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A Literatura Brasileira num mundo de fluxos | de Beatriz Resende

Parto, neste texto de uma afirmação de Arjun Appadurai, professor da New School University na cidade de Nova York, nascido e educado em Bombain (Bombay), na Índia.

Em sua introdução ao volume por ele organizado Globalization 1 , Appadurai começa afirmando que a globalização é uma “fonte de ansiedade” no mundo acadêmico americano. Isso em 2003, ou seja, antes da grande crise. O que interessa a Appadurai, neste ensaio, e a nós, ao pensarmos a literatura brasileira contemporânea, é perguntar-se sobre a possibilidade da globalização criar ou não um mundo sem fronteiras (“world without borders”), eliminar ou afirmar formas de diferenciação que a academia tanto afirma como recusa e, finalmente, investigar como a pesquisa e os estudos de área se situam diante da questão. Tais ansiedades são encontradas em muitas esferas públicas nacionais (inclusive as dos EUA) mas também estão presentes nos debates de scholars dos países mais pobres.

O pensador identifica uma forte separação, um “apartheid”, entre os debates envolvendo questões econômicas, formas de organizações multinacionais, práticas políticas internacionais e o que chama de “discursos vernaculares” envolvendo autonomia cultural, sobrevivência econômica e acordos sobre mercado, trabalho, meio ambiente, doenças e guerras, quando são discursos de países pobres e seus defensores.

O que torna o debate inevitável e a necessidade de pesquisas conjuntas evidente é sua constatação de que vivemos num mundo caracterizado por objetos em movimento. E esses objetos incluem ideologias, povos, mercadorias, imagens e mensagens, tecnologias e técnicas. É o que chama de um mundo de fluxos: “This is a world of flows”.

Mesmo aquele que pode parecer o mais estável desses objetos – o estado-nação – é frequentemente caracterizado por populações em movimento, fronteiras questionadas, configurações, habilidades e tecnologias móveis.
A inevitável mobilidade em tempos de fluxos globais inclui, evidentemente, a imaginação. E aqui já nos aproximamos da produção literária de forma mais evidente. Para Appadurai, a imaginação não é mais produto do gênio individual, forma de escape da vida cotidiana ou uma dimensão da estética. É a faculdade que dá forma à vida do homem comum de maneiras as mais diversas. É o que faz com que as pessoas pensem em emigrar ou viajar, as fazem resistir à violência, procurem redesenhar suas vidas, buscar novas formas de associação e colaboração, muitas vezes para além das fronteiras nacionais.

Diz o antropólogo:

I have proposed that globalization is not simply the name for a new epoch in the history of capital or in the biography of the nation-state. It is marked by a new role for the imagination in social life 2.

É, portanto, a partir da constatação de vivermos num tempo em que a imaginação, a arte, a cultura, contaminam-se – positivamente ou não – com os efeitos globais, que gostaria de tratar, ainda que muito brevemente, as possibilidades da vida literária e da produção da ficção no Brasil em tempos absolutamente atuais (tentarei falar dos dois ou três últimos anos). A principal questão que aparecerá no debate será a dos limites da literatura nacional.

Evidentemente, esta não é uma questão exclusiva de países ainda periféricos, mesmo que, como é o caso do Brasil, sua interlocução a nível global, tenha crescido expressivamente. O recente reconhecimento internacional da impotência do G8 (Estados Unidos, Japão, Alemanha, França, Reino Unido, Itália, Canadá e Rússia) na conferência de Áquila e a proposta de criação do G14 (o G8 mais Brasil, Índia, China, África do Sul, México e Egito), assim como a importância que vem sendo dada pelo presidente Obama a grupos como o G5 (países emergentes na conjuntura internacional junto com China, Índia, México e África do Sul) ou os BRICs (Brasil, Rússia, Índia e China), faz com que possamos, talvez, falar, mesmo em conferências onde os estudos de área são determinantes, de um lugar um pouco menos distante do que aquela última porta no final do corredor, que costumamos dividir com estudos latino-americanos.

Como dizia, a produção literária mundial, hoje, tem apontando para a força do debate que estamos propondo. Tomemos alguns exemplos recentes. O genial vencedor do Prêmio Nobel de 2003, J. M. Coetzee, nasceu na África do Sul, de uma família africâner. Profundo critico do passado de apartheid, escreve em inglês, o que lhe permitiu receber dois (caso único) Booker Prize. Em seu mais importante romance, Desonra (Disgrace), deixa de lado certa escrita alegórica que exercera no também magnífico À espera dos bárbaros (de algum modo marcado por seus estudos sobre Beckett) e parte de uma questão própria de tempos do politicamente correto, uma acusação de assédio sexual por parte da família de um alunado protagonista, condenação que marca o fim da carreira acadêmica do personagem, para penetrar numa África do Sul violenta onde brancos e negros continuam a se odiar. Coetzee é hoje cidadão australiano e não poupa a academia nas falas de sua famosa personagem Elizabeth Costello.

No ano passado, o prestigioso Prêmio Goncourt, o mais francês dos prêmios franceses, foi atribuído ao afegão Atiq Rahimi, por seu romance Singuê Sabour – A pedra da paciência. Terceiro romance de Atiq, foi o primeiro a não ser escrito em persa, mas na língua do país que lhe concedeu asilo político. Mais do que ser escrito na língua do país onde vive, Singuê Sabour é uma narrativa fortemente tributária da escrita de outra premiada com o Goncourt, Marguerite Duras. Mesmo ritmo, mesmas frases curtas, mesmo apelo visual, perfeitamente de acordo com um autor que é também cineasta.Mas é das mulheres de seu país, da covardia masculina, do ímpeto bélico que fala através da voz monocórdia da mulher que habita uma casa desmoronada, acossada pela guerra fratricida, ainda que o Afeganistão não seja mencionado.

São apenas exemplos, dentre vários outros possíveis, mas significativos porque o trânsito, o fluxo, de uma língua para outra, de uma influência ou dialogo para outros, não são determinados por condições obrigatoriamente políticas, ou por opção estética como a feita por Beckett. Perguntado sobre a razão de optar por escrever em francês, Samuel Beckett afirmou, certa vez, que o fazia porque“o francês é uma língua pobre”, provocativo e evocando uma menor variedade vocabular identificada nesta língua do que no inglês. Em francês, seu texto ficaria mais seco.

Voltemos aqui às condições vividas pela literatura brasileira contemporânea. No que diz respeito ao trânsito internacional e a possíveis ampliações do público leitor, o acordo ortográfico firmado com Portugal em janeiro deste ano é um esforço para que “oficialmente” tenhamos uma só língua e para facilitar iniciativas editoriais. Mas não são as novas regras que farão com que nossas pronúncias se tornem mais compreensíveis mutuamente, ou que a linguagem literária, sobretudo a coloquial, se torne mais ou menos próxima.

Como produzir, então uma literatura que se imponha entre leitores brasileiros, seja reconhecida, primeiro pelo universo editorial e depois pela crítica, e, se possível venda? O escritor funcionário público, melhor ainda se diplomata como Guimarães Rosa e João Cabral e Melo Neto, que tinha sua fonte de renda garantida pelo Estado, é figura do passado, ainda que continuem existindo honrosos representantes como o embaixador do Brasil na Tailândia, o premiado escritor Edgar Telles Ribeiro, ou o em Washington, o interessante romancista João Almino.

O jornalismo talvez seja a opção profissional paralela mais frequente, mas alguns conflitos acabam se estabelecendo entre as duas funções.

Dados recentes divulgados pelo Ministério da Cultura não são nada animadores. O brasileiro lê em média 1,8 livros per capita ao ano (contra 2,4 na Colômbia e 7 na França, por exemplo). 73% dos livros estão concentrados nas mãos de apenas 16% da nossa imensa população de um pouco mais de 190 milhões de habitantes. O preço médio do livro de leitura corrente é de R$ 25,00, (U$ 12, 40) elevadíssimo quando comparado à renda média da classe média (das classes C,D e E).

Curiosamente, no entanto, apesar desse quadro, novas editoras vêm se instalando no país, especialmente espanholas e portuguesas; pequenas editoras surgem a todo momento; os prêmios literários se multiplicam e aumentam de valor a cada ano. As festas, feiras e bienais literárias crescem e um evento como a Festa Internacional Literária de Paraty traz, todo ano, para a pequena cidade histórica os mais importantes escritores do mundo, já chegando a ter num mesmo evento dois prêmios Nobel de literatura. Paul Auster, Toni Morisson, J.M. Coetzee, Nadine Gordimer, Orhan Pamuk, Ian MacEwan e outros já passaram por lá. Tudo isso nos leva a crer que o potencial criativo desta nossa forma de arte é alto e capaz de disputar espaços mundo afora.

O que quero analisar brevemente são tendências, recursos, opções que se colocam para nossos escritores contemporâneos. Vou me ocupar unicamente da prosa de ficção, já que o universo da produção poética tem peculiaridades próprias e é atingida, de forma ainda mais grave pelas dificuldades de tradução.

Em 2008/2009 três de nossos importantes escritores contemporâneos encontraram-se em situação de incrível coincidência ao lançarem romances que se utilizavam basicamente da mesma estratégia narrativa. Silviano Santiago, autor do romance experimental marca do surgimento da paródia pós-moderna entre nós, o Em liberdade, autor de Stella Manhattan, publicado em 1985, no final do regime autoritário, romance que fala, com ênfase política das performances de um travesti brasileiro e passado em Nova York, autor do contos gays de Keith Jarett no Blue Note e do provocativo O falso mentiroso, afirmação inconteste da peculiaridade do ficcional, lança em 2008 o “romanção”: Heranças, onde um homem velho escreve suas memórias e repassa história, costumes, usos e cultura no Brasil a partir dos anos 30, em Minas Gerais, até os dias de hoje, na praia de Ipanema, no Rio de Janeiro. Junto com a história do homem de poucos escrúpulos vem a história do Brasil moderno. O modelo declarado é Machado de Assis, especialmente em sua vertente irônica, além de imagens e figuras de linguagem que dele são explicitamente tomadas emprestado.

Neste ano de 2009, Chico Buarque em sua versão romancista publica sua quarta obra: Leite derramado. O anterior fora o arrojado Budapeste, verdadeiro debate entre as possibilidades da escrita, da sinceridade, do plágio, possibilidade ou não do traduzível, numa narrativa que se passa em grande parte justamente em Budapeste, cidade que o autor nunca tinha sequer visitado. No romance de 2009, Eulálio d’Assumpção, com cem anos, numa cama de hospital, entre delírios e rememorações narra a trajetória do decadente membro de uma perversa elite brasileira, racista e arrogante, que vê sua descendência amulatar-se e se perder nas inabilidades de lidar com o real no país que se moderniza. Com a história do homem e da mulher que o abandonara, novamente, vem a história do país, dos costumes, dos preconceitos, dos sonhos delirantes da família que sonhava com uma Europa que, também ela, desaparecia.

O modelo, sem dúvida, é novamente o Machado de Assis de Memórias Póstumas de Brás Cubas ou do excepcional Memorial de Aires.

Em recente encontro literário, Chico Buarque e o terceiro autor que cito nessa parte, Milton Hatoum, brincavam, divertidos, de acusarem-se mutuamente de plágio, diante do lançamento do autor amazonense neste ano. Em Órfão do Eldorado, o premiado Milton Hatoum mantém seu capital regionalista que vem dando particularidade a suas narrativas de gosto mais clássico desde o festejado primeiro livro Relato de um certo Oriente. No último romance, um velho um tanto enlouquecido conta sua história e da mulher que perdera enquanto narra parte da história de fausto e tragédia de Manaus, no Amazonas, no momento em que a cidade fora considerada uma espécie de Eldorado.

Nos três autores – os dois primeiros tendo realizado uma forte guinada em suas trajetórias – fala-se do Brasil. As narrativas são reflexões sobre a formação do Brasil moderno, recuperam a tarefa que a crítica de base sociológica, em especial a de Roberto Schwarz, atribui à literatura de Machado de Assis. Para Schwarz, simplificando pifiamente seu pensamento, o grande valor do nosso “Mestre na periferia do capitalismo”, como se refere a Machado, seria ter sido, na criação ficcional um “intérprete do Brasil”.

O modelo machadiano aparece – apesar das diferenças existentes em cada um desses autores de dicção própria – como um mesmo recurso que lhes atribui o mérito que o Schwarz vê em nosso romancista do século XIX: ser um mestre a partir das próprias condições adversas do país ou da sociedade.

A verdade é que a tradição crítica marxista, a partir sobretudo dos trabalhos de Antonio Candido, tem sido a mais forte legitimadora, de forma inevitavelmente canônica, da literatura brasileira.

Não posso evitar a volta ao ensaio de Appadurai quando diz:

The many existing forms of Marxist critique are a valuable starting point, but they too must be willing to suspend their inner certainty about understanding world histories in advance 3 .

Na contramão dos três romances “clássicos”, um dos mais interessantes escritores contemporâneos, Bernardo Carvalho, lançou em 2009 seu 9o romance Filho da mãe.

Neste romance, o título, segundo o próprio autor perde completamente as possibilidades de entendimento plural se traduzido para qualquer outra língua, já que filho da mãe além do sentido linear que tem tudo a ver com a história do romance que fala de mães lutando pela vida de seus filhos, é um xingamento um pouco mais aceito socialmente do que filho da puta. No entanto, todo o enredo entrecruzado, desdobrando-se em múltiplas narrativas, como costuma fazer, passa-se na Rússia, especialmente em São Petersburgo e fala de um país destroçado por guerras fratricidas, especialmente a guerra da Tchetchênia, pela corrupção, pelo desalento, pela vivência de fracassos pessoais e nacionais. Bernardo Carvalho segue uma trajetória de absoluto desenraizamento em suas narrativas, já consagrada em romances como Teatro (1998) e As iniciais (1999) e radicalizado em Mongólia (2003), romance realizado a partir de prêmio ganho em Portugal que o levou a viajar por este país e depois narrar histórias de nômades que se movem sem deixar rastros.

Em todas as suas obras trava-se um combate ente real e ficcional. A arma da ficção é o discurso, a da realidade, o estranhamento. A luta entre adversários poderosos é instigada pelo autor que, de um lado, fornece suprimentos à curiosidade do leitor interessado em relatos de viagem através de culturas tão diversas e geografias peculiares. De outro, porém, cria um enredo tão simples quando emocionante. Ao final, o que garante a vitória da ficção, é a própria construção discursiva desenvolvida em manobras precisas do escritor hábil e competente. E é, sobretudo, na afirmação dos poderes do ficcional que está a importância de suas obras originais e instigantes.

Além de premiado no Brasil, Bernardo Carvalho tem sido publicado regularmente em Portugal e na França e traduzido em várias línguas. O escritor/jornalista garante, porém, que não dá para viver de literatura.

Uma terceira tendência tem se multiplicado com força em nossa ficção nos últimos anos. É a escritura realista das grandes cidades contemporâneas, especialmente narrativas da violência e da desigualdade. O romance Cidade de Deus, (de 1997) de Paulo Lins, transformado em filme que circulou mundo afora, firmou as possibilidades de romances, contos e novelas que falam desta faceta da vida brasileira, mas que em muito se assemelha à vida de quase todas as grandes cidades mundo afora.

Escritores da periferia, como Ferrez, também autor de raps, vindo de área pobre do entorno de São Paulo, utilizam-se desses recursos ao realismo cru. O foco na realidade nacional transforma-se rapidamente numa espécie de passe-partout abrindo caminho para viagens globais e com um olho ambicioso no cinema. Apesar da dificuldade em ser original ao optar por esta proposta, os resultados em termos de público leitor e vendas de direitos a outras mídias têm sido satisfatórios.

Apontadas estas três tendências dominantes, todas de alguma forma exitosas, resta olharmos rapidamente para o trajeto e as possibilidades que se oferecem aos jovens autores que têm surgido com surpreendente frequência.

Em relação à literatura de autores emergentes, cabe, de saída, observar a multiplicidade de possibilidades que vem se revelando como característica principal. Ainda que com leve predomínio de um tom levemente autocentrado, preferindo frequentemente a si mesmo como tema, o que os faz com que sejam frequentemente acusados de praticar uma literatura egótica, estilos, dicções, temas os mais variados convivem na produção literária do século XXI.

Ao falar desses jovens escritores, ou outros menos jovens mas ainda firmando suas carreiras, vale conferir as novas estratégias de divulgação, circulação e consolidação de sua participação na vida literária brasileira. Para tal, o uso das novas tecnologias disponíveis na web mostra-se uma possibilidade nova, capaz de mudar toda a relação entre autor, editor e público leitor. Os blogs de escritores e de críticos, as revistas virtuais, os sites especializados além de novas ferramentas como o twitter ou espaços virtuais como o facebook, vêm se mostrando instrumental indispensável. No cyberspace surge uma nova vida literária – com amizades, brigas, compadrismo ou perseguições – que configuram, hoje, novas formas de escrita, de leitura, de crítica e, sobretudo de produção e circulação literárias. A maior vantagem que os recursos da internet têm apresentado para os autores que sabem usá-los positivamente, tem sido a independência em relação aos mediadores tradicionais não só no que diz respeito ao processo editorial como ao de legitimação, detido por editores e pela crítica acadêmica. Este processo revela um desejo de ultrapassar as instâncias mediadoras indispensáveis até o final do século XX. Ultrapassar, no entanto, não significa recusar. Toda legitimação é bem vinda, mas os novos autores estão determinados a não esperar por ela. A diferença entre o que aponto como ultrapassar e a recusa marca uma grande diferença entre a atitude contemporânea e aquela vivida por alguns autores dos anos 70, especialmente os da chamada “Literatura marginal” dos anos de regime autoritário.

Hoje, editores pescam na web. Os autores, mesmo inéditos, submetem-se, imediatamente, à crítica – às vezes impiedosa de seus pares.

A produção literária contemporânea não tem como proposta ideológica circular fora do sistema mercadológico ou midiático, mas está determinada a não esperar pela autorização dos representantes deste sistema. O melhor exemplo dessa possibilidade é Ana Paula Maia que lançou o terceiro romance que escreveu, Entre rinhas de cães e porcos abatidos, em seu site, como um “Folhetim Pulp”. Com a recepção e os comentários recebidos, a autora foi convidada a publicar o segundo romance, até então sem editora, pelo selo Língua Geral e, logo depois, o terceiro romance que citamos, acrescido de uma excelente novela: “O trabalho sujo dos outros” pela editora major Record, firmando-se como uma das mais originais escritoras contemporâneas.

Essas novas formas de circulação vêm impondo à produção literária e artística novos formatos, tributários, várias vezes da linguagem própria à internet. Assim como os quadrinhos (HQ), os espaços virtuais deixam marcas na própria estética literária até mesmo quando os escritos migram da internet para o papel.

Mesmo o sistema de premiação vem encontrando no espaço da internet versões originais, como a “Copa de Literatura”, já em sua segunda edição, com participação de escritores e críticos funcionando como jurados da produção literária do ano. Organizado à maneira das copas de futebol a Copa de Literatura tem como grande prêmio, circular no cybersapace e simplesmente: ganhar a copa.

Num país de dimensões continentais como o Brasil e onde a jovem democracia ainda não diminuiu de forma expressiva a desigualdade social, a circulação através da web, capaz de neutralizar as grandes distâncias e o afastamento dos tradicionais centros produtores de cultura (São Paulo e Rio de Janeiro, em especial, Belo Horizonte, Recife e Porto Alegre, em seguida, cada um com seu perfil) impõe uma nova cartografia literária ao mesmo tempo em que estabelece novos fluxos de circulação artística na relação entre a produção artística local e global. E para viajar até a Europa não é preciso pagar passagem.

 

* Beatriz Resende é pesquisadora do CNPq e do Programa Avançado de Cultura Contemporânea -PACC/UFRJ e professora do Departamento de Teoria do Teatro da Escola de Teatro da UNIRIO. Atualmente é Coordenadora do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ.


1 APPADURAI, Arjun. “Grassroots Globalization and the Research Imagination”. In: APPADURAI, A. (ed.) Globalization. Duke Univ. Press, 2 2001. Pág.5.
2 IDEM, Ibidem, pág. 14.
3 IDEM, Ibidem, pág. 19.

 

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A dialética do entusiasmo | de Paulo Roberto Pires

Duas almas moram
no teu peito humano,
nas entranhas tuas.
Evita o insano
esforço da escolha:
precisas das duas.
Pra ser um, amigo,
deves ter contigo
conflito incessante:
um lado elevado,
bonito, elegante;
o outro, enfezado
e sujo, aos molambos.
Precisas de ambos.
Bertolt Brecht, epílogo de Santa Joana dos Matadouros 2

Este ensaio pode ser melhor entendido como parte de minha pesquisa de doutorado, Vida literária no Brasil 2.0. Em explícito diálogo com Brito Broca, pretendo fazer na tese um retrato de época, partindo do pressuposto de que a internet tem papel central na reconstrução da vida literária brasileira na virada dos 1990 para os 2000.

Se, no momento imediatamente pós-ditadura, as artes plásticas, a música e o cinema reconstituíram com vigor suas respectivas “cenas”, na literatura a produção contemporânea só se delineia mais tarde. E é em torno de blogs e comunidades que escritores começam a aparecer, para a sociedade, a universidade, o mercado e até mesmo para eles próprios, como integrantes de um conjunto de publicações, iniciativas, eventos e até atitudes que já foi chamado “nova literatura”.

No texto que se segue, aproximo Machado de Assis e Walter Benjamin para tentar demonstrar, historicamente, como a sedução da tecnologia teve grande importância para eles. E, oswaldianamente, buscar em ambos “a contribuição milionária de todos os erros” – que ilumina o presente.

Prólogo

“Seventeen copies sold, of which eleven at trade price
to free circulating libraries beyond the seas.
Getting known”
S. Beckett, Krapp’s last tape

O jovem escritor atravessa a madrugada teclando. Entre um comentário no Twitter e uma passeada por sites, constrói sua narrativa. “Escritor”, aliás, é como ele se vê, como ele quer que o vejam. E assim o veem os leitores de seu blog, um blog literário porque assim ele o batizou e onde, naquela mesma madrugada, ele postou o que acabou de escrever. Sim, pois o ato contínuo de sua escrita não é a reescrita ou a ponderação, mas a publicação. Na mesma máquina, ele escreve e publica. E ainda entra em contato com as primeiras reações de seus leitores, que comentam seu texto. Alguns só veem defeitos. E o escritor, que assim se chama por conta própria, não o esqueçamos, descobre a crítica – não a ponderação ou o “diálogo entre homens inteligentes”, mas osnark 3 , o ataque selvagem e predador. Intenso e pouco meditado como o texto com que acaba de se expor ao mundo.

O jovem escritor, aliás, acabou de postar um diagnóstico da morte definitiva da literatura. Ou melhor, destacando a superioridade dos novos meios, da web, do computador e até do celular sobre os livros. Seus argumentos são temerários e não há uma frase em que ele, utopicamente, não defenda que a literatura se espalhe pelo mundo. É o fim do copyright, a liberdade radical de acesso à informação, a literatura para quem quer e precisa – literatura que, a princípio, assim se autodenomina.

Assim, o jovem escritor ganha um público. E, lançado na rede como as velhas mensagens em garrafas, seu pensamento selvagem cai nos olhos de um editor, destes que publicam livros de papel mas não tiram o olho da internet, das revistas literárias, das publicações independentes, enfim, de todos os lugares onde possa encontrar novos talentos e frescor. Afinal, pelo menos em tese, ele vive disso. E o jovem escritor, chamado por e-mail a uma conversa, acaba assinando um contrato, destes que preveem pagamentos de royalties, resultam em livros vendidos em livrarias e resenhados nos jornais – e, é claro, também nos sites e nos blogs.

Depois de algumas críticas positivas de gente importante, algumas entrevistas e até palestras sobre seu “processo criativo”, o jovem escritor ganha um prêmio. Agora não é só mais ele, os leitores de seu blog e seu editor: praticamente todo mundo se refere a ele como “escritor”. E ele mesmo acaba tomando um susto quando, ao viajar para uma feira literária, escreve na ficha do hotel “escritor” onde deveria preencher “advogado”, já que foi essa a faculdade que acabara de terminar a duras penas.

Em uma destas feiras literárias, o jovem escritor é perguntado sobre a importância da web em seu trabalho. “Nenhuma”, afirma, categórico. Sua vida não deve ter mais nada a ver com o mundo dos blogs. Aliás, no blog ele só posta notícias sobre seus próprios escritos, aos quais se refere como “seu trabalho”: críticas de jornais (as amargas, não), participações em feiras, cursos livres de escrita criativa, palestras etc. A máquina de escrever, que também já funcionava como máquina de se comunicar e publicar, virou máquina de promover. Afinal, quem vai levar a sério um escritor que não tem livros e só publica nas nuvens virtuais? Já viu alguém ganhar concurso literário só com blog e clouds? Fala sério.

***

A história do jovem escritor é uma colagem das trajetórias de diversos autores da recente literatura brasileira. Dramatiza a ambivalência dos novos meios e sua importância na reconstrução da vida literária dos últimos dez anos. É marcada pela precipitação, pelos juízos mal formados, pela incompreensão dos tempos mais lentos e tradicionalmente associados ao processo de construção de um livro e, a longo prazo, de um autor.
Melhor assim, pois, ainda que precário, seu começo de carreira é uma realidade imediatamente viável, tem receptividade, não é o poço de “incomunicabilidade” e tédio que marcou os escritores que eram jovens nos anos 1980 e na primeira metade dos 1990.

Pior assim, pois sua carreira começa quase sempre meio torta, precariamente meditada, inflada pela velocidade do reconhecimento e dos brilharecos literários, os mesmos que enchiam de ambição e vaidade os jovens escritores na virada do século XIX para o XX. É o beletrista 2.0, a versão digital do fanqueiro literário retratado por Machado numa de suas Aquarelas.

O mundo tecnológico da escrita e da publicação é hoje um mundo de superposições: coexistem nele lógicas completamente distintas e muitas vezes conflitantes. Pois se a literatura pode hoje chegar por diversos caminhos e de diversas formas, sua legitimação ainda se dá nos circuitos tradicionais: publicação em revistas literárias, reconhecimento entre os pares, publicação para o público mais amplo, reconhecimento da crítica, construção de um “nome”, premiações, trânsito acadêmico etc…

Se o jovem escritor, nosso dileto personagem, começa prescindindo disso tudo, dificilmente abrirá mão de, mesmo por um atalho, trilhar a estrada principal. E assim o é, diga-se de passagem, em todo o mundo. Então, o que mudou? O tal do atalho, apenas? Eu diria que muito mais. Pois este mundo tecnológico da escrita e da publicação é marcado por uma impetuosidade histórica, que moveu escritores e intelectuais seduzidos por novas mídias ou pelo novo apelo de mídias consagradas.

Assim é com nosso jovem escritor, como assim foi com Machado de Assis e Walter Benjamin, dois autores que dramatizaram de forma exemplar esta ambiguidade do entusiasmo, força que anima arquitetos e demolidores e que perde importância e acuidade se lida apenas pelo lado triunfalista da construção ou pelo desencanto desvitalizado das ruínas. É na tensão, pois, que se faz o argumento.

1. O erro de Machado

O jornal e o livro é, justificadamente, considerado um texto “menor” de Machado de Assis. Posto em perspectiva da obra que viria, o ensaio publicado no Correio Mercantil em janeiro de 1859 tem mais valor histórico do que literário. Dá testemunho de um escritor em formação, um jovem de 19 para 20 anos tateando caminhos mais orientado por certezas do que pela suspensão delas – o que, finalmente, seria a marca de sua obra sob diversos aspectos 4 .

A aposta de Machado traz o desassombro próprio da pouca idade, como o nosso jovem escritor-blogueiro: eivado por hipérboles e grandiloquência, Machado afirma a superioridade do jornal sobre o livro, do posicionamento imediato sobre o mais longamente meditado. Este “equívoco” é, no entanto, o que mais me interessa, pois expressa o fascínio de um jovem intelectual pela técnica de reprodução mais em voga em sua época.

Não foi por capricho ou acaso que Machado escolheu para epígrafe de O jornal e o livro uma citação de Eugène Pelletan (1813-1884). O pensador francês, escritor, polemista e republicano ardente, exerceu considerável influência no Brasil com um discurso altissonante que fazia do progresso um Deus no qual deveria espelhar-se o homem em busca de uma comunhão com seu tempo. Ao apontar sua influência sobre Machado, Jean-Michel Massa não esconde a fragilidade das ideias que o fascinavam, indigestamente misturadas com “a eloqüência de Hugo”:
Homem de vastas sínteses, Pelletan abarcava de um só relance o passado, o presente o futuro. Outros dirão sobre o valor de sua visão de mundo, mas seu sincretismo generoso de idéias, em que misturava tumultuosamente todos os domínios do conhecimento, seduzira então numerosos espíritos eminentes. Machado de Assis, sensível ainda a todas as correntes, encontrou nele uma fé ardente e talvez uma resposta a algumas das questões que a si mesmo colocava. 5

A descrição de Massa corresponde ao peculiar “método” de exposição de Machado neste texto. Originalmente publicado em duas partes, o artigo evolui num galope, às vezes atabalhoado, para mostrar como a humanidade vem, através dos séculos, “em busca de um meio de propagar e perpetuar a idéia”. Das inscrições em pedra ao primeiro livro, estes meios de reprodução técnica se sucedem vertiginosamente na narrativa do atilado polemista. Trata-se quase de um épico em que escrita, arquitetura e arte convergem como patrimônio comum da humanidade.

Para que se tenha uma idéia do quanto este percurso é pontuado por saltos e conclusões precipitadas, Machado considera a arquitetura o resultado de uma progressão da comunicação primeira, nascida para “transformar em preceito, em ordem, o que eram então partos grotescos da fantasia dos povos”. Aperfeiçoando-se, a arte de construir e dar sentido a uma comunidade encontrará no livro um sucedâneo como forma de transmissão das ideias e das representações dos povos.

“O edifício, manifestando uma idéia, não passava de uma coisa local, estreita”, escreve Machado, lembrando um mundo em que os referenciais eram bem definidos, estáticos e locais. “O vivo procurava-o para ler a idéia do morto; o livro, pelo contrário, vem trazer à raça existente o pensamento da raça aniquilada” . 6

Ocorre aí, argumenta ele, uma revolução sem precedentes. Já não é mais preciso ir ao monumento para dar conta da História, pois o livro é a forma portátil para a difusão do “pensamento da raça aniquilada”. Esta passagem é o início da democratização que Machado vê se materializar plenamente no impulso que toma a imprensa. Trata-se, no seu entender, de um processo de radical democratização do conhecimento, com consequências imediatamente políticas – que, no caso de Machado, é a celebração dos ideais republicanos 7 , diretamente importados da França :
O jornal apareceu, trazendo em si o gérmen de uma revolução. Essa revolução não é só literária, é também social, é econômica, porque é um movimento da humanidade abalando todas as suas eminências, a reação do espírito humano sobre as fórmulas existentes do mundo literário, do mundo econômico e do mundo social. 8

Há aí uma aguda consciência de que a técnica promove uma ampla redefinição de referenciais na cultura. E, mais ainda, a certeza de que esta revolução tem consequências políticas imediatas – Machado vê nas transformações a potência democratizante da república como força legítima de aniquilamento da monarquia.

Indo ainda mais além, O jornal e o livro aponta ainda para a redefinição do papel social do escritor. Até então ligada às alturas da criação artística, a criação literária entra no circuito da mercadoria e o escritor é instado por Machado a se alinhar à nova ordem, deixando de lado inclusive qualquer nostalgia das musas vaporosas:
O jornal, abalando o globo, fazendo uma revolução na ordem social, tem ainda a vantagem de dar uma posição ao homem de letras; porque ele diz ao talento: “Trabalha! vive pela idéia e cumpres a lei da criação!” Seria melhor a existência parasita dos tempos passados, em que a consciência sangrava quando o talento comprava uma refeição por um soneto?

Reconhecendo, lucidamente, o exagero de seus argumentos, Machado assume uma posição tática – “se procuro demonstrar a possibilidade do aniquilamento do livro diante do jornal, é porque o jornal é uma expressão, é um sintoma de democracia” – e termina com o ponto que, talvez, seja o mais radical do texto. Vale a transcrição do argumento que desafia frontalmente a distinção que faz a identidade do escritor em sua época:
O talento sobe à tribuna comum; a indústria eleva- se à altura de instituição; e o titão popular, sacudindo por toda a parte os princípios inveterados das fórmulas governativas, talha com a espada da razão o manto dos dogmas novos. É a luz de uma aurora fecunda que se derrama pelo horizonte. Preparar a humanidade para saudar o sol que vai nascer, — eis a obra das civilizações modernas. 9

Foi este mesmo Machado, ou melhor, um outro Machado que deste nasceu para se consagrar como o grande autor de seu tempo, que respondeu com eloquente silêncio à enquete que João do Rio empreendeu em O momento literário. Publicado em 1904 o livro reuniu entrevistas com escritores sobre a importância do jornalismo para a literatura e a influência daquele sobre esta. Depois de receber o autor de Cinematógrafo “com um acesso de gentilezas, que nele escondem sempre uma pequena perturbação” 10 , Machado calou-se. “O fogo, a confiança, o futuro, o progresso” do jovem polemista deram lugar ao “tédio à controvérsia” do Conselheiro Aires.

1.1. Machado reloaded

Machado olha a tradição do ponto de vista da novidade. Ainda que respeitoso, crê pouco que os grandes edifícios e monumentos sejam suficientes para transmitir o patrimônio da civilização. A cultura das catedrais, da pedra, só vive plenamente porque tornada portátil no livro e, de forma ainda mais leve e fluida, na imprensa, o que ele entende como o mais democrático dos meios.

Não é forçado relacionar esta linha de argumentação com os discursos que hoje vemos sobre as possibilidades de democratização do patrimônio cultural a partir dos novos meios de informação. E o que vacina tal paralelo do anacronismo puro e simples é uma lógica que entendo como a “dialética do entusiasmo” e que, a meu ver, está permanentemente relacionada aos embates e intercessões entre os bens culturais da tradição, qualquer tradição, e as inovações tecnológicas, sobretudo as novas tecnologias da informação.

Se nosso jovem escritor-blogueiro estivesse plenamente engajado em causas de seu tempo – e a ausência de uma ideologia de fundo é o que o distingue talvez mais decisivamente do jovem Machado, que apesar do fervor liberal quase religioso age de acordo com um conjunto de ideias – poderia defender tranquilamente que o livro e o jornal são praticamente letra morta diante do universo da web e, por exemplo, da polêmica digitalização global dos conteúdos impressos promovida pelo Google .11

Não se trata, diferentemente do que pensava Machado, embebido da ideologia do progresso, de uma sucessão de vitórias rumo ao aperfeiçoamento da humanidade. Mas, antes, de cortes profundos e descontinuidades que refazem o jogo de forças entre um conjunto de práticas e obras e tecnologias que as desorganizam e reorganizam constantemente.

A visada de Machado sobre a tecnologia de informação de seu tempo contempla, portanto, pelo menos três rupturas fundadoras da história da cultura tal como ela se configuraria a partir do século XIX: a portabilidade dos conteúdos (com o livro atuando como um primeiro difusor da cultura até então monumentalizada, tornando-a um patrimônio comum), a criação dos veículos de massa (e a consequente profissionalização e remuneração da escrita) e, num raciocínio abertamente controverso, a possibilidade de que o receptor torne-se emissor (“o talento sobe à tribuna comum”, escreve ele).

Se quisermos, boa parte da polêmica e da indefinição provocada pela multiplicação de vozes da web passa exatamente por este tripé – devidamente turbinado pelas reinvenções de parâmetros das décadas mais recentes. A leveza da tecnologia (na multiplicação de devices, do celular ao e-reader, passando pelos computadores cada vez mais portáteis) permite uma expansão ilimitada dos veículos de difusão (dos jornais aos blogs, Twitter e toda a chamada “mídia social”) e põe em curto-circuito o tradicional vetor dos meios de comunicação (pondo em questão as noções de autoria, de legitimação da escrita e, até mesmo, de literatura).

Está precariamente delimitado um território pantanoso que, pouco mais de 60 anos mais tarde, também será trilhado de forma errante por Walter Benjamin, a quem seguiremos agora como ele fez com o homem das multidões de Poe.

2. A aposta de Benjamin

Em 1928, podia-se ler o nome de Walter Benjamin na capa de dois livros singulares lançados na Alemanha: A origem do drama barroco alemão e Rua de mão única. O primeiro, rejeitado como prova de livre-docência pelo Departamento de Estética da Universidade de Frankfurt, é uma intricada meditação teórica que vai ao fundo da cultura alemã clássica usando bússolas jamais imaginadas para aqueles caminhos; o segundo, de gênero indefinível, usa a montagem de corte surrealista para dar conta do geral e do particular, do episódico e do filosófico, da complexidade de um mundo já coalhado de informação e movido por máquinas.

Benjamin é tão alheio a toda forma imediata, que nem mesmo pensa em se confrontar com ela. Ele nem registra a impressão de qualquer forma dessa imediaticidade, nem se abandona ao pensamento abstrato dominante. O seu material próprio é o que passou: pra ele, o conhecimento nasce das ruínas,
escreveu Siegfried Kracauer numa certeira resenha dos dois livros publicada em cima do lance, em julho daquele ano. Benjamin era um desconhecido e seus textos, ainda no dizer de Kracauer, “são conjuntamente a expressão de um tipo de pensamento estranho ao desta época e que, em sua origem, é semelhante aos escritos talmúdicos e aos tratados da Idade Média” .12

O jovem autor era desde então chegado a uma síntese inusitada. Processava com desenvoltura e originalidade o idealismo e o romantismo alemães, cinema, literatura de entretenimento, traduções de Proust para o alemão, marxismo e judaísmo. Amava Kafka e o camundongo Mickey, Brecht e romance policial. Mais do que um simples gosto pelo ecletismo, Benjamin via na superposição temporalidades e referências um retrato indireto e mediado – e por isso fiel – do tempo que vivia.

Para garantir a precária sobrevivência em meio a um casamento instável, filho para criar e amores impossíveis para a administrar, trabalhou compulsivamente como jornalista e, entre 1929 e 1932, produziu, escreveu e atuou como locutor em mais de 80 programas de rádio em Berlim e Frankfurt. Numa carta a Gerschom Scholem, datada de 26 de junho de 1932, Benjamin procura explicar sua situação:
As formas literárias de expressão que meu pensamento forjou para si mesmo ao longo da última década têm sido totalmente condicionadas pelas medidas preventivas e antídotos a que tenho que recorrer para conter a desintegração que ameaça constantemente meu pensamento como resultado de tais contingências. E ainda que muitos – ou um numero considerável – de meus trabalhos tenham sido vitórias em pequena escala, eles foram ofuscados por derrotas de grandes proporções. 13

Graças a estes fracassos exemplares, Benjamin lambuzou-se das precárias vivências de seu tempo. E, impregnado por elas, produziu algumas das mais contundentes reflexões sobre as relações entre cultura e técnica, principalmente, a meu ver, por combinar sua extraordinária inteligência e originalidade com uma critica feita de dentro, na qual idealismo e pragmatismo mantêm tesa a corda dos argumentos, o perde-ganha constitutivo de uma cultura tecnológica em que construções e ruínas, arquitetos e demolidores são mais vizinhos do que pode parecer em termos ideais.

Experiência e pobreza (1933), O autor como produtor (1934) e A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (três versões entre 1935-1939, a última delas póstuma), são os textos em que Benjamin expõe, tão didaticamente quanto possível em sua obra, o resultado destas reflexões 14. Michel Löwy refere-se a esta produção, não sem desconfiança, como “parêntese progressista” e “período experimental”. Preocupa-se em destacar que a influência soviética pode ter causado distorções no pensamento de Benjamin, sobretudo pelo tom programático de O autor como produtor, mas acerta ao calibrar a visão do filósofo: “o que ele (Benjamin) recusa apaixonada e obstinadamente é o mito mortalmente perigoso de que o desenvolvimento técnico trará por si mesmo uma melhora da condição social e da liberdade dos homens” .15

Nestes ensaios, bem como em fragmentos e textos dispersos relacionados a eles, Benjamin desenvolve alguns dos conceitos-chave de sua obra, que podem ser mapeados pelos seguintes pares dialéticos, sempre representativos de um perde-ganha impossível de ser rompido e que procuro resumir a seguir:

Civilização/Barbárie
Esta é uma das tensões fundamentais para compreender a obra de Benjamin. “Não há um documento de cultura que não, seja, ao mesmo tempo, um documento de barbárie”, afirma a sétima tese de Sobre o conceito de História, referindo-se ao mundo submetido à ideologia do progresso e à tirania da técnica. Mas este mundo é também o que possibilita uma “nova barbárie” da qual dão testemunho Brecht, Le Corbusier e Klee. Perde e ganha.

Experiência/Vivência
O mundo moderno destitui o homem de sua experiência, da tradição passada de geração em geração, entregando-o à vacuidade das vivências. Mas a vida pobre em experiência é, também, a tábula rasa para a eclosão do novo.

Autor/Produtor
Para ser transformador, subverter a ordem que o oprime em particular e ao homem em geral, o autor deve ter consciência plena dos meios de produção e trabalhar para assumir o seu controle em bases totalmente distintas da estrutura “reacionária” da lógica capitalista.

Público/Produtor
Ao formar um público, os meios de reprodução técnica criam uma massa amorfa e sem opinião, que simplesmente consome mensagens e bens. O autor que se assume como produtor vai incluir o público neste processo, eliminando a distância entre eles.

Aura/Reprodução
A aura é o acontecimento único da obra de arte, que se perde para sempre com a reprodução. Mas a reprodução engendra por sua vez uma nova magia (as condicionantes de magia e técnica são históricas, escreve ele em Pequena história da fotografia) e a fotografia, sobretudo em seu início, dá testemunho deste potencial aurático.

2.1. O progresso dos desconfiados

Se o jovem Machado de Assis via no republicanismo o horizonte de libertação do meio de comunicação privilegiado de seu tempo, o jornal, Walter Benjamin apostava no marxismo como o antídoto revolucionário para as estruturas de dominação que já enxergava no jornal, no rádio e, com espantosa lucidez, no cinema. E como o dado e insubmissão fundamental para a prática artística transformadora.

O marxismo está para O autor como produtor assim como o liberalismo para O jornal e o livro. São, cada qual a seu tempo e princípio, o horizonte político destes intelectuais. E, também, turvam os argumentos com acessos doutrinários e jargões que, na perspectiva histórica que temos hoje, podem ganhar uma escala mais justa. Machado e Benjamin acertam menos pela argumentação do que pela formulação dos problemas.

Em notas tomadas entre julho e outubro de 1934, numa temporada passada com Brecht na casa do dramaturgo em Svendborg, na Dinamarca, Benjamin assim sintetiza a tese central de O autor como produtor, que discutiu à exaustão com o amigo:
Em meu ensaio, desenvolvo a teoria de que um critério decisivo para a função revolucionária da literatura reside na medida em que os avanços técnicos levam a uma transformação das formas artísticas e, consequentemente, dos meios de produção intelectual.16

No jargão brechtiano a que recorre, Benjamin aponta, no geral, para a necessidade de uma “refuncionalização” do papel do escritor. E aqui o que menos interessa, a meu ver, é o inegável fantasma da doutrina soviética, sendo mais importante, hoje, lembrar que a “refuncionalização” é proposta por um intelectual que, como vimos, experimentou as principais formas de expressão e comunicação mobilizadas pelo capitalismo.

O texto constrói-se a partir de uma oposição do escritor rotineiro ao escritor progressista. O primeiro é escravo da diversão pura e simples e não reconhece a liberdade; o segundo é dominado pela “tendência”, a doutrina política, e pode confundi-la com a liberdade. O importante, observa Benjamin, é que “uma obra literária só pode ser correta do ponto de vista político quando for também correta do ponto de vista literário”. E este debate da “qualidade” não deve residir na oposição forma/conteúdo. Benjamin prefere situar a obra literária dentro das relações de produção de um época e não em relação a elas:
É vasto o horizonte a partir do qual temos que repensar a idéia de formas ou gêneros literários em função dos fatos técnicos de nossa situação atual, se quisermos alcançar as formas de expressão adequadas às energias literárias de nosso tempo. Nem sempre houve romances no passado, e eles não precisarão existir sempre.17

O texto dá conta de um “processo de fusão de formas literárias” diretamente relacionado com os avanços técnicos, a ponto de provocar a dissolução dos gêneros literários e, levando o raciocínio ao limite, à extinção de toda uma ideia de literatura. Um raciocínio que se ouve com nitidez neste início de século XXI nas palavras dos evangelistas de uma cultura da convergência 18 e, num nível menos analítico, nas discussões 19 sobre os novos formatos para os livros, desde o e-book até as experiências integrando texto, som e imagem nos vooks(vídeo+book).

No ponto crucial do texto, Benjamin aponta propriamente para a transformação do leitor em autor e do autor em produtor. Vale aqui a citação um pouco mais longa, em que, sem se identificar, cita um texto de sua autoria, O jornal , publicado no periódico Der Öffentliche Dienst, de Zurique, em março de 1934.

Com a assimilação indiscriminada dos fatos cresce também a assimilação indiscriminada de leitores, que se vêem instantaneamente elevados à categoria de colaboradores. Mas há um elemento dialético nesse fenômeno: o declínio da dimensão literária na imprensa burguesa revela-se a fórmula de sua renovação na imprensa soviética. Na medida em que essa dimensão ganha em extensão o que perde em profundidade, a distinção convencional entre autor e o público, que a imprensa burguesa preserva artificialmente, começa a desaparecer na imprensa soviética. Nela […] o leitor tem acesso à condição de autor […} O direito de exercer a profissão literária não mais se funda numa formação especializada, e sim numa formação politécnica”. 20

Ainda neste texto, Benjamin afirmava que “diante do fato de que a escrita ganha em fôlego o que perde em profundidade, a distinção convencional entre autor e público mantida pela imprensa […] está desaparecendo de uma forma socialmente desejável”. 21

Tal constatação é perfeitamente consonante com o raciocínio colaborativo que passou a caracterizar os meios de comunicação a partir do que o editor e guru da internet Tim O’Reilly passou a chamar, em 2005, de web 2.0., a redeparticipativa 22. Esta dimensão colaborativa desperta reações sempre apaixonadas, podendo ser balizadas pelo otimismo de um Pierre Lévy e seu conceito de “inteligência coletiva” (que afirma o poder democrático inerente ao modo de funcionamento da rede, minimizando em larga escala as implicações propriamente políticas) até o apocalipse de Andrew Keen no panfleto A cultura do amador (que prevê nada menos do que a derrocada do patrimônio cultural, do jornalismo às artes, a partir da possibilidade de acesso indiscriminado à produção de mensagens).

Permeia tal raciocínio um otimismo que não se encontra em outra parte da obra de Benjamin, sempre detalhista ao matizar argumentos e conclusões. Um otimismo propriamente revolucionário, que ganha o benefício da dúvida de ser nada mais do que uma posição tática, necessária para que se ganhe posições na discussão.

O que intriga e, finalmente, leva à reflexão que dá título a este texto é a constante, no Brasil de meados do século XIX e na Alemanha das primeiras décadas do XX, de um fascínio dos intelectuais pela tecnologia. Fascínio que, diga-se já, é consonante a momentos de importantes rupturas. Mas que apontam, desde sempre, para uma avaliação crítica ambígua.

3. A dialética do entusiasmo

Um dos princípios básicos das tecnologias da informação contemporâneas é a sua “useabilidade” ou seu estatuto “amigável”, ou seja, a possibilidade de uso imediato, sem a necessidade de conhecimento específico aprofundado. Trata-se, como se pode supor, de um considerável catalisador para que se passe da ideia à ação, do planejamento ao ato. Não é difícil prever, portanto, o impacto deste tipo de mecanismo sobre aqueles que têm na escrita seu horizonte profissional ou de criação estética.

Se, de alguma forma, realizou-se a portabilidade democratizante de Machado e a refuncionalização entre autores e produtores almejada por Benjamin, esta não foi certamente a concretização dos ideários republicano e socialista. Com seu potencial de demolição/reconstrução, a técnica não acomoda pacificamente a reflexão e, muitas vezes, a exclui do processo. Mas, ao convidar à criação, estabelece uma tensão permanente que prefiro chamar “dialética do entusiasmo”.

A idéia do bem acompanhado do afeto se chama entusiasmo”, afirma Kant sobre um conceito que nasce embebido em ambiguidade. Alia o imponderável (“o entusiasmo não é de forma alguma digno da satisfação da razão”) a um valor moral prezado pela humanidade: “este estado da alma parece sublime a tal ponto que, geralmente, pretende-se ter certeza de que sem ele nada de importante possa se obtido” 23 . Ainda segundo o filósofo, o entusiasmo seria um afeto “do tipo corajoso”, isto é, “que nos faz tomar consciência de nossas forças nos permitindo vencer toda resistência”.

Pois é precisamente este gênero de afeto que viceja quando o homem tecnológico se vê privado de suas referências constitutivas tendo à mão a possibilidade de, a partir desta “terra arrasada”, erguer outro tipo de parâmetro. Machado comemora, com o aumento de importância da imprensa, “a reação do espírito humano sobre as fórmulas existentes do mundo literário, do mundo econômico e do mundo social”. O “novo bárbaro” de Benjamin comemora o empobrecimento da experiência, “que o impele para ir para a frente, a começar de novo, a contentar-se com pouco, a construir com pouco, sem olhar nem para a direita nem para a esquerda” 24 .

Assim se anima a escrita concebida nos meios de informação e/ou veiculada através deles. A aceleração das etapas que vão da escrita à publicação e distribuição é produto direto deste “afeto corajoso”: o entusiasmo de nosso jovem escritor ignora a temporalidade da criação literária, suas relações com o passado e a possibilidade de traçar caminhos futuros. Ele “simplesmente escreve” (aspas necessárias e fundamentais).

A pluralidade de vozes que advém daí é também, e de um certo ponto de vista, cacofonia. Desigualdade brutal no resultado dos textos, pretensão e mesmo ignorância são alguns dos diagnósticos para a vida literária em circulação acelerada. Mas, como lembra Kant, há em torno destes movimentos impetuosos um halo de grandeza, a certeza subliminar de que o entusiasmo é a marca fundamental de todo empreendimento que se pretenda importante. A certeza, em suma, de que um de suas principais fraquezas é, finalmente, sua força fundamental.

Quando se perde de vista um dos pontos de vista da questão, a discussão do que chamo “vida literária 2.0” perde completamente o sentido. Se assumirmos que o entusiasmo é o pai absoluto e suficiente de toda criação, qualquer análise da literatura contemporânea se transforma em nada mais do que a crônica, triunfalista, de um momento de puro e improvável renascimento da escrita literária no Brasil dos anos 2000. Se, ao contrário, assumirmos que o entusiasmo “não é de forma alguma digno da satisfação da razão” e que, portanto, propicia o mero espontaneísmo, transformamos nossa narrativa crítica num check-list viciado do cânone e da vida literária. Um filme reprisado no qual sabemos muito bem o que acontece no fim: morremos todos, de inanição, pela falta de apetite em enfrentar a produção contemporânea em suas oscilações.

 

Bibliografia


ASSIS, Machado de. Obra completa em quatro volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008.

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_____. Selected writings – Volume 2, 1927-1934. Cambridge: Harvard University Press, 1999.

_____. Selected writings – Volume 3, 1933-1938. Cambridge: Harvard University Press, 2002.

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KANT, Emmanuel. Critique de la faculté de juger. Paris: Gallimard, 1985.

KEEN, Andrew. O culto do amador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.

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_____.Romantismo e messianismo. São Paulo: Perspectiva, 2008.

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PRADO, Antonio Arnoni. “Brito Broca ou injustiças de um revoltado”, in: Trincheira, palco e letras. São Paulo: Cosac Naify, 2004.

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RIO, João do. O momento literário. Consultado em
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=2144


* Paulo Roberto Pires é aluno do Curso de Doutorado em Ciência da Literatura (Programa de Literatura Comparada) da Faculdade de Letras da UFRJ.

 

1 Trabalho apresentado ao professor André Bueno no curso Historiografia e Crítica Literária, Faculdade de Letras da UFRJ no 2º semestre de 2009.

2Tradução de Leandro Konder.

3 Snark é o termo que David Denby, articulista da New Yorker, usa para designar a crítica virulenta, pessoal e precariamente fundamentada que marca o mundo dos blogs e dos comentários na internet. Sem significado preciso, “snark” faz referência a um dos seres non-sense criados por Lewis Carrol.

4 Aqui é importante lembrar o estudo de Kátia Muricy, A razão cética – Machado de Assis e as questões de seu tempo.

5 MASSA, p.190.

6 ASSIS, p.1008.

7 Nas palavras do próprio escritor: “O direito da força, o direito da autoridade bastarda consubstanciada nas individualidades dinásticas vai cair. Os reis já não têm púrpura, envolvem-se nas constituições. As constituições são os tratados de paz celebrados entre a potência popular e a potência monárquica”.

8 Idem, p. 1009.

9 Idem, p.1012.

10 RIO, p. 98.

11 Para uma discussão completa ver o texto de Robert Darnton, “O Google o futuro dos livros” in: Serrote no 1, p.23.

12 KRACAUER, p. 279.

13 BENJAMIN, 1999, p. 844.

14 Aqui os três textos serão citados na tradução de Sergio Paulo Rouanet em Obras Escolhidas – Volume 1.

15 LÖWY, Redenção e utopia, p.97.

16 BENJAMIN, 1999 p.783.

17 Idem, 1985, p. 123.

18 JENKINS, Henry. Convergence culture: where old and new media collide.

19 Neste caso é exemplar o Revisiting a publishing Manifesto – What does the future look like for publishers? (disponível em http://thedigitalist.net/?p=714) apresentado pela editora Sarah Lloyd na conferência Tools of Change in Publishing realizada em Frankfurt em outubro de 2009.

20 Idem, p. 125

21 BENJAMIN, 1999, p. 741.

22 O artigo What Is Web 2.0 – Design patterns and business models for the next generation of software está disponível emhttp://oreilly.com/web2/archive/what-is-web-20.html

23 KANT, p. 216.

24 BENJAMIN, 1985, p. 116.

 

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Ponto de Vista: Escrever com as frases que ficam no ar | de Liv Sovik

“My words echo
Thus, in your mind”
T.S. Eliot. “Burnt Norton” The Four Quartets (1944)

Estas palavras, traduzidas por Ivan Junqueira como “Assim ecoam minhas palavras / em tua lembrança” (infelizmente debilitando o acento na palavra Thus e a pausa que vem depois), evocam em mim a ação de uma bola de bilhar que é uma frase ecoando na minha cabeça. Tem frases que permanecem até ficarem estranhas e outras que são tão estranhas que ficam. Foi o caso de “Aqui ninguém é branco”, que uma pós-graduanda me deu como resposta à pergunta, “Mas” (o “mas” se devia à recorrente discussão da cultura e herança afrobaiana) “o que significa ser branco na Bahia?” Aquela frase comunicava pela incomunicação. Sabia que havia brancos na Bahia porque não estava sozinha na minha branquitude, mas de alguma forma a frase soou tão verdadeira, sincera e natural, que não houve resposta possível na hora. Tive que pensar enquanto as palavras ecoavam na minha lembrança.

Ecoaram tanto que viraram o título de meu livro, que já tive dificuldade em explicar: às vezes dizia que era paradoxal, uma negação no título do próprio assunto de uma obra sobre a branquitude; em outras dizia que era uma ironia ou uma expressão essencial do discurso identitário nacional. Certa vez, expliquei que o tom era mais para “Você é gordo!” do que “Todos vão à praia”, pois sentia que usar a frase como título tinha algo de confronto. Quando Silviano Santiago escreveu no prefácio que o título foi “inspirado na certa em leitura de Ionesco”, foi um alívio. Quando ele apontou para o absurdo da frase, tudo ficou claro e não estava mais sozinha, ninguém podia dizer que só eu era branca.

Minha cabeça deve funcionar assim, como câmara de eco, pois os versos de Eliot volta e meia estão presentes quando preciso refletir sobre como eu penso. Fragmentos me chamam a atenção, refrãos como “A carne mais barata / É a carne negra” ou “Não vivendo pra dançar / Mas dançando pra viver”. Por mais que a frase de Eliot chegue para mim como resumo de minha pequena ópera em forma de colagem, me imagino pensando e não escrevendo. Para mim é uma grande e agradável surpresa que o meu jeito de escrever dê prazer, pois é tão difícil me imaginar escritora que demorei anos para poder pronunciar, sequer para mim, as palavras “meu livro”, parecia tudo em maiúsculas e eu, me levando a sério demais. A hesitação, fantasiada de cuidado, me aflige.

+++

O vai e vem entre escrever e não escrever vem de longe. Quando cursava a oitava série e ela tinha 40 anos, minha mãe começou a fazer seu mestrado em Letras. Conversava comigo sobre as coisas que lia e aprendia, na cozinha depois da escola. No mesmo ano, como dever de casa, descrevi uma profissão que me atraísse, em texto que redescobri no meio às coisas guardadas na casa de meus pais 30 anos mais tarde. Estava interessada em ser professora universitária, disse, mas a desvantagem seria ter a obrigação de escrever, publish or perish. Minha resistência não aguentou a passagem dos anos, mas o que cedeu primeiro foram as ressalvas à escrita. Só assumi a carreira universitária um pouco antes da descoberta do texto sobre “o que quero ser quando crescer”.

Escrever adquiriu diversos sentidos através do tempo. Quando tinha 26 anos, era patinar na superfície. A superfície tem má fama, mas neste ano de jogos olímpicos de inverno, lembra-se como patinar é tecer passo a passo, com graça quase involuntária, um caminho que encontre um chão onde nem sempre há terra firme. Significava não cair – de bunda ou, pior, no buraco da tristeza – e isso era minha preocupação principal quando tinha essa idade. Escrever parecia uma forma de criar meu próprio chão.

Não caí no buraco, mas tampouco deslanchei a escrever. Quando a popularização do computador permitiu essa façanha contemporânea, titubear e corrigir quase na mesma hora, virei uma escritora de cartas relativamente longas, cujas qualidades dependiam da relação com os amigos e parentes que as recebiam: só podia escrever coisas engraçadas ou tocantes para aquela pessoa. O destinatário de algumas dessas cartas me respondeu (certamente querendo dar ênfase à parte “poesia”), que eu escrevia “poetry without yet its wings”. Escrevo poesia sem asas, que não decola do chão. Por outro lado, quem sabe patinei bem, fiz curvas bem fechadas, trançando as pernas com corpo na diagonal para não desperdiçar energia, dei talvez até uma pirueta, mas sem adornos, como ensinaram meus professores em Yale, que exigiam humildade diante da tarefa de dizer.

Hoje, escrever a primeira versão de trabalhos acadêmicos muitas vezes causa algo que é quase dor, pela angústia do não dito, o medo de não encontrar a forma de abrir uma picada na mata fechada de um assunto, o tédio da vasta escolha de palavras e noções. Gosto mais é de revisar, revisar, reinventar, embora tenha que conter, quando estou me sentindo criativa, minha tendência a rir sozinha, às private jokes. Em gostar de frases prontas, estou muito bem acompanhada. Eliot demonstrou ter ecos de palavras na sua lembrança e citava desde a eremita medieval Julian de Norwich (“Tudo estará bem / toda sorte de coisa estará bem”, em “Little Gidding”) ao barman do pub chamando o público para sair (“Hurry up please it’s time”, em The Waste Land. Mas talvez a frase que mais frequentemente resvala na minha mente nem seja de Eliot, mas dos irmãos Gershwin, cantada por Aretha Franklin, claríssima na sua percepção da contingência da vida: “It ain’t necessarily so” – Não é necessariamente certo.

* Liv Sovik é professora da Escola de Comunicação da UFRJ e autora de Aqui ninguém é branco, recém lançado pela Aeroplano. Escreveu este texto sobre os “bastidores” do livro para a revista Pernambuco (Nº 50, abril 2010, p.3.http://www.suplementopernambuco.com.br/), onde saiu sob o título “Ninguém podia dizer que só eu era branca”.<

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Surgimento e difusão da marca Daspu: o nome como palavra de ordem | de Washington Dias Lessa e Jeanine Geammal

Washington Dias Lessa, ESDI/UERJ
Jeanine Geammal, UFC

Este texto busca investigar a marca de vestuário feminino Daspu, criada no Rio de Janeiro em 2005. O tema se vincula ao marketing, ao branding e ao design – área em que foi realizada esta pesquisa –, podendo ser desenvolvido segundo os referenciais analíticos respectivos. Dadas, porém, as particularidades do surgimento e difusão da marca, optou-se por trabalhar com o conceito palavra de ordem, proposto por Deleuze e Guattari, buscando trazer uma inteligibilidade diferente à produção de sentido e aos relacionamentos com a mídia e com o mercado que caracterizaram o processo Daspu.

1. O surgimento da marca Daspu

A Daspu é uma marca do setor de moda e vestuários que pertence à ONG Davida. Esta ONG foi criada no Rio de Janeiro em 1992 por Gabriela Leite, e está voltada para questões ligadas à cidadania das prostitutas e para iniciativas visando a organização da categoria. Integra a Rede Brasileira de Prostitutas que tem a missão de articular politicamente o movimento de defesa e promoção dos direitos dessas profissionais. Segundo a Rede, “a prostituição é uma profissão, desde que exercida por maiores de 18 anos”1. A Davida manifesta seu repúdio à vitimização das prostitutas, e anuncia o combate à discriminação, ao preconceito e ao estigma. E, sobretudo, não preconiza o abandono da prostituição. Ao contrário, defende o direito das prostitutas prestarem serviços sexuais, afirmando que devem assumir sua profissão em vez de envergonharem-se dela.

Desfile de 16 de dez., na Rua Imperatriz Leopoldina. Matéria publicada na capa do jornal O Globo, em 17 nov. 2005. Foto de André Teixeira.

Em 2005 é lançada pela Davida a marca de uma confecção, a Daspu, que tornou-se conhecida nacionalmente a partir de uma polêmica com a Daslu, loja multimarcas de luxo sediada em São Paulo.

O nome Daspu havia sido criado como uma brincadeira em 15 de julho de 2005, durante a comemoração, na sede da Davida, dos 13 anos de fundação da ONG. Dois dias antes, Eliana Tranchesi, uma das sócias da Daslu, fora presa pela Polícia Federal acusada de sonegação de impostos, e o acontecimento havia sido amplamente coberto pela imprensa. Foi com base nessa referência que, em meio a uma conversa sobre a ideia da ONG montar uma confecção visando arrecadar fundos para o movimento, Sylvio de Oliveira sugere, com bom humor, o nome Daspu (Lenz, 2008: 34). Mas nada foi feito para implementar a ideia.

Primeiro desfile, 16 dez. 2005, na Rua Imperatriz Leopoldina, Rio de Janeiro. Fotos de Marcos Silva

Em 20 de novembro de 2005 o nome aparece publicamente pela primeira vez, mencionado em nota na coluna de Elio Gaspari, do jornal O Globo (Gaspari, 2005: 16). No entanto nem Gabriela Leite nem Flavio Lenz, assessor de imprensa da ONG, tiveram qualquer participação na publicação desta primeira notícia sobre a marca. Segundo hipótese de Lenz, a informação teria chegado ao jornalista por intermédio de alguém que, em algum bar nas imediações da sede ONG, na região da praça Tiradentes, centro do Rio de Janeiro, teria ouvido uma conversa de seus integrantes, sempre em tom de brincadeira, sobre o assunto (Lenz, 2008: 45-46).

Logo depois desse aparecimento na mídia, a Daslu ameaça processar a Davida alegando tentativa de denegrir sua imagem, o que dá a Flavio Lenz e Gabriela Leite a oportunidade de tornar a Daspu assunto de manchete 2. E as matérias jornalísticas sobre o confronto Daslu X Daspu, evidenciam uma adesão da imprensa à iniciativa das prostitutas. Um pouco depois a Daslu retira o pedido de processo.

Após o lançamento involuntário do nome, o sucesso repentino naturalmente impõe a criação efetiva da confecção. A opção inicial foi a de divulgar a causa política da Davida através de camisetas com frases provocativas. Com a repercussão e o apoio recebido da mídia e do público a partir da polêmica com a Daslu, surge a ideia de uma estruturação empresarial mais complexa, prevendo coleções, desfiles, venda de outros tipos de roupas etc. E esta ideia era mais afinada com o discurso da Davida. Uma simples confecção estaria associada a mulheres que necessitam de ganho econômico e produzem e vendem roupas para atingir esse objetivo. Uma empresa de moda, por outro lado, deve envolver atitude e ditar comportamento, conforme categorias correntes no meio da moda. Assim como envolve expectativas de reforço financeiro, não apenas a partir de vendas estritas, mas compreende essas vendas também como resultado do desempenho da marca como imagem.

Capa do caderno Ela do jornal O Globo, publicada em 14 jan. 2006.

Durante sua trajetória visando consolidar-se no mercado da moda, a Daspu, desde seu lançamento em 2005 até 2009, apresentou sete coleções. Em ordem cronológica e associadas a seus criadores são elas: Batalha, criada pelos próprios integrantes da Davida; Daspu na Pista BR-69, concebida pela estilista Rafaela Monteiro; Puta Arte, com criação do designer Sylvio de Oliveira; Copa Sacana, por Franklin Melo; As cruzadas: a batalha entre o botão e a espada, criada pelo grupo Profissionais do Ramo – Movimento Puta Life Style, formado por ex-alunos e alunos da Unversidade FUMEC Fundação Mineira de Educação e Cultura (Alzira Calhau, Ana Luisa Santos, Bruno Oliveira, Luisa Luz, Maíra Sette, Marília Tavares, Natália Assis, Rafael Boneco, Rangel Malta); e Da farofa ao caviar, concebida pelo mesmo grupo da coleção anterior.

Por sua facilidade de produção e sua adequação às necessidades de propagação do discurso da Davida, as camisetas, caracterizadas com o mesmo humor presente na criação do nome Daspu, tornam-se um produto emblemático. Trazem mensagens irônicas e bem-humoradas sobre cidadania, liberdade, sexualidade e prevenção de DST e AIDS. “Somos más, podemos ser piores”, “PU Davida”, “Moda pra mudar” e “Antes do show, afine o instrumento” – são algumas dessas frases que aparecem adornadas por imagens de preservativos, de mulheres ou casais. Concebidas dessa forma por Sylvio de Oliveira, são transformadas nos verdadeiros trajes de batalha da ONG e recebem o aval da mídia especializada, confirmado por sua aparição na seção “Fetiche” do jornal O Globo sobre a legenda: “Daspu. Aí está a camiseta mais Cult do momento” (O Globo, 2006: 1).

A camiseta Beijo aparece na edição de 14 jan. 2006 do jornal O Globo, na seção Fetiche, dentro do caderno Ela Fashion, como a mais cult do momento. Foto de Luciana Whitaker.

Apesar do amadorismo apresentado pela Davida na fase inicial do desenvolvimento de produtos, consolida-se o protagonismo dos responsáveis pela administração da marca. No que tange à formação e projeção de sua imagem, a inexperiência com o negócio moda e, por outro lado, a experiência no trato com a imprensa3 , acrescida da premência da causa política, conduziram o processo de projeção pública desse empreendimento nascente para o uso do espetacular, do que dá notícia. Mas, complementarmente, também é buscada uma estruturação mais profissional, assim como foram buscados subsídios quanto à administração e gerenciamento.

2. Em busca da especificidade Daspu: uma opção de método

A área de criação e gestão de marcas integra de modo tendencialmente diferenciado os campos do design, do branding e do marketing, e atualiza-se segundo as várias possibilidades de agenciamentos entre essas especializações, e delas com as propostas de criação de marcas que ganham existência concreta no mercado.

O conhecimento elaborado/sistematizado pela área constitui um conjunto heterogêneo que abarca de análises e sistematizações, validadas pela experiência profissional em projeto e consultoria, a elaborações mais especificamente teóricas, tanto abordando a estruturação do mercado quanto metodologias para o desenvolvimento de projetos.

Uma análise que considerasse o caso Daspu estritamente segundo essas referências, identificando/julgando protocolos e tipos de intervenções consagradas pelos padrões de excelência técnico-profissional, tenderia a não dar conta da riqueza do processo, já que o surgimento e difusão da marca Daspu apresenta algumas especificidades particulares.

Temos, inicialmente, o modo como surge a Daspu. Uma marca existe associada a produtos ou serviços, mas ganha consistência com base não apenas na qualidade desses produtos ou serviços. Na medida em que existe um espaço público de comunicação, dado tanto pela existência de diferentes configurações midiáticas (mídia impressa, a web, espaço urbano etc) quanto pelas atividades que as articulam (jornalismo, propaganda, marketing, design etc), a projeção da marca neste espaço de aparecimento possui uma autonomia em relação à sua associação direta ao produto ou serviço respectivo.

Segundo desfile da marca, na Praça Tiradentes, no Rio de janeiro, em 13 jan. 2006. Foto de Paulo Jabur

O que sobressai no surgimento da Daspu é a forma como subverte a ordem natural sugerida pelos ensinamentos do branding para a criação de uma marca de sucesso: “posicionamento, nome e identidade gráfica” (Martins, 2006, p.80-81). Seu aparecimento na mídia antecede não só a estruturação do negócio, que no momento não passava de uma conjectura, assim como qualquer estudo de posicionamento mercadológico e registro da marca. Graças à ação da imprensa ela se projeta como imagem antes de existir o empreendimento que ela deveria representar, criando condições propícias para a sua concretização.

Uma outra característica diz respeito à associação da Daspu ao universo dos movimentos sociais. Como a ideia surge de um grupo de prostitutas que trabalha pelos direitos civis de sua profissão, a marca vincula-se às searas política, social, cultural etc. E esta dimensão vai caracterizar fortemente o seu DNA.

Um outro aspecto, dado pelo contexto em que a marca é proposta, diz respeito a eventuais fragilidades dos encaminhamentos propriamente empresariais. Mas se de acordo com parâmetros técnico-profissionais estritos esta constatação até pode levar a uma avaliação negativa, por outro lado não pode ser ignorado o vigoroso senso de oportunidade da Davida visando o crescimento da Daspu: ele se manifesta tanto na busca do fortalecimento da imagem da marca que começa a se construir, quanto nas providências visando a estruturação do negócio que deve embasar a marca em termos produtivos.


Daspu na GNT

Tendo em vista a intenção de investigar o processo de surgimento e difusão da marca Daspu, deparamo-nos, assim, com as limitações que um referencial analítico técnico-profissional, da área de criação e gestão de marcas, poderia apresentar para a recuperação da especificidade Daspu como feixe de experiências sociais. Sem invalidar ou desqualificar as análises realizadas segundo este referencial, optou-se por uma “conformidade analítica”, relativizando a competência técnico-profissional como parâmetro de avaliação e buscando destacar a riqueza da experiência social presente no processo. Para isso recorreu-se ao conceito palavra de ordem, proposto por Deleuze e Guattari em Mil Platôs, na seção Postulados da Lingüística, conceito que se refere à presença de uma pragmática na estrutura mesma da língua, possibilitando a transformação da realidade pelo discurso. Pesou nessa decisão: o fato de que o processo Daspu se construiu com base no caráter nominativo da marca; a importância assumida pelos slogans veiculados nas camisetas; e o fato da projeção pública da marca ter se dado pela ação da imprensa, na qual se destaca o discurso verbal.

 

Página do jornal Extra com matéria sobre a Daspu, publicada em 14 jan. 2006.

 

Foi tomado como corpus da investigação o clipping referente à Daspu arquivado pela Davida. Sucedem-se nesse espaço configurado pela mídia: versões e fatos fortuitos ou planejados, personas e personagens diretos e indiretos – tais como jornalistas, a direção da Davida, profissionais de moda e de imagem pública etc –, iniciativas da Davida perseguindo profissionalismo e visando adquirir estrutura e ritmo minimamente empresariais etc. A partir da compreensão da enunciação Daspu como palavra de ordem, buscou-se a caracterização dos agentes, das circunstâncias da enunciação e dos desdobramentos do processo de nascimento e crescimento da marca.

3. A palavra de ordem, conceituada por Deleuze e Guattari, e a enunciação Daspu

Para chegar ao conceito palavra de ordem, Deleuze e Guattari partem da crítica ao caráter formal e fechado da língua, tal como esta categoria é proposta por Saussure, e trabalham: a) com o conceito ato de fala ou ato ilocutório proposto por J. L. Austin e desenvolvido por John Searle no âmbito da filosofia da linguagem ordinária; c) com a compreensão, segundo a filosofia estoica, de que num campo social existem os corpos e as modificações corpóreas 4 , e por outro lado os atos incorpóreos levando a transformações incorpóreas que são atribuídas aos corpos – caracterizando-se neste processo “uma independência entre as ações e paixões dos corpos, e os atos incorpóreos” (Deleuze, Guattari, 1995: 26). Vejamos como esses conceitos se constroem.

A conceituação de ato ilocutório pressupõe que tanto a função representativa quanto a função comunicativa da linguagem são apenas condições para a realização de sua pragmática, pois quando faço uma enunciação eu atuo sobre a realidade. Dizer “prometo” não é descrever uma promessa ou apenas comunicá-la, mas fazer uma promessa; assim como ao dizer “eu juro” eu estou jurando, ou estou ordenando quando emprego o imperativo. Mas as atuações sobre a realidade não se resumiriam a esses atos performativos explícitos. Por exemplo, em última instância todas as enunciações envolvem um modo ou um tom de voz, e ao enunciar em tom peremptório que “a terra é redonda”, um sujeito pode estar se posicionando e influindo pragmaticamente no curso de algum acontecimento.

O ato ilocutório impõe uma compreensão da linguagem que se diferencia do modelo linguístico saussureano, pois ultrapassa a compreensão do enunciado com base em sua dimensão significante (que define a esfera da significância/informação, remetendo ao caráter representativo da linguagem), assim como a compreensão da enunciação com base na sua relação com um sujeito (que define a esfera da subjetivação/comunicação, remetendo ao caráter comunicativo da linguagem).

Enquanto a lingüística se atém a constantes – fonológicas, morfológicas ou sintáticas – relaciona o enunciado a um significante e a enunciação a um sujeito, (…) remete as circunstâncias ao exterior, fecha a língua sobre si e faz da pragmática um resíduo. (…) Como diz Bakhtine, enquanto a lingüística extrai constantes, permanece incapaz de nos fazer compreender como uma palavra forma uma enunciação completa; é necessário um “elemento suplementar que permanece incessível a todas as categorias ou determinações lingüísticas” (Deleuze, Guattari, 1995: 21)

Na caracterização da palavra de ordem, este efeito próprio do ato ilocutório é complementado pela concepção estoica de que há uma independência entre corpos de uma sociedade – associados por Deleuze e Guattari, com base no universo linguístico, a um plano de conteúdos – e os enunciados a respeito desses corpos – associados a um plano de expressos. Os enunciados promovem transformações incorpóreas nos corpos, sendo essas transformações distintas das ações e paixões que afetam os corpos (Deleuze, Guattari, 1995: 18). As palavras de ordem são

não uma categoria particular de enunciados explícitos (por exemplo, no imperativo), mas a relação de qualquer palavra ou de qualquer enunciado com pressupostos implícitos, ou seja, com atos de fala que se realizam no enunciado, e que podem se realizar apenas nele. (…) [E diferentemente da concepção lingüística tradicional] a linguagem só pode ser definida pelo conjunto das palavras de ordem, pressupostos implícitos ou atos de fala que percorrem uma língua em um dado momento. (Deleuze, Guattari, 1995: 16)

Se os atributos não-corpóreos são ditos acerca dos corpos, se podemos distinguir o expresso incorpóreo “avermelhar” e a qualidade corpórea “vermelho” (…), é então por uma razão bem diferente do que a da representação. Não se pode nem mesmo dizer que o corpo, ou o estado das coisas, seja o “referente” do signo. Expressando o atributo não-corpóreo, e simultaneamente atribuindo-o ao corpo, não representamos, não referimos, intervimos de algum modo, e isto é um ato de linguagem. A independência das duas formas, a de expressão e a de conteúdo, não é contradita, mas ao contrário confirmada, pelo fato de que as expressões ou os expressos vão se inserir nos conteúdos, intervir nos conteúdos, não para representá-los, mas para antecipá-los, retrocedê-los, retardá-los ou precipitá-los, destacá-los ou reuni-los, recortá-los de um outro modo. (Deleuze, Guattari, 1995: 27)

Buscando esclarecer este regime de independência entre corpos e enunciados, entre o âmbito da “lição das coisas” e o âmbito da “lição dos signos” (Deleuze, Guattari, 1995: 26), os autores referem-se à introdução que Oswald Ducrot fez para a edição francesa de Speech Acts, de Searle:

Quando Ducrot se pergunta em que consiste um ato, ele chega, precisamente, ao agenciamento jurídico, e dá como exemplo a sentença do magistrado, que transforma o acusado em condenado. Na verdade o que se passa antes – o crime pelo qual se acusa alguém – e o que se passa depois – a execução da pena do condenado – são ações-paixões afetando os corpos (corpo da propriedade, corpo da vitima, corpo do condenado, corpo da prisão). (Deleuze, Guattari, 1995: 18)

A palavra de ordem coloca-se como condição necessariamente social da linguagem, e por isso, diferentemente das sistematizações fonológica, semântica, sintática da língua, possui um caráter não necessário e não pré-determinado, e ao mesmo tempo interventivo/transformador:

Os corpos têm uma idade, uma maturação, um envelhecimento; mas a maioridade, a aposentadoria, determinada categoria de idade, são transformações incorpóreas que se atribuem imediatamente aos corpos, nessa ou naquela sociedade. “Você não é mais uma criança…”: esse enunciado diz respeito a uma transformação incorpórea, mesmo que esta se refira aos corpos e se insira em suas ações e paixões. A transformação incorpórea é reconhecida por sua instantaneidade, por sua imediatidade, pela simultaneidade do enunciado que a exprime e do efeito que ela produz; eis porque as palavras de ordem são estritamente datadas, hora, minuto e segundo, e valem tão logo datadas. (Deleuze, Guattari, 1995: 19)

Porém é importante salientar que a palavra de ordem não funciona com base apenas no exercício da vontade, desvinculado das circunstâncias em que a enunciação se dá. O que possibilita, ou não, a efetividade da palavra de ordem são essas circunstâncias.

[Benveniste] mostra que um enunciado performativo não é nada fora das circunstâncias que o tornam o que é. Alguém pode gritar “decreto de mobilização geral”; esta será uma ação de infantilidade ou de demência, e não um ato de enunciação, se não existir uma variável efetuada que dê o direito de enunciar. O mesmo é verdade em relação a “eu te amo”, que não possui sentido, nem sujeito nem destinatário, fora das circunstâncias que não se contentam em torná-lo crível, mas fazem dele um verdadeiro agenciamento, um marcador de poder, mesmo no caso de um amor infeliz (Deleuze, Guattari, 1995: 20-21)

A enunciação Daspu como palavra de ordem articula-se conjugando dois momentos. A data-referência principal é o dia 20 de novembro de 2005, quando Elio Gaspari publica a nota n’ O Globo. É a partir desse momento que a Davida assume a exposição pública e a repercussão positiva, que vai transformar um projeto de confecção em um processo de construção de uma empresa de moda, assim como vai potencializar a imagem da própria Davida. Mas também se coloca a data de 15 de julho de 2005, quando o nome é criado, pois é a especificidade do nome que dá a sua consistência como palavra de ordem, apesar dessa só se efetivar em 20 de novembro depois de ter seu potencial transformador reconhecido/assumido pela Davida. Se não fosse a referência à Daslu, talvez a nota não tivesse sido publicada; mas se não fosse a ironia e o bom humor, uma “brincadeira carioca” nas palavras de seu criador, Sylvio de Oliveira, talvez a repercussão não tivesse sido tão grande.

Fotos do desfile da Daspu na Rua Augusta divulgadas pelo jornal O Estado de São Paulo, 12 abr. 2006.

De qualquer modo o nome Daspu é coerente com a visão positiva e não moralista que caracteriza a ONG. A chave de leitura do nome Davida, por exemplo, refere-se a um eufemismo para puta – mulher da vida –, mas também à positividade da afirmação Da Vida. E o nome Daspu, ao se apresentar como uma marca Das Putas – homologamente ao nome Daslu, motivado pelos prenomes Lúcia e Lourdes de suas duas fundadoras –, brinca com o estereótipo da mulher obrigada a se prostituir para sobreviver em contraposição ao consumo de luxo da cliente Daslu. Assim como alude ao fato de que o mundo Daslu é eventualmente também atravessado pela relação entre sexo e dinheiro.

 

Foto do desfile da Daspu na Rua Augusta divulgadas pela Folha de São Paulo, 12 abr. 2006. Foto de João Sal



A menção satírica à Daslu, associada à autoironia de relacionar prostitutas da Praça Tiradentes, no centro do Rio de Janeiro, à boutique mais luxuosa do país, dão ao humor Daspu um certo tom de ”escracho”. Grande parte do sucesso pode ser tributado a esta irreverência, que também se faz presente nas frases das camisetas. Sua carioquice conquistou cariocas e não cariocas, pois a proposta tinha potencial para apresentar-se culturalmente como fetiche. Assim como aconteceu com as camisetas: tornaram-se, imediatamente, objetos de desejo.

No entanto devem ser assinaladas as circunstâncias que tornam possível a palavra de ordem, assim como as transformações na ONG e no empreendimento Daspu que se seguem às suas reverberações.

Foto do desfile da Daspu no Circo Voador, divulgadas pelo jornal O Globo, na seção Ela Fashion, em 10 jun

 

4. As circunstâncias da enunciação Daspu

Devem ser assinaladas quais as circunstâncias que efetivam a Daspu como palavra de ordem, vale dizer os modos como essas circunstâncias vão sendo dispostas, no momento inaugural e ao longo do processo daí decorrente, por corpos (lição das coisas) e enunciados (lição dos signos) conectados ou conectáveis ao evento. E de como as pressuposições recíprocas entre as ações e paixões desses corpos e as transformações incorpóreas expressas por esses enunciados dialogam com as circunstâncias que sustentam a palavra de ordem. Conforme já indicado, os expressos podem “se inserir nos conteúdos, intervir nos conteúdos, não para representá-los, mas para antecipá-los, retrocedê-los, retardá-los ou precipitá-los, destacá-los ou reuni-los, recortá-los de um outro modo.” (Deleuze, Guattari, 1995: 27)

No cenário da enunciação Daspu destacam-se entre a heterogeneidade dos corpos e agentes dos enunciados: prostituição, moda, jornalismo, público leitor, comunicação, marketing, design, empreendedorismo, sociedade brasileira, arte, sociedade do espetáculo, movimentos sociais, política, bom humor e crítica, discurso antropológico, moralismo, ética, “consistência cidadã”, criação, transgressão etc. Neste sentido delineiam-se agenciamentos fragmentadamente coletivos e processuais.

Daspu nos bastidores de “Caminho das Índias”

A partir da análise do clipping pesquisado, e tendo em vista os corpos e os enunciados em jogo, pode-se compreender as circunstâncias que fundamentam a enunciação Daspu na particularidade de quatro confluências: a) a confluência entre a lógica da imprensa, o escândalo Daslu, e o surgimento da Daspu; b) a confluência entre a Davida como proposta e organização, e sua experiência com a mídia; c) a confluência entre a lógica da moda, a cobertura jornalística da moda, e o caráter transgressivo associado à Davida/Daspu; d) a confluência entre o apoio de artistas e intelectuais, e o trabalho voluntário de profissionais de moda e de imagem pública.

4.1. A lógica da imprensa; o escândalo Daslu; o surgimento da Daspu

Independentemente dos aspectos técnicos e éticos que caracterizam as diretrizes explícitas de produção/edição de um meio de comunicação – tais como a fidedignidade, a abrangência e a isenção da informação veiculada –, coloca-se a diretriz pragmática de motivar o leitor. Isto envolve a articulação das várias possibilidades de formatação da informação jornalística, assim como o tratamento cativante dos fatos que a reportagem e a edição constroem. A eficácia dessa estratégia fortalece o prestígio e o cacife empresarial do veículo, e é isto o que se busca expressar na a fórmula-síntese “notícia vende jornal”.

No caso Daspu colocam-se como pano de fundo desta articulação pragmática: a) a diretriz ética de defesa da sociedade, pois a motivação da publicação da nota vem da existência de um processo contra a Daslu, e evoca tanto a necessidade de cumprimento das leis, quanto a impunidade das elites; b) a existência de um público leitor afetado pelas condições da economia e, por isso, receptivo à critica de desmandos legais; c) o caráter inusitado da associação entre uma confecção de prostitutas e a loja multimarcas de luxo, que se dá pela referência paródica e satírica do nome Daspu ao nome Daslu. O fato é imediatamente percebido em seu potencial de repercussão jornalística. E a sua publicação como nota numa coluna de opinião acentua ainda mais sua dimensão irônica.

No desdobramento da cobertura das ações da Davida, o tema da defesa da sociedade é alimentado pela notificação judicial da Daslu, e potencializado por comparações de fundo ético entre a Daslu e a Davida. Em alguns momentos, em colunas de opinião essa cobertura ganha um tom carregado de denúncia. Entretanto na quase absoluta maioria das vezes o assunto Daspu é reproduzido/caracterizado com o mesmo bom-humor presente na criação do nome. Pois apesar do caráter político e de critica social, a novidade apresentada pela Daspu é alegre e divertida, assim como o bloco carnavalesco dos Prazeres Davida, uma das iniciativas culturais da ONG.

4.2. A Davida como proposta e organização; sua experiência com a mídia

O desdobramento da enunciação Daspu através da ação da imprensa coloca a Davida em evidência. E a consistência política e cultural da Davida dão substância à palavra de ordem, pois as referências éticas são reais. No momento de seu aparecimento público a Daspu podia ser só uma ideia, mas consegue tornar-se realidade, pois existe por trás da marca um grupo de prostitutas organizadas com um discurso e posição critica coerentes em relação à realidade da prostituição. Sylvio de Oliveira, referindo-se ao ineditismo da proposta da ONG, lembra que no primeiro desfile, por ocasião do Fashion Rio, havia, aproximadamente, trezentos jornalistas do mundo inteiro “naquela ruazinha estreita”, o que seria um acontecimento inédito no mundo. Nunca antes houvera tantos holofotes focalizando positivamente a prostituição. Sylvio conta que na Europa, onde há um trabalho consistente com prostituição,

existe uma mulher, que […] é como se fosse a Gabriela lá. Fazem coisas incríveis, mas nunca com essa preocupação que a Davida teve de fazer a população virar cúmplice das prostitutas.[…] O trabalho lá na Europa é muito interno, o político, o de prevenção a AIDS sim, mas é muito para o bem estar das putas apenas, não contando com a cumplicidade da população. (Oliveira, 2008: 58)

Mas além dessa retaguarda ética e política, as ações e posições da Davida subsequentes à publicação da nota de Gaspari estabeleceram um diálogo ativo com a cobertura jornalística, evidenciando a habilidade de Gabriela Leite e Flávio Lenz em capitalizar a imagem da marca. Eles souberam fomentar por um longo período o interesse da mídia na Daspu. Fala-se tanto da marca que esta chega integrar uma lista publicada n’ O Globo por Ancelmo Gois, em 26 de novembro de 2006, dos assuntos que “ninguém aguenta mais ouvir”, e isto um ano depois de ter sido anunciada por Gaspari! (Gois, 2006: 27). Ou seja, a partir do momento inesperado em que a marca foi divulgada pela primeira vez, todos os outros espaços na mídia foram bem aproveitados pela Davida. E muitos, de certo modo, articulados pelos seus dirigentes.

Famosas apóiam projeto social em “Caminho das Índias”
Elke Maravilha, Susana Vieira, Betty Lago, Preta Gil e Priscila, vice-campeã do BBB9 falam sobre o trabalho da Daspu para o documentário da personagem Leinha.

Neste sentido foi fundamental a experiência jornalística de Flávio Lenz, adquirida na atuação em jornais de grande circulação, no trabalho como assessor de imprensa da Davida desde 1992, e na publicação do jornal da ONG Beijo da Rua, em suas versões impressa e on line.

4.3. A lógica da moda / o caráter transgressivo da Davida/Daspu

A recepção da Daspu pela moda desenha-se com base em algumas características valorizadas pelo meio. Destaca-se, inicialmente, o imperativo do novo. A moda, com sua natureza inquieta e desassossegada, é movida pela novidade. A esta deve-se a busca pelo diferente, do que não integra ainda o repertório do campo. O tédio associado ao que já foi seguidamente vivenciado abre espaço para o exógeno. E segundo um referencial antropológico destacam-se as tribos e as periferias, que oferecem um “viés diferencial perseguido, dialeticamente, pela estética globalizada” (Villaça, 2007: 59), proporcionando novas identidades possíveis. Através do ato de vestir uma camiseta, ou desfilar, ou se projetar em uma imagem fantasia, promove-se uma brincadeira de prostituta, ou de apoio às prostitutas. Relativamente ao seu processo de comunicação, a Daspu foi surpreendente nesse aspecto: foi criada uma marca viva, uma marca sujeito (Lipovetsky, 1989: 187) com a qual é fácil de se identificar.

Por outro lado, como a empatia do provável consumidor com a marca tende a se estabelecer segundo uma dimensão política, isto aponta para uma critica de relações e enquadramentos autoritários e moralistas. E essa condição também vem fortalecer a busca do novo, só que num outro registro. Caracteriza-se aí um outro aspecto valorizado pela moda, que é o rompimento com o passado, o gosto por desobedecer regras. E isto destaca a valorização, pela moda, do transgressivo, e de como a Daspu corresponde duplamente a esta expectativa.

Primeiramente coloca-se o discurso da prostituta autodeterminada, que é capaz de falar por si, defender seus direitos e atuar politicamente, rompendo com o silenciamento, com o não-discurso, da prostituta comum. Num outro nível coloca-se a crítica, no âmbito da defesa dos direitos civis, às posições assistencialistas que têm como objetivo “recuperar” as prostitutas, tirando-as “da vida”. Diferentemente a Davida defende a opção consciente de atuar na profissão, assim como o orgulho profissional. Essas posições têm um papel importante na recepção da marca pelos artistas, jornalistas e criadores, graças à valorização do transgressivo como veículo tanto do novo quanto da renovação social. Assim como o transgressivo também se associa à categoria de atitude, igualmente valorizada pela moda.

“Da farofa ao caviar” desfile da Daspu em BH 2009

E existe, finalmente, a consciência quanto aos recursos de exposição e aparecimento, presentes na prática da moda. A Daspu, desde seu lançamento, utiliza sobretudo um determinado modo de operação da moda: a valorização do sensacional (Carli, 2002: 114). Com a ajuda de artistas e cenógrafos tira proveito do show. Seus desfiles se referenciam na arte e transformam-se em instalações e performances. Embora não se abra mão de obter recursos através das vendas, a marca não se descuida da premissa e protocolos do desfile espetáculo. E isto até porque a produção não está bem equacionada. De qualquer maneira há plena consciência de que o aparecimento em si mesmo trabalha pela causa, e de que estar na mídia significa, ainda que de modo relativo, o direito a ter voz.

4.4. O apoio de artistas e intelectuais / o trabalho voluntário de profissionais de moda e imagem pública.

A imagem da marca projetada pela imprensa é fortalecida pela adesão e apoio de artistas, intelectuais, profissionais de cultura e de moda.

As formas de apoio podem envolver efetivações estratégicas, como o convite de Gringo Cardia para a Daspu participar do estande do SEBRAE na edição outono-inverno do Fashion Business de 2006, assim como o oferecimento de trabalho voluntário, como faz o próprio Cardia com a cenografia para o desfile da coleção Daspu na Pista – BR 69, no Circo Voador, e toda uma legião profissional que se envolve com a marca: estilistas, cenógrafos, designers, modelos, cineastas. Como também há o apoio dado através da cessão de espaço em programas de entrevista, como fazem Betty Lago e Jô Soares, ou em outros espaços televisivos, como na participação na novela Caminho das Índias, da Rede Globo de Televisão, em 2009.

 

Foto do desfile da Daspu no Circo Voador, divulgadas pelo jornal O Globo, na seção Fashion Rio, em 10 jun. 2006. Foto de Fábio Guimarães.

A motivação desse apoio se origina na identificação tanto com o caráter ético que a imagem da marca projeta, quanto com o caráter transgressivo. Por outro lado, pode-se falar de um retorno desse apoio, dado pela exposição que se ganha com o destaque que o assunto tem na mídia. Porém simpatizantes como Gringo Cardia ou Betty Lago, só para citar dois exemplos, não podem ser considerados principiantes em busca de exposição pública. Mas, sem juízo negativo de valor – pois é legítima a expectativa de exposição por parte de quem contribui com a ONG –, este talvez seja o caso, por exemplo, da estilista Rafaela Monteiro (segundo desfile), ou do grupo Coletivo Puta Life Style (quinto e sexto desfiles). E da parte desses profissionais também pode estar presente uma expectativa, também legítima, quanto a uma liberdade do exercício criativo.

Desfile de lançamento da coleção Daspu na Pista BR 69, no Circo Voador, Rio de Janeiro. 9 jun. 2006. Fotos Marcos Silva.

Resulta deste apoio: a) o reforço temático da imagem da marca, na medida em que citações de “famosos” na imprensa enfatizam aspectos éticos ou transgressivos; b) o reforço da visibilidade da marca, pois as declarações de apoio colhidas em eventos específicos transcendem tanto esses eventos quanto o caráter referencial dado pelo espaço na mídia, incorporando-se a um espaço maior e menos material de aparecimento; c) consistências parciais na visualidade ligada à marca, dadas pelos parâmetros profissionais do trabalho voluntário (que elas sejam mais ou menos articuladas entre si é uma outra questão).

5. Inserção da palavra de ordem Daspu no corpo Davida

Conforme indicado por Deleuze e Guattari, um enunciado diz respeito “a uma transformação incorpórea, mesmo que esta se refira aos corpos e se insira em suas ações e paixões” (Deleuze, Guattari, 1995: 19). Ou seja, independentemente da distinção entre corpos e transformações incorpóreas, estas tornam-se presentes e podem marcar os processos de mistura dos corpos.

Com base nesta orientação, destacamos dois aspectos das transformações na ONG Davida e no empreendimento Daspu que se seguem às reverberações da palavra de ordem: o primeiro ligado à autoimagem das prostitutas que participam, ou se conectam à ONG, assim como à própria imagem da ONG; e o segundo ligado à estruturação da Daspu como negócio.

5.1. A moda sem vergonha

A enunciação pública do nome Daspu recoloca o jogo exibe-esconde com o qual as prostitutas lidam em seu dia-a-dia – exibe para o cliente, esconde da sociedade, polícia, família. É obviamente salutar para a causa política da Davida, mas exige das prostitutas que abram mão de sua habitual repulsa pela exibição/exposição pública, que na moda é parte inseparável do jogo.

E isto traz uma mudança quanto ao ato de mostrar-se. As prostitutas passam a ter status distinto do que tinham antes, pois incorporam a persona da modelo, que mostra o que veste mostrando-se. E, momentaneamente, ganham voz na mídia. Com a sua entrada no meio da moda, a marca inaugura um novo padrão para a autoimagem das associadas à Davida: mostrar-se e dizer-se puta.

Este processo ganha uma compreensão mais nítida a partir da categoria discurso reverso, proposta por Michel Foucault em História da sexualidade 1: A vontade de saber: Desenvolvendo a questão da “polivalência tática dos discursos” nesta área (Foucault, 1988: 111), o autor postula que deve-se imaginar uma “multiplicidade de elementos discursivos que podem entrar em estratégias diferentes”. Refere-se, entre outras coisas, ao fato das enunciações ligadas a controles sociais comportarem deslocamentos e utilizações para fins opostos. Segundo ele o aparecimento, no século XIX, na psiquiatria, na jurisprudência e na própria literatura, de toda uma série de discursos sobre espécies e subespécies de homossexualidade, inversão, pederastia e “hermafroditismo psíquico”, permitiu, certamente, um avanço bem marcado dos controles sociais nessa região de “perversidade”; mas, também, possibilitou a constituição de um discurso “de reação” [discurso “reverso” 5 ]: a homossexualidade pôs-se a falar por si mesma, a reivindicar sua legitimidade ou sua “naturalidade” e muitas vezes dentro do vocabulário e com as categorias pelas quais era desqualificada do ponto de vista médico (Foucault, 1988: 112).

Esta estratégia já estava presente no discurso de Gabriela Leite antes da Daspu. No entanto a marca fornece o megafone/amplificador que a propaga e faz reverberar, conforme o subtítulo do livro de Lenz: Daspu – a moda sem vergonha. O que a Daspu promove com sua moda sem vergonha é a transformação da puta sem-vergonha ou desavergonhada, na puta sem vergonha de dizer-se puta, o que, entre outras coisas, significa, por exemplo, deixar-se fotografar para jornal.

Por outro lado, este imenso potencial transformador que a marca representa, na medida em que se apresenta como “uma forma inusitada de ativismo político”

6, perde seu poder se a Daspu desaparece como marca. O valor da marca pode ser tão importante quanto a venda de produtos, mas também é verdade que se as vendas não acontecem e a empresa não se fortalece, este valor tende a se esvaziar. Esta avaliação aponta para a importância da Daspu manter-se ativa no mercado da moda.

5.2. O negócio Daspu

A recepção favorável que a enunciação Daspu teve no meio moda não significa que ela tenha sido sempre avaliada positivamente. Muitas vezes a moda se apropria das práticas e dos produtos de periferia como demonstração de correção política, por exemplo, mas exige em troca a adaptação. Ao se associar à moda, a Daspu fica sujeita à sua lógica mutante: estar na moda pode significar, no minuto seguinte, não estar mais. Ao mesmo tempo que o fascínio pela novidade favorece o surgimento de marcas e estéticas fora de um mainstream, o imperativo do novo dificulta sua permanência. A partir do momento em que uma experiência específica ganha visibilidade, deixa aos poucos de ser uma novidade. Para se manter como sujeito nesse espaço social é necessário não só produzir outras novidades, mas também enquadrar-se segundo seus parâmetros produtivos. Movimento que a Daspu vem se empenhando em fazer desde seu lançamento.

Sobre a estreita relação entre a imprensa especializada em moda e o sistema da moda, que dá aos jornalistas especializados e veículos um certo poder na homologação dos gostos e inclusão das marcas neste sistema, deve-se lembrar que, observando-se o desempenho do Brasil na moda mundial dos últimos tempos, observa-se uma elevação significativa nesse padrão para a homologação. O investimento das empresas nacionais para obter reconhecimento internacional da moda brasileira, requer, com toda certeza, mais rigor no critério de seleção das marcas que receberão essa homologação, seja da imprensa especializada ou dos demais setores do sistema da moda. A edição de 2009 do Fashion Rio pareceu caminhar ainda mais na direção da elevação desse padrão. Reduziu drasticamente o espaço oferecido às marcas em processo de profissionalização e manteve no evento oficial apenas as que haviam alcançado um estágio profissional mais avançado. Profissionalismo, design, qualidade de produto, permanência e constância são critérios importantes para a manutenção do status alcançado em solos internacionais e, consequentemente, concorrem para a eleição do grupo de marcas que ingressará nesse círculo cada vez mais restrito. E este é um movimento natural da perspectiva da indústria da moda.

Desfile da coleção Daspu na Pista BR 69, no Club Glória, São Paulo, 15 jun. 2006.
Fotos de Marcos Silva.

Nas raras avaliações dos jornalistas de moda, são encontrados indícios da não homologação da marca Daspu. Mas, sobretudo, a raridade dessas críticas é a principal evidência de que ela não chegou a ser exatamente considerada como parte do meio.

Nas escassas avaliações e críticas que a marca Daspu recebe da imprensa especializada, é possível perceber inadequações do produto oferecido, ou da empresa Daspu, ao negócio moda. Como quando Iesa Rodrigues, ao elogiar a camiseta Beijo da Rua, sublinha a ausência de produtos apresentados pela marca naquele momento. Ou quando Glória Kalil, comentando um padrão de vulgaridade presente hoje na moda, e comparando as roupas da Daspu e da Daslu, refere-se às diferenças de tecido e acabamento. Ou ainda na crítica encontrada no site de Erika Palomino, que afirma que o público aplaudiu mais as prostitutas e menos as modelos de verdade, ainda que pouco antes tivessem reproduzido a afirmação de Rafaela Monteiro – “prostituta não tem cara”.

 

Fotos do desfile da coleção Puta Arte, na Praça Tiradentes. Rio de Janeiro. 19 jan. 2007. Fotos de Viola Berlanda

 

É interessante, para o caso Daspu, pensar nos binômios socialização/individualização, distinção/imitação, presentes na teoria de Simmel (Simmel, 1957). Quando Gabriela Leite afirma que faz uma moda para todas as mulheres parece ciente da importância dessa relação. Entretanto, na maioria das vezes, a roupa da Daspu é nomeada pela imprensa como roupa de prostituta para prostituta. Segmentação que nada ajuda ao discurso da Davida. Uma confusão que talvez seja estimulada pelos conceitos autorreferentes presentes em todas as coleções. Essa segmentação advém, normalmente, da mídia não especializada. Glória Kalil, como visto, afirma justamente o contrário. Mas nesse caso o discurso de indistinção também tem, subjacente, a distinção. Nos comentários de Glória Kalil sobre a similaridade entre as modas Daspu e Daslu, está claro que ela não ignora que são “as pequenas diferenças que fazem toda a moda”. Quando destaca a importância de um bom tecido ou acabamento, não desconhece que “a torrente de pequenos nadas” (Lipovetsky, 1989, p.32) à qual o tecido e o acabamento pertencem pode, imediatamente, desclassificar ou classificar a pessoa que os adota ou que deles se mantém afastada. Se inserem em “uma parte da moda que se tornou como a alma da economia geral do vestuário: o detalhe” (Barthes, 2005: 341). Assim, nem tudo é paródia e deboche na apropriação que Daspu faz do nome Daslu: deve haver também imitação. Ou pelo menos ela é esperada. Quando as análises, elogiando o desempenho Daspu, equiparam suas criações com as demais, anunciam que é isso que esperam da marca.

Desfile da coleção Puta Arte, no Club Glória, em São Paulo. SP, 27 jan. 2007. Fotos de Viola Berlanda

Mas a habilidade de articulação do grupo gestor da Davida em função dos objetivos da ONG fica evidenciada também no trato administrativo com a marca. Desde as ações para o pronto atendimento das urgentes demandas para a constituição real da marca – não somente produtivas, como a realização de uma primeira camiseta em transfer para simular uma produção inexistente, mas também empresarias, como o registro da marca no INPI, feito por Lenz quinze dias depois da publicação da nota de Gaspari –, passando pela busca de qualificação empresarial, e chegando às associações com a FUMEC e seus alunos para o desenvolvimento das novas produções

 

 

Relativamente a essa parceria é preciso destacar o fato das estampas para as camisetas da última coleção acentuarem com humor o caráter de naturalidade e sensualidade do tema prostituição, caracterizando com mais justeza as referências que conferem a ligação ao trabalho da Davida, dando o tratamento merecido às camisetas, produto que mais se identifica com a marca Daspu.

 

 

Desfile da coleção As cruzadas: a batalha entre o botão e a espada. Belo Horizonte. Jun. 2008. Fotos de Nana Moraes.
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6. Considerações finais

O design se define como uma disciplina prática, como por exemplo o marketing e a administração, e projetual, como a arquitetura e o urbanismo. Isto leva a que, diferentemente da história, da filosofia ou da matemática, por exemplo, em paralelo à esfera acadêmica também se estabeleçam cânones e instâncias de sua validação profissional no mercado.

Em termos da esfera acadêmica, temos que ela cumpre o papel de elaboração, sistematização e transmissão do conhecimento humano produzido/acumulado, tendendo a encarar este conhecimento com base no paradigma consolidado pelas ciências da natureza a partir do Renascimento 7. Frente ao fato de que, segundo esta concepção, todas as áreas acadêmicas devem se compreendidas como ciências 8 – mesmo que extraoficialmente o paradigma dominante leve a uma grande seletividade no reconhecimento desta atribuição –, caracterizam-se duas posições no âmbito do design:

a) uma envolvendo iniciativas visando conferir uma cientificidade à profissão, normalmente através de uma super valorização da metodologia 9 – embora elas tendam a não funcionar para grande parte da prática profissional;

b) outra envolvendo um consenso de que, mesmo que esta cientificidade metodológica possa ser adequada a alguns tipos de projeto, e não deixando de considerar a possibilidade da utilização do conhecimento científico, o design em geral, como outras atividades práticas e projetuais, não se caracteriza conforme o modelo da ciência moderna que se desenvolve a partir do século 16.10

De qualquer modo o espaço acadêmico marca mesmo as disciplinas práticas com alguns dos atributos da cientificidade, como a busca de isenção técnica e uma supervalorização dos limites das áreas de conhecimento, com base na pressuposição de uma divisão social do trabalho que tende à idealização, pois possui um caráter formalmente descritivo e ignora a dinâmica concreta da relação entre áreas de conhecimento no mercado e no espaço acadêmico.

Considerando, por outro lado, os parâmetros de validação profissional pelo mercado, temos que, a partir de uma racionalidade e de um pragmatismo de mercado, são valorizados protocolos de relacionamento profissional, a competência e a neutralidade técnica e uma “política de resultados”, ou seja, o retorno do investimento. Embora esses parâmetros coloquem-se com independência em relação à esfera acadêmica, esta, por sua própria razão de ser, precisa incorporá-los enquanto referência necessária para o ensino da profissão, sendo que nessa operação eles passam a ser enquadrados segundo os modos de funcionamento e parâmetros do espaço acadêmico. E neste fechamento do campo os critérios se cruzam – a neutralidade técnica se conjuga à isenção de caráter científico, por exemplo – criando “enrijecimentos” de ação e percepção, dificultando a compreensão de novas dinâmicas da sociedade e novos modos de conhecer.

Conforme fica sugerido no item 2 deste trabalho, os parâmetros do mercado sinalizam o caminho mais evidente para uma análise, com base na competência profissional, do peso relativo que a criação e gestão de uma marca pode adquirir no possível sucesso um empreendimento.

Desfile na Unidos da Tijuca. Rio de Janeiro. 6 jun. 2008. Foto de Celso Pereira.

No entanto o recorte estritamente profissional – neutro e isento segundo os protocolos do mercado e sua replicação acadêmica –, não elimina o fato de que existe a atividade, correspondendo ao trabalho e suas especificidades e potencialidades técnicas e sociais, como algo distinto da profissão. Mesmo considerando que atividade e profissão se apresentam como um mesmo “corpo”, esta distinção analítica se justifica. Pois embora a efetivação da atividade dependa dos balizamentos profissionais que dispõem as condições de sua existência, isto pode se dar tanto como confirmação dessas condições, quanto relativamente, por meio da investigação/experimentação de alteridades, e celebração de um compromisso com um “objeto ampliado” e com uma abertura do conhecimento. Neste sentido a caracterização de uma autonomia da atividade se aproxima de iniciativas de revisão dos parâmetros igualmente técnicos e isentos das ciências sociais. Como indica Boaventura dos Santos “A experiência social […] é muito mais ampla e variada do que a tradição científica e filosófica concebe e considera importante” (Santos, 2006: 778).

A opção por uma referência analítica adequada à recuperação da experiência social presente na criação e difusão da marca Daspu – envolvendo aceitação da diferença e construção de cidadania –, assume a possibilidade de conexões e aberturas que enriqueçam o escopo do design e de disciplinas afins. E isto abrangendo caracterização técnica e posicionamentos sociais e culturais, tanto em termos da atividade quanto da profissão.

E finalizando, cabe registrar o paralelo, em termos do trabalho prático, a esta busca de abertura do campo em termos do conhecimento, destacando o desprendimento e generosidade dos profissionais que se engajaram no processo Daspu.

Referências bibliográficas

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CARLI, Ana Mery Sehbe de. O sensacional da moda. Rio de Janeiro: Educs, 2002.

CROSS, Nigel. “From a Design Science to a Design Discipline: Understanding Designerly Ways of Knowing and Thinking”. In MICHEL, Ralf (ed.). Design Research Now: Essays and Selected Projects. Basel: Bierkhäuser Verlag, 2007. p.41-54.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. “Postulados de lingüística”. In: Mil platôs – capitalismo e esquizofrenia. Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995. P. 11-60.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: A vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.

GASPARI, Elio. “Uma nova grife”. In: O Globo. Rio de Janeiro, 20.11.2005.Caderno O Pais. P.16.

GOIS, Ancelmo. “Ninguém agüenta mais ouvir”. In: O Globo. Rio de Janeiro, 26.11.2006. Caderno Rio, p.27.

LENZ, Flavio. Daspu – a moda sem vergonha. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2008.

LESSA, Washington Dias. “Prática de design e conhecimento”. Designe. Rio de Janeiro: Escola de Artes Visuais/ Univercidade, ano III, nº 3, outubro de 2001, p. 80-86.

LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero. Tradução de Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

MARTINS, José Roberto. O manual para você criar, gerenciar e avaliar marcas.3ª edição. 2006. Disponível em www.brandingemarcas.com.br/kose-roberto-martins

O GLOBO. “Fetiche”. In: O Globo. Rio de Janeiro, 14.01.2006. Caderno Ela Fashion, p.1.

OLIVEIRA, Sylvio de. Entrevista concedida a Fábio de Araújo Keidel. In: KEIDEL, Fábio de Araújo. Criação de marcas em movimentos sociais: uma análise do caso Daspu. Rio de Janeiro, 2008. Universidade Federal do Rio de Janeiro; Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Escola de Comunicação. p.54-62.

SANTOS, Boaventura de Souza (org.). Conhecimento prudente para uma vida decente – um discurso sobre as ciências revisitado. São Paulo: Cortez, 2006. [2003]

SIMMEL, Georg. “Fashion”. In: American Journal of Sociology. vol. LXII, Nº 6 , Chicago, may 1957. p. 541-558.

VILLAÇA, Nízia e Góes, Fred. Em nome do corpo. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

VILLAS-BOAS, André. Prefácio. In: LENZ, Flavio. Daspu – a moda sem vergonha. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2008. p. 10-17.

 

*Washington Dias Lessa é designer graduado pela ESDI Escola Superior de Desenho Industrial, onde leciona desde 1977, quando ela passa a integrar a UERJ. Tem doutorado em comunicação e semiótica pela PUC-SP e seu trabalho de pesquisa está voltado para questões ligadas à linguagem visual (contextualizadas historicamente ou não), às relações entre design e significação/comunicação, e à teoria e epistemologia do design. Além de artigos e capítulos de livros publicou “Dois estudos de comunicação visual”, onde analisa a participação de Amílcar de Castro na reforma do Jornal do Brasil nos anos 1950-1960. Como designer destacam-se seus projetos de design editorial e design de exposições.

* Jeanine Geammal é designer e professora do curso de Design de Produto da Universidade Federal do Ceará. Atua no campo do design de jóias, principalmente com a produção de joalheria-arte e no desenvolvimento de coleções. Organizou a coletânea “Joia em estudo” (Editora SENAI, 2009).

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1- Divulgação da “Carta de Princípios” da Rede Nacional de Prostitutas, divulgada pelo sítio “Beijo da Rua”, mantido pela Davida.

2- Visando, num primeiro momento, divulgar as questões relativas às lutas da ONG Davida.

3- Marcada pela figura de Flávio Lenz, assessor de imprensa da Davida
“dando à palavra ‘corpo’ a maior extensão, isto é, todo conteúdo formado” (Deleuze, Guattari, 1995: 26).

4- No texto original em francês o termo usado por Foucault é discours “en retour” (Histoire de La sexualité 1: La volonté de savoir. Paris: Gallimard, 1976. p.134). Em vez de discurso “de reação”, utilizado na tradução brasileira, consideramos mais fiel às intenções do autor a tradução discurso “reverso”.

5- Em inglês o termo também é traduzido por “reverse” discourse.

6- André Villas-Boas, prefaciando o Livro de Flávio Lenz, afirma que a novidade não reside “na realização de espetáculos ou atividades artísticas e de lazer […], mas na sua transformação em estratégia. A conformação estética não é mais um ‘braço cultural’ do movimento, mas tornou-se o próprio movimento”. (Villas-Boas, 2008: 13-14)

7- Apesar do encaminhamento desta investigação colocar-se como um questionamento desse paradigma, não cabe aqui indicar nem o seu processo de consolidação, nem a “geopolítica” acadêmica que dele decorre, nem as vertentes e natureza da crítica a que tem sido submetido.

8- Segundo uma das categorizações oficiais de ensino e pesquisa no Brasil, o design é uma ciência social aplicada.

9- A este respeito ver Cross, 2007: 41-46

10- A este respeito ver Lessa, 2001: 81-82.