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Desentranhando Luis Olavo Fontes – Entrevista, por Masé Lemos

Entrevistar o poeta Luis Olavo Fontes foi uma experiência muito agradável. O “Lui”, como ele é conhecido pelos amigos, domina a arte da boa conversa. Com o seu jeito carioca e sem nenhum pedantismo, ele foi capaz de refazer o seu “retrato de época”, ou seja, da chamada poesia marginal da qual participou ativamente. Essa entrevista foi gravada, transcrita e depois revisada e editada. Ela é uma tentativa de preencher a lacuna do livro de Carlos Alberto Messeder Pereira, pois o Lui, na época, estava literalmente viajando.

Masé Lemos: Você participou nos anos 1970 do movimento chamado “poesia marginal” e em recente minibiografia que você escreveu diz que você seria “um poeta marginal dentro dos marginais ou que teria sido marginalizado nos anos 70 e esse teria sido o seu fim”. Poderia falar um pouco sobre isso?

Lui: Há dois assuntos na sua pergunta. Primeiramente, em relação a mim, ocorreu que em 1976 eu saí do Brasil e só retornei em 79. A poesia marginal estava no auge quando parti. Eu acabara de lançar um livro Papéis de Viagem, que era como eu estava me sentindo: tirando os papéis de viagem para partir. Para mim foram apenas três anos – 74/75/76 – participando do movimento de poesia marginal. Mas, foram três anos muito intensos em que fiz três livros, fundei com o Cacaso a coleção “Vida de Artista”, participei de antologias e fiz muitos trabalhos em jornais e revistas da época. Aconteceu que a melhor e mais completa pesquisa sobre a “poesia marginal”, o livro Retrato de Época de Carlos Alberto Pereira, foi feito em 1977 quando eu não me encontrava no Brasil. Ele entrevistou todo mundo menos eu. Fiquei de fora – marginalizado dentro dos marginais
Além disso, havia contra a poesia marginal um preconceito muito grande, a começar pelo nome. Na verdade, não sei quem deu esse nome, mas não fomos nós. Marginal ali ninguém era. O que havia é que nossos livrinhos eram marginais ao circuito editorial. Com isso, nos livrávamos da censura dos militares, muito rígida na época – censuravam tudo e todo mundo – e também de todos os intermediários – livrarias, distribuidores, editores. Vendíamos diretamente do autor para o leitor. Agora, marginal é uma palavra muito vasta, dá margem a muitos significados pejorativos que a alguns agrada, a outros não.

ML: Essa marginalidade não era também uma forma de resistência a esse sistema editorial? Não só politicamente contra a censura, mas também uma maneira de furar esse, digamos assim, sistema capitalista?
L: Claro que sim. Até porque éramos muito jovens e não conseguiríamos entrar no sistema editorial, ainda mais publicando poesia, algo difícil até hoje. Qualquer jovem que queira publicar poesia vai sofrer a mesma coisa que nós sofremos naquela época. É como você disse: as editoras são empresas capitalistas, feitas com o intuito de gerar lucro. E poesia não dá lucro… Aí vem aquelas frases: poesia está fora do mercado, não dá dinheiro etc. Então era sim uma maneira de furar esse mercado editorial e tentar criar um outro circuito: vender em bares, na praia, no teatro, na rua, no mundo.

ML: A poesia de vocês tem muito do Modernismo…
L: Com certeza. Literariamente falando, nossa maior influência era o Modernismo. O Brasil mudara muito de 68 a 73. Houve a revolução sexual, a televisão a cores com satélite para todo o país. Nós queríamos descobrir esse novo Brasil que estava nascendo. Daí talvez a ligação com os modernistas. As maiores influências eram Manuel Bandeira (de Libertinagem em diante), Oswald de Andrade, Drummond de Alguma Poesia, Murilo Mendes do Poemas, enfim, aquela fase modernista inicial dos anos 1930. Quase me esqueço: Mário de Andrade a gente também lia muito. A outra grande influência vinha da música: Tropicália, samba e rock’n roll. Bob Dylan, John Lennon, Jimi Hendrix, Caetano, Chico Buarque – esses eram os nossos gurus. Eu, particularmente, adorava João Gilberto e o Jim Morrison dos Doors.

ML: E qual relação de vocês com os concretos?
L: Não havia relação… A relação com os concretos me faz lembrar o Cacaso. Cacaso era cheio de frases de efeito, um mestre das respostas rápidas. Uma vez ele disse: “o concretismo é o AI-5 na poesia.” Os paulistas ficaram furiosos. Nós vivíamos o AI-5 naquela época, era o auge dos anos de chumbo da ditadura militar, o governo do General Médici. Cacaso queria fazer não uma poesia engajada tradicional, mas uma poesia de denúncia dos crimes da ditadura, dos horrores da tortura, da violência, do autoritarismo. Mesmo porque havia censura e ninguém sabia o que estava realmente ocorrendo. Cacaso não se conformava com o fato dos concretos terem abolido o discurso literário – com a velha desculpa pernóstica de que “tudo já foi escrito.” Ele dizia, com alguma razão, que a poesia concreta só contribuía para uma maior alienação da poesia brasileira. Fatos terríveis estavam acontecendo e a poesia concreta estava fazendo “Coca-Cola”, “Luxo é Lixo” – poemas alienados que mais pareciam “slogans” publicitários. Ele propunha que a poesia voltasse a ter um discurso, que fosse mais reflexiva, que se aproximasse mais da realidade, e o concretismo realmente estava em outra onda, algo mais “clean”, mais estético – o formalismo em estado puro – que os aproximava mais das artes plásticas do que da literatura.

ML: O que é interessante é que desde os concretos era comum relacionar a poesia artesanal ao individualismo, mas na poesia dita marginal essa ideia de artesanato está muito mais ligada ao coletivo.
L: É verdade. Em termos de produção, eram sempre criações coletivas. É o caso do Almanaque Biotônico Vitalidade, cujo primeiro número foi um exemplo disso. Poetas, pintores, fotógrafos, “designers”, se reuniram e o resultado foi ótimo. O mesmo ocorreu nos primeiros livros da coleção “Vida de Artista”, que foram feitos coletivamente, um monte de gente junta, na fazenda do meu avô. Já com relação à produção poética, acho que as individualidades predominam e são bem definidas. Não concordo com pessoas que rotulam “poesia marginal” como uma coisa una, todos escrevendo parecido. Acho que individualmente éramos muito diferentes e isso se refletia em nossa poesia. A poesia da Ana Cristina é totalmente diferente da do Chacal. A poesia do Chico Alvim é muito diferente da do Cacaso. E todos são considerados poetas marginais.

ML: Como foi dito, no livro Retrato de Época: poesia marginal de Carlos Alberto Pereira, há várias entrevistas com os componentes da “Vida de Artista”, mas você não foi entrevistado. Por onde você estava viajando na época?
Lui: Estava fazendo a grande viagem da minha vida, uma viagem de volta ao mundo. Era um sonho antigo de conhecer o Oriente, a Índia, a China… Nos meus planos iniciais, era uma viagem que iria durar entre 3 e 6 meses, mas acabou durando 2 anos. A ideia era seguir a rota de Marco Polo, de Veneza a Pequim pela Estrada da Seda e voltar pela Ásia do Sul – exatamente como foi a viagem de volta de Marco Polo. Mas, o Sikiang (oeste da China) estava fechado para estrangeiros, então fui primeiro pra Índia e sudeste asiático e terminei na China. Voltei pelo Pacífico, parando em algumas ilhas, até chegar no Chile. A viagem foi bacana porque foi feita toda por terra, só peguei dois aviões: um na ida, Rio-Roma, e outro na volta (com escalas), Bali-Santiago do Chile. Foi a volta ao mundo em 700 dias.

ML: Antes da viagem, você foi aluno da Faculdade de Letras da PUC-RIo.
L: É verdade. O Cacaso e a Ana Cristina foram muito importantes nesse processo. Em 1973, eu estava terminando o curso de Economia na PUC – que cursara por pressões familiares – quando houve um evento poético na faculdade: a “Expoesia”. Puseram um monte de quadros de cortiça no pilotis da PUC, que é uma área imensa, e você podia ir lá e pregar com tachinhas um poema seu. Era uma coisa livre, aberta a todos – então, fui lá e coloquei um poema meu. Ocorreu que o Cacaso e a Heloísa Buarque escreveram em conjunto um artigo para a revista Argumento – uma revista importante na época, era do Fernando Gasparian, que também tinha o jornal Opinião – dizendo que havia um novo movimento de poesia feito pelos jovens. Para exemplificar, publicaram uns 4 poemas expostos na Expoesia, entre os quais estava o meu “Homenagem à Yoko Ono”. Eu me surpreendi porque até então não conhecia nenhum desses jovens poetas, não conhecia o Cacaso, não conhecia a Heloísa, ainda estava estudando Economia. Por outro lado, sempre fui muito ligado à literatura, porque o meu avô por parte de pai era o Amando Fontes, romancista com alguma fama nos anos 30, 40 do século passado, quando ganhou prêmios com seu romance Os Corumbas. Sempre escrevi, desde garoto, mas era algo solitário e meio secreto, não mostrava pra ninguém. Nunca havia exposto em público um poema meu até que nessa “Expoesia” tudo aconteceu. O Cacaso escreveu esse artigo com a Helô e quis me conhecer. Logo conheci a Ana Cristina e comecei a me interessar em, quem sabe, cursar Letras na PUC. Foi assim que terminei Economia em 73 e entrei para Letras em 74.

ML: E aí você foi cursar Literatura em 74. Conte como foi que surgiu a coleção “Vida de Artista”.
L: Foi um tempo muito bom. O Cacaso logo se tornou meu amigo e fez um curso sobre a poesia da gente – que ainda não se chamava marginal. A Ana Cristina, que era minha namorada, era também minha monitora num curso que eu fazia com a Cecília Londres. Houve uma espécie de simbiose entre as pessoas, todas ficaram muito amigas. O Chacal, que fazia o curso do Cacaso de ouvinte, começou a namorar minha irmã Debinha. Ele fez um poema lindo pra ela que está no América, dedicado “à Deborah”. O Cacaso começou a namorar outra irmã minha, a Kaki, que também estudava literatura na PUC. Nesse curso, ele começou a publicar os poemas da gente no mimeógrafo da PUC e a ideia de fazer livros assim já estava acontecendo – o Charles e o Chacal já haviam feito seus primeiros livros dessa maneira. Foi então que surgiu o Toledo, um amigo do Cacaso que tinha um mimeógrafo moderno na sua firma de arquitetura e deixou que nós fizéssemos nossos livros lá. Eu estava com meu primeiro livro, Prato Feito, pronto e o Cacaso convidou: “Vamos fazer no mimeógrafo do Toledo.”
Prato Feito tinha fotos da Bita Carneiro, que tinha sido namorada do poeta João Carlos Pádua e era irmã do Geraldinho Carneiro, também poeta – ambos alunos de Letras da PUC. A ideia do Cacaso, nosso professor, era fazer uma coleção em que cada livro vendido pagasse a produção do seguinte. Uma espécie de cooperativa literária. O dinheiro da venda do livro não iria para o autor, mas para a produção do próximo livro. Assim, o Prato Feito financiou a publicação do Segunda Classe, o segundo livro da “Vida de Artista”.

ML: E como eram os famosos encontros na fazenda do Lui?
L: Esses encontros foram muito citados no Retrato de Época, mas a fazenda não era o único ponto de encontro da gente. No Rio, havia a casa do Cacaso – um apartamento enorme na avenida Atlântica – e o casarão da Lagoa, onde morávamos eu e meus irmãos. Éramos sete irmãos, a casa era bem grande e vivia cheia de gente. Isso era no tempo em que havia casarões na Lagoa… Os meus dois primeiros livros, Prato Feito e Segunda Classe, foram lançados lá. O que aconteceu foi que no réveillon de 74/75, passamos uma longa temporada na fazenda e foi um tempo muito rico, vários livros foram feitos. Foi uma turma enorme pra lá: poetas, artistas plásticos, músicos, cineastas, um bando de artistas, mas o intuito principal era fazer livros de poesia. E foram feitos pelo menos três livros nessa temporada na fazenda: Segunda Classe, que era meu e do Cacaso, o América do Chacal e o Creme de Lua do Charles. Aliás, o América foi o terceiro livro da “Vida de Artista”, tinha o carimbo da coleção feito pelo Dick e Sérgio Liuzzi – um balãozinho muito bonitinho. Mas, o Chacal estava sendo muito pressionado por amigos da faculdade dele – ele estudava comunicação na ECO, onde também estava o Charles – para participar de outra coleção que eles estavam criando: a “Nuvem Cigana”. Assim, o América foi, nas palavras do próprio Chacal, um livro híbrido; foi tanto da “Vida de Artista” quanto da “Nuvem Cigana”. O Creme de Lua do Charles já saiu pela “Nuvem Cigana”. Aliás, tem um poema nesse livro que foi feito na fazenda: o Charles estava deitado na rede da varanda quando apareceu um bando de maritacas aos berros num vôo rasante. Charles gritou: “Olha a passarinhada!” Fomos todos correndo para a varanda: “Aonde? Aonde?” E o Charles imóvel na rede respondeu: “Passou.” Esse poeminha está no Creme de Lua e tem três linhas: “Olha a passarinhada!/Onde?/Passou…”

ML: A Ana Cristina César na entrevista que deu ao Carlos Alberto Pereira, falando sobre a fazenda do Lui, dizia que tinha toda uma roda de meninas em volta… então, talvez houvesse esse clima narcisista, clube do bolinha, o que você poderia falar sobre isso?
L: É difícil falar sobre isso… São os sentimentos da Ana Cristina… Mas, acho que ela tinha alguma razão – afinal, éramos uns garotões de vinte e poucos anos… Mas aí, acho que tem duas coisas. Primeiro, talvez ela se sentisse meio deslocada porque ela era a única mulher poeta, todos os outros eram homens. Talvez, ela se sentisse meio fora do negócio. Em segundo lugar, é preciso lembrar que no réveillon de 75 Ana Cristina ainda não havia publicado nada. Ela escrevia muito, mas não queria publicar, não se sentia segura. Ela dizia também que não possuía uma quantidade suficiente de poemas para fazer um livro de qualidade, algo com que eu não concordava. Eu dizia a ela: “está cheio de gente muito pior que você publicando livros, por que você não publica?” Mas, ela não publicava nada. Então, devia ser uma situação meio incômoda pra ela: todo mundo fazendo livro e ela não. Mas isso são suposições…
Agora, nesse comentário que ela faz, que havia muitas luluzinhas em volta da gente, como se fossem umas tietezinhas, acho que há um certo exagero dela em dizer isso. Ainda que houvesse um certo machismo dos homens, as meninas que estavam lá eram nossas amigas e namoradas, a maioria delas também artistas. Você quer nomes? No réveillon de 75 na fazenda, em volta da mesa redonda da sala de jantar, estavam a Sandra Werneck – hoje cineasta de renome – , a Bita Carneiro que é uma grande fotógrafa, a Olívia Byington que é ótima cantora (acho que ela namorava o músico Paulo Guimarães na época), Debinha que era atriz, Massoca que é artista plástica e a Kaki que é poeta, mas que também só publicaria mais tarde. Como se vê, as meninas eram todas artistas e não tietes idiotas como ela deixa transparecer na entrevista. Havia também um pessoal da música, ouvia-se e tocava-se muita música. Muitas drogas também. As pessoas tomavam muitas drogas naquele tempo.

M: E essa viagem ao São Francisco, que deu como resultado o Segunda Classe, qual era o significado da viagem? Porque você tem uma relação especial com essa noção de viagem…
L: Tenho. E o Cacaso não. O Cacaso era mais quieto, mais sedentário. Ele nasceu em Uberaba e depois se mudou para Barretos. O pai era fazendeiro de gado, tinha terras em vários estados. As maiores fazendas ficavam no Pantanal. Com 11 ou 12 anos, Cacaso se mudou para o Rio, e aquilo foi um choque para ele, menino interiorano na cidade grande. Apesar de estar no Rio há tanto tempo, Cacaso nunca deixou de ser aquele mineirinho calado, observador, esperto.
Já o meu caso era diferente, nasci no Rio e minha família adorava viajar. Minha mãe era a maior incentivadora dessas viagens. Lembro que em 61, Brasília estava quase pronta e meus pais decidiram conhecê-la. Puseram as crianças no carro e lá fomos nós pro planalto central. Meu pai era médico, Dr. Olavo Fontes, mas sua maior paixão eram os discos-voadores. Então íamos para os Estados Unidos, onde meu pai se encontrava com astrônomos e pesquisadores de OVNIS. Passei assim a infância viajando, era uma coisa natural pra mim.
Mas, a primeira grande viagem que fiz foi com meu amigo de infância, Guy Van de Beuque. O pai dele era francês, Jacques Van de Beuque – idealizador do maravilhoso museu Casa do Pontal – e na sua lua-de-mel com a mãe do Guy, nos anos 40, atravessaram a América por terra desde os Estados Unidos à Patagônia. O Guy queria repetir essa viagem (eles tinham slides que nós assistíamos) e me convidou pra ir com ele. Minha namorada tinha terminado comigo, eu estava meio sem rumo, acabei indo. Fomos de mochila – era 1970, eu tinha 18 anos – e nossa viagem tinha duas leis de ouro. Primeira: não pagar transporte. Segunda: não pagar hotel. Isso se devia ao fato de termos pouquíssimo dinheiro – então a viagem virava uma coisa meio aventureira, só viajávamos de carona e nos hospedávamos em igrejas, escolas, universidades ou em casas de pessoas que ofereciam quartos de graça.
Eu e o Guy viajamos assim por toda a Bolívia, Peru, Equador e Colômbia. Nessa viagem aprendi a viajar. Descobri como era fácil viajar com pouco dinheiro e comecei a viajar pelo mundo todo. Viajava também pelo Brasil: fui conhecer Sete Quedas antes que a represa de Itaipu a cobrisse para sempre. E, como todo mundo, me apaixonei pela Bahia.
O movimento poético dos anos 70, seguindo os passos do Modernismo, também tinha esse desejo de conhecer o Brasil. O Charles e o Dick (o designer Rogério Martins) foram de jipe para o Nordeste e passaram por muitas aventuras no sertão. Havia os livros do Oswald viajando com a Tarsila pelo Brasil, os livros do Blaise Cendrars, do Mário de Andrade… Manifesto Antropofágico era a leitura predileta de quase todo mundo: “Tupi or not Tupi: that is the question”. Era preciso conhecer o Brasil.

ML: Mas o Cacaso não se animava…
L: É, o Cacaso era meio parado e nós ficávamos forçando “Vamos viajar, Cacaso?” e levávamos o Cacaso para Rio das Ostras, pra Pirapora… Sim, porque essa viagem pelo rio São Francisco começava em Pirapora (MG) e terminava em Juazeiro (terra de Ivete Sangalo) no sertão da Bahia. O mais interessante eram as barcas que haviam sido importadas do Mississipi e tinham aquelas enormes rodas de madeira na popa. Apesar de lindas, as barcas era altamente antiecológicas, pois seu combustível eram toras de madeira recém-cortadas das matas ciliares do rio. Elas provocavam a maior devastação nas margens do São Francisco. Iam acabar com as barcas, mas não por esse motivo. Uma enorme represa, a de Sobradinho, estava para ser construída, o que iria afetar a navegabilidade do rio. Por isso, resolvemos ir – para conhecer as famosas barcas do São Francisco que iam se acabar.

ML: E era tranquilo viajar com o Cacaso?
L: Era ótimo. Cacaso era cômico, estava sempre fazendo alguma observação engraçada sobre tudo que via. Ele ficou maravilhado com a Bahia, que nós já conhecíamos e ele não. “Nós” éramos eu, minha irmã Massoca e a Bita Carneiro. Parecíamos dois casais, mas não éramos. Acho que foi em outubro de 1974 que fizemos a viagem e eu namorava a Ana Cristina. Já o Cacaso queria namorar a Massoca e não conseguia. Assim fomos os quatro amigos e acabamos nas praias de Salvador comendo acarajés, abarás, carurus e vatapás.

ML: E essa ideia de poesia escrita coletivamente que o Segunda Classe apresentava, sem diferenciação de autoria nos poemas?
L: Os teóricos adoraram na época.

ML: Já havia essa noção de coisa coletiva, de grupo, de “Vida de Artista”, de coleção…
L: Mais ou menos. A gente tentava, mas éramos muito desorganizados. No caso do Segunda Classe, não houve nenhum planejamento, tudo foi acontecendo naturalmente. Quando fizemos a viagem, não foi para escrever um livro. Foi para conhecer o São Francisco.

ML: E como surgiu a ideia do livro?
L: Não surgiu, foi acontecendo naturalmente.

ML: Vocês foram escrevendo lá mesmo?
L: Sim, mas separadamente. Eu escrevia meus poemas, Cacaso escrevia os dele. Às vezes mostrávamos alguma coisa que havíamos acabado de fazer um para o outro. A viagem foi indo, a gente foi escrevendo sem compromisso de estar preparando um livro. Foi só depois, quando fomos para a fazenda no fim do ano que eu mostrei pro pessoal: “olha só os poemas que fiz lá.” O Cacaso tirou uma pasta da bolsa baiana recém-adquirida no Mercado Modelo e disse: “Eu fiz esses todos lá”. A Bita chegou e mostrou: “olha, eu tirei essas fotos.” E a Massoca: “ah, eu fiz esses desenhos.” Nós estávamos no mesão redondo da fazenda onde tudo acontecia: fazia-se livros, tocava-se música, conversava-se muito e a certa altura o Cacaso se vira e diz: “Com esse material aqui dá pra se fazer um livro. Vamos fazer um livro?” E assim foi. No meio do processo é que surgiu a ideia de não dizer de quem eram os poemas, acabar com esse conceito autoral.

ML: Uma espécie de morte do autor…
L: Pois é. Mas, havia uma coisa curiosa acontecendo: os nossos poemas tinham ficado muito parecidos. Um dia dissemos, meio de brincadeira, que se tirássemos a autoria dos poemas, ninguém saberia dizer qual era de um, qual era de outro. Na verdade, um influenciava o outro, as coisas que líamos eram as mesmas, as paisagens deslumbrantes eram as mesmas para os dois.

ML: Era a mesma viagem…
L: Era a mesma viagem e realmente os poemas ficaram muito parecidos. Era difícil distinguir o que era de um, o que era do outro.

ML: Recentemente você voltou a ter problemas com a autoria dos poemas deste livro – conte o que houve.
L: Chega a ser irônico. Ficamos esse tempo todo sem dizer de quem eram os poemas e quando isso foi revelado – saiu tudo errado! Três poemas meus foram dados para o Cacaso. São eles: “Mudando o Estado”, “Constatando” e “Diário”. O pior foi ter lido num ensaio crítico recente da pesquisadora Luciana di Leone que escrevendo sobre o Segunda Classe apontou diferenças cruciais entre a minha poesia e a do Cacaso. Para demonstrar isso ela cita dois poemas do Cacaso – que são meus! Quer dizer, com isso ela conseguiu comprovar que eu sou completamente diferente de mim mesmo.

ML: Mas ela partiu de um material que estava errado.
L: É verdade, ela não teve culpa. O erro está no livro das obras completas do Cacaso, o Lero-Lero, editado pela Cosac Naify e 7Letras. Vou mandar uma carta para eles, para ver se eles corrigem isso nas próximas edições. Afinal, já existem estudos literários dizendo que os meus poemas são de outro!

ML: Seria melhor que deixassem como antes – sem autoria. Deixar os dois misturados coletivamente.
L: Realmente, teria sido melhor. Foi o Pedro, filho do Cacaso, que me pediu para que assinalasse no Segunda Classe os poemas do pai que havia morrido. Mandei para ele uma lista com os poemas do Cacaso no livro. E mesmo assim saiu errado.

ML: Ana Cristina César tem um poema, Vigília 2, “desentranhado do poema Vigília de Luis Olavo Fontes”. Como foi isso?
L: Ana fez esse poema lá em casa, na minha mesa. Fizemos uma tentativa de morar juntos que não deu certo, éramos muito jovens (22 anos) e muito dependentes de nossos pais. Aluguei um apartamento em Santa Teresa e saí de casa. Mas, comíamos na casa dos pais, falávamos no telefone (não tinha telefone no apê), enfim, era uma vida meio dividida. Mas em Santa Teresa, líamos, escrevíamos e namorávamos muito. Vários poemas da Ana foram feitos lá em casa – por exemplo, os dois que ela publicou na revista Malasartes de setembro de 1975. Um deles foi o “Vigília 2”, que eu considero um dos melhores poemas da obra dela. Aliás, foi a Luciana di Leone quem percebeu que no livro póstumo, Inéditos e Dispersos, organizado por Armando Freitas Filho, o poema foi publicado sem a epígrafe – “desentranhado do poema Vigília…”. Ou seja, o Armando cortou a epígrafe. Acho que ele não gosta muito de mim… O título do poema fica sem sentido – por que Vigília 2? Onde está o Vigília 1?

ML: Alguns poetas da geração de vocês morreram jovens… Queria perguntar sobre essas mortes que de certa maneira santificaram alguns poetas.
L: Santificaram uns e outros não, né? Lá no Nordeste, o povo gosta de dizer durante o velório de um pecador: “agora que morreu, vai virar santo.” Mas, tem também os que morrem e ninguém lembra mais. Um dos poetas fundadores da “Nuvem Cigana”, o Guilherme Mandaro, morava a três prédios da Ana Cristina na mesma rua Tonelero e também se jogou pela janela, uns dois anos antes dela, e hoje ninguém fala dele, é uma pessoa totalmente esquecida. Era ótimo poeta, mas só fez dois livros: Hotel de Deus e Trem da Noite. Tinha militância política e apareceu no livro do Gabeira “O que é isso companheiro” com o codinome de Bom Secundarista. Ele era do Pedro II no tempo da guerrilha urbana. No início dos anos 70, Guilherme era professor de História e foi dele a ideia de usar os mimeógrafos das escolas onde dava aula para publicar poesia. Foi ele quem permitiu ao Charles e ao Chacal fazerem seus primeiros livros em mimeógrafos. A ideia foi dele, do Guilherme Mandaro. E quase ninguém sabe disso. Já outros, como você disse, foram beatificados: Leminsky, até mesmo o Cacaso; e a Ana Cristina é a santa maior.

ML: Torquato…
L: Torquato, pois é, também conheci o Torquato. Foi numa filmagem em Super 8 do Ivan Cardoso, “Nosferatu no Brasil”. Torquato era o ator principal, o Nosferatu. Tinha uma cena antológica: Torquato (Nosferatu) de sunga e capa negra à sombra de um coqueiro, com os caninos pontiagudos à mostra, tomava coco gelado no canudinho enquanto fiscalizava os pescoços femininos na areia da praia.

ML: Em 2007 você publicou três livros – Colar de Coral, Linha de Fogo e Livro do Príncipe. Excesso de inspiração?
L: Nada disso. Excesso de preguiça para publicar. O Livro do Príncipe é antiquíssimo, foi escrito em 1975 no apê de Santa Teresa, tempo em que estudava Letras na PUC. Ficou na gaveta mais de 30 anos. O Colar de Coral é meu livro de poesias inéditas abrangendo um período de tempo que vai de 1982 a 2002. Eu não fazia um livro de poesias inéditas desde 1987, quando lancei o Tupis, Rubis e Abacaxis.

ML: Bem modernista o título, né?
L: Na verdade é um verso do Mário de Andrade, num poema em que exaltava as riquezas e maravilhas do Brasil: “Abacate, cambucá e tangerina/Tupis, rubis e abacaxis!” Algo assim, não lembro bem.

ML: Faltou falar de um livro…
L: Ah, sim… O Linha de Fogo é um livro pequenino, no formato de uma caderneta, que por isso cabe no bolso de uma calça jeans ou na bolsa das mulheres. São 150 poemas curtinhos ou poemetos – que hoje chamam poema-minuto – 50% dos quais inéditos. É outra característica da poesia dos anos 70 inspirada no Modernismo. Drummond, Oswald de Andrade, Murilo Mendes e até Bandeira – todos faziam o chamado poema-minuto de quando em vez. Nossa geração seguiu essa tradição.

ML: Você não disse como terminou a Coleção Vida de Artista… Quais os livros publicados?
L: A “Vida de Artista” começou a ficar famosa em 1975. Pessoas desconhecidas nos mandavam livros de todo o Brasil para que as publicássemos. Tivemos de fazer uma triagem, uma seleção. Acredito que a ideia inicial do Cacaso era compor um conselho editorial comigo, Ana Cristina, João Carlos Pádua, Charles e Chacal – a turma que passara a temporada na fazenda. Mas, Charles e Chacal logo abandonaram o barco e foram para a Nuvem Cigana. João Carlos e Ana Cristina tiraram o corpo fora, como era de praxe, não queriam se envolver. Sobramos então eu e o Cacaso para tocar a “Vida de Artista”. Publicamos um poeta de Brasília, Eudoro Augusto, que não conhecíamos, mas que nos enviou um bom livro, A Vida Alheia. Publicamos também Carlos Felipe Saldanha, também conhecido como Zuca Sardana, um diplomata amigo do Chico Alvim que fazia livros em mimeógrafos desde os anos 1960, muito antes da nossa geração ter essa ideia. O livro dele chamava-se Aqueles Papéis. Cacaso publicou o Beijo na Boca, seu livro de poemas líricos, com capa da minha irmã Massoca. Acredito que, finalmente, depois de toda essa paquera, ele tenha conseguido namorar ela.
Em 1976, o projeto do Cacaso para a “Vida de Artista” começou a caducar. A antologia da Heloísa Buarque fizera um enorme sucesso, nossa poesia se espalhara pelo Brasil. Já havia editoras interessadas em publicar os “marginais”. A Vida de Artista foi se esvaziando naturalmente. Os namoros acabaram, outros começaram, as pessoas se distanciaram. Como dizia Murilo Mendes: “a vida separa muito mais do que a morte”. Ainda fizemos dois livros que podem ser considerados da coleção “Vida de Artista”: o meu Papéis de Viagem (1976) e o Na Corda Bamba (1977) do Cacaso. O carimbo da “Vida de Artista” – todos os livros eram carimbados manualmente na capa – ainda está lá em casa, guardado com carinho.

ML: E a poesia contemporânea, você tem acompanhado?
L: Até tenho, na medida do possível. Acho que a poesia contemporânea está muito tribalizada. Cada tribo tem sua poesia. Como no tempo dos índios, algumas tribos guerreiam entre si. Outras, sentindo-se superiores às demais, ignoram-nas. Essas últimas cultivam a fantasia de que só eles conhecem e produzem a verdadeira poesia. Parecem não se aperceber que a poesia é como o vento – sopra onde quer. Há inúmeras maneiras de se fazer boa poesia – basta ler poetas como Fernando Pessoa, Maiakovski, Baudelaire, e ver como são maravilhosos, ainda que suas poesias sejam construídas de modo bastante distinto.

ML: Algum poeta lhe agradou ultimamente?
L: Sim, gostei muito do livro Rilke Shake da Angélica Freitas. É uma poesia bem-humorada, a começar pelo título. Está faltando um pouco de humor na poesia: tá todo mundo muito sério… Também gostei dos poemas daquele menino que morreu, Leonardo Martinelli; entrei no site dele e ele era um bom poeta. Fiquei com pena, um poeta tão jovem e tão talentoso…

ML: Você lançou um livro de prosa em 2009?
L: Lancei Novelas de Guerra. Livros de contos e novelas. Sou um contista bissexto, mas fazia 16 anos que não publicava nada desde Ócio do Oficio de 1993. Já estava na hora de publicar outro. Estou até espantado com a boa repercussão do livro, tenho recebido inúmeros e-mails com elogios, algo que não ocorre quando publico poesia…
Novelas de Guerra era na verdade dois livros: um de novelas e outro de contos. Pensei a principio em editá-los separadamente, mas a Heloisa Buarque de Holanda, que é a minha editora, me convenceu a uni-los num só volume. Três contos são de 1973 [eu tinha 21 anos] e não entraram no Ócio do Oficio nem me lembro mais por quê. Mas, a maioria é recente, do século XXI, ainda que haja dois ou três dos anos 1990. Apenas um deles, “Separação”, não é inédito, pois já havia sido publicado numa coletânea de contos editada pela Francisco Alves. A maioria das histórias é de aventuras em vários lugares do mundo – minhas viagens tiveram alguma influência nisto. São fáceis de ler e têm boa dose de humor, acho que é por isso que têm agradado tanto às pessoas.

ML: E os planos para 2010?
L: Estou terminando uma biografia do meu avô, o dono da fazenda onde fazíamos os livros de poesia, Severino Pereira da Silva. É um livro feito por encomenda da família. Mas, a história dele é tão incrível que pode até dar samba. A ideia seria lançá-lo em dezembro de 2010.

Masé Lemos é professora de Teoria da Literatura na UERJ. Em 2007, publicou Redor pela 7Letras. maselemos@me.com

 

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Tempo de leitura estimado: 32 minutos

A dialética do entusiasmo | de Paulo Roberto Pires

Duas almas moram
no teu peito humano,
nas entranhas tuas.
Evita o insano
esforço da escolha:
precisas das duas.
Pra ser um, amigo,
deves ter contigo
conflito incessante:
um lado elevado,
bonito, elegante;
o outro, enfezado
e sujo, aos molambos.
Precisas de ambos.
Bertolt Brecht, epílogo de Santa Joana dos Matadouros 2

Este ensaio pode ser melhor entendido como parte de minha pesquisa de doutorado, Vida literária no Brasil 2.0. Em explícito diálogo com Brito Broca, pretendo fazer na tese um retrato de época, partindo do pressuposto de que a internet tem papel central na reconstrução da vida literária brasileira na virada dos 1990 para os 2000.

Se, no momento imediatamente pós-ditadura, as artes plásticas, a música e o cinema reconstituíram com vigor suas respectivas “cenas”, na literatura a produção contemporânea só se delineia mais tarde. E é em torno de blogs e comunidades que escritores começam a aparecer, para a sociedade, a universidade, o mercado e até mesmo para eles próprios, como integrantes de um conjunto de publicações, iniciativas, eventos e até atitudes que já foi chamado “nova literatura”.

No texto que se segue, aproximo Machado de Assis e Walter Benjamin para tentar demonstrar, historicamente, como a sedução da tecnologia teve grande importância para eles. E, oswaldianamente, buscar em ambos “a contribuição milionária de todos os erros” – que ilumina o presente.

Prólogo

“Seventeen copies sold, of which eleven at trade price
to free circulating libraries beyond the seas.
Getting known”
S. Beckett, Krapp’s last tape

O jovem escritor atravessa a madrugada teclando. Entre um comentário no Twitter e uma passeada por sites, constrói sua narrativa. “Escritor”, aliás, é como ele se vê, como ele quer que o vejam. E assim o veem os leitores de seu blog, um blog literário porque assim ele o batizou e onde, naquela mesma madrugada, ele postou o que acabou de escrever. Sim, pois o ato contínuo de sua escrita não é a reescrita ou a ponderação, mas a publicação. Na mesma máquina, ele escreve e publica. E ainda entra em contato com as primeiras reações de seus leitores, que comentam seu texto. Alguns só veem defeitos. E o escritor, que assim se chama por conta própria, não o esqueçamos, descobre a crítica – não a ponderação ou o “diálogo entre homens inteligentes”, mas osnark 3 , o ataque selvagem e predador. Intenso e pouco meditado como o texto com que acaba de se expor ao mundo.

O jovem escritor, aliás, acabou de postar um diagnóstico da morte definitiva da literatura. Ou melhor, destacando a superioridade dos novos meios, da web, do computador e até do celular sobre os livros. Seus argumentos são temerários e não há uma frase em que ele, utopicamente, não defenda que a literatura se espalhe pelo mundo. É o fim do copyright, a liberdade radical de acesso à informação, a literatura para quem quer e precisa – literatura que, a princípio, assim se autodenomina.

Assim, o jovem escritor ganha um público. E, lançado na rede como as velhas mensagens em garrafas, seu pensamento selvagem cai nos olhos de um editor, destes que publicam livros de papel mas não tiram o olho da internet, das revistas literárias, das publicações independentes, enfim, de todos os lugares onde possa encontrar novos talentos e frescor. Afinal, pelo menos em tese, ele vive disso. E o jovem escritor, chamado por e-mail a uma conversa, acaba assinando um contrato, destes que preveem pagamentos de royalties, resultam em livros vendidos em livrarias e resenhados nos jornais – e, é claro, também nos sites e nos blogs.

Depois de algumas críticas positivas de gente importante, algumas entrevistas e até palestras sobre seu “processo criativo”, o jovem escritor ganha um prêmio. Agora não é só mais ele, os leitores de seu blog e seu editor: praticamente todo mundo se refere a ele como “escritor”. E ele mesmo acaba tomando um susto quando, ao viajar para uma feira literária, escreve na ficha do hotel “escritor” onde deveria preencher “advogado”, já que foi essa a faculdade que acabara de terminar a duras penas.

Em uma destas feiras literárias, o jovem escritor é perguntado sobre a importância da web em seu trabalho. “Nenhuma”, afirma, categórico. Sua vida não deve ter mais nada a ver com o mundo dos blogs. Aliás, no blog ele só posta notícias sobre seus próprios escritos, aos quais se refere como “seu trabalho”: críticas de jornais (as amargas, não), participações em feiras, cursos livres de escrita criativa, palestras etc. A máquina de escrever, que também já funcionava como máquina de se comunicar e publicar, virou máquina de promover. Afinal, quem vai levar a sério um escritor que não tem livros e só publica nas nuvens virtuais? Já viu alguém ganhar concurso literário só com blog e clouds? Fala sério.

***

A história do jovem escritor é uma colagem das trajetórias de diversos autores da recente literatura brasileira. Dramatiza a ambivalência dos novos meios e sua importância na reconstrução da vida literária dos últimos dez anos. É marcada pela precipitação, pelos juízos mal formados, pela incompreensão dos tempos mais lentos e tradicionalmente associados ao processo de construção de um livro e, a longo prazo, de um autor.
Melhor assim, pois, ainda que precário, seu começo de carreira é uma realidade imediatamente viável, tem receptividade, não é o poço de “incomunicabilidade” e tédio que marcou os escritores que eram jovens nos anos 1980 e na primeira metade dos 1990.

Pior assim, pois sua carreira começa quase sempre meio torta, precariamente meditada, inflada pela velocidade do reconhecimento e dos brilharecos literários, os mesmos que enchiam de ambição e vaidade os jovens escritores na virada do século XIX para o XX. É o beletrista 2.0, a versão digital do fanqueiro literário retratado por Machado numa de suas Aquarelas.

O mundo tecnológico da escrita e da publicação é hoje um mundo de superposições: coexistem nele lógicas completamente distintas e muitas vezes conflitantes. Pois se a literatura pode hoje chegar por diversos caminhos e de diversas formas, sua legitimação ainda se dá nos circuitos tradicionais: publicação em revistas literárias, reconhecimento entre os pares, publicação para o público mais amplo, reconhecimento da crítica, construção de um “nome”, premiações, trânsito acadêmico etc…

Se o jovem escritor, nosso dileto personagem, começa prescindindo disso tudo, dificilmente abrirá mão de, mesmo por um atalho, trilhar a estrada principal. E assim o é, diga-se de passagem, em todo o mundo. Então, o que mudou? O tal do atalho, apenas? Eu diria que muito mais. Pois este mundo tecnológico da escrita e da publicação é marcado por uma impetuosidade histórica, que moveu escritores e intelectuais seduzidos por novas mídias ou pelo novo apelo de mídias consagradas.

Assim é com nosso jovem escritor, como assim foi com Machado de Assis e Walter Benjamin, dois autores que dramatizaram de forma exemplar esta ambiguidade do entusiasmo, força que anima arquitetos e demolidores e que perde importância e acuidade se lida apenas pelo lado triunfalista da construção ou pelo desencanto desvitalizado das ruínas. É na tensão, pois, que se faz o argumento.

1. O erro de Machado

O jornal e o livro é, justificadamente, considerado um texto “menor” de Machado de Assis. Posto em perspectiva da obra que viria, o ensaio publicado no Correio Mercantil em janeiro de 1859 tem mais valor histórico do que literário. Dá testemunho de um escritor em formação, um jovem de 19 para 20 anos tateando caminhos mais orientado por certezas do que pela suspensão delas – o que, finalmente, seria a marca de sua obra sob diversos aspectos 4 .

A aposta de Machado traz o desassombro próprio da pouca idade, como o nosso jovem escritor-blogueiro: eivado por hipérboles e grandiloquência, Machado afirma a superioridade do jornal sobre o livro, do posicionamento imediato sobre o mais longamente meditado. Este “equívoco” é, no entanto, o que mais me interessa, pois expressa o fascínio de um jovem intelectual pela técnica de reprodução mais em voga em sua época.

Não foi por capricho ou acaso que Machado escolheu para epígrafe de O jornal e o livro uma citação de Eugène Pelletan (1813-1884). O pensador francês, escritor, polemista e republicano ardente, exerceu considerável influência no Brasil com um discurso altissonante que fazia do progresso um Deus no qual deveria espelhar-se o homem em busca de uma comunhão com seu tempo. Ao apontar sua influência sobre Machado, Jean-Michel Massa não esconde a fragilidade das ideias que o fascinavam, indigestamente misturadas com “a eloqüência de Hugo”:
Homem de vastas sínteses, Pelletan abarcava de um só relance o passado, o presente o futuro. Outros dirão sobre o valor de sua visão de mundo, mas seu sincretismo generoso de idéias, em que misturava tumultuosamente todos os domínios do conhecimento, seduzira então numerosos espíritos eminentes. Machado de Assis, sensível ainda a todas as correntes, encontrou nele uma fé ardente e talvez uma resposta a algumas das questões que a si mesmo colocava. 5

A descrição de Massa corresponde ao peculiar “método” de exposição de Machado neste texto. Originalmente publicado em duas partes, o artigo evolui num galope, às vezes atabalhoado, para mostrar como a humanidade vem, através dos séculos, “em busca de um meio de propagar e perpetuar a idéia”. Das inscrições em pedra ao primeiro livro, estes meios de reprodução técnica se sucedem vertiginosamente na narrativa do atilado polemista. Trata-se quase de um épico em que escrita, arquitetura e arte convergem como patrimônio comum da humanidade.

Para que se tenha uma idéia do quanto este percurso é pontuado por saltos e conclusões precipitadas, Machado considera a arquitetura o resultado de uma progressão da comunicação primeira, nascida para “transformar em preceito, em ordem, o que eram então partos grotescos da fantasia dos povos”. Aperfeiçoando-se, a arte de construir e dar sentido a uma comunidade encontrará no livro um sucedâneo como forma de transmissão das ideias e das representações dos povos.

“O edifício, manifestando uma idéia, não passava de uma coisa local, estreita”, escreve Machado, lembrando um mundo em que os referenciais eram bem definidos, estáticos e locais. “O vivo procurava-o para ler a idéia do morto; o livro, pelo contrário, vem trazer à raça existente o pensamento da raça aniquilada” . 6

Ocorre aí, argumenta ele, uma revolução sem precedentes. Já não é mais preciso ir ao monumento para dar conta da História, pois o livro é a forma portátil para a difusão do “pensamento da raça aniquilada”. Esta passagem é o início da democratização que Machado vê se materializar plenamente no impulso que toma a imprensa. Trata-se, no seu entender, de um processo de radical democratização do conhecimento, com consequências imediatamente políticas – que, no caso de Machado, é a celebração dos ideais republicanos 7 , diretamente importados da França :
O jornal apareceu, trazendo em si o gérmen de uma revolução. Essa revolução não é só literária, é também social, é econômica, porque é um movimento da humanidade abalando todas as suas eminências, a reação do espírito humano sobre as fórmulas existentes do mundo literário, do mundo econômico e do mundo social. 8

Há aí uma aguda consciência de que a técnica promove uma ampla redefinição de referenciais na cultura. E, mais ainda, a certeza de que esta revolução tem consequências políticas imediatas – Machado vê nas transformações a potência democratizante da república como força legítima de aniquilamento da monarquia.

Indo ainda mais além, O jornal e o livro aponta ainda para a redefinição do papel social do escritor. Até então ligada às alturas da criação artística, a criação literária entra no circuito da mercadoria e o escritor é instado por Machado a se alinhar à nova ordem, deixando de lado inclusive qualquer nostalgia das musas vaporosas:
O jornal, abalando o globo, fazendo uma revolução na ordem social, tem ainda a vantagem de dar uma posição ao homem de letras; porque ele diz ao talento: “Trabalha! vive pela idéia e cumpres a lei da criação!” Seria melhor a existência parasita dos tempos passados, em que a consciência sangrava quando o talento comprava uma refeição por um soneto?

Reconhecendo, lucidamente, o exagero de seus argumentos, Machado assume uma posição tática – “se procuro demonstrar a possibilidade do aniquilamento do livro diante do jornal, é porque o jornal é uma expressão, é um sintoma de democracia” – e termina com o ponto que, talvez, seja o mais radical do texto. Vale a transcrição do argumento que desafia frontalmente a distinção que faz a identidade do escritor em sua época:
O talento sobe à tribuna comum; a indústria eleva- se à altura de instituição; e o titão popular, sacudindo por toda a parte os princípios inveterados das fórmulas governativas, talha com a espada da razão o manto dos dogmas novos. É a luz de uma aurora fecunda que se derrama pelo horizonte. Preparar a humanidade para saudar o sol que vai nascer, — eis a obra das civilizações modernas. 9

Foi este mesmo Machado, ou melhor, um outro Machado que deste nasceu para se consagrar como o grande autor de seu tempo, que respondeu com eloquente silêncio à enquete que João do Rio empreendeu em O momento literário. Publicado em 1904 o livro reuniu entrevistas com escritores sobre a importância do jornalismo para a literatura e a influência daquele sobre esta. Depois de receber o autor de Cinematógrafo “com um acesso de gentilezas, que nele escondem sempre uma pequena perturbação” 10 , Machado calou-se. “O fogo, a confiança, o futuro, o progresso” do jovem polemista deram lugar ao “tédio à controvérsia” do Conselheiro Aires.

1.1. Machado reloaded

Machado olha a tradição do ponto de vista da novidade. Ainda que respeitoso, crê pouco que os grandes edifícios e monumentos sejam suficientes para transmitir o patrimônio da civilização. A cultura das catedrais, da pedra, só vive plenamente porque tornada portátil no livro e, de forma ainda mais leve e fluida, na imprensa, o que ele entende como o mais democrático dos meios.

Não é forçado relacionar esta linha de argumentação com os discursos que hoje vemos sobre as possibilidades de democratização do patrimônio cultural a partir dos novos meios de informação. E o que vacina tal paralelo do anacronismo puro e simples é uma lógica que entendo como a “dialética do entusiasmo” e que, a meu ver, está permanentemente relacionada aos embates e intercessões entre os bens culturais da tradição, qualquer tradição, e as inovações tecnológicas, sobretudo as novas tecnologias da informação.

Se nosso jovem escritor-blogueiro estivesse plenamente engajado em causas de seu tempo – e a ausência de uma ideologia de fundo é o que o distingue talvez mais decisivamente do jovem Machado, que apesar do fervor liberal quase religioso age de acordo com um conjunto de ideias – poderia defender tranquilamente que o livro e o jornal são praticamente letra morta diante do universo da web e, por exemplo, da polêmica digitalização global dos conteúdos impressos promovida pelo Google .11

Não se trata, diferentemente do que pensava Machado, embebido da ideologia do progresso, de uma sucessão de vitórias rumo ao aperfeiçoamento da humanidade. Mas, antes, de cortes profundos e descontinuidades que refazem o jogo de forças entre um conjunto de práticas e obras e tecnologias que as desorganizam e reorganizam constantemente.

A visada de Machado sobre a tecnologia de informação de seu tempo contempla, portanto, pelo menos três rupturas fundadoras da história da cultura tal como ela se configuraria a partir do século XIX: a portabilidade dos conteúdos (com o livro atuando como um primeiro difusor da cultura até então monumentalizada, tornando-a um patrimônio comum), a criação dos veículos de massa (e a consequente profissionalização e remuneração da escrita) e, num raciocínio abertamente controverso, a possibilidade de que o receptor torne-se emissor (“o talento sobe à tribuna comum”, escreve ele).

Se quisermos, boa parte da polêmica e da indefinição provocada pela multiplicação de vozes da web passa exatamente por este tripé – devidamente turbinado pelas reinvenções de parâmetros das décadas mais recentes. A leveza da tecnologia (na multiplicação de devices, do celular ao e-reader, passando pelos computadores cada vez mais portáteis) permite uma expansão ilimitada dos veículos de difusão (dos jornais aos blogs, Twitter e toda a chamada “mídia social”) e põe em curto-circuito o tradicional vetor dos meios de comunicação (pondo em questão as noções de autoria, de legitimação da escrita e, até mesmo, de literatura).

Está precariamente delimitado um território pantanoso que, pouco mais de 60 anos mais tarde, também será trilhado de forma errante por Walter Benjamin, a quem seguiremos agora como ele fez com o homem das multidões de Poe.

2. A aposta de Benjamin

Em 1928, podia-se ler o nome de Walter Benjamin na capa de dois livros singulares lançados na Alemanha: A origem do drama barroco alemão e Rua de mão única. O primeiro, rejeitado como prova de livre-docência pelo Departamento de Estética da Universidade de Frankfurt, é uma intricada meditação teórica que vai ao fundo da cultura alemã clássica usando bússolas jamais imaginadas para aqueles caminhos; o segundo, de gênero indefinível, usa a montagem de corte surrealista para dar conta do geral e do particular, do episódico e do filosófico, da complexidade de um mundo já coalhado de informação e movido por máquinas.

Benjamin é tão alheio a toda forma imediata, que nem mesmo pensa em se confrontar com ela. Ele nem registra a impressão de qualquer forma dessa imediaticidade, nem se abandona ao pensamento abstrato dominante. O seu material próprio é o que passou: pra ele, o conhecimento nasce das ruínas,
escreveu Siegfried Kracauer numa certeira resenha dos dois livros publicada em cima do lance, em julho daquele ano. Benjamin era um desconhecido e seus textos, ainda no dizer de Kracauer, “são conjuntamente a expressão de um tipo de pensamento estranho ao desta época e que, em sua origem, é semelhante aos escritos talmúdicos e aos tratados da Idade Média” .12

O jovem autor era desde então chegado a uma síntese inusitada. Processava com desenvoltura e originalidade o idealismo e o romantismo alemães, cinema, literatura de entretenimento, traduções de Proust para o alemão, marxismo e judaísmo. Amava Kafka e o camundongo Mickey, Brecht e romance policial. Mais do que um simples gosto pelo ecletismo, Benjamin via na superposição temporalidades e referências um retrato indireto e mediado – e por isso fiel – do tempo que vivia.

Para garantir a precária sobrevivência em meio a um casamento instável, filho para criar e amores impossíveis para a administrar, trabalhou compulsivamente como jornalista e, entre 1929 e 1932, produziu, escreveu e atuou como locutor em mais de 80 programas de rádio em Berlim e Frankfurt. Numa carta a Gerschom Scholem, datada de 26 de junho de 1932, Benjamin procura explicar sua situação:
As formas literárias de expressão que meu pensamento forjou para si mesmo ao longo da última década têm sido totalmente condicionadas pelas medidas preventivas e antídotos a que tenho que recorrer para conter a desintegração que ameaça constantemente meu pensamento como resultado de tais contingências. E ainda que muitos – ou um numero considerável – de meus trabalhos tenham sido vitórias em pequena escala, eles foram ofuscados por derrotas de grandes proporções. 13

Graças a estes fracassos exemplares, Benjamin lambuzou-se das precárias vivências de seu tempo. E, impregnado por elas, produziu algumas das mais contundentes reflexões sobre as relações entre cultura e técnica, principalmente, a meu ver, por combinar sua extraordinária inteligência e originalidade com uma critica feita de dentro, na qual idealismo e pragmatismo mantêm tesa a corda dos argumentos, o perde-ganha constitutivo de uma cultura tecnológica em que construções e ruínas, arquitetos e demolidores são mais vizinhos do que pode parecer em termos ideais.

Experiência e pobreza (1933), O autor como produtor (1934) e A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (três versões entre 1935-1939, a última delas póstuma), são os textos em que Benjamin expõe, tão didaticamente quanto possível em sua obra, o resultado destas reflexões 14. Michel Löwy refere-se a esta produção, não sem desconfiança, como “parêntese progressista” e “período experimental”. Preocupa-se em destacar que a influência soviética pode ter causado distorções no pensamento de Benjamin, sobretudo pelo tom programático de O autor como produtor, mas acerta ao calibrar a visão do filósofo: “o que ele (Benjamin) recusa apaixonada e obstinadamente é o mito mortalmente perigoso de que o desenvolvimento técnico trará por si mesmo uma melhora da condição social e da liberdade dos homens” .15

Nestes ensaios, bem como em fragmentos e textos dispersos relacionados a eles, Benjamin desenvolve alguns dos conceitos-chave de sua obra, que podem ser mapeados pelos seguintes pares dialéticos, sempre representativos de um perde-ganha impossível de ser rompido e que procuro resumir a seguir:

Civilização/Barbárie
Esta é uma das tensões fundamentais para compreender a obra de Benjamin. “Não há um documento de cultura que não, seja, ao mesmo tempo, um documento de barbárie”, afirma a sétima tese de Sobre o conceito de História, referindo-se ao mundo submetido à ideologia do progresso e à tirania da técnica. Mas este mundo é também o que possibilita uma “nova barbárie” da qual dão testemunho Brecht, Le Corbusier e Klee. Perde e ganha.

Experiência/Vivência
O mundo moderno destitui o homem de sua experiência, da tradição passada de geração em geração, entregando-o à vacuidade das vivências. Mas a vida pobre em experiência é, também, a tábula rasa para a eclosão do novo.

Autor/Produtor
Para ser transformador, subverter a ordem que o oprime em particular e ao homem em geral, o autor deve ter consciência plena dos meios de produção e trabalhar para assumir o seu controle em bases totalmente distintas da estrutura “reacionária” da lógica capitalista.

Público/Produtor
Ao formar um público, os meios de reprodução técnica criam uma massa amorfa e sem opinião, que simplesmente consome mensagens e bens. O autor que se assume como produtor vai incluir o público neste processo, eliminando a distância entre eles.

Aura/Reprodução
A aura é o acontecimento único da obra de arte, que se perde para sempre com a reprodução. Mas a reprodução engendra por sua vez uma nova magia (as condicionantes de magia e técnica são históricas, escreve ele em Pequena história da fotografia) e a fotografia, sobretudo em seu início, dá testemunho deste potencial aurático.

2.1. O progresso dos desconfiados

Se o jovem Machado de Assis via no republicanismo o horizonte de libertação do meio de comunicação privilegiado de seu tempo, o jornal, Walter Benjamin apostava no marxismo como o antídoto revolucionário para as estruturas de dominação que já enxergava no jornal, no rádio e, com espantosa lucidez, no cinema. E como o dado e insubmissão fundamental para a prática artística transformadora.

O marxismo está para O autor como produtor assim como o liberalismo para O jornal e o livro. São, cada qual a seu tempo e princípio, o horizonte político destes intelectuais. E, também, turvam os argumentos com acessos doutrinários e jargões que, na perspectiva histórica que temos hoje, podem ganhar uma escala mais justa. Machado e Benjamin acertam menos pela argumentação do que pela formulação dos problemas.

Em notas tomadas entre julho e outubro de 1934, numa temporada passada com Brecht na casa do dramaturgo em Svendborg, na Dinamarca, Benjamin assim sintetiza a tese central de O autor como produtor, que discutiu à exaustão com o amigo:
Em meu ensaio, desenvolvo a teoria de que um critério decisivo para a função revolucionária da literatura reside na medida em que os avanços técnicos levam a uma transformação das formas artísticas e, consequentemente, dos meios de produção intelectual.16

No jargão brechtiano a que recorre, Benjamin aponta, no geral, para a necessidade de uma “refuncionalização” do papel do escritor. E aqui o que menos interessa, a meu ver, é o inegável fantasma da doutrina soviética, sendo mais importante, hoje, lembrar que a “refuncionalização” é proposta por um intelectual que, como vimos, experimentou as principais formas de expressão e comunicação mobilizadas pelo capitalismo.

O texto constrói-se a partir de uma oposição do escritor rotineiro ao escritor progressista. O primeiro é escravo da diversão pura e simples e não reconhece a liberdade; o segundo é dominado pela “tendência”, a doutrina política, e pode confundi-la com a liberdade. O importante, observa Benjamin, é que “uma obra literária só pode ser correta do ponto de vista político quando for também correta do ponto de vista literário”. E este debate da “qualidade” não deve residir na oposição forma/conteúdo. Benjamin prefere situar a obra literária dentro das relações de produção de um época e não em relação a elas:
É vasto o horizonte a partir do qual temos que repensar a idéia de formas ou gêneros literários em função dos fatos técnicos de nossa situação atual, se quisermos alcançar as formas de expressão adequadas às energias literárias de nosso tempo. Nem sempre houve romances no passado, e eles não precisarão existir sempre.17

O texto dá conta de um “processo de fusão de formas literárias” diretamente relacionado com os avanços técnicos, a ponto de provocar a dissolução dos gêneros literários e, levando o raciocínio ao limite, à extinção de toda uma ideia de literatura. Um raciocínio que se ouve com nitidez neste início de século XXI nas palavras dos evangelistas de uma cultura da convergência 18 e, num nível menos analítico, nas discussões 19 sobre os novos formatos para os livros, desde o e-book até as experiências integrando texto, som e imagem nos vooks(vídeo+book).

No ponto crucial do texto, Benjamin aponta propriamente para a transformação do leitor em autor e do autor em produtor. Vale aqui a citação um pouco mais longa, em que, sem se identificar, cita um texto de sua autoria, O jornal , publicado no periódico Der Öffentliche Dienst, de Zurique, em março de 1934.

Com a assimilação indiscriminada dos fatos cresce também a assimilação indiscriminada de leitores, que se vêem instantaneamente elevados à categoria de colaboradores. Mas há um elemento dialético nesse fenômeno: o declínio da dimensão literária na imprensa burguesa revela-se a fórmula de sua renovação na imprensa soviética. Na medida em que essa dimensão ganha em extensão o que perde em profundidade, a distinção convencional entre autor e o público, que a imprensa burguesa preserva artificialmente, começa a desaparecer na imprensa soviética. Nela […] o leitor tem acesso à condição de autor […} O direito de exercer a profissão literária não mais se funda numa formação especializada, e sim numa formação politécnica”. 20

Ainda neste texto, Benjamin afirmava que “diante do fato de que a escrita ganha em fôlego o que perde em profundidade, a distinção convencional entre autor e público mantida pela imprensa […] está desaparecendo de uma forma socialmente desejável”. 21

Tal constatação é perfeitamente consonante com o raciocínio colaborativo que passou a caracterizar os meios de comunicação a partir do que o editor e guru da internet Tim O’Reilly passou a chamar, em 2005, de web 2.0., a redeparticipativa 22. Esta dimensão colaborativa desperta reações sempre apaixonadas, podendo ser balizadas pelo otimismo de um Pierre Lévy e seu conceito de “inteligência coletiva” (que afirma o poder democrático inerente ao modo de funcionamento da rede, minimizando em larga escala as implicações propriamente políticas) até o apocalipse de Andrew Keen no panfleto A cultura do amador (que prevê nada menos do que a derrocada do patrimônio cultural, do jornalismo às artes, a partir da possibilidade de acesso indiscriminado à produção de mensagens).

Permeia tal raciocínio um otimismo que não se encontra em outra parte da obra de Benjamin, sempre detalhista ao matizar argumentos e conclusões. Um otimismo propriamente revolucionário, que ganha o benefício da dúvida de ser nada mais do que uma posição tática, necessária para que se ganhe posições na discussão.

O que intriga e, finalmente, leva à reflexão que dá título a este texto é a constante, no Brasil de meados do século XIX e na Alemanha das primeiras décadas do XX, de um fascínio dos intelectuais pela tecnologia. Fascínio que, diga-se já, é consonante a momentos de importantes rupturas. Mas que apontam, desde sempre, para uma avaliação crítica ambígua.

3. A dialética do entusiasmo

Um dos princípios básicos das tecnologias da informação contemporâneas é a sua “useabilidade” ou seu estatuto “amigável”, ou seja, a possibilidade de uso imediato, sem a necessidade de conhecimento específico aprofundado. Trata-se, como se pode supor, de um considerável catalisador para que se passe da ideia à ação, do planejamento ao ato. Não é difícil prever, portanto, o impacto deste tipo de mecanismo sobre aqueles que têm na escrita seu horizonte profissional ou de criação estética.

Se, de alguma forma, realizou-se a portabilidade democratizante de Machado e a refuncionalização entre autores e produtores almejada por Benjamin, esta não foi certamente a concretização dos ideários republicano e socialista. Com seu potencial de demolição/reconstrução, a técnica não acomoda pacificamente a reflexão e, muitas vezes, a exclui do processo. Mas, ao convidar à criação, estabelece uma tensão permanente que prefiro chamar “dialética do entusiasmo”.

A idéia do bem acompanhado do afeto se chama entusiasmo”, afirma Kant sobre um conceito que nasce embebido em ambiguidade. Alia o imponderável (“o entusiasmo não é de forma alguma digno da satisfação da razão”) a um valor moral prezado pela humanidade: “este estado da alma parece sublime a tal ponto que, geralmente, pretende-se ter certeza de que sem ele nada de importante possa se obtido” 23 . Ainda segundo o filósofo, o entusiasmo seria um afeto “do tipo corajoso”, isto é, “que nos faz tomar consciência de nossas forças nos permitindo vencer toda resistência”.

Pois é precisamente este gênero de afeto que viceja quando o homem tecnológico se vê privado de suas referências constitutivas tendo à mão a possibilidade de, a partir desta “terra arrasada”, erguer outro tipo de parâmetro. Machado comemora, com o aumento de importância da imprensa, “a reação do espírito humano sobre as fórmulas existentes do mundo literário, do mundo econômico e do mundo social”. O “novo bárbaro” de Benjamin comemora o empobrecimento da experiência, “que o impele para ir para a frente, a começar de novo, a contentar-se com pouco, a construir com pouco, sem olhar nem para a direita nem para a esquerda” 24 .

Assim se anima a escrita concebida nos meios de informação e/ou veiculada através deles. A aceleração das etapas que vão da escrita à publicação e distribuição é produto direto deste “afeto corajoso”: o entusiasmo de nosso jovem escritor ignora a temporalidade da criação literária, suas relações com o passado e a possibilidade de traçar caminhos futuros. Ele “simplesmente escreve” (aspas necessárias e fundamentais).

A pluralidade de vozes que advém daí é também, e de um certo ponto de vista, cacofonia. Desigualdade brutal no resultado dos textos, pretensão e mesmo ignorância são alguns dos diagnósticos para a vida literária em circulação acelerada. Mas, como lembra Kant, há em torno destes movimentos impetuosos um halo de grandeza, a certeza subliminar de que o entusiasmo é a marca fundamental de todo empreendimento que se pretenda importante. A certeza, em suma, de que um de suas principais fraquezas é, finalmente, sua força fundamental.

Quando se perde de vista um dos pontos de vista da questão, a discussão do que chamo “vida literária 2.0” perde completamente o sentido. Se assumirmos que o entusiasmo é o pai absoluto e suficiente de toda criação, qualquer análise da literatura contemporânea se transforma em nada mais do que a crônica, triunfalista, de um momento de puro e improvável renascimento da escrita literária no Brasil dos anos 2000. Se, ao contrário, assumirmos que o entusiasmo “não é de forma alguma digno da satisfação da razão” e que, portanto, propicia o mero espontaneísmo, transformamos nossa narrativa crítica num check-list viciado do cânone e da vida literária. Um filme reprisado no qual sabemos muito bem o que acontece no fim: morremos todos, de inanição, pela falta de apetite em enfrentar a produção contemporânea em suas oscilações.

 

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_____. Redenção e utopia. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

_____.Romantismo e messianismo. São Paulo: Perspectiva, 2008.

MASSA, Jean-Michel. A juventude de Machado de Assis. São Paulo: UNESP, 2009.

PRADO, Antonio Arnoni. “Brito Broca ou injustiças de um revoltado”, in: Trincheira, palco e letras. São Paulo: Cosac Naify, 2004.

RICHTER, G., Thought-images – Frankfurt School Writer’s reflections from damadged life, Stanford University Press, 2007.

RIO, João do. O momento literário. Consultado em
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=2144


* Paulo Roberto Pires é aluno do Curso de Doutorado em Ciência da Literatura (Programa de Literatura Comparada) da Faculdade de Letras da UFRJ.

 

1 Trabalho apresentado ao professor André Bueno no curso Historiografia e Crítica Literária, Faculdade de Letras da UFRJ no 2º semestre de 2009.

2Tradução de Leandro Konder.

3 Snark é o termo que David Denby, articulista da New Yorker, usa para designar a crítica virulenta, pessoal e precariamente fundamentada que marca o mundo dos blogs e dos comentários na internet. Sem significado preciso, “snark” faz referência a um dos seres non-sense criados por Lewis Carrol.

4 Aqui é importante lembrar o estudo de Kátia Muricy, A razão cética – Machado de Assis e as questões de seu tempo.

5 MASSA, p.190.

6 ASSIS, p.1008.

7 Nas palavras do próprio escritor: “O direito da força, o direito da autoridade bastarda consubstanciada nas individualidades dinásticas vai cair. Os reis já não têm púrpura, envolvem-se nas constituições. As constituições são os tratados de paz celebrados entre a potência popular e a potência monárquica”.

8 Idem, p. 1009.

9 Idem, p.1012.

10 RIO, p. 98.

11 Para uma discussão completa ver o texto de Robert Darnton, “O Google o futuro dos livros” in: Serrote no 1, p.23.

12 KRACAUER, p. 279.

13 BENJAMIN, 1999, p. 844.

14 Aqui os três textos serão citados na tradução de Sergio Paulo Rouanet em Obras Escolhidas – Volume 1.

15 LÖWY, Redenção e utopia, p.97.

16 BENJAMIN, 1999 p.783.

17 Idem, 1985, p. 123.

18 JENKINS, Henry. Convergence culture: where old and new media collide.

19 Neste caso é exemplar o Revisiting a publishing Manifesto – What does the future look like for publishers? (disponível em http://thedigitalist.net/?p=714) apresentado pela editora Sarah Lloyd na conferência Tools of Change in Publishing realizada em Frankfurt em outubro de 2009.

20 Idem, p. 125

21 BENJAMIN, 1999, p. 741.

22 O artigo What Is Web 2.0 – Design patterns and business models for the next generation of software está disponível emhttp://oreilly.com/web2/archive/what-is-web-20.html

23 KANT, p. 216.

24 BENJAMIN, 1985, p. 116.

 

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Ponto de Vista: Escrever com as frases que ficam no ar | de Liv Sovik

“My words echo
Thus, in your mind”
T.S. Eliot. “Burnt Norton” The Four Quartets (1944)

Estas palavras, traduzidas por Ivan Junqueira como “Assim ecoam minhas palavras / em tua lembrança” (infelizmente debilitando o acento na palavra Thus e a pausa que vem depois), evocam em mim a ação de uma bola de bilhar que é uma frase ecoando na minha cabeça. Tem frases que permanecem até ficarem estranhas e outras que são tão estranhas que ficam. Foi o caso de “Aqui ninguém é branco”, que uma pós-graduanda me deu como resposta à pergunta, “Mas” (o “mas” se devia à recorrente discussão da cultura e herança afrobaiana) “o que significa ser branco na Bahia?” Aquela frase comunicava pela incomunicação. Sabia que havia brancos na Bahia porque não estava sozinha na minha branquitude, mas de alguma forma a frase soou tão verdadeira, sincera e natural, que não houve resposta possível na hora. Tive que pensar enquanto as palavras ecoavam na minha lembrança.

Ecoaram tanto que viraram o título de meu livro, que já tive dificuldade em explicar: às vezes dizia que era paradoxal, uma negação no título do próprio assunto de uma obra sobre a branquitude; em outras dizia que era uma ironia ou uma expressão essencial do discurso identitário nacional. Certa vez, expliquei que o tom era mais para “Você é gordo!” do que “Todos vão à praia”, pois sentia que usar a frase como título tinha algo de confronto. Quando Silviano Santiago escreveu no prefácio que o título foi “inspirado na certa em leitura de Ionesco”, foi um alívio. Quando ele apontou para o absurdo da frase, tudo ficou claro e não estava mais sozinha, ninguém podia dizer que só eu era branca.

Minha cabeça deve funcionar assim, como câmara de eco, pois os versos de Eliot volta e meia estão presentes quando preciso refletir sobre como eu penso. Fragmentos me chamam a atenção, refrãos como “A carne mais barata / É a carne negra” ou “Não vivendo pra dançar / Mas dançando pra viver”. Por mais que a frase de Eliot chegue para mim como resumo de minha pequena ópera em forma de colagem, me imagino pensando e não escrevendo. Para mim é uma grande e agradável surpresa que o meu jeito de escrever dê prazer, pois é tão difícil me imaginar escritora que demorei anos para poder pronunciar, sequer para mim, as palavras “meu livro”, parecia tudo em maiúsculas e eu, me levando a sério demais. A hesitação, fantasiada de cuidado, me aflige.

+++

O vai e vem entre escrever e não escrever vem de longe. Quando cursava a oitava série e ela tinha 40 anos, minha mãe começou a fazer seu mestrado em Letras. Conversava comigo sobre as coisas que lia e aprendia, na cozinha depois da escola. No mesmo ano, como dever de casa, descrevi uma profissão que me atraísse, em texto que redescobri no meio às coisas guardadas na casa de meus pais 30 anos mais tarde. Estava interessada em ser professora universitária, disse, mas a desvantagem seria ter a obrigação de escrever, publish or perish. Minha resistência não aguentou a passagem dos anos, mas o que cedeu primeiro foram as ressalvas à escrita. Só assumi a carreira universitária um pouco antes da descoberta do texto sobre “o que quero ser quando crescer”.

Escrever adquiriu diversos sentidos através do tempo. Quando tinha 26 anos, era patinar na superfície. A superfície tem má fama, mas neste ano de jogos olímpicos de inverno, lembra-se como patinar é tecer passo a passo, com graça quase involuntária, um caminho que encontre um chão onde nem sempre há terra firme. Significava não cair – de bunda ou, pior, no buraco da tristeza – e isso era minha preocupação principal quando tinha essa idade. Escrever parecia uma forma de criar meu próprio chão.

Não caí no buraco, mas tampouco deslanchei a escrever. Quando a popularização do computador permitiu essa façanha contemporânea, titubear e corrigir quase na mesma hora, virei uma escritora de cartas relativamente longas, cujas qualidades dependiam da relação com os amigos e parentes que as recebiam: só podia escrever coisas engraçadas ou tocantes para aquela pessoa. O destinatário de algumas dessas cartas me respondeu (certamente querendo dar ênfase à parte “poesia”), que eu escrevia “poetry without yet its wings”. Escrevo poesia sem asas, que não decola do chão. Por outro lado, quem sabe patinei bem, fiz curvas bem fechadas, trançando as pernas com corpo na diagonal para não desperdiçar energia, dei talvez até uma pirueta, mas sem adornos, como ensinaram meus professores em Yale, que exigiam humildade diante da tarefa de dizer.

Hoje, escrever a primeira versão de trabalhos acadêmicos muitas vezes causa algo que é quase dor, pela angústia do não dito, o medo de não encontrar a forma de abrir uma picada na mata fechada de um assunto, o tédio da vasta escolha de palavras e noções. Gosto mais é de revisar, revisar, reinventar, embora tenha que conter, quando estou me sentindo criativa, minha tendência a rir sozinha, às private jokes. Em gostar de frases prontas, estou muito bem acompanhada. Eliot demonstrou ter ecos de palavras na sua lembrança e citava desde a eremita medieval Julian de Norwich (“Tudo estará bem / toda sorte de coisa estará bem”, em “Little Gidding”) ao barman do pub chamando o público para sair (“Hurry up please it’s time”, em The Waste Land. Mas talvez a frase que mais frequentemente resvala na minha mente nem seja de Eliot, mas dos irmãos Gershwin, cantada por Aretha Franklin, claríssima na sua percepção da contingência da vida: “It ain’t necessarily so” – Não é necessariamente certo.

* Liv Sovik é professora da Escola de Comunicação da UFRJ e autora de Aqui ninguém é branco, recém lançado pela Aeroplano. Escreveu este texto sobre os “bastidores” do livro para a revista Pernambuco (Nº 50, abril 2010, p.3.http://www.suplementopernambuco.com.br/), onde saiu sob o título “Ninguém podia dizer que só eu era branca”.<

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Surgimento e difusão da marca Daspu: o nome como palavra de ordem | de Washington Dias Lessa e Jeanine Geammal

Washington Dias Lessa, ESDI/UERJ
Jeanine Geammal, UFC

Este texto busca investigar a marca de vestuário feminino Daspu, criada no Rio de Janeiro em 2005. O tema se vincula ao marketing, ao branding e ao design – área em que foi realizada esta pesquisa –, podendo ser desenvolvido segundo os referenciais analíticos respectivos. Dadas, porém, as particularidades do surgimento e difusão da marca, optou-se por trabalhar com o conceito palavra de ordem, proposto por Deleuze e Guattari, buscando trazer uma inteligibilidade diferente à produção de sentido e aos relacionamentos com a mídia e com o mercado que caracterizaram o processo Daspu.

1. O surgimento da marca Daspu

A Daspu é uma marca do setor de moda e vestuários que pertence à ONG Davida. Esta ONG foi criada no Rio de Janeiro em 1992 por Gabriela Leite, e está voltada para questões ligadas à cidadania das prostitutas e para iniciativas visando a organização da categoria. Integra a Rede Brasileira de Prostitutas que tem a missão de articular politicamente o movimento de defesa e promoção dos direitos dessas profissionais. Segundo a Rede, “a prostituição é uma profissão, desde que exercida por maiores de 18 anos”1. A Davida manifesta seu repúdio à vitimização das prostitutas, e anuncia o combate à discriminação, ao preconceito e ao estigma. E, sobretudo, não preconiza o abandono da prostituição. Ao contrário, defende o direito das prostitutas prestarem serviços sexuais, afirmando que devem assumir sua profissão em vez de envergonharem-se dela.

Desfile de 16 de dez., na Rua Imperatriz Leopoldina. Matéria publicada na capa do jornal O Globo, em 17 nov. 2005. Foto de André Teixeira.

Em 2005 é lançada pela Davida a marca de uma confecção, a Daspu, que tornou-se conhecida nacionalmente a partir de uma polêmica com a Daslu, loja multimarcas de luxo sediada em São Paulo.

O nome Daspu havia sido criado como uma brincadeira em 15 de julho de 2005, durante a comemoração, na sede da Davida, dos 13 anos de fundação da ONG. Dois dias antes, Eliana Tranchesi, uma das sócias da Daslu, fora presa pela Polícia Federal acusada de sonegação de impostos, e o acontecimento havia sido amplamente coberto pela imprensa. Foi com base nessa referência que, em meio a uma conversa sobre a ideia da ONG montar uma confecção visando arrecadar fundos para o movimento, Sylvio de Oliveira sugere, com bom humor, o nome Daspu (Lenz, 2008: 34). Mas nada foi feito para implementar a ideia.

Primeiro desfile, 16 dez. 2005, na Rua Imperatriz Leopoldina, Rio de Janeiro. Fotos de Marcos Silva

Em 20 de novembro de 2005 o nome aparece publicamente pela primeira vez, mencionado em nota na coluna de Elio Gaspari, do jornal O Globo (Gaspari, 2005: 16). No entanto nem Gabriela Leite nem Flavio Lenz, assessor de imprensa da ONG, tiveram qualquer participação na publicação desta primeira notícia sobre a marca. Segundo hipótese de Lenz, a informação teria chegado ao jornalista por intermédio de alguém que, em algum bar nas imediações da sede ONG, na região da praça Tiradentes, centro do Rio de Janeiro, teria ouvido uma conversa de seus integrantes, sempre em tom de brincadeira, sobre o assunto (Lenz, 2008: 45-46).

Logo depois desse aparecimento na mídia, a Daslu ameaça processar a Davida alegando tentativa de denegrir sua imagem, o que dá a Flavio Lenz e Gabriela Leite a oportunidade de tornar a Daspu assunto de manchete 2. E as matérias jornalísticas sobre o confronto Daslu X Daspu, evidenciam uma adesão da imprensa à iniciativa das prostitutas. Um pouco depois a Daslu retira o pedido de processo.

Após o lançamento involuntário do nome, o sucesso repentino naturalmente impõe a criação efetiva da confecção. A opção inicial foi a de divulgar a causa política da Davida através de camisetas com frases provocativas. Com a repercussão e o apoio recebido da mídia e do público a partir da polêmica com a Daslu, surge a ideia de uma estruturação empresarial mais complexa, prevendo coleções, desfiles, venda de outros tipos de roupas etc. E esta ideia era mais afinada com o discurso da Davida. Uma simples confecção estaria associada a mulheres que necessitam de ganho econômico e produzem e vendem roupas para atingir esse objetivo. Uma empresa de moda, por outro lado, deve envolver atitude e ditar comportamento, conforme categorias correntes no meio da moda. Assim como envolve expectativas de reforço financeiro, não apenas a partir de vendas estritas, mas compreende essas vendas também como resultado do desempenho da marca como imagem.

Capa do caderno Ela do jornal O Globo, publicada em 14 jan. 2006.

Durante sua trajetória visando consolidar-se no mercado da moda, a Daspu, desde seu lançamento em 2005 até 2009, apresentou sete coleções. Em ordem cronológica e associadas a seus criadores são elas: Batalha, criada pelos próprios integrantes da Davida; Daspu na Pista BR-69, concebida pela estilista Rafaela Monteiro; Puta Arte, com criação do designer Sylvio de Oliveira; Copa Sacana, por Franklin Melo; As cruzadas: a batalha entre o botão e a espada, criada pelo grupo Profissionais do Ramo – Movimento Puta Life Style, formado por ex-alunos e alunos da Unversidade FUMEC Fundação Mineira de Educação e Cultura (Alzira Calhau, Ana Luisa Santos, Bruno Oliveira, Luisa Luz, Maíra Sette, Marília Tavares, Natália Assis, Rafael Boneco, Rangel Malta); e Da farofa ao caviar, concebida pelo mesmo grupo da coleção anterior.

Por sua facilidade de produção e sua adequação às necessidades de propagação do discurso da Davida, as camisetas, caracterizadas com o mesmo humor presente na criação do nome Daspu, tornam-se um produto emblemático. Trazem mensagens irônicas e bem-humoradas sobre cidadania, liberdade, sexualidade e prevenção de DST e AIDS. “Somos más, podemos ser piores”, “PU Davida”, “Moda pra mudar” e “Antes do show, afine o instrumento” – são algumas dessas frases que aparecem adornadas por imagens de preservativos, de mulheres ou casais. Concebidas dessa forma por Sylvio de Oliveira, são transformadas nos verdadeiros trajes de batalha da ONG e recebem o aval da mídia especializada, confirmado por sua aparição na seção “Fetiche” do jornal O Globo sobre a legenda: “Daspu. Aí está a camiseta mais Cult do momento” (O Globo, 2006: 1).

A camiseta Beijo aparece na edição de 14 jan. 2006 do jornal O Globo, na seção Fetiche, dentro do caderno Ela Fashion, como a mais cult do momento. Foto de Luciana Whitaker.

Apesar do amadorismo apresentado pela Davida na fase inicial do desenvolvimento de produtos, consolida-se o protagonismo dos responsáveis pela administração da marca. No que tange à formação e projeção de sua imagem, a inexperiência com o negócio moda e, por outro lado, a experiência no trato com a imprensa3 , acrescida da premência da causa política, conduziram o processo de projeção pública desse empreendimento nascente para o uso do espetacular, do que dá notícia. Mas, complementarmente, também é buscada uma estruturação mais profissional, assim como foram buscados subsídios quanto à administração e gerenciamento.

2. Em busca da especificidade Daspu: uma opção de método

A área de criação e gestão de marcas integra de modo tendencialmente diferenciado os campos do design, do branding e do marketing, e atualiza-se segundo as várias possibilidades de agenciamentos entre essas especializações, e delas com as propostas de criação de marcas que ganham existência concreta no mercado.

O conhecimento elaborado/sistematizado pela área constitui um conjunto heterogêneo que abarca de análises e sistematizações, validadas pela experiência profissional em projeto e consultoria, a elaborações mais especificamente teóricas, tanto abordando a estruturação do mercado quanto metodologias para o desenvolvimento de projetos.

Uma análise que considerasse o caso Daspu estritamente segundo essas referências, identificando/julgando protocolos e tipos de intervenções consagradas pelos padrões de excelência técnico-profissional, tenderia a não dar conta da riqueza do processo, já que o surgimento e difusão da marca Daspu apresenta algumas especificidades particulares.

Temos, inicialmente, o modo como surge a Daspu. Uma marca existe associada a produtos ou serviços, mas ganha consistência com base não apenas na qualidade desses produtos ou serviços. Na medida em que existe um espaço público de comunicação, dado tanto pela existência de diferentes configurações midiáticas (mídia impressa, a web, espaço urbano etc) quanto pelas atividades que as articulam (jornalismo, propaganda, marketing, design etc), a projeção da marca neste espaço de aparecimento possui uma autonomia em relação à sua associação direta ao produto ou serviço respectivo.

Segundo desfile da marca, na Praça Tiradentes, no Rio de janeiro, em 13 jan. 2006. Foto de Paulo Jabur

O que sobressai no surgimento da Daspu é a forma como subverte a ordem natural sugerida pelos ensinamentos do branding para a criação de uma marca de sucesso: “posicionamento, nome e identidade gráfica” (Martins, 2006, p.80-81). Seu aparecimento na mídia antecede não só a estruturação do negócio, que no momento não passava de uma conjectura, assim como qualquer estudo de posicionamento mercadológico e registro da marca. Graças à ação da imprensa ela se projeta como imagem antes de existir o empreendimento que ela deveria representar, criando condições propícias para a sua concretização.

Uma outra característica diz respeito à associação da Daspu ao universo dos movimentos sociais. Como a ideia surge de um grupo de prostitutas que trabalha pelos direitos civis de sua profissão, a marca vincula-se às searas política, social, cultural etc. E esta dimensão vai caracterizar fortemente o seu DNA.

Um outro aspecto, dado pelo contexto em que a marca é proposta, diz respeito a eventuais fragilidades dos encaminhamentos propriamente empresariais. Mas se de acordo com parâmetros técnico-profissionais estritos esta constatação até pode levar a uma avaliação negativa, por outro lado não pode ser ignorado o vigoroso senso de oportunidade da Davida visando o crescimento da Daspu: ele se manifesta tanto na busca do fortalecimento da imagem da marca que começa a se construir, quanto nas providências visando a estruturação do negócio que deve embasar a marca em termos produtivos.


Daspu na GNT

Tendo em vista a intenção de investigar o processo de surgimento e difusão da marca Daspu, deparamo-nos, assim, com as limitações que um referencial analítico técnico-profissional, da área de criação e gestão de marcas, poderia apresentar para a recuperação da especificidade Daspu como feixe de experiências sociais. Sem invalidar ou desqualificar as análises realizadas segundo este referencial, optou-se por uma “conformidade analítica”, relativizando a competência técnico-profissional como parâmetro de avaliação e buscando destacar a riqueza da experiência social presente no processo. Para isso recorreu-se ao conceito palavra de ordem, proposto por Deleuze e Guattari em Mil Platôs, na seção Postulados da Lingüística, conceito que se refere à presença de uma pragmática na estrutura mesma da língua, possibilitando a transformação da realidade pelo discurso. Pesou nessa decisão: o fato de que o processo Daspu se construiu com base no caráter nominativo da marca; a importância assumida pelos slogans veiculados nas camisetas; e o fato da projeção pública da marca ter se dado pela ação da imprensa, na qual se destaca o discurso verbal.

 

Página do jornal Extra com matéria sobre a Daspu, publicada em 14 jan. 2006.

 

Foi tomado como corpus da investigação o clipping referente à Daspu arquivado pela Davida. Sucedem-se nesse espaço configurado pela mídia: versões e fatos fortuitos ou planejados, personas e personagens diretos e indiretos – tais como jornalistas, a direção da Davida, profissionais de moda e de imagem pública etc –, iniciativas da Davida perseguindo profissionalismo e visando adquirir estrutura e ritmo minimamente empresariais etc. A partir da compreensão da enunciação Daspu como palavra de ordem, buscou-se a caracterização dos agentes, das circunstâncias da enunciação e dos desdobramentos do processo de nascimento e crescimento da marca.

3. A palavra de ordem, conceituada por Deleuze e Guattari, e a enunciação Daspu

Para chegar ao conceito palavra de ordem, Deleuze e Guattari partem da crítica ao caráter formal e fechado da língua, tal como esta categoria é proposta por Saussure, e trabalham: a) com o conceito ato de fala ou ato ilocutório proposto por J. L. Austin e desenvolvido por John Searle no âmbito da filosofia da linguagem ordinária; c) com a compreensão, segundo a filosofia estoica, de que num campo social existem os corpos e as modificações corpóreas 4 , e por outro lado os atos incorpóreos levando a transformações incorpóreas que são atribuídas aos corpos – caracterizando-se neste processo “uma independência entre as ações e paixões dos corpos, e os atos incorpóreos” (Deleuze, Guattari, 1995: 26). Vejamos como esses conceitos se constroem.

A conceituação de ato ilocutório pressupõe que tanto a função representativa quanto a função comunicativa da linguagem são apenas condições para a realização de sua pragmática, pois quando faço uma enunciação eu atuo sobre a realidade. Dizer “prometo” não é descrever uma promessa ou apenas comunicá-la, mas fazer uma promessa; assim como ao dizer “eu juro” eu estou jurando, ou estou ordenando quando emprego o imperativo. Mas as atuações sobre a realidade não se resumiriam a esses atos performativos explícitos. Por exemplo, em última instância todas as enunciações envolvem um modo ou um tom de voz, e ao enunciar em tom peremptório que “a terra é redonda”, um sujeito pode estar se posicionando e influindo pragmaticamente no curso de algum acontecimento.

O ato ilocutório impõe uma compreensão da linguagem que se diferencia do modelo linguístico saussureano, pois ultrapassa a compreensão do enunciado com base em sua dimensão significante (que define a esfera da significância/informação, remetendo ao caráter representativo da linguagem), assim como a compreensão da enunciação com base na sua relação com um sujeito (que define a esfera da subjetivação/comunicação, remetendo ao caráter comunicativo da linguagem).

Enquanto a lingüística se atém a constantes – fonológicas, morfológicas ou sintáticas – relaciona o enunciado a um significante e a enunciação a um sujeito, (…) remete as circunstâncias ao exterior, fecha a língua sobre si e faz da pragmática um resíduo. (…) Como diz Bakhtine, enquanto a lingüística extrai constantes, permanece incapaz de nos fazer compreender como uma palavra forma uma enunciação completa; é necessário um “elemento suplementar que permanece incessível a todas as categorias ou determinações lingüísticas” (Deleuze, Guattari, 1995: 21)

Na caracterização da palavra de ordem, este efeito próprio do ato ilocutório é complementado pela concepção estoica de que há uma independência entre corpos de uma sociedade – associados por Deleuze e Guattari, com base no universo linguístico, a um plano de conteúdos – e os enunciados a respeito desses corpos – associados a um plano de expressos. Os enunciados promovem transformações incorpóreas nos corpos, sendo essas transformações distintas das ações e paixões que afetam os corpos (Deleuze, Guattari, 1995: 18). As palavras de ordem são

não uma categoria particular de enunciados explícitos (por exemplo, no imperativo), mas a relação de qualquer palavra ou de qualquer enunciado com pressupostos implícitos, ou seja, com atos de fala que se realizam no enunciado, e que podem se realizar apenas nele. (…) [E diferentemente da concepção lingüística tradicional] a linguagem só pode ser definida pelo conjunto das palavras de ordem, pressupostos implícitos ou atos de fala que percorrem uma língua em um dado momento. (Deleuze, Guattari, 1995: 16)

Se os atributos não-corpóreos são ditos acerca dos corpos, se podemos distinguir o expresso incorpóreo “avermelhar” e a qualidade corpórea “vermelho” (…), é então por uma razão bem diferente do que a da representação. Não se pode nem mesmo dizer que o corpo, ou o estado das coisas, seja o “referente” do signo. Expressando o atributo não-corpóreo, e simultaneamente atribuindo-o ao corpo, não representamos, não referimos, intervimos de algum modo, e isto é um ato de linguagem. A independência das duas formas, a de expressão e a de conteúdo, não é contradita, mas ao contrário confirmada, pelo fato de que as expressões ou os expressos vão se inserir nos conteúdos, intervir nos conteúdos, não para representá-los, mas para antecipá-los, retrocedê-los, retardá-los ou precipitá-los, destacá-los ou reuni-los, recortá-los de um outro modo. (Deleuze, Guattari, 1995: 27)

Buscando esclarecer este regime de independência entre corpos e enunciados, entre o âmbito da “lição das coisas” e o âmbito da “lição dos signos” (Deleuze, Guattari, 1995: 26), os autores referem-se à introdução que Oswald Ducrot fez para a edição francesa de Speech Acts, de Searle:

Quando Ducrot se pergunta em que consiste um ato, ele chega, precisamente, ao agenciamento jurídico, e dá como exemplo a sentença do magistrado, que transforma o acusado em condenado. Na verdade o que se passa antes – o crime pelo qual se acusa alguém – e o que se passa depois – a execução da pena do condenado – são ações-paixões afetando os corpos (corpo da propriedade, corpo da vitima, corpo do condenado, corpo da prisão). (Deleuze, Guattari, 1995: 18)

A palavra de ordem coloca-se como condição necessariamente social da linguagem, e por isso, diferentemente das sistematizações fonológica, semântica, sintática da língua, possui um caráter não necessário e não pré-determinado, e ao mesmo tempo interventivo/transformador:

Os corpos têm uma idade, uma maturação, um envelhecimento; mas a maioridade, a aposentadoria, determinada categoria de idade, são transformações incorpóreas que se atribuem imediatamente aos corpos, nessa ou naquela sociedade. “Você não é mais uma criança…”: esse enunciado diz respeito a uma transformação incorpórea, mesmo que esta se refira aos corpos e se insira em suas ações e paixões. A transformação incorpórea é reconhecida por sua instantaneidade, por sua imediatidade, pela simultaneidade do enunciado que a exprime e do efeito que ela produz; eis porque as palavras de ordem são estritamente datadas, hora, minuto e segundo, e valem tão logo datadas. (Deleuze, Guattari, 1995: 19)

Porém é importante salientar que a palavra de ordem não funciona com base apenas no exercício da vontade, desvinculado das circunstâncias em que a enunciação se dá. O que possibilita, ou não, a efetividade da palavra de ordem são essas circunstâncias.

[Benveniste] mostra que um enunciado performativo não é nada fora das circunstâncias que o tornam o que é. Alguém pode gritar “decreto de mobilização geral”; esta será uma ação de infantilidade ou de demência, e não um ato de enunciação, se não existir uma variável efetuada que dê o direito de enunciar. O mesmo é verdade em relação a “eu te amo”, que não possui sentido, nem sujeito nem destinatário, fora das circunstâncias que não se contentam em torná-lo crível, mas fazem dele um verdadeiro agenciamento, um marcador de poder, mesmo no caso de um amor infeliz (Deleuze, Guattari, 1995: 20-21)

A enunciação Daspu como palavra de ordem articula-se conjugando dois momentos. A data-referência principal é o dia 20 de novembro de 2005, quando Elio Gaspari publica a nota n’ O Globo. É a partir desse momento que a Davida assume a exposição pública e a repercussão positiva, que vai transformar um projeto de confecção em um processo de construção de uma empresa de moda, assim como vai potencializar a imagem da própria Davida. Mas também se coloca a data de 15 de julho de 2005, quando o nome é criado, pois é a especificidade do nome que dá a sua consistência como palavra de ordem, apesar dessa só se efetivar em 20 de novembro depois de ter seu potencial transformador reconhecido/assumido pela Davida. Se não fosse a referência à Daslu, talvez a nota não tivesse sido publicada; mas se não fosse a ironia e o bom humor, uma “brincadeira carioca” nas palavras de seu criador, Sylvio de Oliveira, talvez a repercussão não tivesse sido tão grande.

Fotos do desfile da Daspu na Rua Augusta divulgadas pelo jornal O Estado de São Paulo, 12 abr. 2006.

De qualquer modo o nome Daspu é coerente com a visão positiva e não moralista que caracteriza a ONG. A chave de leitura do nome Davida, por exemplo, refere-se a um eufemismo para puta – mulher da vida –, mas também à positividade da afirmação Da Vida. E o nome Daspu, ao se apresentar como uma marca Das Putas – homologamente ao nome Daslu, motivado pelos prenomes Lúcia e Lourdes de suas duas fundadoras –, brinca com o estereótipo da mulher obrigada a se prostituir para sobreviver em contraposição ao consumo de luxo da cliente Daslu. Assim como alude ao fato de que o mundo Daslu é eventualmente também atravessado pela relação entre sexo e dinheiro.

 

Foto do desfile da Daspu na Rua Augusta divulgadas pela Folha de São Paulo, 12 abr. 2006. Foto de João Sal



A menção satírica à Daslu, associada à autoironia de relacionar prostitutas da Praça Tiradentes, no centro do Rio de Janeiro, à boutique mais luxuosa do país, dão ao humor Daspu um certo tom de ”escracho”. Grande parte do sucesso pode ser tributado a esta irreverência, que também se faz presente nas frases das camisetas. Sua carioquice conquistou cariocas e não cariocas, pois a proposta tinha potencial para apresentar-se culturalmente como fetiche. Assim como aconteceu com as camisetas: tornaram-se, imediatamente, objetos de desejo.

No entanto devem ser assinaladas as circunstâncias que tornam possível a palavra de ordem, assim como as transformações na ONG e no empreendimento Daspu que se seguem às suas reverberações.

Foto do desfile da Daspu no Circo Voador, divulgadas pelo jornal O Globo, na seção Ela Fashion, em 10 jun

 

4. As circunstâncias da enunciação Daspu

Devem ser assinaladas quais as circunstâncias que efetivam a Daspu como palavra de ordem, vale dizer os modos como essas circunstâncias vão sendo dispostas, no momento inaugural e ao longo do processo daí decorrente, por corpos (lição das coisas) e enunciados (lição dos signos) conectados ou conectáveis ao evento. E de como as pressuposições recíprocas entre as ações e paixões desses corpos e as transformações incorpóreas expressas por esses enunciados dialogam com as circunstâncias que sustentam a palavra de ordem. Conforme já indicado, os expressos podem “se inserir nos conteúdos, intervir nos conteúdos, não para representá-los, mas para antecipá-los, retrocedê-los, retardá-los ou precipitá-los, destacá-los ou reuni-los, recortá-los de um outro modo.” (Deleuze, Guattari, 1995: 27)

No cenário da enunciação Daspu destacam-se entre a heterogeneidade dos corpos e agentes dos enunciados: prostituição, moda, jornalismo, público leitor, comunicação, marketing, design, empreendedorismo, sociedade brasileira, arte, sociedade do espetáculo, movimentos sociais, política, bom humor e crítica, discurso antropológico, moralismo, ética, “consistência cidadã”, criação, transgressão etc. Neste sentido delineiam-se agenciamentos fragmentadamente coletivos e processuais.

Daspu nos bastidores de “Caminho das Índias”

A partir da análise do clipping pesquisado, e tendo em vista os corpos e os enunciados em jogo, pode-se compreender as circunstâncias que fundamentam a enunciação Daspu na particularidade de quatro confluências: a) a confluência entre a lógica da imprensa, o escândalo Daslu, e o surgimento da Daspu; b) a confluência entre a Davida como proposta e organização, e sua experiência com a mídia; c) a confluência entre a lógica da moda, a cobertura jornalística da moda, e o caráter transgressivo associado à Davida/Daspu; d) a confluência entre o apoio de artistas e intelectuais, e o trabalho voluntário de profissionais de moda e de imagem pública.

4.1. A lógica da imprensa; o escândalo Daslu; o surgimento da Daspu

Independentemente dos aspectos técnicos e éticos que caracterizam as diretrizes explícitas de produção/edição de um meio de comunicação – tais como a fidedignidade, a abrangência e a isenção da informação veiculada –, coloca-se a diretriz pragmática de motivar o leitor. Isto envolve a articulação das várias possibilidades de formatação da informação jornalística, assim como o tratamento cativante dos fatos que a reportagem e a edição constroem. A eficácia dessa estratégia fortalece o prestígio e o cacife empresarial do veículo, e é isto o que se busca expressar na a fórmula-síntese “notícia vende jornal”.

No caso Daspu colocam-se como pano de fundo desta articulação pragmática: a) a diretriz ética de defesa da sociedade, pois a motivação da publicação da nota vem da existência de um processo contra a Daslu, e evoca tanto a necessidade de cumprimento das leis, quanto a impunidade das elites; b) a existência de um público leitor afetado pelas condições da economia e, por isso, receptivo à critica de desmandos legais; c) o caráter inusitado da associação entre uma confecção de prostitutas e a loja multimarcas de luxo, que se dá pela referência paródica e satírica do nome Daspu ao nome Daslu. O fato é imediatamente percebido em seu potencial de repercussão jornalística. E a sua publicação como nota numa coluna de opinião acentua ainda mais sua dimensão irônica.

No desdobramento da cobertura das ações da Davida, o tema da defesa da sociedade é alimentado pela notificação judicial da Daslu, e potencializado por comparações de fundo ético entre a Daslu e a Davida. Em alguns momentos, em colunas de opinião essa cobertura ganha um tom carregado de denúncia. Entretanto na quase absoluta maioria das vezes o assunto Daspu é reproduzido/caracterizado com o mesmo bom-humor presente na criação do nome. Pois apesar do caráter político e de critica social, a novidade apresentada pela Daspu é alegre e divertida, assim como o bloco carnavalesco dos Prazeres Davida, uma das iniciativas culturais da ONG.

4.2. A Davida como proposta e organização; sua experiência com a mídia

O desdobramento da enunciação Daspu através da ação da imprensa coloca a Davida em evidência. E a consistência política e cultural da Davida dão substância à palavra de ordem, pois as referências éticas são reais. No momento de seu aparecimento público a Daspu podia ser só uma ideia, mas consegue tornar-se realidade, pois existe por trás da marca um grupo de prostitutas organizadas com um discurso e posição critica coerentes em relação à realidade da prostituição. Sylvio de Oliveira, referindo-se ao ineditismo da proposta da ONG, lembra que no primeiro desfile, por ocasião do Fashion Rio, havia, aproximadamente, trezentos jornalistas do mundo inteiro “naquela ruazinha estreita”, o que seria um acontecimento inédito no mundo. Nunca antes houvera tantos holofotes focalizando positivamente a prostituição. Sylvio conta que na Europa, onde há um trabalho consistente com prostituição,

existe uma mulher, que […] é como se fosse a Gabriela lá. Fazem coisas incríveis, mas nunca com essa preocupação que a Davida teve de fazer a população virar cúmplice das prostitutas.[…] O trabalho lá na Europa é muito interno, o político, o de prevenção a AIDS sim, mas é muito para o bem estar das putas apenas, não contando com a cumplicidade da população. (Oliveira, 2008: 58)

Mas além dessa retaguarda ética e política, as ações e posições da Davida subsequentes à publicação da nota de Gaspari estabeleceram um diálogo ativo com a cobertura jornalística, evidenciando a habilidade de Gabriela Leite e Flávio Lenz em capitalizar a imagem da marca. Eles souberam fomentar por um longo período o interesse da mídia na Daspu. Fala-se tanto da marca que esta chega integrar uma lista publicada n’ O Globo por Ancelmo Gois, em 26 de novembro de 2006, dos assuntos que “ninguém aguenta mais ouvir”, e isto um ano depois de ter sido anunciada por Gaspari! (Gois, 2006: 27). Ou seja, a partir do momento inesperado em que a marca foi divulgada pela primeira vez, todos os outros espaços na mídia foram bem aproveitados pela Davida. E muitos, de certo modo, articulados pelos seus dirigentes.

Famosas apóiam projeto social em “Caminho das Índias”
Elke Maravilha, Susana Vieira, Betty Lago, Preta Gil e Priscila, vice-campeã do BBB9 falam sobre o trabalho da Daspu para o documentário da personagem Leinha.

Neste sentido foi fundamental a experiência jornalística de Flávio Lenz, adquirida na atuação em jornais de grande circulação, no trabalho como assessor de imprensa da Davida desde 1992, e na publicação do jornal da ONG Beijo da Rua, em suas versões impressa e on line.

4.3. A lógica da moda / o caráter transgressivo da Davida/Daspu

A recepção da Daspu pela moda desenha-se com base em algumas características valorizadas pelo meio. Destaca-se, inicialmente, o imperativo do novo. A moda, com sua natureza inquieta e desassossegada, é movida pela novidade. A esta deve-se a busca pelo diferente, do que não integra ainda o repertório do campo. O tédio associado ao que já foi seguidamente vivenciado abre espaço para o exógeno. E segundo um referencial antropológico destacam-se as tribos e as periferias, que oferecem um “viés diferencial perseguido, dialeticamente, pela estética globalizada” (Villaça, 2007: 59), proporcionando novas identidades possíveis. Através do ato de vestir uma camiseta, ou desfilar, ou se projetar em uma imagem fantasia, promove-se uma brincadeira de prostituta, ou de apoio às prostitutas. Relativamente ao seu processo de comunicação, a Daspu foi surpreendente nesse aspecto: foi criada uma marca viva, uma marca sujeito (Lipovetsky, 1989: 187) com a qual é fácil de se identificar.

Por outro lado, como a empatia do provável consumidor com a marca tende a se estabelecer segundo uma dimensão política, isto aponta para uma critica de relações e enquadramentos autoritários e moralistas. E essa condição também vem fortalecer a busca do novo, só que num outro registro. Caracteriza-se aí um outro aspecto valorizado pela moda, que é o rompimento com o passado, o gosto por desobedecer regras. E isto destaca a valorização, pela moda, do transgressivo, e de como a Daspu corresponde duplamente a esta expectativa.

Primeiramente coloca-se o discurso da prostituta autodeterminada, que é capaz de falar por si, defender seus direitos e atuar politicamente, rompendo com o silenciamento, com o não-discurso, da prostituta comum. Num outro nível coloca-se a crítica, no âmbito da defesa dos direitos civis, às posições assistencialistas que têm como objetivo “recuperar” as prostitutas, tirando-as “da vida”. Diferentemente a Davida defende a opção consciente de atuar na profissão, assim como o orgulho profissional. Essas posições têm um papel importante na recepção da marca pelos artistas, jornalistas e criadores, graças à valorização do transgressivo como veículo tanto do novo quanto da renovação social. Assim como o transgressivo também se associa à categoria de atitude, igualmente valorizada pela moda.

“Da farofa ao caviar” desfile da Daspu em BH 2009

E existe, finalmente, a consciência quanto aos recursos de exposição e aparecimento, presentes na prática da moda. A Daspu, desde seu lançamento, utiliza sobretudo um determinado modo de operação da moda: a valorização do sensacional (Carli, 2002: 114). Com a ajuda de artistas e cenógrafos tira proveito do show. Seus desfiles se referenciam na arte e transformam-se em instalações e performances. Embora não se abra mão de obter recursos através das vendas, a marca não se descuida da premissa e protocolos do desfile espetáculo. E isto até porque a produção não está bem equacionada. De qualquer maneira há plena consciência de que o aparecimento em si mesmo trabalha pela causa, e de que estar na mídia significa, ainda que de modo relativo, o direito a ter voz.

4.4. O apoio de artistas e intelectuais / o trabalho voluntário de profissionais de moda e imagem pública.

A imagem da marca projetada pela imprensa é fortalecida pela adesão e apoio de artistas, intelectuais, profissionais de cultura e de moda.

As formas de apoio podem envolver efetivações estratégicas, como o convite de Gringo Cardia para a Daspu participar do estande do SEBRAE na edição outono-inverno do Fashion Business de 2006, assim como o oferecimento de trabalho voluntário, como faz o próprio Cardia com a cenografia para o desfile da coleção Daspu na Pista – BR 69, no Circo Voador, e toda uma legião profissional que se envolve com a marca: estilistas, cenógrafos, designers, modelos, cineastas. Como também há o apoio dado através da cessão de espaço em programas de entrevista, como fazem Betty Lago e Jô Soares, ou em outros espaços televisivos, como na participação na novela Caminho das Índias, da Rede Globo de Televisão, em 2009.

 

Foto do desfile da Daspu no Circo Voador, divulgadas pelo jornal O Globo, na seção Fashion Rio, em 10 jun. 2006. Foto de Fábio Guimarães.

A motivação desse apoio se origina na identificação tanto com o caráter ético que a imagem da marca projeta, quanto com o caráter transgressivo. Por outro lado, pode-se falar de um retorno desse apoio, dado pela exposição que se ganha com o destaque que o assunto tem na mídia. Porém simpatizantes como Gringo Cardia ou Betty Lago, só para citar dois exemplos, não podem ser considerados principiantes em busca de exposição pública. Mas, sem juízo negativo de valor – pois é legítima a expectativa de exposição por parte de quem contribui com a ONG –, este talvez seja o caso, por exemplo, da estilista Rafaela Monteiro (segundo desfile), ou do grupo Coletivo Puta Life Style (quinto e sexto desfiles). E da parte desses profissionais também pode estar presente uma expectativa, também legítima, quanto a uma liberdade do exercício criativo.

Desfile de lançamento da coleção Daspu na Pista BR 69, no Circo Voador, Rio de Janeiro. 9 jun. 2006. Fotos Marcos Silva.

Resulta deste apoio: a) o reforço temático da imagem da marca, na medida em que citações de “famosos” na imprensa enfatizam aspectos éticos ou transgressivos; b) o reforço da visibilidade da marca, pois as declarações de apoio colhidas em eventos específicos transcendem tanto esses eventos quanto o caráter referencial dado pelo espaço na mídia, incorporando-se a um espaço maior e menos material de aparecimento; c) consistências parciais na visualidade ligada à marca, dadas pelos parâmetros profissionais do trabalho voluntário (que elas sejam mais ou menos articuladas entre si é uma outra questão).

5. Inserção da palavra de ordem Daspu no corpo Davida

Conforme indicado por Deleuze e Guattari, um enunciado diz respeito “a uma transformação incorpórea, mesmo que esta se refira aos corpos e se insira em suas ações e paixões” (Deleuze, Guattari, 1995: 19). Ou seja, independentemente da distinção entre corpos e transformações incorpóreas, estas tornam-se presentes e podem marcar os processos de mistura dos corpos.

Com base nesta orientação, destacamos dois aspectos das transformações na ONG Davida e no empreendimento Daspu que se seguem às reverberações da palavra de ordem: o primeiro ligado à autoimagem das prostitutas que participam, ou se conectam à ONG, assim como à própria imagem da ONG; e o segundo ligado à estruturação da Daspu como negócio.

5.1. A moda sem vergonha

A enunciação pública do nome Daspu recoloca o jogo exibe-esconde com o qual as prostitutas lidam em seu dia-a-dia – exibe para o cliente, esconde da sociedade, polícia, família. É obviamente salutar para a causa política da Davida, mas exige das prostitutas que abram mão de sua habitual repulsa pela exibição/exposição pública, que na moda é parte inseparável do jogo.

E isto traz uma mudança quanto ao ato de mostrar-se. As prostitutas passam a ter status distinto do que tinham antes, pois incorporam a persona da modelo, que mostra o que veste mostrando-se. E, momentaneamente, ganham voz na mídia. Com a sua entrada no meio da moda, a marca inaugura um novo padrão para a autoimagem das associadas à Davida: mostrar-se e dizer-se puta.

Este processo ganha uma compreensão mais nítida a partir da categoria discurso reverso, proposta por Michel Foucault em História da sexualidade 1: A vontade de saber: Desenvolvendo a questão da “polivalência tática dos discursos” nesta área (Foucault, 1988: 111), o autor postula que deve-se imaginar uma “multiplicidade de elementos discursivos que podem entrar em estratégias diferentes”. Refere-se, entre outras coisas, ao fato das enunciações ligadas a controles sociais comportarem deslocamentos e utilizações para fins opostos. Segundo ele o aparecimento, no século XIX, na psiquiatria, na jurisprudência e na própria literatura, de toda uma série de discursos sobre espécies e subespécies de homossexualidade, inversão, pederastia e “hermafroditismo psíquico”, permitiu, certamente, um avanço bem marcado dos controles sociais nessa região de “perversidade”; mas, também, possibilitou a constituição de um discurso “de reação” [discurso “reverso” 5 ]: a homossexualidade pôs-se a falar por si mesma, a reivindicar sua legitimidade ou sua “naturalidade” e muitas vezes dentro do vocabulário e com as categorias pelas quais era desqualificada do ponto de vista médico (Foucault, 1988: 112).

Esta estratégia já estava presente no discurso de Gabriela Leite antes da Daspu. No entanto a marca fornece o megafone/amplificador que a propaga e faz reverberar, conforme o subtítulo do livro de Lenz: Daspu – a moda sem vergonha. O que a Daspu promove com sua moda sem vergonha é a transformação da puta sem-vergonha ou desavergonhada, na puta sem vergonha de dizer-se puta, o que, entre outras coisas, significa, por exemplo, deixar-se fotografar para jornal.

Por outro lado, este imenso potencial transformador que a marca representa, na medida em que se apresenta como “uma forma inusitada de ativismo político”

6, perde seu poder se a Daspu desaparece como marca. O valor da marca pode ser tão importante quanto a venda de produtos, mas também é verdade que se as vendas não acontecem e a empresa não se fortalece, este valor tende a se esvaziar. Esta avaliação aponta para a importância da Daspu manter-se ativa no mercado da moda.

5.2. O negócio Daspu

A recepção favorável que a enunciação Daspu teve no meio moda não significa que ela tenha sido sempre avaliada positivamente. Muitas vezes a moda se apropria das práticas e dos produtos de periferia como demonstração de correção política, por exemplo, mas exige em troca a adaptação. Ao se associar à moda, a Daspu fica sujeita à sua lógica mutante: estar na moda pode significar, no minuto seguinte, não estar mais. Ao mesmo tempo que o fascínio pela novidade favorece o surgimento de marcas e estéticas fora de um mainstream, o imperativo do novo dificulta sua permanência. A partir do momento em que uma experiência específica ganha visibilidade, deixa aos poucos de ser uma novidade. Para se manter como sujeito nesse espaço social é necessário não só produzir outras novidades, mas também enquadrar-se segundo seus parâmetros produtivos. Movimento que a Daspu vem se empenhando em fazer desde seu lançamento.

Sobre a estreita relação entre a imprensa especializada em moda e o sistema da moda, que dá aos jornalistas especializados e veículos um certo poder na homologação dos gostos e inclusão das marcas neste sistema, deve-se lembrar que, observando-se o desempenho do Brasil na moda mundial dos últimos tempos, observa-se uma elevação significativa nesse padrão para a homologação. O investimento das empresas nacionais para obter reconhecimento internacional da moda brasileira, requer, com toda certeza, mais rigor no critério de seleção das marcas que receberão essa homologação, seja da imprensa especializada ou dos demais setores do sistema da moda. A edição de 2009 do Fashion Rio pareceu caminhar ainda mais na direção da elevação desse padrão. Reduziu drasticamente o espaço oferecido às marcas em processo de profissionalização e manteve no evento oficial apenas as que haviam alcançado um estágio profissional mais avançado. Profissionalismo, design, qualidade de produto, permanência e constância são critérios importantes para a manutenção do status alcançado em solos internacionais e, consequentemente, concorrem para a eleição do grupo de marcas que ingressará nesse círculo cada vez mais restrito. E este é um movimento natural da perspectiva da indústria da moda.

Desfile da coleção Daspu na Pista BR 69, no Club Glória, São Paulo, 15 jun. 2006.
Fotos de Marcos Silva.

Nas raras avaliações dos jornalistas de moda, são encontrados indícios da não homologação da marca Daspu. Mas, sobretudo, a raridade dessas críticas é a principal evidência de que ela não chegou a ser exatamente considerada como parte do meio.

Nas escassas avaliações e críticas que a marca Daspu recebe da imprensa especializada, é possível perceber inadequações do produto oferecido, ou da empresa Daspu, ao negócio moda. Como quando Iesa Rodrigues, ao elogiar a camiseta Beijo da Rua, sublinha a ausência de produtos apresentados pela marca naquele momento. Ou quando Glória Kalil, comentando um padrão de vulgaridade presente hoje na moda, e comparando as roupas da Daspu e da Daslu, refere-se às diferenças de tecido e acabamento. Ou ainda na crítica encontrada no site de Erika Palomino, que afirma que o público aplaudiu mais as prostitutas e menos as modelos de verdade, ainda que pouco antes tivessem reproduzido a afirmação de Rafaela Monteiro – “prostituta não tem cara”.

 

Fotos do desfile da coleção Puta Arte, na Praça Tiradentes. Rio de Janeiro. 19 jan. 2007. Fotos de Viola Berlanda

 

É interessante, para o caso Daspu, pensar nos binômios socialização/individualização, distinção/imitação, presentes na teoria de Simmel (Simmel, 1957). Quando Gabriela Leite afirma que faz uma moda para todas as mulheres parece ciente da importância dessa relação. Entretanto, na maioria das vezes, a roupa da Daspu é nomeada pela imprensa como roupa de prostituta para prostituta. Segmentação que nada ajuda ao discurso da Davida. Uma confusão que talvez seja estimulada pelos conceitos autorreferentes presentes em todas as coleções. Essa segmentação advém, normalmente, da mídia não especializada. Glória Kalil, como visto, afirma justamente o contrário. Mas nesse caso o discurso de indistinção também tem, subjacente, a distinção. Nos comentários de Glória Kalil sobre a similaridade entre as modas Daspu e Daslu, está claro que ela não ignora que são “as pequenas diferenças que fazem toda a moda”. Quando destaca a importância de um bom tecido ou acabamento, não desconhece que “a torrente de pequenos nadas” (Lipovetsky, 1989, p.32) à qual o tecido e o acabamento pertencem pode, imediatamente, desclassificar ou classificar a pessoa que os adota ou que deles se mantém afastada. Se inserem em “uma parte da moda que se tornou como a alma da economia geral do vestuário: o detalhe” (Barthes, 2005: 341). Assim, nem tudo é paródia e deboche na apropriação que Daspu faz do nome Daslu: deve haver também imitação. Ou pelo menos ela é esperada. Quando as análises, elogiando o desempenho Daspu, equiparam suas criações com as demais, anunciam que é isso que esperam da marca.

Desfile da coleção Puta Arte, no Club Glória, em São Paulo. SP, 27 jan. 2007. Fotos de Viola Berlanda

Mas a habilidade de articulação do grupo gestor da Davida em função dos objetivos da ONG fica evidenciada também no trato administrativo com a marca. Desde as ações para o pronto atendimento das urgentes demandas para a constituição real da marca – não somente produtivas, como a realização de uma primeira camiseta em transfer para simular uma produção inexistente, mas também empresarias, como o registro da marca no INPI, feito por Lenz quinze dias depois da publicação da nota de Gaspari –, passando pela busca de qualificação empresarial, e chegando às associações com a FUMEC e seus alunos para o desenvolvimento das novas produções

 

 

Relativamente a essa parceria é preciso destacar o fato das estampas para as camisetas da última coleção acentuarem com humor o caráter de naturalidade e sensualidade do tema prostituição, caracterizando com mais justeza as referências que conferem a ligação ao trabalho da Davida, dando o tratamento merecido às camisetas, produto que mais se identifica com a marca Daspu.

 

 

Desfile da coleção As cruzadas: a batalha entre o botão e a espada. Belo Horizonte. Jun. 2008. Fotos de Nana Moraes.
ARQUIVOS


6. Considerações finais

O design se define como uma disciplina prática, como por exemplo o marketing e a administração, e projetual, como a arquitetura e o urbanismo. Isto leva a que, diferentemente da história, da filosofia ou da matemática, por exemplo, em paralelo à esfera acadêmica também se estabeleçam cânones e instâncias de sua validação profissional no mercado.

Em termos da esfera acadêmica, temos que ela cumpre o papel de elaboração, sistematização e transmissão do conhecimento humano produzido/acumulado, tendendo a encarar este conhecimento com base no paradigma consolidado pelas ciências da natureza a partir do Renascimento 7. Frente ao fato de que, segundo esta concepção, todas as áreas acadêmicas devem se compreendidas como ciências 8 – mesmo que extraoficialmente o paradigma dominante leve a uma grande seletividade no reconhecimento desta atribuição –, caracterizam-se duas posições no âmbito do design:

a) uma envolvendo iniciativas visando conferir uma cientificidade à profissão, normalmente através de uma super valorização da metodologia 9 – embora elas tendam a não funcionar para grande parte da prática profissional;

b) outra envolvendo um consenso de que, mesmo que esta cientificidade metodológica possa ser adequada a alguns tipos de projeto, e não deixando de considerar a possibilidade da utilização do conhecimento científico, o design em geral, como outras atividades práticas e projetuais, não se caracteriza conforme o modelo da ciência moderna que se desenvolve a partir do século 16.10

De qualquer modo o espaço acadêmico marca mesmo as disciplinas práticas com alguns dos atributos da cientificidade, como a busca de isenção técnica e uma supervalorização dos limites das áreas de conhecimento, com base na pressuposição de uma divisão social do trabalho que tende à idealização, pois possui um caráter formalmente descritivo e ignora a dinâmica concreta da relação entre áreas de conhecimento no mercado e no espaço acadêmico.

Considerando, por outro lado, os parâmetros de validação profissional pelo mercado, temos que, a partir de uma racionalidade e de um pragmatismo de mercado, são valorizados protocolos de relacionamento profissional, a competência e a neutralidade técnica e uma “política de resultados”, ou seja, o retorno do investimento. Embora esses parâmetros coloquem-se com independência em relação à esfera acadêmica, esta, por sua própria razão de ser, precisa incorporá-los enquanto referência necessária para o ensino da profissão, sendo que nessa operação eles passam a ser enquadrados segundo os modos de funcionamento e parâmetros do espaço acadêmico. E neste fechamento do campo os critérios se cruzam – a neutralidade técnica se conjuga à isenção de caráter científico, por exemplo – criando “enrijecimentos” de ação e percepção, dificultando a compreensão de novas dinâmicas da sociedade e novos modos de conhecer.

Conforme fica sugerido no item 2 deste trabalho, os parâmetros do mercado sinalizam o caminho mais evidente para uma análise, com base na competência profissional, do peso relativo que a criação e gestão de uma marca pode adquirir no possível sucesso um empreendimento.

Desfile na Unidos da Tijuca. Rio de Janeiro. 6 jun. 2008. Foto de Celso Pereira.

No entanto o recorte estritamente profissional – neutro e isento segundo os protocolos do mercado e sua replicação acadêmica –, não elimina o fato de que existe a atividade, correspondendo ao trabalho e suas especificidades e potencialidades técnicas e sociais, como algo distinto da profissão. Mesmo considerando que atividade e profissão se apresentam como um mesmo “corpo”, esta distinção analítica se justifica. Pois embora a efetivação da atividade dependa dos balizamentos profissionais que dispõem as condições de sua existência, isto pode se dar tanto como confirmação dessas condições, quanto relativamente, por meio da investigação/experimentação de alteridades, e celebração de um compromisso com um “objeto ampliado” e com uma abertura do conhecimento. Neste sentido a caracterização de uma autonomia da atividade se aproxima de iniciativas de revisão dos parâmetros igualmente técnicos e isentos das ciências sociais. Como indica Boaventura dos Santos “A experiência social […] é muito mais ampla e variada do que a tradição científica e filosófica concebe e considera importante” (Santos, 2006: 778).

A opção por uma referência analítica adequada à recuperação da experiência social presente na criação e difusão da marca Daspu – envolvendo aceitação da diferença e construção de cidadania –, assume a possibilidade de conexões e aberturas que enriqueçam o escopo do design e de disciplinas afins. E isto abrangendo caracterização técnica e posicionamentos sociais e culturais, tanto em termos da atividade quanto da profissão.

E finalizando, cabe registrar o paralelo, em termos do trabalho prático, a esta busca de abertura do campo em termos do conhecimento, destacando o desprendimento e generosidade dos profissionais que se engajaram no processo Daspu.

Referências bibliográficas

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CROSS, Nigel. “From a Design Science to a Design Discipline: Understanding Designerly Ways of Knowing and Thinking”. In MICHEL, Ralf (ed.). Design Research Now: Essays and Selected Projects. Basel: Bierkhäuser Verlag, 2007. p.41-54.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. “Postulados de lingüística”. In: Mil platôs – capitalismo e esquizofrenia. Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995. P. 11-60.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: A vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.

GASPARI, Elio. “Uma nova grife”. In: O Globo. Rio de Janeiro, 20.11.2005.Caderno O Pais. P.16.

GOIS, Ancelmo. “Ninguém agüenta mais ouvir”. In: O Globo. Rio de Janeiro, 26.11.2006. Caderno Rio, p.27.

LENZ, Flavio. Daspu – a moda sem vergonha. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2008.

LESSA, Washington Dias. “Prática de design e conhecimento”. Designe. Rio de Janeiro: Escola de Artes Visuais/ Univercidade, ano III, nº 3, outubro de 2001, p. 80-86.

LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero. Tradução de Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

MARTINS, José Roberto. O manual para você criar, gerenciar e avaliar marcas.3ª edição. 2006. Disponível em www.brandingemarcas.com.br/kose-roberto-martins

O GLOBO. “Fetiche”. In: O Globo. Rio de Janeiro, 14.01.2006. Caderno Ela Fashion, p.1.

OLIVEIRA, Sylvio de. Entrevista concedida a Fábio de Araújo Keidel. In: KEIDEL, Fábio de Araújo. Criação de marcas em movimentos sociais: uma análise do caso Daspu. Rio de Janeiro, 2008. Universidade Federal do Rio de Janeiro; Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Escola de Comunicação. p.54-62.

SANTOS, Boaventura de Souza (org.). Conhecimento prudente para uma vida decente – um discurso sobre as ciências revisitado. São Paulo: Cortez, 2006. [2003]

SIMMEL, Georg. “Fashion”. In: American Journal of Sociology. vol. LXII, Nº 6 , Chicago, may 1957. p. 541-558.

VILLAÇA, Nízia e Góes, Fred. Em nome do corpo. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

VILLAS-BOAS, André. Prefácio. In: LENZ, Flavio. Daspu – a moda sem vergonha. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2008. p. 10-17.

 

*Washington Dias Lessa é designer graduado pela ESDI Escola Superior de Desenho Industrial, onde leciona desde 1977, quando ela passa a integrar a UERJ. Tem doutorado em comunicação e semiótica pela PUC-SP e seu trabalho de pesquisa está voltado para questões ligadas à linguagem visual (contextualizadas historicamente ou não), às relações entre design e significação/comunicação, e à teoria e epistemologia do design. Além de artigos e capítulos de livros publicou “Dois estudos de comunicação visual”, onde analisa a participação de Amílcar de Castro na reforma do Jornal do Brasil nos anos 1950-1960. Como designer destacam-se seus projetos de design editorial e design de exposições.

* Jeanine Geammal é designer e professora do curso de Design de Produto da Universidade Federal do Ceará. Atua no campo do design de jóias, principalmente com a produção de joalheria-arte e no desenvolvimento de coleções. Organizou a coletânea “Joia em estudo” (Editora SENAI, 2009).

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1- Divulgação da “Carta de Princípios” da Rede Nacional de Prostitutas, divulgada pelo sítio “Beijo da Rua”, mantido pela Davida.

2- Visando, num primeiro momento, divulgar as questões relativas às lutas da ONG Davida.

3- Marcada pela figura de Flávio Lenz, assessor de imprensa da Davida
“dando à palavra ‘corpo’ a maior extensão, isto é, todo conteúdo formado” (Deleuze, Guattari, 1995: 26).

4- No texto original em francês o termo usado por Foucault é discours “en retour” (Histoire de La sexualité 1: La volonté de savoir. Paris: Gallimard, 1976. p.134). Em vez de discurso “de reação”, utilizado na tradução brasileira, consideramos mais fiel às intenções do autor a tradução discurso “reverso”.

5- Em inglês o termo também é traduzido por “reverse” discourse.

6- André Villas-Boas, prefaciando o Livro de Flávio Lenz, afirma que a novidade não reside “na realização de espetáculos ou atividades artísticas e de lazer […], mas na sua transformação em estratégia. A conformação estética não é mais um ‘braço cultural’ do movimento, mas tornou-se o próprio movimento”. (Villas-Boas, 2008: 13-14)

7- Apesar do encaminhamento desta investigação colocar-se como um questionamento desse paradigma, não cabe aqui indicar nem o seu processo de consolidação, nem a “geopolítica” acadêmica que dele decorre, nem as vertentes e natureza da crítica a que tem sido submetido.

8- Segundo uma das categorizações oficiais de ensino e pesquisa no Brasil, o design é uma ciência social aplicada.

9- A este respeito ver Cross, 2007: 41-46

10- A este respeito ver Lessa, 2001: 81-82.