo ideado por Allan da Rosa y Mateus Subverso, nacido en 2005 “en el patio trasero de una casilla del Municipio de Taboão da Serra”, según cuentan los mismos editores. La propuesta de la editorial es afirmar y publicar una literatura que se articula más allá de la palabra escrita, por lo que publican libros de poetas que suelen declamar en saraus da periferia de San Pablo o de escritores vinculados al RAP. Cada una de las publicaciones, a través de una caligrafía específica para cada libro, de dibujos y diseños, de tapas conceptuales, de uso de colores en algunos casos, pretende evocar el cuerpo, la voz, la boca, la mirada que hace a esa literatura. Hasta el momento Edições Toró lanzó veinte libros. La Editorial desde hace cuatro años abrió, asimismo, un espacio de arte-educación, que se ocupa de organizar cursos y seminarios vinculados a la cuestión afro-brasileña.

[6] Junto con el premio Machado de Assis, el premio Jabuti es uno de los prêmios literarios más importantes de Brasil.

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Rumo a 2022: apontamentos sobre alguma poesia, brasileira, contemporânea | Alexandre Faria*

Falação

Contra o artista serviçal escravo da vaidade (…) A arte que liberta não pode vir da mão que escraviza (Vaz, 2011, p. 51).

É à fala que nos referimos, por ela nos pautamos ao criar métodos de aproximação da poesia que vem falando, nos últimos 10 anos, das periferias urbanas brasileira (a preposição, aqui, é ambígua e demarca simultaneamente assunto e origem). Conceber poesia a partir da longa tradição ocidental e escrita e apor ao termo o gentílico brasileira são estratégias de pensamento que desconsideram que a sociedade desse país se organiza a partir de complexas raízes da escravidão, do racismo e do analfabetismo. Caetano Veloso, numa famosa canção alardeava: “deixem os portugais morrerem à míngua / minha pátria é minha língua / Fala Mangueira”. Mais à frente, na mesma canção (“Língua”, do disco Velô, de 1986), concluirá: “A língua é minha pátria e eu não tenho pátria, tenho mátria e quero frátria”.

Caetano Veloso fala de uma mesma frátria órfã (Khel, 2003), que vai se afirmando no canto-falado de manos e minas. Um desses manos, Dugueto Shabazz (ou Ridson Dugueto), diferentemente do “latim em pó” do baiano, falará de um “latim afrofavelizado” (Ferréz, 2005, p. 83). As afirmações de identidades culturais contemporâneas, especialmente as de minorias étnica, social e economicamente discriminadas, tensionam as afirmações de uma identidade nacional monolítica, ainda que pautada pela diversidade. Menos que a unidade macunaímica, o que a fala de Dugueto Shabazz demarca é a diferença. A vontade de ser diferente. É como se, glosando a canção de Veloso, o poeta da favela perguntasse como pode Mangueira falar, se o lema é tão pessoal, luso pessoano e nacionalista – minha pátria é minha língua? E concluísse: “mas minha língua não é essa, a do colonizador. Cansei de ser mulato sabido!”

Lembrar o mulato sabido, de Oswald de Andrade, é mais do que oportuno numa época em que as ações afirmativas e/ou reparadoras parecem propiciar a democratização do ensino superior. Evoé jovens cotistas! Mas cuidado com o mulato sabido. E é o próprio poeta modernista quem indica que essa sapiência mulata talvez fosse (falo como se ela já tivesse acabado) herança do próprio colonizador: “Mulatos são os próprios portugueses, desde logo atingidos no seu surto descobridor pelas vitaminas da mestiçagem (…) E só quando, levado pelo absolutismo, deu de ser paradoxalmente um povo racista, eliminando de seu corpo civil o judeu, perdia a substância hegemônica que o fazia liderar três continentes” (Andrade, 1991, p. 186). Esse fragmento está num discurso, feito em Piracicaba, em 1945, intitulado “A lição da Inconfidência”. Vale a pena conferir mais um pouco:

A lição do terror que ela [a Inconfidência] encerra, a lição do atraso de um século que estagnou a ascensão de nosso povo. Qualquer estouvamento idealista, qualquer sofreguidão sectária, qualquer provocação, por bem intencionada que seja, pode bulir com o sarcófago recente da ditadura e acordar seus gênios protetores. Não nos esqueçamos da vocação absolutista que persegue nosso destino. Ela pode, de novo, nos jogar nas catacumbas políticas, onde tantos mártires do nosso progresso social deixaram seus dias heróicos ou perderam suas vidas necessárias (Andrade, 1991, p. 190).

Desnecessário é dizer que era outra a ditadura a que Oswald se referia. Em se tratando de atestar traços do conservadorismo da sociedade, através do estudo da recente poesia brasileira, evitando os exemplos típicos da violência do Estado contra as classes subalternas, ou a referência ao sucesso de filmes como Tropa de elite ou Cidade de Deus, nada melhor que relembrar o episódio da demissão do poeta e professor (nova profissão que os subalternos vão assumindo face aos processos de democratização do ensino superior citados acima) de português Oswaldo Martins em função do conteúdo de seus poemas. Recorro a artigo de Luiz Costa Lima, publicado na Folha de São Paulo, quando do ocorrido:

Um professor de português que tem a má sorte de ser também um poeta e ensina(va) em um colégio secundário particular da zona sul, por ter publicado, no seu blog, um conjunto de poemas eróticos, é sumária e discretamente demitido.

A medida foi tomada pela instituição ante a reclamação de pais de alunos, que acharam que escrever poemas eróticos não é tarefa para um professor de seus filhos. Não chamo nem sequer a atenção para o fato de que tal colégio foi fundado com uma plataforma liberal, que, ao ir crescendo, etc. etc.

Pergunto-me, sim: que defesa tem um poeta que, para sobreviver, precisa dar aulas de português, caso sinta a necessidade de escrever poemas eróticos? Não adianta atentar para a cegueira desses pais ou para a covardia hipócrita de tal direção. A questão concreta é como pode alguém, no caso o poeta-professor, defender-se ante uma decisão arbitrária que interfere em sua sobrevivência material?

Não acentuo nem sequer a discrepância entre os princípios de uma sociedade que se diz liberal, recém-saída de uma ditadura, e uma medida assim absurda. Acentuo, sim, que o marginal ao noticiário midiático revela o aspecto autoritário que, como sombra perversa, permanece entranhado na sociedade brasileira (Lima, 2008).

Parece evidente que Oswald de Andrade e Luiz Costa Lima referem-se à mesma vocação da sociedade brasileira para o autoritarismo. Vocação de um Estado que se institui de cima para baixo, da elite para o povo, da escrita para a fala. A literatura das favelas, por mais que se faça circular em livros, difunde-se em saraus cada vez mais frequentes e frequentados nas periferias brasileiras, mantém também íntima relação com a oralidade do Rap. Nesse sentido, é uma forma de resistência e, ao mesmo tempo, de transformação. Resiste, afirmando seu lugar de diferença e transforma, reivindicando a urgente revisão dos valores e dos lugares pelos quais a literatura circula na cidade contemporânea. Num título de uma coletânea de contos, Ferréz (escritor também recentemente vitimado pela intolerância dos que estão ao lado da lei e do capital) lembra que Ninguém é inocente em São Paulo. Esse título, e o conteúdo dos contos do volume parecem afirmar que aquele famoso bestializado, objeto de estudo de José Murilo de Carvalho, tende à extinção.

Figura 1: O poeta e professor de português Oswaldo Martins (foto: Vanderlea Santiago)
Figura 1: O poeta e professor de português Oswaldo Martins (foto: Vanderlea Santiago)

As reflexões que desenvolveremos neste ensaio tentam articular as questões aqui alinhavadas e propor uma compreensão de certa poesia contemporânea produzida nas e sobre as favelas, construída a partir da e sobre a experiência de ter-se nascido e criado nas periferias urbanas do país, e que reflete fortemente a consciência que o termo neosenzala representa bem. Tentamos não cair na primeira armadilha que é discutir infrutiferamente a aplicabilidade do termo marginal a essa produção, embora reconheçamos que os próprios autores o defendam e desejem atuar a partir de uma noção de movimento, cuja validade ou pertinência ainda tem que ser investigada. A análise também não pretenderá aprofundar a compreensão de algum autor ou obra específicos, mas tentará instrumentalizar a abordagem visando à compreensão do objeto não apenas na dinâmica sociocultural, mas nos deslocamentos éticos e estéticos que os textos promovem no próprio sentido de Literatura. Para isso elegemos alguns poemas de Sérgio Vaz, publicados em seu livro Colecionador de pedras (2007). Em outras palavras, recusamos que a abordagem de qualquer corpus recortado desse local de enunciação seja compreendida com eufemismos como discurso, expressão, práticas etc. Ou seja, ou a academia acolhe essa produção como Literatura e Poesia ou continuará a catequese dos mulatos sabidos.

Para cumprir esse objetivo, desmembramos a reflexão em três movimentos, o primeiro, que pensa esse lugar de enunciação face à tradição modernista brasileira; o segundo que se propõe a pensar a poesia das periferias em função de distintas instâncias de recepção contemporâneas; finalmente, num terceiro momento, num poema intitulado “Antiode aos inocentes do Leblon”, pretendemos deslocar a reflexão para a ordem do sensível e provocar os limites do local de enunciação do próprio discurso acadêmico. Em função da primeira articulação, elegemos Oswald de Andrade, como marca dessa tradição. É nesse sentido que Sérgio Vaz, por exemplo, propõe uma antropofagia periférica, ou uma tropicália periférica, em oposição a um cânone mais estável como o dos poetas Bandeira, Drummond, Cabral ou Gullar. E em função da segunda articulação, selecionamos o episódio da demissão do poeta Oswaldo Martins. O mesmo poderia ser feito com o processo sofrido por Ferréz[1], ou com a análise de recente proibição por governos de estado e secretarias de educação de romances de Tezza, ou do próprio Ferréz. Mas preferimos ficar no campo da poesia. E este é motivo que nos levou ao terceiro e último movimento.

A Literatura da periferia e a tradição modernista brasileira – um deslocamento de vozes

Iniciemos de maneira doméstica, através da constatação de alguns impasses vividos na experiência do ensino em faculdades de Letras, relacionados à disparidade entre o repertório literário que o aluno traz nos primeiros períodos da faculdade e as referências teóricas a que é submetido, especialmente nas aulas de Teoria da Literatura. Nesse sentido, é inegável a interface entre esse objeto de pesquisa e o ensino de literatura e a formação de leitores. O que foi dito reflete o processo de democratização do ensino superior no Brasil que paulatinamente vem sendo realizado quer por fatalidade (para lembrar “O poeta come amendoim”, de Mário de Andrade), quer por ações efetivas dos movimentos de inclusão social e racial no Brasil, as quais se reverteram em respostas do poder público e das universidades, como a criação das cotas, ou os suspeitos PROUNI e REUNI. Recuperando um levantamento não estatístico dos anos 90 (Santos, 2001), verifica-se que o aluno que ingressa no curso de Letras é majoritariamente:

Mulher, entre 18 e 21 anos, moradora do subúrbio (ou Baixada Fluminense), pai pequeno comerciante ou profissional liberal e mãe “do lar”. Num universo de 76 pessoas (…) só uma coisa foi invariável: moradores da Zona Norte. Que hábitos de cultura tem esse aluno? Lê Paulo Coelho, vê vídeo filmes da moda, acompanha novela das oito, passeia em shoppings, assiste a shows de massa, pouco vai ao cinema, não vai ao teatro, não vai a exposições, não vai a concertos, não lê jornal, não freqüenta livrarias, não tem biblioteca em casa, não viaja ao exterior (Disneylândia não vale). Enfim, não tem “hábitos de cultura” (Santos, 2001, p. 53-54).

Essa percepção indica a necessidade de se compreender o imaginário social das periferias urbanas brasileiras, no âmbito da pesquisa acadêmica e através dos discursos literários e culturais, o que permitiria a revascularização de currículos que, a cada ano, acentuam a dissimetria entre o conhecimento produzido na pesquisa e o cotidiano do aluno. Tal aspecto não é novo nas faculdades de Letras (lembro-me bem da inacessibilidade do estruturalismo dos anos 80), mas para rearticular dois famosos títulos da crítica, pode-se dizer que do estruturalismo dos pobres ao cosmopolitismo do pobre muita coisa mudou.

O primeiro dos dois termos evidentemente refere-se ao raivoso artigo de José Guilherme Merquior, publicado originalmente no Jornal do Brasil de 27 de janeiro de 1974, que reagia à crítica de vocação estruturalista e semiológica, pois percebia naquilo séria ameaça a posições consolidadas e a concepções beletristas de literatura e do literário. A posição radical e até agressiva de Merquior já foi posta no seu devido lugar por Eneida Maria de Souza, num artigo em que relembra a primeira geração de jovens mestres informados pela desconstrução derridiana e demais teorias pós-estruturalistas:

Dentre os defensores da cátedra, merece destaque a participação de José Guilherme Merquior, pela sua inquietação frente às novas terminologias e às esquizofrenias teóricas dos jovens mestres. Repetia, nessa ocasião, o mesmo gesto que o fez atacar, em 1974, a moda estruturalista em artigo (…) cujo teor elitista já se anunciava desde o título (Souza, 2002, p. 12).

O fato é que, mais de 20 anos depois do IV Encontro Nacional de Professores de Literatura, evento mencionado no fragmento acima, o perfil do aluno de Letras, conforme traçado por Joel Rufino dos Santos, mudou bastante. Acresce que o verdadeiro programa de massificação do ensino superior (não aquele que Merquior temia) ainda estava por vir e veio nas mãos da iniciativa privada e ainda hoje tenta se impor através de projetos públicos como o PROUNI ou o REUNI (daí a suspeita mencionada acima). Era de se esperar, portanto, que esse contexto das faculdades de Letras constitua campo propício para o advento e a disseminação dos Estudos Culturais. Se compararmos a realidade nacional de um alunado, fundamentalmente formado pela comunicação de massa, com o que Maria Elisa Cevasco localiza no surgimento dos Estudos Culturais na Inglaterra dos anos 50, no ambiente da alfabetização de adultos, pode-se compreender melhor a situação:

Reação à cultura da minoria que, além de conservadora, trata-se de uma posição pouco realista, em um momento em que se luta para abrir acesso à educação, em escolas do Estado, e às artes, por meio do provimento de educação secundária para todos e da criação de instituições como o arts council, destinado a propagar as artes de forma mais democrática (Cevasco, 2003, p. 49).

Guardadas as proporções relativas a lugar e época, especialmente quanto ao fato de que os Estudos Culturais, nessa origem, mantinham íntima relação com a renovação do pensamento marxista pela Nova Esquerda, e hoje se vinculam mais aos movimentos multiculturais, não se pode perder de vista a semelhança entre as realidades sociais que obrigaram os estudiosos de literatura a expandirem seu olhar ao universo cultural mais amplo.

É nesse contexto que se chega ao segundo termo. “O cosmopolitismo do pobre” é um texto de Silviano Santiago (publicado originalmente no segundo número da revista Mergens/margenes, em 2002 e posteriormente no livro homônimo), especialmente atento à crítica cultural e às mudanças de paradigmas do próprio multiculturalismo em face da economia de mercado globalizada:

Ao perder a condição utópica de nação – imaginada apenas pela sua elite intelectual, política e empresarial, repitamos – o estado nacional passa a exigir uma reconfiguração cosmopolita, que contemple tanto os seus novos moradores quanto os seus velhos habitantes marginalizados pelo processo histórico (Santiago, 2004, p. 60).

A criação literária compreende-se no âmbito nacional (por enquanto, mas não devem estar longe as traduções), como uma experiência cosmopolita dos jovens atores sociais de nossas periferias urbanas. Em certo sentido, pode indicar a superação do impasse do intelectual brasileiro identificado criticamente por João Luiz Lafetá, a partir da leitura da poesia de Ferreira Gullar:

No “Poema sujo”, Gullar operou nos limites da consciência do artista (intelectual) brasileiro contemporâneo, preocupado com os problemas sociais do seu país. Esses limites foram delineados nos anos 1930 e 1940, até o fim da ditadura estado-novista, e muito trabalhados pelo Cabral dos anos 1950, pelos cepecistas dos anos 1960, pelo próprio Gullar desse e de outros poemas, por tantos escritores. Não foram rompidos, porém. Talvez porque, atravessada embora pela miséria social, a nossa “consciência possível” esbarre no círculo de ferro de nossa classe, e o “outro” – representado obliquamente, através de suas refrações no sujeito poético – não ganhe nas obras a autonomia e a força capazes de colocá-lo no centro do processo. Seu deslocamento marca a limitação da literatura política possível no nosso tempo (Lafetá, 2004, p. 239-240).[2]

A literatura das periferias representa uma tomada de posição ou uma assunção da voz por parte desse “outro” que se fazia representar pelo intelectual. Não se trata de uma passagem repentina. Noutro artigo importante sobre a questão, Silviano Santiago já anotava que Grande sertão: veredas

permite assinalar que o lugar ocupado no discurso anterior pelo narrador-intelectual, agora se encontra preenchido por alguém que obedece e desobedece ao mando do senhor, o jagunço Riobaldo. (…) Com isso, passa o intelectual citadino e dono da cultura ocidental, a ser apenas ouvinte e escrevente, habitando o espaço textual – não com o seu enorme e inflado eu – mas com o seu silêncio. O intelectual é o escrivão das “ideias instruídas”, que só pode pontuar o texto de Riobaldo, como diz a psicanálise e o próprio narrador: “Conforme foi. Eu conto; o senhor me ponha ponto” (Santiago, 1982, p. 34-35).

Talvez Riobaldo represente a inauguração do que se consolidará mais para o final dos anos 1960 e ao longo da década de 1970 do que se pode chamar performativo, em atuações como a de Plínio Marcos, ou Oiticica, ou mesmo na ficção de Rubem Fonseca. Porém, a literatura advinda das favelas brasileiras desloca-se ainda mais em relação a essa questão, pois, em geral, substitui o performativo pelo biográfico. O realismo não se apresenta como uma opção estética apenas, mas como procedimento documental que garante a legitimidade do discurso. Isso acaba por relativizar a própria condição marginal do discurso, pois sua condição garante nichos importantes do mercado editorial, bem como da pesquisa antropológica ou cultural.

A hipótese que pretendemos experimentar é a de que a poesia das favelas produz o deslocamento na subjetividade que compunha o discurso social na literatura brasileira. Longe de desenvolvê-la e afirmá-la como tese, pretendemos elencar pequena amostragem de fragmentos que poderiam corroborar a hipótese.

No poema “Descobrimento”, de Mário de Andrade, o poeta descobre-se “comovido” diante de um livro “palerma”, ao lembrar que lá no Norte:

Um homem pálido magro de cabelo escorrendo nos olhos,
Depois de fazer uma pele com a borracha do dia,
Faz pouco se deitou, está dormindo.
Esse homem é brasileiro que nem eu
(Andrade, 1993, p. 203).

A despeito da identidade que se produz, é nítido que o adjetivo “palerma” revela o desconforto do intelectual, do brasileiro que, pela cultura livresca, distancia-se do seu povo. O que está fora de cogitação para o poeta de “Descobrimento” é que esse brasileiro, que faz uma pele com a borracha do dia, pode ser também poeta e não apenas objeto ou tema da poesia:

A minha poesia,
apesar de pouca e rala,
cabe na tua boca
dentro da tua fala.

Apesar de leve e rouca,
chora em silêncio
mas nunca se cala.

E apesar da língua sem roupa,
não engole papel,
cospe bala!
(Vaz, 2007, p. 51).

A “língua sem roupa” contrapõe-se à pele endurecida do trabalhador, circula na fala e “não engole papel” de livros palermas. Revida, ataca, faz-se arma ao reconhecer a culpa e o desconforto dos que respondem pela tradição letrada – a roupa da língua. Ideologicamente, pode-se dizer que esse era um dos traços do projeto modernista, “a língua certa do povo”, no dizer de Bandeira. Mas e quando essa ideologia estética sofre também o deslocamento social e recoloca a origem do discurso? – eis uma das questões que a poesia das favelas põe e que deve ser enfrentada.

O mea culpa absoluto do poeta modernista estará presente, no entanto, em certas posições assumidas pelo eu-lírico drummondiano, reconhecidamente desconfortável frente à vida dos desfavorecidos. “Favelário nacional” é um dos títulos em que o tema melhor se evidencia. O poeta interpela a favela para reconhecer:

Tenho medo. Medo de ti, sem te conhecer,
medo só de te sentir, encravada
favela, erisipela, mal-do-monte
na coxa flava do Rio de Janeiro.

Medo: não de tua lâmina nem de teu revólver
Nem de tua manha nem de teu olhar.
Medo de que sintas como sou culpado
e culpados somos de pouca ou nenhuma irmandade.

Custa ser irmão,
custa abandonar nossos privilégios
e traçar a planta
da justa igualdade.

Somos desiguais
e queremos ser
sempre desiguais.
E queremos ser
bonzinhos benévolos
comedidamente
sociologicamente
mui bem comportados
(Andrade, 1984, p. 106).

Enquanto isso, na favela:

Quatro jovens
morreram na chacina
do fim da rua.
Conforme a notícia,
dois deles tinham passagem.
Os outros dois
foram assim mesmo…
clandestinamente
(Vaz, 2007, p. 62).

O horror, o horror de Drummond, que se revela como medo do estranho, não pode pressupor o mínimo de familiaridade. Se o faz, flagra-se no pecado da impostura e da hipocrisia, daí a culpa cristã da fraternidade perdida. O estranho e o medo, para quem está fora da favela, ganha uma notação cotidiana e familiar em Sérgio Vaz. A referência espacial – “no fim da rua” –tão familiar do poeta, distancia o leitor, que, imbuído de uma noção relativa de justiça, estranha a transformação semântica no sentido de “clandestinamente”. Clandestinos seriam os trabalhadores, os justos, os que não têm passagem pela polícia. Menos do que esconder traficantes, a favela serve para abrigar trabalhadores explorados.

Figura 2: O poeta Sérgio Vaz (foto: Marcelo Min)
Figura 2: O poeta Sérgio Vaz (foto: Marcelo Min)

Numa linha que poderia passar por um João Cabral de Melo Neto, reconhecendo que assume a fala em nome do outro, em um poema como “Graciliano Ramos” –“Falo somente por quem falo”[3] –, ou pelo conflito de um Gullar (já mencionado acima por Lafetá), em poemas como “O açúcar”, em que o sujeito expressa as contradições entre o branco açúcar que adoça sua manhã de Ipanema e o sofrimento, “em lugares distantes onde não há escola nem hospital, de homens que não sabem ler e morrem de fome aos 27 anos” e:

Plantaram e colheram a cana
Que viraria açúcar.
Em usinas escuras, homens de vida amarga
E dura
Produziram este açúcar
Branco e puro
Com que adoço meu café esta manhã
Em Ipanema
(Gullar, 2008, p. 152).

Evidencia-se que, o desconforto do intelectual brasileiro não é necessariamente com a favela e o crime, mas com sua impotência frente à exploração do trabalho, à alienação do homem. Por outro lado, ao assumir para si o discurso poético, uma das mais fortes máquinas de desalienação, o poeta da periferia o faz sem crise, herdeiro legal tanto dos modernistas de 1920 quanto dos marginais de 1970:

Não faço poesia,
jogo futebol de várzea
no papel
(Vaz, 2007, p. 116).

Mas o que demarca a apropriação daquela tradição poética é um lugar específico, daí a importância de interfaces conceituais entre espaço e cultura, um lugar que é metaforicamente demarcado como o campo de várzea, em oposição ao campo gramado. A mesma analogia há entre a poesia da fala e a que agora é colocada no papel. Se a ação modernista de incorporação da fala ao poema era de destituição da tradição beletrista, a ação da periferia é de instituição, de afirmação de um lugar até então restrito às elites ou aos mulatos sabidos.

Tal apropriação resulta, finalmente, num deslocamento que encontra uma boa síntese no prefácio-manifesto da coletânea Literatura marginal, em que Ferréz afirma “não somos o retrato, pelo contrário, mudamos o foco e tiramos nós mesmos a nossa foto” (Ferréz, 2005, p. 9). Essa tomada de posição recoloca a questão diante de outra discussão – um dos pontos-chave da compreensão da cultura contemporânea – a do intelectual. Em que medida jovens oriundos das periferias urbanas brasileiras, rappers, escritores marginais, estariam interferindo na atividade intelectual, que tradicionalmente representou-se pelo deslocamento do sujeito do discurso da elite para as bases e que agora ganha sentido inverso. No entanto, tal leitura deve atentar para o fato de que o intelectual não se caracteriza necessariamente e apenas pela tomada da palavra, conforme alerta Pierre Rosanvallon:

Que os intelectuais fossem os vigilantes, que alertassem, que interviessem no fórum era fundamental nas sociedades dos séculos XVIII e XIX, quando o fórum era muito pequeno, quando a liberdade de imprensa era reduzida. Voltaire tomar a palavra era decisivo. Quando o sufrágio universal não se realizava, que um escritor de renome falasse em nome dos esquecidos, dos sem voz era decisivo; (hoje) existem muitos grupos que tomam a palavra. Não há déficit de tomada de palavra em nossa sociedade. Existe, sim, déficit de compreensão. Ora, a vida intelectual concebe-se sempre como se ela fosse definida pela função de resistência, de tomada de palavra, de alerta. Mas ela se esquece de que seu verdadeiro trabalho é o trabalho da análise, de compreensão da realidade (Rosanvallon apud Novaes, 2006, p. 11).

Menos do que defender pontos de vista e ideologias, a literatura periférica assume uma postura bélica, quer ocupar espaços. Não quer só tomar a palavra, mas interferir no que Rosanvallon chama déficit de compreensão, que no caso da literatura brasileira, encontra-se nos restritos círculos em que a poesia é lida, feita e pensada, quando fecham-se os espaços para o que esse mesmo círculo define como poético.

Instâncias legitimadoras – demiurgos e amigos do rei

Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei.
(Manuel Bandeira)

Certa poesia que circula contemporaneamente no Brasil lembra uma menina chorona de que falava Mário Faustino: não encontra leitores e circula somente entre pares, outros poetas, muitos dos quais talvez pouco leiam poesia, o que causa a estranha impressão de que a poesia contemporânea brasileira encontra mais poetas que leitores. Se continuássemos a leitura com base na reflexão de Mário Faustino, diríamos que é uma poesia pouco perigosa:

O poeta contemporâneo tem que ser perigoso como Dante foi perigoso: uma força respeitável frente às demais forças sociais. Do contrário, no entontecedor movimento rumo-Norte a que assistimos em nossos dias, a poesia seria qualquer coisa de marginal, menina chorona ou risonha, abandonada à beira de uma autoestrada de tráfego intenso. O poema precisa funcionar como qualquer outra coisa. E para que possa fazê-lo, para que a poesia possa voltar a ser – como sem dúvida já o foi e potencialmente ainda o é – o mais eficaz, o mais perene e o mais exato dos meios de comunicação, é necessário, em suma, que o poema viva em função do tempo, do espaço e do homem – contra ou a favor, nunca indiferente (Faustino, 1977, p. 37-38).

Menos que professores, educadores, contadores de história, acredito que a Literatura e a Poesia sejam os principais formadores de leitores. Mas se a poesia é indiferente, como comover, deleitar, ensinar? Não há professor que dê jeito, com a poesia dos amigos do rei. A demanda de formação de leitores, por outro lado, não é apenas das escolas dos subúrbios, favelas, quebradas e bolsões de miséria do Brasil, mas ocorre também dentro das faculdades de Letras. A herança formal-estruturalista ainda faz vítimas. Há estudantes que visitam toda a crítica e as teorias literárias e passam longe dos textos. A esse respeito vale conferir a reflexão de Todorov sobre a literatura em perigo (Todorov, 2009).

Se uma esfera da recepção literária, genérica, não especializada, é capaz de levar, em pleno século XXI, a ficção e a poesia aos tribunais e às salas dos diretores de escola, de produzir equívocos vergonhosos como o caso de Oswaldo Martins e de Ferréz, isso é sinal de que a formação de leitores não vai bem há muitos anos. É sintoma de que as faculdades de Letras do país têm fracassado em uma de suas principais tarefas. Estamos e estaremos longe de erradicar o analfabetismo no Brasil, enquanto poemas como o que se segue forem lidos como propostas de nudismo em sala de aula.

lições oswaldianas
as professoras dariam nuas as de história
por sua vez alunas e alunos também nus
assimilariam o que a história nos roubou

a celebração do corpo e do espírito assim
recolocados permitiriam a nossos jovens
a experiência dos ferozes tupinambá
(Martins, 2008, p. 34).

Isso é mais que analfabetismo, pois conheço muito analfabeto que não é burro. O poema citado compõe uma série intitulada “Arte da deseducação”. Eis aí uma boa alternativa para uma educação que evidencia fracassos. Estaria nessa deseducação o saber quem somos, reconhecer nossas tradições, nossas indecisões, nossas ambiguidades. Aprender, de uma vez por todas, a transitar entre. A floresta e a escola. A favela e o asfalto. A 7Letras e a Toró.

Para nos lermos e nos entendermos nessa tradição, pode-se desejar também que a deseducação seja uma deseducação pela pedra. Não aquela do meio do caminho, nem a outra ulcerando a boca do sertanejo, no meio do feijão. Agora a de um colecionador, que ensina que:

As pedras não falam,
Mas quebram vidraças
(Vaz, 2007, p. 13-15).

Quem tem telhado de vidro que se proteja. Muito em breve, em 2022, se as forças ocultas permitirem, sem falar das efemérides, estará com quase 40 anos nossa experiência democrática.

Antiode para os inocentes do Leblon

Figura 3: A Penha da Gávea: fotomontagem de Alexandre Faria, sobre a poesia de Rogério Batalha
Figura 3: A Penha da Gávea: fotomontagem de Alexandre Faria, sobre a poesia de Rogério Batalha
Figura 4: A Penha da Gávea: fotomontagem de Alexandre Faria, sobre a poesia de Rogério Batalha
Figura 4: A Penha da Gávea: fotomontagem de Alexandre Faria, sobre a poesia de Rogério Batalha

“a vida que eu queria livraria o Leblon”
(Rogério Batalha)

eles nem imaginam na praia lotada:
o lugar ao sol que a sorte lhes reservou
acaba de ser limpo por um rabecão

ah! os definitivamente inocentes
– estão em casulos e em seu córtex
matrix injeta uma vida como ela é
roteirizada por maneco com trilha de tom e chico, marina e antonio
pois que vivam essa vidinha da província
frequentem suas livrarias
(que todas as travessas já se mudaram para avenidas)
discutam nos cafés a entrevista do caetano
leiam seus policiais impunes
chamem o fonseca de zé rubem
refestelem-se da feijoada light, do café descafeinado, da coca descocainada e da caipirinha de lima da pérsia com adoçante
(estévia, é claro)
como quem extirpa um câncer
chamem a polícia para calar o bêbado chato (alcoolista incômodo)
demitam por justa-causa a empregadinha atrevida (doméstica impertinente)
fujam do crime como quem planta pistas
distraiam seus medos como quem conta os corpos chacinados na “comunidade” do pedreiro
e busquem no google (escondido das crianças) os poemas “pornográficos” do professor demitido da escola parque

venerem seus malucos célebres

           gentileza
           gera
           gente
                      lesa

não percam o programa do lobão
recitem os gracejos do chacal
mas não confundam bon vivant com marginal
(e atenção – é pra outro lado que a Heloísa Buarque está olhando agora, não cheguem atrasados, hein!)

e continuem a cantar
com bethânia, martinho e com o gullar,
inocentes definitivos,
no navio negreiro que entra ao largo
tem mó galera socando o pilão do poema

(poema originalmente publicado na oficina de antiode do TextoTerritório – www.textoterritorio.pro.br/antiode)

Figura 5: <em>A Penha da Gávea</em>: fotomontagem de Alexandre Faria, sobre a poesia de Rogério Batalha
Figura 5: A Penha da Gávea: fotomontagem de Alexandre Faria, sobre a poesia de Rogério Batalha

* Alexandre Faria é professor de Literatura Brasileira na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e pesquisador do CNPq.

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Notas

[1] Processo por suposta apologia da violência, em função de um conto publicado na Folha de S. Paulo, de 08/10/2007, por ocasião de uma polêmica em torno de um assalto sofrido pelo apresentador Luciano Huck.

[2] Apesar de parecer limitada à obra de Gullar, esta leitura pode ser reafirmada em várias peças da poesia brasileira. Valeria a pena destacar duas: “Graciliano Ramos”, de Cabral, espécie de fórmula programática que encontra ecos tanto na obra do romancista homenageado pelo poema quanto na do próprio poeta; e “Favelário nacional”, de Drummond, poema em que se explicitam exemplarmente os limites da consciência do artista, de que fala Lafetá.

[3] Sobre a leitura desse poema no presente contexto, conferirem dissertação de mestrado de Carolina Barreto, que orientamos no PPG-Estudos Literários da UFJF.

Tempo de leitura estimado: 36 minutos

Luttes symboliques et praxis poétique dans le sarau APAfunk | Melenn Kerhoas*

Cet article, loin de dresser une analyse définitive du sarau APAfunk qui est une manifestation culturelle relativement “jeune”, propose quelques éléments de réflexion autour des luttes et ré-appropriations symboliques qui y ont lieu autour de concepts comme le corps, la ville, l’histoire et l’identité à travers une pratique poétique propre au sarau APAfunk: une praxis poétique au sens où la parole est indissociable de son inscription à un contexte sur lequel est projeté un désir collectif de transformation qui se poursuit à travers la pratique.

Vida longa não somente ao sarau APAfunk
mas a todo sarau periférico, todo sarau divergente,
todo sarau que é de se posicionar,
que de certa forma nos inspiram
(Mano Teko, sarau APAfunk, 1er anniversaire, 12/12/2013)

Figure 1: Le graffeur KD01, “Favela, Sarau Apafunk, Résistance culturelle”
Figure 1: Le graffeur KD01, “Favela, Sarau Apafunk, Résistance culturelle”

A cultura é como o sol,
ela entra sem pedir licença
(MC Leonardo, entretien, 04/12/2013)

Trajectoire du Sarau APAfunk
Funk et diaspora[1]

Style de musique né dans les années 1980 dans les périphéries de Rio de Janeiro (Apafunk, 2010, p. 4), le Funk dérive du miami bass[2] et est ré-approprié par les cultures noires de Rio de Janeiro (Lopes & Facina, 2010, p. 2) avant d’avoir le succès qu’il a connu (Vianna, 1990, p. 244) et gagné la classe moyenne de Rio de Janeiro[3]. La géographie des périphéries de Rio et du Brésil a été modifiée de manière substantielle avec une migration interne de près de 43 millions de personnes entre 1960 et 1980 d’origine rurale, en particulier du nord-est (Brito, 2006, p. 223). Une véritable diaspora (Ab’Sáber, 1999, p. 44) qui a une importance fondamentale dans la construction des métropoles, des périphéries et, dès lors, dans la naissance de la culture funk qui, à son tour, a un rôle déterminant dans la formation de la culture populaire carioca (Vianna, 1990, p. 244)[4]. Le funk serait fruit d’une double-diaspora: une diaspora forcée, base du processus d’esclavage et de colonisation du Brésil, et économique des personnes du nord-est dans la deuxième moitié du XXème siècle:

A favela se fez com cultura nordestina e com cultura africana.
Por isso é que o moleque do Funk canta em cima de tambor
dançando como na cultura nordestina com melodia
de samba e diz que é Funk.
Porque o Funk é a mistura de tudo isso.
(MC Leonardo, entretien, 04/12/2013)

Criminalisation et naissance de l’association APAfunk

Figure 2: Mano Teko, funk-poète et coordinateur du Sarau APAfunk
Figure 2: Mano Teko, funk-poète et coordinateur du Sarau APAfunk

Alexandre Ferreira Barcellos, “MC Mano Teko”, actuel président de l’association, dit que “le funk souffre”[5]. C’est dans un contexte de contrôle militaire, social et culturel accru de la périphérie avec l’implantation des Unités de Polices Pacificatrices (UPPs) en décembre 2008, actuellement installées dans 36 favelas[6] et présentées comme une évolution sociale à travers la  récupération  du territoire mais portant un coup de grâce à la réalisation des baile funk à travers la résolution 013[7], qu’est créée l’Association des Professionnels et Amis du Funk (Apafunk), en décembre 2008. Elle s’inscrit dans la perspective de défendre les droits des artistes, de lutter contre les préjugés ainsi que pour la culture funk[8] contre un processus de criminalisation qui a lieu depuis les années 1990 (Lopes, 2010, p. 36-37) et qui, à travers une résolution inconstitutionnelle, continue de rendre presque impossible l’organisation des baile funk (Batista, 2013, p. 91). Elle a obtenu, entre autres, la reconnaissance du mouvement funk comme culture de Rio de Janeiro à travers la loi 5543/2009[9]. APAfunk rassemble des MCs s’identifiant au Funk de raiz, groupe particulier dans le milieu du funk performant des raps engagés (p. 86-87), divergeant de la tendance esthétique imposée par le marché du funk à travers deux grands producteurs, Furacão 2000 et Big Mix. Elle a fêté en décembre 2013 ses 5 ans d’existence ainsi que la première année du sarau APAfunk.

Figure 3: (de droite à gauche) Andrew César: organisation, production et poète du Sarau APAfunk; MCs Junior: funk-poète, Association Apafunk, Kauan Dolin (DJ) & MC Leonardo: funk-poète, Association Apafunk
Figure 3: (de droite à gauche) Andrew César: organisation, production et poète du Sarau APAfunk; MCs Junior: funk-poète, Association Apafunk, Kauan Dolin (DJ) & MC Leonardo: funk-poète, Association Apafunk

Sarau APAfunk

Figure 4: Diego Conceição, poète et DJ du Sarau APAfunk
Figure 4: Diego Conceição, poète et DJ du Sarau APAfunk

Coordonné par Mano Teko, ancien membre de la dupla MCs Teco e Buzunga qui a commencé sa trajectoire artistique en 1994[10], ainsi que trois autres personnes, entre lesquelles Diego Conceição, du Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM) et disc-jockey de la manifestation, le sarau est organisé dans la rue Alcindo Guanabara, devant l’Occupation Manoel Congo, numéro 20, tous les deuxièmes jeudi du mois. C’est une oeuvre collective puisqu’elle dépasse le cadre d’une mise en oeuvre qui serait restreinte aux organisateurs officiels. “Espace de positionnement à travers la poésie”, il est pensé, par son coordinateur, comme un format, un “espace supplémentaire de lutte”[11] dans l’action d’APAfunk. Espace de la praxis poétique, il se caractérise par l’occupation de l’espace urbain, ce qui a une importance fondamentale dans l’esthétique de cette manifestation. Il se présente comme inspiré du Sarau Bem Black, sarau “divergent”, du poète Nelson Maca organisé depuis 2009 à Salvador de Bahia, dans lequel la thématique centrale est la question raciale[12]. Le projet du sarau est né suite à une rencontre, au festival Poesia Favela en octobre 2010 à l’UERJ: Nelson Maca[13] par son traitement de la négritude et sa dimension performatique a retenu l’attention des MCs Pingo do Rap et Mano Teko de l’Association APAfunk.

Figure 5: (de droite à gauche) Nelson Maca, poète et coordinateur du Sarau Bem Black; Mano Teko, funk-poète et coordinateur du Sarau APAfunk
Figure 5: (de droite à gauche) Nelson Maca, poète et coordinateur du Sarau Bem Black; Mano Teko, funk-poète et coordinateur du Sarau APAfunk

Ce poète s’identifie à la littérature noire de Cuti, Semog, Conceição Evaristo et à la ligne ethnique du Sarau Elo da Corrente de São Paulo[14] qui est la “production, le développement et la diffusion de la culture de la périphérie, du nord-est, et noire”[15]. Il est intéressant d’observer aussi la construction rhizomatique des saraus, au sens où la Cooperifa a inspiré le Sarau Bem Black, inspirant la création du sarau APAfunk qui à son tour a stimulé, entre autres, la création du Sarau V à Nova Iguaçu[16].

La collaboration avec le MNLM est fondamentale dans l’organisation du Sarau APAfunk puisque l’Occupation Manoel Congo est l’entité qui héberge la structure nécessaire (microphone, enceintes, ordinateur) à la réalisation physique de l’événement et facilite son organisation dans la rue car se réalisant en face. La croisée des chemins entre APAfunk et le MNLM, né dans les années 1990, à travers l’Occupation Manoel Congo existante depuis 2007 (Silva, 2010, p. 149), ainsi que la proximité politique de certains participants avec le PSOL[17], rend transversales et multiples les luttes politiques et thèmes des performances. Ainsi sont abordés des thèmes comme la race, la réforme urbaine, le genre, les expulsions (remoções), la criminalisation du funk et des mouvements sociaux ou encore le contrôle policier de la périphérie. De plus, l’esthétique de la manifestation est hybride au sens où les MCs performent des funk à cappella sur le modèle de la roda de Funk, innovation esthétique et pratique collective du funk dénuée d’auteur individuel, qui est le format de l’action de l’APAfunk permettant la création d’un espace de dialogue et débat dans les lieux où ils sont intervenus[18]; ceci s’alliant à la performance de hip-hop, chant, samba et à des performances poétiques plus “traditionnelles”.

Corporalité
Une performance poétique collective

Performance collective, ce sarau est une rencontre des voix et des subjectivités s’exprimant à travers le corps comme immanence du monde, manière de l’habiter[19] (Levinas, 2000, p. 146), rapport premier au monde (Ricoeur, 1996, p. 178), transformant dès lors le lieu en l’espace au sens où l’espace est un lieu pratiqué (Certeau, 1990, p. 173), c’est à dire sémiotisé à travers la pratique poétique (Féral apud Zumthor, 2000, p. 41). C’est le carrefour (encruzilhada) dans laquelle se rencontrent différentes manières de vivre l’espace, de représenter symboliquement à travers la poésie, de respirer le monde. C’est le troisième lieu de la culture noire au sens de Rosa en tant qu’un “entre-lieu” dans lequel il y a à la fois jeu et lutte: “en luttant contre un lieu et en créant un lieu propre, en jouant depuis ce lieu avec lequel on lutte et où l’on lutte”[20] (Rosa, 2013, p. 33-35). Jeux de la voix poétique et des corps, il se métamorphose en espace par la transformation du texte en oeuvre en tant que matérialisation poético-performatique du texte (Zumthor, 2005, p. 142), et où se réalise l’oeuvre poétique au sens où elle est “fruit de la conjonction d’une donnée textuelle et d’une action socio-corporelle, l’une et l’autre formalisées par rapport à une esthétique”[21] (p. 144-145). Le corps permet alors la cohésion de l’oeuvre, la composition du sens modifiant, par la même occasion, le statut sémiotique du texte (p. 148).

Figure 6: Mano Teko, funk-poète et coordinateur du Sarau APAfunk
Figure 6: Mano Teko, funk-poète et coordinateur du Sarau APAfunk

Téléscopage des matérialisations des subjectivités à travers leur propre corporéité, c’est l’espace d’écriture d’une histoire collective des corps-poèmes à travers l’interaction et l’échange. Le lieu prend vie, l’espace s’organise à travers un cercle (roda) qui se forme, s’ouvre, se resserre au fil des différentes performances. Cette configuration spatiale s’inscrit dans les modalités d’organisation de l’art afro-brésilien en tant que matérialisation, dans l’organisation sociale, d’une “manière d’interpréter le monde” (cosmovisão) africaine[22] qui se retrouve dans la samba, le jongo, le funk et le maracatu. Le sarau APAfunk est l’espace de la poésie organique (Zumthor, 2000, p. 43) parce que dite, partagée et interagi de plusieurs manières par le public en tant que co-auteur  (Alves, 2013, p. 92) (Zumthor, 2000, p. 30, p. 47): applaudissements, reprises, exclamations, rires, frissons, larmes. La poésie est ainsi partagée par un ensemble de corps et se vit à travers le corps comme une instance sensible de médiation entre le soi et l’inscription physique à un contexte.

Luttes-image013

Un des recours esthétiques propres au sarau APAfunk, différent de la majorité des saraus de littérature-marginale, et lui attribuant en partie sa configuration et caractéristiques propres, est la rue[23]. Il est important d’avoir à l’esprit que l’espace métaphorique opéré par le sarau a lieu dans une localisation précise: le centre-ville[24]. Espace transitif par excellence où s’entrecroisent les trajectoires mais où il y a généralement peu d’occasions de rencontres permettant de le re-signifier à travers une création collective et corporelle de sens poétique, le sarau permet alors de transfigurer cet espace transitif en espace de création collective et de lutte pour le sens poétique, revendiquant un droit à la représentation et à la signification (Enne & Gomes, 2013, p. 45). C’est aussi l’espace de la transgression symbolique des frontières sociales au sens où, au moins pour le temps de la parole, l’horizontalité existante dans le sarau permet à la périphérie aussi bien qu’à la classe moyenne, d’avoir le droit de faire don corporellement de sa poétique (Zumthor, 2005, p. 148). Il est important de garder à l’esprit, cependant, que cette horizontalité et cette mixité sociale ne se traduisent pas nécessairement par une absence de débat ou une fusion homogène des groupes sociaux à l’intérieur de l’espace.

Funk et corporalités

Étant donné la mixité sociale de l’espace performatique, qu’un corps est aussi un texte social et que chaque subjectivité est singulière, il y a plusieurs manières de faire poésie, plusieurs possibilités d’agencement du style et de l’usage (Certeau, 1990, p. 151), le style étant “une structure linguistique qui manifeste sur le plan symbolique (…) la manière d’être au monde fondamentale d’un homme” (Greimas apud Certeau, p. 151) et l’usage, le “phénomène social  par lequel se manifeste un système de communication en fait” (p. 151).

Le funk est une des manières de faire centrale dans le sarau. Langage particulier, véhicule de communication[25], il a un savoir-faire, une poéticité et un pouvoir-rassembler, comme l’ont peu de cultures populaires aujourd’hui. Selon Mano Teko[26], il permet l’amorce du processus d’identification du travailleur commun qui ne se sent pas représenté et au nom duquel les discours syndicaux prétendent parler. Ce processus se réaliserait par une identification sociale et aussi par une reconnaissance du rythme qui fait rentrer le corps en mouvement[27]. Le sarau est alors une invitation inédite à se poétiser corporellement.

Figure 8: Alexandre Lucena, Mano Teko (centre), funk-poète coordinateur du Sarau Apafunk, et MC Pingo do Rap, funk-poète, Association Apafunk
Figure 8: Alexandre Lucena, Mano Teko (centre), funk-poète coordinateur du Sarau Apafunk, et MC Pingo do Rap, funk-poète, Association Apafunk

Les MCs d’Apafunk ont une manière de faire (Certeau, 1990, p. 151) propre par rapport à la tendance artistique du marché du funk ainsi qu’une corporalité particulière à l’intérieur du sarau. Ils ont une utilisation généralement différente de l’espace par rapport aux poètes “traditionnels” puisque ils s’y inscrivent de manière particulière en marchant à l’intérieur du cercle (roda). Selon Certeau (1990), il y a une manière différente de sémiotiser l’espace, un “façonnage d’espace”, c’est à dire une mise en abîme de l’espace, puisque marcher revient à un acte de langage, créant une triple situation d’énonciation à travers : 1- l’appropriation du système topographique, 2- la réalisation spatiale du lieu, et 3- impliquant des relations entre différentes positions, ce qui correspond, selon lui, à une figure de style (Certeau, 1990, p. 147-151). C’est aussi un apport d’information quant à l’action socio-corporelle de Zumthor permettant de transformer le texte en oeuvre (2005, p. 142).

Corporalités noires et lutte identitaire

Par rapport à l’idée d’espace de lutte, la poésie en tant que manifestation artistique présuppose l’existence d’un système organisé de l’expression d’une communauté dépendant d’un ordre social qu’elle a le pouvoir de critiquer (Zumthor, 2000, p. 46-47). Bien que cette critique sociale soit commune aux autres saraus périphériques, elle s’articule dans le sarau APAfunk notamment autour de la question de l’identité. Le rap Apologia de Mano Teko, qui constitue une unité sémiotique à l’intérieur de la manifestation, car ayant pour fonction généralement de clore le sarau, fait référence aux représentations hégémoniques qui exercent un réductionnisme identitaire autour de concepts comme la périphérie ou la race:

Vieram falar que na visão deles funk não é cultura
(…)
Agravante maior é a camisa errada que pintaram dela[28]
(…)
O caô não está só aí, é aí que eu fico bolado
Pra eles está na origem: negro, pobre e favelado
(Mano Teko, Nelson Maca, Apologia[29])

A lieu, ainsi, une lutte pour l’identité à enjeux réels, puisque le poète devient sujet du processus de représentation et s’inscrit dans un rapport de force inégal contre des représentations à effets réels, tels que la violence policière dans les périphéries (Wacquant, 2008, p. 3) et la létalité de l’adolescent afro-brésilien (Ramos, 2009, p. 5). Nous entendons la lutte identitaire ici comme plurielle et en mouvement au sens où elle n’est jamais fixe ni unifiée (Woodward, 2006, p. 15), ni achevée, toujours en réécriture (Gilroy, 2001, p. 16), ceci également car elle s’inscrit dans la représentation qui fonctionne comme un système de signification arbitraire et indéterminé (Tadeu da Silva, 2006, p. 91).

Un positionnement discursif

Il y a, dans ce sarau, récurrence dans les actes de langage des organisateurs de l’idée d’un “positionnement à travers la pratique”. Nous aborderons à présent deux types de positionnement: le positionnement discursif des poètes et le positionnement symbolique de la manifestation par son inscription à un espace.

Le corps noir en tant que rapport premier au monde (Ricoeur, 1996, p. 178) est alors le premier niveau de manifestation de la violence du racisme structurel présent dans la société brésilienne (Paixão, s/d, p. 26), d’où la nécessaire corrélation entre lutte identitaire et lutte contre le racisme. En tant que signifiant, depuis le colonialisme jusqu’au néolibéralisme, il est prisonnier des discours “qui (ont) enfermé les sujets dans des régimes dominants de représentation” (Hall, 2003, p. 220), et “imposé au noir une déviation existentielle” (Fanon, 1971, p. 11) le rendant victime du signifiant hégémonique jusque dans sa propre corporalité. Nous prenons le risque de dire que ces régimes dominants de représentation persistent jusqu’à aujourd’hui dans une société sur laquelle plane le spectre du racisme colonial (p. 69), où le sujet subalterne existe parce qu’il y a une construction discursive par le sujet dominant (p. 69) (Césaire,1955, p. 2020). Stuart Hall entend le racisme comme un construit culturel la race étant un signifiant fluctuant inscrit dans le cadre de systèmes de discriminations orientant les pratiques sociales et réussissant à faire illusion en présentant la différence raciale comme objective (Hall, s/d). Le corps noir serait ainsi approprié par ce système de signification. En tant que signifiant, le racisme est doué d’une plasticité qui fait qu’il peut être déconstruit puisque le sens d’un signifiant n’est jamais fixe, ceci à travers une manipulation des schèmes et images mentales (Bourdieu, 1982, p. 36) présentes dans l’imaginaire social de certains groupes sociaux à propos du corps noir. Les effets des pratiques racialisantes sont mises en évidence à travers la construction d’un parallélisme entre la violence du présent et la violence esclavagiste, qui à travers l’acte de langage pose un rapport de pouvoir symbolique dans lequel s’actualise un rapport de force (Bourdieu, 1982, p. 94) maîtres/esclaves et société discriminatoire, criminalisante/favelado, tel que dans les vers d’Helber Ladislau (2013), poète participant au sarau Cooperifa, qui est venu présenter son recueil Poesias negreiras:

O sangue do morro escorrendo na calçada
O mesmo sangue que escorria na senzala
E são os mesmos vampiros sugando e dando risada
O mesmo sistema que caçou Zumbi caçou Lampião
(Helber Ladislau, 12/12/2013, sarau APAfunk)

Figure 9: Helber Ladislau, poète, sarau Cooperifa
Figure 9: Helber Ladislau, poète, sarau Cooperifa

Dans la poétique d’Elaine Freitas, qui renvoie lors de sa performance à la figure du “senhor” dans le fait divers Porque o senhor atirou em mim?[30], il y a une référence à l’esclavage ainsi qu’une non-acceptation de ce signifiant hégémonique du corps noir le rendant victime de la force policière_et d’une censure de l’expression culturelle, construisant narrativement un contre-récit qui, de la même manière, implique un rapport de force à travers son édification symbolique:

O senhor quer calar os nossos tambores
(…)
E ameaça incendiar toda negrada aquilombada
Mas veja que a cor não aceita
ser mero objeto das malvadezas do senhor
(…)
As mãos erguem revoltas e refazem a África na diáspora
(…)
a maioria é da nossa dor, é da nossa cor
e faz crescer o mundo a enegrecer

Que cela-soit à travers l’approche culturaliste à travers l’idée de diaspora comme construction de liens culturels transnationaux au sens d’un atlantique noir (Gilroy, 2001), comme moyen de lutter contre le racisme ou à partir de la lutte contre le racisme dans une perspective de lutte des classes[31], les deux positions, à travers leur pluralité, resémantisent les signifiants du corps noir à l’oeuvre dans les discours hégémoniques. C’est dans les interstices de ce type d’actes de langage (Austin, 1962) que se trame une lutte pour la signifiance du corps noir et pour un droit à la subjectivité à travers l’expression et les pratiques culturelles: “Contre la criminalisation des espaces noirs de culture” était inscrit sur l’image annonçant le sarau de septembre et est une idée récurrente dans la manifestation. C’est à travers ce type d’actes de langage que nous pouvons comprendre le corps-poétique dans le sarau APAfunk comme un corps-événement (Hissa, 2013, p. 62).

Symbolique de l’espace

Prenant par à l’organisation du sarau hébergeant 42 familles principalement d’origine périphérique et modeste, l’Occupation Manoel Congo et le MNLM sont victorieux dans la mesure où cette occupation a été régularisée par le pouvoir public (Silva, 2010, p. 149-150). Le Roi Manoel Congo est devenu un symbole de la résistance noire contre la captivité de l’État de Rio de Janeiro en organisant une rébellion de 300 esclaves en 1839 et fondant le Quilombo de Santa Catarina (Paty dos Alferes – Baixada Fluminense) contre l’oligarchie du café et de la canne a sucre. La révolte a été réprimée par l’un des héros de l’historiographie brésilienne “oficielle”, Duque de Caxias[32]. L’histoire comme processus est un récit qu’une société à un moment donné se raconte sur elle même (Hall, 1997, p. 49). Ce choix d’élever ce personnage au rang de héros national, et constituant un choix narratif, est réalisé à une période précise par un groupe social disposant des moyens d’écrire ce récit. L’histoire est ainsi un moyen pour un individu, entendons par là un groupe social, de se situer (Aron, 1981, p. 355). La condition inhérente à la production de la réalité historique, elle est humaine, la rend relative au point de vue qui est adopté lors de sa production (p. 365). Pour les organisateurs le sarau représente un espace permettant ce type de critique à l’  histoire “officielle”[33].

Ce choix de l’occupation de l’espace urbain en face de ce bâtiment ré-approprié par  un mouvement social né dans les années 1990 revendiquant un droit à la ville (Silva, 2010, p. 152) à travers les articles 182 et 183 de la constitution de 1988 stipulant la fonction sociale du logement, à travers la pression politique pour l’inclusion de la réforme urbaine à l’agenda politique, représente, en outre, un positionnement symbolique face à l’historiographie hégémonique dans un Brésil qui a reçu la plus grande diaspora forcée d’Africains (Anjos, 2011, p. 3) et où l’application de la loi 10.639 sur l’intégration de l’histoire et culture afro-brésiliennes et africaines, 10 ans après son implémentation, n’est pas encore satisfaisante[34]. Ce choix toponymique opère un changement paradigmatique et représente une ré-approriation physique ainsi qu’une re-signification symbolique de la ville car crée une zone de visibilité autour de ce contre-récit (Hall, 2003, p. 342). Cela pose, en outre, la question du modèle de construction nationale à travers les conditions d’écriture de l’histoire et la formation d’héros nationaux permettant la création d’une identité, et ainsi d’une cohésion, nationale (Thiesse, 2000, p. 17-18). Il y aurait, ainsi, une réécriture localisée et métaphorique de l’histoire, celle du centre et de la périphérie, à l’image d’un des vers du Funk Consciente de MC Calazans : “Nos becos e vielas eu fiz história”[35].

Corps dans la ville

Eles “escapam do totalitarismo da racionalidade” (Santos, 2008, p. 325), como, também, “escapam aos rigores das normas rígidas” (p. 232), criando novos territórios urbanos. Ao se desvencilharem das normas de controle, eles grafam, no terreno, caminhos de resistência à reprodução da cidade luminosa, criando usos não previstos, gerando movimento e novos sentidos; eles recolocam o encontro, a seiva do urbano, em cena. (…) Na contramão da mediação do capital, são produzidos territórios existenciais e subjetivos alternativos, na potência da vida, mesmo no mínimo do corpo.
(Hissa, 2013, p. 59)

Figure 10: Mano Teko
Figure 10: Mano Teko

Le corps et la ville se trouvent dans une relation de nécessaire corrélation dans la mesure où la manière dont est produite la ville détermine les modalités des relations sociales entre les hommes qui la produisent (Lefebvre, 2006, p. 46-47).  L’Occupation Manoel Congo s’inscrit dans une lutte contre une dynamique historiographique dans laquelle l’expansion et la construction territoriale priment historiquement sur les populations, se constituant comme un élément constitutif de l’identité brésilienne à travers l’histoire (Morães, 2005, p. 94-96) c’est-à-dire contre la manifestation d’une idéologie géographique, discours qui véhicule une vision de l’espace et du territoire directement normative en ce qui concerne l’espace (p. 44-45).

Cette idéologie géographique, à la manière d’une constante historique, s’exprime à travers divers plans urbanistiques telles que Pereira Passos (Lima, 2013, p. 30), Agache et Doxiadis qui, à travers la construction urbaine, permettent de rendre invisibles les quartiers populaires (p. 36) à la manière du plan stratégique de 1994 dans la perspective du projet de construction du Porto Maravilha (p. 38). Que cela soit pour donner à Rio de Janeiro des airs de capitale européenne au début du XXème siècle (p. 30) ou pour lui donner une valeur compétitive sur le marché mondiale des villes à être vendues (Bienenstein, 2011 apud Magalhães, 2013, p. 103), la ville de Rio de Janeiro est emprunte de cette “idéologie géographique” qui s’exprime notamment à travers la spéculation dans le centre-ville de manière corrélative à l’entrée en vigueur du plan Porto Maravilha (Lima, 2013, p. 102), ce qui constitue un facteur d’adversité s’opposant directement à l’idiosyncrasie du MNLM.

La planification urbanistique de la ville ayant des effets sur les pratiques et relations sociales (Souza, 2011 apud Lima, 2013, p. 17), l’action du MNLM est antagoniste et rendue visible à travers le sarau APAfunk. Elle propose un autre type de relations sociales en hébergeant en son sein des familles périphériques et fragilisées par le système économique en vigueur et dont le modèle d’organisation économique est la coopérative. Le plan Porto Maravilha et ses corrollaires détruisant directement ou indirectement l’habitat populaire dans le centre, le système de valeurs mobilisé dans le sarau est totalement inverse, opposant, dès lors, d’autres conceptions de la ville. Cette opposition, à la manière de la lutte identitaire, s’inscrit dans un rapport de force inégal en ce sens que ce sont des luttes poético-politiques contre le pouvoir spéculatif et les expulsions (remoções). Cela permet de comprendre conséquemment l’esthétique visuelle de cette manifestation, traduisant son degré d’engagement politique, tel qu’il est possible de lire dans les affiches participant à la création visuelle de l’espace du sarau:  “Arrêtez les expulsions. La fonction sociale n’est pas de servir le Capital”, “Reforme urbaine tout de suite” ou encore “Qui change la ville ? Nous”. À travers la vision urbaine du MNLM dans le sarau APAfunk, c’est un nouveau sujet qui est proposé et produit, proposant un autre type de relations sociales à travers l’intervention du processus urbain visant à rendre habitable la ville selon une certaine idiosyncrasie.

Figure 11: Ludi Um, musicien et poète participant au Sarau APAfunk
Figure 11: Ludi Um, musicien et poète participant au Sarau APAfunk

De plus, il est possible de comprendre le droit à la ville dans le projet politique du MNLM dans un sens plus large, comme droit à la vie urbaine, aux lieux de rencontres et d’échange ainsi qu’à la réalisation de la société urbaine au sens du “règne de l’usage (de l’échange et de la rencontre séparé de la valeur d’échange” (Lefebvre, 2006, p. 143). À l’intérieur de ces droits se trouverait le droit à l’imagination en tant qu’appropriation du temps et de l’espace (p. 113) à travers l’art comme moyen d’appropriation de la ville:

A arte restitui o sentido da obra; ela oferece múltiplas figuras de tempo e de espaços apropriados: não impostos, não aceitos por uma resignação passiva, mas metamorfoseados em obra. A música mostra a apropriação do tempo, a pintura e a escultura, a apropriação do espaço (Lefebvre, 2006, p. 115).

La “performance poétique collective corporellement partagée” (Rosário, 2013) dans le cadre du sarau APAfunk peut remplacer les différents arts dans cette citation au sens où la performance s’approprie simultanément du temps, du lieu, de la finalité de transmission, de l’action du locuteur et de la réponse du public (Zumthor, 2000, p. 30-31). Nous entendons alors la praxis poétique du sarau APAfunk comme la revendication d’un droit à la corpoeticidade (Rosário, 2007, p. 84) c’est à dire le droit à occuper corporellement un espace urbain tout en le transfigurant symboliquement, le droit à habiter et à rendre habitable la ville, comme un processus d’appropriation spatiale et re-signification poétique grâce à la projection d’une poéticité permettant, en dernier lieu, la réécriture du texte urbain (Hissa, 2013, p. 58) si l’on considère que la ville est un livre car fonctionnant comme système sémiologique (Lefebvre, 2006, p. 48) ou plutôt la réécriture du texte urbain à travers la performance poétique collectivement et corporellement partagée. En effet, la performance collective qu’est le sarau APAfunk forme un complexe inter-sémiotique (Rosário, 2007, p. 23) dans laquelle corps, poésie et ville prennent sens par leur corrélation. Nous entendons aussi que cette réécriture s’opère à travers une lutte (micro)politique (Rosário, 2007, p. 102), ayant lieu dans un contexte localisé.

Figure 12: MC Papa, le funk-poète le plus jeune du Sarau Apafunk
Figure 12: MC Papa, le funk-poète le plus jeune du Sarau Apafunk

Nous entendons cette poétique collective du sarau comme la création d’un territoire existentiel (Hissa, 2013, p. 59) et symbolique dans lequel est refusé l’assujettissement des subjectivités à un réductionnisme du discours hégémonique en ce qui concerne la race et la périphérie ou encore à l’acceptation d’un modèle de développement urbain opérateur de dichotomies à partir d’une idéologie géographique excluant certains groupes sociaux. C’est ainsi qu’il est possible de comprendre le concept de – nouveaux lieux, pensé par les poètes de la littérature marginale – périphérique. Ce sont également ces lieux qui sont construits à travers la  praxis poétique du sarau APAfunk bien que dans un autre type d’espace social.

A afirmação territorial e identitária da periferia permite que os moradores desse tipo de espaço social, na posição de artistas e ativistas, agenciem novos lugares para si, para além das relações habituais com a vitimização, pobreza e violência (Nascimento, 2006, p. 214).

Il est possible de considérer le sarau APAfunk comme un espace de l’hybride au sens où il affirme un modèle différent pour la résistance en le plaçant dans des pratiques contre-discursives subversives implicites dans l’ambivalence coloniale et minant la base sur laquelle les discours impérialistes et colonialistes fondent leur prétention de supériorité (Ashcroft, 1998, p. 121). Bien que ne pouvant qu’esquisser, dans les limites de cet article, quelques commentaires destinés à nourrir une future réflexion, nous émettons l’hypothèse suivante: dans le sarau APAfunk, les pratiques contre-discursives s’articuleraient autour de la question de la race, de la périphérie rendue invisible et criminalisée dans les discours hégémoniques, ainsi que du modèle de relations sociales à l’oeuvre dans la ville. Enfin, le sarau Apafunk est comme le soleil. Il est entré sans demander la permission et brille, de puis un an maintenant, en transfigurant les lieux “déjà signifiés en territoires de l’identité et de l’appartenance” (Enne & Gomes, 2013, p. 50) permettant, par rapport aux discours hégémoniques et grâce à la manifestation de la subjectivité, une fuite symbolique du sujet.


* Melenn Kerhoas est diplômé en Langues Etrangères Appliquées – Master Relations Interculturelles et Coopération Internationale (Université Charles de Gaulle – Lille III) et étudiant en Master Erasmus Mundus MITRA – Médiation Interculturelle (Université Charles de Gaulle – Lille III; Université Babes-Bolyai, Cluj-Napoca, Roumanie; Universidade Federal do Rio de Janeiro).

Melenn Kerhoas é mestre em Línguas Estrangeiras Aplicadas no curso de Relações Interculturais e Cooperação Internacional pela Universidade Charles de Gaulle – Lille III (França) e mestrando em Mediação Intercultural no Erasmus Mundus MITRA (Universidade Charles de Gaulle – Lille III; Universidade Babes-Bolyai, Cluj-Napoca, Romênia; Universidade Federal do Rio de Janeiro).

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Notas

[1]   Pour plus d’informations en ce qui concerne le Funk, nous invitons à consulter Vianna (1987) (1990), Lopes (2010), Herschmann (2005), Apafunk (2010).

[2]    Le miami bass est une variante du hip-hop, dont le rythme diffère et où est utilisée une boîte à rythme  (Lopes, 2011, p. 33).

[3]    “Tantos os jovens de classe média como os favelados consomem o funk, mesmo estando em classes sociais diferentes e representando papéis completamente diferentes dentro dessa lógica de produção-consumo” (Enne & Gomes, 2013, p. 53).

[4]    L’article de Vianna (1990) a été écrit pendant l’ “âge d’or” du Funk et n’est pas représentatif du nombre de baile funk qui ont lieu actuellement à Rio de Janeiro. Il donne cependant une idée de l’importance de cette manifestation culturelle dans la compréhension du funk comme culture populaire.

[5]    Sarau APAfunk, 12/12/2013.

[6]   Unidade de Polícia Pacificadora. Disponible sur http://www.upprj.com/. Consulté le 18/01/2014.

[7]    O Globo, 17/10/2013, s/a: Bailes funk retornam a comunidades com UPP mesmo sem novas regras Secretaria de Segurança vai fazer nova regulamentação até fim do ano. Presidente da APAFunk defende que bailes aconteçam em clubes: “Em 23 de janeiro de 2007 foi publicada a resolução 013 pela Secretaria Estadual de Segurança (Seseg), dando aos comandantes das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) o direito de aprovar ou não um evento cultural dentro das comunidades — o que, na prática, impediu os bailes”. Disponible sur http://m.g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2013/10/bailes-funk-retornam-comunidades-com-upp-mesmo-sem-novas-regras.html. Consulté le 18/10/2013.

[8] APAFunk – Associação dos Profissionais e Amigos do Funk. Disponible sur http://www.apafunk.org.br/a_apafunk.html. Consulté le 18/01/2014.

[9]   Le funk est, de plus, reconnu comme manifestation culturelle brésilienne dans le projet de loi 4124/2008 qui  reconnaît le funk comme manifestation culturelle brésilienne (Enne & Gomes, 2013, p. 55) qui est actuellement encore débattu au sein des commissions.

[10]  Funk de Raiz, s/a: Histórias dos Mcs Teco e Buzunga. Disponible sur http://funkderaiz.com/teco-e-buzunga/ Consulté le 26/01/2014.

[11] NPC, Núcleo Piratininga, 19/01/2013: Mano Teko (Associação dos Amigos e Profissionais do Funk). Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=gnhYCzk8E-A. Consulté le 26/01/2014.

[12] Maca, Nelson, 13/09/2013: Resistência em movimento, círculo de conversa, Ocupação Manoel Congo, Rio de Janeiro. Disponible surhttp://www.youtube.com/watch?v=CrasBvNpNvQ. Consulté le 03/02/2014.

[13]  Entretiens de Nelson Maca et Mano Teko accordés à l’auteur les 23/11/2013 et 05/12/2013.

[14]  Entretien accordé à l’auteur le 23/11/2013.

[15]  Blog do Sarau Elo da Corrente. Disponible sur http://elo-da-corrente.blogspot.com.br/p/quem-somos.html. Consulté le 23/01/2014.

[16]  Pour plus d’informations, consulter https://www.facebook.com/VSarau?fref=ts

[17]  Marcelo Freixo (Deputado Estadual, PSOL) a eu un rôle très important dans la promulgation de la loi  5543/2009, pour plus d’informations consulter Lopes (2010, p. 60).

[18]  Apafunk Associação (Facebook), posté le 21/01/2014: Roda de Funk, Fundamento 2008. Disponible sur https://www.facebook.com/ApafunkRJ. Consulté le 26/01/2014.

[19] “Le corps, la position, le fait de se tenir dessins de la relation première avec moi-même, de ma coïncidence avec moi ne ressemblent nullement à la représentation idéaliste. Je suis moi-même, je suis ici, chez moi, habitation, immanence au monde. Ma sensibilité est ici” (Levinas, 2000, p. 146).

[20]  Traduction propre

[21]  Traduction propre

[22]  “Um terreiro, uma casa-matriz de uma comunidade jongueira ou de maracatu, um cazuá de capoeira angola, transmitem bens simbólicos de um patrimônio familiar que regenera a linhagem e que trança e dá sol a relações de descendência que ultrapassam a ascendência biológica” (Rosa, 2013, p. 36); “Oliveira (2003) detalha elementos característicos de uma cosmovisão africana, que ultrapassam diferenças geográficas e que podem ser generalizados como constantes na filosofia vivida pelas tantas etnias e povos do continente-mãe (…) Oliveira destaca alguns princípios como (…) a Família, que pode ser extensa e transcender laços sanguíneos, como base de organização social” (p. 39-40).

[23]  L’espace de la rue comme recours et stratégie politique, impliquant une esthétique de son utilisation, est récurrente dans l’action d’APAfunk en dehors de l’espace du sarau. Est née aussi parallèlement au sarau un bloco apafunk qui va donner une visibilité pendant le carnaval pendant lequel “l’occupation de l’espace des rues est fondamental” (Enne & Gomes, 2013, p. 57).

[24]  A la différence de la majorité des saraus de la littérature périphérique-marginale qui ont lieu dans les périphéries et on un impact direct sur les communautés respectives des organisateurs.

[25]  AtomoMultimidia, 20/09/2012: MC Calazans e o funk em tempos de “paz” – Periferia em movimento. Disponible sur http://www.youtube.com/watch?v=3MdVVtM9U-4. Consulté le 26/01/2013.

[26]  Entretien accordé à l’auteur, 05/12/2013.

[27]  Lancement du livre Criminalização do tamborzão: olhares sobre o funk, intervention d’Adriana Facina, le 26/11/2013 au Circo Voador, Lapa, Rio de Janeiro.

[28]  Sous-entendu “de la favela”.

[29]  Mano Teko & Banda Feitura: Apologia (ao vivo) by Mano Teko on Soundcloud. Disponible sur https://soundcloud.com/manoteko/mano-teko-apologia-ao-vivo. Consulté le 26/01/2014.

[30]  Disponible sur http://negrobelchior.cartacapital.com.br/2013/10/28/por-que-o-senhor-atirou-em-mim/

Consulté le 24/01/2013.

[31] Diego Conceição, sarau APAfunk, 14/11/2013: “Estamos mais do que no momento de discutir realmente o racismo nesse país, certo? Entender o racismo sem compreender na individualidade e entender como um processo de construção do sistema capitalista branco”.

[32]  Instituto de Pesquisa e Análises Históricas da Baixada Fluminense, s/d, s/a, 24/10/2009: A saga de Manoel Congo. Disponible sur http://www.geledes.org.br/areas-de-atuacao/questao-racial/quilombos-e-quilombolas/2719-a-saga-de-manoel-congo. Consulté le 26/01/2013.

[33]  Entretiens de Mano Teko et Diego Conceição: 05/12/2013, 06/12/2013.

[34]  1. Carta Capital, SPeriferia, Semayat Oliveria, 17/10/2013: Lei que obriga ensino da história afro-brasileira faz 10 anos. Disponible sur http://www.cartacapital.com.br/blogs/speriferia/dez-anos-da-lei-que-obriga-o-ensino-da-historia-e-cultura-afro-e-afro-brasileira-nas-escolas-e-tema-do-evento-afrobrasilidade-cultura-e-educacao-na-urbanidade-7681.html. Consulté le 18/01/2014.

2. Rede Globo, cidadania, 13/05/2013, s/n: Coordenador do Laboratório de Análises Econômicas, Históricas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais fala sobre a vida do negro hoje em dia. Disponible sur http://redeglobo.globo.com/globocidadania/noticia/2013/05/leia-na-integra-entrevista-com-o-economista-marcelo-paixao.html. Consulté le 26/01/2014.

[35]  Festfunkconsciente, 06/04/2013: Funk Consciente – MC Calazans.Disponible sur http://www.youtube.com/watch?v=iWtKuOhG8vo. Consulté le 26/01/2014.

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Corpoeticidades dos saraus de poesia: o movimento Eu, Poeta Errante, de França de Olinda | André Telles do Rosário*

A voz e a interação humana voltaram ao coração da comunicação poética. Durante o último século, além de todas as vanguardas, escolas e teorias que ampliaram enormemente as maneiras de se produzir, divulgar e fruir os poemas (tanto no impresso, quanto nas mídias sonoras ou audiovisuais e na internet), aconteceu também a popularização da cultura de encontros para se compartilhar poesia falada, principalmente a partir dos anos 1970 e 80.

Para muitos, o primeiro marco perceptível desta tendência surgiu com a subversão da cultura da leitura de poemas, feita por Allen Ginsberg e os poetas da San Francisco Renaissance, na Six Gallery, em 1955, ao dar àquela noite de leitura um aspecto de happening (ainda antes de Kaprow criar o conceito), principalmente devido à dionisíaca primeira declamação de “Howl”. Nas décadas seguintes, ao encontro da cultura de leitura de livros com o happening e as vivências das artes visuais, foram somadas as performances dos shows de rock e a cultura jovem, e a busca por meios culturais de resistência política e existencial. Estas, entre outras referências, repercutiram no surgimento dos recitais de poesia no Brasil, e da Slam Poetry nos Estados Unidos, entre tantos outros formatos, em várias partes do mundo.

Poesia oral urbana. Ligada a movimentos internacionais e a tradições locais, com diversas formas de materialização. Praticadas nesses eventos, foram se adaptando mais e mais à forma de comunicação através da voz, do corpo e da interação pessoal. Já são décadas de renascimento – com estilos pessoais e de época, de formas e estruturas características, ao longo do tempo. Nesse período, o que se percebe é a consolidação de uma fruição estética que é menos “literária”: mais próxima do jogo e do ritual, da terapia coletiva e da manifestação política, que da leitura solitária.

Sua abundância descentrou o paradigma literário dos estudos de poesia para outro, mais preocupado com o papel do corpo na comunicação artística verbal. Nossa hipótese, neste ensaio, é que a atual poesia corporalmente compartilhada pode ser compreendida de maneira mais apropriada ao ultrapassar a “bidimensionalidade” da maior parte dos estudos literários. Para tanto, acreditamos ser necessário um olhar através das relações entre três elementos centrais nestas manifestações culturais orais urbanas: o Corpo, a Cidade e a Poética.

Este artigo é uma tentativa de observar um sarau de poesia dentro deste ponto de vista “tridimensional”. Assim, vamos passar os olhos sobre o movimento Eu, Poeta Errante, em Pernambuco, liderado pelo Poeta França (Valdemilton Alfredo de França). Mas, antes de partir para a poesia propriamente dita, é necessário explicar o que vem a ser Corpoeticidade.

Figura 1: O poeta França de Olinda (Foto: Fundarpe - divulgação)
Figura 1: O poeta França de Olinda (Foto: Fundarpe – divulgação)

Três elementos e três dialéticas

O neologismo Corpoeticidade é a junção de três elementos importantes na expressão poética performativa contemporânea: Corpo, Poética e Cidade. Três substantivos que se desdobram em três dialéticas: a Poesia no Corpo; o Corpo na Cidade; e a Cidade na Poesia. Estas três dialéticas foram utilizadas para orientar a observação da obra do poeta Miró da Muribeca (João Flávio Cordeiro, recitador e criador famoso da poesia “marginal” de Recife), na dissertação Corpoeticidade – Poeta Miró e sua literatura performática (UFPE, PGLetras, 2007).

Na primeira das perspectivas, a Poesia no Corpo, foram procurados traços de performatividade na sua poesia, ou seja, a forma com que o corpo modula as manifestações do poema. Como sua arte é um híbrido de expressões orais e gráficas, para retratar melhor sua materialização, a dialética poesia e corpo foi dividida em três subconjuntos de comentários.

O primeiro apanhou aspectos visíveis e audíveis de suas performances, de como o corpo se apresenta, desde a voz e o gestual, até a indumentária, o local e a ocasião. O segundo buscou elementos de oralidade dentro da língua utilizada em seus poemas, atrás de alguns padrões e recursos lexicais mais frequentes nos seus textos. E o terceiro leu o planejamento gráfico de suas publicações, em busca da influência da performatividade no meio impresso. Partindo, assim, do foco exclusivo no corpo e no contexto, passando pelas marcas da performatividade no seu discurso, até chegar à intersemiose de seus livretos.

Com a segunda das dialéticas, o Corpo na Cidade, buscou-se retratar a subjetividade que habita seus poemas. Quais as fronteiras para a movência e para o usufruto da urbe por esse protagonista descrito em sua poesia: a cor, a classe e a intimidade do habitante que é o ponto de vista das imagens de suas invenções.

Com limitações mais visíveis e sensíveis para quem está na base da pirâmide social, o cotidiano das grandes cidades brasileiras é repleto de fronteiras e poucos espaços comuns. Para provar os incômodos disparates que sente na pele, o poeta recorta fragmentos da cidade e os cola no poema, deixando ver sua posição dentro dessa sociedade – e transgredindo essas fronteiras através da expressão artística.

E na terceira, a Cidade na Poesia, foi observado o sentimento geográfico que viaja com os versos. Como as representações culturais geográficas locais tradicionais (principalmente da cidade, mas também da região e da nação) são construídas e reinventadas em poemas seus. Como e quais modelos de pernambucanidade e brasilidade são revelados, celebrados e combatidos através da poesia.

Todo indivíduo traz na sua fala signos de pertença a seu lugar (e a sua posição dentro da sociedade desse lugar). O poeta, tecelão de tumultos, cruza estas fronteiras dentro de sua obra, e os moldes com que tece suas bombas de efeito moral revela, também, seu posicionamento político perante questões do ambiente social em que está mergulhado, reinterpretando as representações culturais do lugar.

Corpoeticidades

O caminho para a compreensão de eventos de poesia falada através deste arcabouço teórico passa por adaptá-lo da leitura da obra de apenas um poeta, para a análise de um evento de poesia. Primeiro, é importante entender que a soma das corpoeticidades dos poetas presentes no evento é parte da corpoeticidade do evento. Mas não só, porque o evento em si tem sua corpoeticidade: sua relação e história com práticas corporais e de interação pessoal; com maneiras de entender e trocar criativamente a poesia; e com o lugar onde acontece, dentro da cidade e de culturas mais amplas, nacionais e internacionais. Para analisar a corpoeticidade do evento, o primeiro ponto é compreender que falamos de algo no plural. Poetas e audiência reunidos – Corpos, Poéticas e Cidades.

As poesias nos corpos

Qualquer evento de poesia falada é uma grande compilação de poemas composta por vozes e corpos diferentes num mesmo lugar, durante algumas horas. As performances se juntam umas às outras: a poesia acontece através das pessoas. É assim um jogo, um ritual, uma terapia coletiva, um manifesto. Em vez de livro e leitor sozinhos a dois – vozes e olhares de três ou mais participantes: falas intercaladas, trocadas, conversadas, mais o contexto, o local e o acaso.

A estrutura que ordena o encontro é o esteio por onde os poemas em performances vão se suceder, mantendo o elo de unidade do evento. Observar como se dá a interação pessoal é o primeiro ponto desta dialética. Organizações diferentes geram recitais diferentes entre si. Como o fato do evento ser uma lista ou uma roda de poesia, ou de ter um Mestre de Cerimônias mais ou menos centralizador ou permissivo. A temática e a cultura do recital geram normas implícitas que têm efeito sobre o conteúdo e a forma da poesia trocada nestes ambientes.

Além de atentar à sua estrutura, é importante observar os diferentes estilos de performances pessoais dos principais atores de cada evento. Ainda, entre a análise da corpoeticidade do recital e aquela de cada um dos poetas que se apresentam, observar o diálogo que acontece no nível da performance entre os criadores que recitam.

O segundo ponto é observar a linguagem usada nos poemas dos eventos de poesia falada. Quem são os principais poetas a se apresentarem nele, quais os recursos que suas poesias utilizam. É perceptível um uso da linguagem que é mais oral, mais concreto e coloquial. O evento de poesia falada tende a prestigiar um estilo mais oral de literatura. Neste ponto, é interessante observar o papel do livro em cada um deles, em geral, quanto maior a base na leitura pública de livros, mais distante da oralidade.

Por fim, o terceiro e último ponto desta primeira dialética a ser adaptado do estudo sobre Miró da Muribeca é aquele que observa a performaticidade impressa. Mais uma vez, a soma dos trabalhos dos poetas que frequentam os recitais é parte da corpoeticidade, junto com a divulgação da poesia e do evento em outras mídias. Mas não só, os criadores de um recital muitas vezes formam coletivos de ação artística, e é recorrente para alguns a publicação de coletâneas com os autores, além da produção de zines com parcerias dentro de cada evento. E há ainda a publicação em textos e vídeos na internet.

Os corpos nas cidades

Os criadores que se apresentam em um sarau têm histórias pessoais, percursos pela cidade. Os corpoetas são por necessidade andarilhos, de evento em evento, sem o artista sua poesia não atinge seu público (já que mesmo para vender seus livros, é necessário que o autor os leve, muitas vezes). E o lugar onde mora marca este criador (aberta ou veladamente), desde sua linguagem do lugar, passando pelo ponto de vista, pelo repertório de experiências cotidianas comuns, até a própria descrição da cidade nos poemas. O sarau acaba sendo uma encruzilhada, um ponto de encontro de várias trajetórias, um lugar que se torna um espaço de força.

Histórias que circulam e se fundem e se confundem e fundam. Encruzilhadas de histórias pessoais e identidades de variados tipos. Partes da cidade que se encontram, se aliam, se estranham, se ressignificam. Corpoetas são embaixadores de sua cidade e de suas “quebradas”, de suas histórias, e de outras coisas também: ideias, ideais e muito mais. O caldo todo se anuncia em seus versos, a cidade se apresenta ao “eu-lírico” no poema. Eles carregam, quando falam, seu lugar na guerra, que disputam com a palavra, na sociedade em que moram. Deste ponto de vista, o recital de poesia é também uma manifestação política através da cultura, feita através desta união de vozes, ouvidos e olhares.

Mas além da soma dos percursos dos poetas, o recital tem um “discurso” que diz quem o faz, para quem é feito, quem são essas pessoas, o que é importante para elas – qual cidade é privilegiada em sua atenção e afeto. Assim, o sarau de poesia acaba por interferir de volta na cidade, na linguagem da cidade, na história da cidade – através das pessoas concretas que nela vivem e convivem.

As cidades nas poesias

Para o universo da poesia falada contemporânea, o lugar não é apenas pano de fundo, mas parte fundamental da obra. É em acordo com os detalhes de cada espaço que se organizam os eventos. Além das contingências locais que influenciam a troca de poesia e seus estilos, os movimentos de poesia falada reivindicam o espaço urbano para outros usos – ligados ao prazer do jogo, ao senso comunitário do ritual, ao debate e à luta social.

O lugar de onde se diz algo faz toda a diferença. O ponto onde os pés do corpoeta tocam o chão é um signo a partir do qual os discursos podem ser compreendidos. Revela a classe, a história, a etnia, a cultura local – e para quem, com quem e contra quem se diz. Colocar-se deste lugar é performar o manifesto que dá origem ao sarau de poesia.

Mais do que a compreensão das identidades geográficas e culturais de cada poeta que se apresenta a partir daquele lugar, e da soma das percepções de todos os poetas que compõem o evento, o sarau de poesia como um todo também se manifesta identitariamente, como uma obra. Tanto em cada evento, como na soma dos eventos ao longo do tempo.

Assim, o recital de poesia expressa suas ideologias geográficas e culturais tanto na temática e no discurso-manifesto que o funda, quanto no pensamento de cada participante – poetas, ouvintes-poetas e ouvintes. Mas, para além do texto, a performance de se tomar um lugar para falar poesia e interagir é por si só uma expressão, uma intervenção urbana, para usar a linguagem das artes (e dos movimentos sociais).

A partir do próximo parágrafo, passaremos a vista em um evento de poesia corporalmente compartilhada, utilizando os pontos de partida até agora expostos para sua descrição e leitura. As observações que seguem surgiram através de visitas ao Eu, Poeta Errante, principalmente no último ano de existência do sarau. Este exercício não pretende ser exaustivo ou minucioso, mas uma abordagem que consiga descrever o encontro de poesia de uma maneira mais pertinente e agradável.

Eu, Poeta Errante

Figura 2: França recita no <em>Eu, Poeta Errante</em>, no Festival de Inverno de Garanhuns (2007) (foto: Fundarpe - divulgação)
Figura 2: França recita no Eu, Poeta Errante, no Festival de Inverno de Garanhuns (2007) (foto: Fundarpe – divulgação)

Valdemilton Alfredo de França foi um dos expoentes da poesia corporalmente apresentada da Grande Recife. Dentre as muitas atividades, lançou dois livros: A cor da exclusão, de 1998, e Cafuné, de 2003 (além de Poeminflamado, compilação de toda sua obra, lançada postumamente em 2012).E liderou, por sete anos, o movimento Eu, Poeta Errante, recital aberto e itinerante que acontecia todas as quintas-feiras, de agosto de 2000 até setembro de 2007, pouco antes de seu falecimento.

Em 2000, França começou o primeiro da série, em Olinda. Foram mais de trezentos recitais em dezenas de locais diferentes em Pernambuco e em outros pontos pelo Brasil. O poeta, que já militava pela poesia corporalmente transmitida e socialmente brincada, passou a ter seu compromisso de fé, todas as quintas-feiras, à meia-noite, de encontrar-se com pessoas para recitar e ouvir poemas. Abrangendo desde encontros onde havia apenas ele e poucos participantes, até récitas-festas com dezenas de pessoas.

Poesias nos corpos

Toda semana, alguém diferente hospedava o evento, abrindo sua casa ou bar ou instituição para receber os boêmios. Geralmente em Olinda, mas houve edições na Grande Recife e ainda em Garanhuns, Porto de Galinhas e outras cidades. Com a mudança de lugar toda semana, a conformação do evento sempre tinha uma novidade de encontro para encontro. O que permanecia em todos, era o modelo de roda de poesia, falada sem microfone, trocada no mesmo nível do solo, em formato que tendia para um círculo, com a atenção da maioria voltada para dentro, onde o poeta se apresentava.

Tradicionalmente, uma mesa com muitas frutas e uma garrafa de cachaça à disposição dos convidados. À meia-noite, o dono do lugar abria o sarau com um poema. E então outras pessoas da roda de poesia apresentavam suas performances poéticas. Não havia lista, e o senso do momento que fazia o poeta entrar na roda. França costumava insistir para a pertinência do poema, sua resposta ao que acabou de ser recitado, de forma a construir um diálogo e estimular a brincadeira e o envolvimento de todos. Como uma capoeira, era preciso estar atento, olhando no olho, respondendo criativamente ao seu camará. Além do respeito a todos que declamam seu poema, independentemente do tempo de prática.

Os recitais eram abertos, gratuitos e não competitivos. França era um excelente anfitrião, sempre conseguia deixar todos à vontade. A ponto de pessoas que nunca haviam recitado arriscarem sua voz para fora do peito. Muitos poetas se “formaram” com França. Pelo modo de participação aberta do movimento, a experiência da performance poética neste contexto se aproxima da experimance, que é a obra de arte focada na experiência no receptor, através da intervenção do artista (Gomes, 2007, p. 5). Numa roda de poesia, o espectador pode experimentar a performance de dentro, e França incentivava os presentes a saírem de sua postura defensiva e passiva para outra mais lúdica e ativa.

Subvertendo algumas relações sociais previstas pelo “mercado literário” para a situação de comunicação poética, França reposicionou o foco da cultura na interação da experiência pessoal e coletiva, ao invés da leitura solitária ou solene das livrarias. Fazendo da poesia um estilo de vida: libertário, boêmio, existencialista, contracultural. O Eu, Poeta Errante foi sua obra mais marcante, neste sentido, uma intervenção urbana semanal, happening de poesia trocada.

Figura 3: França interage com público no <em>Eu, Poeta Errante,</em> em Garanhuns (2007). No canto direito da foto, o poeta Miró. (foto: Fundarpe - divulgação)
Figura 3: França interage com público no Eu, Poeta Errante, em Garanhuns (2007). No canto direito da foto, o poeta Miró. (foto: Fundarpe – divulgação)

Cada sarau de poesia tem seu principal organizador, ou grupo de responsáveis. Mas geralmente é uma pessoa (poeta e/ou professor) que coordena o evento. A poesia do evento acaba tendendo a se aproximar daquela do “dono” do recital. Além dessa figura, existe a do apresentador do evento. Muitas vezes é o próprio dono que faz o papel de mestre de cerimônias, mas nem sempre. França era os dois, no caso do movimento que estamos observando. O fato de o sarau ser em formato de roda (com os poetas em círculo e as recitações vindo sem ordem previamente estabelecida) faz o mestre de cerimônias virar mais um mediador entre os poetas, do que um apresentador.

A conformação entre plateia e poetas no formato de roda estimula a participação, a experimance. Neste sentido, há um elemento de jogo na roda, de fluidez, que não se apresenta no outro formato mais usual para recitais, o de lista (que podem ser fechadas antes do evento, ou que resulta das decisões do apresentador do sarau). O formato de lista acontece muitas vezes com a utilização de microfone, outro elemento que altera a performance poética. Como foi feito para multidões, para ser ouvido longe, é um instrumento de poder, que influencia a postura do poeta, afastando-o de quem está próximo, e o aproximando de quem está longe.

É curioso perceber que o microfone acaba tendo uma função de poder próxima da do livro. Ler um livro é um ato de poder, que afasta quem lê de quem está ouvindo. A fala olho no olho da corpoesia memorizada e apresentada busca a aproximação. O livro traz o argumento indiscutível, a conversa de um caminho só, o diálogo abortado ou adiado até que outro texto seja escrito e lido.

No caso do Eu, Poeta Errante, França estimulava a performance sem a leitura (e sem microfone também). Por conta da própria história do uso da cultura impressa contra as matrizes africanas e indígenas, o corpo é colocado como meio privilegiado de contato. O livro é importante, mas não pode ser central, num evento que bole com a poesia e com o corpo dessa forma, essa a mensagem por trás da estratégia.

Até agora falamos da primeira subdivisão desta dialética, a performatividade entre os corpos. Partindo para a performatividade na língua, a poesia apresentada no movimento era muito voltada para a pesquisa com a oralidade, bem-humorada e combatente, principalmente aquela de matriz afro-brasileira. Além de França, muitos poetas de Pernambuco passaram pelo Eu, Poeta Errante, criadores de uma poesia mais das ruas, e vinda das periferias – a poesia marginal de Pernambuco (que, diferentemente da carioca, tem poetas vindos dos subúrbios também – acaba sendo a confluência das duas definições para “marginal”, hoje correntes, a “do Chacal”, e a “do Sérgio Vaz”).

Quanto à terceira subdivisão, a performatividade nos meios de divulgação impressos, às vezes havia venda e troca de livretos alternativos nos eventos. França mesmo vendia livretos seus e as agendas da vida, que fazia com sua editora, a Mão-de-Veludo edições artesanais (junto com a artista visual Sil Beraldo) – mas nada ostensivo. Ao contrário de Miró, que via nos seus livretos e CDs, e DVDs a principal fonte de renda, França vivia em um ambiente mais próximo da economia solidária, morando em Olinda, no Amaro Branco. Portanto, a troca de livros entre os autores era igualmente comum, neste meio de impressos de baixo custo de edição (livretos, zines, cartões, camisetas). Quanto à divulgação dos locais dos eventos a cada semana, França confiava no “Correio Nagô”, como ele definia: a informação passada boca a boca em Olinda ou pelos ambientes boêmios e artísticos de Recife.

Corpos nas cidades

Compreender um sarau a partir das imagens que nele aparecem da cidade que o abriga é jogar uma luz sobre a construção, manutenção e reinvenção das identidades deste lugar, na poesia. Através de narrativas e crônicas, a poesia que faz a descrição da cidade e de seu usufruto (ou sofrimento) é recorrente entre os autores que o frequentavam. Podemos dizer que havia principalmente muitos autores da chamada poesia marginal recifense (mencionada acima) – junto com uma infinidade de outras pessoas, tão importantes quanto, que faziam poesia sem veleidades maiores. Geralmente, a poesia do coordenador do evento é uma tradução, parcial mas significativa, da “média” da poesia praticada naquele evento. A poesia de França é um modelo, nesse sentido.

A oralidade dessa poesia faz dela mais concreta – com citações expressas a partes da cidade, e eventos recentes de sua história. França, por exemplo, tem poemas comentando mudanças urbanas de Recife e Olinda, como quando cercaram de grades o campus da UFPE (“Desengradem as cidades”), ou dizendo da situação de Olinda, todo o ano, após a quarta de cinzas (“Olinda vai mal”). Miró da Muribeca, frequentador do recital também, tem um poema que reflete bem esta materialidade referencial da cidade:

Sem chance

Tem horas que você olha em volta da
janela de um ônibus,
Os outdoors te olhando,
As mulheres sem juízo nas calçadas de
restos de feira.
Mastigando pimentão podre
Um vermelho rasgando o céu da cidade de
Recife, um pouco antes das seis da tarde.
Lotadas loterias e padarias.
Deus foi perfeito em não deixar nenhuma
chance pro homem.
Seja no Restauração ou no Santa Joana.
(Miró, 2006, p. 21)

O verso final só faz sentido para quem conhece Recife. São dois hospitais, um de cada lado da mesma rua. O Hospital da Restauração é o maior dos públicos, e precário. O Santa Joana está entre os mais caros de Recife e tem até heliponto. A referência concreta à cidade e ao seu cotidiano é uma marca desta corporalidade. Dessa forma, os poetas usam a cidade como um repertório comum – tanto geográfico, quanto cultural e social.

Além da sociocrítica desse protagonista descrito nos poemas dos autores que o frequentavam, o movimento mesmo se deslocava pela cidade. O Eu, Poeta Errante, desde seu nome,era itinerante, trazendo outra noção de territorialidade. A movimentação do sarau diz muito – realizado em casas e bares de Olinda, mas não restritivamente – pelo contrário, com abertura a visitas em outros lugares. Era uma encruzilhada ambulante, esticando a compreensão que comentamos anteriormente. Ressacralizando o chão de cada lugar, com poesia e cultura. Assim, tinha funções pedagógicas, terapêuticas, recreativas e políticas.

Nesse sentido, por fim, é ainda interessante observar que um sarau geralmente não existe sozinho. Existem outros lugares onde os criadores se encontram. Dessa forma, em função dos percursos dos poetas e do encontro em lugares diferentes dos mesmos criadores, se constrói um repertório específico dos grupos. Onde, por outro lado, o recital se destaca por alguma especificidade relacionada à cidade e à cultura do lugar, assim como o próprio criador. O olhar deste que recita, mais sua experiência e seu estilo, também são relacionados a como a cidade é descrita, usufruída e enfrentada.

Cidades nas poesias

A movimentação semanal do Eu, Poeta Errante era um manifesto ambulante de uso da cidade: direito de existir transitando, circulando. Em vez da rigidez da defesa de um mesmo território, a valorização do movimento e da troca – para que todos os lugares sejam de todos. Como muitos dos outros saraus, o trauma da exclusão social, étnica, econômica é um dos motores da apropriação da cidade. E é necessário fazer a informação circular, com qualidade, entre as pessoas, e mantê-las em contato. Assim, o evento funciona também como terapia coletiva e manifesto político, com desdobramentos no local e na cultura do local. Além de servir de “revitalização” para os participantes – servindo de lugar de socialização e articulação.

Quando observamos os moldes em que o movimento criado por França se configurou, é possível enxergar traços da ascendência africana. Leda Maria Martins descreve a maneira como algumas culturas afro-descendentes compreendem a arte:

Pela performance, o negro apropria-se espacialmente de territórios geográficos simbólicos, semantizando a cartografia brasileira com os significantes estéticos, religiosos, expressivos, filosóficos e cognitivos africanos. […] Na enunciação performática, em sua moldura cênica, o narrado transmuta-se no dramatizado e o tema do deslocamento mascara-se em várias faces: a travessia da África às Américas, a substituição da morte (escravidão, silêncio, imobilidade) pela vida (liberdade, resistência, voz e movimento) (Martins, 2000, p. 77-78).

“Liberdade, resistência, voz e movimento”. Gerando e difundindo experiências e discursos que se contrapõem à exploração do espaço urbano em favor dos interesses das classes dominantes (que são, estatisticamente, etnias dominantes). Intervenções urbanas de baixo impacto e alta capacidade de troca existencial, todas as semanas.

Sua posição contra o meramente comercial, sua cosmovisão dos processos poéticos e literários, refletiram na expressão completa do evento. Poesia tridimensional, inflamada de revolta e força. Com sede de desmontar o maquinário perverso que sustenta cada privilégio. Concordando com Muniz Sodré, partindo da materialidade da história real, porque:

O euroculturalismo e a educação escolar voltam as costas a tal realidade [a da maioria] instalada na paisagem circundante, não por falta de tematização do problema, mas pelas próprias concepções que lhes servem de fundamento e pelos lugares discriminatórios que ocupam no modo de organização social. […] É forçoso, pois, levar em conta que se exasperam progressivamente as diferenças de modo de existência entre as zonas de habitat no interior da metrópole. A homogeneização operada pelos meios de comunicação e por outros equipamentos urbanos desconhece os focos catastróficos da pobreza ou de sua obscena contigüidade com as zonas abastadas. A fricção social entre incluídos e excluídos (a novíssima face da luta de classes) assume foros violentos, variando de intensidade segundo a diversidade dos territórios (Cabral, 1996, p. 88-89).

Colocar o dedo nas feridas para apontar essas contradições foi um dos papéis que França procurou exercer, através de sua poesia. Ajudando no trabalho de desconstrução da ideologia que mascara, confunde e mantém cada específica exploração. Fazendo o que podia para acelerar o processo de que seu poema, que encerra esse percurso, fala:

Aumenta aos poucos
O grupo que está à porta
As mãos antes vigorosas
No trabalho ou na prece
Agora se fecham em punhos
Feito flor que recrudesce
ao botão
Murmurejam pragas
 Entre as orações
  E assim retiram
   um a um
Os tijolos do edifício
(França, 1998, s/n).

Conclusão

É necessário ampliar a interpretação “literária” do fenômeno da poesia performativa. Estes poetas falam a partir de um lugar específico que importa na compreensão do discurso. E transformam a sua cidade em linguagem, adicionando relevância maior ao contexto local da comunicação poética, a ponto de se pedir traduções aqui e ali para quem não é do lugar (como com o poema de Miró, “Sem chance”). Por fim, fazem da fala uma morada e um veículo, por onde convivem e sustentam os movimentos sociais e culturais de que fazem parte. A poesia falada nesses eventos têm sutilezas que a observação crítica grafocêntrica tem muita dificuldade em compreender.

Essa juntada de observações é uma renovada tentativa de aproximação ao tema, buscando partir de uma perspectiva mais sensível ao que essa poesia possui de mais especial e específico. Surgiu da impressão de que mesmo os estudos literários que aceitam a performatividade da poesia e sua corporalidade ainda partem de pressupostos característicos da cultura tipográfica.

Mesmo Zumthor, quando fala de performance, pensa a partir da relação um a um, ou seja, um emissor e um receptor. Esse modelo um a um é o modelo do livro. Quando observamos a descrição que deu à performance, em Introdução à poesia oral, fica clara tal conformação:

A performance é a ação complexa pela qual uma mensagem poética é simultaneamente, aqui e agora, transmitida e percebida. Locutor, destinatário, circunstâncias (quer o texto, por outra via, com a ajuda de meios linguísticos, as represente ou não) se encontram concretamente confrontados, indiscutíveis (Zumthor, 2010 p. 31).

Um recital de poesia nunca acontece em dupla, mas em três ou bem mais participantes. E escutar e assistir ao poema apresentado junto com outras pessoas, faz a mensagem ter outras conotações. A troca de poesia falada entre pessoas pode ter muitos formatos, mas em todos eles o lugar em que acontece o evento e a maneira como os participantes se organizam e interagem são de fundamental importância. Tão importantes que fundam poéticas próprias desses encontros. Poéticas que demandam novas abordagens da crítica, para que sejam mais bem compreendidas.


* André Telles do Rosário é pesquisador de Programa Avançado de Cultura Contemporânea, onde realiza estudos sobre o impacto dos novos meios eletrônicos na performance poética contemporânea, sob a supervisão de Heloísa Buarque de Hollanda, com financiamento do CNPq.

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Tempo de leitura estimado: 33 minutos

“Nada indicaria que eu fosse ter alguma ligação com cultura”: entrevista com Alessandro Buzo

Entrevistadores: Alexandre Graça Faria*, Érica Peçanha do Nascimento**, Fernanda Pires Alvarenga Fernandes***, Ricardo Ibrhaim Matos Domingos**** e Waldilene Silva Miranda*****.
Introdução: Fernanda Pires Alvarenga Fernandes***

Figura 1: Alessandro Buzo (foto: Marilda Borges)
Figura 1: Alessandro Buzo (foto: Marilda Borges)

Escritor, ativista social, colunista, repórter e cineasta, o polivalente Alessandro Buzo recebeu um grupo de pesquisadores de literatura[1] em sua livraria Suburbano Convicto, no bairro do Bixiga, em São Paulo. Era outubro de 2011 e a Cooperifa celebrava uma década de existência, o que motivou o grupo a sair da Universidade Federal de Juiz de Fora e ir conhecer presencialmente alguns dos autores que haviam despontado na cena da Literatura Periférica, como Buzo. Daquele encontro, surgiu esta entrevista, da qual participou a anfitriã dos mineiros na capital paulista, Érica Peçanha.

Buzo lançou seu primeiro livro em 2000 com o nome O trem: baseado em fatos reais. Cinco anos depois, acrescentou mais dados à história e publicou O trem: contestando a versão oficial. Na entrevista, ele conta como a literatura entrou em sua vida e avalia a formação do cenário em torno da Literatura Marginal. Nosso entrevistado também é autor de Suburbano convicto: o cotidiano do Itaim Paulista e Guerreira, entre outros livros, dirigiu o filme Profissão MC, de 2006, organiza a coletânea literária Pelas periferias do Brasil e escreve para jornais e revistas. Na TV, Buzo fez parte do programa Manos e minas da TV Cultura, onde apresentava o quadro “Buzão” e, desde outubro de 2011, apresenta o quadro “SP Cultura”, às sextas-feiras, no telejornal SPTV 1ª edição, da Rede Globo.

Como se deu o seu envolvimento com a literatura?

Alessandro Buzo – Foi, podemos dizer, por acaso. Por acaso eu escrever. Eu ler foi por conta da minha mãe, porque mesmo tendo pouco recurso financeiro – era dona de casa até meu pai ir embora e, com dois filhos pequenos, eu com 12 anos, meu irmão com 8 ou 9 – ela teve que se virar. Depois eu comecei a trabalhar muito cedo aqui no Centro de São Paulo, porque meu pai deixou a gente na mão financeiramente. Então minha mãe passou a ser empregada doméstica e depois funcionária pública, trabalhando em hospital, em creche. E a gente morava no Itaim Paulista, morei a vida inteira lá. São 38 km aqui do Centro, no último bairro da Zona Leste de São Paulo, que já é gigante. E nada indicaria que eu fosse ter alguma ligação com cultura, diretamente como é hoje. Nada levava a isso, mas a literatura chegou. Minha mãe comprava revista da Turma da Mônica e me dava; pro meu irmão, uns livros. Tinha O menino maluquinho, entre outros. Então eu conhecia os livros. Aí veio outra fase, a da adolescência. Mesmo nunca tendo feito nada de errado, no sentido de cometer um delito, um crime, eu nunca roubei, nunca vendi droga, mas usei muita droga. E não comecei, como diz a lenda, com a maconha, para depois usar outras drogas mais pesadas. Eu já comecei direto na cocaína, e fui usuário por alguns anos. Por alguns anos eu fui um usuário controlado e, depois, comecei a usar droga todo dia. Mesmo trabalhando. E parei por conta própria, por vontade própria. Parei porque a responsabilidade de um casamento e a vontade que eu tinha de viver uma vida tranquila dentro desse casamento falou mais alto. Casei em 1998 e lancei meu primeiro livro em 2000, e, em seguida, o que fortaleceu isso foi o hip hop e a literatura que surgiu. Eu já estava há dois, três anos sem usar drogas, então…, fez com que percebesse que eu realmente não ia usar drogas nunca mais, foi o meu envolvimento com a cultura.

Figura 2: Alessandro Buzo concede entrevista a um grupo de pesquisadores de literatura na livraria
Figura 2: Alessandro Buzo concede entrevista a um grupo de pesquisadores de literatura na livraria Suburbano Convicto (foto: Marilda Borges)

E nesse período das drogas você parou de ler?

Alessandro Buzo – Eu voltei a ler [ainda] usuário de drogas. Trabalhava num escritório na Praça da Sé e no meio de um monte de senhorinha de idade já. Eu era o doidão lá no meio. Logo no horário do almoço, chegava um cara que ia numa sala, que era de um amigo meu, e a gente ia lá e já no meio-dia a gente começava a vida louca, e eu voltava para o escritório e ficava lá no meio de duas senhoras, parecendo um doido. E um dia, nesse escritório, entrou uma mulher do Círculo do Livro. Quem é mais velho conhece. Eram uns livros de capa dura, que você encomendava, pagava, naquela época com boleto bancário, e o livro chegava pelo correio. E aí ela chegou no escritório, explicou, mas ninguém comprou nenhum livro. Falou que ia deixar o catálogo, caso alguém mudasse de ideia e ia saindo quando eu vi um livro que me identifiquei, assim, pelo título, que eu desconhecia. Na época nunca tinha ouvido falar. É o Eu, Christiane F, 13 anos, drogada, prostituída... Achei o título interessante e encomendei o livro. Falei: “Volta aqui, eu quero encomendar um livro”. Achei o livro muito louco. Depois descobri que tinha um filme, acabei assistindo ao filme também. Tenho o livro guardado até hoje, tanto que esse que é um dos livros que eu tenho de cabeceira. E aí eu falei: “Caramba, o livro pode ser muito louco, pode falar de uma história doideira”. Mesmo a história sendo na Alemanha, em Berlim, e a droga sendo heroína, era parecida com a minha história doida. Só mudava o país e a droga, mas era uma história muito louca. E eu vi que um livro poderia servir para falar de qualquer coisa. E continuei comprando livro no Círculo do Livro. Comecei a ver que a gente poderia falar de tudo. Mas a escrita veio um pouco depois. Casei e comecei a frequentar um sebo que tem até hoje no Itaim Paulista. Já era de um amigo meu e um outro, mais chegado, virou sócio. O meu amigo pegava e dizia: “Poxa, esse livro aqui é muito louco”. Eu falava: “Poxa, legal”. Olhava na primeira página, onde ele escrevia o preço a lápis, e falava: “Poxa, cara, mas eu não tenho dinheiro agora”. E ele falava: “Não. Pega emprestado, depois você me devolve”. E comecei a ler um monte de livro nesse “pega emprestado, depois você me devolve”.

E como você começou a escrever?

Alessandro Buzo – Um dia esse cara chegou e falou assim: “Vou fazer um fanzine. Sabe o que é um fanzine?”. Aí eu falei: “Não.” E ele: “Pô, é uma revistinha de Xerox. A gente coloca uns textos, umas paradas, tira Xerox e distribui pra galera aqui na livraria. Quer escrever um texto?”. Falei: “Pô, mas eu não escrevo, cara.” E ele: “Como não escreve? Você lê pra caramba, escreve um texto, fala aqui do bairro, fala alguma coisa”. Aí fiz um texto qualquer, uma cronicazinha e tal. Não sei se foi junto ou um pouquinho depois, eu comecei a mandar umas cartas para um jornal de esportes, porque eu era muito fanático por futebol. Hoje eu ainda gosto, mas o fanatismo era maior naquela época. Era a Gazeta Esportiva, depois veio o Lance! E o jornal parou, hoje é um site só. Comecei a mandar carta para “Voz da Arquibancada”, que era uma coluna de leitores. E puxava a brasa pra minha sardinha. Falava do meu time, era assunto supérfluo. Aí puxava sardinha, tirava um barato de outra torcida e tal. E as cartas começaram a ser publicadas, lembro que saiu uma grandona. E aí eu estava no trem, (eu pegava trem para ir trabalhar, que é o jeito mais rápido de transcorrer 38km) e chegou um cara pra mim: “Pô, eu acho da hora aqueles negócios que você escreve na Gazeta Esportiva”. Cara, eu pensei que só eu lia a Gazeta Esportiva no Itaim Paulista. Não sabia que outras pessoas liam. Nunca via as pessoas com jornal no trem. Eu sempre estava com jornal. Tenho hábito de ler jornal até hoje. Se eu ficar 24 horas na internet, leio jornal. Esse meu amigo lia também o jornal e sabia que Alessandro Buzo era eu. Acho que eu assinava Alessandro Buzo de Souza, que é meu nome completo. Ele falou que tinha ficado muito interessado e eu respondi: “Poxa, legal, as pessoas lerem”. E comecei a escrever no fanzine, e essas cartas eram publicadas, e um jornal do bairro falou: “Meu, o Jonilson me mostrou os baratos que você escreve lá na Gazeta Esportiva, por que você não faz uma coluna de futebol de várzea no jornal?”. Era um jornal de bairro, que circulava de graça. E aí comecei a fazer matérias com os times antigos do Itaim Paulista, que tinham mais de 20 anos; hoje eles têm mais de 30. Comecei a fazer matéria com esses times e saía meia página. E fui indo. As pessoas começaram a comentar das coisas que eu escrevia. Um dia, eu estava muito incomodado com o trem, que estava muito ruim e a gente estava sofrendo feito um diabo. E aí resolvi escrever um texto denunciando a situação, porque sempre saía na mídia quando alguém depredava o trem, quando quebravam, queimavam. Uma vez incendiaram vários trens e saiu na mídia que “Vândalos destroem os trens”. Nunca saiu em nenhuma dessas matérias o que aconteceu antes, o tanto de porrada que o povo tomou antes de se rebelar e fazer isso. Não que eu ache certo queimar o trem, mas no dia em que queimaram os trens, a gente estava tentando desde 17h30 pegar o trem para ir embora e eram 22h e a gente estava no escuro, entre uma estação e outra. Foi nessa hora que queimaram os trens. Virou um caos. Eu lembrava de protestos que não tinham resolvido e resolvi escrever um texto. Pensei: “Pô, quem sabe a imprensa não vê o meu texto e publica e, sei lá, alguém, alguma autoridade vê o meu texto”. Fiz um texto chamado “Ferrovia nua e crua” e digitei no meu trabalho. Não tinha computador naquela época. Digitei e distribuí no próprio trem. Para cerca de 50 pessoas. E ninguém comentou nada no dia em que eu distribuí. Foi todo mundo embora, as pessoas guardaram o texto, outras até jogaram fora. No dia seguinte, quem não se lembrava do texto era eu, porque já tinha passado mais um dia de trabalho e tal. Uma pessoa chegou pra mim e falou: “Cara, eu me senti representado pelo que você escreveu naquele texto”. Achei legal o cara falar, mas quando eu cheguei mais próximo, vi que se reunia a maior galerona que ficava esperando juntar mais gente para poder ir todo mundo junto, e todos estavam elogiando o texto. Fiquei muito satisfeito com a repercussão. Achei que as pessoas compreenderam. Camelôs – tinha muito camelô naquele tempo – vieram me abraçar: “Poxa, nunca ninguém falou nada a nosso favor”. Os dias continuaram normais, de trabalho, eu indo e voltando de trem, e as pessoas começaram a dizer: “Por que você não escreve um livro do trem?”. E foi assim que eu virei escritor. Escrevi o livro do trem, não tinha a mínima ideia de como publicar. Nessa época não existia sarau, não existia nenhuma referência. O Ferréz era uma referência distante. Porque eu estava no Itaim e ele no Capão. Do Itaim para o Capão são mais de 50km. Mas aí eu acabei conhecendo o Ferréz, depois que o meu livro já tinha saído. Lancei independente. Se eu for contar a dificuldade que foi para lançar o livro, teria que ter muito mais tempo. Mas, assim, foi a maior luta. Descobri que só dava pra lançar independente, que ninguém lançava livro nenhum de ninguém. Fiquei frustrado, pois não ia ter dinheiro nunca para lançar 500 livros, que era o mínimo para os outros lançarem. Não ia ter essa grana nunca porque eu ganhava mal, estava endividado e enrolado. E aí eu acabei tendo o apoio de uma empresa em que eu trabalhava: dei 1/3 de entrada e fiz o livro. Como eu não tinha experiência de lançar livro, fiz na véspera do Natal, mas foi uma galera. E depois que vendi para os parentes, os amigos e os vizinhos, sobrou uns 400 e tantos lá em casa. E, fazer o que com esses livros, né, mano? Aprender sozinho a ir nos lugares. E aí eu comecei a ir nos shows de Rap, para divulgar, em todo lugar que pintava para ir. Os saraus ainda não existiam. A Cooperifa tem dez anos, estava surgindo. Os outros também não existiam. Não tinha nenhuma cena literária que tem hoje. Hoje o cara lança um livro, chega aqui e diz: “Buzo, tem como fazer meu lançamento?” Pô, tem! O cara já arruma livraria no Centro pra fazer um lançamento. Naquele tempo era surreal imaginar uma livraria com esse monte de livro da periferia. Então, nos últimos dez anos, surgiu um exército de pessoas escrevendo.

Figura 3: Alessandro Buzo em sua livraria Suburbano Convicto (foto: Marilda Borges)
Figura 3: Alessandro Buzo em sua livraria Suburbano Convicto (foto: Marilda Borges)

Os novos escritores estão conseguindo tirar os escritos da gaveta?

Alessandro Buzo – Todo dia surge um cara novo. Até ontem eu nunca tinha ouvido falar do Fábio Mandingo. Agora ele veio lançar o livro dele aqui. O livro é um barato, um tesão de ler, Salvador Negro Rancor. É muita luta, sabe? Não é a Bahia da Ivete Sangalo. É a Bahia de verdade. Então, quer dizer, está surgindo gente de todos os lados. Por muito tempo foi apenas São Paulo. Todo mundo que lançava era de São Paulo. E eu ia nos outros estados – já fui em dez estados fazer debates, palestras ou fazer matéria para a revista Rap Brasil, que eu era repórter – e em todo lugar que eu ia, alguém falava: “Olha, eu também escrevo, eu tenho uns textos, eu tenho uns contos, umas poesias”. Poxa, por que ninguém publica, né, cara? Um dia eu fui numa reunião na Ação Educativa que era para anunciar que eles iam apoiar alguns livros. Sugeri fazer uma coletânea com autores de vários estados. E surgiu Pelas periferias do Brasil, com autores de sete estados na sua 1ª edição. A Ação Educativa continuou apoiando o custo da gráfica na 2ª edição e, depois, arrumou outro patrocinador, que acabou ficando com a gente, que é o Centro Cultural da Espanha. E o livro é anual, não repete autores de um ano para o outro. Tem algumas coletâneas literárias que eu gosto muito, mas que repetem muito os autores. Prefiro não citar nomes, mas não acho muito legal. Desde o começo a gente decidiu que não podia repetir os autores. Em cinco volumes saíram 80 autores, né? É muita gente. Todos são escritores? Não. Tem gente que publicou o único texto que escreveu, ou um que estava na gaveta. Mas o cara teve o prazer de publicar alguma coisa. A gente não espera que todos saiam da coletânea e virem escritores, mas, cada vez mais pessoas que estão na coletânea acabam lançando seu primeiro livro. E assim, a cena é legal? A cena tem prestígio? Ter ficado desse tamanho, ter trazido vocês a São Paulo para ir na mostra é muito louco. Porque, vamos supor que só tivesse eu, o Ferréz, o Sérgio Vaz e o Sacolinha, quatro pessoas, nós iríamos ser considerados ETs. “Olha, surgiram uns ETs”. Mas não. Tem um monte de gente escrevendo, porque esse negócio que o povo não gosta de livro, que o povo não gosta de ler… Distribui livro de graça para ver se o povo não quer? O povo quer, cara, só que assim, a gente vê aqui aquela prateleira ali, média de R$ 15, R$ 20, R$ 25 a maioria dos livros. Tem até de R$ 30. Cara! Você vai na livraria Cultura e o livro mais barato custa R$ 40, tá ligado? Você cata qualquer livro lá e é 45, 50 paus. As editoras falam para o povo: “Não leia! Deixa para ler quem tem dinheiro para ler!”. Então o povão não lê, mano, porque os caras não têm 40 conto pra comprar um livro. Meu! A gente está publicando alguns livros pelo selo da Suburbano [Convicto], por enquanto são livros meus, o Buzo 10, o infantil, Pelas periferias… A gente quer vender o livro o mais barato que a gente conseguir, mano, que se dane se um dia a gente incomodar qualquer pessoa com isso, entendeu? O negócio é as pessoas lerem, cara! Sabe!? Quando vai fazer um evento, a gente já leva o Pelas periferias e meto a R$ 10, então, quer dizer, você tirou o fator caro, ficou possível ler, e o cara vai ler se quiser. Aí já é um problema dele, também ninguém vai pegar ninguém pela mão para sair lendo.

Tirar da gaveta tem sido um passo relativamente mais acessível, mas conquistar o público leitor parece ser mais complicado. Além de baratear o livro, como você se aproxima do seu público? Que estratégias estão envolvidas na criação de um espaço como a Suburbano Convicto?

Alessandro Buzo – A livraria surgiu há quatro anos, ela era bem pequenininha, uma garaginha de uma casa lá no Itaim Paulista. Um dia eu estava passando e tinha uma placa de aluga-se, era caminho da minha casa, e eu bati palma e perguntei para a mulher quanto era o aluguel. Ela falou que era R$ 150. Achei muito barato. Daí ela falou: “Olha, tem a água que é ligada como comércio que é mais R$ 50. Mesmo se você usar a água muito pouco vem R$ 50”. Eu tinha uns livros meus amontoados lá em casa, doido para expor eles ali. E tinha outras coisas, por exemplo: aqui a gente vende roupa, eu era patrocinado por uma marca, ainda sou, e tinha muita roupa dela nova, que nunca tinha usado. Daí falei: “Pô, podia montar uma lojinha, coloco algumas roupas”. Porque eram umas roupas da moda, da conduta que o pessoal do hip hop gostava de usar. E pensei: “Ponho umas roupas que eu tenho novas, ponho à venda, ponho os livros que tenho meus. Vou montar uma livrariazinha ali e tal e aí vai ser nosso escritório”. O motivo de querer ter o meu escritório é porque eu morava numa casa de dois cômodos, que era muito apertada. Meu filho cresceu e eu não podia mais morar nessa casa, não estava dando mais. Estava dando muita entrevista e com muita reportagem na televisão. Eles queriam ir no Itaim Paulista, porque eu era um escritor da periferia. Ficava incomodado quando eles iam na minha casa e ela virava o centro da matéria, e não o meu trabalho. Começavam a falar do córrego que estava passando atrás. O cara começava a falar do grafite que tinha na parede da cozinha, que era a sala, a cozinha, o escritório, era tudo. E, assim, eu estava achando chato levar as pessoas na minha casa. Aí montei a loja para ser meu escritório. Quando alguém quisesse me entrevistar, ia na livraria. E a livraria ficou dando prejuízo por três anos. Eu já estava começando a trabalhar na TV Cultura e tirava um pouco do que ganhava para bancar o prejuízo de R$ 300 a R$ 400 por mês. Achava que ela um dia ia decolar, só que essa decolagem nunca veio, porque ia muita gente lá, só que as pessoas não compravam, meu! As pessoas não tinham dinheiro no bolso sobrando. Era mais as pessoas do hip hop. Tinha gente que frequentava a livraria, mas nunca comprou nada e eu vou falar o que pro cara? “Ah, não vem aqui?”. Sabe, não dá. O cara era mó gente boa, batíamos altos papos. Ele ia no bar comprar cerveja para nós, mas não comprava um livro. Fazer o quê? É lógico que vendia alguma coisa, mas não o suficiente para pagar o aluguel e as outras despesas. Antes de falir eu montei a loja dois, aí minha mulher falou: “Meu! Uma loja não está dando, vai montar duas e uma perto da outra?”. Eu disse: “Não, mas é outro público”, porque tinha um cabeleireiro e eu pensei que o pessoal que frequentava o lugar geralmente tinha uma graninha a mais. Fiz a inauguração, que acabou virando um churrasco. O cara tinha mais uma sala mais para o fundo e, nas primeiras duas semanas de trampo, de repente ele fechou tudo. Mas um dia a gente começou a tomar uma cervejinha, eu fui lá no fundo e descobri que o cara tinha montado um bagulho de maquininha de caça-níquel. Falei: “Puta cara! Como é que você botou o caça-níquel aqui sem me falar? Tá maluco, meu? Vem aqui uma porra de uma polícia, estoura isso aqui, vem com o Datena. Os cara vão me fritar, mano, perco meu emprego lá na TV Cultura envolvido com essa merda aqui que eu nem sabia que você montou”. Aí cheguei na minha mulher e falei: “Ó mano! Vou fechar a loja lá”. Olha que tinha duas semanas. Eu tinha gastado pra fazer a festa de inauguração, pra fazer um grafite gigante na parede e o primeiro aluguel, uns R$ 700. Aí eu cheguei na minha mulher e falei: “Mano, vamos fechar, porque se o bagulho cai, nós cai junto e não temos grana pra repor”. Ela falou: “Sabe de uma coisa? Vamos fechar as duas”. Eu trabalhava aqui em cima [no prédio da livraria no Bixiga], no terceiro andar, que é a produtora que fazia o meu quadro na TV Cultura, a DGT Filmes. Quando saí do meu último emprego, comecei a fazer um frila aqui, de 14h a 19h. Eles me davam uma merreca por semana, pagavam minha condução e eu vinha mais cedo para o trampo. Só precisava estar aqui às duas horas, mas vinha mais cedo para o Centro, fazia outras coisas e depois vinha para cá. E quando eu ia fechar as duas lojas do Itaim, surgiu uma sala aqui no primeiro andar. A sala era menor que essa, e falei: “Pô, mano, daria uma livraria”. E tinha uns carinha aqui nesta sala que não estavam conseguindo pagar o aluguel. Eles ficaram de dar a resposta se desciam. Se ficassem aqui, eu iria alugar a sala de baixo, e era a resposta que estava esperando, porque aqui em cima era caro demais. Os caras resolveram descer, e a única sala que ficou vazia foi esta. Aí o Toni falou: “Buzo, já que você quer montar a parada, monta na grande mesmo! A gente faz um valor menor do que o normal, e aí depois se você estiver estabilizado a gente aumenta um pouco”. Combinei um valor com ele que era alto para mim, mas: vamos tentar? Vamos tentar! Foi no carnaval de 2010. E como que eu vou trazer as pessoas aqui para a livraria se ela não é na porta da rua? Sabe? É difícil, poxa. Enxergar eles não vão. O que eu comecei a fazer? Comecei a fazer evento aqui. O evento é por quê? A livraria sempre teve isso, né? Lá no Itaim Paulista a gente fazia o Encontro com o autor: a Érica [Peçanha], o Ferréz, o Sacolinha, todo mundo já foi lá como convidado. E aí eu comecei a fazer o Encontro com o autor aqui, que depois virou Sarau Suburbano, porque no final a gente sempre declamava as poesias. E aí o pessoal falou: “Mas por que você não faz um sarau?” Eu não queria fazer, porque eu ia em outro sarau e já estava contemplado. Ir nos outros saraus já estava de bom tamanho pra mim. Ter um sarau, eu imaginava como um trabalho a mais, mas acabei fazendo o Sarau Suburbano. Esses eventos, lançamentos de livros, CDs, outros saraus e debates que a gente faz é que trazem as pessoas pela primeira vez. Elas muitas vezes conhecem a livraria por causa do Sarau Suburbano e depois voltam pelo conteúdo da loja. Nesse ritmo, a gente graças a Deus tem conseguido se manter. Aqui continua sendo meu escritório, então durante a semana o movimento é menor, aparece uma pessoa ou outra. Tem o pessoal do prédio que frequenta por causa da bombonière para tomar um refrigerante, comer um chocolate, e fica um movimento mais tranquilo do que nos dias de evento. Em dias de evento lota! O cara chega aqui e fala: “Puta! O Buzo estourou, está vendendo horrores!”. Mas pô, é nos dias que tem evento. No dia a dia as pessoas vêm esporadicamente. Tem gente que vem aqui e compra um livro, tem gente que vem aqui e compra uma camiseta e tem gente que vem aqui e faz compra grande. A Ação Educativa compra livros em quantidade para os educadores, para usar na Fundação Casa. Hoje a livraria está empatando. Começou a empatar. Se eu dependesse da livraria para sobreviver, já teria falido lá no Itaim Paulista, né? Mas aqui no Centro eu já teria falido também. É muito triste saber que dificilmente outra livraria com esse perfil vai sobreviver. É antes de tudo uma guerrilha para manter isso aqui. E aí virou uma questão de honra, a gente não fecha isso aqui nem se… pode esquecer. A gente vai ficar aqui.

Figura 4: Livraria Suburbano Convicto (foto: Marilda Borges)
Figura 4: Livraria Suburbano Convicto (foto: Marilda Borges)

Você não falou em movimento da Literatura Marginal. Do jeito que você conta a história, que vai surgindo um aqui e outro ali, não é exatamente um movimento, mas vem um de cada lado e compõe uma cena literária da periferia, que é a grande novidade.

Alessandro Buzo – Não era o que os outros esperavam.

Isso diferencia uma geração que passa a se identificar com a literatura, a querer se tornar escritor? Para seus pais ou avós era muito mais inacessível?

Alessandro Buzo – Primeiro fator é: há dez anos começaram a surgir os livros pioneiros, que foram realmente de pessoas que, como eu, bateram em porta, derrubaram porta para fazer seus primeiros livros. E, depois, começaram a surgir outros. Eu acho que sempre… não diria sempre, mas há muito tempo tem pessoas que escrevem. Essas pessoas só tinham os seus textos engavetados. As pessoas escreviam e não mostravam para ninguém. Então, por que nos últimos dez anos mudou? Porque começou a surgir a internet. A internet começou a ficar viável, então o cara começou a escrever no blog, o cara começou a publicar no site, os textos começaram a circular. Já existia uma cena que circulava, antes da internet. Tinham os fanzines. Eu fazia fanzine, Sacolinha fazia fanzine, a Elizandra [Souza] do livro Punga fazia fanzine, o Dimenor (que é autor do Pelas periferias do Brasil vol. 5) fazia fanzine, um monte de gente fazia fanzine. O Oliveira, de Guaratinguetá, que está no Volume 5, fazia fanzine. Ele veio aqui comprar 30 livros fora a cota que recebeu para o lançamento hoje lá em Guará. Existe uma cena, porque as pessoas viram que, primeiro, começaram a surgir os saraus e as pessoas poderiam falar, então pô: “As pessoas já vão saber o que eu escrevo”. Quando eles viram que as pessoas começaram a publicar, eles falaram: “Porra, é possível publicar?! E antes de ser possível publicar eu já posso publicar na internet, eu já posso fazer meus contos circularem”. Então um foi virando referência para o outro: “Pô, mano, o cara fez daquele jeito”. “O cara lançou com o dinheiro do próprio bolso”. “O outro fez um projeto para o Vaz e lançou vários livros”. “O outro é o Allan da Rosa, lançou vários livros”. Começaram a surgir os “Allan da Rosa” da vida, começaram a surgir os “Ferréz” da vida, que começaram a reproduzir, até eu, começando da periferia. Então, eu acho que antes da nossa geração já tinha um monte de gente que escrevia, acho que desde os anos 60/70 já tinha muita gente que escrevia. Era uma minoria? Era uma minoria! Hoje tem mais gente? Hoje tem mais gente porque existe toda essa cena, pô! O cara tem onde mostrar, o cara existe! Por exemplo, Manda busca, um livro do Luan [Luando], do Sarau do Binho; a história dele de vida e a trajetória dele… ele era mais um cara comum de periferia: um cara negro, pobre, com defeito na mão. Pô, cara! Tudo isso, sabe? Mas a sociedade recrimina tudo, preconceito racial e mais o preconceito dele ser deficiente. Era para ele ser um cara comum da periferia, só que a literatura trouxe outras coisas para ele. Ver o Luan declamando é a coisa mais linda do mundo, ele declama com a alma. E o Luan é uma peça de uma engrenagem. Essa engrenagem tem vários saraus, e tem o Sarau do Binho. O Luan é frequentador do Binho, mas vai a vários outros. Ou seja, os caras circulam, vira uma rede, sabe? Hoje você vê o cara! Você pode ver o Luan na Brasilândia, você pode ver o Luan aqui no Bixiga, você pode ver ele na casa dele, que é o Sarau do Binho. Daí, depois de tanto mostrar a cara e mostrar talento – tem várias pessoas que admiram ele, pois ele lançou o seu livro –, é meio que passar para um patamar seguinte, entendeu? Porque pô, poeta bom declamando em sarau tem um monte. O cara vai ser poeta de sarau, sabe? É maravilhoso! Ter sarau e ir lá declamar. Só que ao lançar um livro, ele passa a ser dos autores publicados. E por que o Luan virou escritor? Do mesmo jeito que eu. Pegando o trem lotado, ganhando pouco, usando droga. Não era para ter virado escritor. A gente é meio que defeito de fabricação, entendeu? Mas por que a gente começou a escrever? A maioria dos escritores periféricos? A gente usou um texto para fazer protesto, cara, porque tomava porrada de todo o lado.

Essa literatura me faz lembrar do caso do Ferréz, que foi processado por aquele conto que escreveu na Folha de São Paulo, sobre o assalto sofrido pelo Luciano Huck. Essa literatura pode ser fora da lei também. Ela pode interferir?

Alessandro Buzo – Ah sim! Pode ser fora da lei, pode ser marginal. Os nomes são muito contraditórios dentro dessa cena. É porque tem gente que não gosta do nome literatura marginal, o Sacolinha não gosta, o Sérgio Vaz não gosta e não usa. Outros chamam de literatura periférica, né? Outros chamam de divergente e tal, eu não me incomodo com nenhum dos nomes. Para mim, é marginal porque é marginal mesmo, porque a gente está à margem da sociedade; é periférico porque é periférico mesmo e divergente, qualquer outro nome que surgiu, nenhum deles me incomoda. Todos cabem na nossa literatura.

Literatura brasileira te incomoda?

Alessandro Buzo – Não, literatura brasileira é maravilhoso! Eu acho que o que a gente faz é só literatura. Pode chamar do que quiser, eu gosto de literatura marginal e uso, não tenho nenhum problema com isso.

Há influência do hip hop na sua produção literária?

Alessandro Buzo – Ah, tem total! Antes de começar a escrever, eu comecei a ouvir rap. E aí comecei a ouvir letra de rap e tal. Pô, os caras falavam as coisas que eu queria falar, sabe? As músicas! Tem um texto que chama “Facção Central, Papa, Bush…”. O Papa não era o Bento XVI… era o Bento XVI, né? Sei lá se era o Bento XVI ou era outra pessoa. O Papa veio noBrasil. O Bush, que era presidente dos Estados Unidos, veio no Brasil, muito próximo. E eu estava ouvindo um rap lá na livraria Suburbano de Itaim. Tava um frio! Imagina um dia frio. E eu ouvindo Facção Central e lendo, no jornal, a visita do Bush, o protesto que teve e tal. E comecei a lembrar, a música falava assim: “Hoje Deus anda de blindado, cercado e protegido por dez anjos armados”, queria dizer que Deus tinha que hoje andar com segurança. Aí eu pensei, poxa, se Deus precisa andar de segurança… e comecei a lembrar do Papa que andou no meio do povo num carro blindado e apareceu no mosteiro de São Bento, com uma tela blindada na frente dele. Se o Papa é o que mais se aproxima de Deus – pelo menos para quem acredita nisso –, então o Papa tem que andar blindado, né? Então era uma verdade o que eu estava ouvindo na música. Pensei, mano, mas o Bush, que era o diabo; Papa é Deus, Bush é o diabo. O Bush também tem que andar armado com segurança. Então falei assim: “Poxa, pelo menos no tratamento, aqui em São Paulo, Deus e o diabo têm o mesmo peso. Os dois têm que andar armados”. Daí saiu o texto que chamava “Facção Central, Papa, Bush…”. E comecei a usar várias vezes música de rap para influenciar um texto. E o livro dotremtambém teve uma influência da música do RZO, O trem. Coloquei a música no meu primeiro livro, sem pedir autorização para o grupo. Aí eu saí numa matéria na revista Rap Brasil, que depois virei repórter. Hoje conheço todo mundo, todos os grupos, e acho que me fiz conhecer por eles também. O livro Hip hop dentro do movimento só pode existir porque eu conheço essa gente. Entrevistei 70 pessoas do Brasil inteiro, entre artistas e militantes. Tem gente do Acre, da Bahia, do Rio de Janeiro, de São Paulo. É um livro de entrevistas e eu costuro por assuntos.

Como a relação com outros escritores altera a sua escrita?

Alessandro Buzo – Ah! Eu leio muito, né, cara? Li quarenta livros este ano. Então é lógico que, quanto mais você lê, mais te influencia. Alguns te influenciam mais diretamente e outros indiretamente.

Estou falando mais do movimento mesmo. Do Sérgio Vaz, do Ferréz. Se vocês realmente conversam sobre o tipo de escrita?

Alessandro Buzo – A gente tem um respeito mútuo, sabe? Uma admiração cada um pelo outro. Eu sou muito amigo de todos eles assim. Me dou bem com todo mundo. Sou um cara muito fácil de se relacionar e tal. Cada um tem sua particularidade. Sérgio Vaz fica mais lá no quilombo dele, sabe? Ele nunca frequentou aqui, por exemplo. A gente tem um distanciamento que às vezes é porque estou fazendo um milhão de coisas e ele está fazendo um milhão de coisas também. A gente está bem afastado por causa disso. Agora, com outros a gente acaba ficando mais próximo porque tem feito, ultimamente, juntos. O Ferréz veio aqui na livraria, fez leitura do livro dele que ainda nem foi publicado. O Sacolinha, uma vez ou outra. A gente se fala se precisar, se tiver alguma coisa para somar para o outro e tal, a gente se fala. A falta de proximidade… pô, eu passo um tempão sem ver o Sacolinha e sou super amigo dele. Mas, pô! O Sacolinha está lá em Suzano, sabe? Então, ele está fazendo o corre dele lá, o Sérgio Vaz está fazendo o dele, eu estou fazendo o meu, o Ferréz está fazendo o dele, o Allan da Rosa, que era muito presente no sarau, sumiu, foi resolver outras coisas. Mas a gente sabe o que o outro está fazendo pela internet. Existe o respeito mútuo e uma admiração mútua entre todos nós. Briga não tem, briga declarada com ninguém. Assim, o movimento é de conciliação e não de separação. Uma coisa que faz que o outro não acha legal, sabe? Isso é coisa da vida mesmo. Então, se falta um pouco de proximidade é porque também a gente está fazendo coisa demais. Eu mal dou conta da minha agenda. Ah, meu! A Mostra da Cooperifa vai ter um monte de coisa, mas eu não sei em que dia eu vou poder ir. Porque se eu olhar minha agenda, amanhã estou de folga, porque caiu uma gravação no dia e pode ser que tenha outra, mas, se eu folgar amanhã… faz mais de três semanas que eu não tiro um dia de folga, porque eu gravei para a TV nos últimos fins de semana. Eu mal consigo cumprir minha agenda que é coisa pra caramba, cara. Então pô, se amanhã eu conseguir ficar de folga, se não confirmar a gravação, eu poderia ir em algum lugar, mas não vou, porque eu preciso descansar, sabe? Então, assim, hoje está bacana? É legal? Está, mas é cansativo. Então, se existe algum distanciamento é porque todo mundo está trabalhando muito. É o momento de trabalhar mesmo.

Figura 5: Grupo de pesquisadores em literatura com o entrevistado Alessandro Buzo (foto: Marilda Borges)
Figura 5: Grupo de pesquisadores em literatura com o entrevistado Alessandro Buzo (foto: Marilda Borges)

* Alexandre Graça Faria é professor de Literatura Brasileira na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e pesquisador do CNPq.

** Érica Peçanha é doutora em Antropologia Social e pós-doutoranda em Educação pela USP. Autora de Vozes marginais na literatura e diversos artigos sobre produção cultural da periferia paulistana.

*** Fernanda Pires Alvarenga Fernandes é doutoranda em Estudos Literários na UFJF e autora do livro Ponto de partida, um país em cena: identidade e cultura contemporânea no teatro musical.

**** Ricardo Ibrhaim Matos Domingos é doutorando em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e Mestre em Estudos Literários pela UFJF.

***** Waldilene Silva Miranda é doutoranda em Estudos Literários pela UFJF. É autora do artigo Intelectuais “da periferia”: uma análise das performances de Ferréz e desenvolve estudos relacionados à cultura brasileira contemporânea.

Nota

[1] Colaboraram na transcrição: Bruna Garcia, Márjori Mendes e Monique Ivelise.

Tempo de leitura estimado: 2 minutos

Apresentação | André Villas-Boas

Esta edição da Z Cultural é dedicada ao design visual – expressão mais abrangente do que design gráfico por alcançar também projetos de design que vão além da veiculação via impressão, como as mídias digitais e audiovisuais. O critério para a seleção dos textos foi o de abarcar alguns dos mais frequentes campos de estudo da jovem produção acadêmica na área – jovem porque, embora a graduação em design já tenha alcançado os 50 anos, sua produção acadêmica só tomou fôlego em meados dos anos 1990.

Assim, estão aqui presentes estudos e narrativas que focalizam a tipografia, o design gráfico, o design digital e a teoria do design. Sendo o campo assumidamente interdisciplinar, estão presentes nos artigos categorias e metodologias originárias de outras áreas, como a sociologia, a filosofia, a literatura, a pedagogia, a ergonomia, a informática. E, para não deixar de lado interfaces que sempre rodeiam a nós, designers, três dos oito artigos se debruçam sobre objetos de estudo que pertencem a outros campos de atividade: o ensino, a editoração e a ilustração.

André Villas-Boas (Organizador)

Tempo de leitura estimado: 34 minutos

O design como “máquina de guerra”: reconfigurando a téchne e a ars | Alexandre Schiavoni*

O design neste artigo será entendido como “máquina de guerra”, no sentido de atividade projetual que possui uma dimensão estratégico-política. Essas ideias fortes estiveram presentes nas categorias de téchné e ars utilizadas da Antiguidade ao Medievo. Este texto é também uma reflexão que defende a hipótese de que na ideia contemporânea de design atuam três registros distintos: se, em um primeiro momento, ele é a atualização dos conceitos de téchne e ars; em outro, o design não é redutível e nem tampouco sinônimo das noções modernas de arte, técnica, tecnologia e ciência, ainda que estas estejam contidas no próprio conceito de design; em um terceiro, o design se apresenta como campo profissional aberto e móvel para onde convergem distintos saberes, ou seja, design é devir.

A relação do design com a arte, a técnica e a tecnologia tem sido bastante problematizada[1]. Certamente não são discussões menores, uma vez que há um consenso sobre a importância que esses elementos têm no fazer projetual. Contudo, há que se chamar a atenção para o fato de que há outros campos de produção de saber que também realizam interfaces complexas, difíceis e/ou interessantes com o design.

Pelo fato de se encontrar no entroncamento para onde convergem diversos saberes, o design se apresenta como um campo interdisciplinar por excelência (Villas-Boas, 2009). Esta é, sem dúvida, sua marca fundadora. Contudo, essa fluidez pode apresentar-se como problemática quando se percebe que há uma miríade inumerável de profissionais que reivindicam parentesco, ou mais que isso, filiação direta mesmo, com o fazer do design.

Não se pretende aqui definir o design – que na maior parte das vezes, habita uma região nebulosa –, mas procurar tornar mais clara uma configuração histórica que ele tem assumido na produção de conhecimento na contemporaneidade. Essa configuração, se não delimita o design, ao menos aponta para alguns lugares que ele pode estar ocupando no quadro da produção de saberes.

Muito da curiosa configuração do design contemporâneo remete à noção de téchne utilizada pelos gregos antigos. O fato de que só muito recentemente tenha se forjado um conceito – design – que, em alguma medida, procurou dar conta da multiplicidade do fazer projetual (Burdek, 2010, p.13-16), corrobora com este retorno aos gregos que aqui se propõe.

Quando téchne não é técnica nem arte

Da Antiguidade Clássica à Renascença não se fazia distinção entre arte, técnica, tecnologia; entre ciências aplicadas e ciências puras ou entre belas-artes e artes aplicadas. Na Antiguidade, os gregos utilizavam a expressão téchne para se referir àquilo que identificamos hoje como saberes autônomos, tais quais arte, arquitetura, engenharia, design, publicidade, propaganda etc. A expressão grega posteriormente seria traduzida para o latim como ars e utilizada até fins da Idade Média. Numa apreensão rápida poderia haver a tentação de traduzir téchne  por técnica e ars por arte, mas isto seria um equívoco. (Contudo, frequentemente estes dois conceitos, que originalmente possuem o mesmo significado, assim o são traduzidos). Melhor seria respeitar o valor semântico das duas expressões, que apontam para um mesmo significado. Falar de téchne ou de ars, é falar da mesma coisa, é, também, reportar a conceitos de difícil tradução. Talvez, por esta dificuldade, já se pode vislumbrar uma certa empatia entre estes conceitos e o design.

O primeiro autor a utilizar a expressão téchne foi o historiador Heródoto, definindo-a como “saber fazer de forma eficaz”. Já para Platão a téchne estaria ligada “à realização material e concreta de algo” (Dias, s/d). Há em ambas as definições a dimensão da realização de uma atividade, ou seja, a téchne é ação que extrapola o plano da contemplação e da meditação (Dinucci, 2008). Não que ela não se dedique à contemplação e à meditação, mas, efetivamente, objetiva a realização de um fim prático, que pode ser material ou intangível. Pode-se, desse modo, se pensar na téchne como uma atividade também ligada à política no sentido de estratégia. No mundo grego a participação do cidadão na pólis exigia a construção de um discurso e, consequentemente, de toda uma tecnologia voltada para o pensar e o agir. A filosofia se constituirá nesta grande “máquina tecnológica” que auxiliará a condução do homem livre na politeia. A téchne partilha, desse modo, o fazer prático com a filosofia, mesmo estando esta mais afeita ao pensar, ao especular, que também é uma atividade, mas de outra natureza porque não visa a um fim material.

A téchne, por estar sujeita a regras sistemáticas de observação, de execução e de repetição, está ligada a um tipo específico de pensamento (episteme) e é capaz de produzir discurso sobre o fazer (logos). Assim, ela se apresenta porque uma das suas condições de existência e de afirmação está na possibilidade de transmissão desse saber, ou seja, o technites, aquele que exerce e ensina o seu ofício, não o faz com base apenas na sua experiência particular, mas sim calcado na extrapolação dos casos individuais visando certa universalidade. O profissional das technai é um observador atento do seu mundo e do seu tempo. Observa e age sobre a natureza quando transforma a matéria em produto; interfere na esfera humana quando coloca em circulação aquilo que produziu.

Desse modo, a téchne, concebida como ação humana, se opõe, por um lado, à ordem e aos movimentos da natureza e, por outro, ao caos.  Distancia-se, ainda, do mundo divino, pois as technai desse plano produzem coisas belas, justas e verdadeiras. Sendo ação humana que transforma a matéria da natureza – evidentemente, o faz de forma eficaz, pressupondo uma episteme e um logos – a téchne está firmemente ligada à poiésis, à produção.

No livro X da República, Platão (1997) elabora uma hierarquia para a poiésis (produção) e estabelece sua correspondência com a teoria. Na relação desta com o mundo das ideias, o filósofo identifica três níveis de teorizações: o “saber dos artistas”, a episteme e a téchne (Santaella, 2000). Como o resultado da atividade do artista não está relacionado com a realidade do mundo das ideias, ele se dedica à geração tão somente daquilo que Platão denomina de simulacro. O artista, na sua prática, procura imitar, mimetizar a natureza percebida como realidade verdadeira; estabelece com ela uma relação direta simulando aquilo que os olhos captam. Ora, sendo a realidade uma sombra do mundo verdadeiro, que para Platão é o mundo das ideias, o artista produz, por assim dizer, a cópia da cópia. É um gesto nefasto, na visão platônica, uma vez que o artista, com sua obra, reforça o engano da própria realidade e distancia ainda mais os indivíduos da verdade.

Por conta dessa deficiência, a ação do artista é excluída do âmbito das téchne: na sua poiésis (na produção da obra) o “saber dos artistas” não exige uma téchne que justifique este nome. Por outro lado, o conhecimento produzido pela episteme é um saber demiúrgico, porque possibilita pensar o “ser” tal como é por natureza. O demiurgo, ao criar as coisas, o fez acrescentando-lhe suas essências, tornando-as efetivamente verdadeiras. Esta verdade essencial habita o plano das ideias e é este plano ideal que a episteme investiga. Já o conhecimento elaborado pela téchne é diferente daquele da episteme, pois só se aproxima do divino, é um saber de ordem humana. A téchne busca vislumbrar o “ser” na sua integralidade, mesmo não o conseguindo tal como o fazem os deuses, mas se distancia do “saber dos artistas” porque interfere e lida com a natureza, procurando não mimetizá-la, mas transformar a matéria dela extraída. Ainda assim, a poiésis das technai é limitada internamente por um saber-fazer que não lhe permite atingir plenamente o mundo das ideias. Nisto, a episteme lhe supera.

Vê-se, então, que na hierarquia platônica a poiésis demiúrgica, por ser divina, é aquela que cria as essências do mundo verdadeiro, a esfera das ideias. A poiésis epistêmica, por se constituir num grande esforço do pensamento, se aproxima da produção demiúrgica. E a poiesis da téchne, afastada da demiúrgica e atuando no plano humano, transformando a matéria da natureza em algo útil, belo e verdadeiro, somente pode ser assim denominada, se possuir uma episteme que lhe seja correlata.

Platão identifica, ainda, três formas que a téchne pode assumir: a utilitária, a militar e a do governo dos homens. Evidentemente que já se está no Período Clássico e as transformações pelas quais passa o conceito de téchne estão a refletir as mudanças ocorridas no plano social e político de Atenas. Algumas modalidades de poiésis, que pertenciam no mundo pré-socrático ao campo da téchne como, por exemplo, a agricultura e o artesanato – sistematicamente foram banidas desse espaço. Ao mesmo tempo se observa nesta operação a emergência de um processo classificatório e hierarquizador dos campos do saber. Contudo, sobrevive no registro do pensamento racional platônico, senão como resquício, ao menos como impossibilidade de exclusão, algo daqueles fazeres outrora pertinentes ao mundo das technai (apud Barbosa, 2003).

É, contudo, Aristóteles quem vai fixar um sentido amplo para téchne e que durante séculos marcará o pensamento ocidental. Segundo Aristóteles, (…) a experiência quase se parece com a ciência e a arte. Na realidade, porém, a ciência e a arte vêm aos homens por intermédio da experiência, porque a experiência (…) criou a arte, e a inexperiência, o acaso. E a arte aparece quando, de um complexo de noções experimentadas, se exprime um único juízo dos casos semelhantes (Barbosa, 2003, p. 55).

No trecho citado, téchne foi traduzida por arte, como comumente tem sido feito, e episteme por ciência. Contudo, traduzir téchne por arte também se mostra insuficiente para dar conta da complexidade do conceito. Em todos os casos, téchne e episteme são superiores à experiência, ainda que dela não prescindam.

Caso seja correto identificar a produção plástica, escultórica, arquitetônica e dos objetos de uso cotidiano do mundo antigo como realização da téchne, também o será quando identificarmos as artimanhas de Ulisses narradas por Homero na Odisseia. Este era apresentado como um mestre da téchne porque possuía grande poder de convencimento sobre os homens. Também era mestre na arte de safar-se das dificuldades que lhe impunham os deuses. Medeia, ela também uma mestra da téchne, a utiliza para se vingar de Jasão, seu marido traidor, ao orquestrar uma terrível vingança: matar a futura esposa de Jasão e, lhe infringindo dor maior, assassinar os próprios filhos que com ele teve. Tem-se aí o caso de um domínio de saber ligado à magia e, para os gregos, isto também é possuir téchne.[2]

A téchne fazia parte do mundo das realizações materiais, tanto quanto do espaço da política ou da filosofia. Era um saber-fazer de um modo especial, pois requeria uma série de habilidades estudadas e aprendidas. Aquele que domina determinada téchne, o faz ultrapassando o conhecimento adquirido apenas pela experiência, porque o “faz bem” e porque estudou e a aprendeu.[3] Não se restringe apenas ao ato de produzir (poiésis), mas é saber fazer coisas a partir de reflexão e planejamento. É mais do que possuir a simples habilidade de fazer, pois demanda atividade intelectual e, consequentemente, produção de um determinado saber. Neste sentido, a téchne supera a empiria, ou seja, apenas saber-fazer através de um aprendizado puramente técnico, desprovido de pensamento. Vê-se, então, em todos os casos, desde Platão a Aristóteles, a profunda semelhança com o ofício do designer. Ele não é e nem se apresenta com um “prático” que apenas domina certas técnicas ou certas tecnologias na elaboração do seu projeto. Há sempre uma grande carga reflexiva naquilo que resulta como produto final da atividade projetual.

Aristóteles, no terceiro capítulo do livro VI da Ética a Nicômaco, afirma:

Toda téchne versa sobre a produção, sobre o emprego de técnicas e sobre o teorizar como se pode produzir ou se produz algo do que é suscetível tanto de ser como de não ser, e cujo princípio está naquele que o produz e não no produzido (Aristóteles, 2001, p. 4).

A passagem é rica. Aristóteles enfatiza o caráter teorizante da téchne para além da aplicação pura e simples de técnicas, estas podendo ser acessadas pela experiência. Chama a atenção para o fato de que o locus de força no uso das téchne não está no produto, mas no sujeito que o produz e no fim a que se destina. É ele, o technites, que tem o poder de agir sobre a matéria (seja ela concreta ou intangível) transformando-a. Para usar uma linguagem própria do nosso tempo, pode-se dizer que na passagem acima, Aristóteles se refere à téchne como produtora de um saber que se utiliza de método (como se pode produzir ou como se produziu algo) e teoria (do que é suscetível tanto ser como de não ser) para realizar seu fim. Por isso, afirma mais adiante, ela é superior à experiência, mas dela não prescinde.

Ao estabelecer regras, a téchne se apresenta como uma atividade vinculada à experiência e, por oposição, contrasta com o acaso, com o espontâneo e com o natural. Liga-se, desse modo, ao artificial; àquilo que é produzido e feito a partir do estabelecimento de certas regras. Contudo, a téchne prepondera sobre a experiência porque se utiliza de recursos que em muito a extrapolam. A experiência por si só não seria suficiente para a realização plena da téchne. Aquilo que atualmente denominamos de arte estava impregnada pela téchne para os gregos. Do mesmo modo a arquitetura, a engenharia ou mesmo a confecção de um móvel ou uma peça de vestuário.

Toda téchne pressupõe a produção de saber, mas difere da episteme porque esta última vincula-se exclusivamente à produção de conhecimento em estado puro. Em todo caso, ambas se referem ao conhecimento do universal. Tanto téchne como episteme, porque podem e são aprendidas através dos estudos, e são acessadas a partir de um logos (discurso), diferem da experiência e, por isso, lhe são superiores. Era estranha a sufixação de téchne com o conceito de logos – tal como se fez na Modernidade com a criação do conceito de tecnologia – uma vez que para a realização do primeiro se pressupõe obrigatoriamente o uso do segundo (Brandão, 2010).

Em síntese, o conceito de téchne, como nos alerta Vargas (1994), ultrapassa em muito a noção moderna que se tem de arte e técnica:

As “techné” gregas eram, em princípio, constituídas por conjuntos de conhecimentos e habilidades profissionais transmissíveis de geração a geração. São desse tipo de saber a medicina e a arquitetura gregas. Também são “techné” a mecânica, entendida essa como a técnica de fabricar e operar máquina de uso pacifico ou guerreiro, e os ofícios que hoje chamamos de “belas artes”. Ao lado dessas havia também, uma “techné” exata como, por exemplo, a utilização das matemáticas na agrimensura e no comércio. Mas, não se deve entender “techné” sempre como um saber operativo – manual. Com efeito, o conceito de “techné” é mais extenso (Vargas, 1994, p.18).

Quando ars não é arte nem técnica

Posteriormente, o conceito grego de téchne será traduzido para o latim por ars e será utilizado até o século XVIII. Na Idade Média, ganha variados usos significando, em linhas gerais, a arte de bem fazer algo, isto é, o conceito de ars continua com a mesma acepção e atributos da téchne. Desde a ars amandi dos romanos, passando pela ars mechanica dos construtores de catedrais, chegando à ars moriendi dos monges medievais, o saber-fazer vinculado à produção de conhecimento, de estudo, de observação a um conjunto de regras, continua sendo a tônica da concepção. Ainda que na contemporaneidade seja comumente traduzida por arte, não se estava a falar aí sobre a arte no sentido estrito de uma produção plástica e sim de uma prática humana pensada, estudada e conhecida.

Contudo, a ars mechanica, que não era mais do que uma das muitas modalidades que a ars incorporava, a partir da Renascença foi aos poucos assumindo as características daquilo que hoje denominamos técnica (Dias, s/d). Este deslocamento se consolida no século XVII por ocasião da elaboração da Enciclopédia, quando Diderot e D’Alembert

propuseram-se então a organizar o Dictionaire raisoné des sciences, des arts et des métiers, abarcando todo o conhecimento científico, artístico e técnico a partir do empirismo técnico, pois acreditavam que a única maneira de conhecer seria por sensações no manuseio das coisas; mas, não abandonaram o racionalismo, principalmente quando expresso através das matemáticas. Todos os conceitos derivavam de fatos, mas esses deveriam ser ordenados preferivelmente pela matemática para serem compreendidos (Vargas, 1996, p. 257).

A matematização do conhecimento sobre a natureza e sobre todas as coisas, que seria levada a efeito pelos enciclopedistas, é uma antiga aspiração do pensamento moderno, remontando a Galileu Galilei e Descartes. O desenvolvimento da reflexão sobre a cinemática e a mecânica iria engendrar, por fim, a ideia de que a natureza e todo o cosmos funcionavam de fato como uma grande máquina regida por uma racionalidade que poderia ser descoberta. O próprio corpo humano passa a ser extensivo dessa noção mecânica. Visto, percebido e estudado como conjunto de engrenagens e sistemas que se relacionam entre si, o corpo é entendido como uma máquina perfeita. A noção de saúde e doença evidentemente compartilha a lógica desta mesma metáfora: saúde, corpo-máquina funcionando dentro da normalidade; doença, máquina enguiçada. Para além do que sugere a metáfora maquínica, há novos conceitos formulados que cumprem com importante papel no plano do pensamento e da produção material a categoria do normal e do patológico (Canguilhem, 2002). Não é de surpreender, então, o importante papel que o conceito de ars mechanica vai desempenhar a partir de então.

Como se apontou acima, esse modo de pensar e organizar os saberes era desde a Antiguidade completamente estranho e novo. A novidade e estranheza não residiam no fato de classificar ou hierarquizar o conhecimento, mas sim no moto que regia este feito. Durante a Idade Média foram elaborados diversos esquemas classificatórios do conhecimento tendo como referência as Sete Artes Liberais.[4] Nestas organizações por vezes havia um espaço que era ocupado pela ars mechanica que, como regra geral, até o século XII, figurava fora do grupo das ars que se dedicavam à produção de saber.[5]

Havia projetos categorizadores na Idade Média conforme nos relata Meirinhos (2009), contudo, a natureza destas classificações em muito difere da dos enciclopedistas do século XVIII. Não há a crença no poder absoluto da razão e da ciência neste longo arco temporal que vai da Antiguidade ao Medievo. Ainda nesta última Era, o conceito de ciência é herança da scientia aristotélica e é visto como conhecimento demonstrativo, ou seja, “o conhecimento da causa de um objeto e do por que o objeto não ser diferente do que ele é” (Costa, 2009, p.132).

Está-se perseguindo, ainda que sumariamente, a constituição do conceito de técnica. Viu-se que deriva da ars mechanica medieval incorporada e valorizada pelo pensamento da Ilustração. Quando, na Era Moderna, a técnica encontrou a ciência viu-se o nascimento daquilo que atualmente é denominado de tecnologia. Responsável por fornecer suporte, status e poder à ciência, a tecnologia é, na contemporaneidade, uma técnica que emprega conhecimentos científicos. Corrige o equívoco, demoniza a falha e busca alcançar o grau zero de erro na geração e aplicação do conhecimento. Em outras palavras, afasta e elimina o patológico ao criar a norma. Esta é a utopia da técnica e da tecnologia partilhada pela ciência e pela razão, especialmente por aquela identificada por alguns pensadores como razão-prática.[6] É nesse contexto das divisões e das especializações do conhecimento que tem origem o design.

A emergência do design na Era das “divisões”

Desde seu nascimento, o design traz consigo a marca da inconformidade, da crítica e da atenção ao tempo presente. Já é bem sabido que os historiadores localizaram seu registro de nascimento no contexto da revolução industrial (Heskett, 1998; Cardoso, 2008 e Moraes, 1999). Desse modo, é um saber que nasce no campo da modernidade e por isso contém todas as problemáticas que ela trouxe consigo. Emerge o design moderno como uma crítica ao fazer das máquinas, ao produto em série, percebido como de mau gosto e desumanizado. Alargando um pouco mais o campo de visão, a crítica vai além: não somente o produto, mas também o produtor sofre dos mesmos efeitos desumanizadores do contexto industrial. No século XIX, William Morris, John Ruskin, os pré-rafaelitas e a Escola de Artes e Ofícios apontavam nesta direção e denunciavam o equívoco do exílio imposto ao “belo” pela produção racionalizada. O resgate da estética na produção da cultura material se dá, na proposta desses autores, pela reintrodução do artesanato no fazer do designer. O fazer artesanal será o responsável pelo ingresso clandestino da arte na elaboração dos objetos de uso. Abre-se novamente aí, a discussão sobre as relações entre arte e artesanato.

O gesto introdutor do valor estético, ainda que remetendo ao artesanato, aliado às transformações tecnológicas ocorridas naquele tempo é, por assim dizer, uma tática de guerra desses primeiros designers. Camuflado pelo discurso do retorno ao artesanato, não estão os designers do século XIX propondo reacionariamente uma volta ao passado? Talvez este aspecto não fique suficientemente claro em textos clássicos da história do design, que insistem em sublinhar este tipo de crítica aos proto-designers como Ruskin e Morris e à Escola de Artes e Ofícios. Primeiro porque, justamente, estes precursores do design moderno se opõem vigorosamente aos estilos historicistas; depois, porque ao se referirem ao artesanato, não o concebem apenas como técnica construtiva, tal qual é concebido na modernidade.

O historicismo, que vigorou no século XIX se caracterizou justamente por um retorno acrítico ao passado. O revivalismo do neogótico, do neobarroco, do neorrococó e todos os ecletismos, com seus excessos ornamentais no desenvolvimento de produtos, deixam em evidência a falta de uma linguagem apropriada à Era da Industrialização (Cardoso, 2008). O historicismo ou o ecletismo do século XIX são, por assim dizer, um hiato, uma perplexa pausa no campo da cultura material que se sente atrapalhada, ou até mesmo ultrapassada, pelas transformações ocorridas no mundo da técnica e da tecnologia. É, de certa maneira, este o diagnóstico que fazem os precursores do design: não há um estilo ou mesmo uma forma de produção adequada aos novos tempos. A resposta mais acabada a este questionamento é dada pelo movimento de Artes e Ofícios. Em alguma medida ele preconiza a retomada da experiência do artesanato medieval.

Ao se reportar ao artesanato medieval, buscam lá o antigo significado de ars, não o da ars mechanica, que foi traduzida por técnica, mas o conceito geral de ars, entendido como projeto desenvolvido por diferentes saberes que dialogam entre si. Poder-se-ia ir além, sem o risco de forçar o argumento ou os limites do razoável: a referência à ars medieval, lida stricto sensu pelos “pais fundadores” do design como artesanato, aponta para a necessidade da construção de um campo de saberes; um campo interdisciplinar, tal como ocorria na Idade Média.

Sabe-se que a construção de uma catedral e de todos os seus equipamentos não era obra exclusiva de um arquiteto ou de um engenheiro. Nela estavam conjugados os esforços de escultores, pintores, construtores, pedreiros, marceneiros, vitralistas, ferreiros etc. A catedral medieval é resultado de um projeto coletivo para onde convergiam variados saberes, não sendo possível, também por isso, a assinatura da obra. Não seria digno e nem ético, somente o “arquiteto” (e é sempre bom lembrar que a categoria arquiteto não existia na Era Medieval) ou qualquer outro profissional se apropriar da autoria da obra. Os mestres da forma e dos materiais que organizavam o projeto eram todos possuidores de excelência naquilo que faziam, eram mestres da ars. Não somente dominavam as técnicas de fazeres próximos ao seu, mas também as tecnologias disponíveis a serem aplicadas no projeto. Evidentemente, eram também mestres do diálogo, haja vista a necessidade do trabalho “interdisciplinar”. Era a essas noções que se reportavam os precursores do design quando reivindicavam o retorno ao artesanato medieval.

Seria incoerente e contraditório que após tantas críticas ao revivalismo, o movimento de Artes e Ofícios propusesse um simples retorno ao passado. Observando a produção material do movimento percebe-se o quanto ela está longe de ser uma cópia do modelo medieval, mas, também, o quanto a experiência do medievo lhe foi importante no sentido de acertar o passo com as necessidades impostas pela industrialização. Emerge aí a ideia do projeto como caminho possível para a construção dos objetos numa cultura industrializada.

Outro dado importante para que se questione a ideia de reacionarismo desses primeiros designers, é que, além de propor uma retomada do conceito de ars, eles apontam para os limites da técnica e da tecnologia denunciando seu primado racionalista limitante, corroborando a tese de que estão atentos ao tempo presente. A técnica e a tecnologia, com sua obsessão pelo acerto, pela exatidão, excluíram do saber, a arte e, junto com ela, boa parte do pensamento. São esses atentos designers que, observando a separação, resgatam lá do mundo antigo, as possibilidades de releitura de conceitos e práticas outrora compartilhadas que foram fragmentadas. No mundo moderno, arte, artesanato, engenharia, arquitetura e aquilo que hoje entendemos por design, foram separadas como campos distintos.

O fato é que esta separação não é nova e nem tampouco iniciou no contexto do século XIX. O status de arte maior adquirida pelas artes plásticas em relação à produção artesanal, data da época da Renascença. Ao longo do tempo essa divisão assumiria uma configuração que identifica campos de atuação distintos que foram denominados de belas-artes e artes aplicadas (Dondis, 1997, p. 7-12).

Essa separação identificada e denunciada na aurora do design moderno é, sem sombra de dúvida, uma operação insistentemente realizada no capitalismo: a instauração da lógica das divisões. Alguns autores identificam esse gesto operativo como uma estratégia de exercício de poder, de controle, de subordinação e dominação (Foucault, 1979; 1995 e Machado, 1990) ou de constituição de campo (Bourdieu, 2004). Para se concretizar os efeitos positivos e/ou negativos de disciplinamento e controle, as divisões se mostram eficazes e eficientes. Conforme afirma Perelló:

El desmembramiento de los conceptos naturales para su análisis particular e individualizado que comenzó en el Renacimiento y se extendió a lo largo de toda la época moderna (…) La profundización en el desmembramiento de los conceptos y aprehensión de la naturaleza reforzó también entre filósofos y naturalistas la conciencia de que, a la postre, el problema final del descubrimiento y la investigación de la naturaleza era su análisis, es decir, la adopción de un método analítico, para el cual se hacía cada vez más imprescindible esa fragmentación de sus partes constitutivas (Perelló, 2002, p. 13).

Esquadrinhamento, enquadramento, separação, delimitação e fixação de campo, construção e sujeição de identidades, fazem parte da lógica operativa das tecnologias de controle e poder.[7]

No nascimento do design, no século XIX, o sistema das divisões estava em pleno funcionamento. Arte, arquitetura, ciência, técnica e tecnologia são separadas na modernidade como saberes distintos e independentes. A ciência, particularmente a ciência aplicada, assume grande centralidade no fazer e no pensamento ocidental, gozando de prestígio antes desconhecido. O desenvolvimento e a aplicação de técnicas e tecnologias específicas, funda a notoriedade e garante a autoridade da ciência. De quebra, técnica e tecnologia quando se conjugam, fornecem o suporte que sustenta a falácia da neutralidade do saber científico. Compreende-se, então, porque todo o conhecimento produzido busca afirmar-se como científico: porque, via de regra, é a partir da relação estabelecida com a ciência, que se pode gozar de um status maior ou menor, possibilitando o reposicionamento de determinado saber numa escala hierárquica. Aliando o saber produzido a procedimentos técnicos rigorosos e avançadas tecnologias, constitui-se um campo fortemente blindado à crítica.

Arte, ciência e filosofia, a partir da Era Moderna, ocupam lugares distintos no espaço da produção de saberes. As divisões são realizadas não apenas no espaço de fora, nos grandes conjuntos ou fontes produtoras de saber, mas também internamente, dentro dos próprios campos já constituídos, levando sempre o mais longe possível a especialização do conhecimento. Claro está que o eixo dessas particularizações e parcelamentos se fez, na maior parte dos casos, buscando estabelecer e fortalecer o vínculo com a ciência e, por este motivo, pode ser lido como estratégias de aquisição de status e poder particulares (Foucault, 1979; 2003).

Para ficarmos num exemplo conhecido, ocorre uma separação clássica entre belas-artes – associadas a uma arte maior, a arte propriamente dita – e artes aplicadas – vinculadas à produção de objetos do cotidiano, à decoração pura e simples, também denominada de artes decorativas.

Desse modo, sugere-se neste breve artigo que o design, na maior parte do seu desenvolvimento, se constituiu como campo de produção de conhecimento que se posiciona criticamente à proposta das divisões. Nascido nesse contexto, o design ao longo da sua história tem se debatido com esta problemática. Ora obtendo mais sucesso, ora fraquejando, ora fracassando, a busca por um caminho alternativo está no DNA da profissão. Fala-se atualmente no esgotamento do projeto funcionalista. Certamente o fato do design guardar relação de maior ou menor intimidade com a arte, de se relacionar com o mercado sucumbindo ou não a ele e de manter a postura transgressora, adesista ou ingênua no fazer profissional, são índices que auxiliam a compreender a extensão do reproche dirigido ao funcionalismo (Villas-Boas, 1998).

Considerações finais

O exame dos conceitos de téchne e ars, neste artigo, visava problematizar algumas questões concernentes ao design. Do mesmo modo que traduzi-los por técnica e arte, respectivamente, se mostrou equívoco – dada a complexidade dos seus significados – tomar ou entender o design por desenho industrial, arte, técnica ou tecnologia, é igualmente redutor e limitado. Há equivalência semântica entre aquelas categorias antigas e o design contemporâneo. A polissemia destes conceitos – téchne, ars  e design, caso se lhes entenda como continentes daquilo que é denominado por arte, técnica e tecnologia – permite aproximá-los. Ainda que o design enquanto campo de produção de saber, tenha emergido no contexto da modernidade marcado pela lógica das divisões, subsiste na sua matriz a dificuldade dessa lógica se firmar plenamente, haja vista o espaço fluido e transversal em que se desenvolve a atividade projetual. Por um lado, a geografia pantanosa e permeável do design aquece positivamente a frieza do racionalismo normalizador e normatizador exigido pela técnica e pela tecnologia, quando acentua o valor do pensamento criativo e do desassossego na produção da cultura material. Por outro lado, ao se constituir como paisagem ampla, se abre à possibilidade de cooptação por outros campos e propicia também a ocorrência de ricos diálogos.

As dificuldades pelas quais se passou para firmar o sentido daqueles conceitos do passado – téchne e ars – ressurgem na atualidade com o design. Argumenta-se neste texto que essas dificuldades se instalam justamente porque esses conceitos se apresentam como devir, ou seja, como campo aberto, como espaço agônico, lugar onde se desenrolam combates. São lugares de luta e de resistência às imprecações das tecnologias de poder e de controle. Nesse sentido, conforme sugere Deleuze, por evidenciar e por exibir insistentemente sua dimensão política, o design é máquina de guerra.

* Alexandre Schiavoni é mestre em História pela UFRGS e professor dos cursos de Design e de Arquitetura e Urbanismo na Universidade Feevale (Novo Hamburgo/RS).


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Notas

[1] Veja-se, por exemplo, Moraes (1999); Campos (2003; 2009); Somma Júnior (2009); Arantes; Antonio (2003); Barbosa (2003); Melo (2003) e Dondis (1997).

[2] Maria Regina Candido (2002, p. 28) esclarece no seu trabalho a relação entre magia e téchne no mundo antigo a partir do exame de plaquetas de chumbo – katádesmos – utilizadas para se fazer imprecações contra inimigos. Veja-se, também, o excelente estudo de doutoramento de Dulcileide Virginio Nascimento (2007).

[3] Sobre a ideia de téchne em Aristóteles, consulte-se as excelentes reflexões de Garcia (2011).

[4] As Sete Artes Liberais era o modo como se organizava o pensamento e a produção de conhecimento desde a Antiguidade Clássica até o Medievo. Eram compostas pelo ensinamento do Trivium (Gramática, Retórica e Dialética) e pelo Quadrivium (Aritmética, Geometria, Música e Astronomia) (Costa, 2009, p.134).

[5] A ars mechanica foi olhada com desconfiança até mesmo quando foi incorporada na classificação elaborada por Hugo de São Vitor, que a qualificava como adúltera, explicando que “(…) o verbo grego mèchanaomai (fazer máquinas) foi traduzido em latim para moechari (ser adúltero), para opor as artes mecânicas às artes liberais” (Costa, 2009, p.135).

[6] Pensa-se particularmente nas reflexões desenvolvidas por Habermas (1987a; 1987b e 1987c) e Rouanet (1998).

[7] Para as estratégias elaboradas e praticadas pelas tecnologias do saber-poder, consulte-se Deleuze (1992; 1997) e Foucault (1979; 2003).