Tempo de leitura estimado: 22 minutos

Noções do mundo hippie hoje: seus desdobramentos culturais e políticos | de Martine Xiberras

* Dados da autora
** Tradução Ricardo Ferreira Freitas 1


Introdução
O movimento hippie exerce ainda hoje um fascínio geral; o que se passou exatamente e o que ficou na memória contemporânea? Por que permanece como uma aura, um souvenir desse encantamento? O que nos faz sentir essa atração e essa nostalgia, mesmo por aqueles que não conheceram essa época na qual existiu uma espécie de magia coletiva, um paraíso ao alcance da mão…

A perspectiva antropológica do imaginário (Gilbert Durand) pode permitir a compreensão ou nos aproximar um pouco mais da perspectiva global dos hippies. Trata-se de um ethos ou um credo comum que foram construídos como uma herança condensada de todas as grandes utopias ocidentais e orientais. Um imaginário equilibrado, ao mesmo tempo heroico e místico, propriamente sintético nos termos de G.Durand.

A ótica do imaginário nos permite ilustrar como um imaginário surgiu e depois foi disseminado, desdobrando-se, às vezes se invertendo, ou derivando até os dias de hoje no cotidiano, sob formas desbotadas, por vezes desdobradas, ou mesmo travestidas. O desdobramento ou a disseminação dos esquemas presentes no mundo hippie supõe que as ideias principais, ou imagens matrizes, estão ainda presentes atualmente. No entanto, falta a articulação desses elementos que estão dispersos, disseminados, difratados em diferentes campos, culturais e sociais. Iremos também sublinhar como esses esquemas informam ainda sobre o social no século XXI. O campo de observação é a Europa, a França em particular.

Um movimento cultural fulgurante
Ao analisar de perto, ao ler as histórias de vida dos atores e de suas aventuras comunitárias, o movimento reivindica raízes longínquas e diversas: o cristianismo primitivo, o fourierismo2, o orientalismo…

Outras fontes e referências mais próximas vão servir de catalisador do século XX, nos anos 60: as drogas do século XX dão um salto adiante, a revolução sexual de Reich explode realmente, o imaginário da Beat generation vem martelar seu ritmo endiabrado. A utopia psicodélica nasce como uma flor sobre o pedestal da sociedade prometeica 3 dos anos 60. O filme “A primeira noite de um homem”, The Graduate com Dustin Hoffmann, e seu fundo musical de Mrs. Robinson de Crosby, Still, Nash e Neil Young, ilustram bem o salto epistemológico que se produziu no seio da família americana4 .
Desde seu nascimento, o imaginário psicodélico é uma utopia em atos, uma filosofia que nasce no movimento de contestação política, na efervescência musical, e na liberação florida dos corpos, um flower power como ele próprio se auto-proclama. As comunidades logo terão os porta-vozes, os ídolos e os ícones, e mesmo um papa, Timothy Leary, que instituirá sua doutrina e suas palavras de ordem. A filosofia de movimento é contida na fórmula: Turn in, tune in, drop up5 .

Todas as outras experiências sensíveis do mesmo tipo, viagens chamânicas, transe de criação, transes poéticos como os de Paul Valéry em “O cemitério marinho”, ou transes de êxtase dos estados de Nirvana e Buda, parecem induzir a uma diversidade de estados de consciência. O acesso é permitido pelas práticas ancestrais de ascendência, de concentração, de meditação, como na yoga pela redução ou suspensão da respiração, ou ainda graças à escuta de músicas privilegiadas tradicionais6 , aqui reinventadas pelas sonoridades da música psicodélica.

Um Ethos
Outro marco daí em diante célebre, Make love, no war, Faça amor, não faça guerra, permite resumir os princípios éticos para o grande público que compreendem mal essa nova forma de contestação. As diferentes regras que daí resultam se instituirão pouco a pouco, a ponto de ficarem como rituais.
No war, (Não faça guerra), representa o pólo ou o aspecto da reivindicação política (parar a guerra do Vietnã) e Make love (Faça amor), o outro polo da contraproposição, contida e sintetizada na palavra amor, vasto campo que a filosofia hippie vai desdobrar à sua maneira. De fato, esse conceito holístico da sua filosofia apresenta-se como um modelo completo de utopia, já que ele está bem fundado sobre uma simples, só e banal ideia, o amor. Uma visão holística, adquirida pela impregnação de uma mesma experiência sensível, multiplicada pelo uso dos psicotrópicos e que está sem dúvida ligada aos seus contatos com as fontes tradicionais que compartilham essa percepção: os mesmos esquemas definem suas concepções religiosas (êxtase cósmico e social), político (paz entre todos os povos, e a doçura da palavra para a resolução de conflitos), econômico (divisão, desprovimento), estético (beleza do natural), e ligação social (espírito coletivo e comunitário, ou neotribalismo)7 .

O credo dos novos membros comunitários contém desordenadamente: a liberdade sexual, o erotismo, as relações interpessoais, o esoterismo e a ecologia, …8 entre outros, mas trata-se antes de tudo de um ethos rigoroso, um princípio de partida coerente (liberação pelo amor) declinado sobre diferentes planos, depois sobre todos os planos, muito logicamente.

Logo, as idéias hippies se organizam, as ligações se entrelaçam entre as diferentes fontes que inspiram esses novos modos de vida coletiva e os hippies tentam se aproximar de outras minorias. A imprensa descreve então, não mais somente um movimento, mas uma cultura, ou uma subcultura, derivada das culturas mais tradicionais, e que procura alianças com outras minorias críticas e reivindicativas, na busca de um status social menos estigmatizado. Assim se multiplicam as subculturas, subtendências dos subpoderes potenciais (Black Power, Red Power, Ethnic Power) ou metafóricos (Flower Power, Green Power)9 .

O Enterro
Em 14 de janeiro de 1967, em uma grande reunião no Golden Gate Park, os hippies proclamam que o verão de 1967 seria o lugar sob o signo da paz, do amor e do LSD. Para esse célebre Summer of love (Verão do amor), mais de 500.000 jovens chegaram a São Francisco. Após o uso das drogas, que de certa forma, degeneraram os hippies, o bairro transformou-se em um lugar violento, desertando-o assim do resto da cidade. As drogas alucinógenas foram substituídas pouco a pouco pelos barbitúricos, depois os opiáceos, e logo a decadência e as doenças invadiram a superpopulação do bairro.

No outono os membros da comunidade de Haight sentindo-se, sem dúvidas, ultrapassados pelo movimento da população que eles provocaram, reuniram-se no Buena Vista Park para celebrar o fim da era hippie com uma cerimônia fúnebre. Em outubro de 1967, os hippies organizam o enterro simbólico de seu próprio movimento, enterrando um caixão no Buena Vista Park. Mas, desde o início dos anos 70, a sensibilidade idealista e ecológica iniciada pelos hábitos hippies parece surgir e surfar pelas ondas, revivendo como um eco distante nas gerações seguintes de jovens desesperados.

Derivações e desdobramentos, a disseminação dos esquemas
O choque com a realidade ficou difícil, após a saída do berço californiano, para um movimento hippie que se refugia nas montanhas e nos campos10. O poder de contágio do sonho psicodélico nascido em São Francisco era grande porque esse contágio ganhou o resto dos Estados Unidos e, depois, a Europa Ocidental.

Mas ao deixar o berço californiano, o sonho perdeu sua força e sua coerência e, com o tempo, ele acabou por se dispersar. As circunstâncias econômicas também colaboraram – as crises da sociedade da abundância acabaram com aquilo que haviam gerado. Sem dúvidas os valores centrais ou motrizes, os “esquemas”, que o constituem, perduram e estão instalados sustentavelmente na paisagem social ocidental, porém dispersos em pequenos pedaços e esvaziados de sua transcendência, de seu sentido inicial, canalizados e racionalizados pela pós-modernidade.

A disseminação geográfica
O imaginário psicodélico e as práticas culturais e sociais que as suscitaram são amplamente ecoadas pelos Estados Unidos da América. Mas, ao encontrar em sua expansão contextos bem diferentes, adquiriu rapidamente direções bem contrastantes. Indo às fontes de percepção, sua penetração entre os jovens das sociedades ocidentais está longe de ter se tornado igual em todos os lugares e constata-se que as suas declinações são inúmeras.

É da Inglaterra que vem esta revolução musical que atua sobre o plano artístico, mas também sobre o plano social. Daí, a emersão dos Beatles, depois dos Rolling Stones sobre o cenário musical britânico, o estilo de vida e de cultura.

Nos dois maiores países do continente, a França e a República Federal Alemã (então Alemanha Ocidental) a penetração do imaginário psicodélico é ao mesmo tempo colorido politicamente e também complexo. As culturas da França como da Alemanha não são estrangeiras às utopias familiares da contestação política violenta, e que se manifestam na liberação dos costumes com algum atraso em relação a seus vizinhos ingleses, holandeses e escandinavos.

É pelo viés de uma reivindicação política e social mais clássica que o movimento de contestação se imporá pelos eventos de maio de 68 na França e as manifestações dos estudantes berlinenses na Alemanha, constituindo incontestavelmente o ponto de entrada europeu nos movimentos de reivindicação dos anos 60. É, por conseguinte, sob uma forma já muito politizada que ele continuará a se desdobrar. A busca revolucionária substitui a busca mística, as manifestações políticas tradicionais substituem os love-ins, smoke-ins e be-ins, a fraternidade militante, a sonoridade do Peace and Love (Paz e Amor).

A disseminação ideológica e política
O movimento beatnik (hippie) disseminou-se principalmente em duas galáxias opostas; de uma parte os hippies e suas celebrações amorosas, e da outra parte uma nova esquerda americana que milita contra a guerra do Vietnã e a favor do Movimento pelos Direitos Cívicos para uma integração das minorias negras. Um forte exemplo é o Free Speach movement, nascido na Universidade de Berkeley, que milita contra o ensino exageradamente rígido, mas também contra o racismo, o pragmatismo, e a guerra do Vietnã. Como os hippies, esses militantes são contra os princípios fundadores da sociedade da abundância, sobretudo quando eles conduzem a um esbanjamento de barbáries e de alienação.

A herança das espiritualidades contemporâneas
Do sincretismo hippie ao New Age, as religiões e espiritualidades antigas e novas explodem a partir dos anos 70. A ideia de transcendência, com sua abordagem pelos rituais tradicionais e sua experimentação sensível, não abandonaram o novo milênio, pelo contrário. Mas a ideia de sagrado parece se refugiar longe do domínio das toxicomanias e de seus cortejos de problemas corporais, sanitários, econômicos e jurídicos para se desenvolver em direção a um longo e lento movimento de redescoberta das espiritualidades sob todas as suas formas.

Na aurora do ano 2000, as autoridades observam o desenvolvimento das seitas e os pesquisadores, a explosão de uma “nebulosidade esotérica e mística”, assim como a retomada de antigas religiões, budismo, islamismo e catolicismo no ocidente, ou das práticas tais quais a astrologia, a adivinhação, a quiromancia…

Das portas da percepção à toxicomania
Com os anos 60, os países europeus enfrentaram uma nova forma de toxicomania, a toxicomania de massa ou do povo. Mas ao passo que os usuários das sextees estão centrados sobre os produtos da família dos phantastica, e fundados pela filosofia hippie, até os anos 70, esse consumo de massa ocidental se infiltra nos produtos da família dos hipnóticos, heroína principalmente, mas também álcool e barbitúricos. Palavra chave dessa nova nebulosidade underground: os hipnóticos são mais estupefacientes, mais viciantes, como a heroína. Tudo parece se opor a essas duas formas de uso da droga: as famílias dos produtos utilizados, os imaginários revelando as práticas e filosofias de vida opostas, inversas.

As lógicas das décadas seguintes são uma lógica de compilação dos produtos. A manutenção dos hipnóticos, retorno com força das phantastica, adaptação oportunista dos Extancia, em progressão. Os Golden Eightees, ou os brilhantes anos 80, são reflexos da economia que floresce, associando socialismo e economia de mercado, e as drogas de adaptação.

Efeitos sobre a música, as socialidades contemporâneas
O movimento techno, que começa nos anos 80 e explode nos anos 90, lembra e parece comemorar, sem cessar, as grandes aglomerações festivas e funcionais como o concerto de Woodstock ou aquele da ilha de Wight pelas grandes festas, les technivals. Essas festas gigantescas, as raves, agrupam milhares de pessoas em lugares insólitos das grandes metrópoles (depósitos abandonados, canteiros, prédios inabitáveis), depois vão imigrar para os lugares mais bucólicos onde elas serão mais livres, as free parties. As festas techno também irão se institucionalizar e penetrar em lugares mais reconhecidos como as boates e os estádios e se transformam em technivals, que duram muitos dias. Os frequentadores de raves são também consumidores da pequena pílula de ecstasy, que se toma a dois, ou em grupo, para se entregar a esse tipo de festa. Como o LSD alucinógeno dos hippies, é uma droga hedonista que multiplica as sensações, e como as anfetaminas, permite a liberação das forças físicas, para ficar toda a noite sem dormir, dançando. Como o LSD, o ecstasy poderia ser uma droga do amor, pois, ela é um multiplicador dos efeitos sexuais e eróticos. No entanto, os participantes de raves não a utilizam nesse sentido. A droga parece mais favorecer uma espécie de fusão com o coletivo, pares ou o público dessas festas. Dançar todos juntos como um só corpo coletivo, esse envolvimento é o nirvana do frequentador da rave.

O movimento reggae, e o rastafári, como os hippies, consomem cannabis e usam os cabelos longos (de preferência não penteados), as famosas tranças ou dread locks, lembrando assim suas raízes africanas, Mãe África, ou aquelas dos sadhous indianos, Mãe Índia, e poderiam ser considerados como seus herdeiros diretos. Tanto o movimento reggae como o movimento hippie desenvolvem uma abordagem holística de sua reivindicação cultural. Ao mesmo tempo movimento musical e movimento religioso, o rastafarianismo, tem um forte conteúdo mitológico, é também um movimento político de contestação e de reivindicação de uma cultura própria. Eles adotam um modo de vida fundamentada sobre a paz e a tolerância, a dignidade pessoal e a redescoberta das harmonias naturais e cósmicas esquecidas pelo mundo moderno. There is a natural mystic flowing to the air/ Há qualquer coisa de naturalmente místico no ar, canta Bob Marley que divulga o movimento e suas dimensões místicas, através do reggae jamaicano, suas cores, vermelho /ouro / verde, seus valores, o sonho bíblico de Zion, (Iron, Lion, Zion), e o Deus Jah de um povo negro vindo da Etiópia, os ancestrais longínquos dos rastas.

O movimento hip hop, lembra também a utopia hippie, porém de maneira mais remota ainda, já que a música rap e o mundo dos rappers poderiam desenvolver uma crítica radical de modernidade e uma vontade de viver aqui e agora, senão na harmonia, mas ao menos na dignidade e na honra de uma cultura reinventada. Ponto comum, contudo, o cannabis, é um meio de se desprender e de romper com a vida mediana proposta pelas sociedades ocidentais e, no caso francês, com o deserto da vida, dos conjuntos residenciais, para fundar uma cultura própria. Um mesmo velho sonho coletivo de um paraíso perdido, a Zoulou nation11 , os sound systems, os crews, os possies, designam os bandos, clãs ou famílias aumentadas, que vão, logo, se transformar no ponto focal do estilo de vida de rua no sul do Bronx12 , e também nas periferias de todas as grandes capitais ocidentais, dos jovens encapuzados e dos tênis Nike.

Efeitos sobre a socialidade, “o espírito em grupo”
Viver em comunidade é então um ato político para os hippies, é sempre um ato de revolta ou de reivindicação de uma vida alternativa, é um ajuntamento de indivíduos decididos a viver em comum uma vida diferente daquela que lhes foi proposta pela sociedade da qual eles saíram13 . Essas são as motivações de todos os jovens que vão deixar suas famílias, escolas, empregos, para fundar uma comunidade. Os grupos se reencontram, simpatizam-se, fundem-se e decidem viver juntos, criando seus novos princípios e costumes de vida.

Adotando e reivindicando um modo de vida comunitário, esses coletivos vão reencontrar antigas fontes desses modos de organização, e mesmo desenvolver alianças com a imprensa, o mundo intelectual e político, para defender e argumentar suas posições. Desses exemplos, alguns testemunhos reais e romanescos de aventuras em comunidades, de suas regras de vida inventada e de sua trágica história coletiva, estão hoje descritas em nossa literatura14 .

É então possível constatar a existência e a diversidade de ritos: festas, assembleias gerais, reuniões em torno da mesa comum,…15 , rituais recompostos pela necessidade da vida em comum, e bordados sobre os modelos de organização de coletivos já existentes.

As consequências sobre as representações da sociedade permitem abrir e assistir a retomada dos coletivos em todos os domínios: renascimento da vida associativa, da solidariedade grupal, talvez tribal; na pedagogia, as escolas paralelas, “as crianças livres do Summer Hill”, escolas Montessori, escolas occitânicas; na psiquiatria, as comunidades terapêuticas da antipsiquiatria (Deleuse, Cooper e Laing); na arte, os ateliês de criação coletiva, as experiências da arte-terapia de Jean-Pierre Klein; na economia, as cooperativas de consumidores, as compras em grupo; no casal, o desejo para uma vida mais comunitária (famílias plurais repensadas em torno das crianças).

Efeitos sobre a sexualidade: herança complexa da revolução sexual
O mesmo acontece para todos levantes sociais, éticos e estéticos esboçados pelo movimento psicodélico. A liberdade sexual aparece como uma das aquisições majoritárias desse período, e a libertação se estende a outras formas de sexualidade mais específicas. São Francisco se transforma nos anos 70 na cidade dos gays. Mas nas últimas décadas não reteve o lado profano do “amor universal” coroados pelos hippies. A idéia que a energia sexual bem canalizada, como o quer o modelo tântrico, permite se direcionar à “unidade cósmica”, ou somente uma maior circulação do desejo conduzido a uma nova sociedade esquecida. O desejo sexual não visa mais apenas à satisfação, ajusta-se mais ou menos ao sucesso das estruturas sociais que impediram a sua expressão.

Esse retrocesso e essa racionalização do imaginário permitem compreender esse “retorno do reprimido” contemporâneo, a coexistência dos arcaísmos culturais e moralismos sociais, com as expressões mais liberadas da sexualidade, e todas as suas recuperações plurais na esfera do mercado, que são particularmente manifestos na complexidade contemporânea. Paradoxalmente após essa liberação dos corpos e dos costumes, os efeitos parecem invertidos e provocam um retorno de diferentes regras morais e do declínio, ou um confinamento sobre si mesmo, dos indivíduos e dos modelos. Para os homens, poderíamos qualificar de “cúspide” do masculino, esse movimento de recuo do modelo “machista” e paternalista do patriarcado. De fato, nos últimos trinta anos voltamos periodicamente à afirmação de que “não há mais homens”. A identidade masculina apresenta, além disso, uma diferença em relação à ideia da virilidade, ou em relação a um comportamento médio dos homens, durante a época imediatamente anterior.

Para as mulheres, que possuem agora importante capital cultural e social, apresentam-se todas as razões de estarem amedrontadas por essa terrível concorrência que se instaura, sobre o mercado matrimonial e amoroso, entre elas mesmas e para seus equivalentes masculinos. Mais que o entusiasmo, é a desconfiança que se instala do lado feminino como do masculino. Essa inadequação das representações femininas e masculinas, e do casal no estado real da sociedade, gera inúmeras desconfianças particulares, um paradoxo generalizado, já que essa desconfiança resulta também no plano geral de uma inadequação devido à demografia social, assim como a repartição desigual do capital social e cultural. Contrariamente às gerações dos anos 60-80 e pós-60-80, aWoodstock Generation, que conquistaram a abertura dos direitos jurídicos, as novas gerações encaram barreiras invisíveis do tipo cultural.

Efeitos sobre a nova sensibilidade ecológica
As preocupações ecológicas dos hippies invadem hoje o universo de nossos pensamentos e programas políticos. A ecologia se transformou em um dos importantes termos irreversíveis da dialética de dominação da natureza: nossa vontade de dominar a natureza se inverteu em preocupação pela sua proteção.

Com a mesma ideia de uma “Idade de ouro” na qual os homens e os deuses comunicavam-se livremente, e na qual os alimentos estavam imediatamente disponíveis, falava-se de uma idade vegetariana. A idade de ouro vegetariana que se lê no simbólico do mel, na nostalgia desse tempo sagrado que se ocupa dos mitos relativos à deusa Deméter e nos rituais de cozinha, “Em todos os mitos da Idade de ouro perdida, o vegetarianismo comporta uma conotação de pureza e bondade”16 . Isso é particularmente evidente na Índia ou no Extremo Oriente, no bramanismo ou no budismo onde a carne é considerada como um impedimento à ascensão espiritual; mesmo no mundo ocidental, nos dogmas da igreja cristã com a quaresma, período de purificação, retorno a inocência onde a interdição de alimento “carne” corresponde também à interdição às relações sexuais; da mesma maneira em inúmeras especulações filosóficas, celebra-se o estado de natureza, uma alimentação amplamente vegetariana, como nas obras de Rousseau, por exemplo.

Efeitos econômicos
Da viagem de iniciação às viagens banalizadas, a moda contemporânea dos deslocamentos nasce a partir das viagens iniciadas pelo movimento hippie. Viagem de carona, ou viagens em grandes companhias a custos reduzidos. Os enumerados destinos são reinventados pela viagem hippie: de Katmandou e Marraquexe, aos ciganos rurais, as grandes estradas, as ecos-comunidades na vida nas árvores, ou simplesmente passar suas férias no campo. Sem fronteiras para os hippies, como o nome da companhia que fará fortuna17 … Sem diferenças de raças contra o predomínio ocidental, essa é a bandeira do hippie nas viagens em que ele gosta de viver como os nativos.

Do libertarismo ao liberalismo. O trabalho intermitente dos hippies parece ter se transformado no modelo de trabalho atual (flexibilidade, tempo parcial). As co-locações, novas maneiras de morar comunitário, lembram também um eco longínquo do modo de vida dos hippies. O pensamente em rede, o desejo de comunicar e a invenção da informática. Timothy Leary explica que essa revolução da informática não teria tido lugar se a experiência com o LSD não tivesse ajudado a descobrir seus principais atores, a interconexão de todos os elementos do cosmos, assim como uma autêntica comunicação com o outro18 . Os itinerários do Bill Gates ou de Steve Jobs, de certa maneira membros da revolução psicodélica, poderiam ter algum crédito nessa ideia19 .

* Martine Xiberras é doutora em Antropologia Social e Cultural e encontra-se atualmente ligada à Universidade Paul-Valéry-Montpellier-III. Preocupada com os flagelos sociais contemporâneos, é um dos autores atuais mais importantes neste domínio.

** Ricardo Ferreira Freitas é professor da Faculdade de Comunicação Social da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). É doutor em Sociologia pela Sorbonne, mestre em Comunicação pela UFRJ e graduado em Relações públicas pela Uerj.

NOTAS

1 Com colaboração da revisora técnica Tais Alexandre Baptista.

2Fourierismo : seguidores do pensador Fourier.

3 Prometeica : oriundo de Prometeu.

4 Assistir ao filme “Théorême , Teorema” de Pasolini “salto epistemológico” da família italiana.

5 Turn in: ligar,conectar ; Tune in: expandir sua consciência; Drop up: deixar pra lá.

6 G. Lapassade, La Transe; G. Rouget, La Musique et la transe, Paris, Gallimard, 1990.

7 O filme La grande Verte.

8 G. Lapassade, La Transe; G. Rouget, La Musique et la transe, Paris, Gallimard, 1990. p.151

9 Em Roger-Gérard Schwartzenberg, Sociologia Política.

10 Atualmente vivem em pequenos grupos e, localidades rurais como Mendocino Countt ou Santa Cruz Mountains, nos Estados Unidos.

11 A história de Afrika Bambaataa foi recontada por G. Lapassade.

12 T. Polhemus, Street Style, p. 106

13 Bernard Lacroix, L’utopie communautaire, A utopia comunitária

14 Bouxyou et Delannoy, p. 169

15 TC Boyle,

16 Sr. Toussaint-Samat, Natural and Moral History of Foods, Paris, Bordas, 1985, p.84.

17 Nouvelles Frontières (Novas fronteiras) é uma das mais importantes empresas francesas na área de turismo.

18 Cf. P. Mignon, art. cit., p. 61 sq

19 Ver, por exemplo, J. Wukovitz, Bill Gates: Software King, F. Watts, 2000.

 

Tempo de leitura estimado: 30 minutos

Da fronteira ao originário: estranheza e familiaridade no romance – Relato de um certo Oriente | de Daniela Birman

“E foi atirado para sempre àquele lugar intermediário […].”
Salman Rushdie

Introdução
Um estranho e pequeno peixe, de olhar cindido, é objeto de um breve diálogo desdobrado no conto “A casa ilhada”, de Milton Hatoum.1 Neste, o narrador nos relata a cena em que admirava tal peixe, no aquário do Bosque da Ciência, em Manaus, quando um estrangeiro se dirigiu a ele: “Então eu soube que o tralhoto, com seus olhos divididos, vê ao mesmo tempo o nosso mundo e o outro: o aquático, o submerso”2, nos conta ele. Encontrados na região amazônica, tais peixes são comparados pelo escritor manauara aos seus narradores romanescos.3 Com efeito, em seus três romances o autor criou personagens que podem ser caracterizados como fronteiriços, situados num posicionamento limítrofe: entre a família e fora desta, a cidade e seu exterior, entre dois tios, ou entrepai e filho em extremo conflito.4 E esta localização, segundo buscaremos expor ao examinarmos o olhar que norteia a narrativa de Relato de um certo Oriente,5potencializa a capacidade de enxergar o próprio universo com olhar estrangeiro. A visão do narrador-fronteiriço, nesse contexto, pode ser aproximada daquela do tralhoto. Citamos a comparação feita por Hatoum:

É como se fosse aquele peixe da Amazônia, o tralhoto […]. Ele vive na superfície, tem um olhão e metade do olho fica para fora, metade para dentro. Vê o céu e vê a água, as profundezas. É esse olhar duplo, do interior e do exterior, que é importante para esse tipo de narrador.6

Neste artigo, enfocaremos a posição limiar ocupada pela narradora do Relato em diversos espaços e grupos sociais: na família que a criou, a qual integra na condição de filha adotiva; em sua cidade, da qual partiu há mais de quinze anos; e em seu país natal. Buscaremos expor de que modo o posicionamento desta narradora, personagem responsável pela reunião e ordenação de todas as vozes do romance, a levará a se defrontar com a ausência de uma utópica origem7 e a se deparar com a camada do originário.8 Nesta, ela desnaturalizará o lugar que ocupa em sua família, verá sua cidade como marcada pela heterogeneidade e aprenderá ser perpassada por construções múltiplas e pela contingência. Procuraremos mostrar ainda como essa posição característica, que implica um esforço produtivo no sentido de demarcar seu espaço na sociedade, na casa ou na cidade em que se mora, é capaz de levar à indagação sobre os limites e as possibilidades de se contar uma história. Afinal, quem sabe que seu lugar no mundo é construído, e não dado, pode sentir como sua voz também o é; perceber que sua distância em relação ao objeto narrado é variável e, consequentemente, sua visão e as formas como ele o afeta.

Posição limítrofe
A narradora anônima do romance de estreia de Milton Hatoum é uma figura ao mesmo tempo familiar e estrangeira em sua cidade natal, Manaus, a qual visita após quase vinte anos de ausência e de onde escreve seu relato a partir deste olhar capaz de estranhamento e intimidade. O livro que lemos constitui, pois, uma longa carta redigida ao seu irmão, na qual ela conta sua passagem pelo espaço da infância deles e transmite a triste notícia da morte de Emilie, matriarca da família libanesa na qual os dois cresceram. Mas não é somente em Manaus que ela ocupa esta posição fronteiriça. Na casa de sua infância, seu lugar também é limiar. Ela faz e não faz parte da família de Emilie, ou pelo menos possui um estatuto diferente de seus outros membros, pois, ao lado de seu irmão, foi adotada pela matriarca. O lugar da principal instância organizadora do Relato é ocupado, portanto, por uma figura que receberá contornos mais precisos e fortes no segundo romance de Hatoum, Dois Irmãos: a do agregado da família, personagem emblemático da nossa sociedade e presente em obras seminais da literatura nacional.9

Além de estar associado ao afastamento da cidade natal e à condição de filha adotiva, o olhar fronteiriço de nossa narradora também pode ser relacionado ao estatuto limiar da nacionalidade desta: nem inteiramente brasileira nem estrangeira. Com efeito, ao apontar o caráter limítrofe da narradora do Relato e do personagem André, de Lavoura arcaica, Sarah Wells ressalta o fato de ambos pertencerem à segunda geração de imigrantes, nascida no país de destino de suas respectivas famílias. Ou, como ela escreve, os dois são “parcialmente definidos por seu estado intermediário: nem nascidos aqui nem inteiramente lá”.10

Segundo a autora, para tais personagens, a história de migração de seus familiares, e as rupturas que estas implicam, ao mesmo tempo em que não podem ser esquecidas, não são priorizadas em suas experiências. Desta forma, “a nova pátria não é de todo nova para membros da segunda geração. Tampouco podem eles recriá-la como bem entenderem. O solo pode não ser construído com gerações de antepassados, mas também lhes é vedado buscar em outro espaço sua realização”.11 Nesse sentido, o fato de ter nascido no lugar em que se cresceu, e no qual é possível permanecer, não garante uma relação estável com a noção de identidade, pois a construção desta não pode excluir o vínculo com o país de origem e a cultura de seus pais nem aceitar integralmente este país e cultura como suas únicas “pátrias”. Pelo contrário. O pertencimento à segunda geração de imigrantes é entendido aqui como fator agravante do caráter fronteiriço de nossa narradora.

Mas vejamos como a própria personagem enuncia e problematiza sua condição. Embora seja agregada da família, ela acredita ser tratada exatamente como os outros membros, enunciado que, ao negar sua diferença, já o torna suspeito. Ao falar de seu “avô”, o marido de Emilie, por exemplo, a narradora comenta:

Foi ele quem me ajudou a sair da cidade para ir estudar fora, e além disso nunca se contrariou com a nossa presença na casa, desde o dia em que Emilie nos aconchegou ao colo, até o momento da separação. Desfrutamos os mesmos prazeres e as mesmas regalias dos filhos, e com ele padecemos as tempestades de cólera e mau humor de um pai desesperado e de uma mãe aflita. Nada e ninguém nos excluía da família, mas no momento conveniente ele fez questão de esclarecer quem éramos e de onde vínhamos.12

Ao citarmos este trecho do livro, chamamos a atenção para o fato de ela declarar seu estatuto igualitário em relação aos outros integrantes da família, declaração que só se faz necessária num contexto em que a igualdade de tratamento coexiste com certa distinção. Nesse caso, a igualdade não pode ser naturalizada e calada, mas deve ser enunciada como resultado de uma conquista ou da generosidade e bondade alheia (evidentes na frase “nunca se contrariou com a nossa presença na casa”). Nesse contexto, podemos supor que, ao se deparar com o fato de que sua condição no interior da família não é dada, a personagem se defronta com o caráter contingente de sua entrada na casa em que cresceu – dependente de diferentes fatores, como a receptividade positiva da família adotiva, a impossibilidade de sua mãe de criá-la ou a vontade desta em entregar-lhe para adoção –, de seu próprio lugar na casa e, quem sabe, na sociedade.

Por meio da diferença em relação ao outros membros da família, que desnaturalizasua condição no interior desta, faz-se presente no romance uma importante temática vivida por nossa narradora: a questão da ausência, em seu modo positivo, de uma procedência que ela poderia utopicamente tomar (e desejar) como umaorigem. Ao citarmos o termo origem aqui, o entendemos como um utópico solo fundador, lugar primeiro, inicial, que deteria a verdade e a essência dos que dali se originaram. Apoiamo-nos, assim, no sentido do termo exposto por Foucault em “Nietzsche, a genealogia e a história”.13

Nesse contexto, o caráter contingente do lugar de nossa narradora no mundo pode lhe apontar como seu modo de viver, pensar e sentir não são inatos nem necessários e que, para além de seu universo, há sempre um fora. Ao enunciarmos aqui este termo, de inspiração claramente blanchotiana, restringimos seu sentido àquilo que é exterior a um determinado ambiente, que, como qualquer espaço-tempo, limita de um determinado modo as vivências, as reflexões e os discursos possíveis de serem produzidos em seu interior.

Supomos ainda que nossa narradora, ao se deparar com a ausência de origem, defronta-se com a camada do originário, aquela que, de acordo com a descrição de Foucault, indica que não possuímos um solo fundador nem somos contemporâneos do que nos faz ser, visto sermos determinados por construções mais antigas do que nós, com temporalidades próprias – as quais podemos, ilusoriamente, supor como fixas e naturais, acreditando no mito da origem. Essa camada do originário é assim apresentada em As palavras e as coisas:

[…] o originário no homem é aquilo que, desde o início, o articula com outra coisa que não ele próprio; é aquilo que introduz na sua experiência conteúdos e formas mais antigas do que ele e que ele não domina; é aquilo que, ligando-o a cronologias múltiplas, entrecruzadas, freqüentemente irredutíveis umas às outras, o dispersa através do tempo e o expõe em meio à duração das coisas. […] O que se anuncia no imediato do originário é, pois, que o homem está separado da origem que o tornaria contemporâneo de sua própria existência.14

Neste caso, nossa narradora perceberia que, embora constituída e atravessada pelas histórias, pelos hábitos e pelos afetos de sua família adotiva, esta não constitui um fundamento de seu modo de ser, visto que sua entrada nela é marcada antes pelo acaso do que pela necessidade. Dessa maneira, ela não pode nem se desvincular inteiramente da influência da esfera familiar nem acreditar como natural e obrigatória sua inserção numa história linear e contínua deste grupo de pertencimento. E se ela consegue se ver como fruto de construções diversas, também poderá assim enxergar seus próximos. Além disso, ao se defrontar com o desmoronamento da ideia de origem, nossa personagem terá acesso ao pensamento e ao desejo de liberdade, que inclui a possibilidade de se abrir para outros modos de ser e viver, de escolher outras máscaras.

A temática da ausência de origem e da entrada na camada do originário também transparece no fato de que ela não possui uma cidade natal onde se sinta inteiramente em casa – e para a qual, portanto, possa voltar como quem retorna aomesmo, o que lhe restituiria ou lhe confirmaria sua identidade, essência e verdade. Certamente, nem ela nem ninguém tem acesso a tal cidade, mas esse fato pode se tornar mais evidente para aqueles que se afastaram de onde nasceram e, ao retornar, percebem como o lugar de regresso se distanciou dele mesmo (e como o que foi ontem já não é mais).

Com efeito, nossa narradora reconhece, logo no primeiro capítulo do livro, antes de começar a lembrar e contar sobre seu tempo de menina, que a cidade visitada não existe como objeto real, mas é produto da imaginação (e, podemos supor, do afeto e do desejo). Trata-se, nesse caso, da Manaus evocada pela rememoração de sua infância, cuja fundação não coincide, portanto, com o tempo usual da história, mas refere-se àquele da memória:

Antes de sair para reencontrar Emilie, imaginei como estarias em Barcelona, entre a Sagrada Família e o Mediterrâneo […], quem sabe se também pensando em mim, na minha passagem pelo espaço da nossa infância: cidade imaginária, fundada numa manhã de 1954…15

Ao iniciar o livro com este ato de recordação, nossa narradora indica que a Manaus que busca não é (ou não apenas) aquela a qual encontra como presença, mas, sobretudo, a de seu passado. Qualquer viagem de retorno se torna, nesse contexto, impossível, visto que a infância não se fará de novo presente e a cidade não voltará a ser o que era. Contudo, através dos seus passeios pelas ruas, do encontro com diferentes personagens, cores e cheiros da Manaus atual, a paisagem e os fatos da infância podem ser evocados e construídos. Nesse contexto, o que nossa narradora poderá fazer, tal como ela anuncia, é declarar a dimensão imaginária da passagem por esse espaço que, para ser visitado, deverá ser rememorado.

Hatoum tem plena consciência da existência desta barreira intransponível entre o presente e o passado, não acreditando, pois, em nenhum projeto de restituição deste. O autor conta em entrevista que, ao voltar para Manaus, em 1984, após quase vinte anos fora da cidade16, ele “sentia falta de algumas paisagens e vozes da infância, estas coisas que constituem a nossa pátria simbólica”.17 No entanto, apesar da saudade (e das possíveis idealizações e devaneios a que esta pode levar), ele não parecia ter ilusões quanto a qualquer plano de retorno à terra de sua meninice: “Sabia que iria encontrar uma cidade devastada, e que toda busca de um paraíso é infrutífera, pois só há paraísos perdidos”.18 Em outra entrevista, porém, a história contada não é exatamente a mesma. Hatoum afirma, pois, ter retornado a Manaus “em busca de minhas primeiras paisagens, que não encontrei mais”.19Porém, independentemente das expectativas alimentadas na época, anterior à conclusão e publicação do Relato, o escritor hoje sabe que não há retorno à cidade encantada da infância. Mais do que isso. De volta a Manaus, não escapa de certo sentimento de dépaysement. É assim, por exemplo, que se refere à enxaqueca que o abate desde a infância “como uma metáfora de um mal-estar mais profundo: sentir-se exilado e estranho na própria terra natal”, segundo escreveu Carlos Graieb em reportagem sobre o autor.20

O estranhamento em relação à própria cidade também se faz presente no sexto capítulo do Relato, no qual a narradora nos conta a visita realizada a um bairro cujo acesso lhe fora proibido quando criança, vivenciando a ameaça, o medo – e, acreditamos, o abalo de se deparar com a diferença num mundo que julgava ser o “seu” e no qual ilusoriamente se supõe somente o encontro com a identidade. Como Maria Zilda Ferreira Cury comenta, referindo-se a esta passagem do romance, “o espaço de origem torna-se estranhamente desconhecido. A narradora transforma-se em estrangeira, suscitando um olhar de estranheza dos outros nativos, pondo […] em ‘suspeição’ a inteireza identitária”.21 Reproduzimos, pois, o trecho em questão:

Atravessei a ponte metálica sobre o igarapé, e penetrei nas ruelas de um bairro desconhecido. Um cheiro acre e muito forte surgiu com as cores espalhafatosas das fachadas de madeira, com a voz cantada dos curumins, com os rostos recortados no vão das janelas, como se estivessem no limite do interior com o exterior, e que esse limite (a moldura empenada e sem cor), nada significasse aos rostos que fitavam o vago, alheios ao curso das horas e ao transeunte que procurava observar tudo, com cautela e rigor. Havia momentos, no entanto, em que me olhavam com insistência: sentia um pouco de temor e de estranheza, e embora um abismo me separasse daquele mundo, a estranheza era mútua, assim como a ameaça e o medo. E eu não queria ser uma estranha, tendo nascido e vivido aqui.22

Embora o enunciado não nasça de uma visita a um lugar familiar, o desconforto de nossa narradora em sua cidade natal aparece de modo bastante evidente no seu desejo em não ser uma estranha ali. Pois, podemos supor, caso ela se sentisse em Manaus como em casa, de acordo com o sentido dado pelo senso comum a essa palavra, o estranhamento da visita a um lugar desconhecido poderia ser experimentado por meio da transformação apenas do outro no estrangeiro, naquele que difere dela – e na exclusão daquele espaço do território da “sua cidade” (que poderia, desse modo, ser declarada “partida”). Esta seria, pois, a atitude decorrente de um olhar em busca do exótico que, independentemente da atração ou do medo despertados pelo Outro, o mantém à distância (mesmo quando se aproxima dele e acredita entabular um diálogo). O equívoco, nesse caso, parece residir na ideia e no sentimento de que em casa só nos deparamos com o conhecido ou homogêneo. E que, caso o diferente surja, este só pode ser estrangeiro e, consequentemente, pertencer a outro espaço, denominado por expressões como as de “cidade proibida”23 ou “outro lado da cidade partida”.

O olhar de nossa narradora não realiza, contudo, esta operação de classificação e exclusão. Com efeito, em vez de enfatizar a estranheza daquele que é diferente dela, e em relação ao qual ela sente ameaça e medo, ela ressalta sua vontade em não ser uma estrangeira ali, potencializada pelo fato de estar na sua cidade natal – ou seja, a imagem do lugar aonde nasceu e cresceu abrange espaços que não a incluem, onde ela não é reconhecida pelos outros, não os reconhece e nem experimenta nenhuma espécie de acolhimento.

No lugar da origem como fundamento temos, portanto, a camada do originário, indicando-nos que a cidade natal (em seus territórios familiares e estrangeiros) é atravessada e marcada por ordens e construções múltiplas, as quais não dominamos nem muitas vezes temos acesso. Apenas com a substituição da origem pelo originário, substituição que desvincula nosso lugar de procedência das noções de identidade e essência, nossa ideia da cidade de onde viemos poderá incluir espaços e indivíduos que não reconhecemos e com os quais não nos identificamos. Será, portanto, a partir da defrontação com esta camada que nossa narradora poderá perceber Manaus como atravessada pela heterogeneidade e pela diferença – noções incompatíveis com aquelas comumente aceitas de solo, raiz, lar ou origem e capazes, quando lidas pela ótica dessas últimas ideias, de gerar ameaça e medo.

A casa materna
Mas não é apenas a cidade natal, a infância ou a família que podemos confundir ingênua ou apressadamente com a noção de origem. A ausência desta, e a experiência do caráter inalcançável de sua busca, também serão indicadas no romance por meio da distância entre nossa narradora e sua mãe biológica, a quem ela viu apenas uma vez quando criança. Surge aqui, porém, uma importante diferença. Como pretendemos mostrar, nossa narradora nunca confundiu a figura materna com uma ideia positiva de origem e de fundamento. Ela parece antes ter buscado, obstinadamente, enxergar a ausência da figura da mãe, ver a origem como ausência, em sua dimensão negativa, experiência radical que consideramos importante indicar.

Com efeito, embora se dirija à casa materna quando chega a Manaus, nossa narradora não planejava encontrar a mãe por lá. Como ela mesma nos conta: “Já passava das onze horas quando cheguei na casa que desconhecia. Ninguém foi avisado de que eu chegaria aquela noite, mas eu sabia que, na ausência da mãe, a empregada ficaria sozinha na casa construída próxima ao sobrado onde Emilie morava.”24 E no final do romance, a personagem nos revela ter conhecimento da localização materna naquele momento: “Ela (sua amiga Miriam) soube que minha mãe ia viajar pela Europa e passaria por Barcelona para te visitar. Minha história com ela é a história de um desencontro.”25

Neste caso, contudo, o “desencontro” parece ter sido planejado. Por que, ao retornar a Manaus, ela volta à casa materna, e não à de Emilie, sabendo que sua mãe, porém, não estará lá, mas sim com o irmão em Barcelona? Que ausência perturbadora é essa que ela parte à procura? Citando suas próprias palavras, podemos dizer que ela buscava o encontro com o impossível, que nunca se materializará: “Emilie nunca me escondeu nada, como se me dissesse: tua mãe é uma presença impossível, é o desconhecido incrustado no outro lado do espelho.”26

E ela enfatiza o vazio existente na casa materna assim que entra nos aposentos localizados em seu andar térreo, no dia seguinte àquele de sua chegada. Dessa forma, ao nos expor os objetos “orientais” reunidos no ambiente, e o reflexo destes num espelho que produzia “uma perspectiva caótica de volumes espanados e lustrados todos os dias”27, ela acrescenta: “como se aquele ambiente desconhecesse a permanência ou até mesmo a passagem de alguém.”28

Como sabe de antemão que a casa estará repleta da ausência da mãe, podemos concluir que esse impossível que ela procura não consiste em algo positivo: algo que existe, ou existiu, mas ela não poderá encontrar (sua mãe, por exemplo, ou outro lugar de “procedência”, como sua cidade natal), referindo-se antes à experiência de não se alcançar, de se buscar uma ausência que nunca surgirá na sua concretude, tal como a morte. A sua busca, assim, é atravessada por uma impossibilidade fundamental e sua viagem de retorno é interminável.

Nesse contexto, o seu afastamento possui um caráter radical, já que não existe um lugar que faça com que nossa narradora sinta-se plenamente em casa; que dê a sua vida um local próprio na ordem do universo, com um sentido correspondente e, portanto, uma identidade sólida, uma subjetividade estável. E esse sujeito “desenraizado” (termo que discutiremos logo abaixo), que estranha o mundo aonde mora e aquele de onde veio, poderá notar com facilidade como as narrativas, as crenças, os hábitos e as identidades são construções. Mas ao mesmo tempo em que percebe isso, sentirá que sua voz, e aquela que reproduz dos outros, também o são.

Exílios
Gostaríamos de enfatizar algumas conclusões, refazendo em parte o caminho percorrido e introduzindo novas noções. A primeira apoia-se na ideia de que o “desenraizamento” não significa aqui somente uma distância em relação à terra natal, que desaparece com a simples volta ao país “de origem”. O imigrante, migrante ou, em última instância, qualquer indivíduo, pode também experimentar uma perda radical da pátria e do sentimento de pertencimento a um país, uma cultura, uma língua. Por esta razão, consideramos delicado utilizar, sem o devido cuidado, termos como “desenraizamento” ou “exílio” neste sentido e contexto específicos, pois estes supõem a existência de raiz, pátria, solo. E, se o que se quer ressaltar não é a distância da cidade ou do país natais, mas justamente a impossibilidade de se sentir em casa, em qualquer lugar do mundo, o emprego de noções como estas deveria ser acompanhado da ressalva de que esta “casa” ideal inatingível pode ser vivida, de modo intenso, como perdida, porém não apenas não existe no presente como nunca existiu.

Esta concepção de perda radical da terra natal é aquela priorizada por Hatoum não apenas na construção da personagem-narradora do Relato, mas também na interpretação de sua própria enxaqueca como metáfora da experiência de exílio e estranhamento em terra natal29 e na sua descrição daquele que se muda para outro país. Para o autor, com efeito, “o imigrante é aquele sujeito que diz: ‘Percebi que não tenho nenhum lugar para ir e não tenho também nenhuma razão para ir para algum lugar.’”30

É também de acordo com essas considerações que compreendemos o vínculo traçado por Lukács entre romance e exílio, quando este se refere à forma da nossa grande épica como “expressão do desabrigo transcendental”.31 Entendemos, assim, o vínculo criado pelo teórico húngaro para caracterizar o romance como uma enunciação da perda da ideia de origem e de fundamento – e, consequentemente, das tradições estáveis, dos sentidos e valores dados. No entanto, consideramos que, embora outrora se impusesse como absolutos, a “pátria transcendental” ou, citando outras expressões do léxico de Lukács, o mundo como “totalidade-homogênea”, o “sentido imanente à vida”, sempre resultaram de construções, de modo que sua perda é antes signo do desmoronamento destas do que do fim de uma presença dada. Isto não impede, claro, que esta “perda” seja vivida com a nostalgia de quem foi expulso do paraíso ou com os festejos daquele que saúda, enfim, a liberdade.

Ao diferenciarmos os “exílios” aos quais nos referimos também impedimos uma perigosa generalização da questão. Evitamos, desse modo, banalizar um problema político de importante dimensão no mundo contemporâneo: aquele das massas de refugiados, expatriados e imigrados formadas nos séculos XX e XXI. Evidentemente, as duas formas de desterramento se entrecruzam e se influenciam de diversos modos. Como afirmamos, aquele que deixa sua terra natal, segundo sugere a criação da personagem de nossa narradora, pode se deparar com a ausência de origem e com o estranhamento dos seus supostamente “iguais”. Da mesma maneira, num mundo de fronteiras móveis, ou, segundo o exame de Lukács, num universo que teria perdido a totalidade e a homogeneidade, nos defrontamos com a existência do fora. Dessa forma, a diferenciação aqui defendida não se acredita pura, reconhecendo sua precariedade. No entanto, ao apontarmos o estranhamento radical de nossa narradora e enfatizarmos sua possibilidade de ser vivido por qualquer um de nós, corremos o risco, identificando-o a uma ideia genérica de exílio, de transformar a dor dos indivíduos integrantes das massas acima referidas naquela de qualquer um, o que significa, em termos de força política, na de ninguém. Concordamos, nesse contexto, com Said quando este afirma que

para tratar o exílio como uma punição política contemporânea é preciso mapear territórios de experiência que se situam para além daqueles cartografados pela própria literatura de exílio. Deve-se deixar de lado Joyce e Nabokov e pensar nas incontáveis massas para as quais foram criadas as agencias da ONU. […] Negociações, guerras de libertação nacional, gente arrancada de suas casas e levada às cutucadas […] para enclaves em outras regiões: o que essas experiências significam? Não são elas, quase que por essência, irrecuperáveis?32

Após essas ressalvas, podemos retornar às nossas conclusões e ao exílio radical de nossa personagem. Gostaríamos de ressaltar o movimento da passagem, que acreditamos ter sido realizado por nossa narradora, do posicionamento limiar à defrontação com a ausência de origem e com a camada do originário. Como vimos, ao ocupar uma posição fronteiriça na família em que foi criada e na cidade em que nasceu e cresceu, ela estranhou a si mesma, ampliou as fronteiras da Manaus visitada e “visitável” e desnaturalizou sua condição na casa da infância. A posição fronteiriça, nesse caso, impulsionou o enfrentamento desta camada, a partir do qual podemos questionar as ordens em que vivemos e que nos constituem. E nossa personagem, com efeito, viveu a experiência de que, embora formada por esses antigos hábitos e vivências em comum, nenhum deles contém uma verdade ou essência sobre si mesma, de modo que ela pôde se estranhar, transgredir limites e ver-se como fruto de contingências e acasos aos quais não domina e muitas vezes não tem nem sequer acesso.

No entanto, se ela não possui uma identidade primeira, qual voz deve adotar para nos contar a história? Esse posicionamento fronteiriço, ao exacerbar o descentramento de nossa narradora e levá-la a se deparar com a constelação de contingências, historicidades e acasos que a atravessam, a impelirá também a questionar e a refletir sobre os limites de se contar uma história.33 Neste caso, ela se defrontará com o fato de que nem sua fala nem aquelas que nos restitui são naturais, que toda citação é uma forma de apropriação e os sentidos constituem construções.

E será através do embate entre, de um lado, o desejo de relatar sua história e, de outro, a impossibilidade de encontrar uma voz natural e de reproduzir de forma “adequada” aquela dos outros, que ela optará por uma escrita auto-reflexiva, marcada pela renúncia às noções de verdade e de totalidade e pela assunção de seu caráter inventivo e rememorativo. Assim, ao concluir, ao menos aparentemente, sua carta ao irmão, a narradora nos conta que voz é essa que ela buscou criar para resgatar sua infância, perdida no passado, e transmitir, à distância, uma terrível notícia: a morte de Emilie. Ela procurou, pois, reinventar um tom familiar e esquecido, incorporando nele, de modo ativo, as lacunas deixadas para trás: “Era como se eu tentasse sussurrar no teu ouvido a melodia de uma canção seqüestrada, e que, pouco a pouco, notas esparsas e frases sincopadas moldavam e modulavam a melodia perdida.”34

 

* Daniela Birman é jornalista e doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Fez pós-doutorado em Estudos Culturais no Programa Avançado em Cultura Contemporânea (PACC/UFRJ).

NOTAS

1 HATOUM, Milton. A casa ilhada. Estudos Avançados, São Paulo, vol. 19, n. 53, p. 325-329, 2005. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ea/v19n53/24097.pdf . Acesso em: 7 out. 2007.

2 Ibidem, p. 325.

3 Cf. BIRMAN, Daniela. Das cinzas à memória. O Globo, Rio de Janeiro, 20 ago. 2006. Suplemento Prosa & Verso, p. 6.

4 Referimo-nos aqui aos seguintes narradores: a mulher ao mesmo tempo estrangeira e enraizada na cidade de Manaus, de Relato de um certo Oriente; Nael, o curumim bastardo que mora numa casa de brancos de ascendência libanesa de Dois irmãos; e Lavo, o órfão criado por dois tios em pé de guerra de Cinzas do Norte. Cf. HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. Idem. Dois irmãos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. Idem. Cinzas do Norte. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

5 A partir de então, poderá ser chamado apenas de Relato.

6 BIRMAN, Daniela. Das cinzas à memória. O Globo, Rio de Janeiro, 20 ago. 2006. Suplemento Prosa & Verso, p. 6.

7 Sobre o conceito de origem, ver FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogia e a história. In: ____. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979. P. 15-37.

8 Sobre o sentido do termo originário aqui empregado, ver FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1987. P. 345-351.

9 Ver o estudo clássico de Roberto Schwarz sobre o tema em Machado de Assis. SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. 5. ed. São Paulo: Duas Cidades/ Ed. 34, 2000.

10 WELLS, Sarah. O improvável sucessor de Nassar: a genealogia alternativa de Milton Hatoum. In: CRISTO, Maria da Luz Pinheiro de (org.). Arquitetura da memória. Manaus: Editora da Universidade Federal do Amazonas/UNINORTE, 2007. P. 63, grifo da autora. Podemos considerar nossa narradora integrante da segunda geração de imigrantes de duas diferentes maneiras: como filha adotiva de Emilie ou como filha “natural” da mulher desconhecida de ascendência árabe, habitante da casa de decoração suntuosa e gosto duvidoso descrita no primeiro capítulo do livro. Neste segundo caso, porém, não possuímos nenhuma prova da procedência de tal mulher. Trata-se, pois, somente de uma hipótese interpretativa.

11 Ibidem, p. 64.

12 HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. Op. cit, p. 20.

13 FOUCAULT, Michel. “Nietzsche, a genealogia e a história”. In: ____. Microfísica do poder. Op. cit., p. 15-37.

14 FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Op. cit., p. 347-348.

15 HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. Op. cit., p. 12.

16 Nascido em Manaus, em 1952, Hatoum viveu nesta cidade até os 15 anos, quando se mudou para Brasília (onde morou nos anos de 68 e 69). Ele passou a década de 70 em São Paulo e depois ganhou o mundo, tendo vivido em Barcelona, Madri e Paris. Após 18 anos fora, retornou a Manaus, onde foi professor de literatura francesa da Universidade Federal do Amazonas. Em 1999, deixou a cidade de novo. Desde então, mora em São Paulo.

17 GRAIEB, Carlos. “Amazônia está à margem da História”, diz escritor. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 8 mar. 1995. Caderno 2, p. D1.

18 Ibidem.

19 CASTELLO, José. Milton Hatoum reclama a volta da indignação. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 14 nov. 1998. Caderno 2, p. D4.

20 GRAIEB, Carlos. Milton Hatoum cria pátria entre dois mundos. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 8 mar. 1995. Caderno 2, p. D1.

21 CURY, Maria Zilda Ferreira. De orientes e relatos. In: SANTOS, Luis Alberto Brandão; PEREIRA, Maria Antonieta (orgs.). Trocas culturais na América Latina. Belo Horizonte: Pós-Lit/FALE/UFMG; Nelam/FALE/UFMG, 2000. P. 172.

22 HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. Op. cit, p. 123.

23 Ibidem, p. 123.

24 Ibidem, p. 164.

25 Ibidem, p. 162.

26 Ibidem, p. 162.

27 Ibidem, p. 10.

28 Ibidem, p. 10.

29 Cf. GRAIEB, Carlos. Milton Hatoum cria pátria entre dois mundos. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 8 mar. 1995. Caderno 2, p. D1.

30 CASTELLO, José. Milton Hatoum reclama a volta da indignação. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 14 nov. 1998. Caderno 2, p. D4.

31 LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. São Paulo: Duas Cidades/Ed. 34, 2000. P. 38.

32 SAID, Edward W. Reflexões sobre o exílio. In: ____. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. P. 48-49.

33 Identificamos nesta passagem do fronteiriço à reflexão sobre nossos limites, realizada pela narradora do romance, a postura integrante da concepção de crítica defendida por Foucault e presente em suas ontologias do presente. Com efeito, em “Qu’est-ce que les Lumières?”, o filósofo defende um ethos filosófico no qual o sujeito romperia com a escolha entre exterior e interior, localizando-se no limiar, de onde examinaria os limites que constituem nosso modo de agir, pensar e dizer – e que, transgredidos, permitirão nossa transformação e o exercício de nossa liberdade. “Parece-me que a questão crítica, hoje, deve ser invertida em questão positiva: naquilo que nos é dado como universal, necessário, obrigatório, qual é a parte do que é singular, contingente e causado por coações arbitrárias”, escreve Foucault. Cf. FOUCAULT, Michel. Qu’est-ce que les Lumières?. In: ____. Dits et écrits IV. Paris: Gallimard, 1994. P. 574.

34 HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. Op. cit., p. 166.

 

Tempo de leitura estimado: 38 minutos

Cinéfilos e fazedores de cinema a contrapelo | de Alice Fátima Martins

Na sétima de suas Teses sobre História, Walter Benjamin (1994) destaca que, em geral, historiadores constroem suas narrativas com base na relação de empatia com os vencedores e poderosos. No entanto, os bens culturais devem sua existência não somente ao esforço de gênios ou poderosos, mas também (talvez, sobretudo…) “à corvéia anônima dos seus contemporâneos” (p. 225). Assim, reivindica como fundamental a tarefa de “escovar a história a contrapelo”, desde o ponto de vista dos oprimidos, ou dos vencidos, lançando-se em insurgência não só contra a tirania, mas também contra a própria corrente histórica.

Sem perder de vista o necessário esforço para evitar as armadilhas reducionistas das análises dicotômicas, a expressão “a contrapelo”, que assume o lugar de advérbio de modo no título deste artigo, buscada em Benjamin, refere-se ao trabalho de cidadãos comuns que, movidos a paixão pelo cinema, dedicam seus esforços para assegurar, não só para si, como também para suas comunidades, o acesso a histórias contadas pela indústria cinematográfica, e também a aventura de contar suas próprias histórias, ainda que em condições precárias, e à revelia dos sempre onerosos orçamentos das produções cinematográficas disponíveis no mercado do entretenimento.

Nesses termos, o trabalho desenvolvido por fazedores de filme tais como Afonso Brazza (DF) e seu Manoel Loreno (ES), e pelo senhor José Zagati (SP), responsável pelo Mini Cine Tupy, fornece pistas para que sejam tecidas algumas reflexões sobre as noções de identidade(s) e pertencimento na cultura contemporânea, no panorama do complexo mercado das narrativas audiovisuais, dentre as quais estão as cinematográficas, e suas dinâmicas de produção / distribuição / circulação / consumo / descarte das mercadorias culturais no mundo globalizado.

Como linguagem, o cinema instaurou sintaxe própria para a arte de contar histórias, ficcionais ou não, atendendo a diferentes propósitos e objetivos. No decurso do século XX, o cinema instituiu-se indústria de narrativas e um dos principais filões de entretenimento, com abrangência planetária, partindo de alguns núcleos localizados no Ocidente, estendendo-se para o Oriente, num trânsito intenso de fluxos de narrativas e contranarrativas cujas histórias afirmam e questionam posições e pontos de vista, defendem e denunciam, reafirmam e negam relações de poder, chocam e entediam, omitem e explicitam, dissimulam, surpreendem, assustam, divertem, sempre forjando e alimentando imaginários, integrando, no continuum, as dinâmicas de (re)configuração das relações identitárias.

Desde os seus primórdios, o cinema é portador de uma natureza inerentemente globalizada, multicultural e transnacional. Stam e Shohat chamam a atenção para o fato de que “os mesmos filmes projetados em 1895 no Grand Café de Paris eram projetados apenas alguns meses depois em locais como Beijing (então Pequim), Cairo, Bombaim e Cidade do México” (2004, p. 400). Não por acaso, ele foi instaurado no auge da efervescência da sociedade industrial, integrando o que se costumou chamar de indústria cultural, expressão cunhada, inicialmente, no contexto das discussões propostas pelos pensadores da Escola de Frankfurt. Dando sequência, então, a essas ideias, na década de 60, Edgar Morin (1999), no texto A indústria cultural, tratou dessa questão, no contexto da sociedade-indústria, a partir dos processos culturais que se desenvolvem sob o impulso primeiro do capitalismo privado. Essa indústria, ultraligeira, produz uma mercadoria intangível, destinada ao consumo psíquico, do comportamento, e obedece à reprodução de certos padrões, para assegurar sua aceitação pelo público. No entanto, ao mesmo tempo, seus produtos precisam apresentar novidades capazes de manter a motivação de consumidores susceptíveis de se entediarem com o já conhecido. Devem ser capazes, também, de conquistar novos públicos-consumidores, no desafio contínuo de ampliação de domínio de mercados. Fica estabelecida, assim, uma contradição dinâmica entre inovação e padronização.

Para Morin (1999), o cinema é uma usina de produzir histórias (ou um complexo de usinas), organizada em torno de uma rígida divisão de trabalho que tem como base a estrutura industrial. A fabricação de suas mercadorias observa uma racionalização que preside o processo desde o planejamento, o estudo do mercado cultural, até o consumo propriamente dito pelos públicos-alvo. E pressupõe, também, sua rápida substituição por outros itens, com inovações que os tornem, supostamente, mais interessantes que seus precedentes.

Ora, a divisão do trabalho e a padronização podem sufocar os processos de criação. Para superar esse risco, a indústria cultural – nela, a indústria cinematográfica – estabelece relações com produções culturais situadas fora dos circuitos dominantes, nos processos de criação ou de distribuição, marcadas por baixos orçamentos, muita invenção e experimentação, formando, assim, trânsitos entre centros e periferias, de modo que as relações entre o padrão e a invenção resultam sempre dinâmicas e imprevisíveis, nunca estáveis.

Ajustando o foco da discussão nas histórias contadas pelo cinema, vale lembrar: essas fábricas de imagens sonoras em movimento produzem signos que articulam narrativas, nas quais se delineiam os vínculos de pertencimento seja daqueles que as realizam, seja do público, nas salas de cinema, ou nos ambientes domésticos, no momento em que interagem com essas histórias, incorporando-as ao seu imaginário. Nos percursos entre quem as conte e quem as consuma, entrecruzam-se elementos conformadores de identidades plenas de tensões e contradições. São as tramas de agonísticas cujas tessituras conformam perfis de bandidos e mocinhos, amantes e odiados, parceiros e solitários, forjando os que pertencem a este ou aquele grupo, os estrangeiros, e ainda os indesejados. Tais referências demarcam visões de mundo de quem conta as histórias na direção de quem as consome. Da parte dos espectadores, não há identidades monolíticas únicas. Ao contrário, nos mais diversos contextos, estão envolvidos em referenciais identitários múltiplos, a partir dos quais se relacionam com as narrativas cinematográficas: “As posições espectatoriais são multiformes, fissuradas, esquizofrênicas, desigualmente desenvolvidas, cultural, discursiva e politicamente descontínuas, e constituem parte de um domínio em constante modificação (…).” (STAM & SHOHAT, 2005, p. 421).

A noção de identidade, neste trabalho, está estreitamente relacionada com a depertencimento(s). O sujeito se reconhece na medida em que reconheça seu pertencimento a esta ou aquela rede de relações. E ainda a esta e aquela rede. Ou ainda se localize em interstícios, entrerredes, na perda de uns e no estabelecimento de novos pertencimentos, de diversas naturezas. Assim, cada indivíduo liga-se, em diferentes intensidades, a redes de vínculos e, portanto, de relações identitárias que se entrecruzam, sobrepõem, concorrem, tensionam, configurando seu estar no mundo, sempre em movimento. Nessa linha, a cultura pode ser pensada como produção de signos compartilhados coletivamente, que estabelecem as mediações dos elos nas redes de pertencimento. E as narrativas fílmicas, que são, ao mesmo tempo, produto da indústria cinematográfica, entretenimento, mercadoria cultural intangível e imponderável, articulam, criam, sobrepõem, renovam signos em profusão, em interação com o contexto sócio-cultural no qual está inscrita.

A produção de excedentes

A sociedade industrial funda-se na produção de excedentes. Isso significa que as mercadorias não são produzidas para atender a necessidades objetivas, mas trazem, na sua própria concepção, a geração de novas e sempre insaciáveis necessidades. Assim, mercadorias são produzidas em excesso, sempre a mais, para ampliar o seu consumo. A entrada de novas mercadorias em circulação pressupõe o descarte das velhas (as ideias de novasvelhas constituem solo incerto…), de modo que se produz, também, lixo em excesso. Uma das consequências é que, nos centros urbanos, formam-se lixões, nos quais são jogados os mais diversos itens, danificados, perecidos, ou simplesmente substituídos por novos modelos.

Mas os lixões não são o ponto final do percurso cumprido por essas mercadorias, como descartes. Nesses territórios, desafiando desconfortos, mau cheiros, riscos de contaminações as mais diversas, e disputando espaço com animais outros, legiões de cidadãos recolhem os restos, e os reaproveitam de quantas formas: em construções alternativas e rudimentares de moradias, no consumo de alimentos muitas vezes em processo de deterioração, na recuperação de vestuários, na seleção de papelões, garrafas, dentre outros itens de interesse para as indústrias de reciclagem.

Na sociedade pós-industrial, marcada pela expansão sem precedentes das tecnologias de comunicação e de informação, igualmente, há circulação de informação, signos e entretenimento em demasia. Portanto, não são apenas as fábricas de mercadorias materiais que produzem em excesso, entulhando prateleiras e desejos dos consumidores, e gerando, no outro polo do processo de consumo, lixões cada vez mais extensos. Da mesma forma, há mercadoria simbólica em excesso, multiplicada em progressão geométrica, a cada fração do tempo, confundindo e saturando a percepção da audiência.

Do mesmo modo que parcelas significativas da população dos grandes centros urbanos trabalham nos lixões, tendo em vista toda sorte de reciclagem, é possível pensar, também, na existência de lixões intangíveis de produtos simbólicos da indústria cultural, de cujos descartes quantos cidadãos se apropriam, devorando-os, para regurgitá-los, recriando narrativas próprias, e, nelas, a própria noção de pertencimento. Stam e Shohat (2005) referem-se aos processos pelos quais as mercadorias culturais são importadas, nacionalizadas e mobilizadas para uso local.

Nesse cenário, entre a grande indústria e esses lixões culturais, há complexas redes e instâncias de fermentação da cultura, por vezes mais, noutras vezes menos artesanais, podendo ser mais, ou menos, inseridas nos circuitos culturais oficiais, por vezes mais locais, intracomunitárias, noutras mais afeitas ao caráter globalizado de produção: transculturais, “desterritorializadas”, multimidáticas, “pós-modernas”…

Se, de um lado, a indústria cinematográfica dominante tem produzido, em excesso, narrativas sobre “os ‘vencedores’ da história, em filmes que idealizam o empreendimento colonial como uma ‘missão civilizatória’ (…)” (STAM & SHOHAT, 2005, p. 400), entre os públicos consumidores dessa mercadoria intangível, agentes anônimos de cultura tratam de realizar e difundir suas narrativas, fazendo uso da imagem em movimento, pautados pela sintaxe do cinema, apropriando-se de repertórios aprendidos nos filmes veiculados por salas de cinema e programações televisivas. Tais narrativas trazem, como traço fundante, as marcas digitais de modos próprios e singulares de contar histórias e com elas interagir.

Muitas dessas produções são classificadas, por quantos críticos de cinema, como filmes trash,1 desqualificando-os. Uma coisa é certa: é preciso questionar desde onde tais avaliações são formuladas: se desde o ponto de vista dos poderosos e vencedores, ou da corvéia anônima… Além disso, os chamados filmes trash podem ser pensados como resultado desse processo de saturação de signos, informações e histórias, no mercado cinematográfico dominante. Produzem-se narrativas em excesso, nas quais há excesso de correrias, destruições, assassinatos, mortos, explosões, tiroteios, acidentes espetaculares, dentre outros ingredientes recorrentes em boa parte dos títulos colocados à disposição do grande público. Esses agentes anônimos que atuam nos lixões da indústria cultural reciclam os restos descartados pelo grande mercado, criando suas próprias histórias, que interagem, dialogam com as histórias contadas pelas grandes produções. E o fazem dispondo de poucas e precárias ferramentas, em estruturas narrativas que, ou por falta de condições técnico-orçamentárias, ou mesmo pela própria natureza de seus projetos, constituem-se a contrapelo dos cânones oficiais, sobretudo das narrativas dos vencedores.

Da Boca do Lixo para o cerrado, um Rambo brasileiro

Agora vou partir, vou viver junto com os animais, eles não têm maldade no coração. (Dirige-se à mocinha). Vamos. Mas sempre tem a verdade. Nem Cristo escapou dos inimigos. Agora eu lhe pergunto: pra quê tanta violência? Pra quê matar, destruir a vida do próximo, sabendo que somos todos irmãos, na paz, na alegria e na tristeza. Meu Deus, eu não lhe peço perdão, porque isso eu não mereço, mas lhe peço: perdoe o resto do mundo. Deus escreve certo por linhas tortas…

Fala da personagem interpretada por Afonso Brazza, na sequência final do filme No eixo da morte (1997).

Os filmes realizados pelo cineasta-bombeiro Afonso Brazza fizeram com que ele chegasse a ser considerado, por alguns críticos de cinema mais entusiasmados, se não o maior cineasta de Brasília, um dos mais criativos e instigantes. Em contrapartida, seus filmes foram qualificados, muitas vezes, como trash. Ele próprio costumava fazer provocações, reivindicando, para si o título de “pior cineasta do mundo” (PROGRAMA DO JÔ, 2002).


Ainda adolescente, Brazza seguiu para São Paulo em busca do cinema. Ali, iniciou-se na Boca do Lixo, onde conheceu José Mojica Marins, o Zé do Caixão, e aprendeu a trabalhar com produções de baixo orçamento. Nos anos 80, mudou-se para o Gama, no Distrito Federal, onde passou a trabalhar como soldado do Corpo de Bombeiros. Entre os anos 1982 e 2002, dirigiu quase uma dezena de filmes de longa metragem: O matador de escravos (1982); Os Navarros (1985); Santhion nunca morre (1991);Inferno no Gama (1993); Gringo não perdoa, mata (1995); No eixo da morte (1997); Tortura selvagem: a grade (2000); Fuga sem destino(2002). Este último ficou inacabado, por ocasião de seu falecimento. Editado por amigos, sob a liderança de Pedro Lacerda, foi lançado em 2006, integrando a programação oficial do Festival de Cinema de Brasília.

A ideia de reciclagem transpira no corpo todo de sua obra, formada por histórias contadas com retalhos cujas emendas não são disfarçadas. Narrativas que divertem, antes de tudo, a quem as realiza. As sequências são desconexas, não há preocupação com continuidade, o som é dublado com vozes de outras pessoas, e muitas vezes os lábios dos atores indicam que estão pronunciando falas diversas das que se está ouvindo. Morrer nas mãos do herói é sempre divertido: por vezes, os bandidos resistem em morrer, para permanecer mais na cena, noutras, morrem antes mesmo dos disparos os atingirem. Tais características, que serviriam para desqualificá-los, ao contrário, tornam esses filmes obras vibrantes e intrigantes. E, para o público, diversão garantida!

Cenas do filme Tortura selvagem: a grade(2000), dirigido por Afonso Brazza.

Nelas encontram-se alguns elementos indispensáveis aos filmes de ação produzidos em massa pela indústria norte-americana: um herói, sempre interpretado pelo próprio Brazza, cujas entradas envolvem mistérios, estratégias, gestos amplos, falas de efeito, vociferações, ameaças e advertências aos “agentes do mal”; mulheres bonitas, algumas vilãs outras vítimas; a mocinha de todas as suas histórias, bela e loira, interpretada pela sua esposa, a atriz Claudete Joubert; muitos bandidos que aparecem de todos os lugares, não interessa saber como, mas por certo para serem implacavelmente combatidos e mortos das mais diversas formas; fugas de carro, saltos de pontes, lanchas velozes, explosões. Tudo executado como quem brinca: fazer cinema é, sobretudo, diversão, nas versões de Afonso Brazza.

O herói composto pelo cineasta, recorrente em todos os filmes, embora assumindo diferentes nomes e trajetórias, é inspirado na personagem Rambo, interpretado pelo ator norteamericano Silvester Stalone, o que lhe valeu a alcunha de Rambo do Cerrado2: um soldado do Corpo de Bombeiros, orgulhoso de sua farda, ocupado em salvar as pessoas, com sua missão levada às últimas consequências, inclusive na dimensão do imaginário.

No tocante aos custos, a maior parte de seus filmes foi realizada com orçamentos bem modestos. À medida que ganhou espaço e visibilidade para o seu trabalho, passou a ampliar as fontes e a forma de apoio com que passou a contar. Assim, o filme Tortura selvagem: a grade, por exemplo, custou R$ 200.000,00, podendo ser considerado uma superprodução, tendo-se em vista que seu primeiro título, O Matador de escravos, realizado em 1982, custou o correspondente a R$ 8.000,00, em valores atualizados.

Na passagem gradativa para produções mais sofisticadas e caras, sem terem sido apagados os traços de autoria, seus filmes, que não deixaram de ser trash, rapidamente ganharam o status de cult. Muitos intelectuais de Brasília, entre jornalistas, artistas, poetas e outros, faziam questão de colaborar e participar dessas produções. Por ocasião da morte do cineasta, em 2003, o jornalista Ricardo Noronha declarou, em matéria veiculada num jornal local:

Tenho a honra de ter sido morto por Afonso Brazza duas vezes. O primeiro tiro pegou exatinho no meio da testa. (…) Caí de costas e ainda reuni forças para virar a cabeça de lado, de maneira assim pouco provável, antes de expirar. [a cena] está em Tortura Selvagem – a grade, filme de pancadarias e tiroteios deliciosamente sem nenhuma cena de tortura, sem grade alguma. A segunda vez que Afonso Brazza me matou foi à traição. Me acertou um tiro pelas costas. (…) Dei um rolamento para a frente, me estabaquei no chão. (…) Ainda não vi essa cena. Está em Fuga sem Destino. A não ser que nosso Brazza tenha aprontado das suas e deixado esse pedaço de película perdido no chão de sua sala de edição caseira, no Gama. (NORONHA, 2003).

Embora tenha conquistado mais visibilidade junto à mídia e espaço junto às agências de fomento para o cinema, o que lhe valeu voos mais ousados em cenas de ação, não conseguiu avançar muito junto aos meios de distribuição de seu trabalho, de modo que a circulação dos filmes não conquistou maiores espaços fora do Distrito Federal, seja na projeção em salas de cinema, ou no formato VHS ou DVD para venda e empréstimo. Ainda hoje, um número muito reduzido de títulos pode ser encontrado em poucas locadoras da capital federal.

O sonho de Loreno, o cineasta analfabeto, servente de pedreiro, locutor de rádio

Até debaixo de chuva eu gravei filme. ‘Tava chovendo, e chuva grossa. Nós ‘tava lá no meio do pasto, correndo atrás uns dos outros, dando tiro, tudo moiadinho, e todo mundo alegre, todo mundo animado. Era aquela alegria! Sabe por quê? Não era pra aparecer lá fora na televisão, era pra ver. Quando chegava de tarde, a gente aprontava a fita, quando era mais tarde, ficava pronto, aí ia todo mundo lá pra assistir o filme, sentir o prazer de ver ele no próprio trabalho, alegria só pra vê eles ali dentro da televisão.

Seu Manoel Loreno, Mantenópolis, ES (2009).

A pequena Mantenópolis fica no noroeste do Espírito Santo. Atualmente, uma das principais atividades econômicas da região é a produção de café. A migração de parcela importante da população para os Estados Unidos da América do Norte também é um traço marcante da cidade, com reflexos na economia local, na organização das famílias, nas construções de casas, nos sonhos de futuro, e, sobretudo, no imaginário dos que ficam… Seu Manoel Loreno nunca saiu do país, mas tem notícias de que seus filmes já foram vistos em redes norteamericanas de televisão, fazendo sucesso entre as comunidades brasileiras lá instaladas. Mas nunca recebeu nenhum comunicado oficial a respeito, tampouco foi remunerado de qualquer forma por alguma possível exibição de seu trabalho.

Ele, que já foi servente de pedreiro, é apaixonado por cinema, desde muito cedo. Em meados da década de 60, enquanto o Cine Império estava em funcionamento, ainda meninote carregava cartazes pelas ruas, anunciando a programação da sala, para assistir aos filmes nas sessões noturnas. Nos anos 70, continuava trabalhando como anunciador, sem salário, tão somente em troca dos ingressos para as sessões.

Seu Manoel relata que, enquanto via os filmes, em sua maioria, estrangeiros – filmes de Tarzan, de faroeste, dentre outros – ficava imaginando suas próprias histórias projetadas no telão. Em seu sonho, anunciadores, outros que não ele, carregariam cartazes pelas ruas com a propaganda de seus filmes. No final dos anos 80, soube aproveitar a oportunidade quando apareceu alguém com uma câmera de vídeo, que se dispôs a fazer as gravações: realizou seu primeiro filme, A vingança de Loreno (1989). Desde então, segundo relata, já contabiliza quase 50 títulos de sua autoria 3, boa parte dos quais, contudo, encontra-se perdida: realizados em VHS, sem cópia, tomados emprestados por vizinhos, forasteiros, curiosos, muitos dos quais não foram devolvidos. Quantos desses foram remetidos para amigos ou conhecidos que moram nos Estados Unidos da América do Norte, sem que deles mais se tivesse notícias…

Quando começou a fazer seus filmes, a população de Mantenópolis não tinha mais o hábito de assistir filmes no cinema. A sala de projeções já havia fechado há algum tempo – ainda hoje não há sala de cinema na cidade – e as pessoas acompanhavam apenas a programação das redes abertas de televisão. Desse modo, seu Manoel instaurou uma atividade inovadora que, além da natureza artística, cultural e de entretenimento, mostrou grande potencial agregador da comunidade, que se reunia para trabalhar nos filmes e para assistir aos trabalhos realizados. Ele não tem dúvidas: “Eu sei que eu emocionei muita gente fazendo filme aí…”, ainda que a exibição não fosse em grandes telões, mas no écran de modestos aparelhos de televisão, instalados na quadra de esportes. Seus olhos brilham, recordando os primeiros anos, quando “todo mundo ficava doidinho pra ver”.

Seu Manoel Loreno, em cenas do filme O homem sem lei (2003), de sua própria direção.

Para realizar seus filmes, em primeiro lugar ele imagina toda a história, e a divide em partes: “se eu vou fazer um filme daqui a uns trinta dias, aí eu já vou pensando a história dele, eu penso quantas pessoas vai gastar, cena por cena, quantas partes vai gastar…” (LORENO, 2009) Em geral, seus filmes contam com aproximadamente trinta partes. Então ele planeja a execução de cada uma delas, incluindo o número de participantes, as roupas e locações necessárias, os acontecimentos. Após as orientações sobre o que cada um deve falar e fazer, inicia a gravação. Os atores são membros da comunidade, trabalhadores rurais, vizinhos, pessoas com mesmo tipo de inserção sociocultural que ele. Ele conta, também, com a atuação entusiasmada e bem humorada da esposa, dona Isa. Geralmente, os trabalhos duram um final de semana. E como as cenas são gravadas na própria sequência da história, ao final, o filme está pronto (uma espécie de copião, sem edição), razão pela qual, findas as gravações, todos podiam assistir ao trabalho concluído, sempre no domingo à noite.

Embora tenha conseguido mobilizar tantas pessoas da comunidade desde o início, ele era, quase sempre, referido como lunático, e seu trabalho considerado como uma atividade sem maior relevância, não muito mais do que mera distração. Seu reconhecimento veio a partir da visibilidade conseguida com a participação em programas de entrevista em redes de televisão de grande audiência. Tornou-se uma espécie de embaixador da pequena cidade no cenário nacional, e foi recebido entre os conterrâneos como celebridade. No entanto, essa inserção na mídia resultou no imprevisível:

(…) mas agora eu vou falar: (…) aparecer na televisão no Brasil inteiro não me trouxe facilidade pra fazer mais filme. Num ponto foi bom, mas no outro não foi não. Então, foi ruim, que as pessoas não ajudam mais: tem que pagar o dia, e tem que dar o almoço prá eles. Por que, de qualquer maneira, se for um filme de faroeste, eu tenho que gastar umas 80 pessoas. Pra fazer esse filme, então, 80 pessoas, como é que a gente aguenta pagar? (LORENO, 2009).

Seu Manoel sempre contou com a colaboração dos membros da comunidade para realizar seus filmes, pelos quais não recebe retorno financeiro, ou quando recebe algum valor, é simbólico. No entanto, a visibilidade conquistada criou uma nova condição nessa rede solidária. A maior parte de seus parceiros entendeu que ele teria conquistado, além da visibilidade, alguma forma de ganho em dinheiro, de modo que passaram a reivindicar para si, também, alguma forma de pagamento. É possível supor que, inicialmente, houvesse uma espécie de contrato intracomunitário para a produção desse trabalho, o que teria sido rompido a partir da projeção midiática de seu Manoel, em detrimento dos demais, e da expectativa destes quanto a ganhos financeiros. Quebrou-se, assim, a magia das contações de histórias por meio das imagens sonoras em movimento, sob a liderança do cineasta analfabeto, ex-servente de pedreiro, atualmente locutor-comentarista da TransaSon FM, rádio comunitária de Mantenópolis.

Hoje, ele imagina pelo menos três projetos: “Se eu tivesse uns dois mil, eu conseguia fazer um filme com menos pessoas…” As histórias latejam em profusão em sua imaginação. O desejo de realização o inquieta, e a frustração ante as dificuldades têm angustiado seu Manoel Loreno, em pleno impulso de criação… “Não tem cabimento eu não conseguir fazer mais nenhum filme!” Ele tem o roteiro pronto de um filme intitulado Liberado para matar, cuja ação começa em Vitória, e termina em Mantenópolis… umroad movie de ação… “Ah, mas pra esse, ia precisar de muito mais dinheiro, pelo menos uns vinte mil…” (LORENO, 2009)

Cinema, reciclagem e meio ambiente, tudo a ver!

Eu sempre querendo fazer plateia. Não é que eu queria fazer cinema, fazer cinema é outra coisa. Aquela lembrança, quando eu entrei no cinema, a primeira coisa que fiz foi ver o filme passando: a luz tá vindo de lá, e a tela, e aquelas pessoas estavam ali, sentadas, assistindo. A luz, a tela, e as pessoas. Então eu queria fazer era aquilo. Era a emoção, as pessoas assistindo e eu passando o filme, eu sonhei com isso por toda a minha vida. Era um sonho.
Sr. José Zagati, Taboão da Serra, SP (2009).

O corpo esguio e elegante, o sorriso largo, os gestos que acompanham os relatos, avivando-os para a oitiva dos interlocutores, as mãos expressivas e calejadas pelo trabalho braçal de catar papel para reciclagem: o sr. José Zagati é um narrador por excelência, dentro do espírito descrito por Walter Benjamin:

(Pois a narração, em seu aspecto sensível, não é de modo algum o produto exclusivo da voz. Na verdadeira narração, a mão intervém decisivamente com seus gestos aprendidos na experiência do trabalho, que sustentam de cem maneiras o fluxo do que é dito). A antiga coordenação da alma, do olhar e da mão (…) é típica do artesão, e é ela que encontramos sempre, onde quer que a arte de narrar seja praticada. Podemos ir mais longe e perguntar se a relação entre o narrador e sua matéria – a vida humana – não seria ela própria uma relação artesanal. (BENJAMIN, 1994, pp. 220-221)

Fazendo uso da habilidade para narrar vidas, desde a sua própria, ele relata ter ido ao cinema, pela primeira vez, aos cinco anos de idade, na pequena cidade de Guariba, no interior de São Paulo, levado pela irmã. Era um filme de Billy the Kid. A experiência primal não se apagou de sua memória. Mais tarde, tendo se mudado com a família para Taboão da Serra, conheceu o Cine Tupy, que, na adolescência, passou a frequentar. Durante a semana, fazia pequenos trabalhos para comerciantes do bairro onde morava, em troca dos quais recebia “umas moedas” que guardava para ir ao cinema no domingo. “Então eu pegava o ferro-de-brasa da minha mãe, fazia questão de pegar minha melhor roupinha, eu esquentava o ferro e passava: eu vou ao cinema!” (ZAGATI, 2009)

Sr. José Zagati | Foto: Hamilton Alves(2009)
Kombi do Mini Cine Tupy | Foto: Alice Fátima Martins 2009)
Coleção de rolos de filme e fitas VHS | Foto: Alice Fátima Martins (2009)
Sr. José Zagati e crianças assistem projeção de filme | Foto: J. Bamberg (2009)

Na vida adulta, trabalhou como servente de pedreiro, metalúrgico, dentre outras tantas atividades. Mas, em 1990, desempregado, começou a catar papel, “e foi daí que eu consegui realizar o meu sonho”, afirma. Frequentemente encontrava pedaços de filme: “quando eu achava um pedaço de filme, aquilo para mim era um grande tesouro que eu tinha encontrado”. Ele próprio questiona por que se encontravam tantas coisas relativas a cinema no grande aterro sanitário, e explica que todo o lixo resultante das reformas feitas nos prédios do centro de São Paulo era depositado ali. Eram entulhos de quantos prédios derrubados para que outros fossem erguidos, e outros tantos refeitos, para assumir novas feições e funções, pela pressão do progresso. Dentre esses prédios, estavam as antigas salas de cinema, muitas das quais fechadas, recebendo outras destinações. “Eu comecei a encontrar esses restos, esses pedaços de filme, fui guardando, tudo quanto foi pedaço, aquela coisa de Cinema Paradiso, (…) vou guardar, isto aqui é história…” (ZAGATI, 2009). Então, ele encontrou a carcaça de um projetor no lixo. Embora não funcionasse, ele a levou consigo, para casa. Algum tempo depois, numa “loja de usados” do centro de São Paulo, comprou o primeiro projetor em condições de funcionamento. Seu relato é emocionado:

Peguei o projetorzinho e vim (faz o gesto de quem carrega uma criança), peguei o ônibus e vim com ele no colo assim, parecia um bebê, louco prá chegar em casa prá botar ele prá funcionar, e ver os pedaços dos filmes que eu tinha juntado. Aí eu arrumei, quando foi no outro dia de tardezinha, estendi um lençol lá em cima duma cerca, eu morava num bairro aqui perto, né, aí eu pendurei um lençol, de tardezinha, puz uma mesinha lá na rua, botei o projetorzinho. Foi escurecendo, comecei a passar aquele filme (imita o som da máquina) rrrrrrrrrrrrrrrrrrr. Assim que surgiu o cinema aqui! (sorri) Aí começou a vir aquelas crianças todas, todo mundo curioso, o que é isso, Zagati? Que é isso seu Zagati? Eu falei: Isso é cinema! Eles nunca tinham visto aquilo… Como ainda tem muita gente que nunca foi ao cinema, ainda tem muita gente assim, que nunca viu. Aí, eles erguia o pano, não via nada, olhava no projetor, tão encantados com aquilo, eu tão feliz com aquilo! (ZAGATI, 2009).

A primeira projeção de um filme de longa metragem, completo, ele conseguiu realizar em agosto de 1998, inaugurando o Mini Cine Tupy, numa homenagem ao antigo Cine Tupy, que povoou sua infância e juventude com histórias e sonhos. Desde então, o trabalho de projetar filmes para a comunidade, na sede do “cineminha”, ou em outros locais, tais como escolas, asilos, hospitais, praças, dentre tantos, confunde-se cada vez mais com o de catar material para reciclagem. Atualmente, ele é membro da Cooperativa Zagati de Agentes Ambientais, que ajudou a fundar. Tem orgulho de seu papel social, e clareza das relações intrínsecas entre os cuidados com o meio ambiente, a reciclagem, e a produção de cultura. Por isso mesmo, escreveu em seu carrinho de coleta de papelão os seguintes versos, de sua autoria:

Reciclar é bom

A natureza agradece

Tudo pelo cinema!

A sétima arte merece!

(ZAGATI, 2009)

Banquetes antropofágicos: da dor e da delícia de devorar o outro

Nas últimas décadas, muitas salas de cinema foram fechadas, em cidades do interior e nas periferias dos grandes centros urbanos. Uma pesquisa realizada por uma parceria entre o Ministério da Cultura e o IPEA constatou que mais de 90% dos municípios não possuem sala de cinema. A migração das salas para as grandes redes instaladas em shopping centers implicou na exclusão do acesso a uma parcela significativa da população de suas programações, o que se reflete na informação de que apenas 13% dos brasileiros frequentam cinema pelo menos uma vez ao ano. Ou seja: os outros 87% não vão ao cinema, ou vão muito raramente. (BRASIL, 2007).

Os srs. Manoel Loreno e José Zagati desenvolvem um trabalho na contramão desse cenário, reunindo os poucos recursos de que dispõem para veicular realização e exibição de filmes à sua comunidade, no exercício incansável de busca do sonho. Se Afonso Brazza, residente no Gama, Distrito Federal, também, à sua época, não contava com salas de cinema, cumpriu uma trajetória que, embora mais cosmopolita, não foi menos entulhada pelos excessos da indústria cultural.

Esses três homens têm em comum a paixão pelo cinema, que mobilizou seu imaginário e nutriu seus sonhos desde a infância. Do mesmo modo, são apaixonados pelo lugar onde vivem, estabelecendo com ele uma relação de intimidade e encantamento, endereçando-lhe o seu trabalho. Brazza traz para as telas as paisagens e os percursos da capital federal, tornando-os personagem de primeiro plano em seus enredos. Suas histórias são urbanas, trespassadas pelo trânsito de automóveis, ônibus, ruas movimentadas, arquitetura, edifícios, construções, mas também por amplas áreas verdes, e sobretudo pela abóbada celeste do Planalto Central. Seu Manoelzinho respira uma atmosfera mais rural, interiorana, traços fisionômicos de sua pequena Mantenópolis. Reconta histórias de homens brabos as quais tem ouvido desde seus tempos de infância. E reinventa outras, sempre pensando, como cenário, nos caminhos entre o cerrado e as matas da paisagem recortada por morros e pedras de grande plasticidade. A comunidade e sua inserção sociocultual e ambiental também constituem a paisagem para a qual é endereçada uma das paixões do sr. José Zagati (ao lado do cinema, é claro, e de sua esposa, d. Madalena…), que percorre suas ruas, recolhendo material para reciclagem, olhando suas gentes, observando os movimentos, levando projeções de filmes, reunindo crianças, artistas, outros quantos sonhadores, estabelecendo elos, relações, sentidos…

Afonso Brazza e seu Manoelzinho, fazedores de cinema, apropriam-se de signos produzidos pelo outro, particularmente pela indústria norteamericana de cinema, que concentra parcela majoritária das produções cinematográficas ocidentais, mas, sobretudo, detém a hegemonia das redes de distribuição dos filmes. Mas essa apropriação pressupõe a assimilação e a retradução em termos de parâmetros próprios, identitários. Heróis dos outros, como o Rambo, cowboys e outras personagens, ganham versãotupiniquim. Mais que isso, ganham identidade própria numa nova malha de pertencimento. São devorados e regurgitados, numa apresentação para o mundo a partir dos cenários onde as novas versões são gestadas.

Em termos conceituais, a ideia de antropofagia como metáfora do processo cultural brasileiro foi eleita pelos modernistas, na década de 20 do século passado. O Manifesto Antropofágico, escrito, em 1928, por Oswald de Andrade (1995), busca responder a algumas questões colocadas pela Semana de Arte Moderna, em 1922, e reivindica uma atitude de devoraçãodos valores europeus, suas condutas normativas, seus cânones hegemônicos, para a reformulação na perspectiva das referências identitárias brasileiras.

Para o filósofo espanhol Eduardo Subirats (2001), a antropofagia brasileira inverteu o discurso das vanguardas européias e da definição da modernidade como um modelo externo, uma nova figura de colonização estética e política. Ela formulou, além disso, um projeto original de civilização não redutível às categorias do progresso capitalista ou tecnológico-industrial, buscando realizar a síntese o erudito e o popular, o hegemônico e o marginal, o altamente tecnológico e o artesanal.

No entanto, a ideia de antropofagia neste trabalho evoca uma outra fonte metafórica, da obra de João Ubaldo Ribeiro, Viva o povo brasileiro! (2008). O romance trata da saga de pequenos heróis da nação, tecendo uma anti-história em contraponto à história oficial, ou, retomando a ideia inicial deste artigo, uma história escovada a contrapelo (BENJAMIN, 1994). Embora esse romance tenha vários pontos de aproximação com o manifesto e o ideário modernista, com ele estabelecendo um diálogo inevitável, o texto de Ribeiro não tem um projeto político e intelectual em que a antropofagia seja apontada como o caminho para a solução dos impasses culturais no cenário brasileiro. Em contrapartida, também não assume o ponto de vista falso moralista dos colonizadores que condenam o ritual antropofágico. Ao abordar a história da dominação, fundada em quantas formas de violência, João Ubaldo Ribeiro busca a própria voz do dominado, seja do ponto de vista das relações de poder, da produção da cultura, da história como um todo. Nela, o ato de devoração prazerosa do outro aparece como o gesto germinal dos processos de miscigenação que articulam o sentido de brasilidade, no seu melhor, e também no seu pior…

A diferença entre a antropofagia e o canibalismo está no aspecto ritual, presente na primeira, ausente no segundo. O canibal devora o outro, seu semelhante, reduzindo-o à condição de caça, ou alimento circunstancial. Nos rituais antropofágicos, o outro é reconhecido e respeitado, e seu devorador quer assimilar sua vitalidade e força, incorporando, assim, suas características à própria identidade. Embora a distinção conceitual entre antropofagia e canibalismo não seja consensual entre estudiosos e pesquisadores, essa concepção orienta a discussão proposta neste trabalho, que trata da atuação de agentes produtores de cultura mais que meros caçadores de restos nos lixões intangíveis da indústria cultural: na verdade, devoradores rituais do excedente simbólico despejado pelo outro, pelos outros. Devorando ritual e prazerosamente o lixo descartado, reprocessam-no, integrando-o às suas próprias redes de pertencimento e sentidos. A natureza, a cultura e o cinema agradecem, como preconiza o sr. José Zagati.

Figuras que não se submetem aos modelos impostos por outrem, mas os incorporam aos seus próprios referenciais e ferramentas, Afonso Brazza, seu Manoelzinho e o sr. José Zagati não estão sozinhos no cenário brasileiro. Tantos outros se aventuram à labuta de catar lixo da indústria cultural, fazendo uso de recursos geralmente precários para produzirem suas próprias narrativas, para abrir espaços de veiculação de narrativas, de modo independente em relação ao mercado oficial cinematográfico. De alguma forma, esses agentes culturais interagem não apenas com as narrativas e os veículos hegemônicos, mas com a própria intervenção colonizadora destas em seus contextos, absorvendo e retraduzindo seus signos, atribuindo-lhes novos significados, recontando suas próprias histórias.

São tomadas de posição no mundo presididas pela interlocução ativa e criadora, dialogal. Afinal, nenhuma imagem, e, de resto, nenhuma narrativa é fechada, mas tem seu sentido completado na relação com o público, que a interpreta e reconstrói em sua própria percepção. Nos processos de interpretação de narrativas, sejam imagéticas, literárias ou cinematográficas, entram em cena tanto os referenciais subjetivos, individuais, quanto os coletivos, culturais. Indivíduo e coletivo são, afinal, duas dimensões imbricadas e indissociáveis nas dinâmicas do tecido social. No tocante ao trabalho desses cinéfilos e fazedores de filme a contrapelo, mais do que meramente interpretar essas narrativas, reconstruindo-as no próprio imaginário, de fato in-corporam, antropofagicamente, os signos das histórias contadas pelos outros, os heróis dos outros, em histórias autorais e ambientes regidos por sua soberania, que dizem de seu tempo, de suas relações, de sua própria inserção no mundo. De seus pertencimentos.

* Alice Fátima Martins é professora do Programa de Pós-Graduação em Cultura Visual, na Faculdade de Artes Visuais da UFG, com pesquisa de pós-doutorado desenvolvida no Programa Avançado em Cultura Contemporânea (PACC/UFRJ), financiada pela FAPERJ.

 

NOTAS

1 No cinema, não há consenso em relação à classificação de filmes como trash. Em geral, são assim referidos os filmes de baixo custo, “mal realizados”, em sua maioria, caricaturas de filmes de horror ou de ação.

2 Embora no filme Tortura selvagem: a grade os antagonistas do herói refiram-se, algumas vezes, à sua personagem, em pleno enredo, como o Kojak, em função da cabeça raspada.

3 Alguns títulos dentre os filmes realizados por sr. Manoel Loreno: A vingança de Loreno, O gatilho mais rápido do Oeste, A revolta de Loreno, Loreno volta para matar, O sonho de Loreno, Natal sangrento, Karatê, Golpe fatal, A vingança do apaixonado, O amor proibido, O homem feliz, A gripe do frango, O homem sem lei, O rico pobre.

4 A escrita do nome do cinema não está unificada nos documentos, camisetas, folders, etc. Considerando o cinema homenageado pelo sr. José Zagati, o antigo Cine Tupy, e a maior parte do material de divulgação veiculado, neste artigo é adotada a grafia Mini Cine Tupy, apesar de, na porta da Kombi, constar Mini Cine Tupi.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

ANDRADE, Oswald de. A utopia antropofágica. 1ª publicação em 1928. São Paulo: Globo, 1995. 2ª Ed. Disponível em http://www.puc-campinas.edu.br/centros/clc/Acesso em 23 de fev. de 2008.

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas, volume 1: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994.

BRASIL, Ministério da Cultura. Economia e política cultural: acesso, emprego e financiamento. Coleção Cadernos de Políticas Culturais, volume 3. Brasília: Ministério da Cultura, 2007.

BRAZZA, Afonso. Depoimento. Entrevistador: Jô Soares. Transcrição: Alice Fátima Martins. Entrevista concedida ao Programa do Jô. Rio de Janeiro: Rede Globo de Televisão, 2002. Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=qDyZqlxdrEM&feature=related. Acesso em 22 de fev. de 2008.

MORIN, Edgar. A indústria cultural. In FORACHI, M. A. e MARTINS, J. S. (1999) Sociologia e sociedade: leituras de introdução à sociologia. Rio de Janeiro/São Paulo: Livros Técnicos e Científicos, 1999.

LORENO, seu Manoel. Depoimento. Entrevistadores: Alice Fátima Martins e Jairo R. P. Bamberg. Arquivo digital formato MP3. Transcrição: Alice Fátima Martins. Entrevista concedida ao Projeto de pesquisa catadores de lixo da indústria cultural. Rio de Janeiro: PACC/FCC/UFRJ/FAPERJ, 2009.

STAM, Robert & SHOHAT, Ella. Teoria do cinema e espectatorialidade na era dos “pós”. In RAMOS, Fernão Pessoa. Teoria contemporânea do cinema, volume 1: pós-estruturalismo e filosofia analítica. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2005.

ZAGATI, José. Depoimento. Entrevistadores: Alice Fátima Martins e Jairo R. P. Bamberg. Arquivo digital formato vídeo. Transcrição: Alice Fátima Martins. Entrevista concedida ao Projeto de pesquisa catadores de lixo da indústria cultural. Rio de Janeiro: PACC/FCC/UFRJ/FAPERJ, 2009.

REFERÊNCIA FILMOGRÁFICA

O HOMEM SEM LEI. Seu Manoel Loreno. DVD. Brasil, 2003.

TORTURA SELVAGEM: A GRADE. Afonso Brazza. Película. Brasil. 2000. Disponível em http://video.google.com/videoplay?docid Acesso em 17 de janeiro de 2008.

 

Tempo de leitura estimado: 19 minutos

Tramas urbanas: un posicionamiento teórico crítico sobre la experiencia cultural contemporánea de la periferia urbana carioca y paulista | de Lucía Tennina


Ésta es la tapa de un libro. Salta a la vista que es a todo color. El título de este libro es Cooperifa, y el subtítulo, Antropofagia Periférica, que nos remonta al movimiento vanguardista brasileño de los años ‘20, pero desde un lugar diferente: la periferia. “Sérgio Vaz” es el nombre del autor.


En la contratapa del libro se lee un texto de Mano Brown, un rapper brasileño oriundo del barrio periférico Capão Redondo y vocalista del grupo Racionais MC’s., que se titula “El general de las palabras”. Como es corriente en este tipo de escrituras, la metáfora bélica articula sociedad y literatura. El título de la reseña apunta a Sérgio Vaz escritor.


A diferencia de otros libros, éste tiene sus auspiciantes: Petrobrás, el Ministerio de Cultura y el Gobierno Federal.

En la página de apertura, otro paratexto nos informa que el libro que tenemos en las manos pertenece a una colección, Tramas Urbanas, que consta de diez volúmenes. El texto no tiene firma.

Los créditos señalan que la curaduría de la colección está a cargo de Heloísa Buarque de Hollanda, consagrada crítica literaria brasileña, y la consultoría pertenece a Ecio Salles, literato brasileño oriundo de un suburbio carioca y coordinador del movimiento cultural Afro Reagge



En el interior se pueden ver los escritos de Sérgio Váz intercalados con fotos de él: algunas del artista cuando niño, otras de las actividades que desarrolla en la periferia y otras en las que el autor se promociona a sí mismo en su propio cuerpo, como si además de los secretos de la pobreza conociera los de la mercancía capitalista.

Las separaciones entre capítulos llevan una tipografía tridimensional, que supera el tamaño de la página y que tiene diferentes tonalidades de grises, algunas veces pixeladas. También están pixeladas las fotos.

El último capítulo narra el origen del libro y las mediaciones para su concreción, encarnadas en Heloísa Buarque de Hollanda quien aparece como comitente: “ (…)Heloísa me pediu que eu contasse um pouco da minha história e da Cooperifa (…)”


Este libro, junto a otros nueve, forman una pequeña biblioteca: la de Tramas Urbanas, que comenzó a salir en el 2007 y al año siguiente cerró con 10 títulos.

Desde fines de la década del ’90, el campo literario brasileño comienza a verse atravesado por una serie de escrituras aproximadas por el origen social de los escritores que la producen, todos oriundos de la periferia urbana, además de por afinidades temáticas centradas en la marginalidad social, la criminalidad, la violencia, el tráfico de drogas y el racismo. En el año 2001 la revista Caros Amigospublicó una edición especial sobre la literatura producida en las favelas/barrios pobres. Se trata del primero de los tres números que esta revista dedicó a dichas escrituras, llamada en esas ocasiones Caros Amigos –Literatura Marginal Ato I (2001), Ato II (2002) y Ato III (2004). A partir de esta publicación, ideada, organizada y editada por el escritor Ferréz, se instala y se disemina el concepto “literatura marginal”, alrededor del cual se agrupa un importante número de escritores de origen subalterno, conformando en conjunto un movimiento literario.

Frente a este fenómeno, el círculo de los letrados viene actuando confusamente: o no emite palabra, o deslegitima sus producciones, o, por el contrario, las legitima idealizadamente. Aunque todavía no hay, entonces, una cartografía crítica armada, una voz que se destaca es la de Heloísa Buarque de Hollanda, quien, no casualmente, es la primera académica que, al surgir la poesía marginal en los ’70, se abre para su comprensión y arma la famosa antología llamada 26 poetas hoje. Frente a la “literatura marginal” de los últimos años, la operación crítica que Heloísa Buarque toma es absolutamente diferente a la que llevó a cabo con la poesía marginal. No hay artículos de su autoría en relación con dichos textos, solamente hay algunas entrevistas en las que se puede leer que, en este caso, su programa apunta a “dar voz a quienes no tienen voz” (Revista Raiz, 12-09-08), de ahí que organice la colección Tramas Urbanas.

Este silencio puede interpretarse en una línea foucaultiana, como un acto de crítica política, negándose a hablar por ellos y a caer en la trampa de la representación. Ahora bien, ese “dar voz” está determinado por varias mediaciones que, si bien no se articulan en palabras, le dan forma al fenómeno y lo condicionan dotándolo de nuevos sentidos ¿Pueden pensarse tales operaciones en tanto posicionamientos teórico-críticos?

El gesto fundamental de Tramas urbanas es colocar a los textos que publica en el entramado de la demanda ciudadana pero a su vez, la demanda del libro en relación con esos autores es la de que entreguen un relato de vida. Los libros firmados por escritores de la periferia no presentan poemas o textos literarios, sino que cuentan la historia de cada uno de ellos. La propuesta de esta colección no consiste en un espacio de experimentación, sino que apunta a la presentación de historias particulares que dan cuenta de un universo colectivo, presentado como representable y con un sistema de significación complejo y propio. Se trata de una decisión que instala un punto de vista frente a los escritos periféricos: la condición de reciprocidad entre dichas producciones y un relato biográfico ligado al contexto, relato que, a su vez, funciona como eje desde el cual se narra.

Este posicionamiento apunta, a su vez, a un tipo de lector para los libros de esta colección, que igualmente se puede predecir desde su precio, que ronda los 30 reales. La historia de vida presentada en la colección Tramas Urbanas contrasta fuertemente con los datos biográficos que los escritores de la periferia escriben en textos publicados por ellos mismos. En estos casos, la referencia a la vida del autor se señala en pequeñas notas al pie de pocas líneas, donde se indica el barrio en el que vive, su trabajo, otros títulos de libros suyos y las actividades culturales en las que participa.


Se trata de pequeñas puntualizaciones que ayudan a un sujeto de experiencias similares a identificarse y a imaginar una comunidad. La historia de vida en Tramas Urbanas consiste, por el contrario, en un largo relato cargado de información, de explicaciones y de fotografías, que para un periférico resultarían redundantes, pero para un lector no nativo aportan a la comprensión de ese espacio. En el caso de la colección en cuestión, entonces, el foco de interés desde el cual se hace pública la cultura de la periferia, es su misma condición de “periférica”. Recordemos en este punto, como nota de color, que la palabra “interés” deriva de una construcción impersonal latina inter est, que significa “es diferente”. Y en este caso es la diferencia en lo que hace a la experiencia urbana lo que se vuelve un valor instrumental para que la editorial presente esta colección.

El acento en esta diferencia tiene su eco, a su vez, en la separación dentro de la editorial Aeroplano de la colección Tramas Urbanas. Es importante aclarar que esta división no se justifica desde cuestiones de género literario, sino que es la idea misma de periferia la que establece una distinción entre estos diez libros y el resto de los publicados por esta editorial. Si se toman en cuenta todos los libros que completan esta colección, se puede ver que no se centran solamente en escritores de la periferia, solamente dos se ocupan de ello. Otros tres refieren al movimiento del hip-hop, y uno al movimiento tecno. Dos remiten a la estética de ese espacio. También la categoría “violencia” interviene en los títulos, vinculada a la memoria de acontecimientos trágicos en el conjunto habitacional Vigário Geral. Finalmente, hay una referencia a la historia de un medio cultural alternativo.

La colección aparte dentro de la editorial Aeroplano se sostiene desde la consideración e interpretación de eventos articulados en el espacio urbano institucionalmente reconocido como “periférico”. No hay, en este sentido, un cuestionamiento desde el punto de vista territorial de la idea de “periferia”: lo que se cuenta ocurre en barrios pobres o favelas. Hay sí, de todos modos, una complejización de tal concepto a partir de la consideración de ese lugar desde procesos activos de creación que moldean un conocimiento histórico imposible de entenderse desde una estructura fija y previa.

En paralelo a esta formulación del concepto de periferia, se desprende una modulación particular del concepto de “cultura”, ya no tomada como modelo a alcanzar, sino como un conjunto que funciona, junto con la memoria, la comunicación y el habitus de la vida cotidiana, como parte de un proceso de constitución de un sujeto y, por extensión, de una comunidad. La noción que se articula de cultura aquí, en este sentido, más que trascendente es incluyente. Culturalización de particularidades, podríamos decir, sin búsquedas de formas comunes y sin pretensiones de integrar. Pero ¿qué diferencia hay entre integrar e incluir? ¿Por qué hablo de una cultura incluyente pero no integrativa? Como explica João Camillo Penna, las operaciones de integración son universalizantes, “(…) buscan homogeneizar la sociedad a partir del centro, en un marco nacional” (Penna, 2009: 173). En cambio, la inclusión considera las particularidades positivamente y sobre ellas desarrolla medidas transitorias (transitorias en tanto “(…) el remedio no intenta curar al enfermo, sino apenas mantenerlo convaleciente en la cama” (Penna, 2009: 173)). Frente al gesto de criminalizar la periferia, y, en consecuencia, considerarla como “marginal”, la política de inclusión, señala Penna, se activa básicamente desde la culturalización de la misma. La colección de Heloísa Buarque pretende, entonces, mostrar una culturalización de la vida sufriente que, a diferencia de la criminalización, anima al diálogo y, por lo tanto, a la inserción.

La posibilidad de diálogo es una de las afirmaciones más evidentes que establece la colección Tramas Urbanas. Y se plantea desde varios aspectos. En cuanto atendemos, por ejemplo, a los nombres de los autores, se puede ver que algunos de los que firman los libros no son de la periferia, sino que son artistas o académicos de origen social medio. La referencia a la periferia se propone, en este sentido, a partir de un diálogo entre voces de sujetos con vinculaciones diferentes en relación con ese lugar. El ejemplo más claro es el libro Vigário Geral, escrito en conjunto por una historiadora de clase media y un literato oriundo de un suburbio carioca y coordinador cultural del movimiento Afro Reagge.

No se trata, de todos modos, de una nivelación absoluta de las voces. Esto se puede comprender si prestamos atención a la reseña que tiene cada contratapa, en la que escriben rappers o escritores periféricos cuando se trata de autores del mismo origen, pero cuando no, como en el caso de Cidade Ocupada, libro escrito por un artista de clase media, quien reseña el libro es una reconocida voz de la academia ligada al cine y a las artes visuales, Ivana Bentes. En este sentido, se puede inferir que, si bien Tramas Urbanas remite a un diálogo entre periferia-academia, reconoce las agencias desde las que cada una de las voces se formó y actúa.

El diálogo a nivel de las voces se puede visualizar también en los aspectos gráficos del objeto libro. Si nos centramos en las tapas, por ejemplo, en cada uno de los diez ejemplares que conforman esta colección se advierte una especie de collage de imágenes, grafittis, papeles, colores que no coinciden con los propios de las fotografías, sino que están superpuestos. No hay pretensión alguna de proponer una imagen homogénea, sin pliegues ni superposiciones. Tampoco hay intención de señalar imágenes que pretendan documentar, es decir, mostrar una verdad, de ahí que las fotografías no mantengan su color original y que en su mayoría se muestren pixeladas. La propuesta de las tapas parece adelantar, más bien, una idea de periferia en tanto forma de elementos superpuestos y en diálogo.

El montaje de la tapa da cuenta, asimismo, de una propuesta de lectura, que se reitera en la separación entre capítulos. En esos casos, la titulación de cada parte ocupa dos páginas, en las que se lee el nombre en letras bien grandes, que muchas veces superan el espacio, por lo que aparecen cortadas, y en general con las palabras superpuestas, provocando un efecto 3 D, que, como tal, no solamente arrastra un efecto visual, sino también táctil y cinético. Así, el ojo del lector, habituado a las letras en sucesión y sin relieves ni matices, se enfrenta con sensaciones particulares, justamente al tomar el libro y también antes de empezar a leer cada capítulo.

Finalmente, en lo que hace a los aspectos gráficos, tanto dentro como fuera del libro aparece pequeño y completo, o bien de cerca y fragmentado, el logo de la colección: una especie de tejido que remite directamente a la palabra “Tramas”. En el nombre de la colección no resuena ninguna categoría relacionada al “arte” o a la “cultura”, sino más bien a la idea de artesanía, es decir, un producto hecho a mano que, parafraseando a Benjamin, está marcado por las huellas de los dedos de quien lo crea. En otras palabras, “tramas”, o, en español, “tejido” apunta a la relación entre el artesano y el objeto que trabaja, en consonancia con la reciprocidad historia de vida-escritura.

La palabra tejido remite, a su vez, al trabajo por medio de un material en crudo, vinculado directamente a las afirmaciones de los periféricos respecto de los materiales de sus producciones, como el habla de la calle en el caso de los escritores. Por ejemplo, dice el rapper Mano Brown en la contratapa del libro de Sergio Vaz: “Sergio Vaz é um cara diferenciado, um cara que trabalha na arte de garimpar matéria prima na quebrada: o ser humano e seus pensamentos. Ele usa como arma e instrumento, a humildade do malandro e a inteligencia, no momento certo e na hora certa.”. Tejido, entonces, como esa materia prima no mediada ni presentada como objeto de consumo.

La última frase de estas palabras de Mano Brown, nos trasladan a un tercer significado de “tramas”: a la idea de “conspiración”, es decir, de la unión de un grupo contra otro. Este aspecto resulta un punto fundamental, en tanto señala un elemento propio de los movimientos culturales de la periferia, el de la violencia. El llamar de “tramas” a esta colección asume que una categoría que problematizan estas producciones es ésa. Y efectivamente, todos los escritores de la periferia afirman la calificación de violentos que pesa sobre ellos, aunque la articulan a otro cuerpo: el lenguaje mismo (recordemos aquel “general de las palabras” que leímos al principio).

Finalmente, la palabra “trama”, según el diccionario, significa “relatos”, contextualizados en este caso en la “urbe”, y no en la periferia: llamativamente el adjetivo es “urbanas” y no “periféricas”, por lo que la atención se centra en los significados de rapidez, movimiento. Así, “tramas urbanas” abre también la idea de formaciones móviles y dificultosamente fosilizables, de ahí que no sea la palabra “historias” la que da nombre a la colección, que remitiría a cierto ordenamiento.

¿Qué se puede decir, por último, de la introducción sin firma que abre cada uno de los libros? En principio, que al leerla se comprende sin problemas que es la voz de Petrobrás la que articula esas palabras. Hay, entonces, junto a la voz de los intelectuales y la de los artistas, una tercera voz que participa en este diálogo. Desde una retórica del desarrollo y de la inclusión, esta empresa justifica su ayuda económica para la colección de libros: “A Petrobrás, maior empresa brasileira e maior patrocinadora das artes e da cultura em nosso pais, apóia essa coleção de livros. Entendemos que é de nossa responsabilidade social contribuir á inclusão cultural e o fortalecimento da cidadania que esse debate pode propiciar.”. La voz de Petrobrás es la que hace posible este tipo de producciones de diálogo intelectuales-periféricos, por medio de la ayuda económica. A partir de una “ética de la discriminación positiva”, como dice el antropólogo Renato Rosaldo, Petrobrás se posiciona como un puente para que la diferencia se incluya a la ciudadanía por medio de la cultura. Nuevamente, la vinculación de la idea de cultura con el programa de la inclusión. Pero hay más: la concepción de dicha categoría que se puede percibir en la palabra de Petrobrás se expande hacia la idea de cultura como medio para resolver problemas en pós de la ampliación de la idea de “ciudadanía” en la sociedad brasileña y hacia la idea de apuesta económica en función de ese propósito. En palabras de George Yúdice, se trata de la idea de “cultura” en tanto “recurso”, entendida como “(…) expediente para el mejoramiento tanto sociopolítico cuanto económico, es decir, para la participación progresiva en esta era signada por compromisos políticos declinantes, conflictos sobre la ciudadanía y el surgimiento de lo que Jeremy Rifkin denominó “capitalismo cultural”.” (Yúdice, 2002: 23). La cultura situada, entonces, entre un programa de justicia social y un programa económico.

En base a la palabra de Petrobrás, podría llegar a hipotetizarse que, al fin y al cabo, esta colección lo que termina siendo es una forma más para que las clases gerenciales saquen provecho, por medio de la retórica de la inclusión, de las producciones de los grupos periféricos. Pero este reduccionismo se complejiza y debilita al considerar que la voz de los periféricos no se articula solamente desde esta colección, sino que los libros de Tramas Urbanas son una forma más de modular la palabra periférica, en este caso en diálogo con voces intelectuales y con potenciales lectores de clase media. Esto se puede percibir claramente cuando, al final del libro, Sérgio Vaz dice: “Quando a Heloisa pediu que eu contasse um pouco da minha história e da Cooperifa, no começo eu não estava muito afim, por conta da minha memória um tanto quanto irresponsavel e mentirosa. Mas também não podia me furtar o direito de dividir com você essa história de luta em prol da cidadania através da literatura”. Ése primer “Heloisa me pediu” con el que comienza la cita es clave, dado que marca el papel activo del escritor de la periferia, en este caso, frente a las demandas desde el mundo letrado. Lo que se establece con la afirmación del pedido, la reflexión sobre el mismo y la aceptación es que no se trata de una operación consentida por los escritores en tanto única alternativa para la circulación de sus textos. A diferencia de las posibilidades inexistentes que Carolina de Jesus, autora de Quarto de despejo. Diário de uma favelada, tenía en relación con la publicación de sus escritos en los años 60, los escritores “en la favela” (y no “de la favela”, como suele aclarar Ferréz, uno de los más combatientes escritores del movimiento “literatura marginal”) han llevado a cabo en los últimos años un gran número de cooperativas editoriales y medios alternativos para que sus textos circulen y sean accesibles.

Escribir un libro para la colección Tramas Urbanas es una operación más dentro de la “historia de lucha em prol da cidadania”. Es un “arma” en contra de la criminalización de sus vidas y en pos de la culturalización de las mismas. Más que una “culturalización de la vida sufriente”, que es la operación que se hace desde la colección, los escritores apuntan a una “culturalización del ciudadano sufriente” . En este triple agenciamiento –el de los letrados, empresas y escritores de la periferia- se complejiza la operación de la culturalización como escenario de debate.

Esta operación “bélica” de los escritores consta de dos pasos: una subjetivación del sujeto periférico por medio de la escritura, y una objetivación de ésta, por medio del libro. El “aura” del objeto libro, defendida por los “letrados”, es reafirmada en este caso por y frente a los escritores de la periferia urbana. Así, ese antiguo lazo entre los discursos y la materialidad, que la revolución digital hace tiempo está empezando a quebrar, se renueva a la hora de leer una voz contextualizada en la periferia. Pero la diversidad en las formas de presentar ese objeto obliga a la revisión de los gestos y las nociones que nuestros ojos, aquellos “órganos de la tradición”, según el principio de Boas, asocian con lo escrito. En este sentido, la colección Tramas Urbanas da cuenta de que frente a este tipo de escrituras periféricas es necesario revisar los modos de leer y, en consecuencia, los modos de hacer crítica.

BIBLIOGRAFIA

Foucault, Michel, Microfísica del poder, Madrid, Ediciones La Piqueta, 1992

Hollanda, Heloísa Buarque, 26 poetas hoje, 2da edição, Rio de Janeiro, Aeroplano Editora, 1998

———————————–, “Coleção Tramas Urbanas lança livro sobre movimento literário da periferia paulistana”, en Revista Raiz, São Paulo, 12 setembro 2008

Penna, João Camillo, “Criminalización y culturalización de la pobreza”, en Revista Confines, Buenos Aires, número 23, abril de 2009: pp. 169-179

Yúdice, George, El Recurso de la cultura, Barcelona, Editorial Gedisa, 2002

 

Tempo de leitura estimado: 55 minutos

Radicais, Raciais, Racionais: a grande fratria do rap na periferia de São Paulo. Violência e Mal Estar na Sociedade | de Maria Rita Kehl

Comício do Partido dos Trabalhadores, dia 1º de maio de 1999. Tem mais gente do que no ano passado, ou retrasado, mas a diferença não é muito significativa. O que chama a atenção é a presença de um outro tipo de gente, um “público” diferente da militância petista que já se pode chamar de tradicional, 18 anos depois. São jovens das periferias de São Paulo. A caracterização é clara. Olha-se para eles e se vê que não vieram dos sindicatos, das comunidades católicas, da base organizada de alguns deputados, da militância feminista. Esta moçada usa boné, bermudas largas, moletons imensos, cabelo raspado e óculos escuros. São escuros também, a grande maioria. Estão atentos, um pouco tensos, impacientes, mas nada agressivos. Escutam os discursos (sempre os mesmos, sempre chatos, com exceção das falas vivas do Lula e do Vicentinho), aplaudem, vaiam, repetem algumas palavras de ordem. O clima é pacífico e ordeiro, contrariando preconceitos da classe média branca. Alguns garotos sobem nas janelas do prédio dos Correios para ver melhor; um vitrô abre sozinho, pode-se presentir uma invasão, mas não: os próprios meninos se encarregam de fechar o vidro e continuam equilibrados perigosamente, assistindo a tudo lá do alto.

Quando o animador do comício anuncia a apresentação de alguns grupos de rap, encerrando com os Racionais MC’s, dá para entender a presença da moçada: são os manos. O grande exército dos fãs dos Racionais. Vale falar em fãs, no caso deles? Não, com certeza deve haver um termo que indique outro tipo de interação entre a multidão de jovens pobres e os grupos de rap que os representam. É como se cada um deles se considerasse um rapper em potencial, capaz de contar sua vida no ritmo repetitivo e opressivo, nas rimas obrigatórias, às vezes preciosas, às vezes brutais, executando a dança que não autoriza alegria nenhuma, sensualidade nenhuma — disto que nasceu na periferia de algumas cidades americanas como rhythm and poetry e se espalhou pelo Brasil, partindo de São Paulo, é claro: a mais opressiva das cidades brasileiras.

Há 17 anos, a grande festa petista de encerramento da campanha da primeira candidatura do Lula em 1982, daquela vez ao governo de São Paulo, contou com a presença estranha, espontânea, não necessariamente politizada, mas talvez em busca de alternativas, de vários punks da periferia. Sem liderança, desorganizados, os punks fizeram um certo “turismo revolucionário” em volta do PT, que não sabia o que fazer com eles. Seis anos depois, num melancólico e esvaziado 1º de maio de 1988 na praça da Sé, via-se um grupo de punks, já então aderidos a um patético neonazismo, cruzar a praça em atitude ameaçadora, procurando briga. Viraram inimigos da esquerda, truculentos, racistas. Buscaram reconhecimento — isto que todo jovem busca, mas que os pobres precisam lutar muito mais para obter — identificando-se com o opressor. Arrogância, racismo, violência física; os punks marcaram sim sua presença na cidade, mas não foram capazes de superar a condição subjetiva de sua alienação. Tudo o que conseguiram fazer foi passar adiante, para cima de outros garotos ainda mais frágeis do que eles, a humilhação que se recusavam (com razão) a sofrer.

Agora é diferente. A esquerda talvez ainda não saiba o que fazer, ou o que propor, para os milhares de rappers que, liderados pelo Mano Brown, parecem interessados em radicalizar um discurso contundente de oposição. Mas os “manos” têm uma idéia um pouco mais precisa de sua revolução, a começar pelas armas: sua palavra em primeiro lugar. Em seguida, sua “consciência”, sua “atitude” — expressões empregadas insistentemente nas letras dos Racionais, e que em termos gerais significam: orgulho da raça negra e lealdade para com os irmãos de etnia e de pobreza. Sabem para quem estão falando, e sabem sobretudo de onde estão falando: “Mil novecentos e noventa e três, fodidamente voltando, Racionais/ usando e abusando de nossa liberdade de expressão/ um dos poucos direitos que um jovem negro ainda tem neste país./ Você está entrando no mundo da informação/ autoconhecimento, denúncia e diversão./ Este é o raio-X do Brasil, seja bem vindo” (“Fim de semana no parque” — Mano Brown e Edy Rock).

Os quatro jovens integrantes do grupo — Mano Brown, Ice Blue, KL Jay e Edy Rock —, apesar das 500 mil cópias vendidas do último CD, Sobrevivendo no inferno, recusam qualquer postura de pop-star. Para eles, a questão do reconhecimento e da inclusão não se resolve através da ascensão oferecida pela lógica do mercado, segundo a qual dois ou três indivíduos excepcionais são tolerados por seu talento e podem mesmo se destacar de sua origem miserável, ser investidos narcisicamente pelo star system e se oferecer como objetos de adoração, de identificação e de consolo para a grande massa de fãs, que sonham individualmente com a sorte de um dia também virarem exceção. Os integrantes dos Racionais apostam e concedem muito pouco à mídia. “Não somos um produto, somos artistas”, diz KL Jay em entrevista ao Jornal da Tarde (5/8/98), explicando por que se recusam a aparecer na Globo (uma emissora que apoiou a ditadura militar “e que faz com que o povo fique cada vez mais burro”) e no SBT (“Como posso ir ao Gugu se o programa dele só mostra garotas peladas rebolando ou então explorando o bizarro”?). Até mesmo o rótulo de artista é questionado, numa recusa a qualquer tipo de “domesticação”. “Eu não sou artista. Artista faz arte, eu faço arma. Sou terrorista” (Mano Brown).

O tratamento de “mano” não é gratuito. Indica uma intenção de igualdade, um sentimento de fratria, um campo de identificações horizontais, em contraposição ao modo de identificação/dominação vertical, da massa em relação ao líder ou ao ídolo. As letras são apelos dramáticos ao semelhante, ao irmão: junte-se a nós, aumente nossa força. Fique esperto, fique consciente — não faça o que eles esperam de você, não seja o “negro limitado” (título de uma das músicas de Brown) que o sistema quer, não justifique o preconceito dos “racistas otários” (título de outra música). A força dos grupos de rap não vem de sua capacidade de excluir, de colocar-se acima da massa e produzir fascínio, inveja. Vem de seu poder de inclusão, da insistência na igualdade entre artistas e público, todos negros, todos de origem pobre, todos vítimas da mesma discriminação e da mesma escassez de oportunidades. Antes dos Racionais, muitos grupos se apresentaram no Anhangabaú neste 1º de maio. A impressão que se tinha é que eram todos protegidos dos manos mais velhos, que aceitaram tocar sob condição de abrir espaço para os menos conhecidos. Quando um começo de vaia recebeu a apresentação do Apocalypse 16, os meninos não se intimidaram. Com voz de criança, o líder desta banda cujos componentes não aparentam mais do que 14, 15 anos, chamou a atenção da platéia, conclamou à união, à “atitude consciente”, lembrou que eram todos manos; calou a vaia e terminou seu pequeno discurso com: “Apocalypse 16, armados de consciência!” — depois tocaram. Sem muito sucesso, mas tocaram.

Os rappers não querem excluir nenhum garoto ou garota que se pareça com eles.

“Eu sou apenas um rapaz latino-americano/ apoiado por mais de cinqüenta mil manos/ efeito colateral que o seu sistema fez”, canta Mano Brown, líder dos Racionais (“Capítulo 4, Versículo 3”.) À diferença das bandas de rock pesado, não oferecem a seu público o gozo masoquista de ser insultados por um pop-star milionário fantasiado de outsider. A designação “mano” faz sentido: eles procuram ampliar a grande fratria dos excluídos, fazendo da “consciência” a arma capaz de virar o jogo da marginalização. “Somos os pretos mais perigosos do país e vamos mudar muita coisa por aqui. Há pouco ainda não tínhamos consciência disso” (KL Jay).

A que perigo Jay se refere? A julgar por algumas declarações à imprensa e a maior parte das faixas dos CDs dos Racionais, há uma mudança de atitude, partindo dos rappers e pretendendo modificar a auto-imagem e o comportamento de todos os negros pobres do Brasil: é o fim da humildade, do sentimento de inferioridade que tanto agrada à elite da casa grande, acostumada a se beneficiar da mansidão — ou seja: do medo — de nossa “boa gente de cor”. “Quando vocês falam com um cara, o que esperam que aconteça depois?” (Raça) — Brown: “Levantar a cabeça, perder o medo e encarar. Se tomar um soco, devolve”. “E o que aconteceria (Raça) se todo negro da periferia agisse assim?” — “O Brasil ia ser um país mais justo”. As mensagens dos Racionais para o pessoal que ouve e compra seus CDs são as seguintes: “Gostaria que eles se valorizassem e gostassem de si mesmos” (Mano Brown); “Ideologia e autovalorização” (KL Jay); “Dignidade deve ser o seu lema” (Ice Blue); “Que escutem os Racionais, é lógico; E paz!”(Edy Rock) (entrevista para DJ Sound n.15, 1991).

Eles apelam para a consciência de cada um, para mudanças de atitude que só podem partir de escolhas individuais; mas a autovalorização e a dignidade de cada negro, de cada ouvinte do rap, depende da produção de um discurso onde o lugar do negro seja diferente do que a tradição brasileira indica. Daí a diferença entre os Racionais e outro jovem músico negro, outro Brown, este baiano. “Tem gente que fala que o rap de São Paulo é triste (Raça). O Carlinhos Brown falou que isto é não saber reinar sobre a miséria” — Mano Brown: “Na Bahia os caras têm que esconder a miséria que é pro turista vir, pra dar dinheiro pros caras lá, inclusive o Carlinhos Brown. São Paulo não é um ponto turístico. E esse negócio de reinar sobre a miséria, você não pode é aceitar a miséria. Mas acho válido o que ele faz pela sua comunidade.”

Acontece que os Racionais não estão interessados nem em reinar sobre a miséria (o que seria isto? uma forma mais sedutora de dominação?), nem em esconder a miséria para inglês ver. Seu público-alvo não é o turista — são os pretos pobres como eles. Não, eles não excluem seus iguais, nem se consideram superiores aos anônimos da periferia. Se eles excluem alguém, sou eu, é você, consumidor de classe média — “boy”, “burguês”, “perua”, “babaca”, “racista otário” — que curtem o som dos Racionais no toca-CD do carro importado “e se sente parte da bandidagem” (KL Jay). Ou seja: não estão vendendo uma fachada de malandragem para animar o tédio dos jovens de classe média.

Assim, fica difícil gostar deles não sendo um(a) deles. Mais difícil ainda falar deles. Eles não nos autorizam, não nos dão entrada. “Nós” estamos do outro lado. Do lado dos que têm tudo o que eles não têm. Do lado dos que eles invejam, quase declaradamente, e odeiam, declaradamente também. Mas, sobretudo, do lado dos que eles desprezam.

Como gostar desta música que não se permite alegria nenhuma, exaltação nenhuma? Como escutar estas letras intimidatórias, acusatórias, freqüentemente autoritárias, embaladas pelo ritmo que lembra um campo de trabalhos forçados ou a marcha dos detentos ao redor do pátio, que os garotos dançam de cabeça baixa, rosto quase escondido pelo capuz do moleton e os óculos escuros, curvados, como se tivessem ainda nos pés as correntes da escravidão? Por onde se produz a identificação através de um abismo de diferenças, que faz com que adolescentes ricos ouçam e (por que não?) entendam o que estão denunciando os Racionais, e uma mulher adulta de classe média receba a bofetada violenta do rap não como um insulto mas como um desabafo compartilhado, não como uma provocação pour épater, mas como uma denúncia que a compromete imediatamente com eles?

Se eles não me autorizam, vou ter que forçar a entrada. A identificação me facilita as coisas; aposto no espaço virtual, simbólico, e portanto inesgotável, da fratria e me passo para o lado dos manos, sem esquecer (nem poderia) a minha diferença — é de um outro lugar, do “meu” lugar, que escuto e posso falar dos Racionais MC’s. É porque eles falam diretamente não apenas à minha má consciência de classe média esquerdista, mas ao mal-estar que sinto por viver num país que reproduz diariamente, numa velocidade de linha de montagem industrial, a violenta exclusão de milhares de jovens e crianças que, apesar dos atuais discursos neoliberais que enfatizam a competência e o esforço individual, não encontram nenhuma oportunidade de sair da marginalização em que se encontram. Milhares de crianças e jovens cujas vidas correm o risco de ser apenas o “efeito colateral que o seu (meu!) sistema fez” (“Cap. 4, Versículo 3” — Mano Brown). É a capacidade de simbolizar a experiência de desamparo destes milhões de periféricos urbanos, de forçar a barra para que a cara deles seja definitivamente incluída no retrato atual do país (um retrato que ainda se pretende doce, gentil, miscigenado), é a capacidade de produzir uma fala significativa e nova sobre a exclusão, que faz dos Racionais MC’s o mais importante fenômeno musical de massas do Brasil dos anos 90.

A FRATRIA ÓRFÃ

60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já
sofreram violência policial. A cada 4 pessoas mortas pela polícia,
3 são negras. Nas universidades brasileiras, apenas
3% dos alunos são negros. A cada 4 horas, um jovem
negro morre violentamente em São Paulo.

Brown, Cap. 4, Versículo 3

Quem prestar atenção nas letras quilométricas do rap, provavelmente vai se sentir mal diante do tom com que são proferidos estes discursos. É um tom que se poderia chamar de autoritário, mistura de advertência e de acusação. A voz do cantor/narrador dirige-se diretamente ao ouvinte, ora supondo que seja outro mano — e então avisa, adverte, tenta “chamar à consciência” —, ora supondo que seja um inimigo —, e então, sem ambigüidades, acusa. Diante de uma voz assim tão ameaçadora, de um discurso que nos convida a “trocar uma idéia” mas não troca nada, não negocia nada de seu ponto de vista e de sua posição (posição sempre moral, mas não necessariamente moralista — veremos), cabe ao ouvinte indagar: mas como ele se autoriza? Quem ele pensa que é?

O Brasil é um país que se considera, tradicionalmente, órfão de pai. Não prezamos nossos antepassados portugueses; não respeitamos uma elite governante que não respeita nem a lei, nem a sociedade, nem a si mesma; não temos grandes heróis entre os fundadores da sociedade atual, capazes de fornecer símbolos para nossa auto-estima. Nossa passagem do “estado de natureza” (que é como, erradamente, simboliza-se as culturas indígenas) ao “estado de cultura” não se deu com a chegada de um grupo de puritanos trazendo o projeto de fundar uma comunidade religiosa, como no caso dos Estados Unidos, mas pelo despejo, nessas terras, de um bando de degredados da Coroa portuguesa. Não vieram para civilizar, mas para usufruir e principalmente, usurpar. Pelo menos é assim que se interpreta popularmente, com boa dose de ironia, a chegada dos portugueses ao Brasil.1 Fundou-se assim o mito da “pátria-mãe gentil” (que Caetano Veloso acertadamente chamou “mátria”, pedindo a seguir: “quero fratria”!) que tudo autoriza, tudo tolera, “tudo dá”.

É óbvio que o mito da abundância fácil produziu exploração, concentração de riquezas numa escala que nos coloca em primeiro lugar no ranking da vergonha mundial e miséria. É óbvio que a orfandade simbólica produziu não uma ausência de figuras paternas, mas um excesso de pais reais, abusados, arbitrários e brutais como o “pai da horda primitiva” do mito freudiano. O que falta à sociedade brasileira não é mais um painho mandão e pseudo protetor (vide ACM, Getúlio, Padre Cícero, etc.), mas uma fratria forte, que confie em si mesma, capaz de suplantar o poder do “pai da horda” e erigir um pai simbólico, na forma de uma lei justa, que contemple as necessidades de todos e não a voracidade de alguns.

Mas, numa sociedade acostumada ao paternalismo autoritário, também para as formações fraternas, em sua função criadora de significantes e de cidadania, coloca-se uma questão: como evitar que, do ato de coragem coletivo que elimina a antiga dominação do pai onipotente e institui um novo pacto civilizatório, produza-se um novo usurpador na figura do herói? Por outro lado, como manter, na ausência do herói concentracionário da fala coletiva (lembrar Roland Barthes: “o mito é uma fala roubada”), um discurso consistente que suporte e legitime as formações sociais produzidas na horizontalidade das relações democráticas? Como sustentar, na expressão de Jacques Rancière, a “letra órfã”, as novas formas de linguagem produzidas nas trocas horizontais e que tentam comunicar, de um semelhante a outro, experiências que façam sentido, que produzam valor, que sugiram um “programa mínimo” para uma ética da convivência?

As falas dos Racionais oscilam; passam do lugar comunitário dos manos ao lugar do herói exemplar, escorregando dali para o lugar da autoridade, falando em nome de um “pai” que sabe mais, que pode aconselhar, julgar, orientar. Por que “Racionais”? — perguntou o repórter da revista Raça. Edy Rock responde: “Vem de raciocínio, né? Um nome que tem a ver com as letras, que tem a ver com a gente. Você pensa pra falar.” (grifo nosso). Brown: “Naquela época o rap era muito bobo. Rap de enganar, se liga, mano? Não forçava a pensar”. Mais adiante, Brown (respondendo a uma questão de por que o rap é político): “Você já nasceu preto, descendente de escravo que sofreu, filho de escravo que sofreu, continua tomando ‘enquadro’ da polícia, continua convivendo com drogas, com tráfico, com alcoolismo, com todos os baratos que não foi a gente que trouxe pra cá. Foi o que colocaram pra gente. Então não é uma questão de escolha, é que nem o ar que você respira. Então o rap vai falar disso aí, porque a vida é assim.”

Vejamos um dos muitos trechos de letras que ilustram esta dupla inscrição do sujeito, que, por um lado, “pensa pra falar” — produz uma fala própria, destacada dos discursos do Outro —, mas, por outro lado, não poderia falar de outra coisa, “porque a vida é assim”, ou seja, não confunde sua autonomia pensante e crítica com uma arbitrariedade de referências, como o delírio de auto-suficiência típico da alienação subjetiva das sociedades de consumo. O distanciamento necessário para se pensar antes de falar vem de um mergulho na própria história (“somos descendentes de escravo que sofreu…”) e de uma aceitação ativa, não conformista, da própria condição, do pertencimento a um lugar e uma coletividade que, ao mesmo tempo que fortalece os enunciados, recorta um campo a partir de onde o sujeito pode falar, dificultando o escape na direção de fantasias de adesão a fórmulas imaginárias de aliciamento ou de consolação.

“Eu não sei se eles/ estão ou não autorizados/ a decidir o que é certo ou errado/ inocente ou culpado retrato falado/ não existe mais justiça ou estou enganado? Se eu fosse citar o nome de todos os que se foram/ o meu tempo não daria para falar mais…/ e eu vou lembrar que ficou por isso mesmo/ e então que segurança se tem em tal situação/ quantos terão que sofrer pra se tomar providência/ ou vão dar mais um tempo e assistir a seqüência/ e com certeza ignorar a procedência./ O sensacionalismo pra eles é o máximo/ acabar com delinqüentes eles acham ótimo/ desde que nenhum parente ou então é lógico/ seus próprios filhos sejam os próximos (…) Ei Brown, qual será a nossa atitude?/ A mudança estará em nossa consciência/ praticando nossos atos com coerência/ e a conseqüência será o fim do próprio medo/ pois quem gosta de nós somos nós mesmos/ tipo, porque ninguém cuidará de você/ não entre nessa à toa/ não dê motivo pra morrer/ honestidade nunca será demais/ sua moral não se ganha, se faz/ não somos donos da verdade/ por isso não mentimos/ sentimos a necessidade de uma melhoria/ nossa filosofia é sempre transmitir/ a realidade em si/ Racionais MC’s” (“Pânico na zona Sul”).

Nos últimos versos de “Júri Racional” o grupo condena um negro “otário” que “se passou para o outro lado”, recusando a identificação com os manos em troca da aceitação dos playboys.

“Eu quero é devolver nosso valor, que a outra raça tirou./ Esse é meu ponto de vista. Não sou racista, morou?/ E se avisaram sua mente, muitos de nossa gente/ mas você, infelizmente/ sequer demonstra interesse em se libertar./ Essa é a questão, autovalorização/esse é o título da nossa revolução./ Capítulo 1:/ O verdadeiro negro tem que ser capaz/ de remar contra a maré, contra qualquer sacrifício./ Mas no seu caso é difícil: você só pensa no próprio benefício./ Desde o início, me mostrou indícios/ que seus artifícios são vícios pouco originais/ artificiais, embranquiçados demais./ Ovelha branca da raça, traidor! Vendeu a alma ao inimigo, renegou sua cor” Refrão: “Mas nosso júri é racional, não falha/ por quê? não somos fãs de canalha! Conclusão: “Por unanimidade/ o júri deste tribunal declara a ação procedente/ e considera o réu culpado/ por ignorar a luta dos antepassados negros/ por menosprezar a cultura negra milenar/ por humilhar e ridicularizar os demais irmãos/ sendo instrumento voluntário do inimigo racista./ Caso encerrado”.

O viés autoritário desses versos, a nosso ver, tem pelo menos três determinantes. Primeiro, a certeza de que uma causa coletiva está em jogo. Trata-se de estancar o derramamento de sangue de várias gerações de negros, de barrar a discriminação sem recusar a marca originária. Nada de abaixar a cabeça, fazer o “preto de alma branca” que a elite sempre apreciou. Trata-se de produzir “melhoria” na vida da periferia. Mas para isto — aí vem a segunda razão — é necessário “transmitir a realidade em si”. Isto porque a maior ameaça não vem necessariamente da violência policial, nem da indiferença dos “boys”. Vem da mistificação produzida pelos apelos da publicidade, pela confusão entre consumidor e cidadão que se estabeleceu no Brasil neoliberal, que fazem com que o jovem da periferia esqueça sua própria cultura, desvalorize seus iguais e sua origem, fascinado pelos signos de poder ostentados pelo burguês. É aí, dizem as letras de Brown, que ele se perde:

“Você viu aquele mano na porta do bar/ ele mudou demais de uns tempos pra cá/ cercado de uma pá de tipo estranho/ que promete pra ele o mundo dos sonhos./ Ele está diferente, não é mais como antes/ agora anda armado a todo instante/ não precisa mais dos aliados/ negociantes influentes estão ao seu lado./ Sua mina apaixonada, linda e solidária/ perdeu a posição, ele agora tem várias… (…) Ascenção meteórica, contagem numérica/ farinha impura, o ponto que mais fatura/ um traficante de estilo, bem peculiar/ você viu aquele mano na porta do bar?” (…) “A lei da selva é assim, predatória/ clic, clec, BUM, preserve sua glória/ transformação radical, estilo de vida/ ontem sossegado, e tal/ hoje homicida/ ele diz que se garante e não tá nem aí/ usou e viciou a molecada daqui”… (“Mano na porta do bar” — Brown e Rock).

Aqui entra a terceira determinação, que justifica que o discurso predominantemente moral dos Racionais não se confunda com moralismo, já que não fala em nome de nenhum valor universal, além da preservação da própria vida. O tom autoritário das letras está avisando os manos: onde reina a “lei da selva” a pena de morte já está instalada, sem juízo prévio. Diante da vida sempre ameaçada, não se pode vacilar.

“Você está vendo o movimento na porta do bar?/ tem muita gente indo pra lá, o que será? /(…) Ouço um moleque dizer, mais um cuzão da lista/ dois fulanos numa moto, única pista/ eu vejo manchas no chão, eu vejo um homem ali/ é natural para mim, infelizmente./ A lei da selva é traiçoeira, surpresa/ hoje você é o predador, amanhã é a presa./ Já posso imaginar, vou confirmar/ me aproximei da multidão e obtive a resposta/ você viu aquele mano na porta do bar?/ ontem ele caiu com uma rajada nas costas”…

O terror, e não o poder, dá o tom exasperado a essas falas. O crime e a droga são uma tentação enorme, agravada ainda pela falta de alternativas. O rap não oferece, evidentemente, nenhuma saída material para a miséria; também não aposta na transgressão como via de auto-afirmação, como é comum entre os jovens de classe média (exemplo disso é o sucesso do grupo Planet Hemp). Muito menos no confronto direto com a principal fonte de ameaças contra a vida dos jovens, que a julgar pelo rap, é a própria polícia. Conformismo ou sabedoria? Provavelmente um pouco de cada um, se é que se pode considerar conformista o ceticismo dos manos quanto à possibilidade de enfrentamento com as instituições policiais no Brasil. O que o rap procura promover são algumas atitudes individuais fundamentadas numa referência coletiva. “Se eu fosse aquele cara que se humilha no sinal/ por menos de um real, minha chance era pouca/ mas se eu fosse aquele moleque de touca/ que engatilha e enfia o cano dentro de sua boca/ de quebrada, sem roupa, você e sua mina/ um, dois, nem me viu! já sumi na neblina./ Mas não! permaneço vivo, eu sigo a mística/ 27 anos contrariando a estatística (grifo nosso)./ Seu comercial de TV não me engana/ eu não preciso de status, nem fama./ Seu carro e sua grana já não me seduz/ e nem a sua puta de olhos azuis./ Eu sou apenas um rapaz latino-americano/apoiado por mais de cinqüenta mil manos (grifo nosso)/ efeito colateral que seu sistema produz…” (“Capítulo 4, Versículo 3”).

FUNÇÃO DO PAI, INVENÇÕES DOS MANOS

Os “cinqüenta mil manos” produzem um apoio — mas onde está um pai? Qual o significante capaz de abrigar uma lei, uma interdição ao gozo, quando a única compensação é o direito de continuar, “contrariando as estatísticas”, a lutar pela sobrevivência? Surpreendentemente, Mano Brown “usa” Deus para fazer esta função. Embora em nenhum momento fale em nome de igreja nenhuma, Deus é lembrado — mas para quê? “Irmão, o demônio fode tudo ao seu redor/ pelo rádio, jornal, revista e outdoor./ Te oferece dinheiro, conversa com calma/ contamina seu caráter, rouba sua alma/ depois te joga na merda sozinho,/ transforma um preto tipo A num neguinho./ Minha palavra alivia sua dor,/ ilumina minha alma, louvado seja o meu Senhor/ que não deixa o mano aqui desandar,/ ah, nem sentar o dedo em nenhum pilantra./ Mas que nenhum filho da puta ignore a minha lei./ (“Capítulo 4, Versículo 3”).

Deus é lembrado como referência que “não deixa o mano aqui desandar”, já que todas as outras referências (“rádio, jornal, revista e outdoor”) estão aí para “transformar um preto tipo A num neguinho”. Deus é lembrado como pai cujo desejo indica ao filho o que é ser um homem: um “preto tipo A”. Pela primeira vez, fez sentido para mim a frase “Jesus te ama”, que vejo freqüentemente colada nos vidros dos carros (embora naqueles casos, a meu ver, o sentido propagandístico, voltado ao aliciamento e à domesticação do outro, predomine sobre o sentido de auto-ajuda da utilização de Deus feita por Mano Brown); pois é preciso que o Outro me ame, para que eu possa me amar. É preciso que o Outro aponte, a partir do seu desejo (que não se pode conhecer, mas a cultura não cessa de produzir pistas para que se possa imaginar), um lugar de dignidade, para que o sujeito sinta-se digno de ocupar um lugar.

Não me atrevo a interpretar a religiosidade pesssoal, íntima, dos componentes do grupo. Mas sugiro que o Senhor que aparece em alguns destes raps (junto com os Orixás! ver “A fórmula mágica da paz” — Mano Brown: “agradeço a Deus e aos Orixás/ parei no meio do caminho e olhei para trás”), além de simbolizar a Lei, tem a função de conferir valor à vida, que para um mano comum “vale menos que o seu celular e o seu computador” (“Diário de um detento”, Brown e Jocenir, este último prisioneiro da casa de Detenção de São Paulo). No que depender da lei dos homens, estes jovens já estão excluídos, de fato, até do programa mínimo da Declaração dos Direitos do Homem. A alternativa simbólica moderna, imanente, a Deus, seria “a sociedade” — esta outra entidade abstrata, abrangente, que deveria simbolizar o interesse comum entre os homens, a instância que “quer” que você seja uma pessoa de bem, e em troca lhe oferece amparo, oportunidades e até algumas alternativas de prazer.

A sociedade — temos mais de 200 anos de Iluminismo nas costas! Mas será que o Iluminismo alguma vez falou para a ralé? — é uma instância superior a Deus do ponto de vista da emancipação dos homens, já que existe no reino deste mundo, organizada a partir — supõe-se — das necessidades e acordos estabelecidos entre semelhantes, e maleável na medida das transformações destas necessidades. Mas, do ponto de vista dos manos, a sociedade é hostil ou, no mínimo, indiferente. A sociedade “não se importa”, não vai alterar seu sistema de privilégios para incluir e contemplar os direitos deles. A regressão (do ponto de vista filosófico) a Deus faz sentido, num quadro de absurda injustiça social, considerando-se que a outra alternativa é a regressão à barbárie.

Vale lembrar — estarei sendo otimista, interpretando a partir de meu próprio desejo? — que o Deus de Brown não produz conformismo, esperança numa salvação mágica, desvalorização desta vida em nome de qualquer felicidade eterna. Deus está lá como referência simbólica, para “não deixar desandar” a vida desses moços nada comportados que falam numa revolução aqui na terra mesmo (“Deus está comigo, mas o revólver também me acompanha.” Ice Blue ao JT, s/d) e lembram sempre: “Quem gosta de nós somos nós mesmos” (“Pânico na Zona Sul”).

Mas que não se confunda este “gostar de nós” com uma afirmação de auto-suficiência, de um individualismo que só se sustenta (imaginariamente!) nos casos em que é possível se cumprir as condições impostas pela sociedade de consumo — a posse de bens cuja função é obturar as brechas da “fortaleza narcísica” do eu, a alienação própria da posição do “senhor”, que não lhe permite enxergar sua dependência quanto ao trabalho do “escravo”, e a disponibilidade do dinheiro como fetiche capaz de velar, para o sujeito, a consciência de seu desamparo. O mandato “goste de você” emitido pelos Racionais não poderia ser uma incitação ao individualismo mesmo se quisesse, já que estas condições estão muito longe de se cumprir dada a situação de permanente desamparo e falta no real, da vida na periferia — a não ser, é claro, em sua face bárbara, a do tráfico e consumo de drogas.

O traficante representa, nas letras de Brown e Edy Rock, a face bárbara do individualismo burguês: o cara que não está nem aí pra ninguém, que só defende o dele, que não tem escrúpulos em viciar a molecada, expor crianças ao perigo fazendo avião para eles. A outra face é a do otário, o “negro limitado” (título de música — Brown e Rock), a quem falta “postura”, “atitude”, que se ilude pensando que pode se destacar entre seus semelhantes recusando a raça, etc. “Não quero ser o mais certo/ e sim o mano esperto”, responde Brown ao mano “limitado”. Mais uma vez, uma postura moral se funda sobre a ameaça extrema do extermínio. O “mano esperto” é o que sabe que a opção da alienação — que na miséria da periferia precisa da droga para se sustentar — está sujeita à pena de morte, à lei da selva da polícia brasileira ou destes capitalistas selvagens que são os donos do tráfico: “A segunda opção é o caminho mais rápido/ e fácil, a morte percorre a mesma estrada, é/ inevitável./ Planejam nossa restrição, esse é o título/ da nossa revolução, segundo versículo/ leia, se forme, se atualize, decore/ antes que racistas otários fardados de cérebro atrofiado/ os seus miolos estourem e estará tudo acabado./ Cuidado!/ O Boletim de Ocorrência com seu nome em algum livro/ em qualquer arquivo, em qualquer distrito/ caso encerrado, nada mais que isso” (“Negro Limitado”).

A insignificância da vida, o vazio que nossa passagem pelo mundo dos vivos vai deixar depois de nossa morte — nós que apostamos sempre em marcar nossa presença deixando uma obra, uma palavra, uma lembrança imortal —, isto que a psicanálise aponta como a precariedade da condição humana e que um neurótico de classe média precisa trabalhar tanto para suportar, estão dados no dia-a-dia, na concretude da vida no “inferno periférico”(Edy Rock) de onde eles vêm. Portanto, a possibilidade do delírio narcísico-individualista está excluída, a não ser que se encare as conseqüências da opção pelo crime. “Não tava nem aí, nem levava nada a sério/ admirava os ladrão e os malandro mais velho/ mas se liga, olhe ao redor e diga/ o que melhorou da função, quem sobrou, sei lá/ muito velório rolou de lá pra cá/ qual a próxima mãe a chorar/ já demorou mas hoje eu posso compreender/ que malandragem de verdade é viver (grifo nosso)/ Agradeço a Deus e aos Orixás/ parei no meio do caminho e olhei para trás”… (“Fórmula Mágica da Paz”— Mano Brown).

A outra opção — a primeira, aliás, nos versos da música “Negro Limitado” — é o apelo ao outro como parceiro na construção de outras referências, na invenção de espaços simbólicos que possibilitem alguma independência em relação à sedução do circuito crime-consumismo-extermínio. Assim, o “goste de você” não soa como comando ao isolamento, a um fechar-se sobre si mesmo como resposta para todos os problemas. Ao contrário, a frase soa como apelo ao outro para que reconheça e valorize a semelhança entre eles.

O apelo ao reconhecimento é geralmente endereçado ao pai. O irmão, o semelhante, será destinatário deste apelo apenas quando o pai dá as costas? Pensamos que não; o reconhecimento paterno, fundamental para que o sujeito constitua uma certeza imaginária sobre “quem ele é” (para o desejo do pai), pode gerar também um aprisionamento narcísico. O sujeito só começa a se mover de sua posição no triângulo edípico, entre o olhar da mãe que seduz e o do pai que interdita e se oferece à identificação (e ao ideal), quando da entrada de um outro, um irmão (consangüíneo ou não), que abre para a alteridade, para a constatação, em espelho, de sua própria insignificância; mas também para a infinidade de possibilidades subjetivas que se abrem ante a descoberta da semelhança na diferença.

O outro funciona também como parceiro e cúmplice nas moções de transgressão em relação à interdição paterna — e então, de duas, uma. Ou a interdição não se sustenta mais — pense-se no caso de um pai perverso, por exemplo, capaz de manter uma posição autoritária, mas incapaz de simbolizar a lei e sujeitar-se a ela —, e neste caso os irmãos escapam à função paterna, fazendo sua própria versão do desejo do pai (a père-version a que se refere Lacan) e fundando, na delinqüência, uma gangue; ou a lei se mantém cumprindo sua função mínima de interditar o gozo (aos filhos, mas também ao pai!), mas a aliança fraterna possibilita que os sujeitos explorem e ampliem suas margens, relativizando o discurso da autoridade encarnado pela figura do pai real. É a constatação da semelhança na diferença que se dá com a entrada do “pequeno outro”, que permite ao sujeito separar a lei simbólica — diante da qual todos se equivalem — da figura real do pai encarnado naquele sujeito frágil, arbitrário, limitado e desejante que, mesmo quando se faça respeitar, é incapaz de apagar as diferenças significantes entre todos os filhos que levam o mesmo nome, o seu nome.

Fizemos esta longa passagem para dizer que a fratria não é convocada a operar só na falta do pai. Mas, quando ninguém nessa vida encarna o pai, quando é preciso apelar ao “Senhor” para imaginar que “alguém” (no eixo vertical da constituição subjetiva) me ama e me proíbe abusos, o reconhecimento entre irmãos se torna essencial. Até mesmo para sustentar a existência deste Deus, aliás, que se não fosse o significante de uma formação simbólica (portanto coletiva), seria o elemento central de um delírio psicótico. Além disso, na falta do reconhecimento de um pai, é a circulação libidinal entre os membros da fratria que produz um lugar de onde o sujeito se vê, visto pelo olhar do(s) outro(s). Prova disto é a grande importância que a criação de apelidos adquire nos grupos de adolescentes, por exemplo, como indicativos de um “segundo batismo”, a partir de outros campos identificatórios por onde os sujeitos possam se mover, ampliando as possibilidades estreitas fundadas sobre o traço unário da identificação ao ideal paterno. As identificações horizontais talvez permitam a passagem da ilusão de uma “identidade” (em que o sujeito se acredita idêntico a si mesmo, colado ao nome próprio dado pelo pai) à precariedade das identificações secundárias, a partir de outros lugares que o sujeito vai ocupando entre seus semelhantes, e que o apelido dado pela turma é capaz de revelar.

Quando os Racionais apelam a que os manos se identifiquem com a causa dos negros, estarão propondo um campo identificatório — com sua diversidade de manifestação singulares — ou a produção de uma identidade, com sua camisa-de-força subjetiva? “Gosto de Nelson Mandela, admiro Spike Lee,/ Zumbi, um grande herói, o maior daqui./ São importantes pra mim, mas você ri e dá as costas/ então acho que sei de que porra você gosta:/ se vestir como playboy, freqüentar danceterias/ agradar os vagabundos, ver novela todo dia,/ que merda!/ Se esse é seu ideal, é lamentável/ é bem provável que você se foda muito/ você se autodestrói e também quer nos incluir/ porém, não quero, não vou/ sou negro, não vou admitir!/ De que valem roupas caras, se não tem atitude?/ e o que vale a negritude, se não pô-la em prática?/ A principal tática, herança da nossa mãe África/ a única coisa que não puderam roubar!/ se soubessem o valor que a nossa raça tem/ tingiam a palma da mão pra ser escura também!” (“Júri racional” — Mano Brown). A questão é complicada. Uma vez, indagado sobre sua identificação ao judaísmo, Freud respondeu que se não existisse anti-semitismo, não faria questão nem de circuncidar os próprios filhos; mas diante do preconceito, não tinha outra opção senão a de se afirmar como judeu. Talvez se possa interpretar desta forma a convocação dos Racionais a uma “atitude” que sustente o amor-próprio entre os negros contra o sentimento de inferioridade produzido pela discriminação, o que passa pela afirmação da raça — este significante tão duvidoso, que produz discriminação ao mesmo tempo que indica a diferença.

Mas, quem sabe se possa mesmo ultrapassar esta limitação imaginária, este suporte físico — cor da pele — que produz simultaneamente a identificação e a discriminação racial? Quem sabe a multidão de admiradores dos grupos de rap não estará tentando dizer, como os estudantes parisienses em maio de 68, quando o governo tentou expulsar Daniel Cohn-Bendit sob a alegação de não ser um cidadão francês: “somos todos judeus alemães”!, e explodir a fronteira da raça pela via das identificações com as formações culturais: somos todos manos negros da periferia? Finalmente, está claro por que posso me autorizar a falar de, ou mais, a falar com, os manos dos Racionais. Pois, se a afirmação dos campos identificatórios (estou recusando propositalmente o termo identidade) não produzir laços sociais, afinidades eletivas que incluam o semelhante na diferença (tornando obsoletos os traços da raça, ou do sexo, por exemplo), há sempre de produzir isolamento entre os grupos e, num sentido ou no outro, discriminação. Que a auto-estima e a dignidade dos rapazes negros da periferia não dependam da aceitação por parte da elite branca, não significa que não produzam outros laços, outras formas de comunicação, inclusive com grupos mais ou menos marginais a esta própria elite. Neste caso, a identificação que começou pela cor da pele, ampliou-se para abrigar outros sentidos: exclusão, indignação, repúdio à violência e às injustiças, etc. Não somos “todos” pretos pobres da periferia, mas somos muitos mais do que eles supunham quando começaram a falar.

O CÉU CHEIO DE PIPAS

Caralho, que calor, que horas são/ posso ouvir a pivetada
gritando lá fora/ hoje acordei cedo pra ver/ sentir a brisa da
manhã e o sol nascer./ É época de pipa, o céu tá cheio/ quinze anos
atrás eu tava ali no meio./ Lembrei de quando era pequeno, eu e os
caras./ faz tempo — diz aí! — o tempo não pára…

Brown, Fórmula mágica da paz

Este trecho, quase no final de a “Fórmula mágica da paz”, é dos poucos — senão o único — em que o rap dos Racionais permite alguma sublimação dos sentidos, algum sentimento de elevação ou de alegria. Afinal, não é isto que o “ritmo e poesia” deveriam nos proporcionar?

Mas não. Nenhuma exaltação, nenhuma referência sublime é possível a uma arte que tem por principal função tentar simbolizar um cotidiano que se depara todo o tempo com o nó duro do real, no sentido que a psicanálise lacaniana atribui à palavra: o indizível, o que está além da capacidade de elaboração pela linguagem, o que nos escapa sempre.

O real domina a vida da periferia. É disto que falam os versos de Mano Brown e Edy Rock. São os últimos pensamentos de um homem que acaba de ser baleado, depois de seguir a carreira de um amigo no crime e ter sido acusado, pelo resto do bando, de entregá-lo à polícia.2 É o último dia na vida de um ex-presidiário que tenta se readaptar e criar o filho dignamente, mas acaba sendo acusado injustamente de um roubo nas redondezas e é executado pela polícia que invade sua casa na madrugada.3

É a história de um mano gente fina: “Você viu aquele mano na porta do bar? jogando bilhar, descontraído e pá/ cercado de uma pá de camaradas/ da área uma das pessoas mais consideradas/ ele não deixa brecha, não fode ninguém/ adianta vários lados sem olhar pra quem/ tem poucos bens, mais que nada/ um fusca 73 e uma mina apaixonada”… (“Mano na porta do bar” — Brown e Rock. Citada na p.7). Mas que começa a mudar, cercar-se de “tipos estranhos” que lhe prometem “o mundo dos sonhos”; o mano entrou no tráfico, matou a sangue-frio, “usou e viciou a molecada daqui” e tem o fim previsível: “Você tá vendo o movimento na porta do bar? / tem muita gente indo pra lá, o que será? (…) Você viu aquele mano na porta do bar? Ontem o cara caiu com uma rajada nas costas…”

O real domina a vida da periferia, em suas faces extremas: a droga e seu gozo mortífero; a violência do outro — freqüentemente a polícia — 4 com quem é impossível qualquer diálogo, qualquer negociação; a miséria, que segundo Hanna Arendt nos exclue da condição humana porque nos faz prisioneiros da necessidade; e acima de tudo, a morte. O real se manifesta na figura do destino inexorável: hoje a pivetada vai para a escola, empina pipas na rua, joga bola — logo mais estarão traficando, viciados no crack, a caminho da morte certa. As letras de Brown e Edy Rock falam de um verdadeiro extermínio dos jovens de periferia; como acontece com os relatos dos sobreviventes dos campos de concentração, não há lugar para o sublime aqui.

Também não há muito lugar para o prazer, a alegria, a brincadeira. A droga e o álcool oferecem uma possibilidade de gozo. Os sonhos de consumo, de apropriar-se dos fetiches burgueses, “moto nervosa/ roupa da moda/ mina da hora”, parecem oferecer um certo semblant de felicidade (assim como para os consumidores ricos, aliás), mas ficam inacessíveis a não ser que o cara enverede pelo crime. Não há beleza na paisagem da periferia. Nada de sombra e água fresca; nada de “área de lazer” — “Aqui não vejo nenhum centro poliesportivo/ pra molecada freqüentar nenhum incentivo/ o investimento no lazer é muito escasso/ o centro comunitário é um fracasso/ mas se quiser se destruir está no lugar certo/ tem bebida e cocaína sempre por perto”… (“Fim de semana no parque” — Brown e Rock). A inveja da vida dos ricos, dos bairros burgueses, dos privilégios, é inevitável: “Olha só aquele clube, que da hora/ olha aquela quadra, aquele campo, olha/ quanta gente/ tem sorveteria, cinema, piscina quente/ olha quanto boy, olha quanta mina/ afoga aquela vaca dentro da piscina/ tem corrida de kart, dá pra ver/ é igualzinho ao que eu vi ontem na TV./ Olha só aquele clube, que da hora/ olha o pretinho vendo tudo do lado de fora”…

Apesar desta inveja, os manos tentam afirmar sua diferença. A periferia que se valorize; os negros que tratem de bancar sua cultura, seus valores — este é o antídoto contra a alienação, contra a sedução promovida pela propaganda, pela tevê, arautos da sociedade de consumo. “Na periferia a alegria é igual/ é quase meio dia a euforia é geral/ é lá que moram meus irmãos, meus amigos/ e a maioria aqui se parece comigo./ E eu também sou o bam-bam-bam e o que manda/ o pessoal desde as 10 da manhã está no samba/ preste atenção no repique, atenção no acorde…”(“Fim de semana…”).

O real é a matéria bruta do dia-a-dia da periferia, é a matéria a ser simbolizada nas letras do rap. Uma tarefa que, como todo trabalho de simbolização, depende de um trabalho de criação de linguagem que só pode ser coletivo. É como se os poetas do rap fossem as caixas de ressonância, para o mundo, de uma língua que se reinventa diariamente para enfrentar o real da morte e da miséria; por isso eles não deixam a favela, não negam a origem. “Essa porra é um campo minado/ quantas vezes eu pensei em me jogar daqui/ mas aí, minha área é tudo o que eu tenho/ a minha vida é aqui e eu não consigo sair/ é muito fácil fugir, mas eu não vou/ não vou trair quem eu fui, quem eu sou” (“Fórmula mágica da paz” — Brown).

Este sentimento de pertinência e de dívida simbólica para com a origem e o semelhante lembram a diferença estabelecida por Alain Renault entre indivíduo e sujeito. O primeiro, tributário do ideal individualista de independência — centramento em si mesmo, negação da dívida, valorização narcísica do eu; o segundo, herdeiro do princípio humanista de autonomia — emancipação em relação a qualquer autoridade divina, transcendente, mas reconhecimento do laço social como fundamento do que é propriamente humano em cada um. Sujeitos autônomos, e não indivíduos independentes, os manos apelam a seus semelhantes para refazer o assassinato do pai abusivo, opressor, e recriar uma lei que proteja a todos do desamparo, que permita alguma alternativa ao real.

Enquanto isso, alguns raros momentos de contemplação são contrabandeados pelas brechas de uma vida que não oferece nada de graça. Acordar cedo, sentir a brisa, ver o sol nascer. O céu está cheio de pipas: como uma madeleine dos pobres, a visão dos quadradinhos coloridos lá no alto evoca a infância, o tempo perdido, a inocência que ficou para trás.

Mas as pipas são também a criação de um espaço virtual para a beleza, neste “campo minado” sem pontos de luz. As pipas obrigam o olhar a se manter acima da miséria, na direção de um céu que não é o céu da morte, de Deus e das almas; é o céu dos vivos. O céu que as crianças enfeitam com poucos recursos, cola, papel-de-seda e linha; céu da linguagem, céu humano. O céu cheio de pipas da periferia é uma interferência estética sobre a miséria e a recusa da desumanização que ela promove. Como a música, que só precisa das ondas do ar para existir e repercutir, como os versos quilométricos do rap, as pipas da molecada representam a ultrapassagem do reino da necessidade e do puro tempo imediato, sem passado e sem futuro, a que a necessidade nos reduz. No poema de Brown, o céu cheio de pipas surge como evocação da infância e projeção para um tempo futuro (“diz aí! — o tempo não pára”), um “fora daqui/aqui mesmo”, um real tornado manso pela força da cultura.

Mas é no tempo presente, saindo do barraco para sentir a brisa da manhã, que o poeta/narrador de “Fórmula mágica…” obtém sua rápida epifania, seu curto instante de contemplação. A beleza, como se sabe, não exige grandes pompas para exercer seu poder transtornador; razão pela qual, apesar das diferenças de escolaridade, existem tantos poetas na periferia quanto em qualquer outro lugar. Termino propondo uma ponte, tão arbitrária quanto uma associação livre pode ser, entre a poesia de Brown e a prosa de Jean Genet, seu primo distante, numa das muitas passagens do Diário de um ladrão em que este escritor surpreendente estabelece uma relação entre a criação estética e uma atitude moral:

“A emoção muito especial que, ao acaso, chamei de poética, deixava em minha alma uma espécie de rastro de intranqüilidade que ia se atenuando. O murmúrio de uma voz, de noite, e no mar o barulho de remos invisíveis, naquela situação estranha, me haviam transtornado. Conservei-me atento para agarrar esses instantes que, errantes, me pareciam estar à procura de um corpo, uma alma penada, de uma consciência que os anote e os experimente. Quando o encontram, param: o poeta esgota o mundo. Mas, se ele propõe outro, só pode ser da sua própria reflexão. Quando, na Santé, comecei a escrever, nunca foi com o intuito de reviver minhas emoções ou de comunicá-las, mas para que, da expressão delas imposta por elas, eu compusesse uma ordem (moral) desconhecida (de mim mesmo, em primeiro lugar)” (Genet, 1983:163).

É possível se concordar com Genet, quando ele afirma que a emoção estética produz uma ordem moral? O rap seria moral só por fazer “ritmo e poesia”, independente do conteúdo ideológico de sua pregação? Talvez sim, nos casos em que a emoção estética seja capaz de produzir uma fala nova e promover uma experiência, “desconhecida de mim mesmo em primeiro lugar”, isto é: revelar uma dimensão oculta do sujeito para ele mesmo e propor outro mundo (Genet), que “só pode ser o da sua própria reflexão”. Ética e estética podem coincidir quando esta última tiver o poder de abrir uma brecha na pedra dura do real, adiando temporariamente nosso confronto inevitável com a morte.

FÓRMULA MÁGICA DA PAZ
Mano Brown

Essa porra é um campo minado
Quantas vezes eu pensei em me jogar daqui
mas aí, minha área é tudo que eu tenho
a minha vida é aqui e eu não consigo sair,
é muito fácil fugir mas eu não vou, não vou trair quem eu fui e
quem eu sou.
Gosto de onde estou e de onde eu vim,
ensinamento da favela foi muito bom pra mim.
Cada lugar é um lugar, cada lugar uma lei,
cada lei uma razão e eu sempre respeitei.
Qualquer jurisdição, qualquer área,
Jardim Santo Eduardo, Grajaú, Missionária
Funxal, Pedreira e tal, Joaniza
eu tento adivinhar o que você mais precisa.
Levantar sua goma ou comprar uns panos
um advogado pra tirar seu mano.
No dia da visita você diz
que eu vou mandar cigarro pros malucos lá no X.
Então como eu estava dizendo, sangue bom,
isso não é sermão, ouve aí, eu tenho o dom.
Eu sei como é que é, é foda parceiro
é a maldade na cabeça o dia inteiro.
Nada de roupa, nada de carro, sem emprego
não tem Ibope, não tem rolê, sem dinheiro.
Sendo assim, sem chance, sem mulher,
você sabe muito bem o que ela quer,
encontre uma de caráter se você puder,
é embaçado ou não é,
ninguém é mais que ninguém, absolutamente,
aqui quem fala é mais um sobrevivente.
Eu era só um moleque, só pensava em dançar,
cabelo black e tênis All Star.
Na roda da função mó zoeira,
tomando vinho seco em volta da fogueira,
a noite toda e só contando história,
sobre o crime, sobre as tretas da escola.
Não tava nem aí, nem levava nada a sério
admirava os ladrão e os malandro mais velho,
mas se liga, olhe ao seu redor e me diga,
o que melhorou da função, quem sobrou, sei lá,
muito velório rolou de lá pra cá,
qual a próxima mãe que vai chorar,
já demorou muito mais hoje eu posso compreender
que malandragem de verdade é viver.
Agradeço a Deus e aos Orixás,
parei no meio do caminho e olhei prá trás.
Meus outros manos todos foram longe demais:
Cemitério São Luís aqui jaz.
Mas que merda meu oitão tá até a boca,
que vida louca, porque é que tem que ser assim,
ontem sonhei que um fulano se aproximou de mim,
agora eu quero ver, ladrão, pá.pá.pá,
fim; é sonho, é sonho, deixa quieto,
sexto sentido é um dom, eu tô esperto.
Morrer é um fator, mas conforme for,
tem no bolso uma agulha e mais cinco no tambor.
Vai, joga o jogo, vamos lá,
pá, caiu a 8 eu mato a par
eu não preciso muito pra me sentir capaz
de encontrar a Fórmula Mágica da Paz.
(Refrão) Eu vou procurar, sei que vou encontrar, eu vou
procurar, eu vou procurar,
você não bota uma fé mas eu sei que vou atrás
da minha Fórmula Mágica da Paz.

Caralho, que calor, que horas são,
posso ouvir a pivetada gritando lá fora.
Hoje acordei cedo pra ver,
sentir a brisa de manhã e o sol nascer.
É época de pipa, o céu tá cheio,
quinze anos atrás eu tava ali no meio,
lembrei de quando era pequeno,
eu e os cara; faz tempo, diz aí, o tempo não pára.
Hoje tá da hora o esquema prá sair,
mano não demora, mano chega aí,
cê ouviu os tiro? ouvi de monte, então:
diz que tem uma pá de sangue no campão.
Ih, mano, toda mão é sempre a mesma idéia junto,
treta, tiro, sangue, aí! muda de assunto!
traz a fita pra eu ouvir porque eu tô sem,
principalmente aquela lá do Jorge Ben.
Uma pá de mano preso chora a solidão,
uma pá de mano solto sem disposição,
penhorando por aí,
rádio, tênis, calça, acende num cachimbo, virou fumaça.
Não é por nada não, mas aí, nem me ligo a hora,
a minha liberdade eu curto bem melhor,
eu não estou nem aí pro que os outros fala,
quatro, cinco, seis pretos num Opala.
Pode vir, gambé, paga pau, tô na minha moral na maior,
sem goró, sem pacau, sem pó, eu tô ligeiro
eu tenho a minha regra, não sou pedreiro, não fumo pedra.
Um rolê com os aliados já me faz feliz,
respeito mútuo é a chave do que eu sempre quis,
me diz, procure a sua, a minha eu vou atrás, até mais, na
Fórmula Mágica da Paz.

Refrão: Eu vou procurar…etc.
Choro e correria num saguão de hospital,
dia das crianças, feriado indo pro final,
sangue e agonia entram pelo corredor;
– ele está vivo? pelo amor de Deus, doutor!
Quatro tiros do pescoço pra cima,
puta que pariu, a chance é mínima.
Aqui fora revolta e dor, lá dentro estado desesperador.
Eu percebi quem eu sou realmente,
quando ouvi o meu subconsciente:
aí, Mano Brown cuzão, cadê você,
seu mano tá morrendo, o que você vai fazer?
pode crê, eu me senti inútil, me senti pequeno,
mais um cuzão vingativo, vai vendo.
Puta desespero, não dá pra acreditar,
que pesadelo, eu quero acordar,
não dá, não deu, não daria de jeito nenhum,
o Delei era só mais um rapaz comum.
Daqui a poucos minutos, mais uma dona Maria de luto.
Na parede o sinal da cruz,
que porra é essa? que mundo é esse? onde está Jesus?
Mais uma vez um emissário
não incluiu o Capão Redondo em seu itinerário.
Corro, eu tô confuso, preciso pensar
me dá um tempo pra eu raciocinar,
eu já não sei distinguir quem tá errado, sei lá,
minha ideologia enfraqueceu,
preto, branco, polícia, ladrão ou eu,
quem é mais filha da puta eu não sei, aí fodeu,
fodeu, decepção nessas horas,
a depressão quer me pegar, vou sair fora.
Dois de novembro era Finados,
eu parei em frente ao São Luís do outro lado
e durante meia hora eu olhei um por um,
e o que todas as senhoras tinham em comum:
a roupa humilde, a pele escura,
o rosto abatido pela vida dura,
colocando flores sobre a sepultura,
podia ser minha mãe, que loucura.
Cada lugar uma lei, eu tô ligado,
no extremo sul da Zona Sul tá tudo errado,
aqui vale muito pouco a sua vida,
a nossa lei é falha é violenta é suicida,
se diz que me diz que, não se revela,
parada pro primeiro na lei da favela,
legal, assustador é quando você descobre
que tudo deu em nada e que só morre o pobre.
A gente vive se matando, irmão, por quê?
não me olhe assim, eu sou igual a você,
descanse o seu gatilho, descanse o seu gatilho
porque no trem da malandragem meu Rap é o trilho.

* Maria Rita Kehl é psicanalista, jornalista, poeta nas horas vagas e escritora. Autora de, entre outros: Sobre ética e psicanálise(Companhia das Letras, 2002),Ressentimento (Casa do psicólogo, 2004), Deslocamentos do feminino (Imago, 1998, 2a. edição em 2009), O tempo e o cão – atualidade das depressões(Boitempo, 2009).

NOTAS

Ao Luan, que me apresentou os Racionais MC’s.

1 Veja-se a respeito o artigo de Contardo Calligaris (1991).

2 “Tô ouvindo alguém me chamar” (Mano Brown) — “Tô ouvindo alguém gritar meu nome/ parece um mano meu, é voz de homem/ eu não consigo ver quem me chama/ é tipo a voz do Guima/ não, não, o Guima tá em cana/ Será? ouvi dizer que morreu, não sei. (…) Parceria forte aqui era nós dois./ Louco, louco, louco e como era/ cheirava pra caralho, vixe! sem miséria!/ todo ponta firme/ foi professor no crime/ também, maior sangue frio, não dava boi pra ninguém!/ Puta, aquele mano era foda!/ só moto nervosa/ só mina da hora/ só roupa da moda”…

3 “O homem na estrada”(Mano Brown) — “O homem na estrada recomeça sua vida/ sua finalidade, a sua liberdade, que foi perdida,/ subtraída/ e quer provar a si mesmo que realmente mudou/ que se recuperou, que quer viver em paz/ não olhar prá trás, dizer ao crime nunca mais/ pois sua infância não foi um mar de rosas não/ na Febem, lembranças dolorosas então (…) Equilibrado num barraco incômodo, mal acabado e sujo/ porém seu único lar, seu bem e seu refúgio/ cheiro horrível de esgoto no quintal/ por cima ou por baixo, se chover será fatal/ um pedaço do inferno aqui é onde estou…”

4 “Não confio na polícia, raça do caralho!/ se eles me acham baleado na calçada/ chutam minha cara e cospem em mim/ e eu sangraria até a morte, já era, um abraço/ por isso minha segurança eu mesmo faço” (“Homem na estrada” — Mano Brown).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARTHES, R. “O mito como linguagem roubada”. In: Mitologias. São Paulo, Difel, 1975, p.152-158.

CALLIGARIS, C. “Função paterna”. In: Hello Brasil. São Paulo, Escuta, 1991, p.59-81.

DOR, J. O pai e sua função em psicanálise. Rio de Janeiro, Zahar, 1985.

FREUD, S. “Totem y Tabu”. In: Obras Completas, v.II. Madri, Biblioteca Nueva, 1976.

GENET, J. Diário de um ladrão. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1983.

KEHL, M.R. A mínima diferença. Rio de Janeiro, Ed. Imago, 1996.

______. Processos primários (poemas). São Paulo, Estação Liberdade, 1996.

______. Deslocamentos do feminino. Rio de Janeiro, Ed. Imago, 1998.

RANCIÈRE, J. Políticas da escrita. Rio de Janeiro, Editora 34, 1999.

RENAULT, A. O indivíduo. São Paulo, Difel, 1998.

 

Tempo de leitura estimado: 80 minutos

Cultura e consciência: a “função” do Racionais MC`s | de Jorge Nascimento

1- INTRODUÇÃO

Ainda existem discordâncias quanto aos conceitos de raça e etnia. De uma maneira abrangente, poderíamos dizer que tais termos foram moldados a partir da nomeação do diferente. A dificuldade de apreensão da diferença, ou da diferença não-catalogada, das culturas ditas minoritárias, é uma constante em práticas conservadoras e/ou colonialistas. Segundo Lívio Sansone 2 , no Brasil: “Se a identidade étnica não é entendida como essencial, é preciso concebê-la como um processo, afetado pela história e pelas circunstâncias contemporâneas e tanto pela dinâmica local como pela global.”

E, hoje, as Culturas Oficiais e os próprios veículos de comunicação de massa ainda apresentam dificuldades ao se relacionarem com as culturas chamadas periféricas. A inserção das minorias independentes no sistema de representação simbólico-cultural na sociedade há de ser feita através da crítica e requer uma prática que privilegie o papel constitutivo da diferença na formação cultural de uma comunidade. Assim sendo, o papel da chamada cultura de massas como veículo das dispersas vozes sociais é um fator de importância fundamental em nossa forma de pensar os discursos dispersos na sociedade. Vejamos algumas ponderações do professor Muniz Sodré 3:

Da sociedade global das nações ricas excluíram-se os povos das sociedades colonizadas. O movimento de integração (…) é excludente em termos de economia e política. Mas também de cultura: ao perder a singularidade de sua diferenciação e reduzir-se às constantes repetitivas de sua experiência, a cultura perde a vitalidade do encontro com o outro e de regeneração de si mesma.

O processo de marginalização da cultura é um filtro ideológico já gasto, mas ainda muito eficiente, porém, os novos meios estão aí, as informações burlam sistemas de vigilância e guetização, circulam. Se temos um histórico elitista, excludente e colonialista, sabemos hoje das potencialidades das ditas culturas minoritárias e suas manifestações artísticas. Vamos citar dois exemplos datados de como a mídia oficial – no caso dois jornais de grande circulação – pode ser tendenciosa, ou melhor, preconceituosa. No primeiro texto, o autor se refere a um processo ambíguo de abrasileiramento ou latino-americanização como uma maneira de assunção da barbárie ibérica novomundista, ou seja, de distanciamento do paradigma saudável, através da contaminação das ondas caribenhas que vêm do norte do país. Há a enumeração das características negativas que parecem apoderar-se de um paradigma utópico mineiro-britânico, o que, inclusive, embranquece civilizadamente o nosso Machado de Assis. Vejamos:

Aos poucos o Brasil vai se tornando mais uma grande república do Caribe, outro México, uma inchada e paciente Jamaica ou Guatemala de dimensões continentais. Vem do Norte uma crescente e irresistível onda que vai lambendo o país, tomando de assalto sua cultura, sua política. (…) Estaria nascendo, enfim, um novo Brasil mais brasileiro, vale dizer, mais latrino-americano, cucaracho, caliente, orgulhoso e assumidamente negróide, cubano (…) A mineiridade, o humor quase britânico (civilizadíssimo) de Drummond e Machado já eram (…) Dois Brasis: um país, digamos, cone sul (…) e outro caribenho (…)4

O segundo fragmento trata de uma demonstração dos nossos governantes de seu equivocado populismo, quando deixam de tratar de um assunto moderno, civilizado, em troca de um apoio a uma digna representante da barbárie afro-brasileira. É interessante notar o aspecto evolucionista na abordagem da diferença. Partindo da máxima de que o Brasil é um país de contrastes, e utilizando um behaviorismo conservador, o articulista traça uma antítese entre uma tradição pré-civilizatória e a informatizada modernidade latente.

O Brasil é um país de contrastes. Enquanto diplomatas do Itamarati pretendiam explicar aos americanos do Departamento de Estado como funcionava a reserva de mercado de informática, políticos ilustres (…) reuniram-se num ato público impressionante: o enterro de Mãe Menininha do Gantois (…) era a mais famosa sacerdotisa de cultos espíritas de origem africana (…) A importância exagerada dada a uma sacerdotisa de cultos afro-brasileiros é a evidência mais chocante de que não basta ao Brasil ser catalogado como a oitava maior economia do mundo, se o País ainda está preso a hábitos culturais arraigadamente tribais (…) Enquanto o mundo lá fora desperta para o futuro, continuamos aqui presos a conceitos que datam de antes da existência da civilização5.

Sem entrar no mérito da discussão dos objetivos dos textos, já que temos fragmentos, é importante notar o nível de autodepreciação nos argumentos apresentados, e se digo que é um processo auto-referente é porque o autor põe em questão a ideia de homogeneização já tão fora de propósito nos anos 80, e mais ainda hoje no chamado mundo globalizado. Sete anos depois, o mesmo jornal é envolvido na discussão acerca de uma campanha publicitária sobre o lançamento do novo, bonito e moderno projeto gráfico de seu Caderno 2. No filme publicitário, um reconhecido ator branco faz elogios à beleza do periódico e compara com a forma gráfica do “outro” jornal e ergue uma folha com a foto de Tião Macalé, ator negro, sem dentes, de programas humorísticos (Nojento!!!). Sobre o veículo, os exemplos demonstram sua “linha editorial”, mas quanto ao pretenso discurso isento da propaganda, o texto mostra como ele vai lidar com esse tipo de ridicularização, ou estigmatização, de uma diferença que é a identidade de muitos. Segundo Mario Vítor Santos:

Sabe-se de algumas peças publicitárias (…) caracterizam-se por apelar aos preconceitos adormecidos, explorar com “habilidade” e sutileza seu potencial de despertar empatia (…) se o comercial do “Estadão” fosse veiculado nos EUA, por exemplo, o “Estadão”, a agência e até o ator teriam dificuldades políticas e comerciais. A tolerância da sociedade brasileira é tal que um jornal de expressão chega a julgar que um anúncio desse tipo possa contribuir para sua imagem.6

Acreditamos que, passados os anos, o discurso “politicamente correto” afeta os meios de comunicação. Pretendem-se cotas para negros nas universidades e nas novelas televisivas, políticas de reparação são discutidas, os negros inseridos no mercado, hoje, já são considerados uma fatia importante do bolo. Porém, na prática das relações sociais, parece-nos que o preconceito continua presente. Vejamos: os jovens atores (negros) do filme Cidade de Deus foram acusados de vândalos e expulsos de um shopping, em São Paulo, quando operavam uma máquina de banco. Sabemos o quanto a sociedade brasileira delegou aos negros somente representações artísticas tidas como aquém da produção de elevado valor simbólico. O compositor Carlos Cachaça, fundador da escola de samba Estação Primeira de Mangueira, dá seu testemunho.

Antigamente tinha a censura do Getúlio Vargas, o DIP, o Departamento de Imprensa e Propaganda. Eu fiz o samba campeão de 1933 e disse (…) que era muito temeroso sair com aquele samba que falava de Castro Alves, Olavo Bilac e Gonçalves Dias. A polícia não ia gostar (…) Naquela época era muita ousadia a negrada contar a história do Brasil em samba (…) era até motivo de ganhar porrada.7

Nos anos 40, a revista Cultura Política, elogiava as ações do governo, através do DIP. Os sambas associados à malandragem eram execrados, a linguagem, as gírias – a desvalorização do trabalho – eram tidas como exemplos de uma prática poética popular que ia contra as ideias trabalhistas de Getúlio Vargas. Nas rádios, maior meio de difusão da música popular na época, a prática da censura e a imposição de letras ideologicamente condizentes com a política eram procedimentos que tentavam inibir a índole popular que sempre, ironicamente, questiona as normas de condutas sociais impostas:

No Brasil, a Divisão de Rádio do Departamento de Imprensa Propaganda vem realizando, sem desfalecimentos, uma obra digna de encômios. Proíbe o lançamento das composições que, aproveitando a gíria corruptora da linguagem nacional, fazem o estúpido elogio da malandragem. E, não querendo limitar a sua ação ao campo da censura, distribui pelas estações dos Estados gravações de música fina, com noticiário de interesse coletivo.8

Se em outras partes, o racismo tem um histórico arianista que diz que as relações entre raças são condenáveis, baseando-se no axioma de que a mistura de raças é pior que os malefícios causados pelas sub-raças isoladas, no Brasil tal postura convive com a forma do racismo hierarquizado étnica e socialmente. Um samba, composto por Haroldo Barbosa e Janet de Almeida nos anos 40, brinca com os males causados pelo samba, que afligem tanto à Madame:

Madame diz que a raça não melhora
Que a vida piora por causa do samba
Madame diz que o samba tem pecado
Que o samba, coitado, devia acabar

Madame diz que o samba tem cachaça
Mistura de raça, mistura de cor
Madame diz que o samba democrata
É música barata sem nenhum valor

Vamos acabar com o samba
Madame não gosta que ninguém sambe
Vive dizendo que o samba é vexame
Pra quê discutir com Madame?

A ironia da letra é a resposta a uma visão eurocêntrica, aristocrática (a Madame), conservadora e excludente. A Madame não pode gostar da inserção no clima democrático do samba: mistura de raças e cor e, consequentemente, mistura social e, logicamente, execra a cachaça irmã. Assim, ironicamente se revela o movimento de troca e simbiose – perniciosos – contidas no espaço simbólico do samba. Nos últimos decênios do século passado, a partir da década de 70, uma reação à composição ideológica da cultura branca surge, no rastro dos movimentos afirmativos norte-americanos, e, principalmente, através do movimento black power. Em 1988, nos festejos em “comemoração” aos 100 anos da Lei Áurea, a escola de samba Unidos de Vila Isabel venceu o desfile com o enredo Kizomba: festa da raça, idealizado por Martinho da Vila. O samba-enredo, composto por Jonas, Rodolpho e Luiz Carlos da Vila, traz o afro-profano como força geradora e veículo da festa-mensagem, faz-se enquanto grito afirmativo e desejo que reivindica o fenômeno Palmares e a figura de Zumbi como propulsores da Liberdade, conceito acima das leis dos homens. A festa (Nossa kizomba) é nossa Constituição – era o ano da Assembleia Nacional Constituinte. Os valores ancestrais, forças de deuses são postos em cena, jogo de cintura, cultura, bravura, sublimação daquilo que poderia ser anedótico ou grotesco, segundo a tradição excludente brasileira.

E é como fruto da exclusão e logicamente como busca de espaço afirmativo que vai se constituindo o movimento Hip Hop brasileiro e o RAP, herdeiro dos cantos falados por jamaicanos e americanos dos bairros pobres, surge como um movimento estético popular que se desenvolveu, ganhou a mídia americana e, consequentemente, o mundo. Surge saído da precariedade, do pouco, utilizando velhos toca-discos que são transformados em produtores de ritmos sobre as quais epicamente constituem-se rimas, frases e histórias.
A grande mídia brasileira tardou a dar importância à produção de jovens negros, com suas “letras” gigantescas e simples, que tratavam de temas comuns à população das periferias das grandes cidades. Aí surgem os Racionais MC’s 9 que, mesmo sem tocar nas rádios populares, lotavam galpões e centros comunitários e que, em 1997, conseguem a proeza de vender em torno de 500.000 cópias (originais e piratas) de um disco independente. Segundo Regina Novaes, em seu artigo Hip-Hop: o que há de novo:

Há muito que investigar para saber como e por que a periferia tornou-se um produto altamente vendável. O depoimento da antropóloga Marta Jardim é instigante. Ela fala de um contexto em que os jovens das periferias das grandes cidades também se tornam criadores de moda e estilo incorporados por muitos jovens de classe média. Não são estilos que buscam diluir a condição social periférica com uma roupa insuspeita do centro. Ao contrário, acentuam os traços socialmente associados à marginalidade, fazendo da roupa uma espécie de denúncia, de caricatura da imagem associada à periferia. Certamente, a diferença, imagens e falas fora do lugar, têm valor comercial no mercado.

E é como fruto desse mundo/mercado, saída das frestas sociais, que surge a palavra poética de jovens de periferia que (por estilo) sorriem pouco, falam com a linguagem cifrada provinda de penitenciárias e favelas, e que reivindicam bens de consumo questionando a ética conservadora antiga do “mais vale ser mendigo que ladrão”. Porém, a própria relação com o “mercado” é questionada. A postura político/ideológica os faz esquivos, reticentes. As aparições em TVs são raríssimas, e há o episódio da saída de uma gravadora multinacional em que um integrante da banda foi questionado sobre a oferta em dinheiro oferecida e recusada: “Você sabe de quanto dinheiro estamos falando.” “Sei, mas não quero”. Sem falsos purismos, há algo de diferente, estética e eticamente falando10 . Acreditamos que o movimento Hip Hop e especificamente, o RAP brasileiro seriam exemplos daquilo que hoje se discute: a absorção de modelos culturais globais juntamente com a incorporação de temáticas e práticas locais. Assim sendo, alguns grupos, mesmo utilizando formas muito parecidas com as norte-americanas, essencialmente tratam de assuntos típicos de nossas sociedades e, além de tudo, incorporam posturas políticas próprias.

Porém, o que fundamentalmente nos interessa é como vozes periféricas, palavras proferidas por jovens negros conseguem, pouco a pouco, burlar uma das maiores formas de exclusão social, principalmente nas nossas sociedades urbanas constituídas de cidades partidas: o estigma 11. Sabemos que o termo estigma compõe-se numa duplicidade de sentidos potencializadores da exclusão daquele que é desacreditável e desacreditado. Porém, muitos Manos e Minas estão ligados, ouvem as mensagens provindas de vozes que lhes parecem familiares, em maior ou menor grau.
É ilustrativo um fato veiculado na mídia impressa quando das eleições para presidência, em que o então candidato à reeleição Fernando Henrique Cardoso teria comentado sobre uma foto do então adversário Lula junto aos integrantes do grupo de RAP: de que não entendia o porquê de uma foto de um candidato ao lado de “jovens com ares de marginais”12 . O sociólogo, que também se autoproclamou como “tendo um pé na cozinha”, ignorava que aqueles jovens com aparência de marginais eram, essencialmente, a voz de mais de “cem mil manos”, representavam a exteriorização dos anseios, dúvidas e críticas de uma parcela importante do eleitorado, ou melhor, do voto tão desejado
Como vozes de estigmatizados conseguem romper barreiras e redefinir sujeitos emissores de discursos que pulam muros que tão fortemente separam ideias e visões de mundo? Temos conhecimento das barreiras impostas a discursos que teimam em manter uma essencialidade utópica. Pois tal busca utópica e, para muitos, anacrônica, de pureza e a consciência de ser um produto rentável, porém independente, a princípio afastou esse tipo de produção dos meios de comunicação. Porém, a força das histórias cantadas pelos rapazes criou seu público, redefiniu parâmetros básicos da indústria cultural.

2 – A FALA
Uma apreciação completa das dimensões estéticas de um rap exigiria não só que o escutássemos, mas que também o dançássemos, sentindo seus ritmos em movimento. (Richard Shusterman)

Vamos agora pensar analiticamente o RAP dos Racionais MC`s através apenas da poesia feita palavra escrita, o que representa mais que um risco, pois parte-se já de um pressuposto parcial que, inegavelmente, transforma uma manifestação complexa em texto. O RAP é fundamentalmente uma forma de estetização do real na qual à polifonia discursiva somam-se efeitos sonoros, rítmicos e as vozes, com suas entonações e formas expressivas provindas da fala. A palavra cantada ou canto falado do RAP possui, por si só, efeitos significativos que expandem e realizam o texto através de outras possibilidades que revigoram performaticamente os vocábulos. O RAP é palimpsesto, há camadas significativas a serem descobertas e posteriormente assimiladas para que, num conjunto em que forças expressivas irradiam possibilidades em ondas de diversas camadas, os fragmentos de sonoridades múltiplas produzam algo em que as partes signifiquem o todo.

Outro problema pode ser pensado como um agravante: como interpretar textos orais que brotam de poetas pouco escolarizados? Com que ferramentas podemos trabalhar? Se o aparato conceitual acadêmico é moldado para pensar manifestações poéticas tradicionais, cultas, como podemos encarar a produção popular e massiva produzida por artistas periféricos de um país periférico como o Brasil? Tal problemática foi, de certa forma, abolida pelos chamados Estudos Culturais, mas o ranço acadêmico ainda perdura. Na pesquisa deparamos com um bom número de trabalhos que abordam o RAP, mas, comumente, por via das Ciências Sociais e, em menor, número, pela Análise do Discurso. Aqui pensamos, de forma transdisciplinar, abordar o RAP como fenômeno literário, mas também como produto da cultura de massa e como manifestação cultural na qual o estético e o político dialogam. O RAP trabalha a palavra e, dessa forma, já emerge com um potencial de possibilidades interpretativas e analíticas inerentes ao próprio ser do discurso, Borges já disse que não há palavras simples, pois todas postulam o Universo, cujo atributo maior é a complexidade. O RAP, além de “apresentar um desafio às condições artísticas”, apresenta-se como um desafio duplo, pois também desafia uma outra condição: é poesia que deseja ter uma participação ativa dentro dos espaços socioculturais. Como pondera Shusterman 13:

Devemos sentir o poder artístico e estético de uma obra impressionar nossos sentidos e nossa inteligência. (…) Mas a justificação teórica pode ajudar a criar este espaço e ampliar os limites da arte pela assimilação de formas antes rejeitadas na categoria honorável da arte. Uma estratégia incontestável para tal assimilação é mostrar que, apesar do evidente afastamento em relação às convenções estabelecidas, uma forma expressiva ainda atende aos critérios mais decisivos para garantir o reconhecimento de sua legitimidade artística ou estética.

Entendemos que pontes entre o RAP e a crítica literária e cultural é possível. Enquanto expressão poética performática, essa manifestação estética popular contemporânea é digna de um olhar atento no qual suas possibilidades expressivas e suas carências ou virtudes formais e estilísticas possam ser analisadas a partir de diversos campos teóricos do saber. A própria constituição da poética do RAP é baseada num ethos no qual o posicionamento discursivo cria personas ficcionais tão próximas dum real pleno da periculosidade que tanto amedronta. A caracterização de uma poética bélica, juntamente ao fato de se assumirem como “guerreiros da selva de pedra”, já nos traz uma forma de compreensão do real que só pode ser considerada como um processo de estetização do mesmo, ainda que, fundamentalmente, pautado pela experiência da violência. Insistir numa conexão arte e vida pode parecer um disparate se tomarmos como base as doutrinas de não-interferência de uma certa pós-modernidade. Mas o movimento Hip Hop se espalhou pelo mundo, provocou intervenções na música pop mundial e, fundamentalmente, em muitos casos, manteve aceso o facho, pois pensa em trabalhar consciências a partir da palavra e das atitudes. Diz o próprio Mano Brown: “Eu não sou artista. Artista faz arte, eu faço arma, sou terrorista.” A frase, radical, utópica, revela a ideia da posse de um poder que a palavra comporta que pode parecer risível aos espíritos pós-utópicos com seus ares blasé. Para Shusterman 14, ocorre uma aproximação entre a visão e prática do RAP e o pragmatismo:

A teoria da catarse, de Aristóteles, embora focada na piedade e no medo, apresenta a solução estética padrão: a arte é valiosa porque permite que emoções perigosas, contudo gratificantes, sejam desfrutadas, mas depois exorcizadas por expressá-las em mundo seguro, pois fictício, de mimese; um reino claramente distinto do real. Aristóteles, mesmo defendendo a arte, junta-se a Sócrates, Platão e à principal tradição da estética que opõe arte à vida real e procura mantê-la em um reino à parte. Pragmatismo e a estética do RAP não podem aceitar essa solução, uma vez que insistimos na profunda conexão da arte com a vida, seu uso como instrumento para a construção da ética e do estilo de vida de uma pessoa, um meio de engajamento político para aumentar a consciência e promover mais liberdade.

Luiz Tatit, situando historicamente o aparecimento do RAP no Brasil, após o rock dos anos 80, revela uma relação interessante entre forma e função social da música popular, vinculando o primeiro à orfandade que vitimou a juventude, traçando o caminho para a abertura de outras possibilidades dialógicas entre a música popular brasileira e a música pop norte-americana:

Enquanto isso, o espaço de rebeldia da juventude excluída, órfã do rock de “atitude”, começa a se recompor em torno de um canto que radicalmente eliminava as durações vocálicas próprias da face melódica da canção, anunciando assim um rompimento com as formas de expressar lamúrias e desventuras amorosas. Nem passional, portanto, nem propriamente temático, esse canto recuperava a entoação pura, não pelo breque do samba nacional, mas pelo break da cultura hip hop oriunda de Nova York. Na verdade, as articulações entrecortadas e ritmadas do rap brasileiro inauguravam uma outra via de aproximação com a sonoridade norte-americana: em vez da influência pop habitual, mantida desde os tempos de Frank Sinatra, agora na exposição crua de toda canção popular: a fala.15

Dessa forma, ou seja, privilegiando o que se fala no RAP, podemos então abordar essa manifestação poética popular que possui ancestrais antigos nas formulações expressivas do homem. Os narradores benjaminianos aqui vêm travestidos de experiências vivenciadas na luta urbana e inclusive afirmam: “Eu ontem era caça e hoje, pá! Sou o predador” (Otus 500). Sua fala é plena de autoridade. Aqui, então, será privilegiada a palavra oral, transformada em signo para que assim possamos, de alguma forma, apreendê-la, mesmo com todas as ressalvas expostas. Mas a palavra oralizada, potencializada tecnologicamente, aqui possui um “alcance social” e, mesmo privada de seus outros atributos perfomáticos, possui ainda, em nosso entendimento, uma força comunicativa que desvela interessantes revisões da realidade. Como observa Paul Zumthor: “habituados que somos, nos estudos literários, a só tratar do escrito, somos levados a retirar, da forma global da obra performatizada, o texto e nos concentrar nele.” Concordamos, mas note-se, porém, que aqui lidamos não com o escrito, mas com o transcrito, ou seja, trabalhamos com palavras que foram proferidas, e aqui utilizamos o verbo proferir de forma ampla, também em seus sentidos primários de “estender para diante, exercer publicamente”. Sabemos que tais palavras só se tornaram notação gráfica simbólica por obra da própria indústria e pelos meios de comunicação digitalizados. Diríamos que o RAP seria um estilo oral performático, mas trataremos da palavra que, diríamos, brotou letra falada, mediada agora pela escrita. Resumindo: vamos nos ater no texto e não na obra, já que, ainda segundo Zumthor, o texto “designa uma seqüência mais ou menos longa de enunciados, e a obra seria tudo que é poeticamente comunicado”.

Em uma entrevista recente16 , o escritor/cantor/compositor Chico Buarque expõe algumas considerações sobre o fenômeno do RAP no Brasil. Vejamos um trecho da entrevista:

Folha – Você parece estar descrevendo um esgotamento histórico…
Chico – A minha geração, que fez aquelas canções todas, com o tempo só aprimorou a qualidade da sua música. Mas o interesse hoje por isso parece pequeno. Por melhor que seja, por mais aperfeiçoada que seja, parece que não acrescenta grande coisa ao que já foi feito. E há quem sustente isso: como a ópera, a música lírica, foi um fenômeno do século 19, talvez a canção, tal como a conhecemos, seja um fenômeno do século 20. No Brasil, isso é nítido. Noel Rosa formatou essa música nos anos 30. Ela vigora até os anos 50 e aí vem a bossa nova, que remodela tudo – e pronto. Se você reparar, a própria bossa nova, o quanto é popular ainda hoje, travestida, disfarçada, transformada em drum’n’bass. Essa tendência de compilar e reciclar os antigos compositores de certa forma abafa o pessoal novo. Se as pessoas não querem ouvir as músicas novas dos velhos compositores, por que vão querer ouvir as músicas novas dos novos compositores? Quando você vê um fenômeno como o RAP, isso é de certa forma uma negação da canção tal como a conhecemos. Talvez seja o sinal mais evidente de que a canção já foi, passou. Estou dizendo tudo isso e pensando ao mesmo tempo que talvez seja uma certa defesa diante do desafio de continuar a compor. Tenho muitas dúvidas a respeito. Às vezes acordo com a tendência de acreditar nisso, outras não.

Folha – E o RAP? Sem abusar das relações mecânicas, parece que estamos diante de uma música que procura dar conta, ou que reage a uma nova configuração social, muito problemática.
Chico – Eu tenho pouco contato com o RAP. Na verdade, ouço muito pouca música. O acervo já está completo. Acho difícil que alguma coisa que eu venha a ouvir vá me levar por outro caminho. Já tenho meu caminho mais ou menos traçado. Agora, à distância, eu acompanho e acho esse fenômeno do RAP muito interessante. Não só o RAP em si, mas o significado da periferia se manifestando. Tem uma novidade aí. Isso por toda a parte, mas no Brasil, que eu conheço melhor, mesmo as velhas canções de reivindicação social, as marchinhas de Carnaval meio ingênuas, aquela história de “lata d’água na cabeça” etc. e tal, normalmente isso era feito por gente de classe média. O pessoal da periferia se manifestava quase sempre pelas escolas de samba, mas não havia essa temática social muito acentuada, essa quase violência nas letras e na forma que a gente vê no RAP. Esse pessoal junta uma multidão. Tem algo aí.

Não se sabe se o RAP vem definir uma nova tipologia artística que substituiria o que se conhece por canção popular no Brasil, o próprio Chico somente especula sobre a questão, mas é notório que, além das temáticas, o fenômeno apresenta uma nova configuração do que seriam letras e músicas das canções. Usando várias espécies de apropriações de bases sonoras, com suas “letras” quilométricas, e o estilo mais recitado que cantado – o canto falado –, o RAP revela-se como caminho de acessibilidade das populações periféricas das cidades para uma forma de expressão estética produzida a partir do próprio lugar. Utilizando-se da tecnologia mais facilmente disponibilizada atualmente, os pobres incultos estão dando um salto entre o seu mundo violento e problemático e o mundo das mídias. O tradicional “versar” soma-se às possibilidades de corte e colagem de sonoridades diversas – eletrônicas, além dos tradicionais vocais – e criação de formas expressivas próprias. A voz do rapper é a voz poética que traz um ethos discursivo marcante, que reitera o lugar do discurso e o faz sensível ao ouvinte decodificador, que “lê” as palavras proferidas numa ambientação na qual se mesclam elementos vários, criando um clima que o insere num mundo representado, que é a simulação de dados de uma realidade que lhe é familiar. Podemos tomar como exemplo o início do cd duplo Nada como um dia após o outro, a faixa introdutória Sou + você. As primeiras sonoridades são: uma freada de carro, rajadas de tiros, latidos de cães, mais tiros, som de uma motocicleta pondo-se em movimento, depois de uma pequena pausa silenciosa, um galo que canta, som de pássaros, ruído de um despertador digital, então iniciam-se acordes musicais e, finalmente, entra o chamamento, através da voz de Mano Brown, como se iniciassem as transmissões de um programa radiofônico:

Bença, Mãe
Estamos iniciando nossas transmissões,
essa é a sua rádio Exodus
Vamo acordá, vamo acordá, porque o sol não espera
demorô, vamo acordá, o tempo não cansa
ontem à noite você pediu, você pediu….
uma oportunidade, mais uma chance,
como Deus é bom, né não nego?
Olha aí, mais um dia todo seu
que céu azul loko hein?
Vamo acordá, vamo acordá
agora vem com a sua cara
sou mais você nessa guerra
a preguiça é inimiga da vitória
o fraco não tem espaço e o covarde morre sem tentar
Não vou te enganar, o bagulho tá doido
ninguém confia em ninguém, nem em você
os inimigos vêm de graça, é a selva de pedra
ela esmaga os humildes demais
você é do tamanho do seu sonho
faz o certo, faz a sua
vamo acordá, vamo acordá
cabeça erguida, olhar sincero
tá com medo de quê?
Nunca foi fácil, junta os seus pedaços e desce pra arena
mas lembre-se: aconteça o que aconteça
nada como um dia após o outro dia.

Neste RAP introdutório estão presentes, de certa forma, muitas das temáticas características presentes na poética dos Racionais: o caráter pedagógico, a religiosidade como apoio, a exortação ao enfrentamento positivo da realidade da selva de pedra que esmaga e inferioriza os “humildes demais”, o chamado para a atividade, para a luta. Essa poetização energética e bélica é uma tônica (ou um tônico), processo de ritualização suburbana (ou periférica) da realidade, do dia-a-dia. E aqui utilizamos a palavra exortação em mais de uma acepção, abrindo o campo semântico que passa por encorajamento, estímulo, incitação, mas também conselho, advertência, além da conotação jurídica do termo como “apelo que o juiz faz aos jurados para que tomem suas decisões de acordo com a própria consciência e com os ditames da justiça”. Pois dentro da guerra diária redefinida na poética dos Racionais é primordial a ideia de que a consciência (o quarto elemento da cultura Hip Hop) é um dado fundamental perante os tribunais humanos e divinos (Em outro RAP – Vida Loka II – está dito que “O promotor é só um homem, Deus é o juiz”). Assim sendo, na introdução desse livro sonoro que é o cd, há a convocação de um processo de passagem: a saída da passividade sonolenta para a entrada na atividade guerreira do enfrentamento das vicissitudes. Esse despertar para um novo dia – Vamo acordá –, para os ouvintes da Radio Exodus é como um despertar de atitudes que venham trazer a possibilidade desse utópico dia solar, depois da noite de tiros que podem retirar de circulação alguns guerreiros. Um dado então é primordial: a importância dos relógios, ou seja, da marcação do tempo, que não é mais o tempo vulgar, mas o tempo em que se deve acordar – lembro de um esboço de centro cultural da Cidade de Deus chamado “Acorda crioulo”. Segundo Shusterman17 , referindo-se ao RAP dos Estados Unidos:

Certamente as verdades e as realidades que o hip hop revela não são as verdades transcendentais e eternas da filosofia tradicional, mas antes fatos mutáveis do mundo material, histórico e social. Mesmo assim, a ênfase dada à mudança temporal e à natureza maleável do real (refletidas nas datações das músicas de rap e na expressão “saber que horas são”) representa uma posição metafísica respeitável, em concordância com o pragmatismo americano.

Ainda segundo o filósofo, “essa é a noção é o tema central do disco de Kool Moe Dee, ‘Do you know what time is it?’, e encontra uma expressão no vestuário de Flavor Flav, do Public Enemy: um imenso relógio que ele usa como colar”. Sabendo da admiração dos integrantes dos Racionais pelo grupo norte-americano, inclusive fizeram abertura do show do Public Enemy em São Paulo, podemos inferir que tal filiação temática faz parte de uma forma de persuasão para que os pretos e pobres saiam da passividade e comecem a agir, ou seja, é uma característica filosófica e política do RAP “socialmente engajado” ao qual o grupo paulista é filiado. Em outros RAPs a questão da hora, do despertar para tomar conhecimento dos fatos – independente da natureza ou do âmbito a que eles se referem – está presente direta ou indiretamente.
Retomando o discurso poético de Sou + você, notamos a presença de formas verbais – demorô, iniciando, (o sol não) espera, (o tempo não) cansa, (agora) vem – que nos trazem a percepção de ações que possuem marcada dimensão temporal, tais formas verbais juntam-se a marcadores temporais – noite, dia, agora, sol – e definem a temporalidade como intrinsecamente ligada à pragmática da atividade cotidiana, porém reafirmada como discurso metafórico que clama aos seus ouvintes que o agora é o tempo de mudanças e que o mais importante é a sobrevivência em meio à “selva triste”…
Segundo Amarino Oliveira de Queiroz :18

A tradição das narrativas orais e de outras formas poéticas da oralidade, flagradas através do trabalho desenvolvido por diversos escritores africanos contemporâneos vem se constituindo, em maior ou menor grau, num dado significativo que se alia ao processo de elaboração das literaturas escritas produzidas naquele continente. Tomando-se o exemplo de alguns países africanos de língua portuguesa, poderíamos sugerir que a retomada dessa oratura e, conseqüentemente, sua reelaboração através da palavra fixada pela escrita ou performatizada pela associação entre voz, gesto, movimento, encenação e traço, como ocorre no rap, tem consistido num importante elemento capaz de viabilizar não apenas uma mais completa assimilação dessas modalidades expressivas, mas também uma contribuição efetiva no sentido de afirmar positivamente as identidades culturais daqueles países. (…)

Segundo o que se depreende do artigo, o tradicional canto falado dos africanos é um dos pilares fundadores do RAP contemporâneo, num processo de expansão e de retorno à África, através da mundialização da cultura Hip Hop, processo circular de trocas e hibridismos constantes que veio redefinir parâmetros das chamadas culturas tradicionais, fundamentalmente por intermédio na cultura massiva:

Em meados dos anos 60 do século passado, alimentando-se do canto falado da África, o discurso sobre bases musicais eletrônicas emergidos nos bailes da periferia de Kingston, Jamaica, amplificou-se, reeditando o contador/cantador tradicional em outra versão: o toaster. Este, por sua vez, acabaria por desdobrar-se no DJ e no poeta rapper dentro da cultura Hip Hop que se aproximava. No início da década seguinte, o que hoje identificamos como rap daria um outro salto: a crise econômica no Caribe, desencadeadora de novo processo diaspórico, faria com que o ritmo & poesia dos toasters chegasse ao ambiente urbano da metrópole pós-industrial estadouniudense, ali se infiltrando e a partir dali de difundindo pelo mundo inteiro, até marcar presença na África contemporânea.19

Os antecedentes da oralidade na composição do que chamamos aqui de RAP é um fator preponderante na sua formação, as relações com práticas orais tradicionais são tidas como fundamentais na própria formação do gênero nos guetos20 norte-americanos, assim, provindo da Jamaica, o canto falado, já presente no reggae tradicional, migrou para os EUA e ambientou-se numa fusão com outros estilos da black music. Segundo Goetz :21

Nos Estados Unidos, o hip hop é freqüentemente mitologizado em termos de uma dureza quase sobrenatural sustentando o “gangsta RAP” ou um passado ancestral distante envolvendo o “Griot”, um contador de histórias das sociedades africanas. Os rappers, supostamente informados por essa tradição oral africana e vocalizando os ressentimentos de afro-americanos subalternos, são transformados em uma autêntica força política de uma diáspora africana. Além do mais, o hip-hop é ligado ao destino de afro-americanos que vivem em dificuldade no cinturão de ócio urbano abandonado por uma sociedade pós-industrial.

3 – RAP: Negro drama contemporâneo

Há toda uma discussão acerca das verdadeiras fontes tradicionais do RAP, porém, acreditamos que o que ocorre é um processo de absorção de tradições transformadas histórica e geograficamente, somadas às mutações possibilitadas pela tecnologia e por particularidades e especificidades culturais localizadas. Segundo Douglas Kellner :22

O rap também depende de virtuosismo tecnológico, e o DJ, que manipula os sons eletrônicos, é parte importante da equipe. Portanto trata-se de uma forma que combina tradições orais afro-americanas com sofisticadas modalidades tecnológicas de reprodução de som. Além disso, os sons do rap muitas vezes são transgressivos, infringindo as regras de correção e do discurso aceitável. Trata-se freqüentemente de sons desordenados, com ruídos de carros de polícia, helicópteros, tiros, vidros quebrando e agitação urbana. Os sons do rap são especialmente perturbadores quando tocados no último volume em espaços públicos, anunciando que o inimigo está dentro, que a sociedade está dividida e enfrenta conflitos explosivos.

Um exemplo desses procedimentos que fundem tradição e contemporaneidade foi dado claramente no filme Sou feia, mas tô na moda, um documentário de Denise Garcia que trata, fundamentalmente, do chamado funk sensual produzido por mulheres, principalmente na Cidade de Deus, Rio de Janeiro. Ainda que tratando na maior parte do tempo da produção das mulheres, no filme há mostras do funk mais antigo, dos anos 80 e 90. Em forma de improviso, numa roda, as pessoas batem palmas substituindo as percussões eletrônicas e “mandam” os seus versos. O que se observou foi que, longe da parafernália tecnológica de bases e samplers, e sem a presença do produtor, o que havia era um grupo de jovens – quase todos negros – celebrando triste, alegre ou ironicamente a vida, cantando sobre situações coletivas e individuais.
A partir dessa observação e de outras feitas em contato com funkeiros cariocas (e através do filme Fala, tu 23 ), notamos a proximidade com o samba de roda, o jongo, ou as rodas de partido alto, além de ecos cariocas dos próprios terreiros de umbanda e candomblé. Embora, para um especialista em música, essas observações possam parecer demasiadamente simples e reducionistas, o que se percebeu foi a revitalização de procedimentos que estão presentes em culturas tradicionais, principalmente de origem tribal e da qual as populações pobres em geral são depositárias. No Brasil, a formação circular de pessoas marcando o ritmo com as mãos, dançando, lamentando ou celebrando, é forma tradicional de congregação e essas raízes se fazem presentes como substrato cultural latente e como forma de manifestação estética, corporal e ideológica 24. Inclusive o RAP brasileiro está absorvendo cada vez mais sonoridades locais, principalmente do samba com suas diferentes cadências. Como já foi dito, aqui não se está fazendo um tratado sobre música, não se tem conhecimento técnico do assunto e nem é nossa intenção. Porém, sabendo-se do caráter extremamente coletivo e grupal dessas manifestações e da precariedade dos meios para produzi-las tecnologicamente, notamos como as raízes sonoras das comunidades tradicionais estão presentes, inclusive no próprio RAP. Finalizando essas considerações acerca das características mais ou menos essencialistas do RAP, podemos trazer para a discussão as palavras de Regina Novaes 25, sobre o movimento Hip Hop, no qual o RAP se insere:

Além do RAP (com seus DJs e MCs) e do break, há também o grafite26 , compondo a trilogia sagrada de um fenômeno social que é chamado pelos próprios participantes de movimento ou cultura hip-hop. Sabe-se que nos EUA há grupos violentos, financiados pelos traficantes. Mas há também os grupos de caráter pacífico que se propõem a substituir a violência das brigas entre grupos pela competição na música, na dança e no grafite. No Brasil os grupos que se tornaram conhecidos são contra as drogas e pregam a paz. Essa postura favorece conexões entre os grupos do movimento hip-hop com instâncias governamentais, organizações não-governamentais e igrejas. (…) O hip-hop não é, portanto, um movimento orgânico que produz grupos homogêneos. Ao contrário, existem várias correntes, linhas e ênfases que os diferenciam em países, cidades, bairros e estilos, já que a circulação de bens culturais não se faz nunca em uma direção unilateral. Assim sendo, a discussão sobre as origens nunca vai acabar. Essa é uma controvérsia constitutiva do hip-hop. Na verdade, ao reafirmar ou negar raízes do passado, os grupos estão se posicionando sobre questões do presente, estão fazendo escolhas e construindo alianças e identidades.

O fato dos negros, em suas diferentes etnias, servirem à colonização como força de trabalho escravo é um dado fundamental para a introdução em qualquer assunto relativo à exclusão e ao racismo no Brasil. Buscando a brevidade, trataremos de alguns pontos considerados como relevantes para o desenvolvimento das análises, ou seja, como se instauram o discurso e a prática racistas na sociedade brasileira.
A primeira observação refere-se ao fato de o tratamento mais violento dado aos negros escravizados haver ocorrido nas colônias. Porém, o dado da exclusão se fez sempre presente. Na sociedade ibérica renascentista, as práticas excludentes refletem o ideário de formação da identidade nacional. Segundo escritos datados dos começos do s. XVI, aos negros deveria ser assegurada: “una vida soportable y humana”. Mas, ainda assim, na Espanha, a exclusão legalizada teve de ser posta em prática; aos negros e gitanos eram reservados os piores ofícios. Como exemplo, temos o caso de um

moreno que puso una modestísima escuela de niños en la Laguna, fue requerido a que mostrase la carta de examen expedida por los veedores, y el susodicho responsable la no tenía, por cuya razón, el señor teniente Mayor le notificó cierre de la escuela y no enseñase muchachos, pena de que será castigado.27

O texto oficial nos dá informações interessantes: além da liberdade e cidadania relativas, revela o discurso humanista que intervém e impede a ação de um “trabalhador não-qualificado”, o que ajudaria na manutenção de excluídos não-escolarizados. Negros poderiam (e deveriam) ser cristãos, mas não poderiam ser sacerdotes; poderiam (como impedir?) aprender, mas não estavam legalmente aptos a ensinar. O fato da exclusão legal, em confronto com a exclusão não-oficial, será uma constante nas relações inter-raciais até nossos dias. Para os negros, então: “la única via de integración total eran las uniones sucesivas que iban emblanqueciendo su piel”. Na Sevilha renascentista começa a ser posta em prática a teoria da mulatização: extinção natural do negro. Há as etapas do processo, uma tabela é, cientificamente, elaborada. Tal tabela considera como “gente blanca” o filho da sexta geração de mulato que se unisse sempre com branco. Mas o caso se complica na América com as possibilidades combinatórias entre “puros” e “mestiços”. No Brasil, tal teoria de homogeneização sociorracial desfez-se na modernidade, ou melhor, revestiu-se da capa parda da pobreza, já citada por Caetano Veloso e redefinida nos versos dos Racionais: “mais um filho pardo, bastardo sem pai”. Dada a impossibilidade de absorção do negro nos modos de produção pós-escravagistas e da inserção de brancos pobres, surge uma outra fase de relacionamento inter-racial na América, que se agravou na América Católica.

Como observa Roberto da Matta, o racismo brasileiro vem de fontes eruditas que, por sua vez, provinham das teorias evolucionistas de s. XVII, e toma forma acabada no s. XIX:
como instrumento do imperialismo e como uma justificativa “natural” para a supremacia dos povos da Europa Ocidental sobre o resto do mundo (…) Gobineau colocava a tese de que a sociedade brasileira era inviável porque possuía uma enorme população mestiça, produto indesejado e híbrido do cruzamento de brancos, negros e índios.28

As teorias raciais e racistas sempre buscaram apoio nos discursos e práticas legais, religiosas 29e científicas. Porém, no Brasil, diferentemente dos EUA, a hierarquização legalista ibérica, à qual nos referimos, funciona como no esquema discutido por Foucault, em que há exclusão dentro do próprio sistema social. A particularidade do racismo brasileiro – que se nega internamente, anti-ideológico – nos traz a figura simbólica da mulatização, que se desfaz na exclusão. A ideologia social do racismo brasileiro se renova na crise contemporânea, clímax e acúmulo de mais uma: a impossibilidade de modernização neoliberal em confronto com representações sociais tênues, característica de uma sociedade heterogênea e centralizadora de riqueza.

Se fizemos essa pequena introdução histórica de uma evolução das teorias racistas que convivem com a formação do Brasil, desde a herança humanista ibérica e das modernas e científicas teorias modernas, foi para situar o ponto focal neste momento: a relação entre racismo e violência policial. Se a violência policial no Brasil é constante contra a população em geral, o fato se complica tratando-se de pobres e pretos. Casos de violência associada à prática do racismo são constantes. A imagem do negro/pobre estigmatizado como potencial risco à sociedade é parte integrante de uma visão que, se por um lado é apoiada pelas estatísticas, por outro sugere e redefine um caráter lombrosiano 30 que mascara a complexidade de um processo histórico de exclusão social do qual os negros e seus descendentes são as maiores vítimas. As formas de estigmatização dos negros evoluem e se adaptam às próprias revisões de parâmetros sociais que se redefinem historicamente, os discursos e visões evoluem, mas as práticas discriminatórias e racistas persistem como substrato latente dos indivíduos e da sociedade. Se o discurso biológico não dá conta, redefinem-se novas formas de manutenção dos processos estigmatizantes e excludentes, como afirma Stuart Hall :31

A diferença genética – o último refúgio das ideologias racistas – não pode ser usada para distinguir um povo do outro. A raça é uma categoria discursiva e não uma categoria biológica. Isto é, ela é a categoria organizadora daquelas formas de falar, daqueles sistemas de representação e práticas sociais (discursos) que utilizam um conjunto frouxo, freqüentemente pouco específico, de diferenças em termos de características físicas – cor da pele, textura do cabelo, características físicas e corporais, etc. – como marcas simbólicas, a fim de diferenciar socialmente um grupo de outro.

Mas, segundo Milton Santos : 32

No Brasil, onde a cidadania é, geralmente, mutilada, o caso dos negros é emblemático. Os interesses cristalizados, que produziram convicções escravocratas arraigadas, mantêm os estereótipos, que não ficam no limite do simbólico, incidindo sobre os demais aspectos das relações sociais.

Ora, sabemos que a violência da polícia brasileira é voltada, fundamentalmente, àqueles que historicamente têm de ser postos em seu devido lugar, e “lugar de preto é na senzala”, diz um velho dito irônico. Ou seja, a manutenção dos excluídos em seus nichos habitacionais – subnormais, confinados e promíscuos, segundo a definição do geógrafo – é a tônica de políticas e práticas sociais cristalizadas, normatizadas ou assumidas por poderes oficiais e paralelos. Assim, as periferias urbanas brasileiras apresentam diversas similitudes com os guetos norte-americanos, habitados por seres humanos que foram etiquetados como underclass, subcidadãos que sobrevivem em meio à patologização social e individual. Segundo Wacquant :33

Esse “grupo” pode ser supostamente identificado como por uma série de características intimamente interligadas – desordem: uma sexualidade fora de controle, famílias chefiadas por mulheres, altas taxas de absenteísmo e reprovação nas escolas, consumo e tráfico de drogas, além da propensão ao crime violento, “dependência” persistente em relação a auxílio público, desemprego endêmico (devido, de acordo com algumas versões, à rejeição ao trabalho e à recusa em ajustar-se às estruturas convencionais da sociedade), isolamento em áreas com alta densidade de famílias problemáticas etc.

Ou seja, parece que aqui vemos comprovada a máxima dos Racionais: “periferia é periferia em qualquer lugar”, pois as descrições acima, somadas à questão dos quatro elementos de guetização vistos anteriormente – preconceito, violência, segregação e discriminação – reforçam a conceituação do gueto urbano contemporâneo feito pelo sociólogo francês, com o agravante de que os benefícios sociais brasileiros para tal “categoria” é escasso e/ou insuficiente. Então, no Brasil, com o advento, instituição e crescimento do tráfico de drogas e a consequente guetização e assunção belicista desses territórios o fato se complica, pois assim há o respaldo para o tratamento dado aos habitantes desses locais marginalizados, estigmatizados, onde comumente a única relação com o poder público – salvo a presença de candidatos em campanha eleitoral – se dá através da presença de forças policiais que acabam “se integrando” de maneira conflitante e violenta ao dia-a-dia de tais comunidades.

Para concluir, partimos então em uma direção que pretende ser desembocadura para nossa argumentação, ou seja, como o movimento Hip Hop e, no caso específico, o RAP dos Racionais MC’s insere-se como forma contemporânea de questionamento das formas de exclusão e estigmatização presentes na sociedade brasileira contemporânea, fazendo parte de um processo de tomada de consciência racial radical: o RAP transforma pardos em negros. Segundo Munanga (2004) : 34

Os movimentos negros brasileiros contemporâneos, nascidos na década de 70, retomaram a bandeira de luta dos movimentos anteriores representados pela Frente Negra, substituindo o anti-racismo universalista pelo anti-racismo diferencialista. Sob a influência dos movimentos negros norte-americanos, eles tentam dar uma redefinição do negro e do conteúdo da negritude no sentido de incluir neles não apenas as pessoas fenotipicamente negras, mas sobretudo os mestiços e descendentes de negros, mesmo aqueles que a ideologia do branqueamento já teria roubado.

No Brasil, geralmente, o RAP é tido como uma forma essencialista de expressão artística, nos mesmos modelos, porém apresentando especificidades que o afastaram do RAP consumido hoje nos Estados Unidos. Se, no início, as bases, samplers, sonoridades eram típicas dos EUA, comumente adaptações de bases de hits da black music, houve também a procura de outras referências, sendo buscadas inferências de músicos e ritmos brasileiros, um caso típico de releitura, movimento de hibridização de fontes externas a partir da mescla com sonoridades e temáticas localizadas.35
Pensando especificamente no RAP dos Racionais, trata-se de um discurso que se pretende prática vital. Para os rapazes de São Paulo, o RAP não é jogo, é guerra, e os rappers, conscientes de sua missão, são considerados guerreiros (várias são as passagens em que as metáforas bélicas são utilizadas como confirmação de que existe uma batalha que está sendo perdida pelos Manos). Sobre o termo Mano, é interessante notar que é uma forma de aglutinação fraterna de sujeitos que estão agrupados em um sentido de autoconsciência de sua função: buscar os espaços de cidadania negados pelo “sistema”. Tal categoria seria uma apropriação e ampliação de um conceito que não já tinha razão de ser no Brasil: o brother “negro” dos EUA. O Mano será, então, uma categoria que ultrapassa fronteiras raciais ou étnicas, porém que é formada, em sua grande maioria, por descendentes de negros e de migrantes. Em uma das canções, Negro drama, com seu caráter autobiográfico, está dito sobre o nascimento do personagem: “Família brasileira/ dois contra o mundo/ mãe solteira/ de um promissor vagabundo (…) O bastardo/ mais um filho pardo/ sem pai”. Ao se assumir como “pardo”, denominação genérica dada aos seres híbridos comuns no Brasil, o discurso rejeita o embate negro x branco. Ao internalizar a nominação pejorativa daquilo que não é bem definido enquanto cor da pele, o discurso poético vai agir na direção que aponta para o Mano, ou seja, para um ser sem cor, fruto do processo de exclusão social. Embora conscientes de que a marca epidérmica é fundamental, no RAP dos Racionais o embate já migrou, o inimigo não é o sujeito branco – embora ele possa aparecer assim em diversas situações – mas sim o “sistema” branco capitalista que empurra para os guetos urbanos 36 toda uma série de pessoas que poderiam ser definidas, inclusive, como “os brancos quase pretos de tão pobres”, tão poeticamente pintados por Caetano Veloso e Gilberto Gil no Rap-lamento Haiti. Porém, nos RAPs dos Racionais, o fato de possuir a pele escura sempre é agravante ao problema da estigmatização e consequente exclusão e vitimação por parte dos organismos estatais de controle e dos tentáculos do poder – policiais, seguranças, gerentes de lojas etc. Sabemos, porém, que o tratamento dado ao negros é diferenciado, em todos os níveis de relações sociais. Após análises estatísticas, a professor Marcelo J. P. Paixão37,chegou à seguinte conclusão que, de certa forma, conclui nossas observações:

O que essa plêiade de indicadores demonstra é a existência de uma coerência entre dados no seguinte sentido: i) seja qual for o indicador escolhido para analisar as desigualdades raciais, em todos eles os negros encontram-se em uma situação pior que a dos brancos; ii) seja qual for a região do país, os indicadores sociais e demográficos dos negros são menos favoráveis que os indicadores dos brancos; iii) mesmo quando se desagregam estes dados por gênero, o que se vê é que os homens brancos estão em melhor situação que as mulheres brancas, que estão em condições mais favoráveis que os homens negros, que estão em uma situação menos grave que as mulheres negras. Sendo assim, verifica-se que os argumentos de que no Brasil ser branco ou ser negro é indiferente do ponto de vista da estratificação social não são verdadeiros, ou, antes, pode-se argumentar que o problema social brasileiro possui um evidente e nítido componente social.

O RAP dos Racionais, fundamentalmente nos últimos dois trabalhos (Sobrevivendo no Inferno, de 1997 e Nada como um dia após o outro, de 2003) passou dos resquícios de uma visão racial com ecos do movimento norte-americano, para uma visão local interessante, em que o fundamental é a interação do pobre favelado a um processo de conscientização e busca da cidadania. Segundo Maria Rita Kehl : 38

Alguma coisa mudou na atitude de Brown e seus manos depois de Sobrevivendo no inferno, onde eles demarcavam o território do rap excluindo os “filhinhos de papai” que se faziam passar por malandros escutando os Racionais MC`s no rádio do carro. Em 2002, os músicos mais populares do hip hop paulista entenderam que a potência de seu “rythm and poetry” ultrapassa barreira de classe e de raça. Ninguém consegue impedir que os jovens do Jardim América 39 se identifiquem com o discurso produzido pelos moradores do Jardim Ângela.

Porém, o sabemos, como nos fala Kebengele Munanga, que o processo de “branqueamento físico da sociedade brasileira” fracassou e os abismos sociais estigmatizantes perduram, se os playboys assumem roupas, gestos e falas, o que se pode fazer? Mas no próprio cd está incluída a sintomática Da ponte pra cá, um enfático e irônico grito de exclusão dos playboys.

quero sua irmã e seu relógio Teg Heuar
Um conto se pá, da pra catar
ir para a quebrada e gastar antes do galo cantar
Um triplex para a coroa e o que malandro quer
não só desfilar de Nike no pé
Ô, vem com a minha cara e o din-din do seu pai
mas no role com nóis “ce” não vai
Nóis aqui vocês lá, cada um no seu lugar.
Entendeu? Se a vida é assim, tem culpa eu

Brown continua afirmando que não tem nada pra dizer para “os classe média”. Enquanto produto da indústria cultural, o RAP pode ser consumido por quem quer que seja, mas sabemos que o público-alvo, termo que aqui cai muito bem, continua sendo os moradores das periferias das cidades brasileiras. Como elemento integrante da cultura Hip Hop, o RAP dos Racionais é estetização e também parte de um ideário político que se conjuga com uma série de orientações que reivindicam direitos e melhorias estruturais e culturais para as comunidades pobres. A maioria dos shows ocorre ainda em espaços que não são os destinados aos pop stars. As aparições na TV escassearam ainda mais, porém as redes de comunicação se ampliam e a fala poética que reverbera os anseios de pretos, pobres, favelados se consolida como uma poética popular que busca, através da palavra, a conscientização daqueles que historicamente estiveram sempre à margem dos mínimos direitos do cidadão.

Vamos agora nos ater mais detalhadamente a um dos RAPs mais famosos dos Racionais, Negro Drama, que estruturalmente está dividido em duas partes principais, nas quais duas vozes poéticas e performáticas falam da dificuldade de sobrevivência de quem vive entre o sucesso e a lama ou entre a lama e a fama. Há variações do verso-mote, Negro drama, que oscila para negro trama, ou sente o drama, algumas aliterações que enriquecem a sonoridade das rimas. Na letra constam três gêneros narrativos tradicionais que são negados: “Não é conto, nem fábula, lenda ou mito”. E aqui transparece uma característica que foi sendo depurada na poética dos Racionais. Como afirmou Mano Brown, no início da carreira as letras produzidas usavam em maior quantidade de versos, um vocabulário mais elaborado, técnico, poderíamos dizer, mas que, segundo o próprio rapper, parecia linguagem de sociólogo. Em Sobrevivendo no inferno (1997), a oralidade – com gírias, onomatopéias, referência da linguagem publicitária, entre outras formas – foi explorada com efeitos surpreendentemente expressivos, mas também havia a introdução de referências que ultrapassam o léxico do dia-a-dia e do gírio (como Cidadão Kane). No disco duplo de 2003, Nada como um dia após o outro dia, as referências da cultura letrada aparecem com uma frequência maior, como as citadas acima (conto, fábula, lenda e mito). O enunciador poético se declara um Poeta entre o tempo e a memória, verso que nos remete ao caráter ambíguo da genética do próprio RAP que possui em sua formação heranças arcaicas e que se move dentro da temporalidade histórica do agora. Em Estilo cachorro, irônica saga de um rolê noturno, o personagem é “pontual como o Big Ben, quatro anos assim, nem Shakespeare imaginaria um fim”, ou seja, o “clássico” junta-se ao popular e ao trivial. Se pensarmos no caráter pedagógico do RAP dos Racionais, podemos cogitar que tal presença de referências da cultura “oficial” pode servir como forma de levar os ouvintes a buscarem o significado e produtividade de tais referentes na mensagem poética do RAP.

Em Negro Drama nota-se a afirmação discursiva de que raízes culturais, raciais e ideológicas seriam mais fortes que o poder dado aos ídolos pops, posição contrária à aculturação sofrida, por exemplo, pela personagem descrita no RAP Qual mentira vou acreditar que se transforma de uma linda negra passista em uma vaca nazista que condena o tipo e as atitudes de pessoas de sua mesma origem.

O tema da pressão sofrida pela ambiguidade de ser um Mano e um artista reconhecido também se faz presente nos últimos dois trabalhos dos Racionais, tal fato relaciona-se com todas as implicações relativas às relações de poder e a “patrulha ideológica” sofrida, além da também ambígua relação com o tráfico e o consumo de drogas, pois as letras do grupo são firmes na crítica à alienação em todas as suas formas.

Em Negro Drama, a introdução, falada, nos introduz ao sentido narrativo da história pessoal, ou seja, reivindica o direito à palavra que possui a verdade, pois é um discurso poético (ficcional) autenticado pelo seu emissor. Não se trata de apenas contar mais uma história, o caso agora é dar um depoimento vital, de um testemunho que dota, poeticamente, o discurso da verticalização necessária de uma história vivenciada, daí o caráter exemplar épico ser trazido através da tecnologia: o cd traz a voz do gueto para o mundo digital: tradição e modernidade que criam possibilidades outras de revisão dos paradigmas da cultura pop.

Na segunda parte do RAP, inicia-se a outra parte da narrativa poética de uma história que não será contada por nenhum Forest Gump, pois nesse RAP busca-se a verdade que “daria um filme”, então a reminiscência autobiográfica apresenta o personagem e a cena: “Uma negra, uma criança nos braços, solitária na floresta de concreto e aço”. Então evidencia-se a negativa anterior, ou seja, os versos dizem a verdade, não estamos lidando, ouvintes/leitores, com conto, fábula, lenda ou mito. Nos versos posteriores, contundentes e perspicazes, está dito o seguinte:

Eu sou problema de montão
de carnaval a carnaval
Eu vim da selva, sou leão
sou demais pro seu quintal
Problema com escola eu tenho mil, mil fita
Inacreditável, mas seu filho me imita
No meio de vocês ele é o mais esperto,
Ginga e fala gíria. Gíria não, dialeto.

Esses versos, de certa forma, propulsionaram nossa pesquisa, e neles se concentra um tipo de enfrentamento que estimulou, por exemplo, as observações de Maria Rita Kehl sobre o possível trânsito entre a mensagem do Capão e o mundo dos playboys. Porém, acreditamos que a ironia dessa pequena “vitória” contra o Senhor de engenho funciona, através da reversibilidade irônica, como afirmação da ética e da estética da favela, exemplificada na auto-valorização dos jovens e da quebrada (o bairro, a favela) que ocorre, por exemplo, em Da ponte pra cá. Finalizando, há, sabemos, uma discussão que perpassa o tipo de pesquisa que aqui se apresenta, ou seja, sobre a qualidade literária do corpus em questão, debate que evidencia valorações sobre cultura e arte preferenciais. E aqui apresentamos algo que é descrito por um de seus autores como som de preto, sem massagem. Estamos lidando com uma prática discursiva, performática, estilística, ou seja, poética, produzida por quem sempre esteve abaixo da linha indelével que separa e define padrões culturais e delimita espaços territoriais e simbólicos, ou seja, lidamos com ética e estética, formas estas conjugadas em algo distinto. Mas, talvez, para quem o RAP se dirige preferencialmente, ele seja algo muito maior, seja prática política, ponte entre Arte e Vida, ou simplesmente alento vital, ou seja, Ritmo e Poesia.
APÊNDICES

I – Da ponte pra cá

A lua cheia clareia as ruas do capão,
Acima de nós só Deus humilde né não? né não?
Saúde: plin, mulher e muito som,
Vinho branco para todos um advogado bom
Cof,cof, ah, esse frio tá de fuder,
Terça feira é ruim de role, vou fazer o que
Nunca mudou nem nunca mudará
O cheiro de fogueira vai, perfumando o ar
Mesmo céu, mesmo cep no lado sul do mapa,
Sempre ouvindo um rap para alegrar a rapa
Nas ruas da sul eles me chamam brown,
Maldito,vagabundo, mente criminal
O que toma uma táça de champagne também curte
Desbaratinado, tubaína, tutti-frutti.
Fanático, melodramático, bom-vivant,
Depósito de mágoa quem esta certo é o saddam, ham…
Playboy bom é chinês, australiano,
Fala feio e mora longe não me chama de mano
“- e aí brother, hey, uhuuul, ” pau no seu c…aaaíí,
Três vezes seu sofredor odeio todos vocês
Vem de artes marciais que eu vou de sig sauer,
Quero sua irmã e seu relógio tag heuer
Um conto se pá, dá pra catar,
Ir para a quebrada e gastar antes do galo cantar.
Um triplex para a coroa é o que malandro quer,
Não só desfilar de nike no pé
Ô vem com a minha cara e o din-din do seu pai,
Mais no rolé com nóis ?ce? não vai
Nóis aqui, vocês lá, cada um no seu lugar.
Entendeu? se a vida é assim, tem culpa eu?
Se é o crime ou o creme, se não deves não teme,
As perversa se ouriça e os inimigo treme
E a neblina cobre a estrada de itapecirica…
Sai, Deus é mais, vai morrer para lá zica

Não adianta querer, tem que ser tem que pá,
O mundo é diferente da ponte pra cá
Não adianta querer ser tem que ter para trocar,
O mundo é diferente da ponte pra cá

Outra vez nóis aqui vai vendo,
Lavando o ódio embaixo do sereno
Cada um no seu castelo, cada um na sua função,
Tudo junto, cada qual na sua solidão
Hei, mulher é mato a Mary jane impera,
Dilui a rádio e solta na atmosfera
Faz da quebrada o equilíbrio ecológico,
Distingüe o judas só no psicológico
Hó, filosofia de fumaça analise,
E cada favelado é um universo em crise
Quem não quer brilhar, quem não? mostra quem,
Ninguém quer ser coadjuvante de ninguém
Quantos caras bom, no auge se afundaram
Por fama
E tá tirando dez de havaiana
E quem não quer chegar de honda preto em banco de
couro,
E ter a caminhada escrita em letras de ouro
A mulher mais linda sensual e atraente,
A pele cor da noite, lisa e reluzente
Andar com quem é mais leal e verdadeiro,
Na vida ou na morte o mais nobre guerreiro
O riso da criança mais triste e carente,
Ouro, diamante, relógio e corrente
Vem minha coroa onde eu sempre quis pôr,
De turbante, chofer uma madame nagô.
Sofrer pra que mais se o mundo jaz do maligno,
Morrer como homem e ter um velório digno
Eu nunca tive bicicleta ou video-game,
Agora eu quero o mundo igual cidadão Kane,
Da ponte pra cá antes de tudo é uma escola,
Minha meta é dez, nove e meio nem rola
Meio ponto a ver, hum e morre um,
Meio certo não existe truta o ditado é comum
Ser humano perfeito, não tem mesmo não,
Procurada viva ou morta a perfeição
Errare humanus est, grego ou troiano,
Latim, tanto faz pra mim: fi de baiano
Mas se tiver calor, quentão no verão,
Ce quer da um rolé no capão daquele jeito,
Mas perde a linha fácil, veste a carapuça,
Esquece estes defeitos no seu jaco de camurça
Jardim Rosana, Três estrela e imbé,
Santa Tereza, valo velho e dom José.
Parque chácara, lídia, vaz,
Fundão muita treta com a Vinícius de Moraes

Refrão

Mas não leve a mal tru, ce não entendeu,
Cada um na sua função, o crime é crime e eu sou eu.
Antes de tudo eu quero dizer, pra ser sincero
Que eu não pago de quebrada mula ou banca forte.
Eu represento a sul, conheço loco na norte,
No 15 olha o que fala, perus, chicote estrala
Ridículo é ver os malandrão vândalo,
Batendo no peito feio e fazendo escândalo
Deixa ele engordar, deixa se criar bem,
Vai fundo, é com nóis, super star, superman, vai…
Palmas para eles digam hey, digam how,
Novo personagem pro Chico Anísio show
Mas firmão né, se deus quer sem problemas,
Vermes e leões no mesmo ecossistema
Ce é cego doidão? então baixa o farol!
Hei hou, se qué o quê com quem diow?
Tá marcando, não dá pra ver quem é contra a luz
Um pé de porco ou inimigo que vem de capuz
Hey truta eu tô louco, eu tô vendo miragem,
Um bradesco bem em frente a favela é viagem
De classe “a” da “tam” tomando jb
Ou viajar de blazer pró 92 dp
Viajar de GTI quebra a banca,
Só não pode viajar com os mão branca
Senhor guarda meus irmão nesse horizonte cinzento,
Nesse capão redondo, frio sem sentimento
Os manos é sofrido e fuma um sem dar goela,
É o estilo favela e o respeito por ela
Os moleque tem instinto e ninguém amarela.
Os coxinha cresce o zóio na função e gela
Qual mentira vou acreditar
São apenas dez e meia, tem a noite inteira
Dormir é embaçado, numa sexta-feira
TV é uma merda, prefiro ver a lua
Preto, Edy Rock, Star, a caminho da rua
hã… sei lá vou pruma festa, se pam
se os cara não colar, volto às três da manhã
Tô devagar, tô a cinqüenta por hora,
ouvindo funk do bom, minha trilha sonora.
A polícia cresce o olho, eu quero que se foda
Zona Norte, a bandidagem curte a noite toda.
Eu me formei suspeito profissional,
bacharel pós-graduado em “tomar geral”.
Eu tenho um manual com os lugares, horários,
de como dar perdido… ai, caralho..

Prefixo da placa é MY
sentido Jaçanã, Jardim Ebron
Quem é preto como eu já tá ligado qual é,
Nota Fiscal, RG,polícia no pé
escuta aqui: o primo do cunhado do meu genro é mestiço,
racismo não existe, comigo não tem disso,
é pra sua segurança
Falou, falou, deixa pra lá.
Vou escolher em qual mentira vou acreditar.
Tem que saber mentir, tem que saber lidar
em qual mentira vou acreditar?

A noite é assim mesmo, então… deixa rolar.
Em qual mentira vou acreditar?
Tem que saber mentir, tem que saber lidar.
Em qual mentira vou acreditar?
Pó, que caras chato, o!
Quinze pras Onze,
eu nem fui muito longe e os “home” embaçou.
Revirou os banco, amassou meu boné branco,
sujou minha camisa do Santos.
Eu nem me lembro mais pra onde eu vou.
E agora, que será que ligou
“Espere na atração, eu tô na Zona Sul,
eu chego rapidinho,assinado: Blue”.
Pode crer, naquele lado de Santana,
conheço uns lugar, conheço umas fulana.
Juliana? Não. Mariana? Não. Alessandra? Não. Adriana?
O nome é só um detalhe, o nome é só um nome.
953… hum, esqueci o telefone.
“Ôrra, demorou, heim?!”
E aí, Blue, como é?
Isso aqui é um inferno, tem uma pá de mulher,
trombei uma pá de gente, uma pá de mano,
tô há quase uma hora te esperando.
Passou uma figura aqui e deu idéia,
disse que te conhece e pá, chama Léa.
Cabelo solto, vestido vermelho,
estrategicamente a um palmo do joelho.
Os caras comentaram o visual,
“oz bi”, que tal, pagando o maior pau.
Ninguém falou, ah! ah! mas eu ouvia
meio mundo xingando por telepatia
(filha da puta!).
Economizava meu vocabulário,
não tinha o que falar, falava o necessário
meio assim, é claro, será qual é que é, truta
é o que não falta, mina filha da puta.
Tudo comigo, confio no meu taco,
versão africana “Don Juan de Marco”,
tudo muito bom, tudo muito bem,
sei lá o que é que tem, idéia vai, idéia vem,
ela era princesa, eu era o plebeu,
quem é mais foda que eu, espelho, espelho meu.
“Tipo Taís de Araújo ou Camila Pitanga?”.
Uma mistura. Confesso: fiquei de perna bamba.
Será que ela aceita ir comigo pro baile?
Ou ir pra Zona Sul ter um “Grand Finale”?
Amor com gosto de gueto até às seis da manhã,
me chamar de “meu preto” e me cantar “Djavan”.
Ninguém ouviu, mas… puta que pariu!
Em fração de segundos meu castelo caiu!
A mais bonita da escola, rainha, passista,
se transformou numa vaca nazista!
Eu ouvindo James Brown, pá, cheio de pose,
ela pergunto se eu tenho… o quê? Gun’s Roses?
Lógico que não! A mina quase histérica,
meteu a mão no rádio e pôs na Transamérica.
Como é que ela falou? Só se liga nessa,
que mina cabulosa, olha só que conversa:
que tinha bronca de neguinho de salão (não…)
que a maioria é maloqueiro e ladrão (aí não…).
Aí não, mano! Foi por pouco,
Eu já tava pensando em capotar no soco
Disse pra mim não falar gíria com ela,
pra me lembrar que não to na favela.
Bate-boca, maior goela, será que é meia-noite, já?
A Cinderela virou bruxa do mal.
Me humilhar não vai, vai tirar o caralho
levanta o seu rabo racista e sai!
Eu conheço essa perversa há maior cara
correu a banca toda de uns “pleiba” que cola lá na área.
Pra mim ela já disse que era solitária
que a família era rígida e autoritária
Tem vergonha de tudo, cheia de complexo
que ainda era cedo pra pensar em sexo

REFRÃO

Ih! Caralho! Olha só quem tá ali?
O que que esse mano tá fazendo aqui?
E aí, esse maluco veio agora comigo,
Ligou, que era até seu amigo,
que morava lá na sul,irmão da Cristiane,
dei um “cavalo” pra ele no Lausane.
Ia levar um recado pra uns parente local
, da Igreja Evangélica Pentecostal.
Desceu do carro acenando a mão
“Na paz do Senhor!”.
Ninguém dava atenção.
Bem diferente do estilo dos crentes.
Um bom “jaco” e touca, mas a noite tá quente.
Que barato estranho, só aqui tá escuro.
Justo nesse poste não tem luz de mercúrio.
Passaram vinte fiéis até agora,
dá cinco reais, cumprimenta e sai fora.
Um irmão muito sério, em frente à garagem
outro com a mão na cintura em cima da laje.
De vez em quando a porta abre e um diz:
“tem do preto e do branco?” e coça o nariz.
Isso sim, isso é que é união!
O irmão saiu feliz, sem discriminação!
De lá pra cá veio gritando, rezando:
“Aleluia, as coisas tão melhorando!”.
Esse cara é dentista, sei lá…
diz que a firma dele chama “Boca S.A.”.
Será material de construção? Vendedor de pedras?
Lá na zona sulera patrão.
Ih! patrão o caralho! Ele é safado
Fugiu do Valo Velho com os dias contados
A paranóia de fumar era fatal
Arrombava os barracos, saqueava os varal
Bateu na cara do pai de um vagabundo.
Hum… tá fazendo hora extra no mundo
A noite tá boa, a noite tá de barato
mas puta, gambé, pilantra é mato

Tem que saber mentir
tem que saber lidar.
Em qual mentira vou acreditar?
A noite é assim mesmo, então deixa rolar
Em qual mentira vou acreditar?

Negro Drama
NEGRO DRAMA
entre o sucesso e a lama
Dinheiro, problemas, invejas, luxo, fama
NEGRO DRAMA
Cabelo crespo e a pele escura
A ferida, a chaga, à procura da cura
NEGRO DRAMA
Tentar ver e não vê nada
A não ser uma estrela
Longe, meio ofuscada

Sente o drama,
O preço, a cobrança
No amor, no ódio
A insana vingança

NEGRO DRAMA
Eu sei quem trama
E quem tá comigo
O trauma que eu carrego
Pra não ser mais um preto fodido

O drama da cadeia e favela,
Túmulo, sangue, sirene, choros e velas
Passageiro do Brasil, São Paulo, agonia
que sobrevive em meio às honras e covardias
Periferias, vielas, cortiços
Você deve tá pensando
O que você tem a ver com isso

Desde o início, por ouro e prata
Olha quem morre, então, veja você quem mata
Recebe o mérito a farda que pratica o mal
Me ver pobre, preso ou morto já é cultural
Histórias, registros e escritos
Não é conto, nem fábula, lenda ou mito
Não foi sempre dito que preto não tem vez
Então, olha o castelo e não
foi você quem fez, Cuzão

Eu sou irmão dos meus truta de batalha
Eu era a carne, agora sou a própria navalha

Tim…Tim…
Um brinde pra mim
Sou exemplo de vitórias,
Trajetos e Glórias

O dinheiro tira um homem da miséria
Mas não pode arrancar de dentro dele a favela
São poucos que entram em campo pra vencer
A alma guarda o que a mente tenta esquecer

Olho pra traz, vejo a estrada que eu trilhei
Mó cota
Quem teve lado a lado e quem só ficou na bota
Entre as frases, fases e várias etapas
Do quem é quem, dos Mano e das Mina fraca

Hum..
NEGRO DRAMA de estilo
Pra ser, se for tem que ser
Se temer é milho
Entre o gatilho e a tempestade
Sempre a provar
Que sou homem e não um covarde
Que Deus me guarde
Pois eu sei que ele não é neutro
Vigia os rico, mas ama os que vêm do gueto
Eu visto preto por dentro e por fora
Guerreiro, Poeta entre o tempo e a memória
Ora, nessa história, vejo o dólar
E vários quilates. Falo pro mano
Que não morra, e também não mate
O Tic Tac
Não espera, veja o ponteiro
Essa estrada é venenosa
E cheia de morteiro
Pesadelo, hum, é um elogio
Pra quem vive na guerra
A paz nunca existiu
Num clima quente
A minha gente soa frio
Vi um Pretinho
Seu caderno era um Fuzil.

NEGRO DRAMA
Crime, futebol, música. Carai!
Eu também não consegui fugir disso aí
Eu sou mais um
Forest Gump é mato
Eu prefiro contar uma história real
Vou contar a minha….

Daria um filme
Uma negra e uma criança nos braços
Solitária na floresta de concreto e aço
Veja, olhe outra vez o rosto na multidão
A multidão é um monstro sem rosto e coração
Hey, São Paulo, terra de arranha-céu
A garoa rasga a carne, é a Torre de Babel
Família brasileira, dois contra o mundo
Mãe solteira de um promissor vagabundo
Luz, câmera e ação: gravando a cena vai
O bastardo, mais um filho pardo, sem pai
Hey, Senhor de engenho, eu sei bem quem você é
Sozinho cê num güenta
Sozinho cê num güenta a pé
Cê disse que era bom, e as favela ouviu
Lá também tem uísque e Red Bull
Tênis Nike, Fuzil
Admito, seus carro é bonito
Hé, e eu não sei fazer
Internet, vídeo-cassete, os carro loko
Atrasado eu tô um pouco, sim, tô, eu acho
Só que tem que
seu jogo é sujo e eu não me encaixo
Eu sou problema de montão
de carnaval a carnaval
Eu vim da selva, sou leão
sou demais pro seu quintal
Problema com escola eu tenho mil, mil fita
Inacreditável, mas seu filho me imita
No meio de vocês ele é o mais esperto,
Ginga e fala gíria. Gíria não, dialeto
Esse não é mais seu, hó, subiu
Entrei pelo seu rádio, tomei, cê nem viu
Nós é isso, aquilo. Quê? Cê não dizia
Seu filho quer ser preto, rá, que ironia
Cola o pôster do Two-Pac aí
Que tal? Que cê diz?
Sente o negro drama
Vai, tenta ser feliz
Hey, bacana
Quem te fez tão bom assim
O que cê deu, o que cê faz
O que cê fez por mim
Eu recebi seu Tik, quer dizer Kit
De esgoto a céu aberto e parede madeirite
De vergonha eu não morri
Tô firmão, eis-me aqui
Você não, você não passa
Quando o Mar Vermelho abrir
Eu sou o Mano
Homem duro do gueto, Brown, Obá
Aquele loko que não pode errar
Aquele que você odeia amar nesse instante
Pele parda e ouço funk
E de onde vem os diamante?
Da lama
Valeu, mãe
Negro drama
Aí, na época dos barraco de pau lá na pedreira
onde vocês tavam?
o que vocês deram por mim ?
o que vocês fizeram por mim ?
agora tá de olho no dinheiro que eu ganho
agora tá de olho no carro que eu dirijo
demorou, eu quero é mais
eu quero é ter sua alma
aí, o rap fez eu ser o que sou
Ice blue, Edy rock e KL Jay, e toda a família
e toda geração que faz o rap
a geração que revolucionou
a geração que vai revolucionar
anos 90, século 21é desse jeito
aí, você saí do gueto
mas o gueto nunca saí de você, morou, Irmão
você tá dirigindo um carro
o mundo todo tá de olho em você, morou
sabe por quê?
pela sua origem, morou Irmão
é desse jeito que você vive
é o negro drama
eu não li, eu não assisti
eu vivo o negro drama, eu sou o negro drama
eu sou o fruto do negro drama
aí dona Ana, sem palavra, a senhora é uma rainha, rainha
mas aí, se tiver que voltar pra favela
eu vou voltar de cabeça erguida
porque assim que é
renascendo das cinzas
firme e forte, guerreiro de fé
Vagabundo nato.
* Jorge Nascimento formou-se em Letras pela UFRJ, onde cursou graduação, mestrado e doutorado em Língua Espanhola e Literaturas Hispânicas. Desde 1993 é professor da Universidade Federal do Espírito Santo, atuando na graduação e no mestrado em Estudos Literários, desenvolvendo pesquisas sobre literatura hispano-americana e brasileira. Atualmente pesquisa o RAP dos Racionais MC`s e Literatura Marginal.
Contato: jorgelizn@gmail.com

 

 

1 Entre o pessoal do RAP, o termo função é utilizado como trabalho, atividade, “correria”.

2 SANSONE, Lívio. Negritude sem etnicidade: o local e o global nas relações raciais e na produção cultural negra no Brasil. Salvador: EdUFBA, São Paulo: Pallas, 2003. (p.12)

3 SODRÉ, Muniz. Claros e escuros: identidade, povo e mídia no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1999. (p. 22)

4 PEDREIRA, Fernando. In: Jornal do Brasil 12/05/93.

5 Fantasmas primitivos e superstições cibernéticas. Editorial de O Estado de S. Paulo, 17/08/86.

6 O “Estado” contra Tião Macalé. Folha de S. Paulo, 05-09-93.

7 Entrevista concedida a Alexandre Medeiros e Tim Lopes. Jornal O Dia, 31-01-94.

8 Cit. In: PARANHOS, A. Os desafinados do samba na cadência do Estado Novo. Revista Nossa História. Ano 1, n.4, fev., 2004. (p. 21)

9 Formado em 1990, por Mano Brown, Edy Rock, Ice Blue e KL Jay, o grupo Racionais Mc’s destacou-se na coletânea “Consciência Black”, lançada pela gravadora Zimbabwe Records, com os sucessos: “Pânico na Zona Sul” e “Tempos Difíceis”. Em 1992, lançaram seu primeiro LP “Holocausto Urbano” que vendeu cerca de 50 mil cópias. Nos anos 90 e 91 trabalharam com shows por toda a capital e interior, receberam o Prêmio de Melhor Grupo de RAP do Ano e participaram da abertura do Show do Public Enemy no Ginásio do Ibirapuera. Em 1992 deram um importante passo, e fizeram shows na Febem e deram palestras para alunos nas escolas públicas. Em 1993, foram a atração no Teatro das Nações, com o projeto Música Negra em Ação. O sucesso total veio com o CD “Raio X do Brasil”. Conquistaram o maior Prêmio da Música Popular Brasileira o “Prêmio Sharp”, Mano Brown ganhou como compositor revelação com a música “Homem na Estrada”. No final de 1997, com seu próprio selo (Cosa Nostra), lançaram o CD “Sobrevivendo no Inferno”, que vendeu mais de 500mil cópias, sem contar os CDS piratas. No ano de 1998, lançaram dois videoclips “Diário de um Detento” e “Mágico de Oz”. Em agosto do mesmo ano foram os vencedores do Vídeo Music Brasil, promovido pela MTV, recebendo os prêmios “Melhor Grupo de Rap” e “Escolha da Audiência”. Em 2003 lançaram o CD “Nada como um dia depois de outro dia”. (Fonte:http:// www.capao.com.br)

10 É melhor não aparecer nestes programas que tiram sarro dos grupos. Não iríamos vender nosso som para estes caras. Não somos produto, somos artistas. (Edy Rock, Racionais, Jornal da Tarde, 4/8/98).

11 Os gregos, que tinham bastante conhecimento de recursos visuais, criaram o termo estigma parar se referirem a sinais corporais com os quais se procurava evidenciar alguma coisa de extraordinário ou mau sobre o status moral de quem os apresentava. Os sinais eram feitos com cortes ou fogo e avisavam que o portador era um escravo, um criminoso ou traidor – uma pessoa marcada, ritualmente poluída, que devia ser evitada, especialmente em lugares públicos. (GOFFMAN, I. Estigma. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1975. p. 11).

12 (Revista Isto É, 21 de outubro de 98).

13 SCHUSTERMAN, Richard. Vivendo a arte: o pensamento pragmatista e a estética popular. São Paulo: Editora 34, 1998. Trad. Gisela Domschke. (pp. 164-165)

14 SCHUSTERMAN, Richard. Estética rap: violência e a arte de ficar na real. In: DARBY, Derrick; SHELBY, Tommie. Hip Hop e a filosofia. São Paulo: Madras, 2006. Trad. Martha Malvezzi Leal. (pp. 68-69)

15 TATIT, Luiz. O século da canção. Cotia: Ateliê, 2004. (p. 243)

16 A canção, o rap, Tom e Cuba, segundo Chico. Jornal Folha de S. Paulo, 26/12/04. Disponível em:http://www.chicobuarque.com.br/texto/entrevistas/entre_fsp_261204c.htm
Idem (p. 160).
Cf. Griots, cantadores e rappers: do fundamento do verbo às performances da palavra. In: DUARTE, Zileide (org.). Áfricas de África. Recife: Programa de Pós-graduação em Letras / UFPE, 2005. (p. 11-12)

17 Idem (p.13)

18 O gueto norte-americano, o único que veio à luz do outro lado do Atlântico – os brancos de diversas origens, inclusive judeus, conheceram apenas bairros étnicos, de recrutamento essencialmente voluntário e heterogêneo, e que, mesmo miseráveis, sempre permaneceram abertos para o exterior por meio de pequenos canais de comunicação com uma sociedade branca norte-americana compósita -, representa a realização hiperbólica dessa lógica de dominação etnorracial imposta por um poder exterior. Nascido nas primeiras décadas do século passado sob o impulso das grandes migrações de negros dos estados do Sul, descendentes de escravos libertos. (WACQUANT, Loïc. As duas faces do gueto. São Paulo: Boitempo, 2008. Trad. Paulo César Castanheira. p. 18)

19 OTTMANN, Goetz. Entre a fluidez e a unidade: o que é local no Hip-Hop brasileiro. Disponível em http://www.imaginario.com.br/artigo/a0061_a0090/a0085.shtml

20 KELLNER, Douglas. A voz negra: de Spike Lee ao rap. In: —. Cultura e mídia. São Paulo: EDUSC, 2001. Trad. Ivone C. Benedetti. (p. 232)

21 Macarrão, 33 anos, apontador do jogo do bicho, duas filhas, morador do morro do Zinco e torcedor do Fluminense. Toghum, 32 anos, vendedor de produtos esotéricos, budista e morador de Cavalcante. Combatente, 21 anos, moradora de Vigário Geral, frequentadora da Igreja do Santo Daime e operadora de telemarketing. Durante 9 meses, entre 2002 e 2003, uma equipe filmou o dia-a-dia destes três cariocas da Zona Norte, que batalham e sonham em fazer da sua música, o RAP, o seu ganha-pão. O resultado é uma crônica composta pelo cotidiano, letras e dramas deste três personagens. (Sinopse do filme disponível em: http://adorocinema.cidadeinternet.com.br/filmes/fala-tu/fala-tu.htm)

22 Podemos pensar no padre Bartolomé de las Casas, citado por Borges, que afirmava que era um pecado escravizar índios, já que havia negros que serviriam melhor a tal prática.

23 Este artigo está publicado em Proposta – Revista Trimestral de Debate da FASE, Ano 30. 90: 66-83. Disponível emhttp://www.redemulher.org.br/generoweb/rnovaes.htm

24 Um quarto elemento é considerado pelos militantes do movimento é a Consciência.

25 Cit. In: SANTA CRUZ GAMARRA, D. El negro en iberoamérica. CUADERNOS HISPANOAMERICANOS. Madrid: n. 451-452., jul.-oct., 1988.

26 MATTA, Roberto da. Relativizando: uma introdução à antropologia social. Rio de Janeiro: Rocco, 1990.

27 Podemos pensar no padre Bartolomé de las Casas, citado por Borges, que afirmava que era um pecado escravizar índios, já que havia negros que serviriam melhor a tal prática.

28 Cesare Lombroso foi um professor universitário e criminologista italiano, nascido a 6 de novembro de 1835, em Verona. Tornou-se mundialmente famoso por seus estudos e teorias no campo da caracterologia, ou a relação entre características físicas e mentais. Lombroso tentou relacionar certas características físicas, tais como o tamanho da mandíbula, à psicopatologia criminal, ou a tendência inata de indivíduos sociopatas e com comportamento criminal. Assim, a abordagem de Lombroso é descendente direta da frenologia, criada pelo físico alemão Franz Joseph Gall no começo do século XIX e estreitamente relacionada a outros campos da caracterologia e fisiognomia (estudo das propriedades mentais a partir da fisionomia do indivíduo). Sua teoria foi cientificamente desacreditada, mas Lombroso tinha em mente chamar a atenção para a importância de estudos científicos da mente criminosa, um campo que se tornou conhecido como antropologia criminal. A principal idéia de Lombroso foi parcialmente inspirada pelos estudos genéticos e evolutivos no final do século XIX, e propõe que certos criminosos têm evidências físicas de um “atavismo” (reaparição de características que foram apresentadas somente em ascendentes distantes) de tipo hereditário, reminiscente de estágios mais primitivos da evolução humana. Estas anomalias, denominadas de estigmas por Lombroso, poderiam ser expressadas em termos de formas anormais ou dimensões do crânio e mandíbula, assimetrias na face, etc, mas também de outras partes do corpo. Posteriormente, estas associações foram consideradas altamente inconsistentes ou completamente inexistentes, e as teorias baseadas na causa ambiental da criminalidade se tornaram dominantes. (Disponível em: http://www.cerebromente.org.br)

29 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. (p. 62-63)

30 Ser negro no Brasil hoje. Disponível em:http://www.ige.unicamp.br/~lmelgaco/santos.htm

31 Idem p. 44.

32 MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2004 (p.137).

33 O rap entrou no Brasil repertório da mídia nacional hoje, ou em 1998 pelo menos, depois de dez anos de presença na periferia. (…) O gosto dos playboys pelo rap dos Racionais, seu consumo tolerante de discursos antagônicos a seus interesses e a conseqüente integração do rap à cultura de massa hegemônica seria a atitude de quem se encontra em posição de superioridade hierárquica. (…) Enquanto os Racionais MCs fazem poesia a partir de sua percepção do racismo branco e da resistência negra, colocam em cena e – mais importante – em música, a onipresença muda no Brasil da opressão e da violência. A popularidade repentina do rap brasileiro, sua participação na cultura hegemônica brasileira, talvez seja a evidência de uma nova elaboração da autoconsciência brasileira. Essa reelaboração enfatiza o fato de que a segurança física está ao alcance de poucos, e a guerra civil de baixa intensidade entre os “excluídos” e as autoridades, envolvendo traficantes de drogas e a polícia, é parte permanente do cenário contemporâneo. Junto com a cordialidade que parece imperar nas relações entre grupos díspares e antagônicos e que permite que a classe média afirme carinhosamente “nóis sofre, mas nóis goza”, outros valores sociais regem o cotidianos. O consumo branco do rap implica, portanto, uma nova apreensão das relações sociorraciais. Em suma, esse consumo é uma forma de afirmar a violência das relações sociais; siginifica identificar-se com uma espécie de música de protesto. Música de protesto nos lembra os anos 60 e aí podemos afirmar (…) que o consumo do rap pela classe média branca talvez seja um substituto para a ação. Mas Francisco Carlos Teixeira (…) disse que cantar uma música de protesto em circunstâncias de perseguição policial pode, sim, ser ação política. Os rappers, cujos primeiros shows na periferia sofriam de repressão policial, certamente sabem do que ele estava falando. (SOVIK, Liv. What a wonderful world: música popular, identificações, política anti-racista. In: RAMOS, Sílvia (org.). Mídia e racismo. Rio de Janeiro: Pallas, 2002. p. 103-104)

34 Utilizamos o termo gueto, pois acreditamos que as favelas brasileiras se relacionam com a seguinte definição. Gueto é uma forma urbana específica que conjuga os quatro elementos do racismo repertoriados por Michel Wierviorka – preconceito, violência, segregação e discriminação. (WACQUANT, p. 18)

35 PAIXÃO, Marcelo J. P. Desenvolvimento humano e relações sociais. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. (p.80)

36 KEHL. M. R. Quem tem moral com os adolescentes? (Duas hipóteses sobre a crise na educação no século XXI). Texto apresentado no IV Colóquio do Laboratório de Estudos e Pesquisas Psicanalíticas e Educacionais/LEPSI- USP. Oct. 2002. Disponível em: http://www.proceedings.scielo.br/

37 Um bairro rico da cidade de São Paulo.

 

Tempo de leitura estimado: 14 minutos

Fronteiras cruzadas – A ficção no jornalismo e a reportagem na literatura | de Cristiane Costa

Sinônimo de neutralidade e oposto à subjetividade, espaço tradicionalmente reservado à ficção, o conceito de objetividade jornalística vem sendo minado desde o século passado pela propaganda política fascista (que mostrou como era possível manipular qualquer fato ou número), pelas teorias psicanalíticas (que demonstraram o quanto o inconsciente influencia nossa interpretação do mundo) e até mesmo pela própria capacidade de simulação da literatura realista. Mas foi preciso que um novo surto de jornalismo-mentira, a partir dos anos 80, revelasse sua fragilidade, mostrando que a objetividade jornalística é antes de mais nada um artifício. Os vários escândalos que abalaram a credibilidade da imprensa levaram o público a perceber, na prática, que o status de ficcional ou factual depende de um contrato implícito. No caso do jornalismo, o de narrar um fato verdadeiro. No da literatura, o de privilegiar a imaginação e a concepção estética.

Ficou claro que a convenção que determina a exclusão de conteúdos não-ficcionais da literatura e de elementos subjetivos da reportagem interfere profundamente na forma de recepção de um texto. Às vezes, basta mudar seu suporte material. Uma reportagem pode ganhar status literário quando impressa em livro. Ou um texto ficcional simular uma reportagem a ponto de enganar jurados experientes de prêmios como o Pulitzer.

Isso faz com que se coloque em jogo a própria distinção entre o que é jornalismo e o que é literatura, seus graus de separação e contaminação. O fato é que, historicamente produzidas, e devidamente naturalizadas, as definições de objeto literário e objeto jornalístico têm variado ao longo do tempo, conforme as convenções narrativas. Isso acontece porque os diferentes graus de separação entre jornalismo e literatura correspondem à divisão em dois modos distintos de produzir, publicar, difundir, ensinar, ler e criticar os textos, baseados nos mitos da objetividade da imprensa e o da autonomia da ficção como uma categoria estética. Essa divisão instaura convenções narrativas diferentes para a literatura e para o jornalismo, estabelecendo um contrato de leitura entre emissor e receptor que está na base da polarização entre os dois campos. São essas convenções que regulam o estatuto social do escritor, a forma de consumo e os critérios estéticos para apreciação de um texto.

A principal convenção que rege o jornalismo contemporâneo certamente é o compromisso com a realidade. Convencionou-se que a narrativa jornalística trata de um fato real e não imaginário. Já à literatura, o critério de veracidade não se aplicaria. Um segundo critério distinguiria os dois gêneros: a linguagem. Em oposição ao discurso literário, o jornalismo daria ênfase ao aspecto utilitário da linguagem, sua transitividade, voltada para a compreensão do leitor, e em sua transparência, o meio pelo qual as informações são passadas da forma mais objetiva possível. Esse efeito é produzido na medida em que o narrador jamais intervém, apagando as marcas de sua subjetividade. Mas seria a escolha do pronome pessoal apenas um álibi retórico, um artifício literário como outro qualquer?

Não se quer aqui negar as diferenças entre um gênero e outro. Nem defender a volta do jornalismo mentira. Mas discutir se estas diferenças estariam baseadas em estruturas profundas, formas universais. Ou seriam “apenas depósitos de cultura (ainda que pareçam muito antigos)”, como sugere Roland Barthes: repetições, não fundamentos; citações, não expressões, estereótipos, não arquétipos?

É necessário, portanto, levantar quais são as “mitologias” que vão regular os critérios críticos e os modos de produção, difusão e consumo de um texto. E até mesmo o valor comercial ou intelectual de seu autor. A partir de que momento as categorias literatura e jornalismo são naturalizadas e a fronteira entre os dois campos definida? O fato é que, se as fronteiras entre jornalismo e literatura foram construídas _ a partir de valores bipolares como realidade e imaginação, objetividade e subjetividade, linguagem utilitária e expressiva, significante e significado _ ou se fazem parte da essência dos dois gêneros, o fato é que elas são visíveis.

A ideia de objetividade jornalística, que prevê a separação radical entre real e ficcional, levou tanto o jornalismo quanto a literatura contemporâneos a um impasse. De um lado, os romances apelam para o formato de making of, que relata o processo de apuração de uma reportagem, misturando realidade e imaginação, dados objetivos e impressões subjetivas, como é o caso de Nove noites, de Bernardo Carvalho, Inveja, de Zuenir Ventura, e Santa Evita, de Tomás Eloy Martinez. De outro, ressurge o chamado “jornalismo ficcional”, conceito criado a partir da onda de reportagens falsas que abalaram a credibilidade da imprensa mundial a partir dos anos 80.

Autor do livro Hiroshima, a reportagem editada na revista New Yorker, em 1946, que se tornou um dos maiores clássicos do jornalismo literário, John Hersey definiu a principal diferença entre ficção e não-ficção. “Há uma regra sagrada no jornalismo. O repórter não pode inventar”, afirmou num ensaio publicado em 1980. Para Hersey, a legenda implícita da imprensa deveria ser: “Nada disso foi criado”. Foi a primeira reação pública a uma série de denúncias que, a partir do início da década de 80, iria minar a credibilidade dos jornais.

O primeiro caso diagnosticado foi o da repórter Janet Cooke, autora de uma grande reportagem publicada no jornal The Washington Post, intitulada “Jimmy’s world”, sobre o dramático cotidiano de um garoto de 8 anos de classe média viciado em heroína. Janet Cooke descreveu em detalhes seu rosto de anjo, assim como as marcas das picadas em seu braço. E não poupou o leitor de cenas chocantes, como quando o namorado da mãe de Jimmy, um traficante de drogas, injeta heroína em suas veias. A reportagem correu mundo e mobilizou uma força especial de policiais e assistentes sociais de Washington para localizar o garoto, que a repórter se negava a identificar, alegando respeito às fontes. A verdade só veio à tona quando ela ganhou o Pulitzer e sua biografia foi divulgada. Boa parte do currículo de Janet Cooke tinha sido inventada, assim como a história de Jimmy.

A jornalista poderia ter conquistado o Pulitzer de ficção, mas, em vez disso, foi execrada. O affair Janet Cooke repercutiu em todo mundo, por ter destruído um dos pilares do jornalismo contemporâneo: o compromisso com a realidade. Apesar de exemplarmente condenada pelos colegas e pela opinião pública, casos semelhantes proliferaram na imprensa americana, ameaçando virar uma epidemia. Em 1981, o jornalista Christopher Jones publicou uma reportagem de capa no jornal The New York Times, em que narrava sua experiência de conviver durante um mês, nas selvas do Camboja, com guerrilheiros do Khmer Vermelho. Choveram cartas de leitores e experts no assunto, apontando erros factuais e geográficos grosseiros na reportagem, a ponto de um personagem feminino supostamente entrevistado ser descrito como um homem. Após checar todos os dados, o NYTconcluiu que Jones não esteve com os rebeldes cambojanos nem entrevistou as pessoas citadas. O jornal Village Voice foi mais além: demonstrou que o repórter não tirou a reportagem do nada. Surpreendentemente, parte dela foi plagiada da literatura, mais exatamente de um romance de André Malraux, de 1930.

Outros casos foram relatados, em jornais de menor importância, até que o affairJason Blair veio à tona. Em 2003, mesmo escaldado pelo caso Jones, o New York Times acabou publicando quatro páginas com correções das reportagens de Blair. O escândalo teve várias consequências, entre elas a saída do diretor-executivo do jornal. “Eu menti, menti e menti um pouco mais. Eu menti sobre onde estive, eu menti sobre onde obtive as informações, eu menti sobre como escrevi reportagens”, confessou o repórter, na primeira página de seu livro Burning down my master`s house: my life at The New York Times.

O livro foi lançado em março de 2004 com uma campanha de marketing digna dos maiores autores de best-sellers: tiragem inicial de 100 mil exemplares (que, insuficiente, exigiu uma segunda, de 20 mil, na semana seguinte), audiobook, entrevistas nos principais programas da televisão americana e um adiantamento de US$ 500 mil. Seu autor não procurou se defender das acusações de falta de ética profissional. Simplesmente contou toda a “verdade” sobre suas mentiras e explicou como, afinal, nem o maior jornal do mundo é capaz de garantir a veracidade de suas notícias.

Enquanto o jornalismo reage ultrajado ao descumprimento de seu mandamento número 1, o compromisso com o real, fonte de toda a sua credibilidade, o conceito de literatura também vem sendo relativizado, dissolvendo a oposição entre ficção e não-ficção numa nova ordem de discursos. Se a crise da narrativa, expressa pela teoria literária pós-moderna, mina a noção romântica do texto como uma obra de arte que expressa a subjetividade do autor como uma persona literária coerente, por parte do jornalismo ela faz o caminho inverso, destruindo a ilusão de uma objetividade isenta de contaminações, como em experiências de laboratório que jamais se reproduzem na vida real. No mundo contemporâneo, a morte do autor como um ser casto e incorruptível corresponde à morte do repórter como produtor de verdade.

A literatura, especialmente a partir dos anos 90, também se dedicou a embaralhar as categorias de ficção e não-ficção. Um dos melhores exemplos é o premiado romance Nove noites, do jornalista Bernardo Carvalho, uma espécie de making ofde uma grande reportagem. Híbrido, o livro eventualmente se aproxima da reportagem e da biografia, inventariando documentos, arquivos e depoimentos reais, misturados a personagens e cartas imaginadas e às próprias lembranças do autor e sua relação problemática com o pai. O formato making of está presente, ainda, em Inveja: o mal secreto, de Zuenir Ventura; Santa Evita, do jornalista argentino Tomaz Eloy Martinez, e O ladrão de orquídeas, da jornalista americana Susan Orlean, entre outros jornalistas escritores.

Na forma de cruzar as fronteiras entre literatura e jornalismo, o modelo do making of se distancia completamente de experiências como o romance-reportagem, que ficcionaliza a informação, e mesmo do new journalism, que injetou técnicas literárias no texto jornalístico. Ao colocar em cena os bastidores da apuração, sua construção em forma de tentativa e erro, o modelo acaba por mostrar ser impossível separar fato de ficção, real de imaginação, dados objetivos da subjetividade do autor, o repórter do escritor moldado por suas influências literárias.

Mas há grandes diferenças entre o velho romance realista _ quase sempre na terceira pessoa, impessoal, cujo projeto é esconder do leitor o ato deliberado de construção literária _ e o novo _ desconstrucionista, na primeira pessoa, que revela não só os andaimes da imaginação, mas o processo de apuração do jornalismo. A função objetiva (embora nem sempre consciente) do romance making of é minar a ilusão de verdade. Mostrar que o fato também é uma construção discursiva, uma ilusão referencial. A tensão que provoca entre os aspectos jornalísticos e literários introduz ambiguidades e dúvidas na narrativa, levando o leitor a se confundir sobre o que é factual e o que é ficcional. E mostra como ele pode ser facilmente iludido.

Convenções narrativas diferentes para a literatura e para o jornalismo estabelecem um contrato de leitura entre emissor e receptor que está na base da polarização entre os dois campos. São essas convenções que regulam o estatuto social do escritor, a forma de consumo e os critérios estéticos para apreciação de um texto que precisam ser rediscutidas.

A confusão provocada por crossover texts, como o jornalismo ficcional e o making of literário, revela que essas convenções narrativas têm uma autoridade muito maior do que aparentam, como produtoras de real. No caso da imprensa, não é apenas o poder de declarar a verdade sobre os acontecimentos, mas de ditar até mesmo a forma como um discurso pode ser lido como verdadeiro. Uma vez naturalizada, essa tecnologia cognitiva pode ser facilmente manipulada. E, com isso, a obsessão pela objetividade dos meios de comunicação ser usada para esconder, por exemplo, o uso do jornalismo como veículo de propaganda, disfarçado pela voz imparcial, neutra, da terceira pessoa do singular.

Jornalismo e literatura teriam raízes em comum ou duas genealogias distintas? Para compreender isso, é preciso voltar ao ponto em que news (notícias) e novels (romances) se separam, dando origem a campos diferentes. E levantar quando surge a definição da literatura como um discurso exclusivamente ficcional, origem do modelo de romance moderno. Segundo Raymond Williams, o processo de especialização literária é quem vai provocar uma distinção de outros tipos de escrita – filosofia, ensaio, história e jornalismo – que podem ou não possuir mérito literário (significando que, além de seu intrínseco interesse específico, eles são bem-escritos). Mas que não são normalmente descritos como literatura, que pode ser entendida como “livros bem-escritos de um tipo imaginativo ou criativo”.

Sob a Renascença, o sentido de “litterae humanae” distinguia os textos seculares dos religiosos. Mas com a crescente especialização da literatura em direção à ficção, a um texto produzido exclusivamente pela imaginação, foi lançada uma das bases do romantismo: a consagração da figura do autor. Hoje, para se desconstruir esse processo, o conceito fechado de literatura deve ser abandonado em prol de outros mais abertos, como texto, escritura ou discurso, “que tentam recobrar o senso mais ativo e geral que a extrema especialização parece ter excluído”.

A percepção do leitor sobre o que é literatura e o que é jornalismo é dada, antes de mais nada, por categorias discursivas que pouco a pouco entraram para o senso comum, como objetividade e subjetividade. Algo socialmente construído, mais do que naturalmente dado pelo texto em si. Portanto, não é à toa que seja justamente na fronteira entre os dois campos que estão sendo realizadas algumas das mais interessantes experimentações narrativas da contemporaneidade.

BIBLIOGRAFIA

BAHIA, Juarez. Jornal, história e técnica. São Paulo: Ática, 1990.

BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 1977.

________________. O rumor da língua. São Paulo: Brasiliense, 1988.

CARVALHO, Bernardo. Nove noites. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

CASTELLO, José Aderaldo. A literatura brasileira. São Paulo: EDUSP, 1999. v.1-2.

COUTINHO, Afrânio; SOUZA, Galante. Enciclopédia de literatura brasileira. São Paulo: Global, 2001. 2v.

FISHKIN, Shelley Fisher. From fact to fiction. New York: Oxford University Press, 1985.

FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos III. Estética: literatura e pintura, música e cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001.

FRUSS, Phyllis. The politics and poetics of journalism narrative. New York: Cambridge University Press, 1994.

GONZÁLEZ, Anibal. Journalism and the development of Spanish American narrative.New York: Cambridge University Press, 1993.

HERSEY, John. Hiroshima. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

KOVACH, Bill; ROSENTIEL, Tom. Os elementos do jornalismo. São Paulo: Geração Editorial, 2003.

MARTINEZ, Tomás Eloy. Santa Evita. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

NASSIF, Luís. O jornalismo dos anos 90. São Paulo: Futura, 2003.

NOBLAT, Ricardo. A arte de fazer um jornal diário. São Paulo: Contexto, 2002.

PORTELLA, Eduardo. Teoria da comunicação literária. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro: 1973.

RABAÇA, Carlos Alberto; BARBOSA, Gustavo Guimarães. Dicionário de comunicação. Rio de Janeiro: Campus, 2002.

STEINER, George. Gramáticas da criação. São Paulo: Globo, 2004.

VASCONCELOS, Sandra Guardini. Dez lições sobre o romance inglês do século XVIII. São Paulo: Boitempo, 2002.

VENTURA, Zuenir. Inveja: o mal secreto. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

WILLIAMS, Raymond. Keywords: a vocabulary of culture and society. New York: Oxford University Press, 1985.

 

* Cristiane Costa é doutora em Comunicação e Cultura pela Eco-UFRJ, onde é professora adjunta de jornalismo. Foi editora do Caderno Ideias, o suplemento literário do Jornal do Brasil, do Portal Literal e da Revista Nossa História, além de uma das curadoras do evento “Laboratório do Escritor”, do Centro Cultural Banco do Brasil. É autora de Pena de aluguel: escritores jornalistas no Brasil – 1904/2004 (Companhia das Letras).

 

Tempo de leitura estimado: 8 minutos

Os clóvis inventam o contemporâneo carioca | de Marcus Vinícius Faustini

Em uma sequência do documentário
Carnaval, Bexiga, Funk e Sombrinha, o
líder da Turma do Pânico apresenta à
câmera o tema dos sete pecados capitais
que irá nortear todos os desenhos das
fantasias de sua turma.
Para representar o tema eles escolheram
os personagens da Disney. Segue-se
um pequeno plano–sequência, acompanhado
da voz em off do líder da turma,
em que a câmera observa em vários
desenhos pendurados numa corda as representações
dos pecados: para a luxúria,
eles escolheram uma Minnie em expressão
levemente maliciosa e cercada
pelos esquilos.
Essas imagens podem parecer, ao
juízo de alguns, um forte argumento para
caracterizar a prática contemporânea da
manifestação dos clóvis na periferia do
Rio de Janeiro como algo de baixa cultura,
sintoma da invasão da indústria
cultural, ou até mesmo alienante.
É um fim de tarde de um final de semana
próximo do carnaval e estamos em
cima de uma laje onde mais de 30 integrantes
da turma acompanham as filmagens.
No entorno, Marechal Hermes
pode ser vista e reconhecida como subúrbio
carioca de pungente significado.
Depois que a câmera é desligada, todos
os membros da equipe de filmagem são
convidados para participar do churrasco
do grupo, que se seguiria.
Nesta pequena descrição de um momento
do processo fílmico do documentário
em questão, reside toda a natureza
teórica possível que faz, em minha opinião,
da prática contemporânea da manifestação
dos clóvis na periferia carioca
um importante elemento para compreendermos
a complexidade de uma
cidade muito cantada nos sambas e nas
marchinhas de carnaval, mas pouco experimentada
fora do eixo Centro–Zona
Sul. Durante nossa pesquisa para iniciar
as filmagens, encontramos mais de
70 turmas em atividade que articulam
uma expressão estética capaz de pegar
elementos da sociedade de consumo
(Disney, Nike, etc.) e dar-lhes novos significados,
criando também uma dinâmica
econômica que envolve várias redes
e códigos éticos que se constroem em
torno da territorialidade. A capacidade
de gerar procedimentos estéticos livres
de conceitos limitadores é tão instigante
que as turmas criam, sem nenhum constrangimento,
seus hinos em cima de bases
funk.
Minha aproximação e desejo de me
relacionar com essa expressão vão além
da observação intelectual sobre determinado
tipo de manifestação. Nas férias de
minha infância, entre as casas de minha
avó, no Jacarezinho, das tias, na
Baixada Fluminense, e minha própria
casa, em Santa Cruz, sempre presenciei
as turmas de mascarados que invadiam
as ruas e tentavam assustar a molecada,
que se vingava cantando que o Bate-Bola
apanhava de mulher. Com o passar dos
anos, comecei a perceber que aquela era
uma manifestação desconhecida por
grande parte da cidade e que só saía de
sua invisibilidade por meio de um processo
de criminalização muito presente
na mídia durante os carnavais. O filme
usa como estratégia uma aproximação
com as ações dos personagens e os acontecimentos
para dar uma resposta a esse
outro olhar jornalístico distanciado, descrito
acima, que de maneira bastante
nebulosa reduz a prática cultural dos
Clóvis a uma dinâmica de vandalismo e
descontrole juvenil.
O procedimento que usamos para essa
estratégia foi a conversa no lugar da
entrevista, a observação das imagens que
apareciam no lugar de uma tese pré-determinada
que busca nas imagens suas
justificativas. Por outro lado, no processo
de montagem do filme, percebendo a
força social e a expressividade estética
dos clóvis e ao mesmo tempo singularidades
territoriais que diferenciavam em
muitos aspectos as turmas, resolvemos
partilhar o filme territorialmente também,
em seu espaço fílmico. De Marechal
Hermes até Santa Cruz as turmas
vão ganhando diferenças nas estratégias,
procedimentos e práticas que obrigam
uma possível tarefa de radiografia
a ter que ser atenta e não generalizante.
Entretanto, o procedimento que acredito
ter sido mais importante na construção
da diegese do filme foi a utilização
do dispositivo de só filmar as turmas
durante sua preparação para o carnaval
de 2005, e não a inclusão de um
intelectual organizando teoricamente a
manifestação em qualquer sistema de
folclore ou cultura popular. O que vemos
ao longo de todo o filme são os próprios
membros das numerosas turmas
discorrendo sobre suas práticas, estratégias,
afetos e memórias de uma manifestação
que tem na emoção uma de suas
bases principais. Dois momentos me
parecem importantes para demonstrar
esse aspecto da emoção. Durante a preparação
da saída da Turma do Cobra,
que se esconde dentro de uma garagem,
para que ninguém veja sua fantasia, a
rua vai ficando cheia de moradores da
comunidade do entorno, e no momento
da saída os quase 100 integrantes da turma
vão para a rua ao som de fogos ininterruptos
e batem suas bexigas no chão
com uma encenação de fúria que, para
desconhecidos, pode ser interpretada
como manifestação de violência, mas
que toda a comunidade vê como belo e
entusiasmante, o que fica bem definido
na voz de uma senhora que passa naquele
momento e diz para a câmera: “são
os nossos meninos, eu estou muito feliz!”.
O que temos diante de nós é um
gesto de significação contemporânea,
pois o que vimos flerta diretamente com
a idéia de performance muito presente
em trabalhos de artistas dos mais
instigantes de nossa época. Outro procedimento
bastante interessante e que
pode, desta vez aos olhos de intelectuais
insensíveis a essas expressões, provocar
um olhar preconceituoso e crítico,
é a incorporação do tênis de marca
nas fantasias: Nike, Adidas, em modelos
que ao serem molhados expelem
imediatamente a água, são agregados à
fantasia sem nenhum sentimento de culpa
associado a noções como consumismo
ou descaracterização da prática cultural
em questão. No momento da história do
capitalismo em que este deixa de ser
fordista e passa a ser cognitivo, procurando
se apropriar e colocar na roda do
capital produções imateriais, ver uma
manifestação popular evocando algumas
das marcas mais importantes desse capitalismo,
e a sensação imaterial que ele
quer nos render, é uma provocação no
mínimo interessante, pois o tênis nesse
momento deixa de representar sua função
primária (calçar) e também sua função
na lógica do capital (o reconhecimento
como aquele que usa aquela marca)
e passa a ser incorporado como mais
um elemento da fantasia. É como se eles
dessem o seguinte recado: Esse tênis
caro e difícil, nós podemos ter em grandes
quantidades, e podemos usá-lo até
em nossas brincadeiras, como quisermos,
e não apenas como os comerciais
anunciam.
Esse elemento do tênis somado à
enorme quantidade de pano necessária
para fazer a fantasia e seu custo total
trazem à cena a necessidade de redes e
estratégias econômicas que as turmas
realizam durante o ano inteiro para produzir
a tão esperada saída no sábado de
carnaval. É uma rede econômica complexa,
com vários atores executando vários
papéis. O filme acompanha principalmente
o policial Leonardo, que faz
pinturas para as fantasias de várias turmas.
A sutileza e a sofisticação são tantas
que até as máscaras têm pinturas singulares
e pessoas específicas que realizam esse trabalho.
Nos aproximamos de mais um carnaval no Rio de Janeiro e mais uma
vez as turmas estarão presentes nos territórios colocando em questão,
com sua prática, a ideia de centralidade e representação da cultura.
Por fim, quero ressaltar a presença
das crianças nessas turmas, que no
meio de homens já ensaiam a continuidade
dessa história. O intrigante é pensar
que esses meninos, invisíveis para
grande parte da cidade e da sociedade,
colocam máscaras para serem vistos.

[nggallery id=7]

* Marcus Vinícius Faustini é cineasta, diretor teatral, escritor, atual Secretário de Cultura de Nova Iguaçu e lançou nos cinemas o documentário Carnaval, Bexiga, Funk e Sombrinha no ano de 2006. O filme recebeu menção honrosa da 11a Mostra do filme etnográfico e participou de vários festivais no Brasil, India e Itália.

 

Tempo de leitura estimado: 22 minutos

A Barbárie em face do humano: as tribos pós-modernas | de Michel Maffesoli

* Dados do autor
** Tradutora Rosza vel Zoladz

As tribos pós-modernas fazem parte, agora, nos dias atuais, da paisagem urbana. Isso, após terem sido objeto de uma conspiração silenciosa das mais estritas – quanta tinta elas fizeram correr! Tudo de uma vez, para relativizá-las, marginalizá-las, invalidá-las depois de denegri-las. Coloquemos uma questão simples. Essas tribos, não são elas a expressão da figura do bárbaro que, regularmente, retorna a fim de fecundar um corpo social, um pouco debilitado? O que há de certo é quando uma forma do laço social se satura e que uma outra (re)nasce – isso se faz, sempre, com temor e vacilação. É o que faz com que certas boas almas se choquem por essa renascença, porque ela desloca um pouco a moral estabelecida. Do mesmo modo, certas belas almas podem se ofuscar, pois essas tribos não fazem senão privilegiar a primazia do Político. Eu o disse, em textos anteriores. Política ou Jogo. E a prevalência deste último (Jogo) é tão evidente que a Política, ela mesma, se teatralizou e tornou-se objeto da des-razão: resumindo foi contaminada pelo lúdico.

Qual seja, e qualquer que seja o sentimento que a elas se atribua, essas tribos pós-modernas estão lá. E, a menos que as exterminem todas, o que corre o risco de ser difícil, pois nossas crianças são ingênuas, é preciso fazê-lo com a acomodação de suas maneiras de ser e de aparecer, com os seus piercings e tatuagens diversas, de seus curiosos rituais, de suas músicas barulhentas: em poucas palavras, a nova cultura, da qual elas são seguidoras advertidas de uma seita e dinâmicas. Certo é que a (re)emergência dessas novas maneiras de estar junto não lhes falta ser desconcertantes. Ela não é menos compreensível. Com efeito, como isso se passa pelo indivíduo, traduz um simples processo de compensação. Progressivamente, esquecendo-se do choque cultural que lhe deu nascimento, a civilização moderna se homogeneizou, ela se racionalizou ao extremo. E sabe-se que o enfado nasceu da uniformidade. A intensidade de ser se perde quando a domesticação se generalizou.

De onde e quando, um ciclo acaba o mecanismo da compensação. Pouco a pouco, a heterogeneidade ganha terreno. No lugar de uma razão soberana, o sentimento de pertencença retoma direito de cidade. E, confrontá-la a uma enfadonha segurança da existência, o que denominava a efervescência, como elemento estruturante de toda comunidade, retorna com força sobre o que se tem diante da cena social. O gosto do risco, de maneira difusa, reafirma sua vitalidade, o instinto domesticado tende a se mostrar selvagem; em poucas palavras, sob formas múltiplas, a barbárie se refere a nossa boa lembrança. Mas em uma palavra, pode ser preciso lembrar de onde vem esta tenaz e constante inquietação de domesticação própria à tradição judaico-cristã,ou melhor dizendo, à ideologia semítica. Tudo simplesmente decorre da certeza da natureza corrompida do ser humano. É isto que funda a moral e o que retorna ao mesmo assunto, a política da modernidade. No lento processo de secularização, a Igreja, depois o Estado, cujo braço armado é a Política e a Tecnoestrutura, têm por função essencial corrigir o Mal absoluto e originário. Trata-se de uma missão, na qual se verá mais adiante a hipocrisia, que sob nomes diversos vai continuamente irrigar a vida publica ocidental.

Projeto prometeano, se ele o é, sobre o qual não se dirá jamais o suficiente, que encontrará sua fonte na injunção bíblica de “submeter a natureza” (Genèse.ch.1.,v.28) em seu aspecto envolvente; fauna e flora, mais igualmente fundante do indivíduo e do social. É, seguramente, em uma tal lógica da dominação que vai se elaborar o mito do Progresso e do igualitarismo, que é o seu corolário. Para dizê-lo em termos mais familiares, os três mamilos de um tal projeto eram o higienismo (ou o risco zero), a moral e a sociedade “Nickel”. É preciso acrescentar e isto não é negligenciável, a especificidade cultural dessa tradição que foi o Universalismo. De São Paulo de um ponto de vista teológico, às Luzes de uma perspectiva filosófica, a o que tenha sido o apanágio de alguma tribos nômades do Oriente Médio, depois o que foi peculiar de um pequeno cantão do mundo, a Europa, deveria servir de critério para o mundo em sua totalidade.

Notemos que houve fanatismo numa tal pretensão. Mas é esse fanatismo, que ao final do século XIX permitiu que esses valores específicos se tornassem valores universais. E desde que o imperador Meiji abriu suas portas aos navios europeus ou desde que o Brasil inscreveu na sua bandeira a célebre fórmula de Augusto Comte: Ordem e Progresso, se pode dizer que a homogeneização do mundo alcançou um apogeu até aquele momento desconhecido. Mas não se pode ignorar que existe também uma patogênese de certa pulsão dominadora. Sem falar dos estudiosos e outros genocídios culturais. Não será inútil de se lembrar o laço existente entre o mito do Progresso e a filosofia das Luzes de um lado, e os campos de concentração (em nome da pureza da raça ou da classe) e as guerras enraivecidas e suicidas do século XX de outro lado.

A INOCÊNCIA DO DEVENIR

Colocando o acento sobre a moral, do que o lembro repousa sobre uma lógica do dever-se e se acaba em excessos não previstos. Isso se chama hétérotélie. Se obtém o contrário do que se desejava. Por exemplo a tentativa de domesticação do animal humano o conduz a ser bestial. Isto é o que testemunham os diversos campos e goulag do século passado. Efeito perverso se o é, mas bem na lógica da pesquisa da perfeição. Há ainda a sabedoria popular, que vem depois de Blaise Pascal, que pode nos ser de alguma utilidade, remarcando fortemente ao que se diz “quem quer fazer o anjo, faz a besta”. Indicarei aqui sob forma de alusão, mas há aí dois vícios na abordagem dos detentores do universalismo ou o que retorna da mesma maneira nos protagonistas a filosofia da Luzes: a hipocrisia e o auto-engano. Assim R. Roselleck (La règne de la critique, 1979) fez bem em chamar a atenção de que isso se dava, sempre, em nome da moral, de uma nova moral, que queria governar no lugar daqueles que governam. Assim, falar em nome da Humanidade e da Razão é particularmente pérfido, pois isso mascara (de leve) o fato de que a motivação real de todos esses “moralistas” é, pura e simplesmente, o poder.

Poder econômico, poder político, poder simbólico, tais são bem, a finalização normal da filosofia da história e dos filósofos moralistas. E sempre em nome do Bem, do Ideal, do Humano, da classe e outras entidades abstratas que se cometem as piores Torpezas. Há aí sempre no moralista um homem ressentido que está adormecido! Eis de onde se vem. Eis o que constitui o cérebro venal do homem moderno, e que fica no fundamento das formas de pensamento estabelecido e das instituições sociais. Mas essa bela construção, em aparência que não sofre danos, é fissurada de todas as partes. E esta é bem de uma tal porosidade que as tribos pós-modernas são todas, ao mesmo tempo, a causa e o efeito. Que exprimem elas, senão o que de um modo premonitório, Nietzsche denominava “a inocência do devenir” Aceitação do amor fati. Consenso nesse plano a esse mundo. Esse último, ao encontro da doutrina judaico-cristã, não encontra sua origem numa criação que vem do nada, mas ele está ali, tal como um “dado” com o qual convém tanto para o bem como para o mal, concordar. Eis o que o bárbaro um pouco pagão se empenha em nos lembrar!

Certo, tudo isso não é conscientizado, nem mesmo verbalizado enquanto tal. Mas amplamente vivido no retorno às tradições, religiosas ou espirituais, no exercício das solidariedades no quotidiano, na revivescência, digamos, das forças primitivas. Isto conduz à (re)valorização dos instintos, das éticas, das etnias. O que induz essa nova sensibilidade, se poderia dizer esse novo paradigma, é um poderoso imanenteísmo. Isso pode tomar formas as mais sofisticadas e mais triviais. O hedonismo, os prazeres do corpo, o jogo das aparências, o presenteísmo estão aí tanto como pontuação daquilo que não é um ativismo voluntarista, mas também como expressão de uma real contemplação do mundo. Ou, para dizer em outros termos, a aceitação de um mundo que não é o céu sobre a terra, que também não é o inferno sobre a face da terra, mas, sim, a terra sobre a terra. Com tudo o que isso comporta de trágico (amor fati) mas também de júbilo. Deixai fazer, deixai viver, deixar ser. Eis o que poderiam ser as palavras chave dessas tribos “inocentes”, instintuais, um pouco animais e, certamente, bem vivas.

A EXPERIÊNCIA TRIBAL

A modernidade terminante em seu estrito sentido ”desinervou” o corpo social. O higienismo, a securização, a racionalização da existência, as interdições de todas as ordens, tudo isso foi agregado ao corpo individual ou ao corpo coletivo a capacidade de emitir as reações necessárias na sua sobrevida. Pareceria, para retomar uma expressão de Georg Simmel, que se assiste, com a pós-modernidade, a uma “intensificação da vida nervosa”. O instinto, o primitivismo, encontra seu lugar nos “nervos”. Isto é considerar que o peculiar da natureza humana não se resume somente ao cognitivo, ao racional, mas bem um “complexio oppositorum” que se poderá traduzir como uma assemblage, uma tecelagem de coisas opostas. Tudo isso que convém saber ver na efervescência tribal contemporânea. Algumas dessas manifestações podem, eu o disse, nos desgostar ou nos ofuscar. Elas exprimem, por vezes de uma maneira desajeitada, a afirmação que ao encontro do pecado original, que à oposição da corrupção estrutural, existe uma bondade intrínseca ao ser humano. E que no cofre no qual esse último se situa, a terra, ela é igualmente desejável.

Mas um tal imaneteismo acaba por murchar a política. Ou antes, ao que essa, estando de alguma forma transfigurada, se inverte em doméstica, torna-se ecologia. Domusoikos, termos designando a casa comum que convém proteger dos saques aos quais a modernidade nos fez habituar. As maquinações deste homem “mestre e possuidor do universo” segundo a expressão de Descartes, acabaram na devastação que se sabe. As tribos, mais prudentes, mais precavidas também, se empregam a menos “maquinar“ os outros e a natureza, e é isto que faz sua inegável especificidade. É igualmente a recusa da maquinação política que está na origem do seu receio, que inspira essa nova maneira de estar junto. Receio, que engendra as muitas faltas cometidas pelas bárbaras tribos, em particular nas “cidades” e diversas periferias urbanas. A “imprensa de todas as peles”, e não somente aquelas direcionadas ao sensacionalismo fez sua escolha sem obter resultado. E numerosos são os foliculares que se utilizam disso para fazer chorar Margot. No franglês contemporâneo, isso se chama a pesquisa doscoop. A expressão habitualmente utilizada para estigmatizar o fenômeno tribal é o termo “comunitarismo”. Como toda estigmatização oriunda do medo daquilo que é, é uma forma de preguiça pela qual se pode pagar caro. Tique de linguagem amplamente distribuído, tanto à esquerda como à direita. Isso é também uma forma de tolice. Com efeito, não se resolve o que é posto em questão suprimindo-o ou denegando-o.

Atitude infantil, igualmente, que é a de encantação: se repetem as palavras, a maioria delas vazias de sentido, e se pensa assim resolver um problema. Mas para além do medo, da preguiça, da tolice é do infantilismo de fato do que se trata? Foi a especificidade da organização social da modernidade no que pretendeu reduzir toda coisa à unidade. De evacuar as diferenças. De homogeneizar as maneiras de ser. A expressão de Auguste Comte: redutio ad unum, resume bem um tal ideal, o de uma República Una e Indivisível. E não se pode negar que se trata aqui de um verdadeiro ideal cujos resultados culturais, políticos, sociais foram inegáveis. Mas, na longa duração, as histórias humanas nos ensinam que nada é eterno. E não é a primeira vez que se observa a saturação desse ideal unitário. Impérios romano, inca, asteca, se poderia, ao infinito, multiplicar os exemplos de formas organizacionais centralizadas, reunidas no ossário das realidades.

Realidades que nos forçam a constatar, como indiquei sob a forma de alusão, que a heterogeneidade está de volta. É aquilo a que Max Weber dava o nome de politeísmo dos valores. Assim, a reafirmação da diferença, os “localismos” diversos, as especificidades das línguas e culturais, as reivindicações étnicas, sexuais, religiosas, as múltiplas coisas parecidas em torno de uma origem comum, real ou mitificada.

Tudo serve para celebrar um estar junto, cujo fundamento é menos a razão universal que a emoção partilhada, o sentimento de pertencença. É assim que o corpo social se difracta em pequenos corpos tribais. Os corpos, em sua teatralidade, se tatuam, se furam. As cabeleiras se eriçam ou se cobrem de lenços, de kipas, de turbantes ou de outros acessórios, tal como griffe Hermès. Em breve, no incandescido cotidiano, a existência com manchas púrpuras de cores novas traduz assim a fecunda multiplicidade das crianças dos deuses. Porque se sabe que aqui existem muitas casas na morada do Pai.

Eis o que caracteriza o tempo das tribos. Sejam sexuais, musicais, religiosas, esportivas, culturais, e até políticas, elas ocupam o espaço público. É uma constatação que é pueril e irresponsável de negar. Não leva a nada as estigmatizar. Será mais bem inspirado, fiéis com isso a uma imemorial sabedoria popular, acompanhar uma tal mutação. E isto, para evitar que ela se torne perversa, depois totalmente incontrolável. Após tudo, por que não enfocar a res publica, a coisa pública que se organiza a partir do ajustamento, a posteriori dessas tribos eletivas? Por que não admitir que o consenso social, mais perto de sua etimologia (cum sensualis) possa repousar sobre a partilha de sentimentos diversos?

Desde que elas estão ali, por que não aceitar as diferenças comunitárias, ajudar a encaixá-las e aprender a compor com elas? O jogo da diferença, longe de empobrecer, enriquece. Após tudo uma tal composição pode participar de uma melodia social, ao ritmo talvez um pouco mais “coaligido”, mas não menos dinâmico. O ajustamento dos diversos teclados da música techno traduz, também, uma forma de cultura. Resumindo, é perigoso, em nome de uma concepção um pouco retrógrada da unidade nacional, não reconhecer a força do pluralismo. O centro da união pode se viver na conjunção, a posteriori, de valores opostos. À harmonia abstrata de um unanimismo, digamos, de fachada, está se sucedendo, por meio de múltiplos ensaios-erros, um equilíbrio conflitual, causa e efeito da vitalidade das tribos.

INTERNET: A INICIAÇÃO A UMA NOVA ORDEM COMUNICATIVA

Não há mais lugar para ser velhos rabugentos, ofuscados pelos “bons velhos-tempos” de uma Unidade fechada sobre si mesma. O que os filósofos da Idade Média denominavam unicidade, exprimindo uma coerência aberta, poderia ser uma boa maneira de compreender uma ligação, um laço social fundado sobre a disparidade, o policulturalismo, a polissemia. O que, certamente, se denomina de uma audácia intelectual. Essa de saber pensar o verdor de um ideal comunitário em gestação. Sim, há momentos onde é importante pôr em marcha um pensamento de longo curso que seja capaz de aprender as novas configurações sociais. E por isso não se pode ficar satisfeito com esses conceitos autistas, rarefeitos, fenômeno a que, em italiano, se dá o nome, bem adequadamente, deconcetti, vistos do espírito. Em resumo, não se pode, o que é o pecado mignon do intelectual, criar o mundo do que se quer que ele seja. Audácia, portanto, permitindo entender que, em oposição à solidariedade puramente mecânica que foi a marca da modernidade, o ideal comunitário das tribos pós-modernas repousa sobre o retorno de uma sólida e rizomática solidariedade orgânica.

Porque, paradoxo que não é menos considerável, esta velha coisa que é a tribo, e estas antigas formas de solidariedade que são vividas no cotidiano, exercidas o mais próximo, nascem, se exprimem, se confortam graças às diversas redes eletrônicas. Daí a definição que se pode dar à pós-modernidade: sinergia entre o arcaico e o desenvolvimento tecnológico. Lembrando certamente que o arcaico, no seu sentido etimológico, o que é o primeiro, fundamental, vê desdobrados seus efeitos pelos novos meios de comunicação interativa. A imagem do que foi a circunavegação na madrugada dos tempos modernos, navegação sendo a causa e o efeito de uma nova ordem do mundo (o que Carl Schmitt denomina o “Nomos da terra”), certos sociólogos mostram bem em que a “circunavegação” própria à Internet está na iminência de criar novas maneiras de ser, de mudar, em profundidade, a estrutura do laço social (www.ceag-sorbonne.org, Gretech, grupo de pesquisa sobre a tecnologia, direção Stéphane Hugon).

Não é necessário ser perdidamente apaixonado por essas novas tecnologias interativas para se compreender a importância do que se convencionou denominar, justamente, de sites comunitários. My SpaceFacebook, que permitem aos internautas tecer os laços, trocar idéias e sentimentos, paixões, emoções e fantasmas. Do mesmo modo You Tube favorece a circulação do vídeo, da música e de outras criações artísticas. E, mais ultimamente, Lively tenta liderar a vida on line de seus usuários. A expressão mestra, se declinando até não ter mais sede, é a da vida comunitária. E ali onde se vê que o medo do comunitarismo é bem o fantasma de uma outra época, e é totalmente defasado em relação ao mundo real daqueles que constituem a sociedade, já hoje, num golpe certo de amanhã.

Graças à Internet, com efeito, uma nova ordem comunicativa se coloca. Quem favorece os encontros, o fenômeno dos flashmob como testemunho; onde, a propósito das coisas fúteis, sérias ou políticas, as mobilizações se fazem e se desfazem no espaço urbano e virtual. Dá-se o mesmo com o streetbooming, permitindo que nas grandes megalópolis contemporâneas, nessas selvas de pedras que favorecem o isolamento, ao se conectarem à Internet as pessoas se encontram, se falam, se conhecem, criando assim uma nova maneira de estar junto, fundada sobre a partilha da criatividade. Tais redes sociais on line, assim como os fenômenos de encontros a que isto induz, deverão nos tornar atentos a uma sociedade específica, onde o prazer lúdico comporta a simples funcionalidade. Aliás, é interessante notar que se utiliza, cada vez mais, os termos dos iniciados para caracterizar os protagonistas desses sites de encontro.

Iniciação sob novas formas de generosidade, de solidariedade em minúsculo, que não têm mais nada a ver com o “Estado providência” e sua visão deformada. Se, como indica Hélène Strohl, um boa conhecedora deste problema, “L’État social ne fonctionne plus” (Albin Michel, 2008), isto é bem porque é a base, no quadro comunitário, graças às técnicas interativas, que se difundem, mutuamente, sob todas as forma. Retorno curioso a uma ordem simbólica que se acreditava ultrapassada. Mas para bem compreender uma tal ordem, importa colocar a mão na massa não com pensamento crítico, i.e., judicativo, mas um questionamento bem mais radical, tendo de apreender os arcanos da socialidade. Há, aqui, com efeito, no coração mesmo do desenrolar histórico, como ação política, um princípio secreto que é preciso saber descobrir. Nesse ponto é que nos diz a verdade, na sua origem grega: aletheia, o que desvela o escondido? Ainda é preciso que se saiba respeitar o velado! Estranho paradoxo do pensamento radical: saber dizer claramente o que é complicado, aceitando totalmente reconhecer que as “pregas” do ser individual ou coletivo permanecem uma realidade intransponível. É esta a lição de coisas que, continuamente, nos dá a existência. É isto aqui que constitui o mistério da vida.

PROCURAR O ESSENCIAL NO INAPARENTE DAS APARÊNCIAS

No desprezo do romantismo, desde o surrealismo, os situacionistas, nos anos 60 do século passado, partiram à procura dessa mítica passagem do noroeste abrindo sobre os horizontes infinitos. E para fazer isso, colocaram em marcha uma psicogeografia, ou deriva, lhes permitindo descobrir, para além da simples funcionalidade da cidade, que existe um labirinto do vivido, contrariamente mais profundo e assegurando, invisivelmente, os fundamentos reais de toda existência social. Pode-se extrapolar um tal questionamento poético-existencial e os arcanos da cidade podem ser úteis para compreender uma estrutura tácita que, em certos momentos assegura a eternidade da vida em sociedade. Tácito: que não se exprime verbalmente, que tudo é subentendido. Implícito: que vai se alojar na dobra do mistério e do inconsciente coletivo.

Jean Baudrillard, no seu tempo, tornou-se muito atento a esta “sombra das maiorias silenciosas”, a este “ventre mole” do social. Da minha parte, de diversas maneiras, analisei a centralidade subterrânea, a socialidade obscura e outras metáforas, pontuando a retirada do povo sobre seu Aventino. Orfandade da tradição mística, retornando, subrepticiamente, ao gosto do dia! Um tal tecido repregueado é frequente nas histórias humanas. E ele é sempre o indicador de uma demanda de reconhecimento. Contra o patriciado romano, o povo se refere a seus direitos. Isso se dá igualmente em nossos dias. E a demanda implícita, silenciosa, que tem dificuldade em se formular, necessita que se saiba fazer uma espécie de geologia da vida social. E, na maneira de ser, uma pesquisa das estruturas heterogêneas que a constituem. Mas fiquemos nesta ambivalência. Esta bipolaridade entre isto que é retraído e o que se mostra. Ainda mais hermético que em evidência. Salvemo-nos aqui do comentário que fez Lacan do conto de Edgar Poe, “a carta roubada”. É porque ela está aqui, sob o manto da chaminé que o comissário que está à sua procura não a vê. E como em eco, ouçamos o conselho de Gaston Bachelard: “não há ciência fora do obscuro”.

Dizendo com clareza esse escondido nos arruína os olhos. E por pouco que se tome seriamente a teatralidade dos fenômenos, este theatrum mundi, de antiga memória, se saberá aí ver os novos modos de vida em gestação. Para além de nossas certezas e convicções: políticas, filosóficas, religiosas, científicas, convém se por em acordo simplesmente, humanamente, ao que se dá a ver. Procurar o essencial no inaparente das aparências. Estas da vida cotidiana. Estas desses prazeres miúdos e de pouca importância, constituindo o humano onde cresce o estar-junto. Não será isso a cultura? “Os aspectos os mais importantes para nós estão escondidos por causa de sua banalidade e de sua simplicidade” (WITTGENSTEIN). Talvez a partir de um tal principio de incerteza se será capaz de fazer um bom prognóstico. Quer dizer, ter a intuição dos fenômenos, esta visão do interior, fazendo tanta falta à paranóia tão frequente nas elites. A partir do olhar penetrante nos será permitido ver o núcleo fatíco das coisas. Fatídico, porque nos falta ser mestres. Isso vem de bem longe, e não se deixa dominar pela pequena razão instrumental peculiar à modernidade. Núcleo arquetípico, no qual é importante localizar a fecundidade.

(2007)

 

* Michel Maffesoli é professor na Sorbonne e membro do Institut Universitaire de France.

 

** Rosza vel Zoladz: Sou imensamente agradecida ao sociólogo da Sorbonne, Michel Maffesoli, pelo envio do texto por mim traduzido. Foi uma satisfação enorme traduzí-lo, às vésperas das Festas do fim de ano (2008). A amizade, a colaboração intelectual com Maffesoli estão sempre, para mim, se renovando por meio de iniciativas acadêmicas, concretizadas no Brasil e no exterior, que já datam de 1981 e se reforçaram com o convite que lhe enderecei para fazer palestras, conferências, seminários, na Escola de Belas Artes da UFRJ. Ali, as iniciativas dessa ordem devem muito à Linha de Pesquisa da Imagem e Cultura do PPGAV, sempre com o estímulo do Coordenador do Programa, Prof. Dr. Rogério Medeiros, e o apoio do Consulado da França no Rio de Janeiro. Agora, tenho que agradecer a Heloisa Buarque de Holanda, Coordenadora do Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC-FCC-UFRJ) que, de muitas maneiras, com seu apoio e amizade, me faz encorajar para o que é aqui apresentado e também me incentiva a realizar, publicar, produzir inúmeras iniciativas acadêmicas. Beatriz Resende, com quem realizei o Pós-doutorado no Programa, me estimulou tanto que continuo as minhas pesquisas iniciadas naquele Programa. Last but not least, não posso deixar de mencionar o psicanalista Dr. Edson Lannes, um interlocutor inestimável, que muito contribui, com as suas idéias, disponibilidade e pertinência, nos meus trabalhos e pesquisas. Continuo fiel ao meu objeto de estudo de toda a vida, ou seja, o artista e a arte. Agora, examinando o seu mundo do trabalho.

 

Tempo de leitura estimado: 13 minutos

O “velho” bardo, uma nova tradução, um pequeno comentário | de Josely Vianna

1

Há mais mitologia em torno de William Shakespeare do que necessita a nossa vã idolatria. O resultado é uma certa esquizofrenia (com o perdão da rima pobre). Pois enquanto a obra do “bardo” é felizmente encarada sem muita cerimônia, em versões várias para o teatro, o cinema etc., seu nome vive cercado por uma névoa de mitos que, essencialmente, comprazem-se em negar a possibilidade chã de certo cidadão inglês do século XVI, dedicado profissionalmente ao teatro, ser o autor das peças e dos poemas a ele desde sempre atribuídos. Se isto, somado ao título de “maior poeta da história”, de fato não compromete a recepção de seu teatro, de alguma forma impregna a de sua lírica.

Os sonetos de Shakespeare são, assim, cercados de questões extrapoéticas que ameaçam torná-los mais opacos do que o mais esotérico poeta barroco. Shakespeare, porém, era um classicista. A clareza e a relativa simplicidade sintática de seus sonetos costumam ser muito maiores que a da maioria de seus contemporâneos. Saber então quem foi a tão famosa quanto desconhecida “dark lady”, presumida destinatária de alguns sonetos, ou decidir se outros, cujo imputado destinatário é um homem jovem, possuem ou não viés homoerótico, pode ter algum interesse acadêmico, e mesmo muito interesse amador, mas pouco ou nada diz de sua poética. Além disso, e mais importante, tais mistérios não são capazes de alterar certos fatos intrínsecos, como o de que seus sonetos envelhecem mais que suas peças. Melhor dito: que seus sonetos envelhecem visivelmente (ao menos em alguns aspectos), enquanto suas peças parecem imunes à ação do tempo (em parte graças às próprias releituras).

O contrário acontece, por exemplo, com a obra de seu contemporâneo Luís de Camões. Enquanto seu épico nacional-imperial, Os Lusíadas, parece cada vez mais um épico nacional-imperial do século XVI (sem compromisso das magnificências de sua poética), muitos de seus sonetos soam surpreendentemente modernos. A ponto de um deles, há pouco tempo, ter sido musicado por um grupo pop brasileiro (se a grandeza poética do soneto nada perdeu, e se a pobreza musical típica do pop pouco ganhou, o resultado, em todo caso, não pareceu um híbrido absurdo ou impossível). Guardadas as proporções, principalmente quanto à distinta popularidade dos dois poetas, é o equivalente ao que acontece cotidianamente com as peças de Shakespeare. Mas não com seus sonetos. Um dos motivos fica claro ao se analisar, por exemplo, o “Soneto XIV”, recém traduzido por Josely Vianna Baptista.

2

O “Soneto XIV” não apresenta, nas duas primeiras quadras, maiores dificuldades de interpretação. Mas apresenta algumas na terceira quadra e no dístico final – equivalentes, no soneto inglês, aos dois tercetos do soneto italiano. Equivalência que explica a divisão temática deste soneto. A forma soneto possui uma estrutura que pressupõe ou impõe um arranjo de silogismo, pelo qual a primeira estrofe apresenta os pressupostos ou argumentos, a segunda os desenvolve e as duas finais os resolvem. Se no caso do soneto italiano a divisão estrófica, em 4-4-3-3 versos, marca ou traduz tal estrutura temática, no caso do soneto inglês isto não acontece. Assim, se o soneto inglês seguisse sua própria divisão/organização, em 4-4-4-2 versos, teria três estrofes para apresentar e desenvolver os argumentos, e apenas dois versos finais para concluí-los, o que resultaria pesadamente desequilibrado (se o número total de versos da terceira quadra e do dístico final ingleses é o mesmo, seis, dos dois tercetos italianos, a igualdade de dimensão entre a terceira quadra e as duas primeiras a torna parte de seu conjunto, deixando apenas o dístico isolado – enquanto no soneto italiano as duas primeiras quadras formam um conjunto e os dois tercetos outro). Isto explica, afinal, que este soneto tenha uma estrutura inglesa, mas uma organização de argumentos claramente italiana.

As duas quadras iniciais, assim, apresentam e desenvolvem a tese de que o personagem em primeira pessoa não pratica ou não sabe praticar previsões habituais baseadas nos astros, o que não o impede, porém, de acreditar (methinks) que tenha alguma “astronomia”: “And yet methinks I have astronomy”. Tal “astronomia” (ou astrologia, em termos contemporâneos) particular será afinal apresentada, portanto, no primeiro verso da terceira estrofe (depois de o argumento inicial ocupar as duas primeiras). A explicação está nas “estrelas” em que essa “astronomia” peculiar se baseia, que são os olhos do interlocutor. Se isto explica o fato de o narrador ter e não ter “astronomia” (não tê-la no sentido habitual, e tê-la no sentido particular que é o próprio objeto do poema), não explica, porém, quem é esse interlocutor.

Tratando-se de Shakespeare, há aqui muitas interpretações correntes e concorrentes. Tratando-se, porém, de Shakespeare, há interpretações francamente dominantes. Neste caso, a maioria dos sonetos shakespearianos é lida como tendo por destinatário um jovem companheiro do poeta, que assume a posição e o ponto de vista do homem mais velho (enquanto uma minoria seria destinada à “dark lady”). É o caso do “Soneto XIV”. Seu tema retoma um antigo e conhecido topos medieval (Shakespeare, afinal, viveu na transição entre a Idade Média e a Moderna), o da efemeridade da carne – aqui referida, por metonímia, como “truth and beauty”. A equivalência entre carne e beleza não carece de explicação. Já o par “beleza e verdade” não carece de explicação trabalhosa: a identificação entre o belo e o verdadeiro, de matriz e matiz platônicos, é tradicional. O que, enfim, o poeta sabe ler nas “estrelas confiáveis” (“constant stars”) dos olhos, o conhecimento que deles deriva (“from thine eyes my knowledge I derive”), sua sapiência ou expertise (ou art, no original, no sentido medieval de engenho, aprendizado), é: ou aquele que possui a beleza e a verdade as preserva, ou se transforma em seu destruidor. Pois o seu fim é o fim das mesmas beleza e verdade, segundo o belíssimo e aliterante último verso: “Thy end is truth’s and beauty’s doom and date”.

O verso que introduz a condição de preservação diz: “If from thyself to store thou wouldst convert”. To convert, aqui, tem o sentido de virar (-se para). O verbo to store significa manter, estocar, preservar. Trata-se, então, de dizer para o interlocutor voltar-se, isto é, voltar sua atenção, para a preservação daquelas qualidades. Como, porém, preservá-las, se somos mortais e se, antes de morrer, envelhecemos? Daí, afinal, a leitura desse to store, de modo figurado, como mantê-las vivas, ou seja, semeá-las, procriá-las. Ou o destinatário se decide a se reproduzir, e assim reproduzir sua beleza e verdade, ou encara o fato de ter se tornar o veículo de sua destruição, depois de ter sido o de sua materialização. O poema é, em suma, uma exortação à procriação, à paternidade, ainda que o seja como uma convocação à perpetuação da beleza. De qualquer maneira, é inevitável a percepção de que se trata de algo estranho à nossa época, ao contrário, por exemplo, dos solilóquios de Hamlet. Em primeiro lugar, beleza e verdade há muito deixaram de ser sinônimos, complementares ou mesmo próximos. Entre inúmeros motivos, porque a beleza é hoje por construção falsa, no sentido de artificial, enquanto a verdade existe apenas no sentido e na dimensão comezinhos e cotidianos de sinceridade. Além disso, somos ambíguos quanto às excelências de nossa descendência. Se por um lado louvamos, por exemplo, sua enorme familiaridade com os instrumentos complexos da sociedade da informação, por outro lado lamentamos sua enorme familiaridade com os instrumentos complexos da sociedade da informação, que se dá em detrimento de inúmeras outras capacidades, desde o hábito de leitura até o da conversação civilizada. Por fim, os atributos tanto físicos quanto intelectuais de nossa prole são hoje creditados não tanto às excelências ao mesmo tempo morais e transcendentes dos progenitores (cuja beleza física costumava idealmente traduzir a beleza ou virtude de seu espírito, ou seja, sua Verdade), mas à qualidade dos genes e dos exames pré-natais. Isto dito, a beleza do poema parece tão verdadeira quanto duradoura.

3

Seus pentâmetros iâmbicos, versos de cinco pés sem correspondência exata no português, têm como equivalente o decassílabo heróico (pois cada um dos cinco pés do pentâmetro possui duas sílabas), acentuado obrigatoriamente na sexta e na décima sílabas. Este é, portanto, o metro escolhido por Josely Vianna Baptista. A maior dificuldade tradutória talvez resida então no fato de que o inglês é uma língua rica em monossílabos e dissílabos, enquanto no português predominam os trissílabos e tetrassílabos. Como o pentâmetro tem grosso modo o mesmo número de sílabas que o decassílabo, a tendência é caber mais informação no verso inglês do que em seu equivalente em português. “Of plagues, of dearths, or season’s quality”: “Das pragas, das misérias ou da qualidade da estação”. Na tradução de JVB, “Ou o tempo, a miséria, a epidemia”: “a qualidade” do tempo, do clima, é portanto elidida.

O “Soneto XIV”, em todo caso, demonstra que Shakespeare é de fato mais simples do que se costuma supor. Ao menos em termos sintáticos. Pois tem a clareza (sintática) como objetivo, nos sonetos ainda mais do que nas peças, porque o texto destas é cercado de inúmeros recursos não-verbais, enquanto um poema conta apenas consigo próprio, e porque seus modelos eram os clássicos greco-romanos então em voga, nos quais a clareza era de rigor. Daí a simplicidade, a diretividade sintática dos oito primeiros versos, seguida de perto por JVB, que, isto resolvido, dedica-se a recuperar a beleza da sonoridade original com o ritmo e as rimas da língua portuguesa.

As maiores dificuldades, como referido, começam a partir do nono verso. Não porque então Shakespeare se torne “barroco”, mas porque passa a usar imagens menos diretas. A sintaxe, porém, continua simples, advindo a complexidade dos últimos versos da sutileza imagética e, principalmente, da densidade sonora. Exemplo maior é o verso final: “Thy end is truth’s and beauty’s doom and date”. “Seu fim é a condenação e a extinção da beleza e da verdade”, diz simplesmente. Porém a forma como materializa essa afirmação nada tem de simples. Ou seja, sua sonoridade e a organização dessa sonoridade.

Em primeiro lugar, o ritmo. Há aqui uma marcação quase marcial, pela qual cada par de palavras curtas recai quase perfeitamente sobre um dos pés duplos (feitos de uma sílaba breve e uma longa) do verso: Thy end / is truth’s / and beau / ty’s doom / and date (a última sílaba átona, -te, não entra na contagem). As separações entre as palavras e as divisões entre os pés têm, portanto, uma correspondência perfeita (o que não é necessário nem comum: “Or else of thee this I prognosticate”). Sobre esse ritmo ominoso, Shakespeare amarra uma densa trama sonora, feita, primeiro, pela repetição dos tt (“Thy end is TruTh’s and beauTy’s doom and daTe”), e, segundo, pelo par doom and date, que pela carga semântica, pelo ritmo marcado, pela aliteração e, afinal, pela gravidade de suas vogais, parece o bater de um tambor. Sem falar na perfeita interação entre significado e posição, esta reforçando aquele, pois a palavra date, data, no sentido de duração de tempo, logo, de seu fim, fecha o verso e o poema.

Como reproduzir ou recuperar tudo isso numa tradução? Não recuperando nem reproduzindo. A tradução de um poema, porém, é ainda assim a tradução de um poema, logo, deve traduzir o poema, objeto feito de significantes e de significados – e mais ainda, das relações particulares que podem adquirir na linguagem poética em geral e que de fato adquirem nas mãos de um grande poeta em particular. Enfim, se não se pode reproduzir tudo, deve-se recuperar o máximo (torna-se então notável, nos dois sentidos, a elegância e a clareza, na presente tradução, daquele complexo verso 12 – “Se o que te é dado dás a semear-te” –, ou a recuperação do par aliterante final doom and date pelo par anagramático termo e morte).

Traduzir, sabe-se, é um jogo de perdas e ganhos. Vence aquele cujos ganhos, sempre difíceis, equilibram as perdas sempre inevitáveis. Portanto todos perdem e todos ganham. Perde o poema o que tinha de irrecuperável, ganha a tradução o que havia de recuperável, ganha o tradutor ao não se deixar vencer, ganha a língua de chegada um novo poema, e ganham um novo poema os leitores dessa língua. Há perdas que não se pode deixar de querer ganhar. Pois se traduzir mal é, enfim, falhar simplesmente, traduzir bem, ou muito bem, é buscar a melhor, mais trabalhosa e mais bela maneira de fracassar. JVB “fracassa” belissimamente.

Luis Dolhnikoff

William Shakespeare, Sonnet XIV

Not from the stars do I my judgment pluck;
And yet methinks I have astronomy,
But not to tell of good or evil luck,
Of plagues, of dearths, or seasons’ quality;
Nor can I fortune to brief minutes tell,
Pointing to each his thunder, rain and wind,
Or say with princes if it shall go well,
By oft predict that I in heaven find:
But from thine eyes my knowledge I derive,
And, constant stars, in them I read such art
As truth and beauty shall together thrive,
If from thyself to store thou wouldst convert;
Or else of thee this I prognosticate:
Thy end is truth’s and beauty’s doom and date.

 

Soneto XIV (tradução Josely V. Baptista)

Não está nas estrelas o meu tino;
Sei um pouco, porém, de astronomia,
Mas não para prever qualquer destino,
Ou o tempo, a miséria, a epidemia:
Não posso em um minuto dar a sorte,
A cada qual seu raio, ou chuva, ou vento,
Nem por indícios a que o céu me aporte,
Ao príncipe augurar feliz intento.
Mas de teus olhos vem-me esse saber,
E os vejo (astros constantes) com tal arte,
Que o belo e o verdadeiro irão crescer
Se o que te é dado dás a semear-te:
Senão teu fim, prevejo a tua sorte,
Da beleza e verdade é o termo e a morte.
*Josely Vianna Baptista é poeta, editora e tradutora de literatura hispano-americana. Recebeu em 1999 o Prêmio Jabuti pela tradução de livros de Jorge Luis Borges para as Obras Completas. Sol sobre nuvens (Perspectiva, 2007) reúne parte representativa de sua poesia, que inclui os livros Ar (Iluminuras, 1991), Corpografia (Iluminuras, 1992; com arte visual de Francisco Faria) e Outro (Mirabilia, 2001, em colaboração com Maria Angela Biscaia e Arnaldo Antunes), entre outros.

 

Tempo de leitura estimado: 28 minutos

Jovens de favelas na produção cultural brasileira dos anos 90 | Silvia Ramos

Para Paul Heritage

Neste artigo, pretendo identificar a existência de traços comuns em iniciativas culturais de jovens de periferias e favelas de centros urbanos brasileiros, surgidas em meados dos anos 90. Proponho que, embora se constituam como experiências heterogêneas e não-articuladas, algumas delas apresentam, em primeiro lugar, aspectos inovadores no repertório de princípios e práticas das Organizações Não-Governamentais (ONGs) e do campo da esquerda, nos quais as iniciativas da sociedade civil brasileira tradicionalmente se inscrevem. Em segundo lugar, proponho que algumas dessas expressões se tornaram uma referência forte no contexto das manifestações culturais, da segunda metade da década passada e da atual. Ao identificar pontos de contato entre manifestações produzidas por jovens das favelas e aspectos da contracultura dos anos 60 e 70, e estabelecer ligações entre alguns de seus personagens, busco responder à questão: serão os grupos de jovens das periferias, na presente década, com sua “arte a serviço da justiça social”, os herdeiros mais diretos da tradição cepecista de “arte engajada”? Entre “CPC, vanguarda e desbunde”, quais continuidades e rupturas é possível estabelecer?

Três ou quatro características da produção cultural de jovens de favelas

Entre os acontecimentos marcantes na cena política brasileira dos anos 90, no campo de iniciativas da sociedade civil, está o surgimento de grupos de jovens de favelas e periferias ligados a iniciativas de cultura e arte. Em geral, começam como projetos ou programas locais baseados em ações culturais e artísticas, frequentemente desenvolvidos e coordenados pelos próprios jovens. Exemplos desses empreendimentos são os grupos Olodum, em Salvador, o AfroReggae, o Nós do Morro, a Cia. Étnica de Dança e a Central Única de Favelas (CUFA), no Rio de Janeiro, além de agrupamentos mobilizados em torno da cultura hip-hop nas periferias de São Paulo, nas vilas de Porto Alegre, nos aglomerados de Belo Horizonte e em bairros pobres de Recife, Brasília e São Luís. Acompanho mais de perto a trajetória de três desses grupos, o AfroReggae, o Nós do Morro e a CUFA e creio que algumas de suas principais características anteciparam aspectos que estão presentes entre dezenas, talvez centenas de grupos espalhados por favelas e bairros de periferias em centros urbanos brasileiros.

Esses grupos expressam, por meio de diferentes linguagens, como a música, o teatro, a dança e o cinema, idéias e perspectivas dos jovens das favelas. Ao mesmo tempo, buscam produzir imagens alternativas aos estereótipos da criminalidade e do fracasso associados a esse segmento da sociedade. Alguns falam abertamente no compromisso de produzir alternativas para os jovens fora da criminalidade e das fortes atrações materiais e simbólicas oferecidas pela rede de tráfico de drogas, presentes na maioria desses territórios – dinheiro, “respeito” imposto pela ostentação das armas, acesso às roupas e aos tênis da moda, enorme capacidade de atração de garotas bonitas, ambiente onde circulam carros e motos e em que a música rola pela madrugada, além, obviamente, do acesso às drogas. Outros grupos, como indicarei, recusam-se a situar seus esforços num suposto dilema “crime x arte” e apresentam um discurso que recusa a idéia de “tirar jovens do tráfico”; apenas falam em produzir arte de qualidade para romper estereótipos e estigmas. Seja como for, todas as iniciativas procuram exercer não só na comunidade de jovens locais, mas também em outras comunidades, uma sedução ligada ao glamour da arte, à visibilidade e ao sucesso.

Apesar de configurarem um campo heterogêneo, e até bem recentemente não-articulado, é possível identificar pelo menos quatro aspectos comuns a esses grupos. Tais características surpreendem, sobretudo, pelo fato de surgirem no campo de ações da sociedade civil, no qual predominam, desde os anos 90 até a presente década, modelos associativos bem estabelecidos, o das chamadas organizações não-governamentais.1

Celebridades. A primeira característica forte é o componente de investimento nas trajetórias individuais e nas histórias de vida. Vários grupos valorizam o campo simbólico da subjetividade e investem na formação de artistas e líderes, cuja fama passa a servir como modelo. Numa contra-operação de criação de estereótipos, procuram construir imagens de jovens favelados que, contrariando a profecia, tornaram-se dançarinos, cineastas, artistas de teatro ou músicos. Usam insistentemente a grande mídia e tentam parcerias com os fortes conglomerados de comunicação, aparecendo simultaneamente como artistas e como ativistas que falam em nome dos jovens das favelas. Nesse sentido, eles se afastam do modelo sindical e associativo de esquerda, no qual a cultura do “coletivo” deve imperar sobre as trajetórias individuais. Não há apenas um foco voltado para “o grupo”, “a favela”, mas há um investimento explícito na construção de “personagens”. Anderson e José Júnior, do AfroReggae e MV Bill, da CUFA, são os exemplos mais evidentes dessa estratégia. Em outras palavras, o sucesso e a fama seriam entendidos como metas políticas e as estratégias de mídia, muitas vezes bastante sofisticadas, seriam elementos de uma militância.2

Mercado. Uma segunda característica marcante desses grupos é o seu interesse no mercado. Ao contrário das ONGs tradicionais, buscam a curto prazo alternativas de renda e emprego para seus integrantes, além de colocação no mercado e profissionalização. Neste sentido, criam uma cultura oposta à do “sem fins lucrativos” que caracteriza as ONGs brasileiras.3 Ao serem simultaneamente “ponto-org” e “ponto-com”,4 em geral operam com duas identidades jurídicas: como organização não-governamental (a partir da qual recebem doações de fundações internacionais, nacionais e governamentais), e como “empresa cultural”. Embora reafirmem o pertencimento ao campo do “trabalho social”, a maioria desses grupos move-se no sentido de dependência cada vez menor das doações internacionais e das governamentais, isto é, viver cada vez menos “de projetos”, “de avaliação de impacto” etc.,5 na procura pela capacidade de sustentação como empresas culturais que disputam o mercado.

O Grupo Cultural AfroReggae, por exemplo, estabeleceu explicitamente metas relativas ao autofinanciamento. Em abril de 2007, afirmava que 30% de sua receita total como ONG mantenedora de mais de 60 projetos advinha da venda de shows de sua banda profissional e de produtos associados à marca AfroReggae.6 Neste ano, o AfroReggae passou a custear a maioria de suas atividades por meio de uma nova modalidade de financiamentos: ofereceu “cotas” da organização que foram compradas por duas empresas (uma privada e outra estatal) as quais, por três anos, fornecerão recursos em troca da propaganda das suas marcas em todas as ações do grupo.

Território. A terceira característica bastante comum a quase todos os grupos de jovens de favelas é sua afirmação territorial. As letras de músicas, as camisetas e as roupas, as imagens associadas aos grupos reafirmam permanentemente os nomes das comunidades de origem (Vigário Geral, Vidigal, Cidade de Deus, Alto do Vera Cruz, Capão Redondo, Brooklin, Alto do Pina etc.). Curiosamente, a reiterada afirmação de compromisso com o território de origem não se traduz em bairrismo ou nacionalismo. Os grupos combinam o “amor à comunidade” com a adesão aberta aos signos da globalização (Coca-Cola, tênis Nike e outros) e produzem conexões entre o local e o universal via internet, sites e revistas. Atribuem alta prioridade aos intercâmbios com outras comunidades – inclusive com jovens de classe média – e às viagens nacionais e internacionais.

Orgulho racial. Um último componente do novo repertório introduzido por jovens de favelas é a forte presença da denúncia ao racismo e à afirmação racial negra, seja nas letras das músicas, nas indumentárias (cabelos afro, roupas), seja nos nomes de projetos e líderes (AfroReggae, Companhia Étnica, Negros da Unidade Consciente, Mano Brown, Zé Brown etc.). Nos anos 90, esses grupos foram responsáveis, no âmbito da cultura, juntamente com outros grupos de expressão mais comercial, mas igualmente preocupados com a juventude das periferias, como O Rappa,7 pelo rompimento do silêncio sobre a temática racial que, curiosamente, predominou na fervilhante cena musical desde os anos 60. Isto se deu não só nas expressões culturais tradicionais como o samba, mas também na bossa nova, na jovem guarda e na maioria das manifestações culturais em que “juventude” era sinônimo de estudantes de classe média dos centros urbanos.

A incorporação da temática racial na produção cultural dos grupos oriundos das favelas situou-os, nos anos 90, em uma curiosa posição: aparecem como “porta-vozes” da problemática da desigualdade racial e, ao mesmo tempo, mantêm certa dessintonia com o tom de vitimização usado por lideranças negras tradicionais. Sem pertencerem ao chamado “movimento negro”, esses jovens referem, em grande parte das músicas, dos filmes ou das entrevistas, o fato de serem “negros” e “favelados” e de pertencerem à periferia ou ao “gueto”. E o fazem por meio de uma fórmula curiosa, que combina denúncia com orgulho racial e territorial, muitas vezes cantados e dançados numa explosão de alegria que não combina com a sisudez e as estratégias punitivas que predominaram no movimento negro tradicional, como é o caso de grupos como o Olodum e o AfroReggae. As expressões “atitude” e “auto-estima” são as que melhor definem, na linguagem nativa, a ideia de que em todos os grupos se pretendem forjar novas imagens e novos estereótipos associados aos jovens negros das favelas.8

O papel dos grupos de jovens de favelas nas respostas brasileiras à violência

No campo dos estudos sobre as respostas brasileiras à violência, vários desses grupos tornaram-se importantes como “mediadores”, ou seja, como tradutores entre a juventude das favelas e governos, mídia, universidades e, muitas vezes, atores internacionais, como fundações e agências de cooperação. Esses jovens estabelecem pontes entre os mundos fraturados da cidade e da favela e frequentemente são os únicos pontos de contato para quem pretende entender como pensam, o que sentem, como vivem e o que querem esses moradores de bairros pobres das cidades. Como se sabe, os jovens, em especial os jovens negros moradores das periferias brasileiras, estão no centro do problema da violência, seja como vítimas, seja como protagonistas.9 As ações culturais dos jovens de periferias são parte importante dessas respostas, mas estão longe de ser um campo homogêneo de ações convergentes.

No que diz respeito à violência e à criminalidade, alguns desses grupos procuram exercer diretamente papéis de mediadores na “guerra” entre facções do tráfico de drogas, e assumem a missão de “tirar jovens do tráfico”. É o caso, por exemplo, da CUFA e do AfroReggae,10 mas esta não é a regra. Por exemplo, o grupo Nós do Morro, do Rio de Janeiro, recusa sistematicamente aproximação ou diálogo com os chamados “traficantes” locais e não alude ter qualquer compromisso associado à criação de alternativas à criminalidade entre os seus objetivos.11

Outras iniciativas, por sua vez, assumem posições até mesmo ambíguas em relação ao “mundo do crime”. É o caso do grupo de rap Racionais MCs que, exercendo forte influência sobre muitas “posses” de hip-hop pelos bairros de São Paulo e mesmo do Brasil, identifica-se com os “manos” presos e faz poucas concessões aos discursos politicamente corretos contra a criminalidade, atitude que se depreende das letras de suas músicas. Nas raras entrevistas de componentes deste grupo, as posições são menos duvidosas,12 mas identificam um discurso bastante diverso, por exemplo, daquele do MV Bill que, após a exibição de Falcão, meninos do tráfico, em outubro 2006, aceitou discutir com o presidente Lula e os seus ministros a construção de alternativas para prevenir e recuperar jovens envolvidos com o tráfico de drogas. Um outro tema delicado que parece ser bastante heterogêneo entre os grupos que estamos analisando é o das drogas. Enquanto AfroReggae e MV Bill passaram a assumir discursos críticos não só em relação ao tráfico, mas ao consumo de drogas, Nós do Morro mantém silêncio sobre o assunto e Racionais, entre outros grupos de hip-hop evocam claramente em suas músicas o “barato” do consumo.

Uma outra distinção necessária é que essas iniciativas – que no campo de respostas à violência identifico como novas mediações – não são nem as únicas, nem as principais, nem necessariamente as mais eficientes para “tirar jovens do tráfico”. Hoje desenvolvem-se no Brasil um sem-número de ações em favelas e bairros de periferias voltadas para jovens. São projetos governamentais, empresariais e civis, liderados por grupos religiosos, associações de moradores ou ONGs, ligados à educação, ao esporte, à saúde e também à cultura, que têm capacidade infinitamente maior de atingir diretamente jovens em risco de ingresso na criminalidade.

As marcas específicas e fortes dos grupos que produzem cultura e arte nas favelas e assumem o papel de mediadores entre “favela” e “cidade formal” não são, portanto, os chamados “projetos socais” que eles desenvolveriam, mas sim a liderança assumida por seus jovens componentes. Essa liderança traz como novidade a produção de um discurso na primeira pessoa; a capacidade de expressar signos com os quais os jovens das favelas se identificam e, ao mesmo tempo, de criar modelos que recusam as imagens tradicionais; a criação de metáforas por meio das histórias de vida; por último, a capacidade de transitar na grande mídia e na comunidade, entre diferentes facções, classes sociais e governos; percorrer o local e o internacional. Em outras palavras, esses grupos são tão ou mais importantes como interlocutores na vida da “cidade” (na relação com governos, mídia, universidades) do que na vida da própria “favela”.

Se é inegável que tais iniciativas culturais fizeram desses grupos atores centrais do debate sobre juventude e personagens definitivos das soluções que o país terá que encontrar para reduzir a violência e a chamada “exclusão” da juventude pobre, resta perguntar: que importância esses grupos, esses artistas têm para a cena cultural dos anos 90 e da presente década?

Tropicalismo, contracultura e favelas: personagens e pontos de contato

Ao contrariar o bom senso, eu gostaria de argumentar que há mais arte e produção cultural na trajetória de alguns desses grupos do que a onipresença dos “projetos sociais” permite identificar a olho nu. Que foi exatamente a incorporação do papel de artistas – músicos, escritores, cineastas, atores – que impediu que essas lideranças e esses grupos tivessem se tornado, ainda nos anos 90, apenas operadores da justiça social ou defensores dos oprimidos.

Quando traduzimos a questão para os termos do debate que suscitaram o presente livro, em que medida esses grupos de jovens de favelas, voltados para cultura e para a arte, seriam tributários de influências do CPC, da esquerda nacionalista e populista ou da opção revolucionária dos anos 70? No dilema luta armada x desbunde (ou mais especificamente arte engajada x vanguarda experimentalista) dos anos 60 e 70, que grosseiramente poderia ser transposto hoje para trabalho social x produção cultural, quanto existe de produção de arte nos grupos oriundos das favelas preocupados com a violência e a justiça? Efetivamente, há uma tensão permanente, um dilema entre a “cultura a serviço do social” e a opção pela arte. Isto se verifica e se reitera ao longo da história de organizações como o AfroReggae e o Nós do Morro,13 que têm feito esforços para não sucumbir aos riscos inerentes ao seu percurso: a influência demasiada de seus patrocinadores, especialmente quando eles são grandes empresas ou governos e as eleições se aproximam, e a construção involuntária de novos estereótipos, como o de garotos negros bem comportados que fazem música e teriam “escapado do crime”, ou ainda o de “favelados que fazem teatro” etc.14

No caso da banda AfroReggae, o grupo parece responder a isto procurando uma solução estética própria, fugindo não só do estereótipo “meninos que tocam tambor”, mas também do estilo “batidania”.15 O antropólogo Hermano Vianna definiu assim a música da banda:

o multiestilo afroreggae é produto do encontro de algumas das manifestações mais vitais surgidas na música brasileira em tempos recentes: mangue beat; rap paulistano; samba-reggae baiano; funk carioca. Aqui e ali os ecos do reggae jamaicano traduzido pelo Rappa, do hip-hop-hardcore transformado pelo Planet Hemp, das batidas de xaxado e techno ou de toques de capoeira e candomblé. Não é fusão. Mas é mais que justaposição. Música-Barraco: construída com uma variedade estonteante de elementos, mas elementos que se juntam seguindo um método, um plano e transformam-se em lares (sonoros ou não), e o conjunto dos lares forma uma comunidade.16

As novas produções musicais de MV Bill, segundo a crítica, vêm seguidamente incorporando formas mais musicais, além de samplers de samba e de músicos, como Caetano e Sandra de Sá,17 inovações heterodoxas no contexto hip-hop, como se observa em seu último CD, Falcão, o bagulho é doido. Como escritores, MV Bill e Celso Athayde tornaram-se primeiramente co-autores, com Luiz Eduardo Soares, e depois autores de livros com grande vendagem nacional. Como cineastas, Bill e Athayde optaram pela parceria com a Rede Globo para finalizar seu primeiro documentário.18

O Nós do Morro tem dado inúmeras mostras de sua preocupação com uma produção efetivamente artística e de qualidade. Ao combinar, na trajetória de 20 anos, criações coletivas (Amores trágicos) com textos clássicos (Sonhos de uma noite de verão e Dois cavaleiros de Verona), uma preocupação central tem sido a profissionalização de atores e a produção de bons espetáculos.

Tudo indica que esses grupos sabem que sucumbirão num mercado altamente competitivo se permanecerem na perspectiva dos “jovens de projetos socais”, e vêm investindo enormes esforços para se capacitarem como artistas profissionais. Além disso, a circulação desses grupos e de suas lideranças entre artistas da música, da literatura e do cinema contemporâneos da cena cultural brasileira dos anos 90 e da presente década marcou possivelmente suas trajetórias culturais tanto quanto seus compromissos com a comunidade.

É o que se denota da intensa e surpreendente relação entre o grupo AfroReggae e Waly Salomão, desde o segundo ano de criação do grupo, em 1993. Segundo longos depoimentos de José Júnior, coordenador executivo do AfroReggae, Waly foi responsável por ter intuído que o AfroReggae “seria uma potência social e cultural quando a base do grupo era um quarto e uma dúzia de garotos voluntários com muita boa vontade”.19 Além de tê-los apresentado a Caetano Veloso e a Regina Casé, que depois se tornariam “padrinhos” do AfroReggae, Waly levou o grupo para tocar no lançamento de Algaravias, na livraria Timbre, no Shopping da Gávea, em 1996; também os levou ao lançamento de Tarifa de embarque, em 2000, com um show na rua Dias Ferreira, no Leblon – experiências que Júnior descreve como altamente impactantes no livro Da favela para o mundo.

Segundo Júnior, Waly amava as favelas, os becos, Vigário, Conexões Urbanas – este um projeto que entre 2002 e 2005 levou 40 shows com artistas famosos para o interior de favelas do município do Rio de Janeiro. O livro Da favela para o mundo é dedicado a dois “mestres”, Waly Salmão e Lorenzo Zanetti (coordenador da FASE, organização não-governamental que orientou a elaboração dos primeiros projetos do AfroReggae).

Sintomaticamente, Júnior fala da importância de Waly, como “mestre, guru e ídolo”, que o ajudou a lapidar o conhecimento artístico e cultural que tem, que o ensinou a ler e a escrever e que semanalmente agendava encontros e eventos culturais para o grupo. Waly é sempre referido em reuniões do AfroReggae como o responsável pela quebra de paradigmas e preconceitos, não só musicais e artísticos, mas também de padrões afetivos e sexuais.20 A casa-estúdio multimídia que está sendo construída em Vigário Geral e que pretende ser o principal pólo de produção cultural de favelas da cidade será chamada “Waly Salomão”.

De fato, não só Caetano, Gil e Regina Casé, personagens com intensa participação no movimento tropicalista e “pós-tropicalista”,21 no caso de Casé, mas Jorge Mautner e, posteriormente, Gerald Thomas tornaram-se parceiros artísticos do AfroReggae,22 em um caminho certamente tributário à influência inicial de Waly. Também é expressivo o fato de que no festival “Tropicália, a Revolution in Brazilian Culture”, organizado pelo Barbican, em Londres, entre fevereiro e maio de 2006, o AfroReggae tenha sido o grupo jovem convidado para apresentar dois shows e a participar de uma semana de oficinas e debates.23 Efetivamente, é possível estabelecer linhas de contato entre a “atitude incorporativa”, a operação com a idéia de “inclusão”, e a “bricolagem”, típica dos tropicalistas,24 e o multiestilo AfroReggae, que não é fusão e é mais que justaposição, segundo Hermano Viana, citado acima.

Também a assunção radical do palco, a movimentação cênica parodística25 conectam-se ao estilo de palco do grupo de Vigário Geral, já definido como de uma “alegria guerreira”. O namoro com os canais de massa e o desejo de “cantar na televisão”, abertamente assumidos pelos tropicalistas, em oposição às restrições da “produção cultural engajada” dos anos 60 e 70, reportam para as posições do AfroReggae, da CUFA e do Nós do Morro. Incluem-se, ainda, os debates acalorados no interior do movimento hip-hop e as restrições das organizações de esquerda. Por último, a desconstrução das oposições fetichizadas entre o “nacional” e o “autêntico”, de um lado, e o “alienígena” e o “descaracterizador”, de outro,26 operada pela atitude tropicalista, encontra nexo na curiosa capacidade de convivência que o AfroReggae e os outros grupos são capazes de estabelecer com a dedicação quase obsessiva à “comunidade” e a abertura para signos e marcas nada locais, como internet, Coca-Cola ou Red Bull.27 Em outras palavras, a possibilidade de manterem o foco na favela sem se tornarem provincianos, bairristas ou nacionalistas e a capacidade de articularem diálogos com o “estrangeiro” e o “multinacional” indicam uma operação sofisticada que a maioria desses grupos tem sido capaz de fazer até aqui, mais relacionada à ousadia tropicalista do que à tradição cepecista ou de esquerda.

Chama a atenção igualmente que outros participantes ou personagens do momento da contracultura, como Cacá Diegues, seja conselheiro e colaborador da CUFA – e diretor de clipes de artistas desses grupos, além de diretor de um documentário sobre o AfroReggae – assim como André Midani, colaborador deste último grupo.

Em 2006, o Nós do Morro iniciou sua comemoração de 20 anos com a apresentação de Dois cavaleiros de Verona, em montagem apresentada em Stratford-upon-Avon, a convite da Royal Shakespeare Company. Trata-se de encenação que dialoga com elementos do tropicalismo, reunindo dança, música e acrobacias, num resultado que surpreende não porque os atores são negros e da favela, mas porque são jovens e preparados. Enfatizo este ponto para indicar que o Nós do Morro não comemora seus 20 anos com um teatro “engajado” ou “do oprimido”, nem com um espetáculo que “fala sobre a favela”, mas com uma, digamos, montagem-favela de Shakespeare.

Recentemente, no início de 2006, três desses grupos – AfroReggae, Nós do Morro e CUFA – criaram, juntamente com a organização Observatório de Favelas (um grupo que trabalha com educação e pesquisa, originalmente baseado na favela da Maré), uma instância, um “dispositivo” chamado Favela 4, ou F–4. Trata-se da primeira articulação formal entre essas iniciativas e, segundo José Júnior, resulta de uma ação “política e empresarial”, que procura ligar conceitos, saber e tecnologias sociais. Possivelmente essa articulação deverá aprofundar ou potencializar os dilemas ou a tensão entre trabalho social e produção cultural; em torno dela a vida desses grupos – muitas vezes intuitivamente – tem se organizado desde os anos 90. Os próximos anos dirão se serão capazes de sobreviver ocupando com tanta intensidade, como têm feito até aqui, os cadernos de cultura e os cadernos de política dos jornais.

Na minha opinião, engana-se quem imagina que a função ou o “valor” dessas manifestações seja “tirar jovens do tráfico”. Pelo contrário, há milhares de iniciativas que desenvolvem esse papel provavelmente melhor que esses grupos. As novas lideranças políticas surgidas nos anos 90, esses jovens artistas, estão trazendo novidades importantes para a cena cultural. E isto não só porque transportam a periferia para o centro e produzem um discurso, falado na primeira pessoa, sobre a favela – ou porque, pela primeira vez, um movimento político e cultural jovem não corresponde a um acontecimento exclusivo das classes médias – mas também porque têm a função de indicar que não há só marasmo depois dos anos 70.

A despeito das restrições desses grupos em relação às drogas, acho que não há nenhuma experiência tão forte atualmente, no Rio de Janeiro, no sentido das “viagens que podem mudar a sua vida”, muitas vezes referidas no contexto da “explosão anárquica do tropicalismo” ou da “opção vitalista de produção alternativa”,28 como a de ir a uma favela à noite para assistir a uma peça do Nós do Morro ou a um show do AfroReggae.

* Silvia Ramos é pesquisadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes.

Referências Bibliográficas

ALVAREZ, Sonia; DAGNINO, Evelina & ESCOBAR, Arturo. O cultural e o político nos movimentos sociais latino-americanos. In: ______. (orgs.). Cultura e política nos movimentos sociais latino-americanos. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2000. p.15-57

ARANTES, Paulo Eduardo. Esquerda e direita no espelho das ONGs. São Paulo: ABONG e Editora Autores Associados, 2000.

BILL, MV & ATHAYDE, Celso. Falcão: meninos do tráfico. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006.

FERNANDES, Rubem César. “Sem fins lucrativos”. In: L Landim (org.). Sem fins lucrativos: as organizações não-governamentais no Brasil. Rio de Janeiro: ISER, 1988. p.8-23

HOLLANDA, Heloisa Buarque. Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde: 1960 / 70. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2004.

JÚNIOR, José. Da favela para o mundo: a história do Grupo Cultural AfroReggae. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2003.

LANDIM, Leilah (org.). Sem fins lucrativos: as organizações não-governamentais no Brasil. Rio de Janeiro: ISER, 1988.

LANDIN, Leilah. “Múltiplas identidades das ONG”. In: S Haddad (org.). ONG e universidades: desafios para a cooperação na América Latina. São Paulo: Editora Fundação Peirópolis, 2002. p.17-50

NAVES, Santuza Cambraia. Da Bossa Nova à Tropicália. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.

NEAT, Patrick & PLATT, Damian. Culture is our weapon: AfroReggae in the favelas of Rio. London: Latin America Bureau, London, 2006.
OCHOA, Ana Maria. Entre los deseos y los derechos: un ensaio crítico sobre políticas culturales. Bogota: Instituto Colombiano de Antropología e Historia, 2003.

 

RAMOS, Silvia. Brazilian responses to violence and new forms of mediation: the case of the Grupo Cultural AfroReggae and the experience of the project “Youth and the Police”. Ciência e Saúde Coletiva, v.11, n.2, p.419-428, 2006.

SOARES, Luiz Eduardo; BILL, MV & ATHAYDE, Celso. Cabeça de porco. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005.

SOARES, Luiz Eduardo. Uma questão de atitude: o Rappa e as novas formas de intervenção política nas cidades brasileiras. In A cidade não mora mais em mim da Coletânea Decantando a República (B. Cavalcante, H. Starling & J. Eisenberg, orgs). Rio de Janeiro: Nova Fronteira / Fundação Perseu Abramo / FAPERJ, 2004.

YÚDICE, George. A conveniência da cultura: usos da cultura na era global. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.

 

NOTAS

1 Ver Landim, 1988 e Fernandes, 1988.
2 Note-se que essas operações nem sempre se realizam sem contradições. O acordo da CUFA com a Rede Globo de televisão, para a exibição do documentário Falcão, meninos do tráfico, e a participação de MV Bill no programa Fantástico, em outubro de 2006, gerou polêmica no “mundo do hip-hop”. Acalorados debates em entrevistas e sites se verificaram na ocasião. A superexposição de José Júnior, do AfroReggae, promovida tanto por entrevistas como por filmes, muitas vezes gerou suspeitas de lideranças de grupos de favelas e de militantes de ONGs. Os argumentos mais frequentes são de que o AfroReggae estaria perdendo seus ideais. Igualmente, o contraste com a estratégia do grupo Racionais MCs, de São Paulo, que via de regra não dá entrevistas e “não vai onde a Globo está”, demarca posições fortes sobre como a produção dos grupos de favelas deve se relacionar com a grande mídia.
3 Ver Landim, 1988.
4 Sintomaticamente, as páginas web do AfroReggae, da CUFA e do Nós do Morro, podem ser acessadas tanto pelo endereço de prefixo “org” como “com”.
5 Para uma discussão sobre o “império dos projetos” como formato obrigatório de sobrevivência de organizações que vivem de doações internacionais, ver Arantes, 2000 e Landim, 2002.
6 Veja referência na página web: www.afroreggae.org.br (acessado em 10 abr. 2007).
7 Frases que ficaram famosas nos anos 90, como “Todo camburão tem um pouco de navio negreiro” (O Rappa) e músicas como Negro Drama, Periferia é periferia, Racistas otários, Favela Sinistra, Favela 100%, A cada 13 minutos (Racionais MCs); Coisa de Negão, Som de VG e Tô Bolado (AfroReggae); Preto em movimento, Um crioulo revoltado com uma arma e Manifesto do Gueto (MV Bill) são expressões da reiterada tematização do racismo, do pertencimento à favela e da violência policial.
8 Ver Soares, 2004.
9 Entre os quase 50 mil brasileiros assassinados por ano no Brasil, os jovens de 15 a 24 anos são vitimados em proporções extraordinariamente altas. A taxa de homicídios do país situava-se em 27 por 100 mil habitantes em 2004 (países da Europa Ocidental, como França, Inglaterra e outros, têm taxas de 3 homicídios por 100 mil habitantes). Em alguns estados, como Rio de Janeiro e Pernambuco, essas taxas atingiram 50 por 100 mil. Entre jovens de 15 a 24 anos, as taxas ultrapassam 150 por 100 mil habitantes, como é o caso de São Paulo, Espírito Santo, Pernambuco e Rio de Janeiro. A grande maioria dessas vítimas é pobre, negra e mora nas favelas dos grandes centros. Para uma discussão sobre o assunto, ver Silvia Ramos, 2006.
10 Neat & Platt, 2006 e Bill Soares & Athayde, 2005.
11 Ver www.nosdomorro.com.br (acessado em 10 abr. 2007).
12 Para conhecer posições dos Racionais ver, por exemplo, entrevista de K.L Jay em julho de 2002: http://cliquemusic.uol.com.br/br/entrevista/entrevista.asp?Nu_Materia=3699 (acessado em 16 abr. 2007). Em uma entrevista em outubro de 2005, ao jornal Agora São Paulo, Mano Brown, líder dos Racionais, assumiu a defesa do desarmamento.http://www1.folha.uol.com.br/agora/spaulo/sp1010200501.htm (acessado em 10 abr. 2007).
13 Para uma discussão sobre o dilema, ver Yúdice, 2004 e Ochoa, 2003. Para conhecer os pontos de vista dos próprios grupos, ver Júnior, 2003 e entrevista concedida por Guti Fraga, fundador do grupo Nós do Morro, a Mauro Ventura, s/d. (http://www.nosdomorro.com.br/acontece.htm) (acessado em 10 abr. 2007).
14 Fraga, idem.
15 Referência à idéia de batida e cidadania. Ver Yúdice, 2004:208.
16 CD Nova Cara.
17 Ver Luiz Fernando Vianna. Folha de S. Paulo, 09 de junho de 2006.
18 É sintomático que MV Bill e Celso Athayde venham se definindo em entrevistas, a partir de 2006, como “escritores e cineastas” e não como ativistas sociais. Ver http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG73596-6014-410,00.html. Publicada em 23 mar. 2006 (acessado em 10 abr. 2007).
19 Júnior, 2003:11.
20 É preciso ter em mente que grupos como o AfroReggae e diversos outros ligados aos jovens de favela são organizações predominantemente masculinas, marcadas por evidentes traços de misoginia e homofobia. A “bissexualidade” de Waly, seu estilo de amor declarado pelos meninos, suas risadas e brincadeiras irreverentes marcaram fortemente a formação do AfroReggae.
21 Hollanda, 2004.
22 Além de Mautner, chama a atenção que uma das músicas de grande sucesso do grupo é Mosca na sopa, de Raul Seixas. O último CD do grupo traz canções compostas em parcerias com Arnaldo Antunes, Nando Reis e Geraldinho Carneiro, além dos rappers ingleses Ty e Estelle.
23 Ver http://www.barbican.org.uk/artgallery/series.asp?ID=261 (acessado em 16 abr. 2007).
24 Ver Naves, 2001.
25 Naves, idem.
26 Naves, 2002:54.
27 No caso específico do AfroReggae, os pontos de interdição situam-se na recusa de patrocínios ou parcerias com empresas de cigarro ou bebida alcoólica. Ver Júnior, 2003.
28 Ver Hollanda, 2004:15.

 

Tempo de leitura estimado: 25 minutos

Dona Zefa, a criação do mundo através de imagens: do verbo faz-se a carne | de Zeca Ligiéro

“Nas história antiga, que eu conheci, dos meus bisavós… e os antigos, né?! Porque de livro não me interessa. Pelo menos, eu sei, eu vou contar as histórias do que se contava no passado.”

O presente artigo investiga as narrativas da artista, contadora de caso e benzedeira dona Zefa, moradora de Araçuaí, Vale do Jequitinhonha. Muitas de suas histórias são baseadas na Bíblia, mas passam por um processo de reinvenção, onde a narradora acrescenta elementos não originários das escrituras sagradas. As forças da natureza aparecem eloquentemente, tanto em seu trabalho escultórico como em sua narrativa, o que nos convence de que suas histórias se referem diretamente ao universo afro-ameríndio. Exclusivamente, por meio da sua performance, a narradora não só encarna a história como reinventa seus significados originais, dando-lhes novos contornos e novos contextos. Seu texto existe apenas como parte da sua performance oral, portanto ele só existe enquanto toma forma na voz e no corpo da performer, que literalmente o corporifica pela comunicação com o ouvinte/espectador. O artigo, portanto examinará a narrativa não apenas como texto literário, mas como elemento propriciador da performance oral, onde a história narrada não só exemplifica a relação do sujeito com o tema, mas o posiciona como criador de imagens vivas. Zefa reúne em seu ofício as diversas atividades ocupadas tradicionalmente pela pessoa de teatro: o dramaturgo ou adaptador do texto, o diretor de cena, o ator e espectador privilegiado da própria história já que ela faz pequenos comentários que poderíamos classificar como próximos à proposta do teatro Épico de Bertolt Brecht, coisa que, naturalmente, nunca ouviu falar. Seu cenário de fundo é composto de duas cortinas com estamparia floral que dão acesso a outros cômodos da casa e duas paredes totalmente revestidas com uma coleção de fotos de família, de colecionadores de seus trabalhos e amigos intercalados com toda a sorte de imagens de santos, cartões postais, recortes de jornal etc. Isto é sua sala de visita e oficina repletas de suas esculturas recém-terminadas ou ainda em processo, feitas em troncos de madeiras. A maioria delas é feita na forma de colunas com caras duras, anjos retorcidos junto, peregrinos e beatos das memórias longínquas das mesmas terras onde pisaram Antonio Conselheiro e Lampião e de onde ela tem as suas raízes familiares e onde viveu a sua juventude.

Mas, ao contrário do griôs conhecidos, Zefa não interpreta os personagens de suas histórias, ela os apresenta. Ela reproduz seus diálogos curtos com uma comedida pontuação, uma prosódia peculiar, emprestando-lhes sempre um tom coloquial como o da conversa de vizinhos na varanda de suas casas nas noites de lua cheia, assim ela trata os seus espectadores, não importa se autoridade ou criança que se chega. Seu teatro aproxima-se do universo da performance, pois ela conta com a imaginação do espectador para completar a história, embora o sentido da mesma ela não deixe escapar. Em nenhum momento cria a mimesis ou a linguagem corporal do personagem, não há em nenhum momento preocupação em recriar alguma atmosfera “teatral”, imitando trejeitos ou forma de falar de algum personagem. Os fatos são mais importantes que as reações físicas dos personagens, o que eles fazem e falam é mais importante do que eles sentem. Ela talha a sua narrativa num tom firme e extremamente convincente. São histórias do sertão, das terras secas e quentes do norte da Bahia, de Sergipe e Alagoas onde perambulou quando jovem, e as terras misteriosas das Gerais, os serros frios e desertos, serpenteados pelo rio Jequitinhonha.

Além de contadora de histórias, dona Zefa é uma ativa escultora em madeira, profissão que abraçou depois de fugir da seca do nordeste, onde trabalhou como feirante, vendedora ambulante, construtora de malas e carpinteira de camas “feitas a prego” para finalmente fixar residência no Vale do Jequitinhonha, uma região repleta de histórias e lendas. Ali também encontrou seu oficio mais nobre: a arte – ceramista por três anos, quando adoece e descobre a escultura em madeira que a projetou nacionalmente. Zefa Alves dos Reis é originária da região fronteiriça entre os estados de Alagoas, Sergipe e Bahia. Quando seu irmão mais velho, em 1958, foi construir Brasília em busca de uma situação melhor para família, viu-se em completa miséria, pois o irmão nunca mais deu notícias e nem retornou ao lar, ela então, como milhares de nordestinos, migrou para o sul ao lado da cunhada, que também não tinha uma profissão definida, em busca de uma vida melhor. O mundo encantado das lendas que ouviu, a Bíblia aprendida dentro de uma tradição oral e a própria história de vida se mesclam em seu trabalho escultórico bem como em suas narrativas épicas. Ela é contadora de caso desde criança como ela própria aponta em uma de suas histórias:

Foi lá na Serra dos Aimorés, (…) também tinha essa família que era de imigrante que veio de Portugal, aí os pais moraram lá numa sede muito boa, eram muito ricos, aí eles morrero e deixou duas filha. Duas foi vizinha nossa, uma morava, a casa dela ficava na frente da casa que nós morava e a outra morava mais longe, não sei cumé o nome dela, sei que eu fiquei na casa dela muitos dias com ela, porque naquela época não havia televisão e eu contava muita história de folclore né, porque na fazenda de meu avô, naquele tempo todo mundo sabia história, mas quem tinha memória boa pra guardá história, pai dizia assim “Zefa vai divertir o povo” contando história né, aquele multidão de gente sentava na calçada e eu sentava o pau pra contá história, e Preta, essa menina de Portugal, chamavam ela Preta. Mas era branca de olho azul, a peça mais bonita, parecia uma grande modelo né, era bonita demais. Ela casou com um tenente, o tenente era mineiro, mas naquele tempo que a tuberculose era igual a AIDS agora, que não encontra remédio, então a tuberculose tava matando gente demais, então o moço um dia começou a sentir uma dor, assim que ele casou, ele começou a sentir uma dor, por dentro nos intestino. Aí ela levou ele pra Belo Horizonte, aí ele passou no raio X, quando passou no raio X aí era tuberculose, tinha começado a mancha da tuberculose. Interessante, que o homem tava quase de lua de mel né, aí o médico disse assim “Aparta a dormida com sua esposa porque você ta contaminado, tuberculoso”, aí ela disse que veio, esse homem veio desesperado, aí passou remédio, aí retorna lá de novo em Belo Horizonte, aí ele foi e chegou, passou um dia, no outro dia, que ele disse assim “Ô Preta vai pegar uma água pra mim”, aí ela foi. Quando ela foi pegar a água, a casa era muito grande, quando ela foi pegar a água lá na cozinha, ele detonou o revólver perto do ouvido e morreu, aí ele morreu e ela ficou desesperada também, bom, quando nós chegamo lá tinha quinze dia que o marido dela tinha se matado e ela tava impressionada né. Aí de parente dela…. tinha uns amigo né, que os pai deixou, os parente são os amigo como eu tenho aqui né, é os amigo, só tinha uma irmã, aí eu contando muita história e o amigo disse assim, “ô Preta vamo divertir na casa de Sô Jão”, Zefa tá lá contando história e tem muita gente assistindo. Aí ela foi, assistiu, se divertiu muito, aí disse “Seu João”, meu pai se chamava João Aldo né, “Seu João Aldo, o senhor pode me dá a Zefa pra ela passar uns dia comigo, pra ela me divertir, contar história”. Porque ela perdeu o marido, tava pra perder o juízo, aí pai disse assim “Ah, a menina ta fazendo nada não, ela pode passa até meses com você, é aqui vizinho…”

Interessante como ela própria percebe o poder performativo de suas histórias, capaz de, como afirma Schechner, “transportar e transformar o espectador”. (SCHECHNER: 1985) O contato com as narrativas orais permite a viúva da história narrada transcender a sua própria dor individual ao mergulhar num universo místico criado pela contadora. Sua história, mesmo sem intenção, exerce um alto poder terapêutico. Atualmente com 84 anos, Zefa escreve a própia história de mulher e cidadã em Araçuaí, uma comunidade dominada pelo imaginário de vaqueiros e mineiros, tradições de lavadeiras cantoras e com muitos artistas e artesões, onde se destacam também suas conhecidas ceramistas: dona Lira, famosa por suas máscaras com motivos afro-brasileiros e dona Isabel, por suas bonecas grandes de cerâmica vestidas de noivas coloridas com os diferentes barros da região. Dona Zefa, não atribui a si própria a versão das histórias que conta, mas ao que foi aprendido com os mais velhos. Em suas histórias, se destaca a sua relação com a Mãe Terra, algo apreendido ao longo de sua existência e que considera primordial passar para os outros, como narra:

O moço da imprensa falou comigo “Zefa, é engraçado que eu tenho feito entrevista no mundo inteiro. Eu nunca soube da pessoa conversar com Deus considerando a Mãe Terra como mesa da comunhão. É a coisa mais bonita que eu achei na minha vida e eu vô passar pruns amigo meu que é estrangeiro.” Porque é assim: antigamente… são confissão de antigamente, dos antigo. Então antigamente a cidade, pra você conhecer o padre era muito difícil, então tinha a santa confissão é… que os padre andava celebrando santa missão para confessar os povo, para confessar os povo, que era muito bruto e inocente, que morava nas montanha, no centro da roça. Então… você tem uma pessoa doente, que ele tá pra morrer. E como é que ele confessa se num tem padre? Eu moro num lugar distante, e aí? A cidade fica distante 5 ou 6 légua, e meu parente na cama da morte, e como é que ele confessa? Então antigamente a cidade era muito distante uma das outra. O antigo ensinou… essa oração da confissão ela já vem de muito mais de mil anos… muito mais! Muito mais! Isso vem dos antigo. Então diz assim. A pessoa vai conversar com Deus. Foi a confissão que o Cabeça de Ferro fez. Aqui teve um.. no mundo… teve um valentão igual a Lampião, igual a cangaceiro. Vivia matando os outro pra roubar. Só que ele não tinha companheiro, ele era sozinho. Então, chamava… o povo tinha tanto medo dele que chamava “Cabeça de Ferro”, porque não tinha ninguém. Era… o destino dele era o de matar, né? De dia… de noite… de dia ele tava no mato escondido e de noite ele saía escondido pra matar. Só que ele matava porque aquilo parece que era uma fraqueza da cabeça dele, ele era um matador de fama, né? Conta há muitos anos atrás, né? Milhares de anos… o Cabeça de Ferro era conhecido no mundo inteiro, né? Um caçador tava caçando e o Cabeça de Ferro tava escondido no mato que era pra noite… Ele invadir as casas, né? Aí quando o caçador viu o Cabeça de Ferro, ele desmaiou e caiu com a espingarda na mão. Aí o Cabeça de Ferro falou “Já viu um homem cair sem eu matar?” Mas mesmo assim o homem tava morto. Aí ele disse assim “eu não sou gente não, se o homem só de me ver, ele morre, eu não quero ter mais vida”. Aí foi e se ajoelhou num pedá de pau e disse assim: “Aqui me ajoeio, Senhor, nesta mesa de finar, minha alma se alegra de ver tão rico manjar. O manjar excelente dado pelo Senhor, que os pecado que eu tinha, agora num dia se confessou. Eu agora vós digo, Senhor, sem saber quanto eles são, perdoai os meus pecado, na santa mesa da comunhão.’’ Aí vai e beija… a terra, ce reza oiando pra o céu, porque é ajueiado, né? Você se ajueia e reza, porque tá conversando com Deus, com Jesus Cristo.

Quase sempre ela ilustra o pensamento com uma história, criando uma espécie de parábola em que demonstra uma espécie de moral sobre o assunto abordado. Em outra ocasião ela teoriza sobre o poder da Mãe Terra:

Porque a Mãe Terra é a dona de nosso corpo. Ela tem todo o poder. Ela tem a graça de Deus de criar nóis. Ela criô nóis, cria tudo que nela existe, ela muda uma serra de um lugar pro outro, conforme uma tempestade de chuva. Ói, eu merma visitando a Lapa de Bom Jesus, eu merma vi o rio onde é que era… ele foi mudado… mudado, né? Bom, então a Mãe Terra muda a serra dum lugar pro outro. Por que ela não pode mudar nossa vida?

Dentre as inúmeras histórias colhidas, sem dúvida, a da Criação do Mundo, por ser a mais conhecida de todos, se torna a mais interessante por apresentar uma versão bastante inusitada, pois seus protagonistas são apresentados de forma coloquial, demasiadamente humanos em suas reações: Adão um tipo curioso e metido a esperto, Eva ingênua e gulosa, o Anjo um tanto futriqueiro e Deus, onipresente, mas meio esquecido. Ela não faz comentário sobre os personagens, percebemos seu comportamento através de algumas reações tão diferentes da percepção clássica de quadros estereotipados como “A tentação de Eva”, “A expulsão do paraíso” etc. A história de Zefa começa com que o já é conhecido, Deus criando Adão a partir de um monte de barro e deixando-o para que ele possa descobrir, sozinho, a natureza. Em algum momento depois, ele fica curioso para saber como está a sua criação e ele pede ao Anjo:

“- Óia, vai ver como Adão tá.” E Deus sabia tudo que ia acontecer né. Aí o Anjo chegou lá, Adão tava acocorado por trás do pau com a mão na cabeça. O Anjo chegou assim: “- Ó Adão, que tristeza é essa? Você tem tudo nas suas mão, tem tudo à vontade e você tá triste assim, tem tudo enquanto é bicho pra você se divertir.” E ele tá calado. “- É o quê, Adão? Por que você tá triste? O que é que te faz alegrar?” E ele dizia assim ó: “- Só tenho alegria se aparecer uma companheira.”

Em sua narrativa mítica ela trata os personagens sagrados sem nenhuma cerimônia, como fazendo parte do universo caipira em que ela se insere, com tranquilidade e respeito; eles são extremamente informais e falam a linguagem do povo. Quando o Anjo dá a notícia para Deus, ele decide ir lá falar com Adão pessoalmente:

“- Adão”, “- Tô aqui.” “- Cê tá querendo uma companheira, né, Adão? Tão deita aí.” Aí pegou a costela mindinha dele e fez a mulher, deu vida. Aí Deus contou a ele; aí ele perguntou assim: “- Por que o Senhor tirou o osso menor, a costela menor da cintura?” “- Porque a mulher tem que ser igual a você.” “- Por que não tirou da cabeça?” “- Porque a mulher não pode dominar o homem.” “- E por que não tirou dos pés?” “- Porque o homem não pode pisar na mulher.” Aí foi perguntando tudo.

Aqui a preocupação entre a equidade entre os gêneros surpreende, pois tradicionalmente o papel da mulher tem sido pouco enfatizado pela visão ortodoxa católica. Entretanto, o enunciado acima pode ser interpretado também como uma máxima reguladora da visão do universo católico rural, na qual o homem é quem tradicionalmente domina a mulher, portanto o inverso nunca pode acontecer. Ele, uma vez exercendo esse domínio, nunca deve maltratá-la. Mas de qualquer forma, a igualdade do paraíso, onde pareciam feitos um para o outro, nivelados pela inocência, um estado de graça foi definitivamente perdido e alcançado apenas num mundo mítico.

Mas Deus sabia de tudo que ia acontecer. Aí foi mostrou os arvoredos tudo. “- Agora desse arvoredo aí, que vocês não podem comer, viu?” E a serpente tava perto, escutando. “- Não pode, porque se vocês comer desse arvoredo é pecado mortal, não pode de jeito nenhum!” A tentação ficou lá. Não apareceu a Adão. A mulher sempre tem a cabeça, o juízo, mais leve, leve, assim iludida né (riso). Aí a tentação tava toda graciosa lá no pé do arvoredo, né?! Aí a mulher assim: “- Ô fruta bonita, meu Deus!” Aí ela foi e comeu. Aí disse: “- Ó, Adão, vem cá. Vem comer um pouco pra você ver.” Aí Adão chegou e falou:” “- Devera, mas é bão de mais, tá doido! (riso).

E quando Deus mandou o Anjo ver como Adão estava, a visão foi inesperada e ele detalhou para Deus a situação em que encontrou o primeiro homem:

“- Ó Senhor, ele desobedeceu ao senhor porque ele tá vestido de fôia. Tá vestido. E se apadrinharam, tudo envergonhado com vista no chão.” E foi ele pessoalmente chamar a atenção “- Ó, Adão, que que aconteceu com você mais com sua mulher? Foi você que inventou de atrair ela pra comer daquela fruta?” “- Foi ela. Foi ela que me iludiu e eu comi. Fiquei nesse estado.” “- Pois é, se vocês agora vocês tão vestidos, vocês se viram. Eu vou dar uma semente pra você plantar, dagora por diante você vai comer do suor do teu rosto. Porque você perdeu a veste da graça de Deus. Então agora você vai se vestir e comer do suor do teu rosto. Ademais, eu vou mandar o Anjo trazer tá?! Pra você plantar.” Aí foi, mandou o Anjo. O Anjo chegou com a enxada e a semente. Diz: “- Óia Adão, aqui é a semente do algodão, que a profissão de Eva é tecer roupa. Porque vocês, a geração de vocês vai se estender. Aí você pega a enxada e vai trabaiá. Aí ele foi, aí o Anjo foi embora.

A história bíblica toma um caráter extremamente nordestino, campesino: aqui a divisão do trabalho é claramente definida, embora sem hierarquia. O homem é o lavrador e a mulher a tecelã, enquanto ele lida com a terra, ela com o trabalho da criação das vestimentas. Entretanto, o grande ponto de mudança proposta pela história de dona Zefa ocorre neste momento:

Quando bateu a enxada no chão aí brotou sangue da… do corte da enxada na terra, a terra foi e gemeu. Aí ele disse assim: “- Você é igual meu corpo, pois eu não vou cortar mais não, cê gemeu. Ah não, ah não. Não vou desobedecer, cortar ninguém não.” Aí foi pra casa, foi comer fruta. No outro dia, aí Deus mandou o Anjo: “- Vai ver se Adão plantou mesmo.” Chegou lá: “- Adão, por que você não plantou?” Aí ele contou o caso. Aí o Anjo voltou. Já foi ao Senhor: “- Ele não plantou nada não. Que a primeira enxadada que ele deu, a terra gemeu e brotou sangue. E ele disse que se era igual o corpo de que ele não ia plantar não.” Aí o Senhor falou: “- Eu tenho que ir lá.” Chegou assim: “- Ó Adão. Como é que aconteceu que diz que você cortou a terra e ela gemeu?’E disse assim:“- Ó Adão, é porque ela é virgi, porque o homem nunca cortou, porque o homem nunca trabalhou na terra. Eu vou conversar co ela pra fazer sua plantação.” Aí foi ele e disse assim ó: “- Mãe Terra você deixa Adão cultivar você, cortar você, porque você mesmo dá, você mesmo come.”Você vê que tudo que a terra produz ela mesmo come, né. E aí falô: “- Corta terra agora.”Aí ela não gemeu mais e Adão foi e plantou.

A terra desempenha um papel crucial na história, pois o próprio Deus vai pedir licença à Grande Mãe para que seu filho possa trabalhar nela. A explicação sobre o sangue e a virgindade da terra a torna humana. Mesmo sendo a Grande Mãe, ela permaneceu virgem até o homem perder a sua “vergonha”. A terra não fala, mas geme, ela parece ter sofrido ao primeiro corte dado, pois Adão a ouve e recua. Poderíamos levantar questões sobre uma religiosidade pré-cristã, relacionar aos mitos romanos e gregos, a Deméter e a Gaia, mas certamente estas culturas não parecem estar presentes nas palavras de Zefa. Ao que tudo indica devemos considerar muito mais o manancial indígena das culturas fortemente presentes na região de onde ela veio, inúmeros grupos, dentre os quais poderíamos destacar os Kariri-Xocós, os Pankarus, os Funiôs, os Pataxós, cujas culturas estabelecem uma forte relação com a Mãe Terra. E embora a presença Guarani nesta região não seja significante, sua mitologia é de forte impacto no imaginário da população brasileira, assim vemos muita semelhança com este momento engendrado na mitologia bíblica pela contadora. Na mitologia de origem Guarani, a Mãe Terra nasce do sopro do cachimbo do Grande Deus, que mandou os sete anciãos com as sementes-desenhos de tudo que seria criado com a missão também de criar o ser humano como o guardião da roça.

Na história narrada por Zefa, a terra ao se permitir ser germinada, após ter oferecido o seu próprio barro, a matéria prima para criação do primeiro corpo humano, ela então permite que em seu ventre sejam geradas as sementes plantadas por mão humana que vão servir de alimentos e algodão para criar abrigos. E desta forma, permitir ao homem que possa executar o seu castigo principal, o trabalho, pois a sua prole é uma consequência inexorável de sua existência comum com o sexo oposto.

“- Ói, só tem uma coisa. A sua desobediência foi demais. Seu trabalho é plantar algodão. Agora vai vim filho de toda parte. Vai encher a casa deles. Faz uma casa grande porque home não pode morar no tempo. E o trabalho de Eva é só fiar pra vestir os filhos porque vem filho demais por aí.” Aí foi de geração em geração e foi gente toda vida, e gente toda vida, e Adão trabaiando e trabaiando junto com os filhos mais véio.

A história poderia terminar aqui, como geralmente acontece, “e a partir daí as gerações foram se sucedendo…” Mas Zefa introduz um elemento inesperado, a incapacidade do homem de vestir a sua prole. Quanto mais o casal trabalhava, mais filhos tinha e mais gente nascia para ser vestida. E Deus mandou o Anjo, mais uma vez, para verificar como estava indo a coisa. Mas aí, novamente, a narradora expõe Adão como um orgulhoso a querer enganar ao seu pai.

“- Cês se esconde pro Anjo não ver.” Mas os menino queria ver né. Aí ele disse assim: “- Amanhã o Senhor vem te visitar e conhecer seus filho.” Aí ele foi mais Eva e disse assim:“- Vocês fiquem bem ó, vocês se esconde viu?! Porque o Senhor não pode ver vocês despidos não. Só aparece os vestidos.” O Senhor sabia de tudo né. Aí quando o Senhor chegou, chegou a multidão de filhos tudo vestido. E arvoredo tava por todo lado, os outros ficaram por lá apadrinhado, escondido, à frente dos arvoredo e apontando as cara, como macaco ainda por cima. O Senhor tava conversando com ele e disse assim: “- Que mói de gente é esse aí?” Quando Adão, não pôde falar nada, abaixou a cabeça assim.” “- Adão cê mentiu pra mim né? Né Adão?! Que tanta gente pelado é esse me espiando atrás dos pau? Nem é filho seu não Adão?” “- Não, num é meus fio não. Deve ser de algum bichinho por aí.”

Percebemos já no primeiro homem, os graves defeitos da raça humana, querer enganar ao próximo, e no caso o próximo era Deus. Mas, ao contrário da imagem do Deus colérico judaico-cristão, temos nesse de Zefa um Deus com um grande senso de humor. Pois diante da multidão de cabeças saindo de trás das árvores, e ao perceber que Adão estava trapaceando ele completa:

“- Pois é, esses que tão me espiando é seus fio né. Mas você escondeu de mim, então, em macaco eles se transformará.” Aí ficou a geração braba de macaco no mundo todo. Mas é tudo família de Adão. Tudo que é completo no homem é completo no macaco.

A história aponta para as semelhanças entre o homem e o macaco e sua origem comum, explicando de forma mítica o elo perdido entre as duas espécies. É crucial percebermos na narrativa desta história a luta entre o mundo perfeito, sem pecado, proposto por Deus, (mesmo sabendo do seu insucesso na empreitada da criação, de acordo com a autora) e a vida humana enquanto conflito permanente. Ou poderíamos avançar e tomar a definição de Fitzgerald, empregada por Deleuze na abertura do seu capítulo Porcelana e Vulcão: “Toda vida é, obviamente, um processo de demolição.” Comentando o autor, Deleuze acrescenta:

Eis um homem e uma mulher, eis casais (por que casais, a não ser porque já se trata de um movimento, de um processo definido como díada?) que têm tudo para serem felizes, como se diz, belos, encantadores, ricos, superficiais e cheios de talento. E depois alguma coisa se passa, fazendo com que eles quebrem exatamente como um prato ou um copo. (DELEUZE, 2006:157).

 

É claro, que na ótica de Zefa, o sentido da demolição ou da fissura, como aponta Deleuze passa por um filtro extremamente bem humorado. Ela, como mística e perfeitamente harmonizada com as forças da natureza está muito mais próxima da perfeição do criador do que do mundo da geração braba de macacos consumidores. Ela, portanto, vê o casal primeiro, que mal pode saborear as delícias do paraíso, para ter que dar duro para sustentar uma prole, cada vez mais necessitada, como algo que cotidianamente escolhemos na nossa vida distraída e descomprometida com as necessidades da Mãe Terra. E conclui com certa ironia a sua história da Criação do Mundo: “As história antiga são essas, é piada, né?! Uma coisa muito bonita pra se contar. Bom, eu gosto do antigo, a história antiga faz sentido né?!” O sentido que faz é sua possibilidade de associação e contextualização, a sua performance.

Zefa conta as suas histórias sentada no mesmo banquinho, junto ao chão em que trabalha fazendo suas esculturas em madeira. Seus gestos são econômicos, sua voz mansa, não dramatiza e não dá pronto os estados dos seus personagens. Sua palavra então, como uma lâmina de cristal, oferece transparência total e o verbo se faz carne não pelo que representa, mas pelo que criamos enquanto ela desfila seus incontáveis casos antigos. Acompanhamos sutilmente a sucessão de fatos, nos quais suas lembranças mais remotas se desenovelam em fios de lembranças recuperadas, sentimentos recuperados, não em função de um princípio religioso, mas pelo prazer fundamental de fazer do verbo carne. E por momentos fugazes experimentamos as delícias do paraíso perdido, transformados e transportados pelas palavras-imagens de Zefa.
Fotos de Lucas Vandebeuque

* Zéca Ligiéro é professor do PPGAC-UNIRIO, coordenador do Núcleo de Estudos de Performances Afro-Ameríndias -NEPAA. Dirigiu espetáculos no Brasil e no exterior. Entre os seus livros se encontram: Iniciação ao Candomblé (1993),Iniciação à Umbanda (1998) e Malandro Divino: a vida e a lenda de Zé Pelintra um malandro típico da Lapa Carioca (2004), Teatro a partir da comunidade (2005) eCarmen Miranda: uma performance afro-brasileira (2007).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DELEUZE, Gilles. Lógica do Sentido. Editora Perspectiva, São Paulo, 2006.

LIGIÉRO, Zeca. Entrevistas realizadas pelo autor com dona Zefa, Arquivo do Núcleo de Estudos das Performances Afro-Ameríndias, NEPAA-UNIRIO (2006, 2007 e 2008).

SCHECHNER, Richard. Between Theater and Anthropology. University of Pennsylvania Press, 1985.

 

Tempo de leitura estimado: 26 minutos

Poesia e Vídeo-arte – algumas aproximações | de Renato Rezende

Alguns poetas brasileiros contemporâneos têm produzido vídeos que os inserem ao mesmo tempo no campo das artes visuais ou, sem que haja contradição nisso, num campo ampliado da poesia. Podemos citar André Sheik (Eu sou mais do que aparento), Laércio Redondo (Eu não te amo mais), Ricardo Domeneck (Garganta com texto), Laura Erber (História antiga), Renato Rezende (Ímpar; Tango), Guilherme Zarvos (Muro burro) e Domingos Guimaraens (Gema), entre muitos outros. Este ensaio procura delinear algumas aproximações históricas, teóricas e práticas entre a poesia e a vídeo-arte no contexto da produção brasileira.

Poesia e Pensamento

Discorrendo em seu blog sobre a separação entre poesia e música, oralidade e escrita, o poeta brasileiro Ricardo Domeneck lança uma provocação e um desafio: “Insisto: poesia não é uma parte da literatura, mas é a literatura que é apenas uma parte da poesia. Quem achar que isso é picuinha, sugiro que medite por pelo menos alguns segundos sobre as implicações desta idéia”.1 Se para Domeneck – e não nos interessa aqui investigar suas razões –, a literatura é apenas uma subdivisão da poesia, Susan Sontag, numa instigante nota de rodapé em seu ensaio “Contra a interpretação”, afirma ser o cinema uma “subdivisão da literatura”.2De fato, a forma hegemônica do cinema espetáculo, que, com seu modelo narrativo-representativo-industrial, se estabeleceu no início do século XX e se sobrepôs como fenômeno social e mercadológico às correntes do cinema de vanguarda e do cinema experimental, herdou sua linguagem narrativa do romance.3O romance, como gênero literário, por sua vez, surgiu no século XVIII com a definitiva ascensão da burguesia ao poder, e substituiu a poesia épica, de origem homérica, que vigorou na Europa pós-renascentista e produziu obras de grande fôlego e envergadura como Jerusalém LibertadaOrlando Furioso (obras que no século XX, com toda certeza, seriam estimulantes longas-metragens, e estão na origem de sucessos comercias como E o vento levouLawrence da Arábia eTitanic).

Do mesmo modo, como lembra o mesmo Domeneck em seu blog, é moeda corrente que a separação entre poema e música (ou seja, a forma por excelência da poesia lírica), ocorreu aos poucos após o desmantelamento das estruturas sociais do amor cortês, vigentes principalmente nas cortes provençais e catalãs do fim da Idade Média. Essa tradição ressurge com toda força, como um grande catalisador social, na forma de música popular, na era da cultura de massas e da indústria cultural, com a possibilidade da ampla difusão em ondas de rádio e reprodução em LPs, CDs etc., e portanto toda a discussão sobre o status literário da letra de música e de seus compositores não é sem fundamento. Amputada ou mancando seriamente de duas de suas três pernas (a épica e a lírica), a poesia se renova no Modernismo apostando todas suas fichas no pensamento e/ou no poema que discorre sobre si mesmo ou seu meio (a linguagem).4 No entanto, nos anos 1960, com o advento da arte conceitual, mas na verdade desde Duchamp, a filosofiaaproxima-se das artes visuais, que passam cada vez mais a gerar pensamento em alta voltagem, depreciando os valores preponderantemente estéticos que até então as orientavam. Neste contexto, e com a tecnologia da câmera de vídeo portátil, nasce, entre os artistas visuais, a vídeo-arte. Se o cinema, narrativo e metonímico, é literatura (ou seja, prosa), a vídeo-arte, metafórico e conceitual, aproxima-se da linguagem da poesia.

Metáfora e Metonímia

Roman Jakobson, em “Dois aspectos da linguagem e dois tipos de afasia”, discrimina dois modos de arranjo do signo linguístico: combinação e seleção. O primeiro trata da hierarquização das unidades linguísticas, das mais simples às mais complexas, o que as torna inseridas numa contextura sintagmática. O segundo trata da possibilidade de substituição paradigmática de um termo por outro afim. Jakobson identifica o primeiro modo, o da contiguidade, com o polo metonímico (característico da prosa), e o segundo modo, o da similaridade, com o polo metafórico (característico da poesia). Jakobson também distingue seis funções de linguagem, relacionando cada uma delas a um dos componentes do processo comunicativo, entre elas, a função poética é aquela que se foca na própria mensagem. A experiência dos elementos formais, ou seja, a experiência da linguagem em si mesma, é o que, para Jakobson, caracteriza a poesia.5 Segundo A. L. Rees, em seu A history of experimental film and video, a distinção entre prosa e poesia serve como um excelente guia para se compreender o projeto do cinema de vanguarda. Em fato – e aqui Rees cita o ensaio “Poetry and prose in the cinema”, de Shklovsky :

prosa e poesia em filme são dois gêneros distintos; não se diferem pelo ritmo – ou melhor, não apenas pelo ritmo – mas pelo fato de que no cinema de poesia elementos da forma prevalecem sobre os elementos do significado e são eles, e não o significado, que determinam a composição.6

 

Pensando nos termos de dois gêneros distintos em filme, os predominantemente metonímicos e os predominantemente metafóricos, chegamos na mesma distinção que existe na literatura entre prosa e poesia. Transcendendo a questão do meio (a imagem ou a palavra) e do suporte (a película e a página) e pensando nos gêneros artísticos de acordo com o uso que fazem de sua linguagem, seria lógico alinhar de um lado a vídeo-arte e o poema; e de outro o cinema narrativo e a prosa de ficção. Para Tunga, artista contemporâneo brasileiro cujo trabalho carrega fortes conteúdos psicanalíticos e faz uso recorrente de metáforas (é interessante notar que, para Lacan, a própria linguagem é metáfora, metáfora da metáfora, metáfora de um real inatingível), é o uso da linguagem (qualquer linguagem) que caracteriza a poesia:

Eu me coloco na posição do poeta porque eu acho que poesia não é a coisa escrita ou a poesia falada ou a poesia cantada ou a poesia feita objeto. É o que está por trás da poesia, e isso é texto em qualquer forma, através de qualquer linguagem. E a gente pode usar, pode manipular, qualquer campo da linguagem para ascender a esse território. Esse território é o quê? É o território da densidade máxima da experiência da linguagem.7

 

Neste sentido, por sua forte densidade metafórica – e pelas próprias palavras do artista, colocando-se como poeta –, alguns trabalhos em vídeo (e também em performance, quase sempre, aliás, acompanhadas de um texto) de Tunga poderiam ser considerados como poemas. Alguns desses exemplos são Medula e Quimera, ambos de 2005 e feitos em parceria com o cineasta Eryk Rocha.

Tempo e Espaço

Numa reação aos preceitos modernistas, entre as décadas de 1950 e 1960, prenunciando o advento da pluralidade do pós-modernismo, artistas começaram a ampliar as possibilidades de meios e suportes. No campo das artes visuais, a produção de imagens incorporou as tecnologias da fotografia, do cinema e do vídeo. Categoricamente definidas por Lessing em seu fundamental Laocoonte ou as fronteiras da pintura e da poesia como artes do espaço, com a apropriação dessas novas tecnologias, “as artes plásticas incorporaram o tempo ao seu universo eminentemente espacial, acontecimento que pode ser visto qual raiz e sintoma de sua própria contemporaneidade.”8

Nas narrativas que buscam contar a história da vídeo-arte ou do cinema experimental no Brasil, um esforço empreendido por pesquisadores como Arlindo Machado (organizador do catálogo e curador da exposição Made in Brazil – três décadas do vídeo-brasileiro, no Itaú Cultural, São Paulo, 2003), Fernando Cocchiarale (organizador do catálogo e curador da exposição Filmes de artista. Brasil 1965-80, no Oi Futuro, Rio de Janeiro, 2007), Walter Zanini, André Parente, Luiz Cláudio da Costa, e muitos outros, nota-se – ao contrário do que aconteceu na Europa e nos EUA, berço do cinema underground e da vídeo-arte – uma constrangedora ausência de poetas entre os pioneiros.9 Em 1974, no Rio de Janeiro, quando artistas como Sônia Andrade, Fernando Cocchiarale, Anna Bella Geiger, Ivens Machado e, logo depois, Paulo Herkenhoff, Letícia Parente e Miriam Danowski, tiveram acesso a um equipamento portapack trazido de Nova York por Tob Azulay,10 surgia a poesia marginal, de cunho contracultural, anedótico e anti-intelectual, e o máximo de interação entre ambos os campos parece ter sido a presença do poeta Chacal como juiz de futebol num filme de Luiz Alphonsus (Chacal é o juiz, 1976). No entanto, como atesta André Parente, havia um grande agenciamento com a poesia concreta:

A revista Navilouca, publicada em 1974 pelos poetas Waly Salomão e Torquato Neto, com magnífico projeto gráfico dos artistas plásticos Luciano Figueiredo e Óscar Ramos, mostra a grande efervescência que existia na cena da contracultura carioca, em que havia um grande agenciamento entre a poesia concreta, as artes plásticas neoconcretas, a música tropicalista e o cinema marginal.11

 

Na verdade, como corrige o próprio Parente, “em conseqüência da ruptura neoconcreta, a forma moderna e seus esquematismos racionalistas entram em declínio, sobretudo no Rio de Janeiro”.12 Se há um agenciamento entre as experiências do cinema e vídeo de vanguarda com a poesia, esse se dá em São Paulo, onde reside e trabalha o grupo Noigrandes. O foco das propostas da poesia concreta, no entanto, é fazer o caminho inverso daquele que fazem as artes visuais ao se apropriarem do vídeo: enfatizando a materialidade plástica dos vocábulos, os concretistas proclamam uma poesia verbivocovisual,13 que foi preponderantemente uma arte do espaço (e não do tempo).

Desta forma, tanto em sua vertente marginal, quanto em sua vertente concretista, e por diferentes razões, a poesia dos anos 1970 manteve-se distante das experimentações em vídeo que faziam os artistas plásticos no Rio de Janeiro e em São Paulo. Estando Gullar, o poeta entre os neoconcretistas, nesta época exilado, e focado em poemas politicamente engajados, não houve um desenvolvimento das propostas neoconcretas em poesia.14 Nas décadas seguintes, novos poetas de extração concretista, como Arnaldo Antunes e André Vallias, além dos próprios Campos, desenvolveram uma série de poemas visuais e vídeo poesias em computador, buscando sempre uma isomorfia entre palavra e imagem.15Philadelpho Menezes foi encontrar na poesia visiva italiana, oriunda do Futurismo e suas preocupações com o movimento e a performance, a possível ponte que não houve no Brasil entre a poesia e a vídeo-arte experimentais:

No plano estético, além da grande e evidente diferença entre ambas (a presença da imagem visual na poesia visiva, enquanto a poesia concreta se dá dentro dos limites da verbalidade) é também facilmente observável a distinção no âmbito da construção formal. Enquanto a poesia concreta se funda numa construção racional e medida que fazia interagir formalmente as palavras do poema, a poesia visiva se pauta pela caoticidade da armação, numa proposital fórmula desestrutural, que se choca frontalmente com a índole construtivista do poema concreto. Se este se põe na vertente vanguardista de reconstrução sintática da linguagem, de reelaboração de modos composicionais precisos – a ponto de daí derivar um esquematismo na fase mais ortodoxa, que, afinal, é onde se pode entrever uma poética específica do concretismo – o poema visivo exibe uma faceta desorganizada que o alinha com uma vertente oposta, a das vanguardas irracionais.16

 

Um excelente exemplo do emprego do tempo como elemento constitutivo, suporte e assunto do trabalho é o recente A carta roubada, de Helena Trindade, que reverte o vídeo para virtualmente reconstituir um exemplar rasgado do livro de Edgar Allan Poe.

Mente como meio

Em sua tese de doutoramento sobre Deleuze, Peter Pál Pelbart afirma que, para o filósofo francês, o cinema serve “para revelar determinadas condutas de tempo”, construindo com tais condutas diversos tipos de imagens, que permitem a Pelbart entrever no filósofo um interesse mais radical, “ao salientar a ambição do cinema de penetrar, apreender e reproduzir o próprio pensamento.” 17 Para Deleuze, a linguagem imagética do cinema revelaria, ou pelo menos indicaria, a concepção dopensamento em sua origem. A intuição de Deleuze aproxima-o das reflexões de Eisenstein – um dos precursores e maiores realizadores do cinema –, cuja teoria de montagem é, na verdade, uma teoria sobre a cognição humana. Em seu artigo “Cinema (interativo) como um modelo de mente”, Pia Tikka parte dos pressupostos de Eisenstein e das pesquisas da neurociência contemporânea para propor, dentro do contexto do cinema interativo, um interpretação da imagem em movimento como padrão de dinamismo mental:

Minha hipótese inicial parte da premissa de que a ação de enquadrar uma imagem é condicionada por uma interação conflitante entre a percepção antecipatória do cineasta e a percepção perceptiva da imagem, surgindo em decorrência desse conflito no processo de enquadramento de uma imagem padrões artisticamente significativos.18

Intrigada pela condição especular da vídeo-arte – estudada no trabalho de alguns de seus pioneiros, como Richard Serra e Vito Acconci –, que funde sujeito e objeto, artista e técnica, Rosalind Krauss, num instigante ensaio de 1976, propõe o narcisismo como o meio (medium) do vídeo. Ela explica:

Por um motivo, essa observação tende a criar uma fissura entre a natureza do vídeo e a das outras artes visuais. Pois essa declaração descreve condição mais psicológica do que física, e, embora estejamos acostumados a pensar em estados psicológicos como assuntos possíveis das obras de arte, não pensamos na psicologia como constituinte de seu medium. Por seu lado, o medium da pintura, da escultura ou do filme tem muito mais a ver com os fatores materiais e objetivos, específicos de uma forma particular: pigmentos cobrindo superfícies, matéria estendida ao longo do espaço, luz projetada através do celulóide em movimento. Isto é, a noção demedium contém o conceito de objeto-estado, separado do próprio ser do artista, pelo qual suas intenções devem passar.
O vídeo depende – como tudo que se queira experimentar – de um conjunto de mecanismos físicos. Então, talvez seja mais simples dizer que este dispositivo – em seus níveis presentes e futuros de tecnologia – compreende o medium da televisão e nada mais acrescentar. Entretanto, no contexto do vídeo, a facilidade de defini-lo nos termos de seus mecanismos não parece coincidir com a exatidão; e minhas experiências pessoais a esse respeito continuam a me instigar ao modelo psicológico.19

Krauss foi discípula de Greenberg, e parece ter herdado dele as preocupações em relação ao meio. Com efeito, como vimos no capítulo 2 (“Alguma rotação”), é sintomático que Greenberg tenha encontrado grandes dificuldades em definir qual seria a especificidade da poesia, instaurando para ela um meio essencialmente psicológico e sub ou supralógico, e percebendo uma inversão de sentidos entre poesia e pintura (esta sim de seu interesse):

Seria conveniente por um momento considerar a poesia “pura”, antes de passar à pintura. A teoria da poesia como encantamento, hipnose ou droga – como um agente psicológico, portanto – remonta a Poe e, em última instância, a Coleridge e Edmund Burke, com seus esforços para situar o prazer da poesia na “Fantasia” ou “Imaginação”. Mallarmé, contudo, foi o primeiro a basear nessa teoria uma prática consistente de poesia. O som, ele concluiu, é apenas um auxiliar da poesia, não o próprio meio; além disso, a poesia hoje é sobretudo lida, não recitada: o som das palavras é parte de seu significado, não aquilo que o contém. Para livrar a poesia do tema e dar plenos poderes à sua verdadeira força afetiva é necessário libertar as palavras da lógica. A singularidade do meio da poesia está no poder que tem a palavra de evocar associações e conotar. A poesia já não reside nas relações das palavras entre elas enquanto significados, mas nas relações das palavras entre elas enquanto personalidades compostas de som, histórias e possibilidades de significado. […] O poeta escreve não tanto para expressar como para criar algo que vai operar sobre a consciência do leitor, não o que comunica. E a emoção do leitor derivaria do poema como um objeto único e não dos referentes externos ao poema. […] No caso das artes plásticas, é mais fácil isolar o meio e, por conseguinte, pode-se dizer que a pintura e a escultura de vanguarda atingiram uma pureza muito mais radical do que a poesia de vanguarda. […] A pintura ou a estátua se esgota na sensação visual que produz. Não há nada para identificar, associar ou pensar, mas tudo a sentir. A poesia pura luta pela sugestão infinita; as artes plásticas puras, pela mínima.20

Tal entendimento parece dialogar com as ponderações de Claude Esteban em seu Crítica da razão poética:

Chegou-se a declarar que todo empreendimento artístico constituía uma experiência de mediação entre o material bruto, esse dado do tangível, e a figura secundária que nos restitui dele. Mas a poesia, […] a poesia, por sua vez, opera não sobre o concreto – matéria, cor, sonoridade –, mas já no interior desse meio mediado constituído pela linguagem. É a essas palavras dissociadas do real, a essa estrutura abstrata de signos que o poeta deve, precisamente, restituir a virtude de imediatidade, e mais ainda, de presença real. Mas tal empreendimento de encarnação será na verdade possível dentro do sistema verbal – e o poeta não terá de considerar falacioso esse horizonte que o solicita, onde palavra e presença se equivalem num ato demiúrgico que inventaria ao mesmo tempo a coisa tangível e seu nome? 21

Se, como quer o pensador e poeta franco-espanhol, o poeta já opera com algo distanciado da realidade, ou seja, com algo já criado, a linguagem (verbal), sua arte é, desde um ponto de vista, o duplo de um duplo, sombra de uma sombra, sonho de um sonho: espelho; ora, a condição especular da vídeo-arte é justamente o que Krauss encontra como fundamento de seu narcisismo. Talvez tenha sido um insight relacionado a esta condição especular da (de toda?) linguagem que tenha levado o artista multimeios Arthur Omar (apresentado em seu site como fotógrafo, cineasta, vídeo-maker, músico, poeta) a afirmar que “o verdadeiro ambiente da arte é a mente”.22 Questões de linguagem e identidade são problematizados pelos meus vídeos Ímpar e Tango, que fazem uso da minha própria imagem.

Isomorfia e enjambement

Em seu ensaio “Extremidades do vídeo: novas circunscrições do vídeo”, Christine Mello, empregando conceitos como ‘extremidades do vídeo’ e ‘infiltrações semióticas’ (a capacidade dos signos de operar em zonas de fronteira), analisa alguns processos de compartilhamento do vídeo na arte contemporânea. Segundo a autora, tal perspectiva expandida do vídeo “implica em observar os seus trânsitos na arte como interface”, entendendo interface como ‘fronteiras compartilhadas’ que colocam o vídeo em contato com “estratégias discursivas distintas ao meio eletrônico e interconectam múltiplas ações criativas em um mesmo trabalho de arte.”23 Entre outras, tais ações incluem, por exemplo, o videoclipe, a vídeo-dança, a vídeo-instalação, a vídeo-performance, a vídeo-poesia, a vídeo-escultura e o vídeo-teatro. Diz Arlindo Machado sobre a especificidade do vídeo:

Sabemos, pelo simples exame retrospectivo da história desse meio de expressão, que o vídeo é um sistema híbrido, ele opera com códigos significantes distintos, parte importados do cinema, parte importados do teatro, da literatura, do rádio e mais modernamente da computação gráfica, aos quais acrescenta alguns recursos expressivos específicos, alguns modos de formar idéias ou sensações que lhe são exclusivos, mas que não são suficientes, por si sós, para construir a estrutura inteira de uma obra. Esse talvez seja o ponto chave da questão. O discurso videográfico é impuro por natureza, ele reprocessa formas de expressão colocadas em circulação por outros meios, atribuindo-lhes novos valores, e sua ‘especificidade’, se houver, está sobretudo na solução peculiar que ele dá ao problema da síntese de todas essas contribuições.24

Referindo-se à hibridização entre o vídeo e a criação textual (ou seja, a literatura, a poesia), Machado observa que “uma das conquistas mais interessantes da vídeo-arte foi justamente a recuperação do texto verbal, a sua inserção no contexto da imagem e a descoberta de novas relações significantes entre códigos aparentemente distintos”.25 No Brasil, foram os concretistas e seus herdeiros que mais investigaram essas relações – especialmente Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari, mas também Júlio Plaza (em parceria com Paulo Leminsky e outros poetas) e, mais recentemente Arnaldo Antunes e André Vallias – criando poemas iconizados, ou poemas dotados de qualidades cinemáticas, privilegiando sempre uma unidade rítmico-formal, uma isomorfia: palavra e imagem em comunhão íntima. É justamente contra tal isomorfia que prega o poeta e filósofo brasileiro contemporâneo Alberto Pucheu. Ao estudar os “institutos poéticos” propostos por Agamben, Pucheu afirma a fissura, a falha, inerente à origem de toda linguagem, e para a qual a poesia (assim como a filosofia e o pensamento crítico) aponta, mantendo-a aberta:

enquanto o concretismo viu no verso “a unidade rítmico-formal” e, assim, sua morte, Agamben lê no enjambement o abismo entre o sintático e o semântico, entre o sonoro e o sentido, lê na cesura, algo portanto no interior de um mesmo verso, uma interrupção provocadora do mesmo abismo entre o significante e o significado e, assim, algo onde a unidade já se mostra cindida, impossível. nele, os institutos poéticos, formais, estruturais, nos fazem retornar constantemente ao lugar de nascimento do poema, obrigando-nos a realizar novos e novos renascimentos. o poema é aquilo que não quer de modo algum se afastar de sua origem.26

A sutil e eficaz exploração do descompasso entre poesia e imagem é a força por trás dos trabalhos – dos poemas – em vídeo Quando fui carpa e quase virei dragão(2007) e Algumas perguntas (2005) da artista visual Brígida Baltar. Mais distanciado da tradição concretista, a vídeo-arte parece ser capaz de resgatar a poesia – em um campo ampliado – de uma forma mais contemporânea, eliminando preceitos e dogmas (como o isomofirsmo) que ainda encarceram a poesia intersemiótica produzida a partir do campo da poesia.

André Sheik – Eu sou mais do que aparento

 

Ricardo Domeneck – Garganta com texto (2006)

 

Laura Erber – História antiga

 

Renato Resende – Ímpar e Tango

 

Guilherme Zarvos – Muro burro

 

Domingos Guimaraens – Gema

 

Helena Trindade – A carta roubada

 

* Renato Rezende é graduado em literatura espanhola pela Universidade de Massachusetts, Boston, EUA, e mestre em Arte e Cultura Contemporânea pela UERJ. Como poeta, é autor de Passeio (2001), Ímpar (2005) e Noiva (2008) entre outros, recebendo a Bolsa da Fundação Biblioteca Nacional para obra em formação em 1997, e o Prêmio Alphonsus de Guimaraens da Biblioteca Nacional para o melhor livro de poesia em 2005.

NOTAS

1 DOMENECK, Ricardo. “O tal de voco do verbo visual”. http://ricardo-domeneck.blogspot.com, entrada de 24/06/2008. Ele continua: “É com alegria que podemos observar a maneira como alguns poetas brasileiros estão passando a aproveitar-se da era digital para retornarem a um trabalho pluralista com a poesia, experimentando com vídeo e poesia sonora, gravando leituras e performances, colaborando com músicos profissionais. Nada há de “vanguardismo” neste fenômeno, mas do testemunhar do nascimento de suportes tecnológicos que permitem ao poeta RETORNAR às características dormentes do fazer poético.”

2 SONTAG, Susan. Contra a interpretação. Tradução de Ana Maria Capovilla. Porto Alegre: L&PM, 1987, p. 21.

3 Ver PARENTE, André. “Cinema de vanguarda, cinema experimental e cinema do dispositivo”. In: Filmes de artista. Brasil 1965-80. Rio de Janeiro: Contracapa / Metropolis, 2007. Catálogo da exposição realizada no Oi Futuro, Rio de Janeiro, de 1º de maio a 17 de junho de 2007, com a curadoria de Fernando Cocchiarale.

4 Para Haroldo de Campos, “Na poesia de vanguarda, o poeta, além de exercitar aquela função poética por definição voltada para a estrutura mesma da mensagem, é ainda motivado a poetar pelo próprio ato de poetar, isto é, mais do que por uma função referencial ou outra, ele é complementarmente movido por uma função metalingüística: escreve poemas críticos, poemas sobre o próprio poema ou sobre o ofício do poeta.” CAMPOS, Haroldo. A arte no horizonte do provável. São Paulo: Perspectiva, 1977, pp. 152-153.

5 JAKOBSON, Roman. Lingüística e Comunicação. Tradução de Isidoro Blikstein e José Paulo Paes. São Paulo, Cultrix, s/d. O autor, no entanto, deixa claro que “qualquer tentativa de reduzir a esfera da função poética à poesia ou de confinar a poesia à função poética seria uma simplificação excessiva e enganadora.”, pp. 127-128.

6 REES, A. L. A history of experimental film and vídeo. Londres: British Film Institute, 1999, p. 34. No original: “Shklovsky’s 1927 essay ‘Poetry and Prose in the Cinema’ states that prose and poetry in film are ‘two different genres; they differ not in their rhythm – or rather, not only in their rhythm – but in the fact that in the cinema of poetry elements of form prevail over elements of meaning and it is they, rather than the meaning, which determine the composition.”

7 Entrevista concedida a Sergio Cohn, Pedro Cesarino e Renato Rezende. In: Revista Azougue 10. Rio de Janeiro: Azougue, 2008.

8 COCCHIARALE, Fernando. “Sobre filmes de artista”. In: Filmes de artista. Brasil 1965-80. Rio de Janeiro: Contracapa / Metropolis, 2007. Catálogo da exposição realizada no Oi Futuro, Rio de Janeiro, de 1º de maio a 17 de junho de 2007, com a curadoria de Fernando Cocchiarale, p. 11.

9 Para constatar a presença determinante de poetas na história do cinema experimental e do vídeo nos EUA e na Europa, tanto como produtores quanto como inspiradores ou interlocutores, ver REES, A. L. A history of Experimental film and vídeo. Londres: British Film Institute, 1999. Por exemplo, discorrendo sobre as origens da vanguarda americana no pós-guerra, Rees diz: “Other film-makers were poets and writers: Sidney Peterson, Willard Maas, Jonas Mekas, Brakhage, who broke most radically with narrative to inaugurate abstract montage, was strongly influenced by Pound and Stein on compression and repetition in language. [ ] It rehearsed the old argument between film-as-painting and as camera-eye vision, each claiming to express film’s unique property as a plastic form. By turning to the poets and writers of experimental modernism – Pound, Eliot, Joyce, Stein – the film-makers distanced themselves from the direct drama and narrative tradition in realism.”, pp. 58-59.

10 Ver MACHADO, Arlindo. “As linhas de força do vídeo brasileiro”. In: MACHADO, Arlindo (org). Made in Brazil – três décadas do vídeo-brasileiro, São Paulo: Itaú Cultural, 2003.

11 PARENTE, André. “Cinema de vanguarda, cinema experimental e cinema do dispositivo”. In: Filmes de artista. Brasil 1965-80. Rio de Janeiro: Contracapa / Metropolis, 2007. Catálogo da exposição realizada no Oi Futuro, Rio de Janeiro, de 1º de maio a 17 de junho de 2007, com a curadoria de Fernando Cocchiarale, p. 30.

12 Ibid, p. 31.

13 A poesia concretista foi no fim das contas bem mais verbivisual do que voco. Diz o plano-piloto da poesia concreta, assinado por Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos, e publicado originalmente na revista Noigrandes 4, 1958: “dado por encerrado o ciclo histórico do verso (unidade rítmico-formal), a poesia concreta começa por tomar conhecimento do espaço gráfico como agente cultural. espaço qualificado: estrutura espacio-temporal, em vez de desenvolvimento meramente temporístico-linear, daí a importância da idéia de ideograma, desde o seu sentido específico (fenollosa/Pound) de método de compor baseado na justaposição direta – analógica, não lógica-discursiva – de elementos. ‘Il faut que notre intelligence s’habitue à comprendre synthético-ideógraphiquement au lieu de analytico-discursivement’ (Apollinaire). einsenstein: ideograma e montagem.” In: AMARAL, Aracy (org). Projeto construtivo brasileiro na arte (1950-1962). Rio de Janeiro: MAM; São Paulo: Pinacoteca do Estado, 1977.

14 Regina Vater, no entanto, incluiu uma foto de Hélio Oiticica vestindo um parangolé na exposição “Brazilian Visual Poetry”, da qual foi curadora, no Mexic-Arte Museum, em Austin, Texas, 2002.

15 Para um excelente estudo sobre alguns destes trabalhos ver: ARAÚJO, Ricardo. Poesia visual Vídeo poesia. São Paulo: Perspectiva, 1999.

16 MENEZES, Philadelpho (org). A crise do passado: modernidade, vanguarda, metamodernidade. São Paulo: Experimento, 1994, pp. 204-205.

17 PELBART, Peter Pál. O tempo não-reconciliado. São Paulo: Perspectiva, 1998, p.27.

18 TIKKA, Pia. “Cinema (interativo) como um modelo de mente” Tradução de Renato Rezende. In: MACIEL, Kátia (org). Transcinema. Rio de Janeiro: Contracapa, 2009.

19 KRAUSS, Rosalind. “Vìdeo: a estética do narcisismo”. Tradução de Rodrigo Krul e Thais Medeiros. Arte & Ensaio. Revista do Programa de Pós-graduação em Artes Visuais EBA – UFRJ. Ano XV, número 16, julho de 2008. pp 144-157

20 GREENBERG, Clement. “Rumo a mais um novo Laocoonte”. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. In: FERREIRA, Glória e COTRIM DE MELLO, Cecília. Clement Greenberg e o debate crítico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p. 54-55.

21 ESTEBAN, Claude. Crítica da razão poética. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 1991. p. 187.

22 http://www.museuvirtual.com.br/arthuromar/. Seu trabalho Mola cósmica é uma escrita visual, em que frames de um vídeo se tornaram um alfabeto.

23 MELLO, Cristine. “Extremidades do vídeo: Novas circunscrições do vídeo”http://reposcom.portcom.intercom.org.br/bitstream/1904/17772/1/R0788-1.pdf

24 MACHADO, Arlindo. Apud RISÉRIO, Antonio. Ensaio sobre o texto poético em contexto digital. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado; COPENE, 1998, pp. 156=157.

25 Ibidem p. 157.

26 PUCHEU, Alberto. “Entrevista de uma pergunta só”. Entrevista a Francisco Bosco. Inédito.

Tempo de leitura estimado: 16 minutos

Poesia 00: nota de apresentação e mini antologia | de Italo Moriconi

Cena mutante

Os anos passam e as gerações poéticas se sucedem, como as ondas no mar. Ao grupo dos “novos”, logo se acrescenta o grupo dos “novíssimos”. Esteticamente, cada nova onda de poetas pode situar-se de maneira antagônica ou em continuidade direta com a onda anterior. Tudo indica que a onda da geração 00, sem deixar de representar o resultado e a consequência da cena poética brasileira dos anos 90, traz algumas tendências ou novidades que possivelmente uma pesquisa mais extensa fixará como um perfil. Será certamente um perfil diversificado – a pluralidade de dicções e orientações é um fato. A era dos “ismos” dominantes acabou. No lugar dela, entramos numa era em que prevalecem os focos aglutinadores, os núcleos e laboratórios poéticos que acolhem e onde se gesta a poesia nova.

O estopim que motivou a seleção da presente amostra foi o lançamento em 2007 de três poetas novíssimos pela prestigiosa coleção Ás de Colete, empreendimento conjunto das editoras 7Letras e CosacNaify. Por “novíssimo”, entenda-se poeta estreado em livro a partir do ano 2000 ou pouquíssimo antes – 99, 98. Dos três novíssimos lançados naquela ocasião, Marília Garcia e Ricardo Domeneck já tinham estreado em livro anteriormente, ela com uma plaquete na coleção Moby Dick, da 7Letras, em 2001, ele na coleção de poesia da Editora Bem-Te-Vi, em 2005. No caso da poeta Angélica Freitas, trata-se de estréia tout court. Esse grupo está ligado à revista Modo de Usar, lançada em 2008 como uma espécie de costela do conglomerado 7Letras/Cosac.

Pode-se dizer que os três lançamentos nucleiam boa parte das novas tendências reconhecíveis na cena poética brasileira. Mas para efetivar a seleção solicitada, ampliei um pouco meu universo de mapeamento e pesquisa, aproveitando para atualizar-me minimamente em relação à produção dos novíssimos. Assim, com a inestimável colaboração e interlocução de Luciana di Leone (mestranda de Literatura Brasileira na UERJ), fiz uma primeira leitura – em alguns casos, releitura – de um número expressivo de livros de novíssimos, constantes dos catálogos e coleções das mencionadas editoras, a que acrescentei os lançamentos da editora Azougue e mais alguns livros avulsos espalhados pela minha caótica biblioteca, que há alguns anos não tenho tido tempo de arrumar. O objetivo foi não o de realizar uma antologia de “melhores”, nem mesmo uma antologia de “representativos”, mas apenas uma amostra de bons poemas escritos por novíssimos, marcando o momento da segunda metade dos anos 00. Bons poemas no sentido de manifestarem práticas do poético como prospecção de linguagem. Eu mesmo fiquei surpreso com o que considero ser o alto nível decantado ao fim e ao cabo da sempre precária escolha. Ao leitor, cabe o veredito final.

Em ritmo de esboço apressado, identifico como traço interessante da poesia 00, em primeiro lugar, certo desafogo em relação ao formalismo típico da poesia nova da década anterior. Formalismo esse que se traduzia pela exploração ainda minimalista da elipse poética, ou pela pura e simples volta ao soneto e às formas fixas e metrificadas da tradição mais antiga. Não se trata agora, como tinha sido no caso da geração “marginal” dos anos 70, de um desafogo na linha do “relaxamento” e do coloquialismo, embora este se faça presente de maneira mais estetizada. Trata-se, sim, dentro ainda dos moldes culturalizados que definiram o padrão de exigência próprio dos anos 90, da presença de um outro modo de tratamento da elipse poética, no que se poderia chamar de “desestruturação controlada”. Esse tipo de poesia mais desestruturada, desconstruída, associa-se à presença clara de mais discursividade, mais narratividade (fragmentária), frequentemente obtida pela incorporação do conversacional, não pela simulação de uma interlocução (como em Ana C.), mas pela interpolação de fragmentos de diálogos no corpo do poema (ao jeito de Francisco Alvim). Observamos também que cada vez mais o poeta e a poeta brasileiros lançam mão de recursos alegóricos e alusivos, denotando maior convivência com tradições poéticas estrangeiras. Narrar de maneira oblíqua. Costurar nas descosturas.

Em paralelo com o viés por assim dizer erudito e sofisticado que o grosso da geração 00 pega da anterior, observamos também, e com alívio, que volta a existir espaço para um tipo de poesia mais abusada, mais paródica, renovando-se a eterna vertente iconoclástica em relação aos também eternos ícones literários, como o leitor poderá ver nos poemas de Angélica Freitas e Douglas Diegues. O traço marcante aqui é que quando o poeta novíssimo ironiza a alta cultura, o faz menos em cima de questões propriamente estéticas e mais através da transformação dos grandes autores em personagens de um drama. Tal reação realça pelo avesso o caráter fetichista de toda e qualquer assinatura poética. Escritores consagrados viram personagens-máscaras de uma comédia mental (no caso de Angélica) ou social (no caso de Douglas).

Outro traço marcante – a meu ver instigante, embora perturbador – da novíssima poesia brasileira é a desestabilização da língua brasileira, que se mostra aqui contaminada por línguas estrangeiras. Fazem-se presentes as línguas dominantes na cultura erudita – o inglês, o francês, até o alemão (vide Domeneck). Mas o dado forte é o mix com o espanhol, chegando ao ponto de termos um autor, Douglas Diegues, que assume o portunhol como língua bandida de expressão poética, na linha experimental de um Wilson Bueno.

Se focalizamos o levantamento de tendências com base no que foi anteriormente postulado, de que a cena poética hoje se estrutura a partir de núcleos de aglutinação, constatamos que a presente amostra apóia-se em duas vertentes principais: a vertente 7Letras e a vertente Azougue. Como se sabe, em ambas temos a feliz conjunção entre revista de poesia (Inimigo Rumor e Azougue) e editora de poesia nova. As duas fazem sua captação de recursos poéticos em âmbito nacional, buscando escapar das limitações impostas pela centralização no eixo Rio-S. Paulo. Os poetas 00 surgidos no território Inimigo Rumor fazem parte de uma história originada nos anos 90 que está à espera de ser contada de maneira sistemática. Essa história poderia ser contada tendo por eixo narrativo os embates contemporâneos entre formalismo e desestruturação, formalismo e discursividade ou narratividade, alta e baixa cultura, sublimação e dessublimação. Já os poetas surgidos na área da Azougue apontam, por um lado, para uma vertente mais “cósmica” e “naturalista” (e até xamânica, na linha de Roberto Piva) da poesia brasileira, assim como acolhe-se nela o resultado da atuação do grupo carioca CEP 20000, cujas raízes remontam aos anos 80, através da presença de gurus como Chacal e Guilherme Zarvos. No caso da área Inimigo Rumor, os gurus identificáveis são Carlito Azevedo e Anibal Cristobo.

Mas é claro que quem eu estou chamando aqui de guru não quer ser guru. Deixemos pois suas figuras momentaneamente de lado e assinalemos que, sobretudo, destaca-se nos poetas aqui selecionados o caráter autônomo, original e singular de suas vozes, numa cena que já pouco ou nada tem a ver com o antigo panteão modernista dos Drummonds e Cabrais.

Antologia

Marília Garcia (20 poemas para o seu walkman)

Aquário

tem o pânico das algas marinhas
quando acorda de frente para o estádio.
o quarto é um aquário
com setas submersas de
sol e seu corpo filtrado
pela luz do insulfilm
tem o contorno
de um magnetismo
inverso. não que importassem

as horas. apenas não sabia como ali chegara. não
sabia quanto tempo tinha passado (um cão
lambia o pé, a mesma imagem
congelada)

e na saída: “vai me responder de novo com
uma pergunta?” “mas a configuração é
diferente.” e ela disse, não lembro o que ela disse.
o estádio é um buraco no tempo e de cima
suas guelras latejam os ecos da última partida.
você se encolhe atrás do vidro
redondo, luta para vencer
as pequenas pedras, como num oceano
violeta genciana

Inferno musical

I.
o que explicou sobre a melodia
de sistemas não fazia sentido pois
dessa vez não havia
som algum.
– é uma deformação, quase um inferno
musical que,
ao transbordar,
congela,
como o mármore, o tombo ou
o tapa. poucos usam a palavra anti-
harmonia ou anti-
densidade (nada se acopla
com nada aqui)
a vida se divide em
duas partes móveis e você pode
entrar numa melodia circular
atrás da configuração correta

II.
– ezeiza es um sitio que no
existe mas chegar é repetir o
gesto inexistente, como dizer uma
frase sem som ou se tornar o mesmo
uma semana depois no momento em que
a aeronave se desloca com
mais esforço.
no desenho tenso da esteira
a única mala – para tomar a estrada
de noite no deserto asfixiante
e escuro.

Laura Erber
(Insones)

arroubos

para Aruac

…ela te escreverá toda noite quando as frases do dia entre duas pálpebras brilharem no rigor de
cada sílaba é o verão desabotoando sem a gente perceber que já bem
no centro de havana comprando sorvetes derretidos e caseiros ou também por um
senhor de nariz fino asas feridas … a dónde crees que te va a llevar todo ese
aprendizaje, chica? numa viagem a céu aberto sucessivos alejamientos y
dissolvências nos llevan a ver la isla desde el mar uma notícia que envolva muita
gente el desliz que compreende su figura el vencimiento de la distancia nessa noite
teus olhos ilhas envoltas por água e sal cuando el espacio se contrae para parir la
llegada de uma fuerza sem veladura sem artifícios a pura luz da rua e o ritmo de
tropeços multitud de sombras lembranças onde caminhas cuidadoso com poder
delicado de revê-lo o sorvete se desfaz mas as respostas são perguntas retorcidas aos quarenta
graus em la habana e também no rio enquanto entre nós o copo de
aguardente espera a mão alcançar um fio de cabelo e as bocas se calarem num
encontro passageiro afinal a dónde te va a llevar todo ese
aprendizaje…………………………………………….

Sérgio Cohn
(Horizonte de eventos)

mnemo.

Há um resíduo de futuro
no vento, fotograma ante-
cipado, montagem de fragmentos
induzindo à cena. Como
aquela árvore se curvando com-
placente aos invisíveis pesos,
como o mormaço
predizendo chuva. Repito,
há um canto anterior
a qualquer canto, uma réstia,
um eco primeiro, como um som
que ressoa por dentro de cada
palavra, como todo gesto se
desenha e apaga, então
novamente. Há o revés,
o diáfano, o termo, beleza
posta e perdida, o desen-
cadeamento, assim
como a sede do vapor
por uma forma, assim
como tudo retorna
à imaginação
por trás da cortina
da memória.

Angélica Freitas
(Rilke Shake)

na banheira com gertrude stein

gertrude stein tem um bundão chega pra lá gertrude
stein e quando ela chega pra lá faz um barulhão como
se alguém passasse um pano molhado na vidraça
enorme de um edifício público

gertrude stein daqui pra cá é você o paninho de lavar
atrás da orelha é todo seu daqui pra cá sou eu o patinho
de borracha é meu e assim ficamos satisfeitas

mas gertrude stein é cabotina acha graça em soltar pum
debaixo d’agua eu hein gertrude stein? não é possível
que alguém goste tanto de fazer bolha

e aí como a banheira é dela ela puxa a rolha e me rouba
a toalha

e sai correndo pelada a bunda enorme descendo a
escada e ganhando as ruas de st.-germain-des-prés

epílogo

gertrude stein cabelo dos césares

alice olhos negros de gipsy

josephine baker djuna barnes

nós cinco na sala de espelhos

eu era alice e djuna era josephine

gertrude stein era gertrude stein era gertrude stein

na saída gertrude me puxou pelo braço

e me disse muito zangada: não achei graça

no que você publicou nos jornais

me derrubaria como um tanque da wehrmacht

não fosse por ezra que passeava ali seu bel esprit

lésbicas são um desperdício ele disse

você já ouviu falar em mussolini?

Ericson Pires
(Cinema de garganta)

Canto de abertura de caminhos

(oju-oritá e /ou conversas de Merleau-Ponty)

Quando você abre os olhos

Você pode ver tudo
Pensar que vê tudo
Tudo pode ser visto
Ver-se em nada que é visto

Quando você abre os olhos

Pode tentar pegar coisas com olhos
Pegar pensamentos nos olhos
Partir do momento onde os olhos
Param de saber que são olhos

Quando você abre os olhos

As coisas perdem os nomes
O tempo é sempre presente
E o presente são os nomes
Nomes do presente

Fluxo
Tempo

Você abre os olhos e vê

Você está

Jardins…

Ricardo Domeneck
(Carta aos Anfíbios)

De madrugada, de manhã

1.

Acordar no meio da noite
com a cabeça do outro
sobre o peito,
travesseiro,

maré e barco;

permanecer desperto, à deriva
o resto da noite, dormentes
e doloridos os membros,
a circulação cindida,

sem desejo de resgate

e sussurrar-lhe ao ouvido:
unsere knochenknospen schnurren und schnorrem,
nossos brotos d’ossos ronronam e imploram,
como em qualquer hino,

meu querido.

2.

Eu desconheço quanto

deserto custa
uma epístola
aos coríntios;

se a cegueira
no caminho
precede sempre

(e vale)

a cidade
de destino;

se na garganta
um novo cântico
dos cânticos aguarda

ou se quatorze anos
de fôlego preso
hidratariam um soneto;

eu falo baixo
porque deixá-lo

dormir meia-hora
a mais é minha forma

de acariciá-lo
logo de manhã

que, envolto em lã,
ignora o abalo

sísmico
em mim:

um bocejo
seu.

(a cadela sem Logos)

Décima Faixa – 0:55
(em “Poema começando ´Quando’”)

Algo amadurece à distância
mas aproxima-se aos
poucos para poucos
antes de todos
perceberem que
do chão à copa
o espaço é da queda.
Tudo deve ser documentado
é uma pergunta do processo
que se inicia no terror
para alcançar a beleza,
o risco do esquecimento
o primo leve da memória,
o preço breve do ato.
O trabalho árduo de convencer
a fruta
de que já se encontra madura.
Com os dentes.
Tempo movendo-se em volume
alto, duração contínua
segundo a segundo
para depois
ser sujeito
às elipses da atenção
da história.
A mão que escreve
pode querer-se à margem,
silenciosa, mas seu
tom de voz ecoa
por todos os cantos.
Camuflagem falha.
Equívoco da tentativa
de uma “epistemology
without a knowing
subject”.
Toda presença
é central mas pode
sabotar-se
melhor como ventríloquo
do que invisível.

Pedro Cesarino
(Oceanos)

Se chamo a árvore de “espelho”,
o faço não por capricho, mas por reconhecer nos galhos
certos traços meus que em algum momento
se misturaram à trama das coisas.

Se chamo o céu de “elefante absurdo”
é porque não o consigo abarcar
com nenhuma imagem melhor.

Ele escapa por todos os lados feito água arredia,
que aliás eu trato por “cristal”, o que é um paradoxo,
pois as pedras são essência irremovível,
enquanto a água, tal como o céu, escorre
inevitavelmente pelas bordas do mundo.

Mas chamo-a assim pois é na realidade
à substância do olho que me refiro:
esse prisma de carne
banhado pelo líquido de luz.

Se chamo a noite de “pássaro”
é porque não há pássaros na noite,
a não ser por alguns solitários
voando anônimos no escuro.

Os pássaros eu não trato por nenhum
outro nome, a não ser “pássaros”.
Daquilo que voa, o que falar?
Como chamar?

Douglas Diegues
(uma FLOR na solapa da MISÉRIA – poemas em portuñol)

le gustaba escalar la planície com su muleta de alumínio
parecia un idiota cruzando la tarde sin sentido
bebia de la imundície sin problemas
porque desde crianza estaba acostumado a beber de la imundície terrena

sabia como convivir com la imundicie que produce el hombre.
había ainda en sus ojos un resto de brilho feliz de infância perdida
escalando la planicie de los dias
com su muleta de alumínio non precisaba más nin nombre

parecia que había salido de algun libro de Manoel de Barros
un personagem de carne gosma esperma escama sangre osso misterio
escalar una montanha del lado brasileiro era escalar una planície del lado paraguayo escalar una montanha del lado paraguayo era escalar una planície del lado brasileiro

em ambos los lados de la frontera que implacabelmente apodrece
ninguém consigue escalar planicies tan bién como ele

 

Por que escrebo?
Escrebo para ficar menos mesquinho
belleza de lo invisible
non tem nada a ver com berso certinho

en el culo de qualquer momento
escreber pode ser mais que apenas ir morrendo
la belleza de lo invisible
non se pudre com el tempo

la bosta dos elefantes seca verde clara dura
es altamente inflamáble – dá uma llama bem pura
nunca se termina de aprender a transformar bosta em luz y
otros desenganos –
todos fomos bellos quando teníamos 4 anos

hoje la maioria solo se preocupa com sus narizes
su esperma, su bosta, su lucro, sus missíles

 

Rodrigo Magalhães
(O legado de Beltrano)

Deus e João no mundo cão

Primeiro, a emboscada e o chão era de barro.

Não deu para ver se alvos ou mestiços.
Mas não eram machos.

Tavam numa espreita, dessas em que o sujeito mira acocorado,
da qual só restam dois: o estampido e o baleado.

Cabul,
era míssil nomeando a cidade.

Após o acontecido, comi um tanto da poeira.
Que era do chão. Que era de barro.

E só havia um sol de fazer ouro na retina,
que, entre os gumes de minha sina, alastrava o seu mormaço.

Era lá, à espreita
pelo Tomahawk em assovio
– parecia o simum no canudo,
alguém dizia.

À espera do suspiro que nos finda,
cobriu-me a certeza de alguns nomes sobre a força dos cajados.
Foi o coronel. Ele honrou o seu gado, a sua família.
Soprou a minha vida.

Alguém se persignava.

 

*

1 Texto e antologia originalmente publicados na revista Margens/Margenes, n. 9-10, Belo Horizonte, 2008, que gentilmente cedeu os direitos de publicação em Z.

 

Tempo de leitura estimado: 25 minutos

União Européia e Multiculturalismo | de Eduardo Gomes

1. Introdução

O elemento cultural sempre esteve presente na história da humanidade. Com a evolução da sociedade internacional, especialmente com a construção de valores comuns, ligados ao Estado, a cultura passou a ser entendida e concebida como um elemento de agregação dos povos, das nações e do próprio Estado. Foi na Revolução Francesa, 1789, que os elementos culturais – entendidos como o conjunto de expressões, adotadas pelos indivíduos em uma determinada sociedade, como é o caso do idioma – passaram a ser considerados como elementos importantes para a consolidação do Estado-Nação, de forma a justificar a vinculação dos súditos a um determinado Estado, através do conceito de nacionalidade.

A nacionalidade é aqui entendida, como o vínculo jurídico e político que une o cidadão a um determinado Estado. Durante muito tempo a livre expressão cultural esteve subjugada aos interesses políticos e sociais dos soberanos que, através do estabelecimento de um ordenamento jurídico único, de natureza constitucional, impunham os valores culturais que deveriam ser seguidos pelos súditos do Estado. Era o período em que o conceito de soberania era entendido com base no poder supremo.

Com o decorrer da história, a eclosão das duas grandes guerras mundiais, o período do socialismo e da própria Guerra Fria, o seu término na década de 90, o advento do desenvolvimento tecnológico, o florescimento do comércio internacional e a própria formação dos blocos econômicos, o conceito de soberania é relativizado. Com a relativização do conceito de soberania surge a possibilidade de os indivíduos manifestarem os seus valores culturais, notadamente porque, nos dias de hoje, vivemos em uma sociedade pluralista. A referida sociedade pluralista é representada, neste artigo, na União Europeia, que contempla vinte e sete Estados em um espaço supranacional, com idiomas e cultura diversa.

O presente artigo, resultante de pequena parte da pesquisa de Pós-Doutoramento realizado na Universidade Federal do Rio de Janeiro, junto ao Programa Avançado de Cultura Contemporânea, e que abordou o tema da Democracia e dos Direitos Fundamentais na União Europeia: a questão do multiculturalismo, busca examinar as relações culturais dentro daquele bloco econômico.

2. O Espaço Supranacional

Definir o espaço supranacional, no qual convivem inúmeras culturas, povos e nações, com seus costumes, tradições, valores e línguas diferentes, não é tarefa fácil, principalmente quando se trata de abordar a União Europeia, bloco econômico de natureza supranacional, regido por um ordenamento jurídico próprio, que é o Direito Comunitário, e que busca harmonizar e compatibilizar os interesses existentes entre os vinte e sete Estados-membros. Vale lembrar que, tecnicamente, a União Europeia representa mais do que um bloco econômico, mas uma verdadeira comunidade política, instituída através do Tratado de Maastrich, 1992, e como tal, as respectivas instituições comunitárias atuam em áreas que, anteriormente, eram de competência exclusiva dos Estados. Disso surge o Direito Comunitário, como direito peculiar e singular, tendo a sua origem a partir do Direito Internacional Público, sendo ao mesmo tempo, autônomo e independente frente ao Direito Interno e ao Direito Internacional. A peculiaridade do Direito Comunitário deve-se aos seus princípios, advindos do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias. São eles:

a) Aplicabilidade direta: assevera que a normativa comunitária, uma vez publicada no Diário Oficial das Comunidades Europeias, já produz efeitos por si só e não necessita ser internalizada ou transposta para o ordenamento jurídico nacional, segundo os requisitos estabelecidos nas Constituições de cada Estado-membro;
b) Primado do Direito Comunitário: a normativa comunitária, que deve ser aplicada em todos os ordenamentos jurídicos dos Estados Membros, possui a primazia em relação ao Direito Interno o que, na prática, significa dizer que o Direito Comunitário, em caso de conflito com o Direito Interno, sempre deverá prevalecer;
c) Uniformidade na interpretação e na aplicação do Direito Comunitário: como o referido Direito possui aplicabilidade direta, e é dotado, ainda, de primazia frente ao Direito Interno, certo é que o mesmo possui aplicação nas vinte e sete jurisdições dos Estados Membros. Para que haja uma certa harmonia, em relação a sua aplicabilidade, de forma a garantir uma segurança jurídica em relação a sua observância, o Direito Comunitário deverá ser interpretado e aplicado de maneira uniforme pelos juízes nacionais.1

Junto ao Direito Comunitário se deve agregar o conceito de supranacionalidade que, em termos técnicos, significa um poder acima dos interesses dos Estados e que legitima às instituições comunitárias a adoção de decisões que levem em conta os interesses da União Europeia, apesar de, muitas vezes, contrariarem os interesses dos Estados. A justificativa para a aplicação das referidas políticas comunitárias decorre do próprio sentimento de unidade, dentro do processo de integração, pois, em determinadas políticas, busca-se preservar o todo, respeitando-se, é claro, as diferenças, principalmente culturais, religiosas e linguísticas de cada nação, o que é a essência do multiculturalismo, conforme será visto adiante. As instituições comunitárias somente atuarão dentro de suas competências, estabelecidas pelos Estados através dos respectivos tratados institucionais: Tratado de Roma, 1957 2, e subsequentes alterações, estando em vigor, atualmente, o Tratado de Nice, 2001.3

Assim, ao instituto da supranacionalidade há de se agregar o conceito de delegação de competências legislativas, significando dizer que são os Estados, por um ato de soberania, delegadores de determinadas competências legislativas, em prol das instituições comunitárias, a fim de que as mesmas legislem em certas matérias, as quais antes eram de competência exclusiva dos Estados-membros da União Europeia. Ao se comentar sobre o instituto da delegação de competências soberanas, vale destacar a existência de uma divisão no âmbito de atuação legislativo: determinadas matérias, como é o caso da política monetária e do euro, são delegadas de forma a que as instituições comunitárias legislem exclusivamente sobre o tema. A referida alteração, na política dos Estados, ocorrida a partir do ano de 1998, quando se iniciou o projeto de adoção do euro4, representa uma grande mudança cultural nos valores dos cidadãos comunitários, porque perdem, de uma hora para a outra, um dos referenciais da nação, ou seja, a prerrogativa de adotar, livremente, as políticas macro-econômicas, além de ficarem adstritos às políticas comuns da União Européia.

Ao comentar o modelo de divisão de competências, as de natureza concorrente possibilitam que, tanto as instituições comunitárias, como os Estados, legislem sobre o tema, hipótese na qual prevalecerá a legislação comunitária, em caso de esta confrontar com a adotada pelo Estado. Exemplo a ser mencionado é o tema das políticas culturais, porque como se trata de um interesse de todo o bloco econômico, é um dos objetivos comunitários a preservação dos valores de cada nação, povo e minoria, assim, as políticas e normativas adotadas, tanto pelos Estados como pela União Europeia deve preservar os referidos interesses, que não são somente nacionais, mas acima de tudo, comunitários. No tocante à execução das políticas comunitárias, naquelas matérias de competência concorrente, a preferência para a adoção das mesmas será sempre do Estado-membro o qual, enquanto ente mais próximo de seus jurisdicionados, sabe com maior clareza sobre as políticas a serem adotadas para garantir a aplicação dos referidos direitos.

Somente na hipótese de o Estado não conseguir alcançar os objetivos pretendidos, que em verdade não são interesses de um Estado, mas de toda a União Europeia (e são um tema de interesse comum), é que as instituições da União Europeia atuarão, de maneira subsidiária e proporcional, com a finalidade de executar as referidas políticas e alcançar o fim comunitário. Trata-se da aplicação dos princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade, previstos no artigo 5º do Tratado de Nice, 20015. Aliás, o princípio da subsidiaridade, verdadeira pedra de toque do ordenamento jurídico supranacional, tem como função primordial aproximar o cidadão das políticas comunitárias, de modo a inseri-lo no seio da integração, criando-se, no espaço comunitário, uma verdadeira “Europa dos cidadãos”.6

Assim, por exemplo, um dos objetivos da União Europeia é o respeito às diferenças e aos valores culturais. Trata-se de matéria de competência concorrente entre as instituições da União Europeia, e os Estados. Caberá, primordialmente, ao Estado, enquanto ente menor, executar as referidas políticas para a proteção de uma minoria linguística. Somente se o Estado não lograr êxito de atingir o fim perseguido é que as instituições comunitárias poderão adotar políticas, de maneira subsidiária e proporcional, para suprir a omissão do Estado e garantir o interesse supranacional.7

De acordo com o estágio atual da União Europeia, de Mercado Comum e da União Monetária, pode-se afirmar a existência do rompimento do dogma referente ao conceito clássico de soberania, devido às próprias políticas que o processo de integração engloba, ou seja, a livre circulação dos quatro fatores de produção, bens, pessoas serviços e capitais, agregando-se a existência de uma moeda única: o euro. Torna-se necessário que as instituições comunitárias, portanto, adotem as políticas com vistas a atingir o interesse supranacional, avançando em matérias, políticas e competências legislativas que antes eram de atribuição exclusiva dos Estados.

3. Cultura e Evolução do Estado Nacional na Europa

Com o aprofundamento cada vez maior do processo de integração europeu, parte-se para a construção de uma verdadeira arena supranacional, na qual convivem vinte e sete Estados-membros, com culturas, costumes, línguas e tradições diferentes. Uma das grandes dificuldades e dilemas da União Europeia por consequência, é o de buscar certa compatibilização e harmonia entre as culturas da arena supranacional, de forma a, na medida do possível, ser possível preservá-las.

Quanto mais aprofundado for o processo de integração, maiores serão os conflitos de ordem cultural a ser enfrentados pelos povos, colocando-se em cheque o próprio conceito de Estado-Nação, ante à relativização do conceito de soberania, ficando os Estados fragilizados frente à adoção das políticas comunitárias. Como forma de buscar a proteção dos próprios valores locais, dentre eles os culturais, os Estados passam a voltar suas políticas para seus interesses soberanos, deixando de lado os interesses supranacionais e fazendo com que, equivocadamente, prevaleçam os seus próprios interesses.8

Verifica-se a clara dicotomia entre os interesses supranacionais e os soberanos, e a própria dificuldade em compatibilizá-los, pois quanto maior for o processo de globalização, na sociedade internacional, maior será o receio de os Estados perderem a sua soberania, o que justifica, ao menos, a volta aos conceitos clássicos de soberania. Como forma de melhor entender a dicotomia, importante examinar, embora com brevidade, a formação do Estado, a fim de se entender como o ordenamento jurídico do Estado-Nação, antes impositor da existência de valores culturais quase que únicos, transmutou-se para um embrião, quem sabe, de um futuro Estado supranacional, resultado do processo globalizante e do ressurgimento, com maior força, dos valores culturais que, agora, passam a conviver juntos na arena supranacional.

Para se compreender a construção da arena supranacional é preciso entender o momento histórico da construção do Estado moderno, cujo processo surgiu bem antes da Paz de Westfália, 1648, conforme assevera Luís Alexandre Carta Winter:9

A noção de um governo centralizado que satisfizesse, além das questões temporais, também as espirituais, e que representasse, simultaneamente, a idéia de uma unidade, com a queda do império romano, passou a ser a busca de uma constante. O próprio Corpus Iuris Civilis não deixa de ser fruto de uma idealização da unidade que havia na Roma Imperial. De fato, se for desdobrado o poder da pessoa do imperador, na época do Dominato, nota-se que ele era oprimo inter pares (primeiro entre iguais), princips senatus (líder do senado), pontifex maximux (supremo sacerdote) título, que depois, passa ao Papa, quando o cristianismo se torna a religão oficial do império, tribunicia potestas (poder de tribunoi da plebe), imperatur(governante, comandante, no serviço militar). (…) Com a invasão dos povos bárbaros, quebra-se a unidade do império, mas não a idealização dessa unidade, nem tão pouco desapareceu o poder espiritual e este se assentava na idéia de universalidade da religião católica, já que há só um Deus e, por isso, deve haver unidade em todas as coisas.

O conceito de soberania, por conseguinte, entendido como o poder supremo que, futuramente, garantiria a unidade do Estado, surgiu no Império Romano, e a Igreja católica, com a idéia da existência de um único Deus, contribuiu para a manutenção de determinados valores universais que, posteriormente, foram adotados quando da criação do Estado moderno. O catolicismo, neste aspecto, contribuiu para a manutenção da unidade dos povos e, conseqüentemente, de valores culturais, religiosos e linguísticos em determinado território, como foram os casos, por exemplo, da Espanha e de Portugal. A verdadeira “construção de uma identidade”10do conceito de Estado surgiu com a Paz de Westfália e, na concepção do Estado, encontram-se os seus elementos constitutivos: povo, território e capacidade de autogoverno.

Dentro de uma concepção multicultural importa examinar o conceito de povo, uma vez que, durante muito tempo, precisamente até o início do século XXI, o tema não foi muito debatido no âmbito da sociedade internacional. Somente com o ressurgimento de outros Estados, como Sérvia, Montenegro, Kosovo, dentre outros, e que resultaram da extinção de Estados antigos, mantidos pela força, como foi o caso da ex-Iuguslávia, é que se começou a debater os valores culturais de cada povo, convivendo em um mesmo espaço territorial, isto é, sob o manto de uma mesma jurisdição estatal. Assim esclarecem Luis Alexandre Winter e Marcos Wachowicz (2007):

Na idéia de povo há uma idéia seletiva, vez que exclui dentro de uma população, parcelas desta. Daí a identificação com nação, mas não a nação longínqua dos indo-europeus, ou mais tardiamente dos povos germânicos, eslavos etc. A nação que se identifica com o Estado, origina-se como fenômeno secundário das invasões bárbaras. Estas invasões violentas, em um segundo momento, buscaram também o saque às cidades romanas, provocando uma retirada de boa parte da nobreza para suas propriedades rurais, onde, a princípio, estariam salvos. Neste deslocar, os patrícios romanos levavam consigo, além de seus pertences, toda uma infra-estrutura, para, se possível, ausentar-se o menos possível da região em que passaram a viver.

O período anterior à formação do conceito do Estado moderno foi o feudalismo, iniciado após a queda do Império Romano, mais precisamente com o advento da Revolução Francesa, 1789, quando surge a concepção do conceito de Estado-Nação, trazendo em seu bojo a idéia de uma unidade política, na qual os cidadãos deveriam estar vinculados ao território e sob um mesmo ordenamento jurídico: a Constituição. Com a finalidade de manter a referida unidade houve a fusão das populações, e elementos e valores, como a religião e a língua, passaram a ser essenciais para manter a unidade do Estado.

A idéia de soberania ressurge, portanto, com mais força, quando da criação do Estado-Nação, e traz dentro de si a concepção de manutenção da unidade, do todo e do único. Aliás, a própria exaltação dos atributos da soberania do Estado foram essenciais para a construção do Estado-Nação e a manutenção dos seus súditos dentro de uma mesma jurisdição, pois se fosse reconhecido o múltiplo, em detrimento do único, a própria estrutura estatal seria ameaçada. Voltando à análise para a construção da Europa, como menciona Pierre Gourou:11

O espaço, o ser da Europa escapam, ao longo dos séculos, a quem os queira captar ou definir, quer ao geógrafo quer aos especialistas das ciências humanas, uma vez que a Europa nunca foi a mesma no decurso de sua história. No começo da era cristã (…) ela estava de algum modo incluída, mergulhada no Império Romano e apresentava uma superfície que rondava os 3 milhões de km². Passam séculos e séculos, para trás fica um certo número de metamorfoses: a Europa do século XVIII, estende-se para leste até os Urales e cobre 10 milhões de km². Entretanto, a partir de 1492 e durante os séculos XVI, XVII e XVIII, depois durante os primeiros anos do século XX, terá conquistado para a sua civilização e para a sua autoridade a totalidade do continente americano, da Austrália, da Nova Zelândia e uma parte da África Austral – em 1914, todos estes territórios representavam uma superfície de 50 milhões de km².

No referente ao espaço europeu, Massimo Pallottino (1996) ressalta o aspecto multicultural do continente, ao esclarecer que:

Nenhum lugar do mundo proporciona o que a Europa deu: um lugar concentrado num espaço tão restrito, povos com tradições nacionais tão vincadas, tão ricas, que exercem tanto peso sobre a história do mundo. Mas o que são os povos da Europa? A pergunta pode ser ingênua ou fútil – mas não, dada a confusão freqüente, na linguagem comum, entre nações, Estados, comunidades, etnias, línguas, culturas.12 (…)

Esclarece o autor que a Europa se constitui em um

processo orgânico (…) oriundo de culturas oriundas dos latinos, germanos, eslavos, gregos, albaneses, bálticos e celtas os quais, não obstante a grande diversidade presente, falam línguas que derivam de um único tronco: o indo-europeu. Esclarece o autor que o referido tronco está ligado a outras línguas na Ásia, como o indiano, o iraniano, o armênio e o tócaro.13

 

Em termos linguísticos, consequentemente, e, segundo o nosso ponto de vista, torna-se possível aventar-se sobre a possibilidade de certa identidade europeia, a partir da origem lingüística. Certo é que, no continente europeu, existem outras raízes lingüísticas, como a germânica ou a saxônica, por exemplo. De acordo com Massimo PALLOTTINO (1996), ao se referir às antigas tribos que falavam antigos idiomas, de origem não indo-europeias, como a dos etruscos e a falada por alguns habitantes na Sardenha, na Córsega e na Sicília, até que viessem a ser suplantadas pelo latim, grego, celta e o germânico. Destaca o mesmo autor, a existência de idiomas antigos e ainda sobreviventes, como o euskera14 e que conserva “os caracteres do antigo substrato ibérico ou ´ibero-causcásico’, que se estenderia por uma área mais vasta no Ocidente. (…) Este fragmento pré indo-europeu isolado, silencioso, pouco conhecido, desperta nos nossos dias a atenção mundial, reivindicando a sua própria identidade”.15

Ao se comentar, aliás, sobre a formação da cultura europeia, como visto acima, o Império Romano, ao manter a unidade política, foi essencial para a formação, construção e manutenção dos valores europeus, sendo posteriormente, sucedido pelo período da alta Idade Média.16 Não obstante a tradição europeia, advinda do Império Romano, no sentido de manter certa unidade, em relação aos valores dos povos do continente, sempre houve a questão relativa às minorias culturais, como é o caso do euskera. Desde o Império Romano até meados do século XX, a Europa conviveu sob o estigma e os valores do Estado-Nação, sendo que a própria nacionalidade legitimava o agrupamento de pessoas sob a mesma jurisdição e, como forma de manutenção da própria unidade, a língua passou a ser utilizada como valor essencial.

Certo é que alguns Estados, principalmente no século XX, surgiram à força, como foi o caso da ex-Iuguslávia, composta por cinco nações: (Sérvia, Croácia, Eslovênia, Bósnia-Herzegovina, Macedônia e Montenegro) vindo, posteriormente, a desaparecer, readquirindo as antigas nações a sua independência.17 O ressurgimento de valores culturais, portanto, a partir da língua, como é o caso doeuskera e do catalão, são essenciais para a manutenção da própria cultura desses povos, neste caso, específicos o País Basco e a Catalunha, quando, após a queda do regime de Franco, foi concedida autonomia regional para essas regiões, a fim de que pudessem legislar a respeito do idioma, de forma a compatibilizar os interesses locais com os interesses da Espanha, evitando qualquer tentativa mais radical de se buscar a independência dessas regiões autônomas.18

Falar sobre o espaço europeu neste século XXI, é comentar sobre a existência de comunidades minoritárias, que convivem no espaço supranacional e devem ter os seus direitos culturais respeitados. Porém, antes de avançar no ponto central do estudo, uma vez definido o espaço supranacional e suas implicações, torna-se importante conceituar o multiculturalismo, principalmente no espaço da arena supranacional, argumentações que estarão reproduzidas no próximo capítulo desta pesquisa.

4. Considerações Finais

Perto do limiar da primeira década deste século o conceito de soberania é relativizado, em face da inserção do indivíduo no centro das relações jurídicas, econômicas, sociais, políticas e, especialmente culturais, no seio da sociedade internacional. Com a relativização do conceito de soberania o Estado não pode mais atuar, de forma isolada, com a finalidade de adotar as suas políticas em seu espaço jurisdicional, porque passam a surgir as associações dos países, com a finalidade de, através da ação conjunta, buscar adotar políticas comuns que surtirão efeito para todos os países associados. A União Europeia é exemplo vivo da nova realidade mundial, em que vinte e sete Estados e vinte e três idiomas oficiais convivem em um espaço, denominado de arena supranacional. Dentro da arena supranacional surge um direito singular e peculiar, como visto anteriormente, com a finalidade de buscar um maior equilíbrio entre os Estados, que é o Direito Comunitário.

O Direito Comunitário, ordenamento peculiar da União Europeia, busca garantir maior eficácia para as políticas, adotadas pelas próprias instituições do bloco econômico. Na Europa o idioma, enquanto valor cultural, é extremamente importante, porque os nacionais europeus valorizam extremamente a língua, enquanto um importante elemento cultural. Tamanha é a importância do idioma, no seio da União Europeia, que inúmeros instrumentos internacionais, foram celebrados na Organização das Nações Unidas, como é o caso do Pacto dos Direitos Civis e Políticos, 1966, e a própria Carta Europeia de Línguas Regionais ou Minoritárias, 1992, celebrado dentro do Conselho da Europa.

O idioma, portanto, é um elemento importante nas relações humanas e que traz consigo os valores culturais do próprio indivíduo. Na União Europeia, a busca de uma compatibilização entre os direitos da maioria frente aos direitos da minoria, quando os segundos não podem expressar, de forma livre os seus valores culturais, de natureza linguística, somente é possível através de uma forte atuação dos Estados, e por parte das próprias instituições do bloco econômico, mediante a adoção de ações afirmativas, com a finalidade de proteger os direitos das minorias. A existência de um ordenamento jurídico supranacional, pautado em valores pluralistas, em uma ordem que respeite a Democracia e os Direitos Fundamentais é essencial para o respeito ao direito das minorias na Europa, de forma a construir uma cidadania multicultural, que refletirá a universalização do respeito aos direitos culturais da minoria.

 

* Eduardo Biacchi Gomes é pós-doutor em Estudos Culturais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, com estudos realizados na Universidade de Barcelona, Espanha, doutor em Direito Internacional pela Universidade Federal do Paraná, professor de Direito Internacional da FACINTER, UNIBRASIL e PUCPR, além de pesquisador vinculado ao grupo de estudos PÁTRIAS, registrado no CNPQ. E-mail: eduardobiacchigomes@gmail.com

 

 

Referências Bibliográficas

BRAUDEL, Fernando (Org). A Europa. Lisboa: Terramar, 1996.

 

DURET, Paolo. Sussidiarietà e autoamministrazione dei privati. Verona: Casa Editrice Dott Antonio Milani, 2004.

 

PALLOTTINO, Massimo. A Europa. Lisboa: Terramar, 1996.

 

WINTER, Luís Alexandre Carta; WACHOWICZ, Marcos. Construção de uma identidade. XVI Congresso Nacional do CONPEDI. Belo Horizonte, 2007.

 

WINTER, Luís Alexandre Carta; WACHOWICZ, Marcos. A construção histórica do conceito de soberania. Anais do Congresso Brasileiro de Direito Internacional, v. 10, Curitiba: Juruá, 2007.

 

 

NOTAS

1 A observância do referido principio é garantida através do Reenvio Prejudicial, ação típica de Direito Comunitário, na qual o juiz nacional, ao ter dúvidas sobre a correta interpretação e aplicação da normativa comunitária, suspende o processo e remete a dúvida para o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias. A jurisdição supranacional, sem resolver o caso em concreto, irá pronunciar-se, através de um Acórdão, esclarecendo ao juiz nacional, sobre a melhor forma de interpretar e aplicar o Direito Comunitário. Vale destacar que o Acórdão possui natureza obrigatória. O reenvio é facultativo nas instâncias ordinárias e obrigatório nas extraordinárias, isto é, nas quais não cabem mais o recurso.

2 Que instituiu a Comunidade Econômica Européia.

3 No ano de 2007 foi concluído o Tratado de Lisboa, o qual, a partir do momento que for ratificado por todos os Estados-Membros da União Europeia, substituirá o Tratado de Nice.

4 Que passou a circular fisicamente no ano de 2002.

5 O Preâmbulo do Tratado que institui a União Europeia assim estabelece: “Resolvidos a continuar o processo de criação de uma união cada vez mais estreita entre os povos da Europa, em que as decisões sejam tomadas ao nível mais próximo possível dos cidadãos, de acordo com o princípio da subsidiarfiedade”….

6 DURET, Paolo. Sussidiarietà e autoamministrazione dei privati. Verona: Casa Editrice Dott Antonio Milani, 2004.

7 O tratado que institui a União Europeia, em seu preâmbulo, assim define as bases fundamentais para a construção do espaço comum europeu: “Recordando a importância histórica do fim da divisão do Continente Europeu e a necessidade da criação de bases sólidas para a construção da futura Europa, confirmando o seu apego aos princípios da liberdade, da democracia, do respeito pelos Direitos do Homem e liberdades fundamentais e do Estado de Direito, confirmando o seu apego aos direitos sociais fundamentais, tal como definidos na Carta Social Europeia, assinada em Turim, em 18 de outubro de 1961, e na Carta Comunitária dos Direitos Fundamentais dos Trabalhadores, de 1989, desejando aprofundar a solidariedade entre os seus povos, respeitando a sua História, cultura e tradições, desejando reforçar o caráter democrático e a eficácia do funcionamento de suas instituições, a fim de lhes permitir melhor desempenhar, num quadro institucional único, as tarefas que lhes são confiadas”….

8 Exemplo claro da referida política foi o caso da Constituição Europeia, tratado que foi elaborado com a finalidade de alterar o Tratado de Nice, 2001 e que iria promover grandes alterações na União Europeia. Referido tratado deveria entrar em vigor no ano de 2005, o que não foi possível, tendo em vista o resultado negativo do referendo na França e na Holanda.

9 WINTER, Luís Alexandre Carta: A construção histórica do conceito de soberania. Anais do Congresso Brasileiro de Direito Internacional, v. 10, Curitiba: Juruá, 2007, p. 431-444.

10 WINTER, Luís Alexandre Carta; WACHOWICZ, Marcos. Construção de uma identidade. XVI Congresso Nacional do CONPEDI. Belo Horizonte, 2007.

11 BRAUDEL, Fernando (Org). A Europa. Lisboa:Terramar, 1996. p. 5.

12 Ibid., p. 51.

13 Ibid., p. 53-56.

14 Língua falada no País Basco, Espanha.

15 PALLOTTINO, Massimo. A Europa. Lisboa: Terramar, 1996. p. 56.

16 Ibid., p. 58.

17 Importante destacar que, mesmo dentro das referidas repúblicas, não existe unidade nacional, posto que Kosovo é composta por 90% de origem albanesa. As culturas dos referidos Estados estão representados por uma minoria muçulmana, albanesa (à exceção de Kosovo), húngaros, turcos, romenos, italianos, checos, eslovacos e búlgaros.

18 O reconhecimento inevitável do multiculturalismo, na sociedade internacional atual, leva à necessidade de Estados adotarem políticas descentralizadoras, de forma a conceder maior autonomia para os entes menores, a fim de que possam preservar as suas culturas locais, como é o caso da língua, na Catalunha e no País Basco.

 

Tempo de leitura estimado: 10 minutos

Ramon Mello entrevista Clara Averbuck

“Nós que não somos como as outras”. Clarah Averbuck tem o título do livro da escritora espanhola, Lucía Etxebarria, tatuado no corpo. E definitivamente ela é diferente: é uma mulher de personalidade forte.Talvez por isso uns a adorem e outros a detestem.

Se todos somos personagens de nós mesmos, eu diria que Clarah se diferencia por assumir esse papel. Com tudo isso, misturado com sua literatura, ela também atraiu a atenção do diretor de cinema Murilo Salles, que adaptou sua obra para o cinema. Em “Nome Próprio” sua história é vivida pela atriz Leandra Leal.

Máquina de pinball (Editora Conrad ); Das coisas esquecidas atrás da estante(Editora 7 Letras) e Vida de gato (Editora Planeta) são seus livros publicados. Ela prefere o último! E já está com outros três no prelo: Toreando o diaboDelírio de ruína (em parceria com a estilista Rita Wainer); Eu quero ser eu (contemplada pelo Programa Petrobrás Cultural).

Quando não está escrevendo, ela está “cuidando da filha, fuçando pela Internet ou bebendo pelas ruas…” Li sua obra recentemente, depois de assistir à pré-estreia do filme, no Odeon BR, no Rio de Janeiro, local onde aconteceu essa conversa. Realizei a entrevista em companhia da poeta Maria Rezende e do músico, escritor e cineasta Rodrigo Bittencourt – que está produzindo um documentário sobre a Clarah para o Canal Brasil. Espero que aproveitem!

Click(IN)VERSOS – O que achou do filme “Nome Próprio”, de Murilo Sales?

Clara Averbuck: Gostei, mas fiquei chateada com a modificação que fizeram no meu texto que aparece na tela. Eu escrevi o texto, reescreveram no meu lugar, eu escrevi novamente e acabou ficando uma coisa diluída. As pessoas sabem que é baseado na minha obra e o que aparece escrito no filme não é meu. Isso incomoda.

Click(IN)VERSOS – Seu livro Máquina de Pinball (Editora Conrad) ganhou adaptação para o teatro, roteirizado por Antônio Abujamra e Alan Castelo, em 2003…

CA: Eu odiei muito. Eu estava grávida e quase pari de desgosto. Juro por Deus! Acabou que o Abujamra não teve muita participação na montagem, foi montado por outra pessoa. E atriz também não era boa, ficava dando piruetas no monólogo. Tudo com a entonação errada: quando era pra ser blasé ela gritava, e quando era pra gritar ela era blasé. Eles não mexeram no texto, nada, tudo estava lá. É o inverso do que aconteceu no cinema, que tem a Leandra (Leal) com uma interpretação maravilhosa.

Click(IN)VERSOS – Como a escrita chegou até você? A família influenciou?

CA: Eu lembro que sempre escrevi. Eu me divertia escrevendo, assim como me divirto hoje. É um grande prazer. Não teve um dia em que decidi me tornar escritora. Só me dei conta que estava indo para esse caminho. A minha mãe sempre leu muito, ela escrevia também. Sou filha de artista, meu pai é músico e ator. Tive isso tudo muito forte em casa.

Click(IN)VERSOS – Quando você percebeu que queria apenas escrever?

CA: Quando me mudei para São Paulo. Antes eu trabalhava numa agência de publicidade em Porto Alegre, mas não queria ser redatora publicitária. Meu chefe dizia que eu tinha grande potencial, mas eu não queria. Teve a ver muito com o (John) Fante isso. Tenho um ciúme do Fante! Todo mundo chega falando dele como se conhecesse. Teve a ver com o (Arturo) Bandini, na verdade. Achei que estava saindo do Colorado para ser uma escritora em Los Angeles… (risos) Cheguei a cursar letras e jornalismo. Mas, sou vagabunda, não gosto de estudar, de trabalhar…

Click(IN)VERSOS – Foi assim que surgiu o pseudônimo Camila?

CA: Camila já meio que existia. Eu publicava com outro nome quando eu namorava. Usava o nome da Camila. Já era um alter ego meu, depois eu assumi. As pessoas que estiverem perto de mim vão entrar na minha literatura…

Click(IN)VERSOS – Dá para traçar um paralelo com o pseudônimo do Bukowski?

CA: Acho que dá para traçar um paralelo com várias pessoas que escrevem usando um alter ego. Ou que escrevem usando a vida como matéria prima. Não necessariamente o (Henry) Chinasky.

Click(IN)VERSOS – Esse alter ego da literatura se infiltra na sua vida?

CA: Sou eu. Não tem o que se infiltrar. Sou eu e é uma ficção. A partir do momento que está escrito não interessa se é verdade ou não. As pessoas se preocupam muito com isso. Aconteceu ou não? As pessoas sabem o que eu deixo elas saberem. Eu só quero escrever e que não me incomodem muito. Elas deviam ler e não se importar tanto. Mas também tenho essa curiosidade: fui pra Los Angeles para ver onde o Fante morava. Há três anos, também fui visitar o túmulo do Bukowski e deixei uma garrafa de Ipioca lá.

Click(IN)VERSOS – Como é a relação da música e da literatura?

CA: Sou 50% música e 50% literatura. Fiz outra banda agora, não tem nome ainda. Quero um nome em português. Gosto muito de ouvir Vanguart, uma banda de Cuiabá ótima! Porcas Borboletas, uma banda de Uberlândia excelente! Ainda pouco eu estava ouvindo Rolling Stones. Gosto de Velvet Undergound, Fiona Apple, Bob Dylan…

Click(IN)VERSOS – E música brasileira? Você quase não tem referência brasileira.

CA: Eu quase não ouço. Não me identifico com as coisas daqui. Não bate. Mas gosto muito da Márcia Denser, é minha irmã mais velha. Gosto muito do Leminski. Gosto muito da Cecília Giannetti, que é uma grande amiga. Gosto do (Daniel) Galera. E o cara que mais me identifico que é o Mário Bortolotto. Não li a Mayra (Dias Gomes), mas gosto bastante dela. Ela falou que leu meu livro aos 14 anos. Me sinto uma tia perto dela. Atualmente estou lendo o Guimarães Rosa.

Click(IN)VERSOS – Atualmente você escreve o blog Adiós Lounge. Por que você acabou com o seu primeiro blog, o Brazileira Preta?

CA: Enchi o saco, cansei e não tava mais a fim de escrever lá. Depois fiz um blog escondido. Eu casei e o casamento me consumiu, a gente se consumia muito. E para escrever se precisa de solidão. O que escrevo é muito visceral. Não posso esconder ou fugir. Eu fujo é das pessoas! De uma maneira geral as pessoas são muito chatas. Elas não têm muita coisa a dizer e isso me irrita bastante. Elas falam, falam e não falam nada. Antes eu até discutia com elas, mas agora não tenho mais paciência. Eu me retiro.

Click(IN)VERSOS – E existe literatura de blog? Você acha que você se encaixa em que lugar na literatura?

CA: Quem tem que saber disso são vocês…(risos) Não existe literatura de blog! Não existe! É apenas um meio de publicação com uma data em baixo. Por isso tem blog de receita de bolo, de resenha de discos, de política… É apenas um rótulo idiota. Eu quero escrever, não quero me inserir em nada. Literatura pop é outro termo que não gosto.

Click(IN)VERSOS – Como é seu processo criativo?

CA: Eu ando com um caderninho na bolsa, quando tenho vontade vou lá e escrevo. Não tenho regra pra nada! Nem pra comer, dormir ou escrever. Sou completamente desregrada.

Click(IN)VERSOS – A metrópole está muito presente na sua literatura. Tem vontade de sair de São Paulo? Voltar para Porto Alegre?

CA: Voltar para Porto Alegre nunca mais! Eu fugi de lá, pra que eu vou voltar? Eu gosto de lá para visitar as pessoas, mas nunca mais vou morar lá. Nem quando ficar velha e herdar a casa dos meus pais. Minha filha que vai cuidar disso! Eu gosto de cidade grande e de barulho. Só saio de São Paulo para ir embora do Brasil. Tenho uma relação de amor e ódio com São Paulo. Moro num lugar muito feio, na Praça Roosevelt. Feio, cheio de concreto, mas tem uma certa beleza naquilo tudo.

Click(IN)VERSOS – E o Rio de Janeiro te atrai?

CA: Ah, vou ser um pouco hippie: o Rio tem uma mágica, uma coisa no ar… Gosto muito da arquitetura, dos prédios antigos e do mar – sempre! Esses prédios brotando em meio das pedras, essas pedras brotando em meio aos prédios.

 

Click(IN)VERSOS – Você teve sua filha num parto normal, em casa. Depois que ela nasceu o que mudou na sua vida e na sua literatura?

CA:Na minha literatura não mudou nada. E as pessoas fazem muito alarde dizendo que filho muda tudo. Tem aquelas pessoas que deixam de ser elas mesmas: param de sair, engordam, não se penteiam mais. Eu sou a única mãe que posso ser. O que ela vai achar das coisas que escrevo? Espero que ela goste! Não tem muita putaria. Mas outro dia me chamaram de literatura erótica…

Click(IN)VERSOS – O que te atrai na vida?

CA: A paixão. O que me atrai é a paixão: por um homem, por livro, pelo Rio de Janeiro, por um filme, pela arte em geral. Coisas que fazem o coração bater mais rápido. Click(IN)VERSOS – Quantas tatuagens você tem?

CA: Não sei. Quer contar? Eu já tentei contar algumas vezes, mas me perco. Tenho umas vinte e poucas. Faço tatuagens com minhas amigas, tenho essa mania. É melhor do que fazer aliança com homem, né? Amizade, quando é de verdade, não acaba. Me interesso por moda, tenho muitos amigos do mundo da moda. Eu gosto de me ornar. A roupa também é uma maneira de se comunicar, se colocar. Sou muito vaidosa.Click(IN)VERSOS – Há leitores que acreditam que seus gatos são alter egos. Como é sua relação com os felinos?

CA: (risos) Eu convivo com gatos há muito tempo. Eu tenho três gatos e minha mãe tem uns cinquenta. Sem exageros! Claro que eles existem. Tem o Joo, a Gatinha e um outro que se chama Jimi Hendrix – mas minha filha mudou para Marcelo, nome do pai dela. Click(IN)VERSOS – O que diria para os jovens que querem escrever?

CA: Escrever não é brincadeira. Tem que levar a sério!Tem que colocar uma alma, porque senão fica apenas uma palavra depois da outra. A pessoa tem que dar um pouco do sangue dela para acreditar no que escreve. Não é para qualquer um.

 

* Ramon Mello (Araruama – RJ, 1984) é poeta, escritor, jornalista e ator. Formado em Comunicação Social (Jornalismo) pela UniverCidade e em Artes Cênicas pela Escola Estadual de Teatro Martins Pena. Mantém os blogs Sorriso do Gato de AliceClickInversos e Letras-Saraiva Conteúdo. É colaborador do Portal Literal e da revista O Grito! além de organizador da FL@P! RJ, junto ao coletivo riosemdiscurso. Finaliza, atualmente, o romance All star bom é All star sujo. Autor do livro de poemas Vinis mofados (Editora Língua Geral).

Tempo de leitura estimado: 17 minutos

Meditação sobre o ofício de criar | de Silviano Santiago

Nos dois últimos livros de ficção que publiquei O falso mentiroso (2004) e Histórias mal contadas (2005), tentei dar corpo textual a quatro questões constitutivas do que tem sido para mim o exercício da literatura do eu – as questões da experiência, da memória, da sinceridade e da verdade poética. Se eu aceitei o convite para lhes falar hoje, não foi com a intenção de trazer ao palco o autor dos livros e, com ele, o objetivo de oferecer-lhes uma leitura explicativa daqueles dois e de outros textos autoficcionais meus. Pelo contrário. Só ao leitor compete a tarefa da leitura. Aliás, não sou escritor que busca minimizar o trabalho do leitor; em geral, complico-o. Subscrevo dois versos de Nietzsche/Zaratustra, que dizem: “odeio todos os preguiçosos que lêem. / Alguém que conhece o leitor, nada fará pelo leitor”. Perguntado sobre se encenava peças para seu público, Antonin Artaud respondeu: “O público, é preciso em primeiro lugar que o teatro seja”. Em nossas palavras: O leitor, é preciso em primeiro lugar que a literatura seja.

O objetivo primordial desta fala é o de lhes apresentar e, na medida do possível, discutir algumas questões abstratas que preocuparam e preocupam o escritor enquanto personalidade que reflete sobre o estatuto disso a que hoje se chama – e ele próprio passou a chamar – de autoficção. Se pedisse ajuda a João Cabral de Melo Neto, estas palavras trariam como título e intenção “Meditação sobre o ofício de criar”. A ele peço de novo ajuda para acrescentar que a meditação “nada têm de pregação e sequer da sugestão de receitas possíveis”.

No meu caso, cheguei à autoficção através de um longo processo de diferenciação,preferênciacontaminação. Falo primeiro da diferenciação e da preferência. Parti da distinção entre discurso autobiográfico e discurso confessional. Os dados autobiográficos percorrem todos meus escritos e, sem dúvida, alavanca-os, deitando por terra a expressão meramente confessional. Os dados autobiográficos servem de alicerce na hora de idealizar e compor meus escritos e, eventualmente, podem servir ao leitor para explicá-los. Traduz o contato reflexivo da subjetividade criadora com os fatos da realidade que me condicionam e os da existência que me conformam. Do ponto de vista da forma e do conteúdo, o discurso autobiográfico per se – na sua pureza – é tão proteiforme quanto camaleão e tão escorregadio quanto mercúrio, embora carregue um tremendo legado na literatura brasileira e na ocidental.

Já o discurso propriamente confessional está ausente de meus escritos. Nestes não está em jogo a expressão despudorada e profunda de sentimentos e emoções secretos, pessoais e íntimos, julgados como os únicos verdadeiros por tantos escritores de índole romântica ou neo-romântica. Não nos iludamos, a distinção entre os dois discursos tem, portanto, o efeito de marcar minha familiaridade criativa com o autobiográfico e o conseqüente rebaixamento do confessional ao grau zero da escrita. Em que pese seu legado insuspeito para as culturas nacionais, o discurso autobiográfico jamais transpareceu per se em meus escritos, ou seja, não me apropriei dele em sua pureza subjetiva e intolerância sentimental. Não escrevi minha autobiografia. Uma pergunta se impõe: Então, como tenho valido do discurso autobiográfico nos escritos? Para respondê-la, passemos ao terceiro movimento, o da contaminação.

Ao reconhecer e adotar o discurso autobiográfico como força motora da criação, coube-me levá-lo a se deixar contaminar pelo conhecimento direto “atento, concentrado e imaginativo” do discurso ficcional da tradição ocidental, de Miguel de Cervantes a James Joyce, para ficar com extremos. Não foi por casualidade que, na juventude, o crítico de cinema se matriculou na Faculdade de Letras e se tornou, na maturidade, professor de literatura. Se minha vida é a que me toca viver, minha formação foi e é estofada pela leitura dos ficcionistas canônicos e dos contemporâneos – independente de nacionalidade. Com a exclusão da matéria que constitui o meramente confessional, o texto híbrido, constituído pela contaminação da autobiografia pela ficção – e da ficção pela autobiografia –, marca a inserção do tosco e requintado material subjetivo meu na tradição literária ocidental e indicia a relativização por esta de seu anárquico potencial criativo.

Inserir alguma coisa (o discurso autobiográfico) noutra diferente (o discurso ficcional) significa relativizar o poder e os limites de ambas, e significa também admitir outras perspectivas de trabalho para o escritor e oferecer-lhe outras facetas de percepção do objeto literário, que se tornou diferenciado e híbrido. Não contam mais as respectivas purezas centralizadoras da autobiografia e da ficção; são os processos de hibridização do autobiográfico pelo ficcional, e vice-versa, que contam. Ou melhor, são as margens em constante contaminação que se adiantam como lugar de trabalho do escritor e de resolução dos problemas da escrita criativa.

A força criadora do eu – o que Michel Foucault chama de ressemantização do sujeito pelo sujeito – tropeça na pedra no meio do caminho que é a tradição literária ocidental. Tropeça na pedra, leva tombo, levanta, sacode a poeira, dá a volta por cima e se afirma como também produtora no embate com o poder esmagador da tradição ficcional. Dessa forma é que a ressemantização do sujeito pelo sujeito ganha tutano para questionar, pela produção textual, o estatuto contemporâneo tanto da técnica/artesanato da ficção (the craft of fiction, em inglês) quanto do cânone ficcional. Com o correr dos anos, o movimento de vai-vem do questionamento duplo abriu-me uma brecha de intervenção dramática e textual, onde tenho trabalhado as principais características – experiência, memória, sinceridade e verdade poética ? da moderna literatura do eu.

A fim de evitar mal entendidos, afirmo que em nenhum momento do passado remoto usei a categoria autoficção para classificar os textos híbridos por mim escritos e publicados. Quando pude, evitei a palavra romance. No caso de Em liberdade (1981), um diário íntimo falso “de” Graciliano Ramos, classifiquei o livro de “uma ficção de”, para o desagrado dos editores que preferem o ramerrão do gênero. Já a professora Ana Maria Bulhões de Carvalho o classificou dealterbiografia, um neologismo que já aponta para o caráter híbrido da proposta. Não tive pejo em usar “memórias” para O falso mentirosoMemórias tem boa tradiçãoficcional entre nós.1 Finalmente, acrescento que fiquei alegremente surpreso quando deparei com a informação de que Serge Doubrovsky, crítico francês radicado nos Estados Unidos, tinha cunhado, em 1977, o neologismo autoficção e que, em 2004, Vincent Colonna, um jovem crítico e historiador da literatura, tenha valido do neologismo para escrever o desde já indispensável Autofiction & autres mythomanies littéraires (Paris, Tristram). Em suma, passei a usar como minha a categoria posterior e alheia de autoficção.

Meu percurso certamente difere do percurso de Serge Doubrovsky e de Vincent Colonna, e é por isso que aceitei o convite que me foi feito por Luciana Hidalgo para participar deste encontro. Aliás, Colonna é bastante generoso na sua configuração do gênero híbrido ? a autoficção, que motivou seu estudo, optando por classificar o conjunto das narrativas afins como “uma nebulosa de práticas aparentadas”. Escreve ele que é imensa a lista dos escritores que vêm emoldurando sua identidade numa montagem textual, acrescentando: “Desiguais em sua riqueza, as obras deles são também diferentes pela forma e pela amplidão dos processos de hibridização, mas todas elas marcam uma época, um momento da história literária, em que a ficção do eu [la fiction de soi] ocupa os mais diferentes escritores, para constituir não tanto um gênero, mas talvez uma nebulosa de práticas aparentadas”.

Como a autoficção não é forma simples nem gênero adequadamente codificado pela crítica mais recente, eis-me à vontade para relatar-lhes meu caminho pessoal. Retorno à distinção inicial entre discurso autobiográfico e confessional.

Não esbocei intencionalmente a distinção e muito menos a arquitetei por artes da inteligência ou da razão. Tampouco a constitui de maneira fria e pragmática como lugar original de minha prática literária. A distinção entre autobiográfico e confessional ganhou corpo textual no momento em que comecei a conjugar minha própria experiência infantil de vida com o auxílio dos verbos de minha memória. Ou seja, desde a mais tenra infância, a distinção entre autobiografia e confissão foi feita e existiu em mim e, desde sempre, existe como força a alavancar a imaginação criadora.

A preferência pelo discurso autobiográfico e a conseqüente contaminação dele pelo discurso ficcional se tornou prática textual, ou seja, elas configuraram um produto híbrido, no momento em que o menino/sujeito teve a imperiosa necessidade de jogar para escanteio ? ou para o inconsciente ? o confessional e aliar a fala de sua experiência de vida à invenção ficcional. A contaminação se tornou prática propriamente literária no momento em que o adolescente/sujeito – um memorioso estudioso de Letras ? revisitava as práticas textuais híbridas da infância para torná-las do domínio público. Ao revisitá-las pelo exercício da memória, tenta apreendê-las com o fim de equacionar o desejo de criar narrativas literárias que signifiquem no universo cultural brasileiro. Muita pretensão? Talvez sim, talvez não. Mas nenhum escritor se realiza sem uma “ambição justa”, para retomar a expressão de Autran Dourado.

Portanto, a preferência pelos dados autobiográficos e a contaminação do discurso autobiográfico pelo ficcional existiram desde sempre lá na infância e estarão para sempre em meus escritos. Não tirei distinção, preferência e contaminação do nada, não as inventei recentemente e é por isso que vale a pena pagar uma visita ao menino antigo.

Desde criança, por razões de caráter extremamente pessoal e íntimo – refiro-me à morte prematura de minha mãe – não conseguia articular com vistas ao outro o discurso da subjetividade plena, ou seja, o discurso confessional. Nisso talvez possa me oferecer como paradigmas a infância de Gustave Flaubert e, principalmente, a maturidade de Fernando Pessoa. Não estou querendo dizer que minha personalidade infantil, isto é, meus impulsos vitais e secretos eram-me desconhecidos. Pelo contrário, conhecia-os muito bem. Tão bem os conhecia que sabia de seu alto poder de autodestruição e destruição.

Acreditei ter de esconder dos ouvidos alheios a personalidade de menino-suicida e menino-predador, escondê-la debaixo de discursos inventados (ficcionais, se me permitem), onde eram criadas subjetividades similares à minha, passíveis de serem jogadas com certa inocência e, principalmente, sem culpa no comércio dos homens. Criava falas autobiográficas que não eram confessionais, embora partissem do cristal multifacetado que é o trágico acidente da perda materna. Já eram falas ficcionais e, como tal, co-existiam aos montões. Nenhuma das falas era plena e sinceramente confessional, embora retirassem o poder de fabulação da autobiografia. O dado confessional que poderia chegar à condição plena ficava encoberto, camuflado, para usar a linguagem da Segunda Grande Guerra, então dominante. Não tinha interesse em escarafunchá-lo. Os fatos autobiográficos fabulam, embora nunca queiram aceitar a cobertura da fala confessional, visto que se deixavam apropriar pelo discurso que vim a conhecer no futuro como ficcional.

O sujeito ressemantizava o sujeito pelo discurso híbrido.

Não estou querendo dizer que não vivia a angústia de não poder articular em público o dado da subjetividade plena, dita confessional. Vivia-o, só que não o exercitava como fala nem o escrevia. Agarrar-me e subtrair-me a essa angústia era o modo vital da sobrevivência do corpo e dos impulsos vitais, era o modo como o discurso autobiográfico se distanciava do discurso confessional e já flertava, inconscientemente, com o discurso ficcional.. Onde mais forte se fazia o sentido da angústia e mais necessária sua subtração era à mesa de jantar ou no confessionário. Fiquemos com este exemplo.

Meu pai não era católico praticante, mas nos obrigava a ser. Segui o catecismo e fiz primeira comunhão. Ia à missa todos os domingos. Aos sábados, diante do padre-confessor de sotaque germânico (para as conotações, veja-se o período histórico), no escurinho protegido pelas grades do pseudo-anonimato (morava numa cidade do interior), tinha de fazer exame de autoconsciência e ser sincero ao enumerar econfessar os pecados da semana. Costumava trazê-los escritos numa folha de papel. Uma pitada de paranóia, e acrescento que os pecados eram muitos e, perdão pelo trocadilho, inconfessáveis. Apesar da lista avantajada, não proferia no confessionário uma fala sincera, confessional. Mentia. Ficcionalizava o sujeito – a mim mesmo – ao narrar os pecados constantes da lista. Inventava para mim e para o padre-confessor outra(s) infância(s) menos pecaminosa(s) e mais ajuizada(s), ou pelo menos onde as atitudes e intenções reprováveis permaneciam camufladas pela fala.

Essas mentiras, ou invenções autobiográficas, ou autoficções, tinham estatuto devivido, tinham consistência de experiência, isso graças ao fato maior que lhes antecedia – a morte prematura da mãe ? e garantia a veracidade ou autenticidade. Aos sábados, diante do confessor, assumia uma fala híbrida – autobiográfica e ficcional ? verossímil. Era “confessional” e “sincero” sem, na verdade, o ser plenamente. O menino ao confessionário já era um falso mentiroso. Faço minhas as palavras contundentes de Michel Foucault em A arqueologia do saber: “Não me pergunte quem sou eu e não me diga para permanecer o mesmo: é uma moral de estado civil; ela rege nossos papéis. Que ela nos deixe livres quando se trata de escrever”.

Na infância, já era multiplicadoramente confessional e sincero, eraautoficcionalmente confessional e sincero. O discurso confessional – que nunca existiu no domínio público – se articulava e se articulou desde sempre pela multiplicação explosiva dos discursos autobiográficos que faziam pacto com o ficcional. O discurso confessional – que na verdade não o era, era apenas um lugar vazio, desesperador, preenchido por discursos híbridos – só poderia estar plena e virtualmente num feixe discursivo, numa soma em aberto de discursos autoficcionais, cujo peso e valor final seriam de responsabilidade do padre-confessor – e, hoje, de meu leitor. Ao padre-confessor e ao leitor passava algumas histórias mal contadas.

A boa literatura é uma verdade bem contada… pelo leitor… que delega a si – pelo ato de leitura ? a incumbência de decifrar uma história mal contada pelo narrador. Competiu aos ouvidos do padre-confessor ? e compete hoje aos olhos do leitor ? preencher os brancos e os vazios de que é também feito um texto literário, aliás, não tenhamos dúvida, qualquer texto, que o diga o psicanalista. Compete ao leitorempinar (como a uma pipa) e endireitar (como a algo sinuoso) um objeto em palavras que lhe é dado de maneira corriqueira e aparentemente em desordem. Um exemplo? Pois não. Dom Casmurro é uma história mal contada pelo narrador Bentinho sobre o adultério de sua esposa, Capitu, com Ezequiel, o melhor amigo do casal. Caso narrada da perspectiva do leitor, a estória em primeira pessoa sobre o adultério de Capitu se transforma numa bem contada história sobre o ciúme doentio do personagem Bentinho.

As histórias – todas elas, eu diria num acesso de generalização – são mal contadas porque o narrador, independentemente do seu desejo consciente de se expressar dentro dos parâmetros da verdade, acaba por se surpreender a si pelo modo traiçoeiro como conta sua história (ao trair a si, trai a letra da história que deveria estar contando). A verdade não está explícita numa narrativa ficcional, está sempre implícita, recoberta pela capa da mentira, da ficção. No entanto, é a mentira, ou a ficção, que narra poeticamente a verdade ao leitor.

Um dos grandes temas que dramatizo em meus escritos, com o gosto e o prazer da obsessão, é o da verdade poética. Ou seja, o tema da verdade na ficção, da experiência vital humana metamorfoseada pela mentira que é a ficção. Trata-se de óbvio paradoxo, cuja raiz está entre os gregos antigos. Recentemente, encontrei a forma moderna do paradoxo num desenho de Jean Cocteau, da série grega. Está datado de novembro de 1936. No desenho vemos um perfil nitidamente grego, o do poeta e músico Orfeu. De sua boca, como numa história em quadrinho, sai uma bolha onde está escrito: “Je suis un mensonge qui dit toujours la vérité” (Sou uma mentira, que diz sempre a verdade). Esse jogo entre o narrador da ficção que é mentiroso e se diz portador da palavra da verdade poética, esse jogo entre a autobiografia e a invenção ficcional, é que possibilitou que eu pudesse levar até as últimas conseqüências a verdade no discurso híbrido. De um lado, a preocupação nitidamente autobiográfica (relatar minha própria vida, sentimentos, emoções, modo de encarar as coisas e as pessoas, etc.), do outro, adequá-la à tradição canônica da ficção ocidental.

Toda narrativa ficcional em que a verdade poética está transparente – aquilo que se chama de romance de tese – é um saco. A verdade ficcional é algo de palpitante, pulsante, que requer sismógrafos, estetoscópios, e todos os muitos aparelhos científicos ou cirúrgicos que levam o leitor a detectar tudo o que vibra, pulsa e trepida no quadro da aparente tranqüilidade da narrativa literária, ou seja, no mal contado pela linguagem. Nesse sentido, e exclusivamente nesse sentido, o bem contado é a forma superficial de toda grande narrativa ficcional que é, por definição e no seu abismo, mal contada.

Para terminar, leio parte dum fragmento de “Sem aviso”, texto assinado por Clarice Lispector: “Comecei a mentir por precaução, e ninguém me avisou do perigo de ser precavida, e depois nunca mais a mentira descolou de mim. E tanto menti que comecei a mentir até a minha própria mentira. E isso – já atordoada eu sentia – era dizer a verdade. Até que decaí tanto que a mentira eu a dizia crua, simples, curta: eu dizia a verdade bruta”. Permitam-me a glosa. O sujeito em primeira pessoa começou a mentir por prudência e cautela e, como a realidade ambiente o incitava a ser prudente e cauteloso, continuou a mentir descaradamente. E tanto mentia, que já mentia sobre as mentiras que tinha inventado. E a tal ponto mente, que a mentira se torna o meu modo mais radical de ser escritor, de dizer a verdade que lhe é própria, de dizer a verdade poética.

(2007)

 

* A palestra foi escrita a pedido de Luciana Hidalgo e apresentada na sede do SESC, em Copacabana.

 

NOTAS

1 Memórias de um sargento de milícias, Memórias póstumas de Brás Cubas e Memórias sentimentais de João Miramar.

 

Tempo de leitura estimado: 10 minutos

Ana Cristina. Em vôo rasante | de Clara de Andrade Alvim

Em uma primeira impressão, anotei mentalmente, sem ordem de nenhuma espécie, pontos a que queria voltar. Mas a gente tem de observar que são pontos no meio do movimento do poema e que, retirados, ganham importância e ênfase que os colocariam em sobrevôo à corrente em que foram imersos. Provavelmente, para serem afogados ou quase. Seria assim que ela quer? É muito parecido com uma brincadeira que meu neto de dois anos faz comigo, na varanda, desde que aprendeu a palavra, sacou o sentido e as possibilidades psicológicas e metafísicas de sua manipulação. Ele segura o guidom do velocípede ao inverso – e se pode perceber que assim também serve. Espera, já rindo, minha reação. Ao contrário? Pergunta, e revira a direção ao contrário, repetindo infinitamente o jogo. Vejam Ana Cristina: (Em Luvas de Pelica).
“ ………………………..You know what lies are for. Doce
coração cleptomaníaco.
Pondo na mala de esguelha sobras do jantar,
gatos e bebês adoentados.
Bafo de gato. Gato velho parado há horas em
frente da porta da frente.
Qual o quê. Coração põe na mala. Coração põe
na mala. Põe na mala.”

Poucos versos antes dissera:

“Porque eu faço viagens movidas a ódio. Mais
resumidamente em busca de bliss.
É assim que eu pego os trens quinze minutos
antes da partida ………………………………..”

Partida antes da partida. Ódio ou bliss não. Ódio e bliss se revirando até dar no mesmo, lançando o estranhamento. Auto-complacente, a autora ou o personagem esconde o roubo irresistível (pedaços da vida dos outros, invejados embora adoentados? Um verso? O amor de outrem?) – butim da espreita, guardado na mala da partida. A repetição de “Coração põe na mala” produz aquele efeito de virar ao contrário e perguntar se é assim, que compraz a meu neto, em seu incipiente sadismo com a avó. Mas aqui a crueldade castiga quem segura a direção contra seu peito.
Voracidade, ciúme, desatino – por vezes estão por detrás das gatunagens:
(Em Correspondência Completa)

“………………………………………………………Mary tem sempre razão.
Gil diz que ela não se abre comigo porque sabe
que minha inveja é maior que meu amor. ………………………………”
………………………………………………………………………………………….

Gil diz que sou uma leoa marinha e eu exijo
segredo absoluto (está ficando convencido):
historinhas ruminadas na calçada são afago para
o coração. Quem é que pode saber? Eu sim sei
fazer calçada o dia todo, e bem. Do contrário…
Não fui totalmente sincera.”

Mas, como se vê, a des-razão revira rápido em razão muito cerebrina, desabusada e desafiante de quem – digamos- capta o alheio em conjunção a outros poetas ladrões de historinhas, de quem ela também pilha um pouquinho – mas sabendo o que faz, fazendo a seu modo. “Quem é que pode saber”? Em “Samba Canção”, de A teus pés, que ecoa títulos de Cacaso, ela diz:

“Tantos poemas que perdi,
tantos que ouvi, de graça,
pelo telefone ………………”

Essa questão da literatura-roubo, apropriação, Ana Cristina compartilha com outro escritor, cuja estréia, com Armadilha para Lamartine, ela apoiou, quando fazia parte, com Cecília Londres, do conselho informal que escolhia as publicações de autores brasileiros da espanhola editora Labor, recém-instalada em nossas plagas, ainda nos anos 70: Carlos Sussekind. Ana Cristina não chega a saber que, em 1992, Carlos vai publicar um livro chamado O Autor mente muito. Diz Ana Cristina na página final da Correspondência Completa:

“……………………………………………………..só posso
dizer que corei um pouco de ser tudo verdade. F.
penso não percebe, mas como sempre mente
muito. Mente muito! Só eu sei. Vende a alma ao
diabo negociando a inteligência alerta pela
juventude eterna.”

Autora e personagem trocam de papel com freqüência nesses versos-correspondència-diário. Um truque a mais para despistar o leitor ou para disfarçar a dor. A propósito daquele “corei um pouco de ser tudo verdade” há que lembrar – entre muitas outras coisas – os dois P.S. do final da Correspondência Completa:

“P.S. 1 – Não quero que T. leia nossa correspondência, por favor, Tenho paixão mas também tenho pudor!
P.S. 2 _ Quando reli a carta descobri alguns erros datilográficos, inclusive a falta do h no verbo chorar. Não corrigi para não perder um certo ar perfeito – repara a paginação gelomatic, agora que sou artista plástica.”

A inteligência alerta para manter, com mão firme, a literatura à distância da biografia, não se confundindo com esta, embora fazendo dela sua matéria prima.
A armadilha, a pose, a prestidigitação – a poeta como um mágico que mostra vertiginosamente as lembranças, os testemunhos, as imagens de um enredo, cuja verdade, manipulada, vira ficção.
A re-escrita da vida como paródia, feita de ironia, de humor e de um falso pudor que, às vezes, chega ao franco descaro, me parece ser uma das marcas dessa poesia. Nesse sentido, esta poesia confina com a prosa – a menos poética, a mais corriqueira – em que insere citações, apropriações literárias, referências a falas e acontecimentos recuperáveis. Primam o ataque à aura, o propósito de dessacralização. Em “18 de fevereiro”, de Cenas de Abril , lê-se:

“……………………………………………………………………………………….
Somente a dicção nobre poderia a tais alturas
consolar-me. Mas não o ritmo seco dos diários
que me exigem!”

A começar pelo rebaixamento do lugar da própria literatura e do livro. NaCorrespondência Completa, cuja edição minúscula foi objeto de grande prazer “plástico”:

“…………………………………………Escrever é a
parte que chateia, fico com dor nas costas e
remorso de vampiro. Vou fazer um curso secreto
de artes gráficas. Inventar o livro antes do texto.
Inventar o texto para caber no livro. ……………….”

Também a desmistificação do lugar do artista e certa triste e desiludida falta de ternura em relação a seu próprio processo de escrever: (Em Luvas de Pelica).

“…………………………………………………………………………………
Aqui tenho máquinas de me distrair, TV de
cabeceira, fitas magnéticas, cartões postais,
cadernos de tamanhos variados, alicate de unhas,
dois pirex e outras mais. Nada lá fora e minha
cabeça fala sozinha, assim, com movimento
pendular de aparecer e desaparecer. Guarde bem
este quarto parado com máquinas, cabeça e
pêndulo batendo. Guarde bem para mais tarde.
Fica contando ponto.”

Como nas Memórias Póstumas, que ela confessa haver lido até se sentir “ low”, o leitor da Correspondência (e o de sua literatura em geral) é provocado, ao mesmo tempo em que a autora se expõe:

“ Fica difícil fazer literatura tendo Gil como leitor.
Ele lê para desvendar mistérios e faz perguntas
capciosas, pensando que cada verso oculta
sintomas, segredos biográficos. Não perdoa o
hermetismo. Não se confessa os próprios
sentimentos. Já Mary me lê toda como literatura
pura, e não entende as referências diretas.
……………………………………………………………………”

Assim, as citações e referências literárias (“lições levantam vôo”), embora correspondam a autores de sua admiração e afinidade, em Ana surgem mescladas a sua própria dicção e ficção, eminentemente iconoclastas. Baudelaire – cuja presença é profunda na poesia de Ana Cristina – e Manuel Bandeira freqüentam o poema “21 de fevereiro” em Cenas de Abril:

“…………………………………………………..abomino
Baudelaire querido, mas procuro na vitrina um
modelo brutal. Fica boazinha, dor; sábia como
deve ser, não tão generosa, não. …………………….
………………………………………………………………….
……………………………………………………………………
…………………………………………………………………..
………………………………………………………………….
…………… Minha dor. Me dá a mão. Vem por aqui,
longe deles. ……………………………………………………
…………………………………………………………………….
………. .Belo belo. Tenho tudo que fere. As
alemãs marchando que nem homem. As cenas
mais belas do romance o autor não soube
comentar. Não me deixa agora, fera.”

São referências que penetram e exprimem o sentimento do poema, embora o devido pudor encontre sempre maneiras de driblar seu reconhecimento pelo leitor. Ainda na Correspondência Completa, cujo aspecto físico e dicção – como já se observou – se opõem em tudo à solenidade que não pode deixar de envolver a expressão da dor, Ana Cristina evoca de raspão a poesia de Maria Ângela Alvim, particularmente a do poema-em-prosa “Carta a um cortador de linho” contido no último livro – Poemas de Agosto dessa autora:

“……………………… . Há três dias que pareço morar
onde estou (ecos de Ângela). Aquele ar de
desatenção neurológica me deixa louca. Saímos
para o corredor.Você vai ter um filhinho,
ouviu?”

Diz Ângela:
“…………………………………………………………………………………..

Quanto a mim, meu amigo, vou passando. Sem
ela não fico em casa. Há três dias que pareço morar
onde estou: na rua, no café, na praia.

…………………………………………………………………………..
…………………………………………………………………………..

Mas minha pele tornou-se muito sensível. Demais.
A dor cresce dentro da gente e tem que respirar.
Ela tem uma energia e queima como o sol – lá fora.
Nem sei se é dor ou se é aquela que está sofrendo
que me visita assim. Não têm onde encontrar-me e
entram dentro de mim, querem abraçar-me e avançam
minhas fronteiras.”

Em comum a intensidade da dor e sua consideração como algo exterior, a distância de si, o sentimento do”sem lugar”. Parece-me que a leitura da cisão da personalidade em Ângela, por Ana Cristina, provoca a referência à perigosa ambigüidade que penetra os fracionamentos do “eu” e projeções, freqüentes em sua poesia:

“ ………………………………Você vai ter um filhinho,
ouviu?”

No entanto a dor, que na poesia de Ana Cristina é figurada por representações de ferocidade de quem escreve do patamar rente à vida, contrasta com o sofrimento apaziguado pela certeza do fim, “que é ali mesmo”, expressado na “Carta a um Cortador de Linho” – esse raro poema em prosa da modernidade brasileira.

Assim, pois, a intensidade da presença de autores canônicos e de outros nem tanto nos poemas de Ana Cristina não resulta na anulação de sua personalidade literária, antes a reforça. A singularidade dessa poesia provém – me parece – principalmente do domínio que a autora exerce sobre sua matéria, ao domar tanto o literário como o biográfico – que formam a substância da obra – e fazer prevalecer sua própria escrita, a qual mantém em equilíbrio o drama e a farsa.
É preciso, por fim, notar que a presença de Baudelaire e de Walt Whitman nessa poesia vai além das citações e, mesmo, além do que entendemos mais comumente como influências. Parece-me que através do eco dessas vozes contrastantes, mas inaugurais da poesia contemporânea, é que Ana Cristina enfrenta os embates para realizar seu propósito de expressar em literatura de clave moderna seus sentimentos diante da realidade de sua vida e de seu momento político e literário. Nesse sentido, diz muito o título de seu último livro: A Teus Pés.

* Clara de Andrade Alvim é graduada em letras pela antiga Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil. Livre Docente em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, com tese sobre Guimarães Rosa. Lecionou na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, na PUC RJ e na Universidade de Brasília. Coordenadora de projetos da Fundação Pró-memória do Ministério da Cultura. Publicou, entre outros, os seguintes trabalhos: “Esses poetas de hoje”, posfácio à primeira edição de “Beijo na boca”, de Antonio Carlos de Brito; “Representações da pobreza e da riqueza em Guimaraes Rosa”, in “Os pobres na literatura brasileira”, organizado por Roberto Schwarz ; “As questões: mulher, biografia e literatura nos escritos em prosa de Ana Cristina César”, in revista “Remate de Males nª 20, do Dep. de Teoria Literária da UNICAMP e a orelha de “A terceira perna”, de Vilma Arêas.

 

Tempo de leitura estimado: 7 minutos

Legalidad, resistencia y ética | de George Yúdice

3 de abril de 2008
*De próxima aparición en Culturas, suplemento cultural de La Vanguardia (Barcelona)

Apesar de los vaticinios de la muerte de la industria de la música, en los cuales yo mismo he incurrido en varias publicaciones, sería más exacto caracterizar el estado actual del fenómeno musical como una encrucijada, un período de incertidumbre en el que los contornos del futuro sistema de circulación musical todavía no se vislumbran. Los ingresos de la industria de la música vienen cayendo, a la vez que aquellos que la escuchan (melómanos, usuarios, consumidores o como se quiera llamarles) adquieren fonogramas por intercambio de archivos en Internet o en los puestos de top manta. La industria responde con represalias legales, pero aun así no logra frenar toda la actividad que tiene lugar fuera de su control. Por otra parte, los músicos mismos vienen escapándose de las estructuras ya evidentemente caducas de la industria fonográfica. McCartney, Prince, Radiohead, Nine Inch Nails, Madonna, Bowie, y un sinnúmero de músicos menos conocidos internacionalmente han buscado nuevos modelos de mercado y de circulación musical. Así mismo, han surgido miles de sitios donde se puede conseguir fonogramas o intervenir en la creación de música en remixes y mashups, aproximando el usuario al músico, efecto que muchos celebran por su empoderamiento democratizante y otros descalifican como empobrecimiento artístico.

Si bien podría pensarse que las eventualidades empoderadora o empobrecedora son igualmente probables en este momento de flujo – o de liquidez al decir de Bauman – la verdad es que no se dan en igualdad de condiciones. Si bien las diversas nuevas tecnologías de intercambio de archivos desafían a la industria en varios aspectos, ésta no obstante tiene el respaldo de la ley y de las fuerzas policiales que le dan seguimiento. El caso más notorio es el de Jammie Thomas, quien intercambio 1.702 fonogramos, si bien fue procesada por la Recording Industry Association of America (RIAA) en base a 24 canciones, por cada una de las cuales tendrá que pagar $9.250 o un total de $220.000 de compensación. Thomas pudo haber resuelto el caso extrajudicialmente como miles de otros demandados, pero prefirió disputar los cargos en un juicio por jurado. Las circunstancias de este caso facilitaron un veredicto de culpabilidad, pero Thomas no es la única persona que busca combatir el dominio que tiene la industria fonográfica sobre la circulación de música.
Podría decirse que se están perfilando nuevas políticas en torno a la ética del intercambio de archivos. Hace décadas nadie habría sido procesado por intercambiar LPs con sus amigos e inclusive con desconocidos en clubes y lugares de encuentro, como se hace en la economía del trueque. Hoy, más allá de la criminalización de canjeadores que lleva a cabo la industria fonográfica, una miríada de organizaciones y de individuos está buscando el término medio entre el derecho de los creadores a recibir una compensación por su trabajo y el derecho de la sociedad a bienes comunes o al patrimonio de la humanidad. Las primeras concesiones de derecho de autor y de copyright limitaron el monopolio de reproducción a 28 años, después de los cuales la obra entraba al dominio público. Además, se protegió a los consumidores prohibiendo que los editores controlaran el uso de obras después de su publicación. En los EEUU se limitó el copyright a 14 años, renovable por otros 14, período que se duplicó en 1909. Pero desde 1962 viene aumentando hasta alcanzar 95 años en 1998. Como explica Lessig en su libro Cultural libre (2005), no hay justificación constitucional para esa extensión, la cual refleja la tentativa de las empresas de establecer un monopolio sobre las obras que deberían entrar en el dominio público, aumentando así sus las ganancias.

La gran novedad en la actualidad es la creciente politización de ciudadanos de todos los países que se oponen a este empequeñecimiento del dominio público y más aun al resultado de las estrategias de blockbuster y marketing empleadas por los grandes sellos para reducir el riesgo de fracaso en el mercado. Ese resultado es la casi eliminación de la radio y la televisión de las obras producidas por pequeñas y medianas empresas, y por tanto la mayor dificultad de sostener la diversidad musical en el mercado. Es justo por esta razón (apoyar el acceso a la diversidad e obras, sobre todo de regiones que no pueden competir en el mercado internacional) y por el deseo de los artistas, aún los más reconocidos, de ganar mayor control de la circulación de música y de las ganancias, que la industria fonográfica tendrá que cambiar, si quiere sobrevivir.
Podría decirse que las políticas de negocio de los grandes sellos han generado un gran movimiento social en torno de la propiedad intelectual, tema que hace un par de décadas no provocaba el interés de nadie. Así, han nacido movimientos como “Todos contra el canon” en España, con más de millón y medio de ciudadanos que quieren eliminar el impuesto a los reproductores y medios de almacenamiento digitales que la industria de la música y el entretenimiento ha logrado que se legisle. Movimientos parecidos existen en otros países, y hasta hay un partido contra los derechos de autor en Suecia.

Pero más allá de los partidos y los movimientos sociales más o menos organizados, hay una marea de resistencia a obedecer las leyes que las mayorías creen injustas. En EEUU, donde se supone hay el mayor seguimiento a las leyes, la mayoría de los estudiantes en todos los niveles consigue su música mediante el intercambio de archivos en Internet. Y ni hablar de los jóvenes en países en desarrollo. Hay países como Perú donde la industria fonográfica ha dejado de existir casi por completo en su encarnación convencional. En esos países sólo una pequeña minoría podría pagar los $15 a $20 que cuesta un CD.

Pero más aun que el precio, lo que se busca es ampliar la oferta, por una parte, y asegurar que el intercambio de música siga siendo uno de los fundamentos de la socialización o social networking. Para verificar la enorme diversidad de música, vinculada a la identidad de los internautas, sólo falta entrar en los sitios de socialización como MySpace o ver los videos que se suben a YouTube. Algunos críticos descartan este vínculo entre identidad individual o grupal y repertorios de música reduciéndolo a un mero consumo acrítico. Pero en los sitios de socialización hay debates en torno a la música desde una miríada de criterios, desde los tecnológicos a los estéticos. Lo que constatamos, pues, es una nueva alfabetización musical que enriquecerá la actividad creativa de los usuarios.

Esta no es una revolución política ni una liberación social, pero sí es un reclamo al derecho a la creatividad.

* George Yúdice es profesor de la Universidad de Miami. Colabora con el MACBA; este junio enseñará para el Programa de Estudios Independientes un curso sobre economía y cultura y dirigirá un seminario sobre el “museo molecular”. Publica:Nuevas tecnologías, música y experiencia (2007); Política cultural (2004) y El recurso de la cultura (2002), todos por Gedisa Editorial.