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Apresentação | Octavio Aragão

Existe a cultura de massa, com todas as típicas frivolidades e subtextos de dominação social e ideológicos, porém expressivos e eventualmente donos de um léxico original, e existem os guetos dentro dessa cultura, becos especializados que sofrem críticas tanto do chamado mainstream cultural quanto de sua versão mais, digamos, popularesca. Esses são os párias, os desonrados, os humilhados e ofendidos.

É nessa vila – sim, onde residem os “vilões” – que se localizam as histórias em quadrinhos e a ficção científica, dois filhotes da literatura (alguns diriam subliteratura) de gênero que despontou com a revolução industrial. A primeira, ao menos como a conhecemos no ocidente, descende dos panfletos irreverentes e críticos da sociedade impressos pelo holandês Rodolphe Töpffer e das cruéis narrativas infantis ilustradas pelo germânico Wilhelm Busch. A segunda nasce dos escritos da inglesa Mary Shelley e do norte-americano Edgar Allan Poe, onde a percepção das maravilhas da modernidade e o poético andavam de mãos dadas, provavelmente tremendo de medo, com o grotesco e o arabesco, e influenciando posteriormente autores como Júlio Verne e H. G. Wells.

Ambos os subgêneros sobreviveram aos pudicos anos de 1950 do século 20, durante os quais sofreram perseguições e censuras nos Estados Unidos e no Brasil, sedimentando a base do repúdio que até hoje persegue essas variantes culturais, desabonando suas claras qualidades artísticas e educacionais. Assim, se cada uma dessas manifestações – ou, melhor dizendo, “expressões” – sofre seu quinhão de preconceito, que se reflete até em termos econômicos, muitas vezes dificultando a sobrevivência de seus entusiastas e especialistas, obrigados a diversificar suas atividades para reforçar a féria, não causaria surpresa que, quando irmanadas, o repúdio duplicasse, principalmente quando ousam angariar algum grau de respeitabilidade, seja no mercado seja na academia.

Não é de se estranhar que ainda hoje, mesmo quando analisadas por críticos especializados em uma ou outra encarnação, as HQ de FC (sempre é bom recordar que os aficionados e profissionais da área se referem a seus objetos de culto pelas iniciais ou apelidos e abreviaturas como “gibis” e “Sci-Fi”) sejam relegados ao mais baixo dos círculos infernais da subcultura. E se isso acontece com a produção internacional, imagine com a incipiente ficção científica literária ou, principalmente, em quadrinhos produzida no Brasil.

Eis porque a Revista Z Cultural vem com a intenção de reunir vozes de áreas distintas para analisar conceitualmente não apenas os produtos de todas as vertentes – sejam ficção científica, narrativas pulp ou histórias em quadrinhos –, como também seus meios de distribuição e construção comercial no Brasil e nos Estados Unidos.

Octavio Aragão
Organizador

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Visões do futuro do pretérito: a ficção científica nos quadrinhos brasileiros no século 20 | Octavio Aragão*

Desenhando o futuro com ironia

A primeira história em quadrinhos a se assumir como uma peça de ficção científica foi a tira diária Buck Rogers, iniciada em 7 de janeiro de 1929, com base na novela Armageddon – 2419, de Philip F. Nowlan, publicada um ano antes no número de agosto da revista Amazing Stories (Duin, 1998, p. 62). Nowlan teria sido convencido a escrever o roteiro para os desenhos de Dick Calkins, e as aventuras de Anthony Rogers (cujo nome foi alterado para “Buck”) foram distribuídas para diversos jornais norte-americanos por intermédio do National Newspaper Service Syndicate, que tornou o personagem conhecido mundialmente.

Mas isso não significa que antes desse início oficioso, elementos de ficção científica não estivessem presentes em narrativas gráficas desde o século XIX. O holandês Rodolphe Töpffer, por exemplo, em uma de suas séries de litografias cômicas, utilizou conceitos como voo por intermédio de artefatos mecânicos (anteriormente vistos em diversas obras de protoficção científica, como A viagem à lua, de Cirano de Bergerac). A série em questão é Voyages et aventures du Docteur Festus, de 1829 (Horay, 1975, p. 5). O cenário dessas aventuras, diferentemente das outras séries de Töpffer, são países imaginários como Gouvernais, os reinos de Vireloup e de Roundeterre, e a narrativa lança mão de elementos insólitos, como a descoberta de um planeta e as diversas tentativas frustradas de se chegar até o astro por intermédio de um telescópio voador, cujo design antecipa os foguetes interplanetários de hoje, com divisões em estágios e três tripulantes.

Töpffer, assim como o alemão Wilhelm Busch, criador do poema humorístico ilustrado que contava as peripécias fantásticas dos irmãos Max und Moritz, de 1859, sucesso comercial que chegou a ser traduzido no Brasil por poetas como Olavo Bilac e Guilherme de Almeida (Fonseca, 1999, p. 96), aparentemente exerceram alguma influência sobre artistas europeus que trabalhavam no Brasil na mesma época. Um deles, Henrique Fleuiss, editor da Semana Illustrada, chegou a ser acusado de plagiar a obra de Busch (Cagnin, 1996, p. 6). O mais interessante é que o acusador era aquele que seria considerado por pesquisadores como Athos Eichler Cardoso e Moacy Cirne como o pioneiro dos quadrinhos brasileiros, Angelo Agostini (Aragão, 2002, p. 89).

Agostini parece estar correto. As semelhanças entre os dois trabalhos é gritante, mas talvez possamos considerar Fleuiss não como um plagiário, mas como alguém inteirado com o imaginário europeu de sua época. Agostini, por sua vez, era, apesar de italiano, por demais identificado com o Brasil para se permitir influências conscientes de artistas europeus. Ainda assim, apesar de valorizar de maneira roussoniana a raiz tríplice do brasileiro – com ênfase na suposta perfeição das “raças” que comporiam o mosaico nacional: o caucasiano, o negro e o índio – também demonstra familiaridade com preceitos positivistas que atribuem à tecnologia e ao avanço científico-racionalista as bases para a construção de uma identidade brasileira (Agostini, 1883, p. 4 e 5).

A modernidade sociopolítica na corte

Angelo Agostini contestava a paixão de Pedro II pela ciência, estabelecendo uma relação direta entre os interesses do monarca e a decadência das instituições públicas. Não é raro vermos nas charges de Agostini o imperador retratado como um velho distraído, com a cabeça nas nuvens e os olhos num telescópio enquanto roubalheiras campeavam a seu lado, ou dormindo no trono, com o jornal O Paíz esquecido ao colo.

A modernidade republicana paga um tributo às suas raízes. No Império, bancara a avestruz, para não se envolver na luta contra a escravidão, que poderia lhe custar o apoio dos fazendeiros republicanos escravistas. Agora, comprometida até a medula dos ossos com o poder oligárquico, revela-se incapaz de incorporar os principais valores gerados pelas sociedades então consideradas modernas: a igualdade e a democracia (Lemos, 2001, p. 31).

Robert Scholes (1975, p. 5) recorda que a literatura se separaria em mimesis e poiesis, ou cognição e sublimação, sendo que o elemento identificador das partes seria a representação temporal. Se o tema refletir o tempo presente, uma construção do real perceptível pelos sentidos, será mimesis/cognição. Porém, se não estabelecer uma relação clara com o “hoje”, se buscar algum tipo de “escapismo” ela será poiesis/sublimação. A ficção científica, por lidar quase sempre com projeções do futuro, seria poiesis.

Já a charge política, por tratar de um momento específico situado no presente, seria mimesis. O Cândido, de Voltaire, e o Gulliver, de Swift, são sátiras voltadas a seus respectivos tempos e especificam seus alvos, logo não seriam escapistas. A ficção científica de Júlio Verne raras vezes assume um viés de crítica do tempo presente (uma exceção seria Vinte mil léguas submarinas), optando pela extrapolação pura, pelo foco no “e se”, com forte intenção de embasar esses exercícios com plausibilidade. Nas charges que apresentam elementos de ficção científica há pouco de científico além de um verniz superficial, pois a intenção é sempre o momento presente. Auerbach postula que a utilização do humor já seria um limite para a representação do realismo, uma “limitação da consciência histórica” (2007, p. 29), então, a sátira, a crítica de costumes, a importância social das charges seria reduzida a mera anedota.

Um chargista, para atingir objetivos e significados mais complexos – inseridos no conceito de disjunção humorística, segundo Violette Morin –, precisaria utilizar instrumentos conhecidos, signos mais simples.

“ (…) A charge ofende, atiça ou revoluciona não apenas por generalizar imagens, mas por utilizar tais estereótipos como ponte para um sentido mais amplo, emocionando o público e, em consequência, sensibilizando – para o bem ou para o mal – algumas instituições públicas” (Aragão, 2006, p. 59).

Max Yantok (1881[?]-1964) e as viagens de Kaximbown

Max Yantok começou a carreira como ilustrador em O Tico-Tico e desenvolveu alguns plots inspirados em temas desenvolvidos por escritores de ficção científica, tais como os de seu amigo Júlio Verne e H. G. Wells. De acordo com Lima, a série de Yantok, iniciada por volta de 1910 no Tico-Tico, chama-se As Aventuras de Kachimbown, Pipoca, Pistolão e Sábado em Fantasiópolis, na Pandegolândia, na G’astronomia, no Pólo Norte ou no fundo do mar. Durou quatro décadas e, apesar de claramente baseada no sucesso das Viagens extraordinárias de Verne, foi especialmente no episódio do Pólo Norte, que a influência dos autores citados tornou-se clara. A descrição do Eixo da Terra, máquina subterrânea responsável pela rotação do planeta, e mantida pela “Companhia Elétrica da Rotação Terrestre” (Figura 2), apesar da superficialidade nas descrições científicas e da diferença de veículos – história em quadrinhos e romance –, remete a algumas passagens de Verne. Reproduzimos o trecho de Yantok e, em seguida, um extrato de Vinte mil léguas submarinas.

Figura 1 - Kachimbown e o Eixo da Terra. Yantok, M. 1912 - 1963, p. 1.263.
Figura 1 – Kachimbown e o Eixo da Terra. Yantok, M. 1912 – 1963, p. 1.263.

“De repente Kaximbown chegou à beira de um abismo, e ficou cheio de surpresa. Viu um enorme eixo movido a eletricidade, com tantos maquinismos e geografia, apesar disso, ele logo disse que se tratava do Eixo da Terra, que ele julgava fosse imaginário” (Yantok apud Lima, 1963, p. 1.261).

Acompanhei o Capitão Nemo pelos bailéus e cheguei ao centro da embarcação, onde havia uma espécie de poço aberto entre dois tapamentos impermeáveis. Uma escada de ferro, engatada nas paredes, levava à extremidade superior. (…) Essa sala das máquinas, muito bem iluminada, não media menos de vinte metros de comprimento e era naturalmente dividida em duas partes: na primeira estavam os elementos que produziam a eletricidade; na segunda o mecanismo que transmitia o movimento à hélice (Verne, 1869, p. 112 e 114).

Arriscamos que, além de Verne e Wells, pelo tom irônico e crítico à sociedade da época, a influência de Jonathan Swift no texto de Yantok parece-nos evidente. Longe de buscar a acuidade científica, Yantok estruturava suas aventuras sobre a mais desabrida fantasia, sempre com um pequeno enfoque satírico e contemporâneo, mas, como visava o público infantil, as críticas não eram tão ferinas. As viagens interplanetárias de Kaximbown em G’astronomia revelavam não as propriedades reais dos astros, mas mostravam Marte em forma de tomate, Saturno e a lua como queijos ou Vênus como uma bolacha, e as HQs sobre a vida dos micróbios eram crônicas da alta sociedade, com microorganismos frequentando saraus e “desvendando segredos de alcova de bactérias e protozoários”, publicadas na revista Dom Quixote. Apesar disso, o autor introduzia informações sobre astronomia, zoologia, física e náutica. Assim, o forte da ficção científica de Yantok são seus desenhos de engrenagens e mecanismos, que remetem às ilustrações de George Roux para as primeiras edições de Julio Verne. Outro exemplo de casamento entre mimesis, na construção satírica das narrativas, e poiesis, no escapismo infanto-juvenil.

Outro humorista que lançou mão da iconografia tecnológica para criticar o ambiente sociopolítico da década de 1930 foi Alexandre Ribeiro Marcondes Machado, o Juó Bananére. Satirista de grande sucesso desde 1911, Bananére foi considerado um precursor do Modernismo no Brasil (Bananére, 2001, p. 22). Em 1933, no Diário de Abax’o Piques, Bananére apropriou-se de um imaginário visual próximo da ficção científica e propôs trens acoplados a zeppelins e sistemas de embarque automatizados, com desenhos minuciosos que antecipavam os infográficos de hoje, como alternativas para fugir do pedágio cobrado pela Light (Saliba, 2002, p. 244). Quadrinhos e charges do início do século 20 passavam mais próximo da sátira que da narrativa de ficção científica, mas isso não foi empecilho para exercícios de antecipação científica, sempre visando à crítica social. Por conta dessa preferência e valorização crítica de uma narrativa focada no “hoje”, o florescer de uma ficção científica com texto e arte bem trabalhados teve de esperar até a década de 1960, quando surgiram as HQs de Flávio Colin, Nico Rosso, Mozart Couto e Shimamoto, que inseriam elementos de ficção científica em argumentos de horror ou produziam séries parecidas com aquelas publicadas pela revista francesa Metal Hurlant. Paralelas, de Couto, é um exemplo: foi influenciada pelos experimentos de quadrinistas franceses como Moebius, Bilal e Druillet. Antes, nos anos 1930 e 40, houve projetos pontuais voltados à aventura e com vago sabor de ficção científica nas páginas do Suplemento Juvenil, como As aventuras de Roberto Sorocaba, de Monteiro Filho, e O enigma das pedras vermelhas, de Fernando Dias da Silva, que também usavam trabalhos estrangeiros como base, no caso os americanos Milton Canniff e Alex Raymond (Cirne, 1990, p. 37), mas não sedimentaram a ficção científica nos quadrinhos brasileiros. Hoje, porém, trabalhos de Edgar Franco, Patati, Allan Alex, Manoel Magalhães e, com destaque, Luiz Gê e Laerte Coutinho parecem apontar para uma sedimentação do gênero no Brasil, com quadrinhos que se assumem como obras de ficção científica sem apelar para a sátira, clichês do cinema ou dos comics norte-americanos.

Figura 2 - Uma antecipação bem-humorada do que viria a ser uma ponte aérea Rio-São Paulo no início do século 20, por autor anônimo.
Figura 2 – Uma antecipação bem-humorada do que viria a ser uma ponte aérea Rio-São Paulo no início do século 20, por autor anônimo.

O território insustentável de Luiz Gê (1953-) e Laerte Coutinho (1951-)

Luiz Geraldo Ferreira Martins e Laerte Coutinho, mais conhecidos como Luiz Gê e Laerte, são dois expoentes de uma geração de quadrinistas que despontaram nas décadas de 1970 e 80, nas páginas de revistas underground como Balão, Circo e Chiclete com Banana, cujo repertório inclui o imaginário da ficção científica cinematográfica dentre vários elementos de cultura pop e erudita, literatura e música.

Duas obras merecem destaque: A insustentável leveza do ser, de Laerte, publicada no terceiro número da revista Circo, em 1987, e Perdidos no espaço, de Luiz Gê, parte do álbum Território de Bravos, de 1993. A primeira, uma história em seis páginas, se apropria do tema de um dos autores mais referendados da chamada New Wave of Science Fiction, Philip K. Dick, e narra a história de um rapaz que descobre que nada em seu mundo é real, nem o próprio mundo. Numa sucessão de reviravoltas amarradas por uma narrativa segura e traço forte, cartunesco, Laerte despe as camadas da vida de Renato, o protagonista, revelando os pais que são atores travestidos, a irmã garota de programa, a epiderme sintética sobre pele branca 1998, Truman Show, de Peter Weir, Renato descobre a natureza da realidade.

Cirne aponta essa história de Laerte como “uma estória que já nasceu antológica em sua crueza contra os valores da classe mérdia branquicela” (sic) (1990, p. 82). Ou seja, no caso de A insustentável leveza do ser, os elementos de ficção científica são indispensáveis para a compreensão e a força da narrativa, emprestando maturidade à trama.

Perdidos no Espaço relata as desventuras da tripulação de um veículo minúsculo em forma de artrópode que explora os cômodos de um apartamento como se esse fosse um território alienígena. Assim como o título da história de Laerte faz referência ao romance de Milan Kundera, Luiz Gê cita o bem-sucedido seriado de Irwin Allen, produzido de 1965 a 1968, mas a estrutura narrativa traça paralelos a outros seriados de grande popularidade, Land of Giants (1968-1970) e Star Trek (1966-1969). Aqui é o contraste entre as imagens expressionistas em preto, branco e retícula aplicada e o diálogo melodramático que desperta a estranheza, o sense of wonder desta peça de ficção científica hard. É interessante notar que os aspectos hard, ou seja, de acuidade científica, não estão no texto, mas nos desenhos de Gê, que constroem e embasam uma realidade crível, porém fantástica, muitas vezes recriando os ângulos de câmera em grande angular do seriado Land of Giants, e, em menor grau, da série em quadrinhos Little Nemo in Slumberland, de Winsor McCay. O diálogo pode ser interpretado como uma versão histérica de algumas passagens dos roteiros de Star Trek, no qual a tripulação tenta conter um tenente em pânico enquanto o comandante lida com as pressões do trabalho e as dificuldades do ambiente hostil. O fato de não vermos os tripulantes ou o rosto do homem que habita o apartamento cria um distanciamento que reitera a impressão de solidão e estranheza alienígena. Sem os desenhos, os diálogos seriam uma coleção de clichês. Sem os diálogos, os desenhos não passariam de um exercício técnico.

Ao tornar hostil um ambiente residencial contemporâneo por intermédio da alteração das proporções dos cenários e dos pontos de vista do leitor, Gê recria a sensação de horror de obras de Richard Matheson – The incredible Shrinking Man (1956) –, H. G. Wells – Food of the gods (1904) – e até do autor brasileiro Monteiro Lobato – A chave do tamanho (1942), mas, diferentemente desses autores, a opção por um desenho com arte final limpa, distante dos trabalhos dos ilustradores que trabalharam com Wells, Lobato e Matheson, como Alvin Correa, André LeBlanc e Steve Niles, traz uma originalidade que distancia Perdidos no espaço do pesadelo gótico geralmente associado a tais narrativas. Gê faz uma crítica da sociedade onde vive, inserindo de maneira diferenciada a nave microscópica no contexto icônico que Ginway chama de “The Icon of the Spaceship”: “Since the ship reflects the society from which it originates, its crew is often a mock family, or a reflection of domesticity and the home and, as I view it, a microcosm of the traditional Brazilian male-female relations” (Ginway, 2004, p. 70).

A nave em Perdidos no Espaço, diferente dos modelos de correção norte-americanos que apareciam nas séries televisivas nas quais Gê busca referência, refletiria a condição de uma família disfuncional, com o comandante/pai em crise de autoridade e o tenente/mãe tentando um motim. Dessa maneira, tanto a história de Luiz Gê quanto a de Laerte poderiam ser encaradas como análises críticas das instituições familiares, percepções diferenciadas da realidade e sátiras sociais construídas com o auxílio de uma linguagem de ficção científica. Pode-se dizer que, se retirássemos os elementos de ficção científica de seus enredos, comprometeríamos seu entendimento e fruição.

O território que esses artistas cartografam em seus quadrinhos é tão brasileiro em essência quanto aquele que Angelo Agostini e Max Yantok retratavam, mas com uma percepção globalizada que eleva a produção a um patamar quase poético, resultando em ficção científica de alta qualidade. Para eles, a ficção científica é mais um meio de contar histórias sobre uma realidade burguesa, que ganha expressividade e força poética pois, como sugere Jameson (2004, p. 288), representaria o sentido de construção de história da classe média, uma busca pelo passado e por vários futuros. Os quadrinhos de Luiz Gê, Laerte e outros, porém, ocupariam em termos ideológicos um espaço intermediário entre a cultura de massa e a das minorias, e talvez por isso seja insustentável comercialmente, partindo do pressuposto que não se admite completamente imerso em um ou em outro, sofrendo preconceitos de ambos. Hoje, finalmente, talvez sejam mimesis e poiesis.

Considerações finais: o futuro é sempre

A junção de duas formas de expressão vítimas de preconceito como a ficção científica e as histórias em quadrinhos é, no mínimo, um desabafo que pode ser interpretado como a vontade de afirmar “sei que não gostam do que falo, mas grito mesmo assim”. São raros os quadrinistas que, no Brasil, podem dizer com orgulho que sobrevivem de seus trabalhos, mas ao menos existem premiações nacionais, como o HQ Mix e o Prêmio Angelo Agostini. Infelizmente, a produção local de ficção científica sequer é reconhecida pelo público, resumindo-se a simples tempero em obras que não se comprometem com o gênero. Se isso pode ser um entrave para a profissionalização dos autores dedicados à ficção científica, também dá uma liberdade experimental que não seria possível caso o mercado estivesse sedimentado.

Mas não é apenas nas livrarias que os quadrinhos de ficção científica têm prosperado. A internet tem se mostrado um terreno fértil para as mais diversas manifestações e, de acordo com o pesquisador Scott McCloud, essa pode se tornar a maior vertente das HQs, provocando uma revolução nos hábitos de consumo e fruição: “When I talk about digital delivery, I’m referring to comics that travel as pure information from producer to reader” (McCloud, 2000, p. 163). Nesses casos, forma e função atingem patamares inimagináveis, com custo baixo, atingindo um público maior. Há vários exemplos e podemos começar com a iniciativa hard de Gian Danton e Jean Okada, Exploradores do Desconhecido, em http://exploradoresdodesconhecido.wordpress.com, onde a intenção é fazer divulgação científica por intermédio da ficção científica. O traço de Okada remonta à estética das décadas de 1950 e 60, criando um efeito semelhante ao que Jameson chama de “pós-nostalgia” (2004, p. 293). Outro grande desdobramento é a parceria entre empresas de viés tecnológico com iniciativas de quadrinhos, como ocorre com a Oi, especializada em telefonia digital, no site http://quadrinhos.oi.com.br/hqs-online.html. Das cinco séries publicadas, três são a respeito de super-heróis com base na ficção científica e o fato de uma empresa estar por trás dos projetos é uma garantia de remuneração para os autores envolvidos. Outro expoente é Edgar Franco, autor que compõe pequenas histórias de ficção científica psicodélicas e art nouveau, também na linha de franceses como Duillet e Caza, em http://www.ritualart.net/ritual4b.htm.

Nos últimos dois anos, acompanhando a expansão do mercado nas livrarias e o fortalecimento de novas editoras especializadas, como Zarabatana, Aeroplano, Nemo, Barba Negra e diversas outras, surgiu um número maior de álbuns em quadrinhos dedicados à ficção científica. Destacaremos três dos lançamentos mais recentes, a saber, Astronauta Magnetar, de Danilo Beyruth, pela Panini Comics, em 2012, O Coronel, da dupla Valladão e Magalhães, lançado pela Nemo em 2013, e Tune 8, série independente de Rafael Albuquerque, inicialmente publicado on-line no site www.tune-8.com e depois em fascículos, pelo próprio autor  devido às suas particularidades e características diferenciadas dentro do que vinha sendo produzido no Brasil até então.

A escolha desses três exemplos é motivada pelas transformações que as obras representam na maneira como se passou a produzir e consumir HQs no Brasil e, em consequência, como a ficção científica, pegando carona no bom momento comercial, tornou-se uma possibilidade narrativa mais acessível a um público maior e envolvido com as novas formas de divulgação e distribuição tornadas possíveis pelo advento e popularização da Internet.

Astronauta Magnetar, uma ficção científica hard tradicional, com forte influência dos textos de Arthur C. Clarke e que busca adequar a narrativa das HQs a uma leitura diferenciada do tempo vivido pelo protagonista, é na verdade um projeto potencialmente arriscado que acabou se revelando um sucesso editorial do mais famoso quadrinista brasileiro, Maurício de Sousa.

Em 7 de dezembro de 2011, um mês depois de seu lançamento, a Panini Comics divulgou que a primeira tiragem da versão em capa dura do álbum esgotou e ganharia reimpressão. A versão em capa dura, para livrarias, era mais cara (R$ 29,90), mas havia outra versão, mais acessível (R$ 19,90) em capa cartonada. Ainda assim, a edição em capa dura esgotou mais rápido. A Panini e a Maurício de Sousa Produções não divulgaram os números da tiragem inicial ou da reimpressão, mas o feito é digno de nota. Os motivos para tal sucesso derivam de uma série de decisões e projetos editoriais que, elencados em sequência, chamaram a atenção do público, criando uma grande expectativa em torno da primeira graphic novel de uma série que visava recriar os populares personagens infantis de Maurício de Sousa em cenários e situações diferentes.

A escolha do artista Danilo Beyruth, recentemente laureado pelo álbum Bando de Dois, para ilustrar a história do Astronauta perdido no espaço revelou-se acertada. Lançando mão de recursos diagramáticos e páginas com experimentos radicais, Beyruth emprestou maturidade e relevo psicológico a um personagem secundário, que nunca foi título principal de nenhuma revista. Leitor assumido de escritores da Golden Age e da New Wave da ficção científica norte americana, como Isaac Asimov, Arthur Clarke, Philip K. Dick e Frank Herbert, o ilustrador – que também é o roteirista do álbum – recheia as 74 páginas com imagens típicas desses autores, tais como estrelas que se apagam (possível referência a Os nove bilhões de nomes de Deus, conto de Clarke), o uniforme/escafandro do Astronauta (que remete a 2001, filme de Kubrick baseado em conto de Clarke), o protagonista solitário, paranóico no espaço (citação a diversos contos de Philip K. Dick, onde a realidade se confunde com a loucura e a paranoia toma conta de espaçonautas solitários) e a transcendência mística através da memória e da alucinação (marca de Duna, obra seminal de Herbert).

Como se pode perceber, trata-se, ao menos no que diz respeito aos detalhes da trama, de um roteiro mais complexo do que os tradicionalmente desenvolvidos para qualquer história da Maurício de Sousa Produções, cheio de termos e conceitos cientificistas, além de um certo didatismo quando elementos de astronomia, como o próprio Magnetar do título, vêm à tona. Tradicionalmente considerado um gênero “difícil” e de alcance limitado, o álbum foi distribuído em bancas de jornal, a um preço acessível, apostando na visibilidade e na exposição maciça. O público respondeu positivamente e a HQ tornou-se um raro exemplo de sucesso de comercial e de crítica, provando que, ao contrário do que se acreditava, em condições ideais é possível vender ficção científica no Brasil.

O caso de O Coronel é um pouco diferente, mas entrelaçado em diversos pontos com Magnetar. Originalmente concebido como uma HQ de cinco páginas para a 1ª Bienal de Quadrinhos do Rio de Janeiro, de 1992, a história do soldado colonizador de outro planeta dominado pela consciência da arma que carrega foi adequada para constar da antologia MSP50, um projeto comemorativo anterior da Maurício de Sousa Produções, que, no ano do cinquentenário do quadrinista-empresário, oferecia ao público cinquenta HQs desenvolvidas por um igual número de artistas reunidas em um álbum.  Nessa segunda encarnação da história o astronauta genérico torna-se O Astronauta de Maurício de Sousa, ligeiramente alterado graficamente para fazer uma citação gráfica ao Tintin, personagem do belga Hergé. O cerne do conto gráfico, porém, que se manteve intacto na transposição, foi ampliado e ganhou contornos de fábula, tornando-se uma parábola sobre as relações entre pais e filhos.

É interessante perceber que, das três HQs selecionadas, duas tenham relação direta com o mesmo personagem, o que talvez represente uma identificação com tópicos realçados por Ginway e tratados neste artigo, mais especificamente a nave espacial e o mundo devastado.

Parece-nos então que, diante dessa nova vertente, os quadrinhos de ficção científica no Brasil tendem a uma maior visibilidade e a se estabelecerem como uma vertente expressiva. Se por um lado podem escorregar em eventuais reinvenções da roda ao ignorar o material produzido anteriormente, por outro trilham caminhos tecnológicos e econômicos jamais imaginados por seus antecessores, o que pode resultar em novas relações, novos temas e, principalmente, novos mundos.


*Octavio Aragão é doutor e mestre em Artes Visuais pela EBA-UFRJ, onde também se graduou em Comunicação Visual. Pós-graduado pelo PACC/UFRJ, é professor adjunto na ECO-UFRJ onde ministra as cadeiras de Jornalismo Gráfico 1 e 2 desde 2009, além de ser Coordenador de Intercâmbio. É autor dos livros A mão que cria (2006), Reis de todos os mundos possíveis (2013) e coautor de Imaginário brasileiro e zonas periféricas (2006).

Referências

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Tempo de leitura estimado: 27 minutos

El Nestornauta: a HQ El Eternauta e o imaginário nacionalista na Argentina kirchnerista | Amaury Fernandes*

Montoneras, Peronismo, Montoneros, Kirchnerismo

(…) se os signos não enganam, todo o aparato filosófico começa a ser uma casca vazia de vida
(Simmel, 2008, p. 219).

O peronismo não é compreensível para alguém que não seja peronista. A frase anterior pode parecer um absurdo do ponto de vista da ciência política, mas sob a ótica peronista é a mais acabada das verdades. No entanto, por menos que creiam os peronistas, como todo movimento político o peronismo é compreensível e passível de análise. Neste ensaio é explorado um dos aspectos mais marcantes desse movimento: a relação entre o peronismo e a cultura de massas. O objeto de estudo é a apropriação do personagem El Eternauta pelo kirchnerismo1 na criação da figura de El Nestornauta. São exploradas também as mudanças na representação do herói Juan Salvo nas duas HQs de El Eternauta, que propiciam essa apropriação.

O peronismo nasce marcado por um aspecto típico da cultura política argentina: o personalismo. Na longa guerra civil que ocorre após a libertação do domínio Espanhol os diferentes caudilhos disputam o poder em uma luta na qual há largo emprego da mais popular formação militar argentina: la montonera.

O individualismo constituía sua essência, o cavalo sua arma exclusiva, o pampa imenso seu teatro. (…) Massas imensas de ginetes que vagam pelo deserto, oferecendo combate às forças disciplinadas das cidades (…), presentes sempre, intangíveis por sua falta de coesão, débeis no combate, porém fortes e invencíveis em uma longa campanha, na qual, ao fim, a força organizada, o exército, sucumbe dizimado pelos encontros parciais, as surpresas, a fadiga, a extenuação. A montonera, tal como apareceu nos primeiros dias da república sob as ordens de Artigas, já apresentou esse caráter de ferocidade brutal e esse espírito terrorista (Sarmiento, 2010, p. 59).

A montonera, tropa de cavaleiros hábeis na guerra e incivilizados nas maneiras, marca a formação de tropas militares das primeiras disputas na Argentina. Lideradas por nomes como Artigas, López, Ibarra, Facundo e Rosas, essas massas de ginetes determinam a forma de disputa pelo poder que se instaura no começo da nação, a disputa do poder pela força e o culto ao líder que engendra o personalismo platino.

Fundamentado na liderança, na força política e nas formulações ideológicas de Juan Domingo Perón, e extremamente vinculado em seu imaginário à figura de Eva Perón, o peronismo nasce com as marcas tradicionais da política argentina: um forte personalismo e a constante tentativa de imposição de seus princípios. Sua doutrina é o justicialismo e, segundo os escritos de Perón (2007), representa uma terceira posição do espectro político, distante tanto do capitalismo como do comunismo. Do ponto de vista da tradicional tipificação política entre direita e esquerda o peronismo pode ser catalogado como um projeto político de centro, com movimentos pendulares ao longo da sua história, tendendo ora à direita, ora à esquerda, em função dos fatos históricos com os quais se confronta e dos apoios que encontra na sociedade argentina.

Perón é o primeiro político argentino a efetivamente compreender o papel que a comunicação de massa exerce nas sociedades modernas. Investe pesadamente na construção de um imaginário que vincule o peronismo, e sua inicial proximidade com a doutrina social-cristã, com aspectos como valorização da família, justiça social, distribuição de renda, melhora das condições de trabalho e do operariado e construção de um país rico economicamente e de uma sociedade sem conflitos de classes.

A tendência ao movimento pendular na política faz com que o peronismo seja complexo em seus aspectos ideológicos, e que seu percurso histórico como movimento político seja marcado por oscilações quase incompreensíveis para quem o estuda a partir de uma visão mais ortodoxa e com pouco conhecimento da história argentina.

O peronismo é dividido em períodos de acordo com a situação política do país. Surgido dos eventos de 17 de outubro de 19452, o chamado peronismo clássico compreende os dois primeiros mandatos presidenciais de Perón e se encerra com a sua deposição em 1955. Nesse período a progressiva perda de apoio dos oficiais militares, do empresariado e das antigas lideranças políticas leva o peronismo a uma aproximação das classes populares e do operariado. Os discursos em tom inflamado de Eva Perón contra as oligarquias e os “vendepátrias”, seu acercamento com a população mais carente, somados à perda de apoio de Perón entre as elites, levam o governo peronista a um movimento pendular à esquerda, com ações de cunho mais populistas. Desse quadro resulta um processo de crise, agravada pelos aspectos da economia mundial após 1950, que deixa de favorecer ao tipo de pauta de exportação da Argentina e dificulta o ingresso de recursos no país.

Em 1955 ocorre um golpe de Estado, há a proscrição legal do justicialismo e o peronismo passa por um período de mais de 18 anos de ilegalidade. Essa fase se encerra com o retorno de Perón em 1973 e sua terceira eleição para a presidência da Argentina, o que configura um segundo período de exercício do poder para o general. A aproximação progressiva com os seguimentos mais conservadores do peronismo leva a uma ruptura no movimento e a criação de um conflito com a chamada esquerda peronista, com a qual se alinha Oesterheld. A morte de Perón em 1974 leva ao poder sua esposa María Estela Martínez de Perón e o agravamento da crise política iniciada ainda com Perón vivo e os confrontos entre grupos armados de extrema direita e extrema esquerda levam a Argentina a um golpe de Estado e a instauração de novo período de ditadura militar.

É entre meados dos anos 1960 até a luta armada de enfrentamento com a ditadura militar liderada pelo general Jorge Videla que a organização Montoneros3 atua. Inicialmente fundada na ideologia social-cristã, aos poucos se converte em um grupo marxista que prega o socialismo nacional, teoria política própria da chamada esquerda peronista que mescla aspectos do socialismo com o justicialismo e as características específicas do processo sócio-político argentino. Com o afastamento de Perón de sua “juventude maravilhosa”4 o grupo segue se autoidentificando como peronista, mas passa ao confronto armado, intensificando as contradições ideológicas internas e se aproximando cada vez mais do socialismo utópico, que acredita na luta armada como único caminho para a resolução da luta de classes.

Devido ao forte personalismo da política argentina, no peronismo as correntes internas são identificadas através do nome de seus principais expoentes. Se, em seu começo o peronismo é profundamente identificado com as figuras de Perón e Evita, na década de 1970 essas mesmas figuras identificam dois ramos internos, com a imagem de Perón mais colada à fração conservadora e Evita identificada como o grande símbolo da denominada esquerda peronista, que se autoidentifica como evitista.

Nos anos 1990 o peronismo ressurge vinculado à figura de Carlos Menem e o menemismo faz com que o peronismo seja vinculado às políticas neoliberais que grassam no cenário político mundial da época. O começo do século XXI na Argentina é marcado por uma profunda crise econômica, política e social, resultante do fracasso das políticas econômicas do menemismo e da inabilidade político-administrativa do seu sucessor, Fernando de la Rúa. Em um breve intervalo a Argentina tem cinco presidentes diferentes, terminando o processo na assunção do poder por Eduardo Duhalde, um peronista que consegue estabilizar a política e a economia do país.

Nas eleições de 2003 o peronismo apresenta várias candidaturas e um candidato que parecia improvável em um primeiro momento se torna presidente da Argentina: Néstor Kirchner ganha o primeiro turno das eleições com 22% dos votos e, em função das pesquisas de opinião apontarem sua vitória com ampla margem no segundo turno, a desistência de Carlos Menem do pleito leva Kirchner à vitória definitiva.

O governo kirchnerista pode ser analisado como um prosseguimento da tradição personalista da política argentina. Constrói sua representação política ligada ao pensamento da juventude peronista dos anos 1970. O discurso oficial e toda a prática comunicacional do governo argentino de Néstor Kirchner e, posteriormente, de sua esposa Cristina Fernández de Kirchner é amparada na visualidade do peronismo clássico e da juventude peronista setentista5. É dentro da construção desse imaginário político e através das formas de representação identitária na sociedade de massas que surge a possibilidade da sobreposição entre a figura do presidente e a do herói da história em quadrinhos.

El viejo, sus historietas y su amigo

Héctor Germán Oesterheld nasce em Buenos Aires no ano de 1919. Apesar de ter formação profissional em geologia é a escrita que o atrai, publica contos infantis e histórias em quadrinhos desde o começo dos anos 1950. Já com histórias em parceiras com Paul Campani, Solano López e Hugo Pratt, em 1957 Oesterheld funda a editora Frontera e passa a publicar seus trabalhos nas revistas Hora Cero e Frontera. É através das páginas de Hora Cero que é publicada a primeira história de El Eternauta, entre 1957 e 1959, exatamente no momento de maior intensidade da repressão ao peronismo pela ditadura liderada pelo general Pedro Eugenio Aramburu.

Em fins dos anos 1960, Oesterheld se compromete politicamente ainda mais com os movimentos da chamada esquerda peronista. Escreve, junto com Alberto e Enrique Breccia, a biografia de Ernesto Guevara, um roteiro para filmobiografia de Eva Perón, faz os roteiros da história em quadrinhos La guerra de los Antartes, publicada no jornal Noticias, e a série Latinoamerican y el imperialismo, esta publicada nas páginas do semanário montonero El Descamisado.

A década de 1970 reserva para Oesterheld um roteiro nada amistoso. Na ilegalidade desde meados da década, o roteirista se isola em um refúgio no rio Tigre. Escreve o roteiro de El Eternauta II (ou El Eternauta segunda parte) entre 1976 e meados de 1977. Em função das atividades políticas da família, os órgãos de repressão e grupos paramilitares promovem o assassinato ou a desaparição de três de suas filhas entre junho e novembro de 1976. Além disso, como duas delas estavam grávidas, há o desaparecimento de dois de seus netos. Oesterheld é igualmente sequestrado e ilegalmente detido em abril de 1977. Há registros de suas passagens pelos centros ilegais de detenção do Campo de Mayo, “El Vesubio” e “El Sheraton”. Dados obtidos pela Conadep (Comissão Nacional de Desaparição de Pessoas) asseguram que o escritor é visto vivo em janeiro de 1978, após essa data não há registros relativos ao escritor e seus restos mortais seguem desaparecidos. A revista Skorpio publica as tiras da história entre dezembro de 1976 e abril de 1978.

O coautor de El Eternauta, Francisco Solano López nasce em Buenos Aires em 1928 e começa a desenhar profissionalmente no começo dos anos 1950. Desenha para a editora Frontera Rolo el marciano adoptivo, Amapola negra e Ernie Pike, entre outros. Em 1957 e em 1976 é o desenhista responsável por dar forma visual ao roteiro de Oesterheld para El Eternauta. Seu filho Gabriel é ilegalmente detido pelos órgãos de repressão em meados de 1977. Em função de suas relações pessoais, Francisco Solano López consegue sua libertação e a família segue para o exílio na Espanha, onde o desenhista finaliza as artes da segunda história.

El Eternauta e o peronismo clássico

O imaginário do peronismo é perpassado por referências contraditórias. Primeiro movimento político que sabe como lidar com a comunicação em uma sociedade de massas, o peronismo constrói todo um discurso para difundir suas ideias. Perón e Evita elaboram formas de argumentação para validar o imaginário constituído a partir de uma interpretação da realidade histórica e política da Argentina: o justicialismo desenvolvido por Perón.

Nessa construção de imaginário se desdobra uma identidade nacional forte, calcada no discurso de uma sociedade sem disputas entre suas classes, e completamente com base na intermediação do Estado para resolução de quaisquer conflitos, sempre em nome do bem comum e da vocação pacífica do povo argentino (Perón, 2007). A produção da comunicação do Estado é centralizada e fortemente organizada no sentido de influir na compreensão da realidade pelo povo argentino de acordo com a ideologia justicialista.

A necessidade de estabelecer uma doutrina única, gerada desde o Estado e que fixaria os objetivos da nação toda, se converteria durante o governo de Perón em um dos componentes cruciais do discurso peronista. O Estado deveria inculcar essa doutrina ao ponto de convertê-la em uma espécie de “marco mental coletivo” através do qual a realidade deveria ser interpretada. A doutrina devia unificar as leituras da realidade e, ao mesmo tempo, fixar claramente os limites do dissenso (Plotkin, 1994, p. 45).

Os papéis de gênero igualmente estão claramente definidos. Aos homens cabe prover o lar e às mulheres os cuidados com a casa e os filhos. Qualquer complementação de renda que as mulheres possam obter deve ser fruto de trabalhos que não a afastem fisicamente do lar. “E cada dia o mundo necessita em realidade de mais lares e, para isso, mais mulheres dispostas a cumprir bem seu destino e sua missão” (Perón, 2010, p. 137).

No campo visual o discurso desenvolvido é curiosamente vinculado ao imaginário socialista e a do New Deal, apesar de erroneamente se vincular o peronismo com os movimentos fascistas em função dos anos de formação de Perón na Itália de Mussolini.

Enquanto a propaganda nazista e fascista apelava às construções ideais míticas com o fim de legitimar a nova base das grandes tradições nacionais, a gráfica soviética e a do New Deal, assim como a do peronismo na década seguinte, glorificavam o presente superador do passado de atraso tecnológico e desigualdade social, mediante um clichê que é comum aos três casos. Representados conjuntamente e sem distinções hierárquicas, o operário fabril e o camponês referiam simultaneamente às categorias de “trabalhador” e “Nação” (Gené, 2005, p. 96).

O enfrentamento com o imperialismo, o desenvolvimento de uma indústria de capital argentino e a independência econômica da nação são as metas propugnadas, a família é a base de tudo, e os descamisados de Evita são convertidos em um exército a serviço dos propósitos políticos do justicialismo e do bem da Argentina, e de Perón.

Com a morte de Evita, em 1952, o regime sofre um profundo baque. Perde não só sua primeira dama, mas aquela que era a figura de proa e o motor da política assistencialista do Estado. Em 1955, muito em função das contradições internas, mas também em função da mudança do quadro econômico externo, Perón é derrubado do poder por um golpe de Estado. A violência da oposição anti-peronista chega ao ponto da promulgação de leis de desperonização da Argentina. Uma verdadeira fúria iconoclasta dos golpistas promove a destruição maciça de imagens e signos peronistas. A resistência dos peronistas passa ao campo do sutil, e é nesse quadro que a primeira historia de El Eternauta se enquadra.

Juan Salvo é constituído como uma referência ao homem peronista típico, chefe de família, trabalhador e com um pensamento voltado às ações empreendedoras que levariam a Argentina a se consolidar como uma sociedade justa, livre e independente. Ele é um profissional que constrói sua pequena “fábrica de transformadores”, o que permite que se conceda “aquele tipo de prazeres simples”, e este é seu horizonte.

Figura 1 – El Eternauta (Oesterheld, Lopéz, 2008, p. 90).
Figura 1 El Eternauta (Oesterheld, Lopéz, 2008, p. 90).

Na primeira história, o heroísmo é de certa forma coletivizado. Se cabe a Juan Salvo um protagonismo outros personagens (como Favalli ou Franco) assumem atitudes similares. Ao final, quando se vê só, após a queda de seus amigos, é à proteção da família que Juan se volta, o mesmo que ele busca em desespero no começo da história. Ao final do relato retorna aos braços de Elena e de Marta e é apagado de sua memória tudo o que viveu.

Nesse quadro a narrativa de cunho peronista se dilui em uma alegoria humanista, típica do próprio movimento, e o personagem assume uma postura coletivista, de um homem que, apesar de viver uma incrível aventura, retorna à sua função social de chefe de família e se esquece de sua participação direta na defesa da sociedade espelhando um anonimato que dissolve a individualidade em benefício do grupo social.

Figura 2 – El Eternauta (Oesterheld, Lopéz, 2008, p. 349).
Figura 2 – El Eternauta (Oesterheld, Lopéz, 2008, p. 349).

El Eternauta II e a juventude peronista

Em El Eternauta II o quadro narrativo se altera. A história é escrita com Oesterheld vivendo na clandestinidade e a visão de mundo do autor perpassa todo o relato. O personagem assume um protagonismo que fundamenta a narrativa; a família já não é o foco central, mas sim a salvação do “povo das covas”, uma alegoria relativa ao povo argentino em si; a postura de Juan Salvo não é de quem compõe um grupo, mas de quem lidera um grupo e está disposto a tudo para vencer os invasores, inclusive ao autossacrifício.

Figura 3 – El Eternauta II (Oesterheld, Lopéz, 2007, p. 170).
Figura 3 – El Eternauta II (Oesterheld, Lopéz, 2007, p. 170).

Essa transformação do personagem pode ser lida como uma alegoria sobre a situação da militância da Juventude Peronista. A mesma que para Perón passa de uma “juventude maravilhosa” a um grupo de “imberbes e estúpidos”6, a que se lança em uma luta feroz contra os grupos paramilitares que promoverão assassinatos e desaparecimentos durante mais de uma década. São grupos que propugnam o socialismo nacional, como as FAR (Forças Armadas Revolucionárias) e Montoneros, que após a decepção com Perón (e especialmente após a sua morte) assumem a luta armada como caminho para a construção de outra sociedade. É à ideologia desses grupos que Oesterheld e sua família se vinculam.

Figura 4 – El Eternauta (Oesterheld, Lopéz, 2007, p. 157).
Figura 4 – El Eternauta (Oesterheld, Lopéz, 2007, p. 157).

Mais que em qualquer sequência são os três quadros destacados acima de El Eternauta II que expõem essas mudanças. Enquanto na primeira história Juan Salvo é movido pela solidariedade aos seus companheiros e é representado como mais um no grupo, aqui seu protagonismo e sua liderança se tornam evidentes. Enquanto no quadro mais ao alto sua figura se impõe em meio ao grupo pela postura, pela centralidade de sua imagem no quadro e pelo tratamento do claro-escuro que a destacam, nos dois quadros seguintes o diálogo estabelece o tipo de relação e de prioridades que a luta contra a dominação dos invasores determina em seu caráter. O sacrifício pedido ao primeiro grupo do comando para possibilitar a infiltração do segundo é visto como uma obrigação necessária pelo salvamento do “povo das covas”. Essa passagem expressa de forma cabal o tipo de pensamento que movia os jovens montoneros que lutavam pela “libertação do povo argentino”. Os paralelos são inevitáveis, ainda que esse tipo de interpretação dependa do conhecimento das condições sociais, políticas e culturais da Argentina do período.

Nessa segunda narrativa Juan Salvo se transmuta de um homem peronista clássico em um líder montonero. O chefe de família dá lugar ao homem capaz de abandonar os seus para partir em uma missão que permita “libertar o povo”, mesmo que isso implique sua morte; o seu empreendedorismo abandona o egoísmo e passa a servir os interesses coletivos e da resistência; seus planos passam a ser os que lhe permitirão a consecução de objetivos políticos e militares, não mais almeja “aquele tipo de prazeres simples” resultante da vida familiar em um bairro de classe média em Buenos Aires.

Em resumo: em El Eternauta II há uma permuta no caráter de Juan Salvo, a personagem passa da representação do ethos do peronista típico do período clássico do movimento, do peronista ortodoxo e conservador, ao ethos do militante da juventude peronista dos anos 1970.

El Nestornauta

Nestor Kirchner é um jovem estudante na Universidade de La Plata nesse período. Como muitos, participa de grupos militantes e se envolve com a política. Seu grupo de amigos e companheiros de política nessa época é composto fundamentalmente por pares da geração setentista. É nesse imaginário que seus discursos vão beber e é no ethos dessa militância que o kirchnerismo se apoia para elaborar o seu próprio imaginário.

As características de coragem, capacidade de liderança, autossacrifício em favor da sociedade e de fidelidade a causas maiores que o personagem El Eternauta assume na segunda narrativa são oportunamente bem-vindas para a representação de um político cujo discurso se articula muito ao redor das expressões e representações que esse universo discursivo pode vincular à sua imagem.

Figura 5 – Imagens de El Eternauta, no desenho de Solano López, e El Nestornauta, em estêncil (fonte: http://en.wikipedia.org/ e http://www.taringa.net/).
Figura 5 – Imagens de El Eternauta, no desenho de Solano López, e El Nestornauta, em estêncil (fonte: http://en.wikipedia.org/ e http://www.taringa.net/).

É nesse quadro que o estêncil de El Nestornauta surge. Interessante perceber que a imagem selecionada para a criação do desenho é originária da primeira história, na qual o personagem ainda mantém características mais coletivistas e uma postura menos heroica com relação ao enfrentamento dos invasores. Uma vez que o lapso de tempo entre a publicação das duas narrativas é de quase 20 anos, as imagens da primeira narrativa são as que mais profundamente se consolidam como parte do imaginário peronista da Argentina, e com muita amplitude. A segunda narrativa, apesar de não mais apresentar a imagem com a roupa isolante que permite sua circulação em meio à nevasca radioativa que tudo mata, não substitui a imagem tradicional de Juan Salvo que é utilizada na criação de El Nestornauta.

Alguns autores afirmam que há uma predominância do ethos militante setentista na formação do imaginário kirchnerista, o que efetivamente permite a construção de um paralelo entre o discurso de Néstor Kirchner e a figura de Juan Salvo na segunda história, uma vez que no período de sua juventude, quando se forma como quadro da militância da juventude peronista “(…) a prática política implicava uma dimensão de sacrifício, audácia, voluntarismo e alto compromisso pessoal e político, compromisso que se figurava como um mandato, um legado ou uma missão herdado de lutas históricas precedentes” (Montero, 2012, p. 131, grifos do original).

No entanto, alguns aspectos denunciam o quanto o ethos kirchnerista mescla as heranças peronistas. O uso de uma imagem que se origina da primeira história é um primeiro fato que aproxima o personagem criado do peronismo clássico, assim como a supressão do rifle. Essas características acentuam a vinculação com uma dada versão do peronismo como força política que vai bem além da herança setentista.

El Eternauta é parte de um corpus de imagens que vinculam o peronismo setentista ao peronismo clássico, centrado na doutrina justicialista e com uma reinterpretação relativa dos seus preceitos básicos. A complexidade e as contradições do peronismo plasmam a construção do imaginário do kirchnerismo, que não nega suas vinculações, por mais que as dissimule em determinados momentos através da valorização da memória geracional na qual se inscrevem tanto Néstor Kirchner quanto Cristina Fernández de Kirchner. Esse movimento engendra a seleção de imagens que viabiliza a formação de um imaginário com múltiplos vínculos com diferentes fases do peronismo, o que viabiliza as diferentes leituras necessárias para a identificação por diferentes frações do peronismo. Daí a utilização de uma imagem de um Juan Salvo clássico e não da sua versão montonera.

Figura 6 – Cartaz da festa de 25 de maio em Buenos Aires no qual se vê a associação explícita entre as imagens de alguns dos personagens centrais do peronismo para o kirchnerismo: Perón, Cámpora, Néstor e Cristina (fonte: https://www.facebook.com/7Diciembre2012).
Figura 6 – Cartaz da festa de 25 de maio em Buenos Aires no qual se vê a associação explícita entre as imagens de alguns dos personagens centrais do peronismo para o kirchnerismo: Perón, Cámpora, Néstor e Cristina (fonte: https://www.facebook.com/7Diciembre2012).

Considerações finais
Dentro da realidade política do peronismo, a mescla de quadrinhos e poder é uma combinação absolutamente compreensível. Primeiro movimento político argentino a se confrontar seriamente com as necessidades do processo da comunicação em uma sociedade de massas, a adoção da história em quadrinhos como forma de expressão do pensamento político se torna um caminho natural para seus simpatizantes e partidários.

Figura 7 – El Eternauta (Oesterheld, Lopéz, 2007, p. 208).
Figura 7 – El Eternauta (Oesterheld, Lopéz, 2007, p. 208).

Para as gerações de argentinos nascidos após 1945 as HQs de El Eternauta constroem um discurso positivo sobre o peronismo e antagônico aos seus perseguidores, uma vez que nas duas épocas em que são publicadas o movimento está sob repressão de governos autoritários. O personagem Juan Salvo passa por um processo de ressignificação que o adapta às diferentes realidades sócio-históricas com as quais o movimento se confronta. A criação de uma figura como a de El Nestornauta é mais uma ressignificação e em seu bojo vincula o peronismo clássico, o peronismo de esquerda setentista e o kirchnerismo, os associando a ideias positivas da doutrina justicialista como nacionalismo, humanismo, justiça social e idealismo.

Nesse contexto, os quadrinhos finais da segunda história, já plenos de significação uma vez que a ação se passa em um suposto dezembro de 1976, ressignificam o peronismo e o inserem em um todo discursivo que reforça seu confronto e a luta contra os regimes autoritários que provocaram tantas decepções e dores ao povo argentino. Assim como Germán, Nestor se alia de forma definitiva a Juan Salvo na luta contra a dominação alienígena.

Voltando ao pensamento de Simmel, se El Nestornauta não nos enganasse e vinculasse o imaginário kirchnerista com uma visão totalizante do peronismo, não exerceria sua função sígnica plenamente, pois deixaria de ser uma parte axial da elaboração desse discurso complexo e não nos brindaria com uma expressão visual plena de vida.


*Amaury Fernandes é diretor da Escola de Comunicação da UFRJ, professor do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da EBA-UFRJ, pós-doutor em Economia-Política da Comunicação pela Universidad Nacional de Quilmes, doutor em Ciências Sociais pelo PPCIS-UERJ, mestre em História da Arte pelo PPGAV-UFRJ, designer pela EBA-UFRJ. Autor do livro Fundamentos de produção gráfica para quem não é produtor gráfico e de diversos artigos sobre artes gráficas, imagem, design e comunicação.

Referências

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FEINMANN, José Pablo. El flaco: diálogos irreverentes con Néstor Kirchner. Buenos Aires: Planeta, 2001.
GALASSO, Norberto. De Perón a Kirchner: apuntes sobre la historia del peronismo. Buenos Aires: Punto de Encontro, 2011.
GENÉ, Marcela. Un mundo feliz: imágenes de los trabajadores em el primer peronismo, 1946-1955. Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica, 2005.
MONTERO, Ana Soledad. ¡Y al final un día volvimos! Los usos de la memoria en el discurso kirchnerista (2003-2007). Buenos Aires: Prometeo, 2012.
OESTERHELD, Hector G.; LÓPEZ, Francisco Solano. El eternauta: edicción especial. Buenos Aires: Doedytores, 2008.
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PERÓN, Eva. La razón de mi vida. Buenos Aires: Bureau, 2010.
PERÓN, Juan Domingo. La comunidad organizada. Buenos Aires: Quadrata, 2007.
PLOTKIN, Mariano. Mañana es San Perón: propaganda, rituales políticos y educación em el regime peronista (1946-1955). Buenos Aires: Ariel, 1994.
POLLASTRI, Sergio. Las violetas del paraíso: una historia montonera. Buenos Aires: El cielo por asalto, 2004.
ROMERO, José Luis. Breve historia de la Argentina. Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica, 2012.
SARLO, Beatriz. La audacia y el cálculo: Kirchner 2003-2010. Buenos Aires: Sudamericana, 2001.
SARMIENTO, Domingo F. Facundo. Buenos Aires: Terramar, 2010.
SIMMEL, Georg. De la esencia de la cultura. Buenos Aires: Prometeo, 2008.

Notas

1 Kirchnerismo é a designação que agrupa os seguidores políticos de Nestor Kirchner e Cristina Fernández de Kirchner na Argentina contemporânea. Sobre o assunto ler Sarlo (2011) e Feinmann (2011).

2 Através de sua participação no golpe de Estado de 1943, Perón ascende ao cargo de Secretário de trabalho e Previdência. No exercício dessa função consegue angariar apoios políticos de militares, empresários e trabalhadores e ascende à vice-presidência. Esse aumento de poder gera receio em outras frações do exército que conseguem seu aprisionamento no começo de outubro de 1945. Na noite de 17 de outubro de 1945 centenas de milhares de manifestantes ocupam a tradicional Plaza de Mayo, em Buenos Aires e exigem sua libertação. Desde então o 17 de outubro é considerado a data natal do peronismo e esse dia é conhecido como “Dia da lealdade” (Romero, 2012). Sobre a história do peronismo, ler Galasso (2011).

3 Sobre o grupo Montoneros ler Pollastri (2004) e Bonasso (2011).

4 Em 1969 o grupo Montoneros sequestra o general Aramburu (líder do golpe de Estado de 1955) e o executa por ter ordenado o fuzilamento de peronistas que resistiram ao golpe. Perón, desde o exílio, qualifica esse agrupamento de “juventude maravilhosa” e os reconhece como “formações especiais do movimento peronista” (Pollastri, 2004, p. 16).

5 Sobre o setentismo ler Amato e Bazán (2008).

6 Na festa do 1º de maio de 1973 houve um confronto entre Perón e os grupos de jovens que se alinhavam sob as bandeiras da Juventude Peronista e dos Montoneros no tradicional ato na Plaza de Mayo. Enquanto Perón defendia as lideranças sindicais, mais vinculadas ao peronismo ortodoxo e ao conservadorismo, os jovens cobram com seus cânticos o reconhecimento de sua militância que havia contribuído para o retorno de Perón do exílio. Ao final Perón qualifica esses jovens de “imberbes e estúpidos” e os grupos de jovens se retiram da praça em meio ao ato entoando cânticos de protesto.

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A revolução da independência: considerações sobre o Catarse e quadrinhos independentes como opção para o mercado editorial | Victor Almeida*

Nos últimos anos, o mercado editorial vem passando por um processo de inquietação devido à inclusão do livro digital nas livrarias. Essa mudança levou a uma série de debates, eventos, artigos e preocupações sobre como essa nova e significativa fase poderia afetar o futuro do livro, seja pela diversificação de plataformas de publicação, seja pelo papel do editor em meio a tantos novos casos de autopublicação. Será o fim do livro de papel em longo prazo, agora que o mercado digital começou? O que farão as pequenas livrarias, agora que a compra de um livro ocorre instantaneamente, com o apertar de um botão? E principalmente: como isso afetará o nosso país?

O Brasil, até a data deste artigo, encontra-se em processo de adaptação, de reposicionamento, e os livros digitais (ou e-books), embora já sejam uma realidade, consequentemente ainda não apresentam grandes resultados em vendas. Carlo Carrenho, fundador do site Publishnews e especialista em mercado editorial, a partir das previsões da DLD (Distribuidora de Livros Digitais) estabelece que, embora esteja em uma curva ascendente de crescimento (ver Figura 1), o mercado digital em 2013 correspondeu a apenas 2,63% do total de vendas (Carrenho, 2013).

Figura 1 - Venda de e-books no Brasil (2012-2013). Fonte: <http://www.tiposdigitais.com/2013/01/o-tamanho-do-mercado-de-ebooks-no-brasil.html>.
Figura 1 – Venda de e-books no Brasil (2012-2013).
Fonte: http://www.tiposdigitais.com/2013/01/o-tamanho-do-mercado-de-ebooks-no-brasil.html.

Um dos motivos básicos para tal dado é a continuidade da pouca prática de leitura em território nacional. Embora o consumo de livros tenha aumentado nas classes C, D e E, avalia-se que a média de leitura brasileira seja de apenas quatro livros por habitante ao ano. Se cogitarmos a aceitação dos e-books, a situação é ainda mais crítica: 45% dos entrevistados nunca ouviram falar de uma versão digital para os livros (Instituto Pró-Livro, 2012).

Logo, a transição continua concentrada nas mãos de poucos. O que pode ser contraditório, já que a principal mudança nesse processo não é a do fim do papel e o início da tela de e-ink com alta resolução. A principal mudança nessa transição, como bem aponta o editor, administrador e teórico Júlio Silveira, está no acesso, na facilidade de publicação, na facilidade do produto chegar à mão do leitor sem intermediários. Como resultado, vemos cada vez mais casos internacionais de autores reconhecidos com projetos de self-publishing e a Amazon defendendo abertamente o fim das editoras na Feira do Livro de Londres ao apresentar o Kindle Direct Publishing, seu serviço de publicação independente, iniciando uma “revolução para novos autores” e uma reação furiosa dos editores (Silveira, 2013).

No caso dos quadrinhos, um exemplo positivo dessa lógica está em uma HQ nacional com trilha sonora, criada por autores desconhecidos (até então) pelo grande público. O que poderia parecer um projeto financeiramente inviável para algumas editoras, tornou-se realidade no fim de 2011, quando a HQ Achados e perdidos do roteirista Eduardo Damasceno, do ilustrador Luís Felipe Garrocho e do músico Bruno Ito passou a ser, com a ajuda de 571 apoiadores, um dos primeiros quadrinhos publicados de forma bem-sucedida por uma plataforma de crowdfunding, ou melhor, de financiamento coletivo.1

O projeto, planejado desde 2007, acabou se tornando um material impresso de 212 páginas de quadrinhos e extras, acompanhado por um CD encartado. Para os leitores/ouvintes, fica a opção de ler a obra sem ouvir o CD, ouvir o CD separadamente ou unir as duas mídias para uma experiência completa. Para a impressão do álbum e gravação dos CDs seriam necessários 25 mil reais como custo de produção. O trio arrecadou mais de 30 mil reais e se tornou um exemplo para novos artistas publicarem pelo mesmo caminho. Em 2012, a HQ passou a ser publicada pela editora Miguilim.

Ao ser questionado sobre o motivo pelo qual publicaram por essa forma de financiamento, pouco explorada na época, Damasceno alegou que

essa forma de financiamento (…) está muito de acordo com o que a gente acredita em relação à produção de entretenimento. A ideia de as pessoas que querem ver o livro pronto bancarem a produção dele é sensacional. Não vejo tanto como renovação, ou algo do tipo porque ainda acho tanto as editoras quanto os editais formas interessantes, consolidadas e bem estruturadas de se viabilizar projetos. Mas pra gente, nesse momento, o crowndfunding se encaixou perfeitamente no que estávamos querendo e na forma como produzimos. Espero sim que com o tempo e à medida que mais projetos forem acontecendo assim se torne mais uma plataforma de publicação. Não tenho nenhum tipo de ranço com o sistema de publicações por editoras ou coisa do tipo. Nós somos dois, e ambos extremamente exigentes com o nosso trabalho, com o de cada um e com o do outro. Tentamos fazer o melhor que podemos sendo nossos próprios editores (grifos meus). 2

Em sua resposta, o roteirista citou dois pontos relevantes, que serão abordados neste artigo: a) O que necessariamente é o crowdfunding/financiamento coletivo e qual a sua vantagem na publicação de quadrinhos? e b) Qual é o papel do leitor de quadrinhos nessa plataforma de publicação?

O mercado independente de quadrinhos e o crowdfunding

Uma das maiores surpresas do mercado editorial de quadrinhos no Brasil nos últimos anos foi a quantidade de títulos lançados de maneira independente. Não apenas a quantidade, mas a qualidade, comprovada pelos prêmios recebidos pelos artistas.

Embora já haja categorias específicas para publicações desse tipo,3 o Troféu HQ Mix, uma das mais tradicionais premiações dos quadrinhos brasileiros, deu a Vitor Cafaggi,4 roteirista e quadrinista independente, o prêmio de “Novo Talento – roteirista” em 2012. No mesmo ano, Birds, um trabalho independente e sem nenhum balão de texto, deu a Gustavo Duarte o prêmio de “Publicação de Aventura/Terror/Ficção”.5 Achados e perdidos recebeu uma homenagem especial.

Esse número de indicações só aumenta se avaliarmos a lista de indicados ao HQ Mix 2013, divulgada em abril deste ano.6 E com uma interessante surpresa: muitos dos títulos nascidos por projetos de crowdfunding e artistas que ou optaram ou estão optando por publicar dessa forma. Mas o que é crowdfunding? De forma bem simples, o termo é usado para designar as iniciativas de financiamento colaborativas em que:

Os diversos projetos como, por exemplo, (…) a produção de um CD de uma banda ou a publicação de um livro, são hospedados em um site voltado para captação de doações coletivas em prol da efetivação do trabalho apresentado (Cocate & Pernisa Júnior, 2012, p. 135-136).

Dessa forma, o autor estabelece a quantidade necessária para possibilitar a realização do seu projeto ou negócio, espalha a sua ideia, e depois recompensa os que o apoiaram financeiramente. Essas recompensas, por sua vez, dependem do valor investido no projeto. No caso do Achados e perdidos, por exemplo, as recompensas variaram desde o nome do colaborador na página do livro, caso investisse R$10; um pacote com livro, CD, pôster, postal, bóton, camiseta, adesivo, caderno, esboços originais autografados, caso investisse R$100 e até uma música original do Bruno Ito, caso investisse mais de R$1.000.

Um estudo divulgado pela consultoria Massolution mostrou que só em 2012 esse tipo de financiamento movimentou US$2,7 bilhões no mundo. E, para 2013, a previsão era de US$5,1 bilhões (Mello Dias, 2013).

No quesito livros, o primeiro grande caso de sucesso referente a financiamento coletivo foi a plataforma britânica Unbound, criada por John Mitchinson, um dos diretores da cadeia de livrarias Waterstone (Silveira, 2012). Nela, interessados em publicar apresentam a sinopse do livro. Os leitores/internautas que apoiarem a história “compram” a ideia. Essa “compra” consiste em valores de 10 a 250 libras. Além de ser uma ótima ferramenta de feedback, já que os leitores podem opinar ou sugerir os temas para os próximos livros, todos os colaboradores têm seus nomes publicados no final de cada obra e recebem participação nos lucros, caso o mesmo seja publicado. Quando a quantia necessária não é atingida, os colaboradores/investidores são reembolsados ou recebem a opção de investir em outro projeto.

E para os quadrinhos? O teórico e quadrinista Scott McCloud afirma em seu livro Reinventando os quadrinhos que “temos de perguntar o que os quadrinhos podem fazer num ambiente digital e quais dessas opções se mostrarão valiosas a longo prazo”. (McCloud, 2005, p. 207). Para o mercado independente, ou seja, para os autores que apostam em publicar suas obras sem a presença de um editor, a solução pode estar no Comixology ou no Catarse.

Para artistas que preferem publicar apenas digitalmente, ou seja, sem um formato físico de capa, miolo e tinta, o Comixology é uma boa opção. Inicialmente, o site trabalhava apenas como plataforma de distribuição, busca e organização de títulos digitais das principais editoras norte-americanas, tendo atualizações semanais. Mas a partir de março de 2013, ficou disponível o portal ComiXology Submit, para que criadores de HQs possam submeter suas histórias gratuitamente. Após a inscrição e submissão do material, os quadrinhos são avaliados e, caso sejam aprovados, são exibidos no portal principal, onde podem ser comprados pelos leitores em versões para iPad, iPhone, Android, Kindle Fire, Windows 8 e Internet. O lucro com as vendas é dividido entre o autor e o ComiXology, mas o artista mantém integralmente os seus direitos sobre a sua criação.7

Lançado em janeiro de 2011, o Catarse, por sua vez, é a primeira plataforma brasileira de crowdfunding. Inspirado no Kickstarter8 e criado em 2008, tem o seu perfil mais voltado ao empreendedorismo cultural e artístico. Utilizando a estratégia de apresentar o projeto, buscar colaboradores e recompensá-los, como explicado anteriormente, o autor tem até sessenta dias (prazo máximo) para captar o dinheiro necessário para cobrir as despesas de produção. O valor financiado pelos apoiadores é repassado ao idealizador do projeto, e este paga ao Catarse 13% da quantia recebida, sendo que este valor inclui tanto a comissão do Catarse como a taxa do meio de pagamento, que processa as transações. Sendo assim, se o projeto não atingir o objetivo e não arrecadar a quantia estipulada, o valor pago pelo apoiador é devolvido.

Desde a sua criação até meados de 2013, o Catarse já havia levantado R$7,3 milhões, financiando assim 520 projetos. Embora as áreas de música e cinema liderem em número, a categoria mais bem-sucedida é a de quadrinhos: 75% dos projetos atingem a meta (Mello Dias, 2013) alguns ultrapassam em 100% o valor dessa meta pretendida (ver projetos em negrito na Tabela 1).

Na prática, a plataforma acaba superando em número de lançamentos nacionais (de artistas diferentes) as editoras especializadas no gênero. Por exemplo, nos anos de 2012 e 2013 a Quadrinhos na Cia., selo de quadrinhos da editora Cia. das Letras, publicou dez obras nacionais, de autores como Angeli, Luiz Gê e Lourenço Mutarelli (Tabela 2). No mesmo período, o Catarse possibilitou a produção e publicação de 60 projetos.

Título Autor(es) Período de finalização do projeto Quantidade levantada Porcentagem conquistada
O beijo adolescente 3 Rafael Coutinho 29/12/2013 R$ 41.366 105%
Mistiras – volume 1 Ary Santa Cruz Netto 02/12/2013 R$ 6.765 106%
Mês Mês Zines 30/11/2013 R$ 15.101 116%
Portais Octavio Cariello 30/11/2013 R$ 30.795 123%
Golden age – a era de ouro dos quadrinhos Marcelo e Alice Feldmann 29/11/2013 R$ 38.923 112%
Objetos inanimados João Bandeira 24/11/2013 R$ 9.815 119%
Visualizando Citações Milena Azevedo 19/11/2013 R$ 8.065 124%
Ana e o Sapo: quadrinhos de um quadro só Ana Lu Medeiros 19/11/2013 R$ 8.580 143%
A Vida com Logan para Ler no Sofá Flavio Soares 18/11/2013 R$ 16.990 113%
Fazendo o Homem Acreditar Felipe Morcelli 17/11/2013 R$ 14.880 148%
Zine XXX Vários 14/11/2013 R$ 20.649 187%
Passaporte Jão 09/11/2013 R$ 8.145 116%
Conexão Nanquim Impressa! Caique Felipe Suikin 31/10/2013 R$ 8.276 118%
Peixe Peludo 2 Rafael Moralez 29/10/2013 R$ 7.470 114%
Lost Kids: Buscando Samarkand Felipe Cagno 27/10/2013 R$ 45.464 151%
Ozman Nêmesis André Freitas 27/10/2013 R$ 6.210 103%
Ghilan Mariá Raposa Branca 27/10/2013 R$ 5.290 176%
Coletânea Tarja Preta Volume I Matias Maximiliano 26/10/2013 R$ 14.031 112%
São Paulo dos Mortos Daniel Esteves 23/10/2013 R$ 16.250 146%
Quad! Diego Sanches 13/10/2013 R$ 25.905 172%
Revolta! André Caliman 08/10/2013 R$17.540 116%
Oigo edições 02 e 03 Diego José 05/10/2013 R$ 2.915 107%
Nem morto – Apocalipse Leonardo Finocchi 03/10/2013 R$ 8.161 136%
Terapia – vol. 1 Portal Petisco 01/10/2013 R$ 40.730 135%
Por dentro do Máscara de Ferro Bernardo Aurélio 30/09/2013 R$ 2.815 140%
Maki Lobo limão 23/09/2013 R$ 15.407 154%
Perpetuum Mobile Diego Sanchez 16/09/2013 R$ 9.574 478%
Cara, eu sou legal! Marília Bruno 07/09/2013 R$ 5.465 182%
Mercenary Crusade Alex D’Ates 25/08/2013 R$ 5.605 101%
Coprólitos – Antologia Marcatti 20/08/2013 R$ 15.557 185%
Ícones dos quadrinhos Ivan Costa 20/08/2013 R$ 61.665 181%
Ciranda da Solidão – EntreQuadros Mário Oliveira 08/08/2013 R$ 9.942 111%
Votu – O Demônio da Amazônia Mario Cavalcanti 30/07/2013 R$ 5.056 115%
Guias do SEXO ilustrados Lasiva 25/07/2013 R$ 15.469 130%
Cuecas por cima das calças Rafael Koff 07/07/2013 R$26.113 522%
Apagão – vol. 1 – cidade sem lei/luz Raphael Fernades 05/07/2013 R$ 21.347 190%
Egum André Luiz Alonso de Assis 14/06/2013 R$28.157 117%
A maldição de Boa Fortuna André Só 24/05/2013 R$24.010 112%
Gnut Paulo Crumbim 20/04/2013 R$25.836 143%
O monstro Coala 05/04/2013 R$43.643 201%
Libre! Librecoletivo 29/03/2013 R$14.931 212%
Abaité: bandeirantes Richard Dantas Guarani-Kayowá 21/03/2013 R$5.499 122%
Shogum dos mortos – vol. 1 – Crepúsculo dos samurais Daniel Wernëck 16/03/2013 R$30.976 333%
Combo rangers Fabio Yabu 19/02/2013 R$67.540 169%
Freddy and Jason have fun Rafael Koff 08/02/2013 R$6.200 206%
Livro comemorativo 10 anos de tira Vida de leiturista Karlo Campos 04/02/2013 R$6.070 101%
Mascate – Motioncomic Yves Santaella Briquet 26/01/2013 R$13.265 110%
Tools challenge volume 1 Max Andrade 18/01/2013 R$6.305 126%
Samba 3 (SAMBA) 09/12/2012 R$17.655 117%
Ryotiras Omnibus Ricardo Tokumoto 27/09/2012 R$33.059 220%
Álbum de coletânea do Petisco Cadu Simões 21/09/2012 R$16.535 110%
Tirinhas do Zodíaco (2ª edição) Rafael Koff 11/09/2012 R$8.745 174%
Happy Slap! Maxx Figueiredo 31/08/2012 R$8.960 100%
Salomão Ventura – Caçador de lendas #3 Giorgio Galli Neto 30/08/2012 R$2.246 124%
Last RPG Fantasy – Livro jogo Lobo Limão 26/08/2012 R$16.852 129%
O beijo adolescente – Segunda temporada Rafael Coutinho 19/08/2012 R$36.735 114%
Revista Café Espacial nº 11 Café Espacial 13/08/2012 R$5.621 112%
Zinecórnio nº3 Mayara Pascotto 21/07/2012 R$300 142%

Tabela 1 – Produções financiadas nos anos de 2012 e 2013.
Fonte: http://catarse.me/pt/explore#quadrinhos.

Título Autor(es) Ano de publicação
Campo em branco Emilio Fraia e DW Ribatski 2013
O lixo da história Angeli 2013
V.I.S.H.N.U. Eric Acher, Ronaldo Bressane e Fábio Cobiaco 2012
Guadalupe Odyr e Angélica Freitas 2012
A máquina de Goldberg Vanessa Barbara e Fido Nesti 2012
Monstros! Gustavo Duarte 2012
Toda Rê Bordosa Angeli 2012
Diomedes – A trilogia do acidente Lourenço Mutarelli 2012
Deus, essa gostosa Rafael Campos Rocha 2012
Avenida Paulista Luiz Gê 2012

Tabela 2 – Lançamentos nacionais da Quadrinhos na Cia.
Fonte: http://www.companhiadasletras.com.br/busca.php?b_categoria=77&b_filtro=livro.

A relação de sucesso dessas publicações pelo Catarse leva a conclusão de que o modelo crowdfunding funciona melhor, sem dúvida, nos casos em que a pessoa que incentiva o faz porque gosta e se identifica com os projetos. E o seu público-alvo bem específico talvez seja a explicação para os quadrinhos serem, até agora, uma das áreas do mercado editorial que melhor teve aceitação nesse novo modelo.

Se a “preocupante” revolução digital está sendo bem-sucedida com os quadrinhos, a diferença pode estar na presença de seus fãs. No seu carinho pelo trabalho dos autores e por sua cada vez maior participação no mercado.

O papel do fã no crowdfunding

Um bom exemplo da relação dos fãs com plataformas de financiamento é o projeto brasileiro Queremos. A ideia nasceu da vontade de trazer ao Brasil a banda sueca Mike Snow em setembro de 2010. Conquistada a meta, dois meses depois, uma nova proposta foi proposta: trazer a banda escocesa Belle & Sebastian, há nove anos ausente de nosso país. Para tanto, seria necessário captar o valor de 56 mil reais.

Um site foi criado e o plano mais uma vez foi bem-sucedido ao convencer 280 pessoas a pagar R$200 por ingresso reembolsável. Com o custo do show pago, os organizadores iniciaram a venda do restante dos ingressos por R$100. Ao atingir certo número de ingressos vendidos, as 280 pessoas que financiaram o projeto tiveram retorno integral do investimento. Os shows e o projeto continuam até hoje com imenso sucesso.9

Este é apenas um exemplo de uma mudança recorrente na posição do consumidor na sociedade. A globalização modificou drasticamente o consumo e a produção de sentidos, ao mesmo tempo que, finalmente, possibilitou o fim da relação unilateral entre os produtores de conhecimento e seus receptores, que deixam de viver em uma sociedade de consumo taylorista/fordista, em que o papel do consumidor é de simples aquisição do produto, passando para a era do chamado “capitalismo cognitivo”:

No contexto do capitalismo cognitivo, o consumo não é mais destrutivo e sim produtivo, de forma que a articulação das novas tecnologias, a ‘convergência multimídia’, faz com que os usuários/consumidores transformem-se em usuários/produtores, rompendo a tradicional separação entre trabalho e meios de produção – o antigo controle sobre as tecnologias de produção e comunicação que centralizava e emissão de conteúdos em poucos grupos monopolistas – e entre mundo do trabalho e mundo da vida privada. Os novos parâmetros de produção no capitalismo cognitivo estabelecem-se justamente na interação entre produtores e usuários que formam, através do uso e apropriação das ferramentas informacionais (os softwares), redes coletivas de interação produtiva (denominadas netwares) (Gabbay, 2003, p. 3).

Na equação de sucesso dos quadrinhos independentes pelo Catarse, acrescenta-se a esse novo posicionamento o conceito de LoveMark. Em Cultura da convergência, Henry Jenkins o define como as marcas que conquistam o amor e o respeito do consumidor por meio de um novo discurso em marketing e pesquisa que “enfatiza o envolvimento emocional dos consumidores” (Jenkins, 2008, p. 333).

Leitores são fiéis a autores. Leitores de quadrinhos são fiéis a autores, ilustradores, universos e, em alguns casos, ao formato pelo qual tais histórias são transmitidas. Embora não tenha o poder de criar um best-seller, considerando que é um nicho de mercado, são um público-alvo fiel. E convidá-los a participar da construção desse universo é uma forma de fidelizá-los ainda mais.

Dessa forma, em meio à terra da Internet, lugar de Photoshops, blogs, vlogs, fotologs e youtubes, onde nascem cada vez mais homenagens e histórias alternativas por meio de fanfics (contos), fanarts (ilustrações), vídeos remixados etc., os fãs, em seu posicionamento de também produtores, acabam incentivando e difundindo a indústria. Eles conseguem assimilar as convergências midiáticas, as sucessivas atualizações e determinações tecnológicas e desenvolver esses universos ricos. São consumidores e propagadores. De acordo com Jenkins, eles são “os grandes defensores da marca (…) aqueles que sugerem melhorias e espalham novidades sobre a marca nos meios em que podem publicar. O consumidor mais valioso pode ser o mais passional” (Jenkins, 2008, p. 47).

Assim, por meio dessa cultura participativa, o fã tem a oportunidade de tomar parte mais ativamente, evoluindo do consumidor passivo para uma parte integrante do negócio e, nesta nova etapa de financiamento coletivo, de parte integrante do negócio para responsável pela produção.

Um bom e recente caso que combina a cultura da participação e o LoveMark nos quadrinhos é a série Combo Rangers. Idealizada em 1998 por Fábio Yabu, hoje mais conhecido como o criador da série Princesas do mar, a série de webcomics feitas em Flash era uma paródia dos seriados super sentai10, como Flashman, Changeman etc. Neste caso, cinco crianças eram escolhidas por um herói aposentado, Poderoso Combo, para receber poderes e defender a Terra de ameaças alienígenas.

A divertida série infantojuvenil resultou em três temporadas11 e duas versões impressas, uma pela editora JBC, em 2000, e uma pela Panini Comics, em 2004, ano em que foi aposentada pelo autor. Mesmo com as críticas e pedidos dos leitores, Yabu decidiu não dar continuidade ao universo dos Combo Rangers nos últimos dez anos e começou a se dedicar a outra série, voltada mais para o universo infantil feminino: Princesas do mar. As princesas do mundo de Salácia renderam ao autor oito livros e uma série animada exibida no canal Discovery Kids. Nesse meio-tempo, Yabu escreveu alguns livros, como Raimundo, cidadão do mundo e Apolinário, o homem-dicionário (Panda Books) e A última princesa (Galera Record). Sob o pseudônimo de Abu Fobiya, lançou ainda pela editora Nerdbooks Branca dos Mortos e os sete zumbis (posteriormente reeditada pela Editora Globo, em 2013)e a HQ Independência ou mortos.

Os meus quadrinhos são feitos para pessoas de várias idades e gostos. Aos 17 anos, eu já tinha leitores fiéis por conta dos Combo Rangers. Fui amadurecendo e comecei a fazer trabalhos diferentes. E o que acho mais interessante é que, hoje, falo com várias gerações, às vezes na mesma casa. Tenho vários leitores fãs do Combo Rangers que têm filhos fãs das Princesas do Mar (Gama, 2013).

O carinho dos fãs de seu primeiro trabalho o levou a lançar, em dezembro de 2012, uma campanha de financiamento coletivo no site Catarse para criação de dois álbuns dos Combo Rangers12 com distribuição pela editora JBC. De acordo com o autor, o momento era apropriado porque “com as redes sociais e o advento do crowdfunding, autores e fãs podem trabalhar juntos para realizar projetos que antes eram impossíveis”.

Os fãs retribuíram o apelo: em menos de duas semanas foram arrecadados os R$40 mil suficientes para tocar o projeto, que recebeu o investimento de R$67.940.

Considerações finais

O caso Combo Rangers tem um diferencial interessante: a inclusão de uma editora. Embora o custo de produção seja dos leitores por meio do financiamento coletivo, a distribuição e impressão serão feitas pela editora JBC. Esse caso entre uma plataforma interessante para publicações independentes e o trabalho tradicional de uma editora, porém, não é isolado. Em setembro de 2012, o escritor e ilustrador Loureço Mutarelli se aliou à editora independente Pop e colocaram no Catarse o projeto bem-sucedido Os sketchbooks de Lourenço Mutarelli, uma coleção de cadernos de esboços do autor. Em maio de 2013 o roteirista Raphael Fernandes se aliou à editora Draco, onde trabalha como editor de quadrinhos, para viabilizar Apagão vol. 1 — Cidade sem lei/luz, obra em quadrinhos que também já alcançou sua meta para publicação.

Embora essas propostas nasçam de editoras pequenas, é interessante notar que existam iniciativas que fogem do tradicional processo cujo fim é tão somente a livraria. Ao mesmo tempo que tornam condizente a abertura para publicações de nicho, já que optam por um canal que vai ao encontro dessa lógica, inicia-se uma compreensão de que o crowdfunding vai muito além do papel de financiador. “O que se obtém ao fim de uma campanha é visibilidade. Antes mesmo de o livro ser lançado, o público já ouviu falar (bem) dele” (Silveira, 2012).

Ainda que o futuro do status quo do mundo editorial ainda seja incerto, é benéfico que o mercado preste atenção a essas “revoluções digitais” e (por que não?) agregue parte dessa lógica à sua rotina editorial. Seja por iniciativas e flertes com o financiamento coletivo seja pelo interesse pelos artistas que se destacam em projetos nascidos desse meio. Não foi, portanto, tão surpreendente que três das equipes criativas dos novos projetos de adaptação dos personagens de Maurício de Sousa para graphic novels, anunciados durante o Festival Internacional de Quadrinhos de 2013, fossem de coletivos independentes: Eduardo Damasceno e Luís Felipe Garrocho, da webcomic Quadrinhos Rasos e do grupo Pandemônio, assinarão a história do Bidu. O casal Paulo Crumbim e Cristina Eiko, da Quadrinhos A2 e também do grupo Pandemônio, serão os responsáveis pelo Penadinho. E a Turma da Mata será repensada pelo trio Greg Tocchini, Artur Fujita e Davi Calil, do coletivo de artistas Dead Hamster.

O diferente, às vezes, surge para ser compreendido, não combatido. Lançamentos exclusivos para o digital ou projetos que dão a chance para os leitores investirem e financiarem um livro esquecido de catálogo, por exemplo, podem garantir uma nova vida para esses títulos. Serão best-sellers? Não, mas quando somados… eis a cauda longa (Anderson, 2006).13

O futuro dos livros e dos quadrinhos ainda está sendo decidido. Os autores podem negligenciar as livrarias físicas e as casas editoriais ou novas relações de negócios podem surgir, em que as grandes, médias e pequenas editoras terão que reavaliar seus valores, cada uma à sua maneira, e os papéis do editor e do autor poderão ser repensados. Pensando no melhor para o leitor, obviamente.


* Victor Almeida é pós-graduando em Literatura Infantojuvenil pela Universidade Federal Fluminense (UFF), especialista em Publishing Management pela Fundação Getulio Vargas (FGV) e graduado em Comunicação Social com habilitação em Produção Editorial pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Editor-assistente de literatura estrangeira na editora Arqueiro, do grupo Sextante.

Referências

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Notas

1 Dados retirados da página do projeto, acessível em http://catarse.me/pt/238-achados-e-perdidos.

2 Trecho retirado da entrevista concedida por Eduardo Damasceno e Luís Felipe Garrocho ao Garagem Hermética Quadrinhos. Acessível em http://gHQ.com.br/entrevista-eduardo-damasceno-e-luis-felipe-garrocho/

3 Publicação independente de autor, publicação independente de grupo e publicação independente edição única.

4 Esse destaque ao trabalho de Cafaggi resultou no convite do estúdio Maurício de Sousa para ilustrar e roteirizar uma graphic novel da Turma da Mônica com sua irmã, Lu Cafaggi. O novo trabalho, intitulado Laços, foi lançado no mês de maio de 2013. Durante o Festival Internacional de Quadrinhos de 2013, o editor do projeto, Sidney Gusman, anunciou a produção de uma continuação da obra para 2015.

5 Gustavo já havia conquistado o Troféu HQ Mix de desenhista revelação em 2010. Em 2011, recebeu o Prêmio Angelo Agostini como melhor cartunista brasileiro e outro HQ Mix como melhor caricaturista nacional. Suas obras Có! e Táxi também deram a ele prêmios na categoria “Publicação independente edição única” em 2010 e 2011, respectivamente. Em 2012, Birds também foi escolhida como melhor “Publicação independente de autor”. Gustavo participou também do projeto MSP, ilustrando e roteirizando uma graphic novel do Chico Bento. Em 2014, a editora Dark Horse Comics publicou nos Estados Unidos a coletânea Monsters and other stories, contendo as histórias Có!, Monstros! e Birds.

6 Lista acessível em http://oglobo.globo.com/blogs/gibizada/posts/2013/04/11/os-indicados-ao-HQmix-2013-493037.asp.

7 Dados retirados do site, acessível em http://www.comixology.com/submit.

8 Página do projeto, acessível em http://www.kickstarter.com/.

9 Página do projeto, acessível em http://www.queremos.com.br/.

10 Super sentai é uma franquia japonesa para televisão. A premissa básica é a de um grupo de geralmente cinco heróis que ganham poderes especiais, usam roupas de cores variadas e possuem um robô gigante para combater ameaças alienígenas ou vindas da própria Terra.

11 Combo Rangers (1998-1999), Combo Rangers Zero (1999-2000) e Combo Rangers Revolution (2000-2001).

12 Página do projeto acessível em catarse.me/pt/comborangers.

13 O termo “cauda longa” descreve a teoria do físico e escritor Chris Anderson em que produtos de baixa demanda ou com um baixo volume de vendas podem coletivamente alcançar uma fatia do mercado que rivaliza ou excede os poucos mais vendidos, se a loja ou canal de distribuição for grande o bastante. Por exemplo, uma porção significativa das vendas da Amazon é proveniente de livros obscuros que não estão disponíveis em lojas físicas.

Tempo de leitura estimado: 22 minutos

Perpetuação e fatalismo em Um contrato com Deus de Will Eisner: palavra, imagem e narrativa | Rogério Câmara*

Um contrato com Deus é uma trilogia formada por Um contrato com Deus e outras histórias de cortiço (1978), A força da vida (1988) e Avenida Dropsie: a vizinhança (1995), que se passa na Avenida Dropsie, uma vizinhança ficcionalizada por Will Eisner, localizada ao sul do Bronx, em Nova Iorque. Com Um contrato com Deus, Eisner inaugura a produção do que ficou conhecido como graphic novels. Muito já se discutiu sobre a origem da expressão, se fora ou não criada por Eisner, quando o próprio veio a identificar o uso anterior do termo. A originalidade de Eisner, no entanto, reside em propor uma espécie de obra literária popular tendo os quadrinhos como meio. Eisner repensa o uso do espaço, o formato, a relação entre o texto e a imagem e toda a estrutura narrativa. No período em que desenvolveu o primeiro volume da trilogia, Eisner começa a ensinar na School of Visual Arts, o que o levou a sistematizar os seus métodos, dando origem à publicação dos manuais Quadrinhos e arte sequencial (1985) e Narrativas gráficas (1996) e postumamente Expressive Anatomy (2008). A partir da trilogia e de suas reflexões teóricas analisa-se, neste artigo, a concepção e produção das graphics novels, problematizando-se as analogias que o quadrinista estabelece entre a linguagem verbal e a narrativa gráfica da ação. É significativo o fato de Eisner concluir sua trilogia com Avenida Dropsie: a vizinhança, um relato histórico protagonizado pelas relações de vizinhança, enquanto os dois primeiros têm como foco alguns moradores residentes na avenida. Avenida Dropsie é um épico que trata dos períodos de vida das vizinhanças, as quais, segundo Eisner, “nascem, evoluem, amadurecem e morrem” (2004). O foco não é o declínio dos prédios, pois “as vidas dos habitantes são a força interna que gera a decadência. As pessoas, não os prédios, são o coração da matéria” (idem). Eisner se expressa em personagens preocupados com os desafios da vida cotidiana e suas relações nem sempre amistosas.

Dropsie seria o sobrenome de uma família de fazendeiros holandeses, os primeiros a ocuparem o local ainda no século XIX. A chegada de ingleses marca a primeira tragédia. Hendrik Dropsie, ao lado da filha, da mulher e de Dirk, o irmão bêbado, observa com admiração e complacência o crescente domínio estrangeiro. Revoltado, Dirk resolve atear fogo no cultivo daqueles que por ele são considerados usurpadores e acaba atingindo a sobrinha que tentava impedi-lo. Hendrik, ao ver com desgosto a perda da filha, mata o irmão a tiros e os enterra no jardim. Duas décadas depois, Hendrik Dropsie, em situação de pleno abandono, acidentalmente ateia fogo na própria casa. Nesse momento, a avenida já era dominada por casas de luxo, sonho de consumo de qualquer boa família inglesa. A nova configuração é perturbada pela compra do terreno dos Dropsie por novos ricos irlandeses. E, nesse relato histórico da avenida, sucedem-se diversas transformações urbanas, acompanhadas de conflitos étnicos, sobretudo entre ingleses, irlandeses, judeus, negros e latinos. Pessoas que, segundo Eisner, em sua maioria não arredavam o pé dali, pois vieram de lugares bem mais hostis (Eisner, 2007, p. 9). As relações de vizinhança descritas por Eisner são violentas, apaixonadas, solitárias, desequilibradas e, sobretudo, humanas. Todos procuram uma forma de sobreviver.

No conto “Um contrato com Deus”, Eisner coloca em questão as possibilidades de aliança com Deus, seu valor e o sentido do infortúnio. O personagem Frimme Hersh tem todas as suas crenças destruídas após a morte de sua filha adotiva. Fato que não era para ele admissível, pois Hersh havia cunhado em pedra um contrato com Deus, no qual se comprometia a se dedicar ao bem, o que, supostamente, o livraria de todos os reveses. Com o infortúnio rompe seu contrato e, se apossando dos títulos de uma sinagoga que lhes foram zelosamente confiados pelos rabinos, adquire um prédio na Avenida Dropsie e se torna um empresário e proprietário implacável. Os proprietários são sempre os inimigos comuns dos moradores da avenida, já anunciara Eisner na introdução ao conto. Mais tarde, já rico e poderoso, devolve com juros o dinheiro extraído da sinagoga e solicita aos rabinos, em troca de uma doação, um novo contrato com Deus. Este, agora, seria validado por sábios conhecedores da palavra santa. Os rabinos relativizam a demanda para não confrontarem a lei de Deus. De posse do “genuíno” contrato, Hersh chora na expectativa de uma nova vida — se casar e ter uma filha. Logo a seguir, num rompante, Hersh desafia Deus a violar um contrato com testemunhos e cai fulminado por um enfarte. Anos mais tarde, Eisner, que havia perdido sua única filha para a leucemia com a idade de dezesseis anos, assumiria a natureza autobiográfica de sua história. Para Eisner, escrever a história seria uma forma de exorcizar sua “raiva contra uma divindade que eu acreditava que havia violado a minha fé” (apud: Schumacher, 2013, p. 232).

Em A força da vida, o personagem Jacob se vê desempregado após sua “tarefa sagrada” de construir uma sala de estudo numa sinagoga. Caído em um beco e completamente desiludido, se questiona sobre os desígnios de Deus: “se o homem criou deus…então a razão pra viver está apenas na cabeça do homem. Por outro lado se… Deus criou o homem.. então, a razão da existência ainda é só um palpite… no frigir dos ovos… quem realmente conhece a vontade de Deus?” (Eisner, 2007, p. 24). Em sua angústia, Jacob deduz que o ponto em comum entre a sua vida e a de uma barata é simplesmente manter-se vivo. A coletânea detalha a coragem, a alegria e a tragédia do cotidiano da cidade na fluência do estilo gráfico de Eisner, que faz uso evocativo da textura e da atmosfera.

Eisner inicia sua carreira nos anos 1930, quando os quadrinhos rompem com a fronteira das charges e das tirinhas de jornais e passam a ser veiculados também em revistas e em livros. Em sua origem os livros de histórias em quadrinhos pouco tinham de literários mas conquistavam espaço junto aos jovens e já se via a necessidade do desenvolvimento de uma linguagem específica. Eisner, preocupado com o alcance do meio e sua colocação no mercado, teve participação ativa em todos os campos do processo de produção. Ele veio a atuar como empresário, editor, sindicalista e, sobretudo, como autor e desenhista de histórias em quadrinhos. Com o lançamento do primeiro volume da trilogia Um contrato com Deus e outras histórias de cortiço, em 1978, Eisner se aventura a pensar um produto que obtivesse atenção do adulto e dimensão literária. 

Realiza um álbum com configuração distinta de uma revista em quadrinhos, adotando o formato brochura e ilustração de capa que se distanciasse da literatura infantil. Schumacher relata o diálogo de Eisner com um livreiro e a dificuldade deste em encontrar o setor adequado para o livro em sua livraria, em função da pouca familiaridade com a graphic novel naquele momento. A publicação passa pela seção de destaque com certo sucesso. Com a chegada dos novos lançamentos, é deslocado para a seção de livros religiosos. Após protestos de um cliente, passa à seção de humor e, enfrentando novas insatisfações, termina numa caixa alojada no sótão (Schumacher, 2013, 241).

Propondo estabelecer linguagem apropriada ao novo gênero literário, Eisner relata suas exigências:

Ao contar essas histórias, tentei me ater à regra do realismo, que requer que a caricatura ou o exagero aceitem os limites da factualidade (…) Para atingir essa dimensão, tive que deixar de lado dois limitadores básicos que constantemente inibem a criação nesse meio — o espaço e o formato. Cada história foi, portanto, escrita sem preocupação com o espaço que iria ocupar, e seu formato surgiu da própria narrativa. Aos quadrinhos normais associados à arte sequencial (HQ) foi dada a liberdade de tomar suas próprias dimensões. Por exemplo, em muitos casos uma página inteira é usada para um único quadro. O texto e os balões estão interligados à arte. Eu os considero como fios de um mesmo tecido e faço uso deles enquanto linguagem. Caso eu tenha atingido meu propósito, não haverá interrupções no fluxo da narrativa, porque figura e texto serão tão interdependentes a ponto de serem inseparáveis (apud Schumacher, 2013, p. 234).

Estas definições são o fundamento da escritura gráfica de Eisner. O uso recorrente da monocromia em suas graphic novels favorecem a relação estreita entre o universo do verbal e da imagem, mantendo-os sob os mesmos atributos gráficos. Em Um contrato com Deus e outras histórias de cortiço o autor chegou a cogitar o uso de cores, mas terminou por optar pelo uso da cor sépia, conferindo não só uma maior dramaticidade às histórias, como também uma visualidade estrutural que integra, em princípios comuns, o universo do verbal e da imagem. A linguagem gráfica é definida pela linha, elemento próprio da escritura, que serve tanto ao desenho da letra, como aos personagens e aos cenários. Estabelece-se, assim, uma coerência formal e visual entre os elementos, reforçando-se um princípio de síntese em que os planos cromáticos nem sempre favorecem. A escritura se dá na contraposição do negro do traço e do branco do papel.

Eisner inicia suas reflexões teóricas sobre a estrutura narrativa dos quadrinhos, apropriando-se de uma gramática estabelecida na escrita alfabética:

A descrição da ação nesse quadro pode ser esquematizada como uma sentença. Os predicados do disparo e da briga pertencem a orações diferentes. O sujeito do “disparo” é o vilão, e Gerhard Shnobble é o objeto direto. Os vários modificadores incluem o advérbio “Bang, Bang” e os adjetivos da linguagem visual, tais como postura, o gesto e a careta (Eisner, 1999, p. 10) (Figura 1).

Figura 1 - Eisner, 2001, p. 9.
Figura 1 – Eisner, 2001, p. 9.

A relação estabelecida não é incomum. Com a vulgarização do uso do alfabeto a partir da imprensa, cresceu no mundo ocidental a confiança e a primazia das virtudes do alfabeto abordando-se a escritura somente sob o ângulo do fonetismo. O sistema alfabético foi tomado como fundamento universal para todo tipo de composição, estabelecendo-se uma espécie de relação hierárquica entre o alfabeto e a imagem.

No entanto, Eisner não se detém na questão da imagem, mas na da narrativa. Sua discussão aponta justamente para a necessidade da compreensão da atividade de leitura num sentido mais geral, sobretudo como forma de atividade de percepção. Ele procura nesse processo não somente a analogia entre a compreensão da palavra e da imagem, como também a organização destes elementos numa escritura articulada. Para Eisner, a escritura verbal deve ser lida como imagem inserida no universo gráfico. São signos óticos associados à linguagem oral. O universo sonoro, entretanto, não se apresenta como no cinema, ele depende das projeções feitas pelo leitor, a partir das modulações propostas pelo autor. Não é incomum aficcionados por determinada história em quadrinhos se decepcionarem com as vozes quando transpostas para um filme de animação. Esses leitores já haviam introjetado uma voz própria para os personagens. Sem dúvida, os signos sonoros e os signos óticos remetem a imagens diversas, mas estão relacionados pela dimensão tátil dos elementos da página.

Na abertura do conto “Um contrato com Deus”, não só o personagem Frimme Hersh e o cenário parecem se dissolver sob a chuva que cai “sem piedade”, como também a informação verbal pontua e reforça a dramaticidade da cena. Os quadros únicos das páginas estendem o tempo de caminhada do personagem e de sua profunda desilusão. A textura verbal é constituída da mesma matéria gráfica da imagem. O letreiramento é organizado em blocos, reforçando o clima e a inflexão sonora. Alguns blocos ganham as mesmas hachuras que dramatizam toda a cena. As terminações das letras n, m e h se estendem em movimento descendente como garras. O balão é usado, segundo Eisner, como “recurso extremo” para “captar e tornar visível um elemento etéreo: o som” (2001, p. 26). A disposição dos balões em relação à fala e à ação contribuiriam para a compreensão do tempo. O letreiramento e a configuração do balão servem para caracterizar o som e acrescentar significado à narrativa, assim como para dar dimensão ao personagem. O título do conto é iconizado como um texto gravado numa pedra, numa alusão, segundo o autor, à permanência e evocação aos dez mandamentos de Moisés. A mistura da “letra hebraica versus uma letra romana” teria o “intuito de forçar esse sentimento” (Eisner, 2001, p. 11) (Figura 2).

Figura 2 - Eisner, 1988, p. 15.
Figura 2 – Eisner, 1988, p. 15.

As letras do alfabeto e a imagem visual amalgamadas dão expressividade e sentido à narrativa. Os elementos que compõem a linguagem gráfica são contextuais, não têm um sentido absoluto. Implicam noções de possibilidade. Trata-se do exercício do olhar, indefinidamente subjetivo, antes de nomear. A leitura é operada entre os elementos, no que está em aberto, de acordo como estes são estruturados. O sistema de fenômenos visuais exige o pensamento plenamente mobilizado, trabalhando sucessivas interpretações, o reconhecimento das mais visíveis similitudes, do encadeamento das coisas, por suas atrações e afinidades. Eisner apresenta como referência os princípios ideográficos por deixarem espaço para a interpretação do leitor (2001, p. 15). A questão não se coloca somente na leitura, mas na perspectiva de envolvimento profundo daquele que o lê. Na classificação de McLuhan os quadrinhos são meios frios, o leitor deve construir e completar a informação. A construção ideográfica exige um esforço de leitura que ultrapassa as linhas visíveis ou a assimilação metódica das coisas. Em prol da intenção original, o desenho indica o movimento gerador. Investe-se de articulações poéticas, por confrontos entre diferenças e semelhanças. Surgem, dessa maneira, as metáforas, as alegorias oriundas do contato momentâneo entre as coisas e o movimento que se distancia da representação da coisa em si. Na exploração dessa escritura, introduzindo variações nos dados, ensaia-se a realidade de maneira virtual. 

Como estratégia, Eisner parte do “símbolo básico, derivado de uma atitude bem conhecida”, e este “é amplificado por palavras, roupas, plano de fundo e interação (com outra postura simbólica) para comunicar significados e emoção” (2001, p. 16) (Figura 3). Valendo-se dos princípios econômicos, o que é próprio de qualquer natureza de escritura, Eisner faz uso de códigos já assimilados pelo leitor, da representação da coisa em si mesma – a pictografia antes da ideografia. Um clichê, visto que se trata de uma imagem sensório-motora da coisa, do qual, introduzindo esquivas, propõe metáforas (Deleuze, 2005, p. 31). Aos modos de um calígrafo, a obra de Eisner prima pela plasticidade e pela relação espacial dos elementos. Os movimentos dos traços são imprecisos e equívocos, não proporcionam a legibilidade “transparente” das expressões. Os traços não são retilíneos, esquemáticos ou padronizados. O intento de seu desenho não é a conquista do valor construtivo ou o detalhe claro e bem delineado proporcionado pelo talhe da pena, ele está muito mais voltado às possibilidades de modulação de um pincel, em traços fluidos, turvos e embaçados. Desse modo, o caráter expressivo dos personagens e dos demais elementos ganham potencialidade de sentido e extensão.

Figura 3 - Eisner, 2001, p. 16.
Figura 3 – Eisner, 2001, p. 16.

A questão do tempo e do enquadramento é recorrente nos estudos teóricos de Eisner. Ele evidencia a influência da estrutura narrativa do cinema sobre os quadrinhos, guardadas as particularidades das tecnologias apropriadas aos mesmos. A emulação da estrutura narrativa de outras mídias deve considerar as especificidades de um meio impresso. No cinema, as cenas seguem uma a outra e precedem outra, dispostas ao longo de uma linha animada de um sentido, girando em torno de um eixo. Segundo Butor (1962), desagradável seria procurar um detalhe nesta sequência e verificar qualquer coisa. O espectador se veria obrigado a desenrolar esta linha com base num tempo que se julga aproximado do momento em que viu determinada cena. Butor sugere a vantagem primeira do livro impresso que é fazer durar os elementos ali dispostos — o que permite não somente reproduzir a narrativa uma centena de vezes, como deixar à disposição dos olhos o que se teria deixado escapar.

Sobre a forma de disposição das linhas decompostas umas sobre as outras a formar uma coluna, tais como se configura no livro tradicional, ele assinala que o ideal seria que este corte nas linhas corresponda a uma unidade já articulada metricamente, permitindo que cada linha da escrita, cada movimento contínuo do olho, corresponda a uma unidade de significação e de audição. Butor afirma que “numa coluna de prosa, a linha é cortada não importa onde, segundo um módulo de números de signos que é perfeitamente independente do texto ele mesmo” (p. 931).  O corte nas linhas seria, então, determinado aleatoriamente conforme a bitola da coluna, que pode variar de edição para edição. Essa unidade de significação estaria no discurso, de acordo com Butor, na estrofe ou parágrafo – “a estrofe é a página perfeita como o verso é a linha perfeita” (p. 932). Conclui:

O livro tal que nós o conhecemos hoje em dia, é portanto a disposição do fio do discurso no espaço em três dimensões segundo um duplo módulo: comprimento da linha, altura da página; disposição que tem a vantagem de dar ao leitor uma grande liberdade de deslocamento em relação ao desenrolar do texto, uma grande mobilidade, que é o que se aproxima mais de uma apresentação simultânea de todas as partes de uma obra (Butor, 1962, p. 932).

Butor explicita o livro como uma certa unidade e sua decupagem em outras unidades linguísticas. Uma totalidade de informações à mão do leitor recuperáveis a partir de determinadas operações. Pode-se avançar linearmente a leitura, retornar, saltar parágrafos e páginas, deixar o livro de lado e retomá-lo com facilidade.

O livro deve ser projetado de forma a criar dispositivos de localização das informações e de conexões entre elas. Explora-se potencialmente o caráter indicial do livro. A compreensão de sua estrutura permite o acesso a elementos diversos que se conectam a partir de ações espaço-temporais que integram a informação: o folhear, a localização da página e o movimento da vista na página. A entrada e a saída respondem à dinâmica de leitura e à sinestesia do pensamento. Assim como no cinema, os quadros definem os recortes que promovem o espaço que está inscrito no interior do enquadramento e aquele exterior ao enquadramento. A participação afetiva, porém, é distinta numa mídia e noutra. Para Eisner “o cinema pretende transmitir uma experiência real, enquanto os quadrinhos a narram” (2005, p. 75). A leitura dos filmes se dão no plano da tela, e objetivam o efeito janela de captura do espectador. A câmera, em sua expressividade, pode movimentar-se traduzindo uma infinidade de pontos de vista, o que é objetivamente permitido pela montagem, mantendo o fluxo contínuo de imagens. Os fotogramas se sucedem em tempo linear e congregam tanto a visualidade da superfície como a espacialidade do som (Flusser, 2007, p. 109). Nos quadrinhos o leitor domina o seu tempo de leitura, pode folhear, deter-se numa imagem ou retornar.

Para Eisner, os quadrinhos devem se apropriar dos clichês cinematográficos já introjetados pelos espectadores, mas seria improdutivo simular a câmera cinematográfica, já que eles propiciam um ritmo de leitura mais lento e dependem da informação intelectual derivada da experiência real do leitor. A montagem dos quadros e o seu uso como indicativo da duração do evento não estão atrelados a formatos e a tamanhos fixos como ocorre no cinema ou nos quadrinhos tradicionais, nos quais os quadros têm um único formato e seguem o movimento da esquerda para a direita e de cima para baixo. Na prática, não há uma norma absoluta. O autor parte do princípio que a unidade é a página e ali constrói uma cena relacionada à sequência de páginas e de outras cenas. A cena pode ser composta de um quadro que preenche toda página ou de uma sucessão de quadros, ditando-se o ritmo da narrativa. O leitor, num primeiro momento, apreende a página como um todo e a explora temporalmente, num movimento que não segue, necessariamente, o modo de se ler um texto verbal. A leitura é topográfica e exige do leitor compreender e combinar a sequência das palavras à narrativa das imagens. O recorte no quadro permite destacar determinado detalhe, num processo metonímico de se apresentar a parte pelo todo, num jogo entre o espaço contido e o fora do quadro, o que provoca o leitor a completar a imagem de acordo com a sua experiência. As molduras, ou os requadros, podem variar e são elementos de linguagem, traduzindo atmosferas de sonhos, de conflito, de ação e de infinitude. 

As vizinhanças da avenida Dropsie são fruto das experiências vividas por Eisner em Nova Iorque. Vizinhanças de molecagens, paixões, violências e crimes. Rostos e corpos carregados de infortúnio diante do irremediável. Um local pleno em vozes e de escuros labirintos que fazem dos cortiços as imagens do fundo do poço social, sem reverberação dos cânones reivindicatórios que apresentem uma alternativa.  Na avenida Dropsie, um jovem soldado idealista que retorna da guerra é coagido a mudar uma estação de local, o que acaba por transformar a avenida num grande cortiço. Uma jovem paralítica vive sonhos se dedicando ao jardim da última casa da avenida e termina por se casar com um ladrão mudo que, desavisado, se refugia no seu jardim. Décadas depois ela retorna como uma magnata capaz de comprar a região, já totalmente destruída, para fundar uma nova comunidade residencial de casas com jardins. Uma beata se mobiliza contra a presença de um prostíbulo e é jogada do terraço de um prédio. Um catador e vendedor de quinquilharias extrai, dos resíduos da cidade, a possibilidade de comprar um prédio. Uma menina seduz um porteiro solitário, envenena seu cachorro e rouba suas economias. O porteiro, se vendo acusado de maníaco sexual ao persegui-la, se mata com um tiro na cabeça. Uma enamorada grávida que aborta é estigmatizada como vagabunda e vê o seu destino selado. Eisner traduz em seus traços a crueza da vida. A marca de cada gesto é definitiva e não pode ser velada. Ao mesmo tempo não é possível colocar um ponto final na história de um lugar enquanto ali houver pessoas. Não existem lugares, existem pessoas. Eisner pensou os desígnios dos quadrinhos e construiu uma literatura completamente particular. Ele constituiu, com a criação da avenida Dropsie, um mundo imaginário inspirado em suas próprias observações sobre a cidade, nas quais se manifestam os desejos, os sonhos e os mitos do homem.


* Rogério Câmara é doutor e mestre em comunicação pela Escola de Comunicação – UFRJ, graduado em comunicação visual pela PUC-RJ e professor adjunto da Universidade de Brasília. Atua nos programas de pós-graduação em artes e em design, ambos da UnB. Realiza pesquisas sobre poesia visual com interesse nas relações entre escrita e cidade, é autor do livro Grafo-sintaxe concreta: o projeto noigandres e organizador dos sites Enciclopédia Visual e Poema Processo, entre outras publicações.

Referências

BUTOR, Michel. “Le livre comme objet”. Critique, Paris, n. 186, p. 929-946, nov. 1962.

DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 2005.

EISNER, Will. A força da vida. São Paulo: Devir, 2007.

______. Avenida Dropsie: a vizinhança. São Paulo: Devir, 2004.

______. Narrativas gráficas. São Paulo: Devir, 2005.

______. Quadrinhos e arte sequencial. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

______. Um contrato com Deus e outras histórias de cortiço. São Paulo: Brasiliense, 1988.

FLUSSER, Vilém. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. São Paulo: Cosacnaify, 2007.

MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo: Cultrix, 2000.

SCHUMACHER, Michael. Will Eisner: um sonhador nos quadrinhos. São Paulo: Globo, 2013.

Tempo de leitura estimado: 18 minutos

Ficção científica literária e compra por impulso: como alavancar o livro em papel num mercado pós-moderno | Ivo Heinz e Octavio Aragão*

Essas capas abstratas parecem coisa de autor e editor que
têm vergonha de publicar ficção científica.
Jorge Luiz Calife

Neste artigo vamos nos ater à compra de livros nos pontos-de-venda, isto é, as livrarias e bancas que expõem este tipo de produto. Mesmo sabendo que nos tempos de e-commerce o avanço das ferramentas de procura e concorrência são muito grandes, normalmente o comprador/usuário que utiliza o meio virtual possui outras maneiras de buscar seu produto. Assim, o bordão “a distância entre você e seu concorrente é um clique do mouse” pauta este trabalho, no qual analisaremos os processos decisórios que levam o consumidor de livros a optar por esta ou aquela obra, mesmo numa compra por impulso, ou quando acaba não levando nenhum produto depois de passar os olhos pelas prateleiras de uma livraria.

Muito se comenta sobre a entrada de dispositivos de leitura eletrônica (Kindle, Kobo, aplicativos de smartphones), e da facilidade de ler através de arquivos eletrônicos, e-books, mas a velocidade em que os e-books ganham mercado está desacelerando: nos Estados Unidos, após um crescimento nas vendas de e-books da ordem de 252% em 2010, as vendas aumentaram 159% em 2011, 28% em 2012 e, segundo números da Association of American Publishers (AAP), somente 5% nos primeiros três meses de 2013 (Figura 1).

Figura 1 - Tabela indicativa do crescimento de vendas de e-books nos EUA, em 2013 / Fonte: AAP.
Figura 1 – Tabela indicativa do crescimento de vendas de e-books nos EUA, em 2013 / Fonte: AAP.

Nessa mesma linha de entendimento do comportamento do mercado, de acordo com pesquisa da Nielsen no Reino Unido, as vendas de e-books em detrimento dos livros digitais estão se estabilizando, com cerca de 10,3% da receita total e 21,7% do total de exemplares vendidos. Portanto, as vendas físicas de livros continuam a ser importantes para o mercado varejista livreiro, situação que deve perdurar ainda por algum tempo. Se, além disso, levarmos em consideração algumas premissas, os livros podem ser considerados commodities, porque são itens padronizados. Em qualquer livraria física ou virtual o consumidor vai encontrar o mesmo item, portanto o livro em si tem de possuir algum destaque que chame a atenção do consumidor e a livraria terá de se diferenciar no serviço.

Como estratégias para fornecimento de commodities são bastante limitadas e a rentabilidade desse tipo de negócio costuma ser baixa, recomenda-se sempre investigar a possibilidade de transformar um produto ou serviço indiferenciado em algo único, diferente dos demais, exclusivo, ao menos na cabeça de quem vai comprá-lo ou usá-lo (Costa, 2009, p. 170).

Varejo físico

Num fenômeno que já ocorreu no varejo em geral, a concentração de grandes redes no comércio e a diminuição das pequenas lojas começou a ser visto aqui no Brasil a partir da década de 90, graças ao aumento de renda da população e uma economia mais estável. O varejo no geral teve um grande impulso, e mesmo no varejo livreiro isto não foi exceção: grandes redes internacionais desembarcaram aqui e o mercado começou a se concentrar, uma rede comprando ou se associando à outra (como no caso da compra da Siciliano pela Saraiva) ou montando operações próprias como a Fnac etc.

Essa concentração do varejo em geral permite operações administrativas mais enxutas, minimizando parte do custo fixo, gerando maior capacidade de investimento em relação ao seu faturamento e, devido ao tamanho, negociando preços diferenciados com a indústria. Por outro lado, a indústria também se concentra e sente sua margem de lucro diminuindo pela concorrência e descontos praticados pelas grandes redes.

Estamos vendo este mesmo fenômeno no mercado livreiro, com o qual acaba tendo mais semelhanças do que diferenças, permitindo ao cliente andar por entre as prateleiras, a divisão e setorização do ambiente por áreas, usando classificações de estilos versus tipo de produto, a possibilidade de verificação da embalagem ou capa etc.

Na Economia, o ser humano é colocado como agente e paciente de processos de produção e troca. O homem tem necessidade e desejos finitos que se contrapõem às suas possibilidades finitas e limitadas de satisfazê-los. Não podemos adquirir tudo que desejamos, por isso, temos de escolher. Nessa situação, o consumidor busca a maximização do prazer, em um processo racional de solução de problemas (Gade apud Giglio, 1980, p.11).

Chegamos ao caso do consumidor dentro da livraria, num resumo muito simplista: ele já se dirige ao atendente perguntando sobre determinada obra ou onde encontra livros de um determinado autor. Nesses casos já existe um desejo preliminar do consumidor, seja por uma indicação anterior ou informação prévia, em buscar certa obra e parte da decisão já está tomada, o interesse já existe mesmo antes de adentrar a livraria. A estratégia, então, deve ser, além de possuir o livro almejado, tentar mostrar títulos semelhantes, obras do mesmo autor ou de tema parecido (não é por acaso que livros de autores que alcançaram sucesso recente nas livrarias, como George R. R. Martin e Susanna Clarke, são comparados em suas capas, por intermédio de blurbs publicitários a J. R. R. Tolkien, autor de fantasias épicas que ostentaram grandes vendas no passado). Se a livraria não possuir o título procurado, pode-se considerar como um caso de ruptura, que discutiremos mais adiante.

Compra por impulso

Um dos objetivos secundários deste artigo é discutir a compra por impulso, pois muitas vezes o consumidor em potencial está passando os olhos pela prateleira em um determinado assunto e acaba tendo sua atenção voltada a um título em especial. Giglio chega a falar do “Inconsciente do consumo”:

Na Psicologia Clínica, a teoria de Freud afirma que as pessoas não conhecem seus verdadeiros desejos, pois existe uma espécie de mecanismo de avaliação que determina quais deles poderão tornar-se conscientes e quais não (Giglio, 1980, p. 38).

Outra possibilidade é o consumidor vagar entre as gôndolas ou prateleiras, examinando lombadas ou livros dispostos nas mesas defronte os corredores. Eis uma oportunidade para a livraria conseguir uma compra por impulso. Como, porém, se pode definir uma compra por impulso?

Os relatos e explicações apontam para o conceito de um processo rápido e não planejado, guiado por estimulação momentânea. Profissionais do varejo aceitam o conceito de compra por impulso em oposição à compra racional (Gade apud Giglio, 1980, p. 216).

Podemos, assim, considerar uma compra impulsiva como uma aquisição não planejada? Ao contrário do que escrevemos no início deste texto, o consumidor que não entrou na loja sabendo qual livro queria, não inquiriu o atendente e não fez uma rápida coleta do seu livro na prateleira fez uma compra por impulso?

Talvez, mas temos de levar em conta que as grandes livrarias são, hoje, estabelecimentos de varejo de autoserviço; o consumidor pode, muito bem, dirigir-se a um determinado corredor ou prateleira que tenha os títulos de seu autor de preferência e/ou estilo, checar se havia o título que necessitava, pegar o livro e ir para o balcão pagar. Nesse exemplo, não foi uma compra por impulso, pois o consumidor já sabia de antemão o que queria, apenas não pediu auxílio. Ainda assim, o tempo que o consumidor gastou na procura pode ser útil para que perceba outro título de seu interesse, ou ainda uma nova obra de um autor já conhecido e acabe levando mais de um livro.

De qualquer forma, é importante que a compra por impulso seja facilitada ao consumidor, sendo um ponto a mais na estratégia da livraria para aumentar o faturamento:

Títulos dispostos por tema: uma atitude logística que ajuda bastante, pois o consumidor pode procurar um determinado autor e, na mesma prateleira, ver obras do mesmo gênero, ou ainda trabalhos semelhantes ao de outros autores que já tenha lido ou ouvido falar.

Separação por autores ou em ordem alfabética dentro do mesmo tema: se possível separar por autor ou título, isto facilita a procura quando há muitos autores ou diversos títulos dentro de um mesmo tema. Muito usado para os livros de autoajuda, mas também para os de fantasia, policiais e ficção científica. Nesse caso, a ficção científica sofre com o desconhecimento do lojista, que tende a classificar autores especializados em pseudociência, como Erich Von Danniquen, como ficção científica, criando confusão e potencial insatisfação do público alvo, geralmente especialista no que consome.

Cuidado ao alinhar os livros: algumas editoras usam a formatação de lombadas no padrão francês, outras no padrão americano; na primeira a lombada é legível, quando vista com o livro em pé, de baixo para cima; já a outra é ao contrário, com o livro em pé, a leitura se faz de cima para baixo. Isto pode complicar a visualização do consumidor, pois ele estará correndo os olhos pela prateleira da esquerda para a direita, por exemplo, e, se um livro se apresentar com a lombada diferente dos demais, não será lido nesta sequência. É bom lembrar que nem sempre o consumidor passa os olhos pela prateleira na sequência inversa.

Figura 2 - As diferenças de formatação de lombadas, segundo os padrões franceses e ingleses.
Figura 2 – As diferenças de formatação de lombadas, segundo os padrões franceses e ingleses.

Portanto, se o comprador já conhece a obra, boa parte do impulso pode (ou não) ser resolvido, pois uma boa referência ajuda a querer conhecer mais daquele autor. Se o consumidor não teve boa referência anterior, o efeito é o contrário, o que compromete uma potencial segunda (ou terceira) passada de olhos. Mas, quando chegamos ao ponto de o consumidor pegar o livro nas mãos, ou mesmo visualizá-lo nas pilhas das mesas, locais onde, à semelhança com o varejo, são negociados com as editoras, aí temos mais um ponto na tomada de decisão do consumidor: a capa.

A princípio, uma visão imediatista indicaria que uma capa com grafias de difícil interpretação pode atrapalhar o entendimento do consumidor, diminuindo seu interesse, e, consequentemente, as chances de vendas, o que nos jogaria automaticamente na coleção de clichês ilustrativos geralmente relacionados a cada gênero da literatura de cunho popular. No caso da ficção científica, torna-se difícil não imaginar, automaticamente, naves espaciais, robôs e cenários de planetas inóspitos. Uma capa que consiga trazer estes elementos, mesmo se o autor é completamente desconhecido do consumidor, o insere em um gênero e o auxilia a tomar sua decisão. Porém, diferente dos gêneros policial e romance açucarado, a ficção científica guarda características únicas que obrigam os designers gráficos a deixarem os clichês de lado, ousando em prol de uma combinação entre o conteúdo nem sempre simplório e signos gráficos evocativos de profundidade semelhante sem incorrer no risco de matar o maravilhamento típico da literatura. A questão é que uma iconografia clichê, apesar de indicar ao leitor desavisado a que gênero o livro pertence, também depõe contra uma eventual profundidade conceitual e de forma.

Porque a ficção científica é um gênero tão estranho, capaz de mesclar ideias abstratas com manifestações concretas, é quase sempre representada por material pictórico de alta qualidade, apesar de em muitos casos, o leitor ser convidado a conjurar em sua própria mente os detalhes das ilustrações em parceria com a imaginação do artista. Eis porque o lado pictórico da ficção científica tem atraído tanto a atenção do público quanto o conteúdo intelectual se tornou mais popular (Kyle, 1975, p. 10).

Um bom exemplo da dicotomia entre uma capa com clichês e um conteúdo denso, é a ilustração de capa da primeira edição de Neverness, de David Zindell, onde se vê um foguete sobrevoando uma paisagem futurista – no sentido retrô, ou seja, o futuro que era divisado nos anos de 1940 e 50, com arranha-céus fálicos e dourados. O romance, famoso por seu aprofundamento filosófico em questões sérias como incesto e complexos edipianos, ganha uma capa que vende uma aventura escapista, esquecível e igual a diversas outras, afastando um público mais refinado e atraindo outro tipo de consumidor, que busca tramas mais simples. O resultado potencial disso é que o público alvo pode não ser alcançado, enquanto que o consumidor atraído pode se sentir enganado pelo livro adquirido.

Figura 3 - Capa de Neverness, romance de David Zindell: elementos que apelam aos clichês do gênero.
Figura 3 – Capa de Neverness, romance de David Zindell: elementos que apelam aos clichês do gênero.

Caso inverso ocorre com algumas capas da coleção de ficção científica da editora brasileira Aleph, que exibem um esmerado projeto gráfico pensado não apenas para compor uma releitura do conteúdo do romance, mas também para criar um jogo mental com o leitor. Tais capas, apesar de obedecerem aos parâmetros ideais de um projeto de design, muitas vezes desagradam o consumidor, que não as identifica com o gênero. A capa do livro Encontro com Rama, de Arthur C. Clarke, por exemplo, que usou de um abstracionismo geométrico para emular a nave espacial que é o cerne da história, gerou reclamações por parte de alguns especialistas em ficção científica, mais notadamente o escritor Jorge Luiz Calife, autor de “2002”, conto que inspirou Clarke, autor de “2001”, a conceber a continuação “2010”. Em um blog que comentava o design da capa, Calife expôs sua opinião:

Alfredo Machado, fundador da editora Record, dizia que a embalagem de um livro devia ser tão bonita e sedutora quando a embalagem de um sabonete. Para atrair o interesse do leitor na livraria. Quem vai se interessar por um livro com um canudo de papel na capa? Isso é delírio de artista gráfico que não está nem ligando se o livro vai vender bem ou não. (…) Essas capas abstratas parecem coisa de autor e editor que tem vergonha de publicar ficção científica e quer esconder que o livro é de ficção científica (Calife).

Figura 4 - Capa de Encontro com Rama, romance de Arthur C. Clarke: design geométrico e polêmico.
Figura 4 – Capa de Encontro com Rama, romance de Arthur C. Clarke: design geométrico e polêmico.

Resumindo, para que haja uma compra por impulso, é necessário que vários fatores interajam, num equilíbrio por vezes precário e que varia de acordo com a expectativa em torno de cada peculiaridade relacionada aos gêneros, para que o consumidor tome o livro em suas mãos, leia a contracapa e até a lombada. Se isto não acontecer, se o consumidor não pegar o livro em mãos para analisar melhor, a chance de uma compra por impulso será bem menor.

Ruptura

Como se não houvesse problemas advindos de poucas redes distribuidoras, diversos títulos na mesma prateleira ainda correm o risco de sofrer o que se costuma chamar de ruptura. No varejo, conceitua-se ruptura como “uma situação onde há algum item regularmente comercializado por um ponto de venda, ocupando um espaço determinado nas gôndolas, e esse item, não está disponível na área de vendas ao consumidor no momento da compra” (Aguiar, 2010).

Como consumidor, é desgastante ir a qualquer estabelecimento de varejo e não encontrar o produto desejado. No caso dos livros e outros tipos de varejo, é um complicador a mais nos tempos de e-commerce, pois pode reforçar no consumidor a vontade de pesquisar em casa, onde pode encontrar o título pela internet, ou seja, retira-se mais uma venda do varejo de livros real em prol do varejo virtual. E, lembrando sempre, no varejo virtual a distância entre dois varejistas é apenas um clique de mouse.

Como cita Ballou:

A telentrega de fast food, os caixas automáticos dos bancos, a entrega via aérea/24 horas e o correio eletrônico na internet criaram entre nós, consumidores, a expectativa de produtos e serviços disponibilizados em prazos cada vez mais reduzidos. Paralelamente, sistemas de informação aperfeiçoados e processos flexíveis de produção levaram o mercado à padronização em massa. Em lugar de clientes obrigados a aceitar filosofia do tipo “tamanho único”, hoje são os fornecedores que se veem forçados a oferecer variedade cada vez maior de produtos para satisfazer necessidades e exigências crescentemente diferenciadas dos clientes (Ballou, 2006, p. 38).

Logicamente, o estoque que o livreiro tem em seu estabelecimento estará sujeito às incertezas que têm uma influência direta nas suas políticas.

Há dois tipos de incertezas que têm influência direta nas políticas de estoque. O primeiro diz respeito às incertezas da demanda, as quais dão origem a flutuações nas quantidades de vendas durante o ciclo de atividades. O segundo tipo abrange incertezas relacionadas com a duração do ciclo de atividades, as quais dão origem a variações no ciclo de ressuprimento de estoque (Bowerson & Closs, 2001, p. 242).

Considerações finais

O mercado, apesar de continuar crescendo e mostrar a tendência de que os livros físicos continuarão a ter boa vendagem, é cada vez mais competitivo, pelo aumento do e-commerce ou da própria concorrência entre as redes de livrarias. É fundamental que tanto quem produz livros quanto quem os vende entenda que as oportunidades de venda são eventos raros e que envolvem muitos dados aos quais não temos controle, pois dependem da preferência de um número grande e não uniformizado de decisões dos consumidores.

Conseguir atrair a atenção destes consumidores para livros de gênero, seja com capas que exaltem os clichês seja, ao contrário, com as que criam uma nova possibilidade interpretativa, boa apresentação, ordenamento por assunto e autor, planejamento do estoque etc. é um grande desafio, mas também pode ser a chance de aumentar o sucesso nas vendas, ou ao menos evitar o fracasso.


* Ivo Heinz é engenheiro de produção pela FEI e pós-graduado em Metodologia e Didática na mesma instituição. Professor de disciplinas de Logística no grupo Anhanguera (campus Brigadeiro), colaborador de material de apoio para Ensino à distância dos cursos de tecnologia em Logística. Trabalhou com a logística de livros e publicações e deu consultoria a editoras diversas em títulos de vários temas.

* Octavio Aragão é doutor e mestre em Artes Visuais pela EBA-UFRJ, onde também se graduou em Comunicação Visual. Pós-graduado pelo PACC/UFRJ, é professor adjunto na ECO-UFRJ onde ministra as cadeiras de Jornalismo Gráfico 1 e 2 desde 2009, além de ser Coordenador de Intercâmbio. Autor dos livros A mão que cria (2006), Reis de todos os mundos possíveis (2013) e coautor de Imaginário brasileiro e zonas periféricas (2006).

Referências

AGUIAR, F. et al. Gestão da ruptura no varejo de alimentos. XXX Encontro Nacional de Engenharia de Produção, São Carlos (SP), outubro de 2010. Disponível em http://www.abepro.org.br/biblioteca/enegep2010_TN_STO_113_741_15651.pdf

CALIFE. J. L. Comentário disponível em http://esooutroblogue.wordpress.com/2011/07/14/capas-de-encontro-com-rama-qual-a-melhor/. Acesso em 25 fev. 2014.

CÔNSOLI, M. A. et al. Estratégias de rede de empresas: o associativismo no pequeno varejo alimentar. VII SEMEAD – Gestão de Varejo. FEA-USP, São Paulo, 2004. Disponível em http://www.ead.fea.usp.br/semead/7semead/paginas/artigos%20recebidos/Varejo/VAR10__-_Estrat%E9gias_Peq_Varejo.PDF

COSTA, E. A. Estratégia e dinâmica competitiva. São Paulo: Saraiva, 2009.

BALLOU, R. H. Gerenciamento da cadeia de suprimentos / Logística empresarial. Porto Alegre: Bookman, 2006.

BOWERSOX, D. & CLOSS, D. Logística empresarial. São Paulo: Atlas, 2001.

GIGLIO, E. M. O comportamento do consumidor. São Paulo: EPU, 1980.

KYLE. D. A pictorial history of science fiction. London: Hamlyn, 1975.

Links consultados:

http://www.slideshare.net/IfBookThen/ibt-final-edit

http://www.bic.org.uk/files/pdfs/Understanding%20ebook%20migration_Andre%20Breedt.pdf

http://www.thebookseller.com/news/fiction-rules-2012-e-book-sales.html

http://publishingperspectives.com/2012/10/looking-at-us-e-book-statistics-and-trends/

Tempo de leitura estimado: 27 minutos

Mitografia sequencial: fabulação, pastiche e o universo de Wold Newton nos quadrinhos americanos das últimas cinco décadas | Sean Lee Levin*

O que é Wold Newton e quem o inventou

Em seus livros seminais, Tarzan alive e Doc Savage: his apocalyptic life, o recentemente falecido Philip José Farmer, considerado um mestre da ficção científica, pretendeu contar as histórias reais dos homens a respeito de quem os autores Edgar Rice Burroughs e Lester Dent, criadores de Tarzan e Doc Savage, escreveram em suas séries de aventuras muito populares nas primeiras décadas do século 20. Indo além do pastiche1, ele confeccionou uma vasta árvore genealógica, na qual não apenas o Rei das Selvas e o chamado “Homem de Bronze” eram aparentados, como também diversos dos grandes heróis e vilões da literatura popular, os chamados pulps, romances de aventuras e mistério2.

A hipótese de Farmer era que, em 1795, um grupo de pessoas estaria em carruagens, atravessando o vilarejo de Wold Newton, em Yorkshire, quando um meteoro atingiu a terra não muito longe dali (o evento da queda do meteoro em Wold Newton é real, mas todas as pessoas identificadas por Farmer eram ficcionais). De acordo com Farmer, a ionização e radiação decorrente da queda do meteoro teriam afetado os homens e as mulheres próximos ao impacto, muitos dos quais já possuidores de excepcionais características hereditárias. Algumas das mulheres estariam em estado adiantado de gravidez e suas proles resultariam em indivíduos extraordinários e essa nova geração, graças a casamentos entrecruzados, também produziria uma descendência fora do comum, possuidora de habilidades físicas e mentais muito acima do homem comum.

Além dos já mencionados Tarzan e Doc Savage, Farmer incluiu dúzias de heróis e vilões ficcionais àquilo que batizou de Wold Newton Family, incluindo Sherlock Holmes e seu arqui-inimigo, professor Moriarty; A.J. Raffles; Professor Challenger e seu amigo Lord John Roxton; Nero Wolfe; Bulldog Drummond e o vilão Carl Peterson; Dr. Fu Manchu e seu adversário Sir Denis Nayland Smith; o Sombra; o Aranha; G-8; o Vingador; Travis McGee; C. Auguste Dupin; Lord Peter Wimsey; Arsène Lupin; Ludwig Horace Holly; Monk Mayfair, um dos cinco auxiliares de Doc Savage; John Clay, aka Colonel Clay; Dr. Caber; e muitos mais.

O exercício de Farmer em “mitografia criativa” (usando um termo cunhado por ele próprio)3 inspirou outros autores, tais como Alan Moore e Kim Newman. Moore admitiu abertamente a influência dos preceitos de Farmer em sua série As aventuras da Liga Extraordinária4, produzida em parceria com o ilustrador Kevin O’Neill, que apresentava um grupo de personagens originários de um número incontável de obras ficcionais convivendo num mesmo universo.

Philip José Farmer foi uma influência seminal (sobre a Liga Extraordinária). Quer dizer, li seus Tarzan alive e Doc Savage: his apocalyptic life, que têm toda aquela árvore genealógica da família “Wold Newton” conectando todos os heróis de aventuras pulp. Apesar de termos ido um pouco mais longe que isso com a Liga, não sei se teríamos sequer pensado nisso se não fosse o exemplo primordial de Philip José Farmer (Moore, s/d).

Por diversas vezes Kim Newman declarou seu respeito por Farmer pelo fato de ter sido um antecessor para sua série literária Anno Dracula5, uma audaciosa história alternativa na qual o Conde Drácula triunfa sobre o grupo liderado pelo professor Van Helsing, contrai matrimônio com a rainha Vitória e revela ao grande público a existência de vampiros. Anno Dracula é cheio de participações especiais e referências a diversos personagens históricos e ficcionais.

Não faço questão de ser considerado o inventor desse estilo – Philip José Farmer fez isso nos anos 70, Howard Waldrop criou uma tonelada de histórias e consigo pensar em muitos, muitos outros precedentes, de Henry Fielding a Nicholas Meyer, chegando a uma temporada do seriado televisivo Doctor Who, nos anos 60 (Newman, s/d).

Um grupo inspirado pelos textos de Wold Newton foi o Wold Newton Meteoritic Society, que publicou cinco números de um fanzine chamado The Wold Atlas, responsável por expandir conceitos de Farmer. Durante o processo, o grupo também incluiu personagens que não constavam da “família Wold Newton”, mas que estariam associados por aproximação. Em 1997, um admirador de Farmer chamado Win Scott Eckert, a princípio desconhecendo a existência da Wold Newton Meteoritic Society, criou o primeiro website dedicado à família Wold Newton. Uma parte do site era dedicada à “cronologia do universo de Wold Newton”, onde um tipo de artifício parecido com o jogo conhecido por Six degrees of separation, que estabelece seis graus de separação entre todas as pessoas do mundo, foi usado para importar personagens de outros trabalhos ficcionais por intermédio de histórias que demonstrassem a possibilidade de sua convivência com personagens já considerados como membros da família Wold Newton. Um dos exemplos favoritos de Eckert é o romance de David McDaniel, The rainbow affair, baseado na série de TV O agente da U.N.C.L.E., muito popular nos anos 1960. Nesse livro, os agentes Napoleon Sole e Illya Kuryakin encontram versões disfarçadas ou não diretamente mencionadas de Sherlock Holmes, Sir Denis Nayland Smith e Fu Manchu, John Steed e Emma Peel, o Santo, Miss Marple, Padre Brown, Tommy Hambledon e inspetor Roger West. O Departamento Z, James Bond e Neddie Seagoon também são mencionados.

De acordo com a metodologia de Eckert, já que Holmes, Smith e Fu Manchu são estabelecidos como membros da família Wold Newton, os elementos de outros personagens envolvidos na trama necessariamente fazem parte do mesmo universo ficcional, que Eckert batizou como “The Wold Newton Universe”, ou WNU (Eckert, 2010, p. 2). Encontros subsequentes (ou, em inglês, crossovers) entre personagens “de fora” com os membros da família, automaticamente importava os novatos para dentro desse universo. Isso, porém, não significa que esses recém-chegados sejam também parte da família. Para usar um exemplo do próprio Farmer, em Doc Savage: his apocalyptic life é revelado que o herói teria desenvolvido as bombas de gás que foram usadas para capturar King Kong. Em seguida, Farmer escreveu o conto “After King Kong fell”, onde Doc Savage, seus cinco auxiliares, juntamente ao Sombra e sua parceira Margo Lane (nenhum diretamente nomeado para evitar processos), testemunham a queda fatal de Kong do topo do Empire State Building. Já que o gorila gigante não é humano ou sequer um descendente de europeus, parece extremamente improvável que os progenitores do símio tenham sido expostos à radiação do meteoro de Wold Newton.

Diversos sites dedicados ao Wold Newton Universe surgiram na esteira da página de Eckert, que, em 2010, transformou a Crossover Chronology em uma obra em dois volumes publicada pela Black Coat Press e intitulada Crossovers: a secret chronology of the world. Como muitos dos crossovers no livro envolvem personagens que não foram incluídos na árvore genealógica de Wold Newton por Farmer, Eckert batizou esse plano onde acontecem os encontros de Crossover Universe. Este artigo discorrerá sobre algumas das histórias em quadrinhos incluídas em Crossovers, assim como outras que se encaixam na continuidade e nos personagens estabelecidos por Farmer no universo de Wold Newton.

A mitografia em quadrinhos

Um número considerável de membros da família Wold Newton tem aparecido em crossovers de histórias em quadrinhos. Tarzan tem sido o protagonista de muitas histórias publicadas pela editora Dark Horse Comics. Le monstre apresenta Tarzan em conflito com o Fantasma da Ópera, mas também é inserido nos eventos ocorridos durante o primeiro romance de Burroughs. A mesma equipe criativa produziu The modern Prometheus, história na qual o Senhor da Selva enfrenta o monstro de Frankenstein. Já em Tooth and nail, que sucede o encontro com a criatura de Shelley, Tarzan duela com o Mr. Hyde, de Robert Louis Stevenson. Em Tarzan vs. the Moon Men, Lord Greystoke e seu filho Korak são transportados para o futuro retratado na trilogia Moon, também escrita por Edgar Rice Burroughs, criador de Tarzan. Deve-se notar que, já que os livros da série Moon descrevem uma versão alternativa do final do século 20, muito diferente daquela que vivenciamos em nossa realidade, alguns pesquisadores do universo de Wold Newton argumentam que aquela talvez deva ser considerada uma realidade alternativa6 e não o futuro direto de Tarzan e seu filho. A minissérie em quatro partes Batman/Tarzan: Claws of the Cat-Woman, da dupla Ron Marz and Igor Kordey, colocam Tarzan em parceria com o Cavaleiro das Trevas (deve-se perceber, porém, que Eckert e alguns outros pesquisadores são da opinião que crossovers entre personagens que não são superpoderosos e os super-heróis das tradicionais editoras DC e Marvel Comics não necessariamente atraem outros supers para o universo de Wold Newton, já que eles necessariamente eclipsariam os mais tradicionais personagens dos pulps e dos romances de aventura. Além disso, a noção de centenas de super-heróis pelo mundo violaria a premissa de que o WNU se parece com o mundo que vemos através de nossas janelas. Ainda assim os supers incluídos na cronologia geralmente assumem uma versão muito menos poderosa que suas contrapartes nos quadrinhos e operam por um tempo muito menor que aquele sugerido por suas histórias. Tarzan/Carson of Venus mostra o Homem Macaco unindo forças com outro herói criado por Burroughs, assim como acontece em Tarzan/John Carter: warlords of Mars. Talvez o eclético dos crossovers da Dark Horse envolvendo Tarzan tenha sido Tarzan vs. Predator at the Earth’s Core, que reuniu tanto os filmes da série Predador, quanto os romances de Burroughs sobre Pellucidar, uma terra selvagem no centro da Terra, que também já havia sido cruzada com Tarzan pelas mãos do próprio autor no romance Tarzan at the Earth’s Core. Fechando o ciclo com Tarzan, Tarzan in The land that time forgot inseriu o Lorde das Selvas no cenário das novelas de Burroughs sobre a ilha de Caspak, situada na Antártida e lar de diversas raças que derivam da pré-história.

Figura 1 - Doc Savage encontra o Sombra pela primeira vez, na revista The Shadow Strikes (1989-1992), da DC Comics.
Figura 1 – Doc Savage encontra o Sombra pela primeira vez, na revista The Shadow Strikes (1989-1992), da DC Comics.

Foi nos quadrinhos que Doc Savage encontrou por duas vezes seu parente woldnewtoniano, o Sombra. Em The conflagration man, uma história em quatro partes dentro dos títulos The Shadow strikes! e Doc Savage, publicados pela DC Comics, fica implícito que ambos aprenderam a arte marcial conhecida como baritsu com o criador do estilo. Baritsu, um tipo de boxe japonês, foi na verdade inventado pelo escritor Arthur Conan Doyle em uma aventura de Sherlock Holmes chamada The adventure of the empty house. Outra minissérie, dessa vez em dois episódios, The Shadow and Doc Savage, lançada pela Dark Horse, mostrava os heróis encontrando o mesmo Dr. Reinstein que mais tarde seria o responsável pela criação do “soro do super-soldado” que transformaria Steve Rogers no personagem conhecido como Capitão América. Além de si próprios, o Sombra e Doc Savage encontraram outros heróis dos quadrinhos e dos pulps em narrativas ilustradas. Nas histórias Who knows what evil—? e The night of the Shadow, Batman e o Sombra juntaram forças, e o Cavaleiro das Trevas revelou que o herói mais velho foi uma de suas grandes inspirações. Em The night of the Avenger, o Sombra trabalhou com o herói dos pulps criado por Paul Ernst, Richard Henry Benson, mais conhecido como o Vingador, também identificado por Farmer como membro da famíllia Wold Newton. Em Body and soul, um arco de histórias criado por Andy Helfer and Kyle Baker para a controversa série do Sombra da década de 1980, que adequava o personagem para a contemporaneidade, uma versão envelhecida de Benson aparecia e os encontros anteriores entre os personagens eram citados.

Quando a Marvel Comics tinha os direitos de publicação de Doc Savage, na década de 1970, produziram dois crossovers entre ele e os personagens de seu catálogo. Em The yesterday connection, o Homem-Aranha resolveu uma ameaça com a qual Doc havia lidado anteriormente, em 1930. Em Black Sun lives, Doc Savage e seus assistentes Monk Mayfair e Renny Renwick são lançados no futuro até os dias atuais, onde combatem um vilão ao lado do Tocha Humana e do Coisa, dois membros do Quarteto Fantástico (apesar de alguns estudiosos do universo de Wold Newton não incluírem equipes de super-heróis, o Quarteto Fantástico é, geralmente, considerado aceitável, e, com exceção do Coisa, todos têm laços de parentesco, o que vai de encontro ao foco de âmbito genealógico do universo ficcional. Eles também têm uma origem em comum, enquanto outros grupos como os Vingadores, a Liga da Justiça ou os X-Men possuem diversos membros que começaram suas carreiras sob circunstâncias diferenciadas).

The Rocketeer, de Dave Stevens, apresenta um anônimo Doc Savage como o inventor da mochila a jato usada pelo personagem principal, Cliff Secord. Na sequência, The Rocketeer: Cliff’s New York Adventure, o protagonista encontra um homem chamado Jonas, que é o Sombra disfarçado. Um crossover incluindo Doc Savage que não é geralmente aceito como parte da continuidade do universo Wold Newton Universe é a série de curta duração produzida pela DC, batizada como First Wave. Tais histórias, que mostravam Doc Savage coexistindo com o Vingador, Batman e o Spirit, criação de Will Eisner, e tendo como cenário um século 21 alternativo com ares da década de 1930. Como argumento para a rejeição da parte dos críticos, é o fato de muitos dos personagens terem sido desnecessariamente alterados, sendo o Vingador, em particular, o que mais sofreu mudanças radicais, transformando-se em um anti-herói matador de criminosos, em lugar de armar situações para que os bandidos fossem vítimas de seus próprios esquemas, como acontecia em suas aventuras originais, nas revistas pulp.

Figura 2 - Rocketter, personagem nostálgico de Dave Stevens, nas edições da Comico Comics (1988).
Figura 2 – Rocketter, personagem nostálgico de Dave Stevens, nas edições da Comico Comics (1988).

Além de uma série de romances e novelas, incluindo algumas de autoria de estudiosos de Wold Newton, tais como Eckert ou Matthew Baugh, a editora Moonstone publicou diversas revistas em quadrinhos com personagens já estabelecidos, assim como crossovers que introduziram outros ao WNU. Sherlock Holmes and the Clown Prince of London mostrou o maior de todos os detetives encontrando o Ladrão de Casaca criado por Maurice Leblanc, Arsène Lupin, outro membro da família, de acordo com Farmer (sempre cabe notar que Leblanc fez com que Lupin encontrasse Holmes em diversos romances anteriores, sendo que no primeiro deles Holmes foi rebatizado como “Herlock Sholmes” ou “Holmlock Shears”, nas traduções inglesas, por questões de direitos autorais). Sherlock Holmes & Kolchak the Night Stalker, uma minissérie em três números, apresentava Holmes e o investigador vivido por Darren McGavin no seriado televisivo homônimo dos amos 1970 investigando o mesmo evento em séculos diferentes. Tanto Blooded quanto a história em dois números Domino Lady/Sherlock Holmes mostravam Sherlock colaborando com a heroína mascarada dos pulps “picantes” escritos por Lars Anderson. O especial Kolchak: the night stalker and Dr. Moreau tinha Carl Kolchak encontrando o herdeiro do cientista louco de H.G. Wells e outra edição única, Honey West & Kolchak, mostrava Carl em parceria com a sexy detetive criada por G.G. Fickling. Já Honey West/Captain Action/That man Flint: Danger-A-Go-Go apresentava Honey cruzando o caminho dos agentes secretos Derek Flint (interpretado por James Coburn nos filmes O Homem chamado Flint e Flint contra o gênio do mal) e Miles “Captain Action” Drake (herói de uma série de brinquedos dos anos 1960).

A graphic novel Return of the originals: battle for L.A. era estrelada por Domino Lady unindo forças com diversos heróis dos pulps, tais como o Phantom Detective, de Robert Wallace, Black Cat, de G. Wayman Jones, G-8, piloto aventureiro criado por Robert J. Hogan e Secret Agent X, de Brant House. A edição especial The Spider and Domino Lady mostrava a heroína curvilínea enfrentando as forças do mal ao lado de outros personagens incluído na árvore genealógica de Wold Newton por Farmer. Phases of the moon, minissérie que se passava em diferentes décadas, encabeçada pelo Aranha, Domino Lady, Honey West, Kolchak, a rainha da selva Sheena e Buckaroo Banzai (do filme australianoThe adventures of Buckaroo Banzai across the 8th dimension). Domino Lady’s threesome mostrava a protagonista combatendo um alienígena ao lado de Golden Amazon, criação de John Russell Fearn, e The Veil, personagem criado por Hopkins e que teve sua primeira e única aparição, devido à morte do autor em 2012. Três dentre os quatro Return of the monsters especiais publicados pela editora Moonstone apresentaram crossovers. Domino Lady vs. Mummy fazia referência a Ravenwood, personagem de Frederick C. Davis’. The Phantom Detective vs. Frankenstein mostrava o combate do protagonista com o monstro de Mary Shelley. Na mesma história aparecia um descendente de Victor Frankenstein e são mencionados Domino Lady, Black Bat, o Aranha e I.V. Frost (um dublê de detetive e cientista criado por Donald Wandrei). Black Bat and Death Angel vs. Dracula, escrito por Mike Bullock, tinha Bat e o personagem de Bullock enfrentando o mais famoso vampiro da literatura7.

Nas décadas de 1970 e 1980, Marvel publica a série O mestre do Kung Fu, que apresentava Shang Chi, filho de Dr. Fu Manchu, outro dos membros da família Wold Newton. Diversos personagens dos romances de Sax Rohmer apareceram na série, com destaque para Sir Denis Nayland Smith, identificado por Farmer como sobrinho de Sherlock Holmes. Outro coadjuvante, Clive Reston, foi apresentado como filho de James Bond e sobrinho-neto de Holmes. Eckert optou por não considerar os crossovers entre Shang Chi e os super-heróis da Marvel se não fizessem referências diretas a Fu Manchu ou Smith. Isso incluiu os encontros de Shang Chi com o Homem-Aranha, Nick Fury e a Viúva Negra, além de sua aventura ao lado de Rom, Cavaleiro Espacial. Em um especial Shang Chi encontrou o Punho de Ferro e, na edição 19 de Master of Kung Fu, dividiu a cena com o Homem-Coisa, criação de Steve Gerber. A edição 19 também mostrou o encontro com o andarilho filósofo e praticante de rates marciais identificado como Kwai Chang Caine, herói da série televisiva Kung Fu. Os números 85 e 86 de O Mestre do Kung Fu mostraram Shang Chi e seus companheiros visitando uma casa noturna em Casablanca cujo dono se chamava Richard. Com certeza, Richard representava Rick Blaine, personagem do clássico filme dirigido por Michael Curtis, Casablanca, apesar da história não explicar a discrepância da aparência jovial do personagem.

Casos pontuais: a Liga Extraordinária e Vampirella

The League of Extraordinary Gentlemen, de Alan Moore e Kevin O’Neill, é um interessante exemplo de crossover em quadrinhos que apenas pode ser parcialmente inserido no WNU. Os diversos volumes de Liga Extraordinária acontecem em um mundo onde todos os personagens ficcionais já criados existem. Diversos personagens também incluídos por Farmer na família Wold Newton aparecem, entre eles Allan Quatermain, capitão Nemo, Mycroft Holmes e o Professor Moriarty, respectivamente irmão e nêmesis de Sherlock Holmes. Há ainda outro, Campion Bond, um provável antepassado vitoriano de James Bond. Apesar de os dois primeiros volumes de League se encaixarem de maneira cômoda nos parâmetros do WNU, os subsequentes se tornaram problemáticos e são quase sempre considerados como pertencentes a um universo alternativo. The black dossier acontece em um 1958 diferente do nosso, pouco depois dos acontecimentos narrados no romance 1984, de George Orwell, referidos no álbum como The big brother years, nos quais a Inglaterra possui um imenso, ativo espaço, o que não condiz com o conceito adotado por Eckert e outros, que o WNU, ao menos na superfície, é bem próximo de nosso mundo. Igualmente problemáticos são os personagens Jimmy e Hugo Drummond, que correspondem aos membros da família woldnewtoniana James Bond e Hugh “Bulldog” Drummond. Ambos são retratados em The black dossier de uma maneira bem pouco elogiável que amplifica alguns aspectos politicamente incorretos que apareciam de maneira mais discreta nos romances nos quais foram apresentados: Jimmy é um espancador de mulheres que não vê problemas em assassinar um homem inocente para favorecer a América num contrato de venda de armamento em lugar dos ingleses, o que tornaria os eventos narrados no romance O satânico Dr. No, de Ian Fleming, nada além de uma mentira inventada para encobrir suas atividades. Drummond é descrito como um racista raivoso que, ao final da história, é morto por Jimmy quando descobre os atos de traição do colega.

Century, cujos três capítulos acontecem nos anos 1910, 1969 e 2009, constrói um perfil do jovem mago Harry Potter que é incompatível com a obra de J.K. Rowling. O capítulo 1910 possui diversas referências ao 14 Duque de Gurney, do filme The Ruling Class; porém, o filme mostra o Duke se referindo a Mao Tse-Tung e Timothy Leary, o que sugere que a história se passa na contemporaneidade, além do fato do vestuário no filme parecer mais próximo daquele usado em 1972, ano de sua produção. Em 2009, Jimmy é retratado como um idoso decrépito, sofrendo de sífilis e cirrose hepática, tendo sido substituído por uma série consecutiva de agentes mais jovens, uma referência aos diversos atores que representaram Bond no cinema. Nada disso bate com o que os escritores John Gardner e Raymond Benson, responsáveis pela continuidade das histórias de Bond, retrataram em suas obras. A personagem M, que nos filmes é vivida por Judi Dench, revela-se como Emma Peel, uma agente secreta da série televisiva britânica The avengers, enquanto Raymond Benson, no romance Os fatos da morte, diz que o nome real da personagem é Barbara Mawdsley. Finalmente, os Estados Unidos e o Reino Unido são descritos, nas HQ, travando uma guerra com Qumar, um país ficcional do Oriente Médio, em lugar do Iraque.

A pequena graphic novel Nemo: Heart of ice descreve o personagem do menino inventor Tom Swift, de Victor Appleton (nome cuja grafia foi alterada por Moore para “Swyfte”), de uma maneira tão agressiva quanto o tratamento dado a Bond e Drummond. “Swyfte” é um racista que atira na perna de seu colega inventor Frank Reade apenas para diminuir a velocidade do ataque de um shoggoth, abandonando-o para morrer.

O caso de Vampirella, cujas aventuras têm aparecido em histórias das editoras Warren, Harris Comics e Dynamite Entertainment, é um desafio para qualquer estudioso de mitografia, pois as tentativas de organizar uma lógica interna sempre esbarrou em dificuldades organizacionais, fazendo dela um dos personagens mais confusos das HQ americanas, às vezes vilã, outras heroína, e até uma alienígena. A vampira encontrou-se diversas vezes com Drácula, o que, já que ela não é uma super-heroína, serviu para trazê-la para o WNU e, a partir daí, a vampira sexy serviu de ponte para que diversos personagens de editoras menores também entrassem na família Wold Newton. Em sua primeira passagem pela Warren, Vampi encontrou em mais de uma ocasião com Restin Dane, também conhecido como The Rook, cujo avô, o viajante do tempo de H. G. Wells, foi elencado por Farmer como membro da família ficcional (Farmer deu um nome ao personagem, não revelado no romance A máquina do tempo, de Wells, que seria Bruce Clarke Wildman, enquanto nos quadrinhos The Rook foi apresentado como Bruce Dane. Porém, apesar desses fatos, a genealogia de Adam Dane, pai de Bruce Dane, diverge da história da família de Bruce Clarke Wildman de acordo com Farmer. O pesquisador Dennis Hager resolveu o conflito de dados identificando o viajante do tempo como Adam Bruce Clarke Wildman, cuja conexão com a família Dane aconteceria por intermédio de sua esposa, Louise Dane). A história Vampirella and the Time Force mostra Vampi encontrando the Rook e um grupo de outros personagens da Warren, notadamente Dr. Richard Harris, da tira em quadrinhos “Pie.”

The thing in Denny Colt’s grave estabeleceu Vampi como existindo no mesmo universo que o Spirit, herói mascarado criado por Will Eisner. The headless Horseman of All-hallows eve levou Vampi e seu ajudante Pendragon a visitar a cidade de Sleepy Hollow, cenário da novela homônima de Washington Irving. Os crossovers continuaram depois que a personagem foi adquirida pela editora Harris, na década de 1990. Na minissérie de 1997, Catwoman/Vampirella: the furies, Vampi uniu forças com a ladra com um coração de ouro e tradicional inimiga/aliada de Batman (Eckert argumenta que o manto do morcego, sua tradição em combate ao crime e consequente mitologia seguiu com diversos sucessores depois da aposentadoria de Bruce Wayne, o Batman original dos anos 30. John Allen Small teorizou que a Mulher-Gato que encontrou Vampirella seria a filha de Batman com a Mulher-Gato mostrada em Claws of the Cat-Woman, o já mencionado crossover com Tarzan). Ao final da década de 1990 e durante a primeira década do século 21, foram publicados diversos crossovers de Vampirella com personagens da editora Top Cow Comics, como Magdalena, Witchblade e The Darkness. Em 2012, Dynamite Entertainment lançou uma minissérie chamada Dark Shadows/Vampirella, na qual Vampi conheceu os personagens do seriado televisivo de mesmo nome, num combate contra a vampira Elizabeth Bathory.

Além de Vampirella, a vigilante Painkiller, criada por Jimmy Palmiotti, também cruzou os caminhos de The Darkness, Ariel Darkchylde, Hellboy e do Justiceiro. Por sua vez, the Darkness encontrou Batman, os cinematográficos Aliens e Predadores, Lara Croft, Hulk, Wolverine (cuja contraparte woldnewtoniana jamais fez parte dos X-Men), Eva, Daughter of Dracula, Pitt, e Darkchylde. Hellboy, o demônio, conheceu Ghost, que também encontrou o Sombra. Hellboy já fez parceria com Batman e Starman em uma história que sugeria que os mitos de Cthulhu, de H.P. Lovecraft, tinham fundamento na realidade.

Apesar de existirem mais crossovers que se encaixariam no esquema do universo Wold Newton, este artigo visa prover um guia de encontros entre personagens que serviram para expandir o conceito cunhado originalmente por Farmer. O artifício do crossover tem sido usado na ficção por séculos e os quadrinhos utilizam essa ferramenta constantemente. Mesmo depois de quarenta e dois anos da publicação de Tarzan alive, ainda atestamos novas adições à família Wold Newton e o universo expandido não mostra sinais de exaustão. Este admirador e estudioso do conceito de Wold Newton não poderia estar mais feliz.


* Sean Lee Levin é um pesquisador norte-americano de cultura pop especializado na obra do escritor Phillip José Farmer, com ênfase nos trabalhos que envolvem a construção de uma narrativa pós-moderna relacionada ao universo ficcional de Wold Newton, criado pelo autor e desenvolvido por outros artistas. É também editor assistente do site de cultura pop She never slept (http://sheneverslept.com/newsandreviews/) e desenvolve um novo volume da série Crossovers: a secret chronology of the world, com base na obra de Win Scott Eckert.

Referências

CLUTE, J. & NICHOLLS, P. The encyclopedia of science fiction. New York: St. Martin’s Griffin, 1995.

ECKERT, W. S. Crossovers: a secret chronology of the world. Volumes 1-2. USA: Black Coat Press, 2010.

FARMER, P. J. Tarzan alive: a definitive biography of Lord Greystoke. USA: Bison Books, 2006.

______. Doc Savage: his apocalyptic life. USA: Meteor House, 2013.

______. “After King Kong fell”. In: ECKERT, W. S. & CAREY, C. P. Tales of the Wold Newton Universe. USA: Titan Books, 2013.

HAGER, D. “The great danes”. In: An expansion of Philip José Farmer’s Wold Newton Universe, aka The Wold Newton Universe. Disponível em http://pjfarmer.com/woldnewton/Articles8.htm#Danes

McDANIEL, D. The man from U.N.C.L.E. #13: the rainbow affair. USA: Ace Books, 1967.

SCHOLES. R. Structural fabulation – an essay on fiction of the future. USA: University of Notre Dame Press, 1975.

MOORE. A. Dark is the sun, by Philip José Farmer. Disponível em http://www.librarything.com/topic/116336.

NEWMAN. K. Casting a play. Entrevista disponível em http://intemblog.blogspot.com.br/2008/05/casting-play-interview-with-kim-newman.html

SMALL, J. A. “Kiss of the Vampire”. In: ECKERT, W. S. Myths for the Modern Age: Philip José Farmer’s Wold Newton Universe. USA: MonkeyBrain Books, 2005.

Notas

1 De acordo com Win Scott Eckert, os livros de Farmer inseridos na série Wold Newton seriam pastiches, a princípio e apesar de sua qualidade, por não contarem com a aprovação dos autores ou de seus representantes legais (Eckert, 2010, p. 3).

2 O conceito de mitografia, biografias de personagens fictícios como se fossem reais, é anterior a Farmer, sendo que as obras que influenciaram o autor americano, não apenas em Tarzan alive como também no conceito da “família” woldnewtoniana, foram as biografias Sherlock Holmes of Baker Street (1962) e Nero Wolfe of West 35th Street (1969), escritas por William Stuart Baring-Gould, que estabeleciam um parentesco entre os dois detetives.

3 A mitografia poderia ser considerada uma variação do conceito de “Fabulação Estrutural”, desenvolvido pelo teórico Robert Scholes, segundo o qual o grande trabalho do escritor é desafiar as interpretações “confortáveis” por parte do leitor por intermédio de uma estrutura narrativa convincente, apesar de fantástica. Assim, a mitografia, por criar um paradoxo crível (o relato biográfico de seres inexistentes) desafia o leitor e cria um novo senso de realidade com base em uma estrutura (logo, um elemento crível, mensurável) fabular (logo, uma fantasia, um devaneio) (Scholes, 1975, p. 46).

4 Disponível em http://www.librarything.com/topic/116336. Acesso em 20 fev. 2014.

5 Disponível em http://intemblog.blogspot.com.br/2008/05/casting-play-interview-with-kim-newman.html. Acesso em 20 fev. 2014.

6 Realidade paralela é um conceito oriundo da física, que postula a possibilidade de universos fractais derivados do nosso e nascidos de toda e qualquer opção, criando infinitas possibilidades de histórias. Logo, toda vez em que um indivíduo se vê diante de uma escolha, automaticamente dois ou mais universos surgem, um no qual a atitude foi tomada, outro onde nada foi feito, um terceiro onde se optou por uma ação conciliatória, um quarto onde a solução foi o conflito e assim infinitamente (Clute e Nicholls, 1995, p. 23).

7 Para conciliar as diversas versões de Drácula, Chuck Loridans propôs que o Rei dos Vampiros teria a capacidade de criar “clones de almas”, implantando suas memórias e alguns poderes em determinados seres humanos, que se tornariam vampiros comandados à distância pelo próprio Drácula, temporariamente afastado ou incapacitado. Disponível em http://www.pjfarmer.com/secret/contributors/Children-of-the-Night1.htm. Acesso em 21 fev. 2014.

Tempo de leitura estimado: 19 minutos

Novos mapas da pós-humanidade: a ideia de personalidades ciberneticamente compartilhadas em Emissaries from the dead e Embassytown | Fábio Fernandes*

Microfísica da pós-humanidade

O que define a pós-humanidade? Somos capazes de dizer que existe uma pós-humanidade no mesmo sentido de humanidade, isto é, uma espécie única, étnica e culturalmente diversa, mas sem diferenças genéticas entre seus membros?

Quinze anos depois da publicação do clássico How we became posthuman, de N. Katharine Hayles, estamos sendo confrontados com novas formas e sabores da pós-humanidade – não novas raças, pois o conceito de raça é obsoleto, mas certamente novos modos, novas maneiras de viver a condição pós-humana.

E, como parece ser o caso na maioria das vezes, a ficção científica é o meio escolhido para essa exibição pós-humana; é a ficção científica que nos mostra o caminho, oferecendo soluções para problemas que sequer sabíamos que tínhamos – ou, às vezes, na melhor tradição das fábulas, cautionary tales, histórias que nos pedem cautela (no caso da ficção científica, como é bastante comum, relacionadas ao mau uso da tecnologia – vide Frankenstein, por exemplo).

Como escrevemos antes em outro artigo, ser pós-humano é viver em um estado constante de mudança. Portanto, segundo uma visão canguilhemiana, do ponto-de-vista do “normal”, o pós-humano é sempre crítico: o pós-humano é sempre patológico.

Devemos nos lembrar, entretanto, que esse tipo de suposição está sujeito a mudanças – e o que é mais mutante que o futuro? Se estivermos dispostos a aceitar sem discussão a definição de pós-humanidade de Hayles (uma construção diferente que, em suas palavras, “pensa no corpo como a prótese original que todos nós aprendemos a manipular, de forma que estender ou substituir o corpo com outras próteses se torna uma continuação de um processo que começou antes de nascermos”), rapidamente nos vemos aprisionados por uma rede que já pode estar ficando pequena e restrita para o século 21, uma rede de conceitos que abrange em sua grande parte espaços virtuais, dando menos atenção a ciborgues, corpos com DNA alterado ou aprimoramentos de nanotecnologia, na qual a ficção científica recente tem nos levado a crer.

Steven Shaviro aborda essa questão indiretamente em seu ensaio The singularity is here, comparando a singularidade através das obras de Ray Kurzweil e Charles Stross. The singularity is near, de Kurzweil, e Accelerando, de Stross, tratam ambos da singularidade (Figura 1), embora o primeiro a considere garantida como algo que acontecerá com certeza até 2049 (!) e o segundo seja pura ficção científica. Ambos concordam que este evento será um momento interessante e empolgante para a espécie humana, e não seu momento mais difícil, ainda que Kurzweil seja bem mais otimista que Stross. Para ele, segundo Shaviro,

Após a Singularidade, Kurzweil nos assegura, saúde, riqueza e imortalidade – isso para não mencionar os mais incríveis games de computador e simulações – estarão disponíveis para todos de graça. Escassez será coisa do passado. Todas as barreiras e oposições binárias cairão: não haverá distinção, pós-Singularidade, entre humano e máquina ou entre realidade física e virtual (Bould, 2009).

Figura 1 – The singularity is here, de Ray Kurtzweill, e Accelerando, de Charles Stross.
Figura 1The singularity is here, de Ray Kurtzweill, e Accelerando, de Charles Stross.

Kurzweil partilha essa mesma visão de mundo otimista com Hans Moravec, que talvez seja ainda mais radical que seu colega e amigo. Moravec, em seu livro Mind children, propôs o download da consciência de corpos para computadores como a chave para a imortalidade.

Mas uma coisa que tanto Moravec quanto Kurzweil parecem ter ignorado em suas obras é o que chamarei aqui de possibilidade remix, isto é, a possibilidade de que você pode não só fazer o download de sua própria mente para um dispositivo, como também misturar sua mente com outra (ou outras) em uma espécie de caldeirão, onde você poderá preservar sua personalidade e ao mesmo tempo se misturar com outras, tornando-se, na verdade, uma espécie de terceira margem do rio, uma entidade inteiramente diversa, que não existia até então.

Essa possibilidade remix não é de minha invenção, mas é o que a ficção científica com o passar do tempo veio a chamar de mente-colmeia, em obras seminais como Last and first men, de Olaf Stapledon, The green brain, de Frank Herbert, ou The midwich cuckoos, de John Wyndham. Ao invés de uma terra de ninguém, este território está sendo mapeado já há um bom tempo, desde o mais famoso dos subgêneros da ficção científica, a space opera.

Essa “terra de muitos alguéns” vem sendo apresentada em uma ampla variedade de mentes grupais, seja no formato de diversas personalidades ocupando um único corpo, como o caso de Alia Atreides em Filhos de Duna, ou muitos corpos conectados para compor o que poderíamos considerar uma supramente (como no caso dos indivíduos que acabam se fundindo na obra clássica de Theodore Sturgeon, Além do humano).

No século 21, dois romances se destacam até o momento apresentando versões ligeiramente diferentes desse conceito de personalidades compartilhadas, acrescentando a ele a cibernética (e, portanto, um novo tipo de pós-humanidade, mais “incorporado” que a variedade mais virtualizada proposta por Hayles): Emissaries from the dead, de Adam-Troy Castro, e Embassytown, de China Miéville.

Como essas personagens vivem e progridem (ou não) nas histórias de Castro e Miéville? Qual é a natureza da relação entre ele e com outros seres humanos “normais” – mesmo se levando em conta que diversos desses ditos humanos normais seriam eles próprios considerados pós-humanos pelos padrões de hoje?

Dois humanos são um humano

Em Emissaries from the dead, somos apresentados a Andrea Cort, agente do Dip Corps (Diplomatic Corps, Corpo Diplomático em português) da humanidade, que, nesse futuro distante, é mais conhecida por uma forma abreviada de sua espécie, Hom. Sap.

Figura 2 – Emissaries from the dead, de Adam-Troy Castro.
Figura 2Emissaries from the dead, de Adam-Troy Castro.

A história acontece no mundo artificial de One One One, criado pela AIsource, que é a coisa mais alienígena que podemos ter, porque não só é uma inteligência artificial como também é um consórcio de diversas inteligências artificiais realmente alienígenas que decidiram se reunir sob sua própria agenda insondável, provavelmente milhões de anos antes que a humanidade sequer surgisse sobre a face da Terra. Então aqui somos apresentados não ao pós-humano, mas ao seu exato oposto (se tal coisa pode ser dita), uma entidade pós-alienígena.

Cort, que está nesse local para solucionar um assassinato, acaba sendo obrigada a ter de lidar com um casal de agentes de segurança cylinkados, Skye e Oscin Porrinyard. Conforme eles deixam bem claro para ela desde o começo, o fato de que são dois é um mero detalhe físico, mas irrelevante:

A mulher falou sozinha. “Nasci apenas Skye. Ele nasceu apenas Oscin.” Então os dois voltaram a falar juntos, naquela voz compartilhada que era musical, porém incômoda. “Fomos linkados aos quinze anos, e assumimos o sobrenome Porrinyard” (Castro, 2008).

Conforme eles continuam em sua explicação, uma parceria cylinkada indica que os parceiros abriram mão por complete de suas personas anteriores para criar uma terceira, que é a soma de suas partes.

Cort está intrigada, pois nunca havia visto um casal cylinkado antes. Personalidades cylinkadas são algo do qual se ouve falar e não são exatamente incomuns (“Havia, até onde eu sabia”, Cort diz a si mesma durante esse primeiro contato com os Porrinyards, “menos de três mil pares vivos”), mas também não são considerados a norma na sociedade Hom. Sap.:

Cylinking, uma operação ilegal na maioria dos mundos humanos, era um dos serviços mais desagradáveis que a AIsource Medical oferecia a outras raças sencientes. Em troca de uma percentagem de ganhos futuros, a AIsource podia conectar as personalidades de dois indivíduos separados, através de uma matriz de transmissão intangível. O processo substituía os dois indivíduos com uma gestalt maior que experimentava a vida como uma pessoa combinada. Em teoria, isso aumentava sua inteligência compartilhada diminuindo a necessidade de dedicar precioso espaço craniano com informação redundante que não precisava mais ser conhecida por ambos (Castro, 2008).

É importante dizer que Andrea Cort também não é considerada um ser humano normal, nem pelos padrões de outros humanos, nem mesmo pelos seus próprios. Após participar ativamente de um massacre em seu mundo natal ainda criança, matando tomada de fúria cega um membro de sua família, ela passou metade da vida internada em instituições até que o Dip Corps concluiu que ela poderia ser mais bem aproveitada como uma agente trabalhando para eles em regime vitalício de servidão.

Ela se considera um monstro sem sombra de dúvida, e, sendo uma espécie de detetive hardboiled à moda antiga (pensem em Sam Spade, de Dashiell Hammett, ou Philip Marlowe, de Raymond Chandler), ela é cínica mas não julga os outros – entretanto, mesmo eles levam um tempo para parar e entender uns aos outros, como na cena em que ela acabou de ter uma entrevista com a misteriosa AIsource e encontra apenas Oscin Porrinyard esperando por ela do lado de fora da sala de reuniões:

Murmurei: “Onde está sua outra metade?”
“Por quê, Conselheira? Ficaria mais à vontade com ela?”
“Não preciso estar à vontade. Só estou surpresa por ver vocês dois separados.”
O próximo sorriso dele veio completo com olhos fechados. “Meus componentes nunca estão separados, Conselheira, mas não precisamos necessariamente estar fisicamente próximos um ao outro para estarmos juntos” (Castro, 2008).

Essa explicação e várias outras ao longo da narrativa não só farão Andrea compreender mais esse ser pós-humano (e, por um breve momento no meio da narrativa, até mesmo se perguntar como seria ser um componente de uma personalidade cylinkada), como eles acabarão por se envolver romântica e sexualmente.

Até que ponto um monstro e uma personalidade cylinkada podem se relacionar? Um segundo romance de Andrea Cort lançado em 2009, The third claw of God, começou a se aprofundar mais nas questões de amor pós-humano e no desejo de ser outro, já que Andrea Cort ainda se pergunta se o procedimento de cylinking poderia ser a resposta para o que, acredita ela, é uma doença que a corrói por dentro. Ela seria o terceiro componente na personalidade cylinkada Porrinyard, o que daria origem a mais um ser. Na matemática da pós-humanidade, onde dois eram um, três continuarão sendo um. Se este um é mais que a soma de suas partes, cabe aos seus componentes responder.

Um humano é menos que humano

Em Embassytown, de China Miéville, o leitor vê o reverso da medalha.

Esse romance também apresenta duplas aprimoradas, mas no caso são gêmeos alterados geneticamente que também estão conectados ciberneticamente mas permanecem cada qual com sua própria identidade. Esses gêmeos são criados para serem Embaixadores no mundo dos Anfitriões, ou Ariekei, seres cuja linguagem é tão complexa que precisa ser falada por dois seres ao mesmo tempo, cada qual pronunciando uma palavra diferente em uma entonação diferente.

Figura 3 – Embassytown, de China Miéville.
Figura 3Embassytown, de China Miéville.

A protagonista, Avice Benner Cho, é uma Imersora – uma humana dotada de habilidades que lhe permitem viajar pelo espaço (os limites dessa habilidade nunca são explicados em detalhes, o que deixa o leitor concluir que pode ser uma característica genética – uma pós-humana em um futuro distante em que a humanidade sequer se lembra onde fica a Terra), mas que antes, em sua infância, executou uma símile para os Embaixadores.

Esse ato, difícil de descrever (e até mesmo de compreender segundo os hábitos e costumes do século 21) significa basicamente que um humano é recrutado para servir como uma função da linguagem para uma espécie alienígena cuja ideia de comunicação é tão diferente da nossa que precisa ter uma analogia física da função (um exemplo tosco seria ter um mapa do tamanho do território disposto sobre este para que uma pessoa que jamais tivesse visto um mapa em sua vida pudesse entender o conceito – o que não funcionaria de todo, embora pudesse ajudar). Após o ato ritual, no qual os Embaixadores não falaram com Avice na linguagem de seus Anfitriões mas a falaram, Avice veio a saber que sua símile foi “Havia uma garota humana que, sentindo dor, comeu o que lhe foi dado em um quarto velho construído para comer no qual há algum tempo já não se comia”.

Um ex-embaixador, Bren, dá a Avice uma certa orientação antes do ato, mas não pode fazer muito mais que isso, pois ele havia sido expulso não só das funções de embaixador como também de todo o convívio humano. Bren é um dividido, isto é, uma pessoa que um dia teve um gênero ciberneticamente conectado (ou um doppel, como o chamam), mas ele foi morto e Bren não pode sequer dizer mais seu nome completo (que era BrenDan – sendo Dan seu irmão gêmeo, obviamente) de modo correto.

Quando Bren finalmente conta sua história a Avice, anos mais tarde, ele lhe mostra uma caixa contendo os dois links que ele e seu doppel usavam. E explica porque ainda os conserva:

Se eu tivesse jogado o dele fora e guardado o meu, você acharia que eu estava me agarrando à minha identidade morta, ou lamentando a morte dele. Se eu jogasse ambos fora, você me veria agir em negação. Se eu guardasse o dele mas não o meu você diria que eu estava me recusando a deixá-lo partir. Não há nada que eu possa fazer que você não teria tentado. A culpa não é sua. Você não pode evitar, é o que nós fazemos. O que quer que eu faça, será uma história ou outra (Miéville, 2011).

Apesar da série de eventos que ainda se desdobrarão em Embassytown (em uma estranha mas talvez não surpreendente similaridade com Emissaries from the dead, Avice irá mais tarde ter um par de doppels, CalVin, como amantes), a citação acima pode nos servir por ora, especialmente a última frase de Bren: “O que quer que eu faça, será uma história ou outra”. Faria diferença qual história seria no fim? Se Bren tivesse morrido e Dan tivesse sido o sobrevivente, a história teria tomado um curso diferente? Talvez sim, pois eles tinham personalidades diferentes. Mas eles ainda compartilhavam uma vida mais intimamente do que qualquer tipo de casal casado poderia jamais ter imaginado. Por isso, Bren se sentia metade de um homem – e como tal era visto pela sociedade, tanto humana quanto Ariekei. O que quer que ele fizesse, não teria lugar para onde ir. Aqui, nesse cantinho matemático da pós-humanidade, onde dois eram um, um é apenas meio. E, se este um é ainda menos que a exata divisão da anterior soma de suas partes, talvez nem mesmo o componente que sobreviveu saiba a resposta.

Queremos saber a resposta?

Em ambos esses futuros, estar fora da norma culturalmente aceita não é visto como sendo algo saudável. O interessante é que os dois romances foram escritos por homens (um deles marxista, que chegou a tentar o caminho da política há algum tempo), e os dois apresentam personagens do sexo feminino, fortes e não-estereotipadas – não-estereotipadas a ponto de serem fora da curva, desequilibradas, no desvio (novamente, todos esses comentários precisam ser analisados em profundidade – quem pode dizer que elas são desequilibradas? O autor deste artigo, um homem branco ocidental que é, pelo menos em seu país natal, visto como parte do padrão de gênero e etnia dominante? Esta questão, infelizmente, não será respondida aqui – mas deveria [consulte Gayatri Spivak, Edward Said, Homi Bhabha em busca de respostas]).

Talvez o fato mais importante a se destacar seja o de que ainda existe uma norma a seguir no futuro. Isto é, existe uma maioria de seres humanos que, mesmo com uma grande quantidade de dispositivos implantados (no caso de Emissaries), ainda são morfologicamente reconhecíveis para o humano do começo do século 21 – nossa própria época, o que é apenas lógico, pois não temos meios de prever o futuro, e qualquer extrapolação só pode ser feita a partir do que existe aqui e agora, e o corpo do homo sapiens é o que temos como base sobre a qual construir qualquer coisa.

Se o pós-humano é visto como exótico em muitos casos, então dentro do pós-humano, com o tempo, foram surgindo diversos outros subgrupos que vieram a ser considerados inaceitáveis até mesmo pelos padrões pós-humanos – muito embora não exista em nenhum momento a dúvida do status humano em cada parte envolvida. Em Emissaries, a AIsource desempenha um papel que certamente não pode ser desprezado, pois eles parecem ser os criadores do procedimento de cylinking – assim como os Ariekei em Embassytown, o que provoca a pergunta: os monstrous são sempre uma maldição do Outro? Os aliens são o Outro; mas, ao executarem esses procedimentos “indizíveis”, para usarmos o adjetivo lovecraftiano, os humanos automaticamente se tornariam uma espécie diferente e anormal de pós-humanos, e portanto a espécie errada? Eles estão errados porque são tão diferentes, e mais em mente do que em corpo? A pós-humanidade, portanto, não cometeria os mesmos erros da humanidade, atribuindo valores às diferenças e segregando seus membros às categorias de seres normais e anormais?

Isso traz à memória o ensaio “Dos canibais”, de Michel de Montaigne, escrito em 1562, aproximadamente quinze anos apóso filósofo francês ter conhecido, em Rouen, um nativo da tribo dos Tupinambás que havia sido levado à França pelo explorador Villegagnon. Essa reflexão, que introduz uma nova visão multiculturalista na cultura europeia, e é em si mesma uma espécie de protoguia para a humanidade, no sentido de que Montaigne critica a visão que se tinha então, em sua sociedade, dos índios sul-americanos como sendo bárbaros, e volta sua lente de aumento para estudar seus compatriotas europeus:

Creio que não há nada de bárbaro ou de selvagem nessa nação, a julgar pelo que me foi referido; sucede, porém, que classificamos de barbárie o que é alheio aos nossos costumes; dir-se-ia que não temos da verdade e da razão outro ponto de referência que o exemplo e a ideia das opiniões e usos do país a que pertencemos. Neste, a religião é sempre perfeita, perfeito o governo, perfeito e irrepreensível o uso de todas as coisas. Aqueles povos são selvagens na medida em que chamamos selvagens aos frutos que a natureza germina e espontaneamente produz; na verdade, melhor deveríamos chamar selvagens aos que alteramos por nosso artifício e desviamos da ordem comum (Montaigne, 1993).

Lembrando Georges Canguilhem em O normal e o patológico, conforme mencionado em nosso artigo acima, “se ‘a norma para o corredor de longa distância não é a mesma para o de curta’, se ‘cada um de nós muda suas próprias normas de acordo com a idade e suas próprias normas anteriores’, logo as normas para o organismo pós-humano não podem ser as mesmas normas do organismo humano em razão de suas mudanças”.

Portanto, o diferente é apenas diferente, nem superior nem inferior – uma lição que Montaigne já havia inferido por observação e Canguilhem aprendido por estudo biológico e fisiológico. Só podemos torcer para que esses antigos pensadores, juntamente aos mais recentes “ficcionautas” apresentados neste artigo, possam se revelar verdadeiros cartógrafos, tanto para nos oferecer visões do que poderemos nos tornar no futuro quanto para desenvolver uma ética pós-humana atribuindo a cada indivíduo seus direitos de viver sob o status de normalidade – o que quer que esta palavra possa significar no futuro.


* Fábio Fernandes é doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP e professor dos cursos de graduação em Jogos Digitais e Tecnologia e Mídias Digitais daquela universidade, além da pós-graduação em Tecnologias da Inteligência e Design Digital (TIDD). Autor dos livros Interface com o vampiro (2000), A construção do imaginário cyber (2006), Wild mood swings (2008), Os dias da peste (2009) e No tempo das telas (2014). Membro do Steering Group de Visions of Humanity in Cyberculture, Cyberspace and Science Fiction, associado à University of Oxford, e membro do The Internet of Things Council (http://www.theinternetofthings.eu/). Formado pelo Clarion West Writers Workshop de Seattle em 2013.

Referências

BOULD, Mark & MIÉVILLE, China (eds.) Red planets: marxism and science fiction. London: Pluto Press, 2009.

CANGUILHEM, Georges. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.

CASTRO, Adam-Troy. Emissaries from the dead. New York: Harper-Collins, 2008.

COPELAND, Jordan J. (ed.) The projected and prophetic. Oxford: Inter-Disciplinary Press, 2010.

HAYLES, N. Katharine. How we became posthuman: virtual bodies in cybernetics, literature, and informatics. Chicago: The University of Chicago Press, 1999.

MIÉVILLE, China. Embassytown. New York: Del Rey Books, 2011.

MONTAIGNE, Michel de. The complete essays. (ed. and translated by M. A. Screech.) London: Penguin Classics, 1993.

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A conversão ao standing e o "Elastagel": análise de elementos da HQ Promethea, de Alan Moore e J. H. Williams III | Carlos Hollanda*

Foi sob um clima de expectativa e incertezas quanto ao futuro que foi elaborada a série Promethea, do muitas vezes premiado roteirista Alan Moore e de um dos mais talentosos artistas de quadrinhos da atualidade, Jim H. Williams III. Seu lançamento foi quase concomitante ao do filme Matrix (1999), dos irmãos Wachowski. Ambas as obras, cada qual à sua maneira, tratam em parte de suposições acerca da criação de “realidades” através de códigos escritos e visuais. Em Matrix, os códigos computadorizados representam pessoas, cidades, comportamentos, circunstâncias. Em Promethea, os códigos são as narrativas que se mantêm numa dimensão imaginária que é acessada de tempos em tempos por pessoas muito criativas que terminam por trazer ao mundo esses aspectos e o transformam de algum modo. Igualmente, os códigos imaginários referenciados pelos autores da série remetem a mitos em torno da criação do universo (mitos cosmogônicos) e de crenças que têm como matrizes temas oriundos do neoplatonismo, do gnosticismo e do hermetismo renascentista, apropriados por estudiosos de ocultismo do século XIX, que serão citados mais adiante. Moore e Williams enveredam por um sincretismo simbólico, sobretudo através de concepções esotéricas em torno da Alquimia, da Cabala, do Tarot e da Astrologia, cujos símbolos e correlações são representados visualmente na série com recursos estéticos capazes de comunicar com originalidade as analogias com os mundos intangíveis e surreais descritos na narrativa.

Moore é autor de outras séries de sucesso, algumas delas transformadas em obras cinematográficas como “V de Vingança”, “Liga Extraordinária” e “Watchmen”. Tal como em seus demais roteiros, ele impôs em Promethea um de seus principais diferenciais: um final previsto. A maioria das histórias em quadrinhos de personagens fixos e outras produções midiáticas como séries televisivas são mantidas indefinidamente. À medida que continuam dando lucro e estimulando a demanda dos consumidores destes gêneros, elas seguem sendo publicadas. O modus operandi de Moore difere substancialmente das demais produções do gênero, que recriam situações típicas e contextos repetitivos à exaustão.

Sua personagem tem como base visões pertencentes a organizações iniciáticas e entre suas inspirações encontram-se os já referidos arcanos do Tarot, que constituem grande parte da estrutura da HQ. Mais especificamente o deck de Tarot (“Tarot de Toth”) pintado por Frieda Harris (1877-1962), entre 1938 e 1945, sob a supervisão de Aleister Crowley (1875-1947), mago britânico que fundou e participou de organizações iniciáticas como a Golden Dawn e a Ordo Templi Orientis (O.T.O.). O roteiro privilegia o modelo de distribuição dos arcanos maiores daquele deck na Árvore da Vida segundo as premissas de seu supervisor, Crowley.

Um panorama geral

Para que haja um maior entendimento sobre o que aqui será tratado, eis um breve panorama da série e do perfil de sua protagonista: Sophie Bangs, jovem estudante de literatura, faz pesquisa sobre Promethea, uma figura literária que surge de tempos em tempos a partir de autores diferentes, em relatos, contos, quadrinhos antigos etc. Ela acessa a dimensão imaginária em que habita a personagem e passa a manifestá-la no mundo físico. Promethea é uma expressão dos deuses da comunicação e da escrita, o egípcio Toth e o grego Hermes. A personagem viaja por níveis diferentes de realidade, todos representando manifestações de uma ideia multifacetada de divindade, expressão ecumênica que admite modelos pagãos europeus, budismo, hinduísmo etc. e uma visão da condição humana sob a mística judaico-cristã, os arcanos do Tarot e símbolos astrológicos. Na HQ, ela alcança essa unidade divina e, ao final, promove o Apocalipse e a libertação da humanidade de maneira muito peculiar às crenças de Alan Moore. Além de tudo isso, promove a ideia de que a realidade pode ser criada também pela escrita/código e pela imaginação, como já visto na menção a Matrix. Tudo ocorre simultaneamente a situações mundanas, numa Nova Iorque imaginária de 1999 em que a tecnologia é muito mais avançada do que a realmente existente naquele fim do século. O nome Sophie Bangs contém propositalmente “sofia”, “conhecimento”, “saber”, em grego, radical de “Filosofia” (“amor ao saber”, etimologicamente falando) e Big Bang. A interpretação dificilmente seria diferente, já que na HQ, em sua supressão de sentido entre palavras, contextos e imagens, a temática oferece como foco central um esquema hermético da criação do universo, algo análogo e alusivo ao Big Bang proposto pela ciência (uma espécie de “momento zero” da Criação). “Sophia” é também parte do mito gnóstico de criação do universo e seria, em resumo, segundo essa doutrina, a geradora do mundo “ilusório” com o qual lidamos cotidianamente (o mundo da forma) devido à intenção de igualar-se ao “Deus Pai”, então a fonte de toda a existência (Rudolph, 1987, p. 53-88). Esta personagem mítica é análoga a uma das transformações pelas quais passa a protagonista numa parte adiantada da série e sua redenção equivale ao processo que levará à redenção da humanidade ao final da HQ.

Estes são pontos importantes na decodificação dos signos visuais e linguísticos da obra dos autores em questão para prosseguirmos com o foco no tema proposto no título: a crítica à “conversão ao standing”, nas palavras de Jean Baudrillard, em seu O sistema dos objetos. Na série, a edição número 11 (dezembro de 2000) é um tanto expressiva quanto ao processo que, entre outras particularidades, indica a publicidade como elemento de consumo, mais do que apenas os objetos que anuncia. Igualmente, apresenta de maneira sutil e em imagens o modo como o elemento coercitivo do imaginário suscitado pela propaganda leva a uma espécie de imposição do consumo. Visto isso, analisemos adiante o modo como os autores representam a supracitada coercitividade em torno dos “produtos do momento”.

“Patricinha” em busca de identidade

As necessidades humanas seriam, como vimos, deslocadas e respondidas, aparentemente, pelo consumo de mercadorias que prometem mais do que o produto pode oferecer. É o que Baudrillard vai chamar de separação entre produto (historicamente produzido) e bem de consumo, um objeto que se apresenta com uma “personalidade” própria que, no momento da compra, classifica seus consumidores, numa inversão de dominação, onde os objetos nomeiam homens, “um sistema de objetos”. Os produtos vão estabelecer hierarquias sociais, então, de forma que podemos pensar o consumo, num primeiro momento, como um modelo de concorrência, pela qual buscamos o “mais avançado”, o “último tipo” – “fetiche imperativo da valorização social (ZILIOTO, 2003, p. 29-30).

A passagem acima guarda profunda relação com boa parte das representações da edição número 11, sobretudo com a segunda figura mais importante em toda a série: Stacia Vanderveer. Ela é a amiga mais próxima de Sophie Bangs e uma espécie de seu oposto complementar. É a figura de consumo e alienação, a adaptação extrema a uma sociedade guiada pelos símbolos de status, pelo domínio das marcas e do “último modelo”. Enquanto Sophie se preocupa com sua interiorização e com questões transcendentes, Stacia mantém-se no nível imanente, vinculada às coisas do mundo. Entretanto, esse mundo no qual Stacia se encontra tão à vontade, independente de ser paupável, é na verdade construído por um intenso processo de simbolização. Todavia, trata-se de uma simbolização que distancia o indivíduo de qualquer reflexão acerca das condições em que vive. Não há “realidade” nesse mundo, exceto a realidade dos símbolos e de sua manipulação em torno do consumo, da inserção no sistema.

Stacia, neste caso, assume o posto de protagonista, especialmente quando o tema ora tratado representa um sistema de consumo da linguagem publicitária e a emergência do desejo, dirigido por esta última à assimilação das normas do grupo.

Stacia vive em busca de identidade e seus objetos de consumo, cada qual vinculado retoricamente a temporalidades diferentes (vestido anos 60, cabelo cor-de-rosa, enfeites punk dos anos 70) representam a desreferencialização pós-moderna (ver figuras 1 e 4). Seus excessos consumistas equivalem a nenhum referencial identitário específico, correspondem, no âmbito coletivo, ao que Stuart Hall diz a seguir:

A identidade plenamente identificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente (Hall, 2002, p.7-22).

Stacia é o protótipo da adesão ao imperativo e os indicativos publicitários e da profusão de identidades, algo constatável pela convivência de diversas “temporalidades” e elementos estéticos contrastantes em suas vestimentas e comportamento.

Vimos acima alguns jogos de palavras com o nome de Sophie Bangs, bastante contextualizados às ideias inerentes à série. Podemos fazer algo semelhante com Stacia. Uma breve análise de seu nome já introduz o que será verificado, logo em seguida, nas imagens da cidade e da inserção da personagem no meio urbano, além do uso de um produto que, no contexto da HQ, está plenamente na moda e que mais adiante será analisado. “Stacia” pode provir de “stack”, em inglês, que significa “pilha”, “monte”, ou coloquialmente “grande quantidade”, “abundância”, ao que se pode acrescentar “exagero”, dadas as características a serem detalhadas. Seu sobrenome, “Van der Veer”, numa primeira observação, mostra parentesco com holandeses (“van”). Entretanto, o final “veer”, em inglês significa “mudança”, “mudar de direção”, “guinada”, “giro”. Stacia mantém-se em constante e profusa mutação, a propósito. Seus cabelos, de rosa passam ao verde e de um tipo de penteado a outro em questão de capítulos ou algumas páginas. Suas vestimentas cada vez mais exóticas a cada aparição, mesclam casacos de pele de onça com motivos plásticos (ver Figura 5). Van der Veer, em holandês vem de “da passagem”, e é traduzido por “ferry”, no inglês: “passagem”, “balsa”, “barco de passagem”, “travessia”. Podemos acrescentar “transição”. Nos dicionários holandeses Veer também pode significar “pena”, “pluma”, “penacho”, “plumagem”, “enfeite”. Dá origem ao verbo “emplumar-se”. De fato, Stacia é “toda emplumada”, alguém que na gíria brasileira poderia receber a alcunha de “perua”. Os resultados das combinações seriam semelhantes a “muito efêmera” e “exageradamente enfeitada”. É como Stacia sempre se encontra, ao usar tudo aquilo que se adéqua à sua suposta individualidade. Entre esses usos está o do produto que simboliza o maior dos fetiches de valorização social e dos avanços tecnológicos cujo consumo é menos uma necessidade do que uma identidade outorgada temporariamente: o Elastagel.

O Elastagel: “último modelo” e signo de personalidades amorfas

Quais as relações entre Stacia e o Elastagel? Para compreendermos, antes é preciso analisar o modo como este último é representado. Produto fictício, um dos referenciais sígnicos dos avanços científicos da realidade alternativa daquelas personagens, o Elastagel funciona simultaneamente como reiteração visual de algumas das propriedades “mercuriais” da HQ e como substituto para diversos outros materiais. Ele ocupa o lugar de plásticos, borrachas, tecidos, vidros e é programado em conformidade com as necessidades e/ou desejos de cada consumidor. É reaproveitável e sua estrutura é construída em bases nanotecnológicas. Disso decorre sua plasticidade e possibilidade de programação tal qual um software. Como vestimenta, amolda-se ao corpo, permite o ajuste a cada usuário pelo tamanho e pela especificidade da forma. É indeformável: se rasgado ou danificado, sua “nanoprogramação” imediatamente se prontifica a reparar o dano, tornando a vestimenta nova em folha. O Elastagel seria, afinal, a suprema personalização num sistema de objetos, nos termos de Baudrillard:

(…) em uma era de consumo ou que assim se pretende, é a sociedade global que se adapta ao indivíduo. Não somente vai ao encontro de suas necessidades, como toma bastante cuidado em se adaptar não a esta ou àquela necessidade sua, mas ao indivíduo próprio pessoalmente (Baudrillard, 2002, p. 178).

A questão é tratada, como se pode ver, numa obra ficcional e certamente não se possui, até o momento, algum material com tamanha versatilidade e praticidade. Entretanto, a suposta personalização ideal daquele produto é o mote para uma crítica à conversão ao standing. No roteiro, não há a menor necessidade de substituição dos materiais existentes. Entretanto, as medidas publicitárias estimuladoras do consumo contribuem fortemente para o uso desse último modelo, desse material mais “moderno”, mais “condizente com o estilo da época”. A publicidade com sua função gratificante, infantilizante, satisfaz as instâncias imaginárias, enquanto o progresso técnico e o produto visam satisfazer as necessidades materiais. No entanto, que necessidades seriam essas? A publicidade constrói e responde a outras construções, cria necessidades que não as fisiológicas ou as de sobrevivência, mas sim as de convivência e de conformidade ao imperativo coletivo, a autoinserção na massa, ainda que através do discurso da diferenciação e da formação identitária. Baudrillard a esse respeito cita textos publicitários como “materiais novos para afirmar o estilo de nossa época. (…) Depois da idade da pedra e da madeira, vivemos, em matéria de mobiliário, a idade do aço” (Baudrillard, 2002, p.178). Se a publicidade fosse realizada na HQ, o final do texto seria substituído por “a idade do Elastagel”. O sentido é basicamente o mesmo.

Uma obra de ficção, como qualquer outra que expressa o imaginário da época de sua produção, comporta os anseios, preocupações, temores e expectativas que fazem parte das práticas e representações sociais vigentes, assim como seus tabus e exclusões. Não é aleatório o uso dessa figura retórica e também visual, nem tampouco se encontraria ali apenas com a finalidade de ocupar espaço na narrativa e entreter seus leitores. Mais do que isso, constitui um discurso de quem vive um momento em que as produções industriais e a publicidade atingem um nível de sedução das populações em prol de um consumo muito além das necessidades físicas. É a discussão acerca do que é realmente necessário, a indicação literária de uma dependência do desejo e do seu avassalador estímulo via meios de comunicação. Vai-se além, ainda, das necessidades de integração social, tal como em décadas anteriores. O sistema de obsolescência planejada recria e impõe uma outra necessidade de integração, com mecanismos de inserção do indivíduo não num grupo que se identifica pela classe ou por um paradigma ideológico, mas sim pelo ingresso numa poderosa corrente de desejo e descarte, de autogratificação e insatisfação ininterruptos. Saciam-se vontades, não necessidades (Campbell, 2006, p. 49). Na edição 11, essas representações fazem eco ao que diz Denise Macedo Ziliotto:

(…) se consumimos signos e não objetos, o consumo é uma prática idealista total que faz com que não haja fim para o consumo, que ele não seja saciável. Dinamizado por um projeto sempre frustrado e subentendido no objeto, o consumo se fundaria, então, numa ausência irreprimível (Ziliotto, 2003, p. 33).

É esta a questão. Mesmo inexistente, pelo menos por enquanto, o fabuloso material da moda na HQ, que teria suas virtudes, a propósito, é a imagem retórica de mais um contributo à obsolescência de numerosos materiais. Objetos que tornar-se-iam sucata em favor da satisfação provisória dos desejos, e não exatamente das necessidades, até que fosse produzida uma nova substância cujas propriedades e diferenciais substituíssem as do Elastagel. Não seria, portanto, o material em si ou aquilo no que ele se transforma, mas o símbolo que ele carrega e seus aspectos inovadores, o diferencial, o fator que os demais não possuem e que pode possibilitar o exprimir de uma identidade.

Num ponto mais adiantado do capítulo, todos os artefatos feitos de Elastagel sofrem um “defeito” e ganham vida nos corpos de seus usuários, nas ruas, em todos os objetos e estruturas, que então somam milhões de toneladas, unindo-se em algo comparável a um oceano de massa amorfa esverdeada (ver Figuras 2 e 3). Ao tornar-se amorfo e monstruoso, o que passa a ser representado é o caos subjacente àquela aparente ordem. Naquele ponto, eis a deixa para a entrada em cena da heroína.

A “Pseunami”, título dado ao capítulo ora estudado, uma mescla de “pseudo” (falso) e “tsunami” (onda gigante), se por um lado inscreve-se nos temores coletivos do final do século XX de catástrofes naturais, por outro representa a ilusão veiculada pela publicidade, que é consumida como uma segunda coisa, além do próprio produto. Tsunami, devido à gigantesca produção de objetos de consumo cuja necessidade é duvidosa, mas que inserem o consumidor individual num sistema universal, o standing. Seria essa conversão ao standing, que ao mesmo tempo propõe a suprema individualização/personalização, mas condiciona à aquiescência dos códigos de valores coletivos submetidos às normas do consumo do capitalismo industrial. A função da publicidade seria, segundo Baudrillard, converter-nos a tais valores. Quanto ao standing e aos códigos supracitados, o autor acrescenta:

Este código é totalitário, ninguém lhe escapa: escapar a ele em caráter privado não significa que deixamos de participar a cada dia de sua elaboração no plano coletivo. Não crer nele é ainda crer que os outros nele creiam o bastante para entrar, mesmo ironicamente, no jogo. Mesmo as condutas refratárias a tal código são consideradas em função de uma sociedade que a ele se conforma (Baudrillard, 2002, p. 203-203).

Como crítica, a representação de uma Pseunami formada pela liquefação de um “último modelo”, como uma massa homogênea que submerge no caos todas as identidades (homogeneidade por trás da particularidade), elimina as possibilidades de identificação e traz à tona a matriz cultural do temor diluviano ou do julgamento. Ali, porém, o dilúvio é o da perda de referenciais. Seria preciso uma super-heroína para tornar a fazer sentido e exaltar o que seria subjacente ao consumo.

Figura 1 - Páginas 5 e 6 da edição número 11, de dezembro de 2000.
Figura 1 – Páginas 5 e 6 da edição número 11, de dezembro de 2000.
Figura 2 - Página 9 da edição número 11, de dezembro de 2000.
Figura 2 – Página 9 da edição número 11, de dezembro de 2000.
Figura 3 - Páginas 7 e 8 da edição número 11, de dezembro de 2000.
Figura 3 – Páginas 7 e 8 da edição número 11, de dezembro de 2000.
Figura 4 - Páginas 5 e 6 da edição número 1, de agosto de 1999.
Figura 4 – Páginas 5 e 6 da edição número 1, de agosto de 1999.

Conforme indicado inicialmente, a Figura 4, logo acima, apresenta a personagem Stacia Vanderveer, amiga de Sophie Bangs logo na primeira edição da série. Desde o início, a propósito, nota-se a representação do grande apelo ao consumo ao longo da cidade através dos outdoors e luminosos. Aqui, finalmente, encontramos as relações entre os significados do nome e da visualidade de Stacia e a conversão ao standing na forma do uso generalizado do Elastagel. Excesso de mudanças, usos de objetos em profusão, a identificação com o último modelo, individualismo, desreferencialização identitária e assim sucessivamente, tornam Stacia, da edição 1 a 11, o protótipo do consumidor pós-moderno e o Elastagel seu mais perfeito indicador de personalidade.

No primeiro dos quadros acima, em primeiro plano, lendo uma revista, está ela, exótica e superficial, cujo visual, não custa reiterar, é marcado pelo consumismo e hibridismo, além do sincretismo/inclusivismo. Nela convivem um comportado cabelo armado ao estilo dos anos 50-60, com uma flor como enfeite conferindo um toque infantil ao visual que mescla sensualidade, adolescência e agressividade. Stacia usa uma gargantilha com rebites ao estilo Heavy Metal, um maroto vestido curto quadriculado, com as pernas à mostra e uma jaqueta de couro à moda “bad boy”. Seus óculos, cujo desenho remete ao visual “gatinha”, são acompanhados de duas excêntricas lâmpadas para ler em locais escuros sua estranha revista do “Gorila Chorão”. A seu lado, a nada extravagante Sophie, acentuando, por contraste, o exotismo da amiga. A imagem pede uma breve análise como a que se segue, visando estabelecer os nexos entre ela e as questões aqui associadas à pós-modernidade e à crítica ao consumo e conversão ao standing.

A cena é composta por duas sequências, uma de ambiente externo outra no interior do táxi flutuante, futurista, mas cujo design da carroceria é o de um carro que lembra os anos 1970, inclusive com seu parachoques metálico, pouco comum no final do século XX, em que a indústria automobilística passara a produzir mais frequentemente essa peça em material plástico. A diagramação e a sequencialização transmitem a ideia de simultaneidade entre os dois ambientes. O recurso situa o leitor no contexto em que vivem as personagens ao mesmo tempo em que oferece uma dimensão do plano psicológico das mesmas, apresentando-as em alguns de seus maneirismos ao leitor. Sophie, com suas características icônicas sugerindo simplicidade, pouco afins com o ambiente externo e com Stacia, se destaca mais pela diferenciação que pelo “olhar da câmera” do artista. Este mantém a vista em contre-plongée, isto é, de baixo para cima, gerando a impressão de superioridade, enormidade, alongamento. Isso ocorre tanto na representação do trânsito e dos grandes prédios quanto na comparação entre Stacia e Sophie. A primeira aparece “dignificada”, perfeitamente identificada com a totalidade do ambiente. Note-se que as falas do primeiro quadro confirmam a ideia de que o consumo e a superficialidade seriam mais atraentes para os habitantes daquele mundo do que a busca por sentido que motiva Sophie. Numa tradução livre, ali se lê: “Promethea, o mesmo nome de poemas do século XVIII, tiras de jornal, revistas pulps e em quadrinhos. Isto é que é interessante! ‘Gorila Chorão’ não faz sentido!”, diz Sophie. “Não há sentido, esta é a genialidade do ‘Gorila Chorão’”, retruca Stacia, vista de baixo para cima. Esta é a fala da personagem, a princípio, inconsciente das “artimanhas” dos autores, que situam o Gorila Chorão numerosas vezes, nesta e noutras edições, em outdoors e publicações. Sutil e estrategicamente, colocam-no em cenas nas quais suas falas criam um clima de ironia sobre o que dizem e vivem os demais personagens naqueles momentos. Na cena em questão, por exemplo, o Gorila da revista de Stacia diz: “choke – Modern life makes me feel so alone! (“suspiro”, a vida moderna me faz sentir tão sozinho!), uma dica a respeito do excesso de individualismo das sociedades pós-modernas representadas ali por Stacia, que parece perfeitamente adaptada, mas que requer as compensações dos objetos a preencherem seu “vazio identitário”.

Ainda em relação aos códigos visuais, há plongée, vista de cima para baixo, achatando as personagens, apenas no quadro intermediário do detalhe da conversa e no terceiro quadro, à direita, em que Sophie se encontra de costas. A forma de Stacia, no entanto, permanece bem maior que a de Sophie, que nesse quadro, devido ao plongée, acentua sua pequenez. É interessante notar que a pequena e humilde Sophie tornar-se-á, algumas páginas depois, uma semideusa de quase dois metros de altura, com poderes incalculáveis. A proposta de Moore, afinal, também abarca a ideia de que a imaginação suplanta todo tipo de limitação e é a verdadeira ponte de ligação entre a potencialidade e a realidade, o mecanismo, por excelência, que possibilita o conhecimento ou o “fazer sentido”. Os objetos de consumo representados na obra da mesma forma fazem parte desse universo do sentido, quando, por intermédio das construções midiáticas e da propaganda, suprem as “necessidades”, ou melhor, representam identidades e satisfazem “vontades”. No entanto o fazem sem saciar necessidades propriamente ditas. De fato aquela sequência revela a seguinte relação salientada por Baudrillard:

Os que negam o poder de condicionamento da publicidade (dos mass media em geral) não apreenderam a lógica particular de sua eficácia. Não mais se trata de uma lógica do enunciado e da prova, mas sim de uma lógica da fábula e da adesão. Não acreditamos nela e todavia a mantemos. No fundo a demonstração do produto não persuade ninguém: serve para racionalizar a compra que de qualquer maneira precede ou ultrapassa os motivos racionais. Todavia, sem “crer” neste produto, creio na publicidade que quer me fazer crer nele (Baudrillard, 2002, p. 175-176).

Assim, Stacia, na verdade, não “acredita”, naquilo que consome, mas sim naquilo que o produto representa enquanto construção publicitária.

A visão em contre-plongée também enfatiza os “discos voadores” da cena, na verdade veículos policiais daquela Nova Iorque alternativa, que direcionam seus fachos de luz para uma minúscula figura humana no alto de uma construção. É como se o sujeito no espaço urbano fosse aniquilado pelas marcas, pela monumentalidade das edificações. A imagem ainda sugere que aquela figura humana está sob suspeita de um controle absoluto dos poderes vigentes ou submetida aos imperativos da visibilidade e do desejo: não se escapa do sistema, não se fica na penumbra impunemente.


*Carlos Hollanda é doutor em Artes Visuais pela EBA/UFRJ com tese ganhadora do Troféu HQMIX e mestre em História Comparada (IFCS/UFRJ). Coordenador e professor da pós-graduação em História da Arte da UCAM Ipanema, professor de Semiótica no IED-RIO e editor da revista “História, imagem e narrativas”.

Referências

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RUDOLPH, Kurt. Gnosis, the nature & history of gnosticism. New York: Harper-Collins 1987, p. 53-88.

ZILIOTO, Denise Macedo. O consumidor: objeto da cultura. Petrópolis: Vozes, 2003.

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