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Cinema x Futuro – uma tomada de posição | de Rita Lima

Cinema x Futuro tiveram sempre uma relação recorrente. Seja pela sua ligação mais concreta com a tecnologia (que propõe novas formas de fazer, estar, ligar etc.), seja pelo apelo de projetar o que ainda não sabemos (na nossa mente e também na tela), porque não entramos ainda na sala escura e desvendamos afinal o que está por acontecer. É sabido que Lumière, um dos inventores do cinematógrafo e também criador de algumas das primeiras imagens do que chamamos cinema (1895), não via futuro para sua invenção senão como curiosidade científica. A criação de uma linguagem sedutora e instigante, construída no tempo, desmentiu seu inventor. A imagem do futuro talvez esteja ligada mais à capacidade de invenção continuada, a um vir a ser, do que a um momento de parada, onde coisas e nomes adquirem por um tempo solidez. A imagem do futuro é movimento, bem como a do cinema.

É certo que o cinema vem sendo reconhecido, por mais de cem anos, de forma coletiva, como aquela experiência de entrar na sala escura e passar um par de horas em frente a uma grande tela onde imagens e sons vão aos poucos nos contando uma história. Esse sólido dispositivo do cinema está mais uma vez se transformando, pela relação com as novas tecnologias computadorizadas de produção da imagem. E mais ainda pela manipulação desse dispositivo através de softwares que vêm tornando possível deslocar imagens e sons para fora do ambiente tradicional de recepção, reconfigurando as estratégias de linguagem na produção de sentido, criando assim novos cenários para a experiência do cinema.

Essa relação entre tecnologia x estética tem sido central para fomentar padrões de mudança na forma como o cinema é experimentado, ou ao menos para entender historicamente como essa experiência é reconfigurada pelos cinéfilos, pela crítica e mesmo pela indústria do entretenimento ou do mundo da arte. A relação de visibilidade/ invisibilidade entre técnica e estética tem sido central para criar movimentos poderosos e, quase sempre em conflito, como aqueles entre o chamado cinema narrativo ilusionista e as vanguardas estéticas. A produção do novo sempre se alimenta dessa disjunção. Uma disjunção que produz movimento, um movimento no tempo que faz valer formas que duram, que se desfazem, que se misturam, e vão construindo uma tapeçaria de possibilidades que exigem, por sua vez, uma subjetividade cada vez mais complexa para dar sentido às escolhas em um cenário com tantas camadas de informações.

Talvez possamos pensar que essas estratégias entre tecnologia x estética se repetem de forma mais ou menos dissimulada, e a experiência do novo se revele não tão nova assim. Mesmo que a repetição revele padrões recorrentes na relação entre tecnologia e estética, a experiência do cinema nos leva a responder aqui e agora a questões referentes às formas atuais de imersão, à linguagem, às definições e experimentações, ao ambiente etc. São esses cenários da experiência do cinema hoje que queremos discutir aqui, sem a pretensão de abranger um campo total, ou mesmo um panorama completo.

Muitas experimentações e investigações vão ficar de fora, mas algumas delas vêm reafirmar esse cenário múltiplo, experimental e que dialoga de forma mais ou menos evidente com a própria história do cinema e das artes. E dessa forma nos posicionamos aqui nessa onda de investigação que quer saber: para aonde vai o cinema?

Começamos esse número com algumas reflexões de Sandra Kogut, algumas notas, sobre como ela entende essa projeção do cinema no futuro. Achei interessante vincular a essa discussão temática sobre cinema e futuro o ponto de vista de uma artista que tem trânsito nacional e internacional em diferentes campos da produção audiovisual (cinema, TV, videoarte, instalações etc.) e que escreve em primeira pessoa as suas impressões.

Seguindo o texto de Kogut temos o de Arlindo Machado, que nos coloca no contexto da discussão sobre o dispositivo do cinema e questiona as escolhas estéticas da relação entre arte e cinema na criação desses mesmos dispositivos. O centro da discussão de Machado está na relação atual entre arte e cinema e mostra como essa discussão passa pela compreensão e criação de novos dispositivos de experimentação estética, bem como pelo cruzamento de definições e conceitos entre esses campos.

Roberto Moreira registra as experiências pioneiras do chamado “cinema expandido” nos situando nas experimentações de projeções múltiplas, desde a década de 1960 até a atualidade. Moreira apresenta um panorama das questões estéticas e tecnológicas mais recorrentes do momento histórico em que o cinema começou a expandir seus formatos, relação com a audiência, com os lugares de recepção e também com o mundo da arte, acompanhando esse movimento até os atuais cinema de museu, de artista etc. A discussão sobre projeções e formatos de exibição é significativa para estabelecer novas formas de visibilidade e padrões de interação com as imagens projetadas.

Brigitta Zics faz uma reflexão sobre formas de cognição e leitura do olhar a partir de experimentações com um novo dispositivo, chamado Cúpula, idealizado e projetado por ela e uma equipe multidisciplinar de engenheiros, filósofos e técnicos em computação da Universidade de Newcastle, na Inglaterra. Na Cúpula os usuários podem interagir com as imagens fazendo escolhas a partir da forma como seu olhar e sistema de respostas são afetados, apostando em possibilidades de interação menos automatizadas e que dialogam com nosso sistema mental de forma mais espontânea, afetiva e inteligente. Esses experimentos sugerem possibilidades de imersão bem mais expandidas, apontando para a ampliação dos ambientes e formas de recepção de imagens e sons, no mesmo caminho das pesquisas de Hugo Munstenberg com cinema e psicologia no início do século passado, quando publica o livro The Photoplay (1916), que dá conta da forma como o cinema acessa nosso psiquismo a partir do envolvimento de aspectos da sensação, da imaginação e da memória para a leitura e elaboração dos significados das narrativas fílmicas. A pesquisa de Zics se insere nessa linhagem investigativa, trabalhando agora com novos elementos que causam impacto na experiência com as formas expandidas do cinema.

Marcus Bastos introduz de forma diferente da tradicional a questão da narratividade a partir de um dispositivo estético e tecnológico envolvendo espaço público, interação com o público passante e o uso de celulares e internet. O artigo de Bastos constrói uma lógica de interrogação entre os conceitos de acontecimento, agenciamento e narrativa, fazendo um elogio à arte da performance do subtlemob como uma nova forma audiovisual que rompe o limiar entre ficção e realidade.

Ainda no terreno da performance e do audiovisual, Ivani Santana introduz a dança nesse campo expandido do cinema e do espetáculo. Fazendo um histórico dos registros da dança na sua relação com o audiovisual, com a tecnologia e com as novas estratégias estéticas computadorizadas, Santana apresenta sua pesquisa do corpo expandido na dança telemática. E dessa forma propõe uma dramaturgia telemática, interligando espaços e corpos em propostas estéticas que transcendem o tempo e o espaço linear. A dança telemática está fortemente apoiada em softwares que redistribuem imagens e sons, e reconectam bancos de dados atualizados em tempo real para a criação de uma proposta estética que, do mesmo modo que o cinema, trabalha com montagem de imagens e sons em movimento na produção de sentido.

Patrícia Moran discute os deslocamentos de estratégias discursivas envolvendo diversos gêneros do audiovisual contemporâneo, como documentário, games e animação, a partir do trabalho realizado por Gabriel Mascaro sobre Paulo Bruscky. Esses deslocamentos passam também pelos pontos de vista do diretor e do protagonista, ampliando os conceitos de sujeito e objeto nas narrativas fílmicas. Na primeira parte do artigo Moran faz ainda uma revisão crítica de alguns aspectos das teorias do cinema, apontando a necessidade de repensarmos nossa classificação conceitual dos pertencimentos e oposições das formas do cinema nesse novo cenário interdisciplinar das poéticas tecnológicas.

Fernando Rabello encerra nosso número com uma discussão sobre formas de composição e montagem, envolvendo a produção do curta-metragem Bloqueio, realizado por ele. As passagens entre imagens de vídeo, cinema e animação envolvem uma discussão sobre montagem fílmica, que acompanha as mais recentes discussões sobre estética fílmica e de banco de dados na composição narrativa.

Como já sinalizei antes, esse número temático sobre cinema e futuro não tem a pretensão de abarcar todas as discussões e experimentações nesse campo, nem mesmo produzir um panorama do campo como um todo. Nossa proposta aqui foi reunir alguns pontos de vista que levantassem questões sobre o tema e nos ajudassem a prosseguir na investigação sobre as novas formas de cinema. Feito isso, agradeço a todos os autores que nos brindaram com seus textos e reflexões e também, muito especialmente, a Heloísa Buarque, que aceitou e incentivou a sugestão desse tema sob minha curadoria e a Beatriz Rezende, que acolheu a proposta para publicação na Z Cultural.


Rita Lima é professora e pesquisadora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), no Curso de Cinema e Audiovisual, com o Projeto de Pesquisa Cinema Expandido, experimentação e novas formas de cinema: um diálogo com o Recôncavo Baiano. Mestre em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde desenvolveu trabalho sobre a autoria na produção independente de vídeo no Brasil na década de 1980, e doutorado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), com trabalho sobre a artista multimídia Sandra Kogut e reflexão sobre o lugar do artista no mundo atual. Tem experiência acadêmica nas áreas de Artes e Tecnologia, com ênfase em Cinema, novas tecnologias digitais. É também pesquisadora do PACC/UFRJ no grupo de pesquisa Polo Digital.

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Cinema / futuro / passado | de Sandra Kogut

Berlim, novembro de 2011.

Estou em Berlim, passando alguns meses graças a uma bolsa muito generosa, que me permite fazer o que quiser (no meu caso escrever um roteiro e experimentar com imagens, sons, ideias, tudo sem compromisso) numa cidade tão rica, complexa, fascinante. Um luxo. Recebo esse convite para escrever sobre o Futuro e o Cinema. Engraçado. De uns tempos pra cá só ouço falar de cinema como algo do passado, em vias de extinção, assim como os jornais impressos, os livros, os correios, o euro, e quem sabe até mesmo o mundo ocidental. Aqui, porém, se trata de cinema no futuro. Mas o que é mesmo cinema? Será que também virou um luxo? Hoje tantos mundos se encaixam dentro dessa palavra.

Há duas semanas fui ver um filme francês que tinha acabado de ser lançado aqui com relativo destaque, filme premiado em Cannes, um dos maiores festivais de cinema do mundo. Na sala – surpreendentemente pequena – só eu. Uma sessão privada, na primeira semana de lançamento! Será que eles vão manter a sessão mesmo assim? – pensei preocupada. E mais preocupada ainda com essa sensação recorrente de que o cinema está acabando (mesmo que secretamente desfrutando do luxo da sala vazia). Cresci numa época na qual a visão de um lugar vazio não dava automaticamente a sensação de que aquilo ia acabar. Mas aprendemos a pensar de modo maximizado. Se um avião está vazio o voo é cancelado. No cinema parece que ainda não é assim. Depois da luz apagada entrou mais alguém. No final da sessão, embalados pela situação tão estranha de sermos só nós, embarcamos numa conversa animada sobre o filme, o desconhecido e eu. Devia ser assim na época dos cineclubes, pensei.

Claro, existem os blockbusters, as salas lotadas, os sucessos de massa. Cada vez mais eles se parecem na linguagem (e muitas vezes são) com séries de televisão. Muitos closes, edição picotada, roteiro montado no liquidificador e um túnel, em linha reta, aonde a gente avança sentado num carrinho de montanha russa, e nem precisa de cinto, porque riscos não há. Nada que pareça pedir uma tela grande pela maneira como foi filmado, a não ser pela dimensão do marketing e pela amplitude que o termo “cinema” ainda parece trazer. Então hoje seria isso cinema?

Desde garota eu sonhava em fazer cinema. Adoro estórias, mas adoro também uma coisa que, acredito, só o cinema permite: uma percepção mais sensorial, intuitiva, pós (ou pré) verbal, feita dessa proximidade gigantesca com a imagem ampliada, como se estivéssemos entrando num mundo de muitos mundos, internos e externos. Misteriosos. Entrarmos no inconsciente dos personagens e no nosso próprio – aquele friozinho na barriga de empolgação na hora que as luzes se apagam e, pronto, vai começar.

Na época que eu comecei as escolas eram poucas, mal equipadas, tudo era difícil. Por acaso – sem saber bem o que isso queria dizer – fui fazer vídeo. Me via como alguém que se movia no mundo audiovisual, o que estava longe de ser uma linha reta e menos ainda um plano de carreira. Não tinha a menor ideia do que aconteceria depois de alguns anos. A mídia utilizada para cada trabalho dependia do projeto e podia ir de uma caneta a diferentes tipos de câmeras (de vídeo, película, super 8, 16, fotográfica). Um projeto pedia apenas sons, outro seria melhor sob a forma de instalação. E assim por diante. A escolha era uma questão artística, não de produção. O grande desafio era estar criando uma obra audiovisual que tivesse uma razão de existir, uma necessidade, pelo menos pra mim, e que eu reconhecesse nela um olhar que eu acreditasse ser o meu. O vídeo me encantou porque parecia um terreno onde tudo era possível, sem muita história pra trás, um pouco como o momento de vida que eu vivia. Um dia eu ainda faço cinema, pensava, sem pressa.

Eram os hoje históricos anos 1980. Gostávamos de enfatizar: eu faço vídeo, não é cinema, não é televisão. O que era então? Ninguém sabia muito bem, mas numa coisa todos concordavam – vídeo era uma espécie de terreno virgem, terra de ninguém, lugar de todas as experimentações. O vídeo ainda não tinha entrado no Mundo das Artes pela porta da frente. Era preciso afirmar para existir. Tudo era fruto de uma escolha, questionado: como mostrar, onde projetar, por que a tela é grande, pequena, por que precisamos de uma tela. Ainda lembro a primeira vez que fui a um Festival – da Fotóptica Vídeo Brasil, em São Paulo – o alívio que senti em ver que existiam outras pessoas, em outros lugares, interessadas nas mesmas coisas que eu. Era bem solitário.

Hoje, mais de 20 anos depois, a minha maneira de estar no mundo basicamente não mudou. Mas o mundo sim, mudou completamente. Só de pensar nas diferentes tecnologias que já fizeram parte da minha vida e do meu trabalho, fico exausta. E o meu dia de fazer cinema acabou chegando também. Mas é engraçado que hoje, quando as pessoas falam dos meus vídeos antigos, os chamam de filmes. Tudo o que eu fiz no início – os vídeos experimentais, as experiências digitais e eletrônicas – tudo agora se chama filme. Tudo se chama cinema. Cinema de artista, de museu, de arte. É uma questão de mercado, não mais uma questão artística.

Nos anos 1990 uma palavra mágica começou a circular – o digital. O que era isso exatamente? Ninguém sabia dizer muito bem, mas quando se usava essa palavra, portas se abriam, mundos se cruzavam. O pessoal do cinema se misturava com o do vídeo (casamento até então improvável) e ambos penetravam no terreno proibido da televisão. Antigas hierarquias caíam da noite pro dia. O digital foi uma palavra coringa, e permitiu cruzamentos até então impensáveis. Mas num mundo onde tudo está apenas um mero click adiante, como avançar?

Semana passada fui de novo ao cinema, dessa vez para a abertura de um festival. O filme parecia um programa de televisão, um telefilme. Por que estava no cinema então, abrindo um festival? Será que a palavra cinema também virou uma palavra dessas, como “político”, “orgânico”, “autêntico”, uma dessas palavras que a gente quase não pode usar mais? Hoje em dia, colocar a palavra cinema em alguma coisa implica dar a ela algum tipo de legitimidade, tal uma etiqueta de marca, um selo, que talvez não queira dizer mais nada. Pode ser que não seja o cinema que esteja acabando, mas que tudo passou a se chamar cinema. Cinema faz referência a uma roupagem chique, uma respeitabilidade. Cinema virou uma palavra relíquia, um golpe de marketing. Mas e a profundidade de foco, o tempo narrativo, tudo aquilo que só funcionava na tela grande? Será que não deveríamos estar falando das mudanças na linguagem?

No início do cinema ele tinha muitas formas, muitas possiblidades. Filmetes passavam em praça pública em maquininhas movidas a moedas, ou então eram projetados em cabines, em feiras. As experiências eram muitas. A sala escura, a tela grande, o filme narrativo, as sessões de aproximadamente duas horas de duração – tudo isso era apenas mais uma possibilidade daquela mídia. Não a única e, por um momento, talvez nem claramente a mais importante. Mas logo essa forma passou a dominar, e o cinema virou o grande acontecimento cultural do século 20. A outra via, mais incerta, fragmentada, múltipla, se transformou no cinema experimental, nas instalações, nas formas mais mutantes. Existia lugar para tudo – lugares diferentes, com certeza, mas igualmente possíveis, cada um a sua maneira. Isso permanece, de alguma forma. Talvez estejamos inclusive retornando a isso.

Mas o que parece ter mudado é a discussão sobre a linguagem. Para onde ela foi? Quem sabe o mais fascinante seria resgatar essa conversa que foi sequestrada pelo marketing. Esquecer por um minuto a palavra cinema e tentar pensar no desconhecido, no porquê do tamanho da tela, que podem ser muitos, nas condições de projeção, que podem ser únicas para cada trabalho, no desafio artístico que é circular num mundo no qual todos são produtores potenciais de imagens e sons. Essa discussão, sim, está engatinhando. Vai ser uma festa quando ela se espalhar, porque não temos a menor ideia de aonde ela vai nos levar. Isso é no mínimo tão empolgante quanto sentar numa sala de cinema esperando que as luzes se apaguem.


* Fez seus primeiros trabalhos em 1984 e desde então vem utilizando diferentes mídias e formatos: ficções, documentários, filmes experimentais, instalações. Seus trabalhos receberam vários prêmios internacionais (em Festivais como Rio, Berlin, Oberhausen, Kiev, Leipzig, Locarno, Havana, Rotterdam e muitos outros) e foram exibidos no MoMA (NY), Guggenheim Museum, Forum des Images (Paris), Harvard Film Archives (EUA) entre outros. “Mutum” seu primeiro longa-metragem de ficção – baseado no livro Campo geral de João Guimarães Rosa – teve sua estreia mundial no Festival de Cannes 2007, na Quinzena dos Realizadores, recebendo mais de 20 prêmios nacionais e internacionais. Em 2011/2012 passou um ano em Berlim como convidada da DAAD Berliner Künstlerprogramm. Foi também professora na Escola Superior de Belas Artes em Strasbourg (França) e nas universidades americanas de Princeton, Columbia (film program) e University of California San Diego / UCSD. É atualmente Visiting Scholar na New York University.

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Cinema e arte contemporânea | de Arlindo Machado

De tempos em tempos acontece uma problematização do chamado dispositivo cinema. Esse dispositivo foi magnificamente descrito por Jean-Louis Baudry em dois textos antológicos: Cinéma: effets idéologiques produits par l’appareil de base (1970) e Le dispositif: approches métapsychologiques de l’impression de realité (1975). Conforme a descrição de Baudry, o dispositivo cinema compreende a sala escura que remete à caverna de Platão, o projetor ocultado às costas dos espectadores, as imagens projetadas numa tela branca à frente, as caixas de som também ocultadas etc. Ao longo de mais de cem anos de história, os cineastas sempre quiserem dominar esse dispositivo, fazer filmes para ele e ainda hoje o sonho de todo jovem cineasta é fazer um longa-metragem para entrar em cartaz numa sala de cinema. Mas por que o cinema é como ele é? Não poderia ser diferente?

Na verdade, quando o cinema começa, no final do século 19, ele ainda não havia cristalizado um modelo industrial único; em outras palavras, ele ainda não tinha constituído o seu dispositivo e, portanto, o primeiro cinema se caracteriza por uma certa anarquia produtiva. De fato, na virada do século 19 para o 20, não existia ainda nenhuma forma padronizada de produzir e exibir filmes. O cinema de Thomas Edison, por exemplo, chamado de quinetoscópio, era exibido em visores individuais, num aparelho parecido com a atual televisão, com o filme rodando em loop dentro da máquina e projetado por trás da pequena tela. Talvez tenham sido os irmãos Lumière que tiveram a ideia de associar o cinema à sala de teatro como forma de ganhar dinheiro com a arrecadação das bilheterias, os que introduzem a projeção frontal e a sala escura coletiva. Mas, em 1895, quando os franceses supõem estar inventando o cinema com as projeções dos irmãos Lumière no Grand Café de Paris, William Dickson, funcionário de Thomas Edison, responsável pela primeira invenção do cinema, já estava publicando nos EUA o primeiro livro de história do cinema (Dickson, 1895). Ou seja, o cinema já era tão velho que até já tinha uma história para ser contada.

Durante as primeiras décadas de existência do cinema, a projeção podia ser realizada em várias telas em vez de em uma só, ou então vários projetores diferentes podiam ser apontados para a mesma tela, em front projection e back projection, de modo a possibilitar efeitos de fusão, superposição, janelas simultâneas e inserção de uma imagem dentro de outra. Os filmes eram mais frequentemente exibidos nos vaudevilles ou cafés concerts, que eram ambientes mistos e iluminados para onde as pessoas iam com a intenção de beber, ouvir música ao vivo e dançar. Várias telas podiam ser estendidas ao longo desses ambientes para possibilitar projeções simultâneas, sincronizadas ou não com as músicas executadas ao vivo. Nada muito diferente dos atuais espetáculos de Vjying ou live images, com a única diferença de que naquela época as imagens não eram ao vivo, só a música.

Os filmes dos primeiros tempos não vinham ainda “fechados” numa montagem definitiva e o exibidor tinha tanto poder quanto o produtor de interferir na montagem. Era comum que os planos de um filme viessem em rolos separados: o exibidor comprava quantos rolos quisesse e montava o seu filme na ordem que bem entendesse. O modo de projeção também não estava definido: cada exibidor podia inventar o seu próprio “cinema”, projetando por detrás da tela (back projection), em telas paralelas, ou fundindo duas ou mais imagens simultâneas na mesma tela (efeito de fusão decidido pelo projecionista e não pelo produtor). Essas imagens deslocadas, sem lugar definido na contiguidade da projeção, sempre foram um enigma na historiografia do cinema e somente agora se está começando a entendê-las como sintomas dessa fundamental heterogeneidade dos primeiros filmes.

O cinema, tal como o conhecemos hoje, é uma instalação que se cristalizou numa forma única: um spot de luz situado atrás da plateia, ao atravessar uma película, projeta as imagens ampliadas da película numa única tela à frente dos espectadores mergulhados numa sala escura. Essa instalação foi planejada pela primeira vez quase quatrocentos anos antes de Cristo por Platão, em seu livro A República, mais especificamente na sua famosa alegoria da caverna, mas foi generalizada no século 17 por Athanasius Kircher, com o seu modelo de espetáculo de lanterna mágica. O cinema petrificou esse modelo durante mais de cem anos e constitui mesmo um fato surpreendente que durante esse tempo todo pessoas de todo o mundo tenham saído de casa todos os dias para ver sempre a mesma instalação, ainda que com imagens diferentes.

O modelo de cinema que hoje conhecemos começa a se consolidar na primeira metade do século 20 com o surgimento dos nickelodeons, as primeiras salas dedicadas exclusivamente à exibição de filmes, mas alcança o seu apogeu na década de 1910 com o surgimento dos confortáveis (e caros) palácios do cinema e dos feature films (filmes de longa-metragem). Os filmes passam a ser alugados e não vendidos como antes, o que impede a intervenção do exibidor na película. O tipo de filmes produzido a partir de então (basicamente narrativo e de longa duração), associado ao efeito ilusionista buscado, praticamente exigiam o dispositivo elementar baseado no efeito mimético da fotografia, na ilusão de movimento produzida pela câmera, na sala escura e vedada acusticamente, na projeção numa tela grande e única, e no ocultamento do projetor e das caixas de som.

A primeira problematização desse dispositivo se dá na vanguarda cinematográfica dos anos 1920. Abel Gance faz um filme (Napoléon, de 1927) que, na sua forma original, já não pode mais ser exibido numa sala tradicional de cinema, pois exige três telas colocadas uma ao lado da outra. Nessas três telas são projetadas três imagens sincronizadas que, ora repetem três vezes a mesma figura, ora formam uma única figura extraordinariamente larga, e ora exibem três figuras diferentes. Recordemo-nos, por outro lado, de que o filme mais célebre da vanguarda francesa, Entr’acte (1924) de René Clair, foi feito para ser exibido no intervalo entre os dois atos do balé Relâche, de Francis Picabia, com música de Erik Satie. E o primeiro filme de Serguei Eisenstein – Dnevnik Glumova (O Diário de Glumov/ 1923) – foi feito para ser inserido dentro de uma peça teatral remotamente baseada em Aleksandr Ostróvski e dirigida pelo mesmo Eisenstein. Este último cineasta, aliás, muito frequentemente se indispunha contra o dispositivo standard do cinema, inclusive contra o próprio formato retangular da tela, em posição horizontal, dita “de paisagem”, e contra as cadeiras confortáveis, que convidavam ao sono (talvez seja por isso que Félix Guattari chamava o cinema de divã dos pobres). No entender de Eisenstein, um cinema de agitação política, um cinema militante, como o que ele fazia, devia ser exibido nas praças públicas, numa tela vertical, para um público em pé e que pudesse reagir com indignação, fazer gestos políticos e entoar palavras de ordem durante a projeção.

Essa preocupação volta a se manifestar novamente no seio do cinema experimental, sobretudo o norte-americano, nos anos 1960. Um dos primeiros a evidenciar essa nova mentalidade foi o crítico Gene Youngblood, num livro fundamental, publicado em 1970, chamado Expanded cinema. Observando o que estava acontecendo ao seu redor, principalmente no âmbito do cinema experimental underground, Youngblood percebe que o conceito tradicional de cinema havia explodido. Alguns cineastas faziam filmes para serem projetados não mais em telas, mas nas roupas brancas de bailarinas em situações performáticas; Stam Brakhage realiza filmes simplesmente colando asas de borboletas sobre uma película virgem; Ken Jacobs propõe um filme (Tom Tom, the piper’s son/ 1969) em que parte dele deveria ser projetado com a película fora da grifa e, portanto, sem exibição dos fotogramas; Andy Warhol concebe o seu Chelsea girls para duas telas paralelas e simultâneas, resgatando a famosa experiência de Abel Gance com seu Napoléon; alguns filmes já não eram mais feitos com câmeras, mas diretamente modelados e animados em computadores (como toda a obra dos irmãos John e James Whitney), enquanto outros (os de Nam June Paik, por exemplo) não usavam mais películas, mas fitas eletromagnéticas e eram exibidos em aparelhos de tevê. No entender de Youngblood, o cinema experimental esboçava uma espécie de “retorno” à anarquia inicial do primeiro cinema, quando ainda não havia sido cristalizado um modelo industrial único.

O salto para fora do modelo canônico e platônico de projeção cinematográfica começa a acontecer com as instalações cinematográficas, uma das derivações do conceito mais genérico de instalação que nasce nas artes visuais. A rigor, a história da arte contemporânea registra poucas cineinstalações, pelo menos se compararmos com as videoinstalações e as instalações propriamente ditas e as poucas que existem são iniciativas que partem de gente das artes visuais, raramente de gente do próprio cinema (exceções: Agnès Varda, Eija-Liisa Ahtila, Chantal Akerman, Peter Greenaway e mais alguns).

Duas exposições particularmente me chamaram a atenção para esse filão menos conhecido das instalações. A primeira – Scream and scream again (Film in art) – foi montada no Museum of Modern Art de Oxford em 1996 e incluía trabalhos de, entre outros, Sadie Benning, Douglas Gordon, Tony Oursler e Liisa Roberts. A cineinstalação mais surpreendente foi a da holandesa Marijke van Warmerdam, chamada Kring (Círculo) e compreendia um projetor de 16 mm colocado no centro de uma sala de exibição circular. Esse projetor, colocado sobre uma plataforma móvel, girava em torno de seu próprio eixo fazendo um movimento de 360º, projetando um filme de três minutos, em loop, que se movia ao longo da parede, na sala escura. A impressão que tinha o espectador era a de uma noite escura em que alguém, com uma lanterna na mão, fazendo um movimento circular, iluminava e tornava visível partes sucessivas do cenário ao redor. E o cenário era um mercado em Marrakech onde uma multidão predominantemente masculina olhava estupefato para uma mulher sozinha que se colocava no centro da cena e os encarava com sua câmera (comportamento proibido pelos setores mais ortodoxos do islamismo).

Outra exposição importante foi Projections, les transports de l’image, que ocorreu no Le Fresnoy, Studio National des Arts Contemporains, em Tourcoing, França, entre 1997 e 1998, com cineinstalações de Atom Egoyan, Bill Seaman, Alain Fleischer, entre outros, com destaque para uma obra histórica de Michel Snow, Two sides to every story (1974), na qual uma tela transparente colocada no centro de uma sala permitia ver não apenas as combinações de duas imagens em movimento projetadas nos lados opostos do tecido, mas também a paisagem real (incluindo os espectadores) filtrada pela tela e pela luz projetada. No dizer do próprio Snow (apud Païni, 1997: 196), o objetivo era “trabalhar a natureza ao mesmo tempo opaca e transparente do material fílmico em uma série de variações sobre a realidade e a ilusão de um espaço representado”. Vale lembrar ainda a contribuição de alguns brasileiros ao campo da cineinstalação, notadamente Hélio Oiticica, em suas experiências com o “quase cinema” (projeto Cosmococa), mas também Rosangela Rennó, Paula Trope, André Parente, Kátia Maciel, entre outros.

Recentemente, com o surgimento do digital e da internet, essa ideia de sair para fora do cubo negro (equivalente cinematográfico do cubo branco das artes visuais) ganhou nova força. Em 2008, tivemos em São Paulo um grande evento dedicado a um cinema de tipo instalativo, que exigia novos espaços de exibição. Essa mostra, chamada Cinema sim e com curadoria de Roberto Cruz, contou também com um seminário e um livro coordenados por Kátia Maciel (2009), de que participaram pensadores, realizadores e curadores de várias partes do mundo.

Entre os vários trabalhos exibidos na mostra, destacou-se uma vertiginosa instalação de Julian Rosefeldt, chamada Stunned man (2004). Esse trabalho, filmado em Super-16 mm e transferido para DVD, era projetado em duas telas colocadas lado a lado. O efeito das duas telas é estonteante. Ora as duas imagens são especulares, ou seja, uma é a inversão simétrica da outra, ora elas são diametralmente opostas: uma mostra um homem destruindo a sua casa num acesso da fúria e a outra mostra o mesmo homem a reconstruindo calmamente. Chega um momento em que o homem da tela esquerda atravessa o quadro e entra na tela da direita, enquanto o outro faz o percurso inverso. Então, a casa que estava reconstruída começa a ser demolida, enquanto a outra volta a ser reconstruída. Uma vez que o trabalho está em loop, isso vai se repetir infinitamente: o personagem enfurecido vai sempre destruir a casa e o seu duplo pacífico vai sempre reconstruí-la, apenas invertendo os lados. O resultado é uma estranha forma de caleidoscópio, em que as imagens especulares fundem de forma paradoxal a simultaneidade e a sucessão.

Um outro trabalho visceral mostrado na mesma exposição de São Paulo foi La peau (A pele/ 2007), de Thierry Kuntzel. Um projetor especial, chamado Photomobile, exibe ininterruptamente, em loop, uma película de 70 mm que é, na verdade, uma montagem de fotos de peles das mais variadas pessoas. Como os corpos não são identificados, o que vemos na tela é um traveling infinito sobre um corpo que se confunde com uma película cinematográfica em contínuo movimento. Em um texto escrito em 1973, Kuntzel faz uma distinção entre o filme-película, ou seja, a sucessão de fotogramas fixos, as fotografias que constituem a base física do filme e, de outro lado, o filme-projeção, aquela imagem contínua em movimento que é projetada na tela e que é, por sua vez, resultado de um efeito psicológico (chamado phi em psicologia) da fusão de todos os fotogramas.

O cinema é normalmente entendido como o efeito de projeção, mas o conhecimento do cinema, a sua análise e a sua interpretação são resultados de um jogo entre o filme-película (o cinema entendido com uma fisicalidade constituída de fotogramas e planos) e o filme-projeção (o efeito de realidade produzido pela projeção na sala escura).

O fílmico que estará em jogo na análise fílmica não se encontrará nem do lado da mobilidade nem do da fixidez, mas entre os dois, no engendrar do filme projeção pelo filme-película, na negação desse filme-película pelo filme-projeção (Kuntzel, 1973: 110).

É somente dentro dessa perspectiva que se pode compreender um projeto como The Tulse Luper suitcases (2003), de Peter Greenaway, que é um work in progress, compreendendo (pelo menos no projeto original) três longas-metragens de cinema realizados com tecnologia digital e mais DVDs, livros, blogs, websites, VJ perfomances, games de computador, óperas, séries de tevê, exposições de arte e instalações. A base do projeto é um conjunto de 92 maletas (daí 92 instalações e 92 DVDs) que Luper foi espalhando pelo mundo desde 1928 até 2003. No dizer de Maria Esther Maciel (em conferência de 2007):

são maletas de conteúdo variado e extravagante, que funcionam como arquivos nômades de uma vida e de um tempo, mas que se dão a ver como coleções arbitrárias, subjetivas e heteróclitas, que desafiam os sistemas de classificação legitimados pela lógica burocrática dos arquivos institucionais.

Tudo isso para demonstrar a impossibilidade de se traçar inteira e coerentemente a biografia imaginária de um homem que se confunde com a história do século 20, fazendo multiplicarem-se objetos, arquivos e coleções anárquicas, em estado de dispersão. É como se Greenaway quisesse substituir a ideia de uma síntese de todas as artes (conforme Wagner, a propósito da ópera) pela ideia mais contemporânea de dissolução de todas as artes pela obra pós-midiática.

Mas essa fuga do cinema para fora da sala tradicional de exibição e a migração de alguns cineastas ao espaço expositivo do museu, além de também a migração dos próprios artistas visuais à tecnologia e à linguagem do cinema e do audiovisual, apresentam os seus problemas. Não podemos nos esquecer de que assim como o cinema se cristalizou num modelo único de exibição, as artes visuais também acabaram se cristalizando no modelo canônico e hegemônico da instalação. Fazer arte contemporânea hoje é fazer uma instalação. Uma Bienal é uma grande coleção de instalações, cada uma delas ocupando uma sala específica. Se podemos criticar os cineastas por não conseguirem se livrar do modelo hegemônico do filme de longa-metragem de 35 mm para ser exibido numa sala de cinema, também podemos criticar os artistas visuais por não conseguirem se livrar do modelo hegemônico da instalação.

O problema é que nem todo trabalho audiovisual é adequado ao ambiente instalativo. De um lado porque, muitas vezes, são longos demais e portanto exigem um espaço de recepção mais adequado, com cadeiras para sentar-se. Assistir a uma obra audiovisual de longa duração em pé e com um monte de cabeças na frente, gente entrando e saindo a todo tempo é um pouco torturador. Além disso, com a predominância cada vez maior de obras audiovisuais, produz-se, num ambiente como o das bienais, um problema sério de vazamento de sons. Em cada sala ouve-se os sons de todas as outras instalações. Claro que há solução técnica para isso, mas a solução é cara e em geral restringe a audição a poucos espectadores. O problema maior é que muitos trabalhos audiovisuais exibidos (em geral documentários) são trabalhos argumentativos, discursivos, têm começo, meio e fim e só podem ser devidamente apreciados se vistos por inteiro. Mas nas condições do espaço instalativo isso é quase impossível. Não se sabe quando começam os programas, sempre chegamos no meio da exibição e precisamos depois ficar esperando recomeçar para ver a parte que perdemos. A maioria das pessoas não vê os trabalhos inteiros, até porque as bienais são muito grandes e não dá para dedicar meia hora ou uma hora de atenção para cada trabalho. Uma boa parte desses trabalhos poderiam ser muito melhor apreciados e entendidos numa sala de cinema tradicional, com cadeiras confortáveis e com encosto, com horário para começar e acabar. Não vejo porque eles precisam ser exibidos em forma de instalação se eles não exigem nenhum tipo de interação com o espectador. Para funcionar num espaço instalativo a obra precisa ser curta, de preferência sem desenvolvimento linear (podendo portanto começar a ser vista a partir de qualquer ponto e ser interrompida também em qualquer ponto) e estruturada em forma de loop.

Uma pessoa não pode ver o Citizen Kane (Cidadão Kane/ 1941) entrando na sala de cinema em qualquer momento e vendo apenas uma parte. Se fizer isso, ela não terá visto o filme de Orson Welles. É preciso estar no começo para ver o plano de Kane morrendo depois de dizer a célebre palavra “Rosebud”. É preciso acompanhar os repórteres que vão ouvir os amigos e familiares de Kane para tentar descobrir o significado de “Rosebud”. E, finalmente, é preciso estar presente no final, quando os empregados jogam todos os bens de Kane numa fornalha e a câmera dá um close num trenó infantil onde está escrita a palavra “Rosebud”. O filme tem uma estrutura completa, tem um desenvolvimento planejado para ser fruído ao longo de um tempo e, portanto, não é possível vê-lo num espaço instalativo.

Em 2010, vi em Barcelona duas exposições que estavam acontecendo ao mesmo tempo em dois lugares diferentes e por acaso tinham o mesmo tema: a relação entre televisão e a arte contemporânea. O tema era o mesmo, mas as concepções curatoriais eram diametralmente opostas. A exposição do Centro Cultural Santa Mônica, com curadoria da italiana Valentina Valentini, focalizava os artistas visuais que incorporaram a televisão em suas obras, seja a televisão enquanto aparato ou dispositivo, seja a televisão enquanto iconografia, ou seja, os seus programas. Todas as obras foram concebidas para um espaço instalativo e a televisão era apenas uma presença ali, ligada ou desligada, no ar ou for do ar. Ali tínhamos, por exemplo, o famoso Cadillac de Wolf Vostell, cheio de aparelhos televisores cravados em seu casco, ou os robôs de Nam June Paik construídos apenas com aparelhos de tevê sintonizados em canais quaisquer. A exposição funcionou muito bem porque todos os trabalhos foram feitos para o ambiente de um museu.

Já a outra exposição, montada no Museu de Arte Contemporânea de Barcelona (Macba), com curadoria de Chus Martínez, foi um fracasso. Por quê? A concepção era diferente: não se tratava mais de pôr foco nos artistas que trouxeram a televisão para o museu, mas ao contrário, destacar os artistas visuais que foram à televisão, que foram fazer a sua arte na televisão, para ser exibida na televisão e não mais no museu. Ora, trazer essas obras para o espaço do museu e ainda por cima exibi-las em forma instalativa significava matar as obras, pois elas não haviam sido concebidas para esse modo de exibição. A seleção dos trabalhos era muito boa e bastante abrangente, incluindo também alguns trabalhos brasileiros (por exemplo, os sketches de Glauber Rocha para o programa Abertura, da TV Bandeirantes), mas esses trabalhos não funcionavam projetados num telão numa sala escura sem cadeiras e ainda mais com vazamento sonoro em todas as salas. A maioria dos programas era de longa duração, chegando a até duas horas e ninguém conseguia ficar todo esse tempo de pé numa sala cheia de gente em movimento apenas para ver televisão, mesmo que de boa qualidade. Cada sala tinha um tratamento temático e se dedicava a um assunto, com uma lista de programas para serem exibidos, mas o visitante nunca podia saber quando seria exibida especificamente alguma coisa que ele quisesse ver. Ou seja, esse é um tipo de programação que deveria estar endereçado a uma sala de exibição, com horários marcados para cada sessão e para cada programa. Ali pude entender melhor o meu desconforto com relação a boa parte dos materiais audiovisuais exibidos em bienais. Nem todos os artistas estão sabendo lidar com um espaço instalativo, muitos deles trazem vícios que vêm do cinema ou do audiovisual tradicionais na maneira de narrar ou de estruturar as ideias.

De qualquer forma, o que se vê hoje no cinema é um movimento no sentido de romper com o dispositivo que imperou ditatorialmente por mais de cem anos e buscar inspiração para mudanças no campo das artes visuais. Por outro lado, contraditoriamente, percebemos, no campo das artes visuais, um movimento inverso, no sentido de buscar formas e conteúdos do cinema, como a narração e o documentário, a projeção em sala escura e assim por diante. Se o cinema e a arte contemporânea puderem se encontrar em algum lugar no meio do caminho para trocar experiências, talvez esse encontro seja produtivo para os dois, no sentido de superar os atuais impasses.

* Professor do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) e do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da Universidade de São Paulo (USP). Seu campo de pesquisas abrange o universo das chamadas “imagens técnicas”, as imagens produzidas por mediações tecnológicas diversas, tais como a fotografia, o cinema, o vídeo e as atuais mídias digitais e telemáticas. Autor, entre outros, dos livros Eisenstein: geometria do êxtase (Brasiliense) e Máquina e imaginário: o desafio das poéticas tecnológicas (Edusp).


Referências:

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Experiências pioneiras em cinema expandido | de Roberto Moreira S. Cruz

Se depois de um século o cinema tem sido basicamente pensado e vivido como um dispositivo bem normatizado (a projeção em sala escura de imagens em movimento sobre uma tela de grande formato diante de espectadores sentados por um certo tempo e absorvidos na identificação daquilo que desfila), temos visto nos últimos anos, num movimento crescente (cujas origens remontam aos anos 1920), questionamentos acerca desta forma instituída de apresentação, da natureza daquela normatização e das eventuais possibilidades de deslocamento ou de renovação do dispositivo modelo. O cinema se movendo agora no campo da arte contemporânea […] e a questão que ele passou a suscitar é a seguinte: podemos expor o cinema como se expõe uma imagem de arte, no espaço iluminado de uma sala de museu, diante dos visitantes que passam? (Dubois, 2004: 113).

É cada vez mais frequente a presença de uma situação cinematográfica em espaços distintos ao da sala de cinema. Nos circuitos demarcados por museus, galerias, mostras de arte contemporânea e centros dedicados à artemídia, o público encontra o que pode ser considerada uma tendência nos modos de se exibir obras audiovisuais. O chamado cubo branco tradicional se transforma em caixa preta. O espaço da exposição transforma-se em espaço da projeção. O cinema se instala no museu e as imagens projetadas nestes ambientes sugerem modos originais de elaborar e compreender as narrativas propostas nessas circunstâncias. Ocupado pelos dispositivos da projeção, pelos códigos sonoros e visuais da imagem em movimento e pelos significados da narrativa, o espaço expositivo se integra ao espaço fílmico e vice-versa, e dessa imbricação de funções decorre uma expansão sobre o que se entende e se define por cinema.

Esses aspectos determinam formas particulares de compor e exibir as imagens. Rompe-se com a obrigatoriedade de uma tela única e frontal, de um discurso audiovisual linear e sequencial. Permite-se ao realizador um exercício plural, que conjuga inclusive a possibilidade de se trabalhar com telas simultâneas e com a sincronização entre vários canais ou fontes de imagem e som, compondo elementos narrativos originais particularmente possíveis nesses modos de exibição.

Em ensaio publicado na revista Exit Art, Antonio Weinrichter (2006: 9) define como screen artist essa produção audiovisual originada da apropriação, por parte dos artistas contemporâneos, da linguagem e dos meios técnicos próprios do cinema. Tal qual as práticas propostas pelo cinema experimental das vanguardas europeias dos anos 1910 e 1920, do New American Cinema e do filme estrutural britânico, ambos das décadas de 1960 e 1970, essa corrente contemporânea de um cinema realizado para ser exibido em exposições busca quebrar com o efeito ilusionista mais imediato do filme de narrativa clássica, fixando a atenção em aspectos como a textura da imagem, o suporte material, o dispositivo, o espaço da projeção e a própria percepção, fruição do espectador.

O espaço arquitetônico e topográfico do ambiente expositivo em que essas obras são exibidas é determinante para a compreensão dos modos expressivos e narrativos em jogo. Na sala de cinema não há a possibilidade da circulação e da mobilidade do espectador. Inerte na plateia, sua atenção é concentrada e a passividade exige um estado contemplativo para as imagens projetadas em uma única tela. Em contraponto, na sala de exposição o corpo e o olhar do espectador-fruidor transitam livremente e participam da exploração investigativa de descoberta das imagens e de como elas lhe são oferecidas, permitindo escolhas que irão determinar experiências cognitivas distintas. As imagens projetadas no espaço expositivo “fazem com que a atenção do espectador se volte da ilusão da tela para o espaço ao redor e para os mecanismos físicos e as propriedades da imagem em movimento”, observa Chrissie Iles (2002: 33).

O termo ou expressão que mais comumente tem sido empregado para definir a produção audiovisual com tais características é cinema expandido. Autores como Peter Weibel (2003), Raymond Bellour (2008, 2009), Jeffrey Shaw (2009), Liz Kotz (2005), Dominique Paini (2002), Philippe-Alain Michaud (2006) e Chris Meigh-Andrews (2006) utilizam essa mesma terminologia para tratar da produção contemporânea que apresenta variados modos de projeção, difusão e recepção das imagens em movimento. Referem-se às muitas maneiras de se trabalhar a linguagem audiovisual, ampliando-a e multiplicando-a para além do espaço da tela. Essa produção está na fronteira das diferentes disciplinas, jogando com as margens do cinema, da fotografia, do vídeo, da performance e das imagens produzidas no computador (Paini, 2008).

Dedicando-se em seus escritos mais recentes à análise de obras nas quais a presença recorrente do cinema se dá em forma de instalações, Raymond Bellour orienta sua percepção para a constatação de que o próprio cinema como acreditamos ser ou ter sido está se reinventando. Ocupando cada vez com mais destaque no ambiente das exposições – o autor ressalta as bienais de Veneza de 1999 e a Documenta 11 em 2002 como marcos dessa tendência – a imagem em movimento se tornou elemento-chave na prática da arte contemporânea. Bellour utiliza a noção de “outro cinema”, englobando nessa definição as múltiplas formas do cinema experimental, da videoarte e de todas as novas técnicas de difusão e projeção de imagens permitidas pela digitalização. Conceitos como “expanded television” e “expanded cinema” (Bellour, 2009: 9) são citados por ele para definir a pluralidade da produção de imagens em movimento nesse contexto.

O autor já estava atento às mutações que o cinema passara a sofrer desde o surgimento da imagem eletrônica (televisão e vídeo), naquilo que ele definiu como “entre-imagens”: o vídeo como um estado atravessador, produzindo cruzamentos entre as imagens técnicas da era da reprodutibilidade. Uma linguagem catalisadora, um sistema de transformação das imagens umas nas outras. Dessa imbricação sem fronteiras entre os meios se produziu uma multiplicidade de sobreposições, de configurações pouco previsíveis (Bellour, 1997: 14). Dentre elas, o autor ressaltava os aspectos inerentes às videoinstalações como o lugar por excelência de um misto de experiências no qual o espectador circula sensível às passagens entre as imagens, transitando entre elas. Nessa categorização, Bellour se refere especificamente aos trabalhos de videoarte, realizados no período entre as décadas de 1960 e 1980, que utilizavam projetores de vídeo e monitores de tevê como forma de compor plasticamente obras artísticas. Trata-se, portanto, de uma referência aos trabalhos de vídeo que antecederam o surgimento da tecnologia digital[1].

Liz Kotz (2008: 55) concorda com Bellour ao afirmar que o vídeo forneceu um modo de se refazer o cinema. Muitos artistas contemporâneos empregam o vídeo para criar novas configurações narrativas para o cinema, nas quais a imagem é projetada em várias telas simultaneamente. Modos de investigar a potencialidade da projeção em si e como esta envolve os espectadores numa dimensão sensorial e espacial da imagem, numa relação entre espectador e obra, semelhante àquela citada por Bellour em referência às videoinstalações.

“Cinema e vídeo: interpenetrações”, afirma Phillipe Dubois (2004: 177). Em vez da análise que busca salientar a especificidade das linguagens, ou o que as diferenciam umas das outras, a compreensão sobre o cinema e o vídeo, em suas formas expandidas, converge repertórios. Dubois (2004: 98) considera que a frequente presença do cinema nos museus e galerias, denominado por ele de cinema de exposição, é um fenômeno intrínseco ao contexto em que as imagens convergiram para o digital, tornando pouco claras suas particularidades formais e técnicas. É por meio da tecnologia digital que essas imagens passaram a ser elaboradas, editadas e projetadas. Jeffrey Shaw (2009: 194) fala de um “cinema digitalmente expandido”, no qual as modalidades digitais de produção e exibição audiovisual permitiram a disseminação de mídias e formatos variados, ampliando a experiência cinematográfica para outros campos, como a internet e o videogame.

A expressão “cinema expandido” é atribuída originalmente a Stan VanDerBeek em seu manifesto escrito em 1965. Culture: intercom and expanded cinema, a proposal and manifesto foi publicado em vários catálogos e antologias e traduz as ideias desse artista a respeito de um novo conceito de cinema, que subvertia as limitações de uma única tela de projeção e solicitava uma recepção diferenciada por parte do espectador (Battcock,1967: 173-179). Em seu projeto mais arrojado, Movie-Drome, VanDerBeek exibia multiprojeções no interior de uma grande cúpula de alumínio de 180 graus, aproximadamente 15 metros de diâmetro e 8 metros de altura. O ambiente foi construído no quintal da casa do artista em Stony Point, Nova York, como parte de um projeto de pesquisa financiado pela Rockefeller Foundation.

A cúpula de VanDerBeek foi erguida sobre uma plataforma suspensa a cerca de três metros do chão. O acesso era feito por debaixo do piso. Ao entrar em seu interior o espectador se acomodava sem uma posição ou local de assento predefinido, tendo um campo de visão horizontal circular de 360 graus de toda a extensão sobre a qual as imagens eram projetadas. As exibições no interior do Movie-Drome utilizavam vários projetores de 16 mm dispostos em superfícies giratórias, que permitiam mover o foco de luz em várias direções (Sutoon apud Shaw e Weibel, 2003: 136). Sem uma narrativa predefinida ou uma orientação linear objetiva, essas imagens projetadas eram associadas a outras projeções de slides, efeitos de iluminação e de sons previamente gravados. O artista se interessava essencialmente em propor formas experimentais de linguagem e comunicação:

Meus planos imediatos para o desenvolvimento do chamado movie-drome como um protótipo para um novo estágio do cinema… pesquisando novas técnicas e meios para o cinema expandido se constituir como uma ferramenta mundial para a arte e educação… são a realização de experimentos com o filme para formalizar este conceito de uma linguagem visual mundial[2].

Todas essas abordagens tornam ainda mais atuais as afirmações visionárias de Gene Youngblood, pioneiro em elaborar uma reflexão a partir da perspectiva do cinema e suas correlações com as mídias contemporâneas. Seu mais célebre livro, Expanded cinema (1970), publicado numa época em que parte da revolução tecnológica das novas mídias ainda estava por se fazer, apresenta um vasto panorama das muitas formas como a cultura e os meios de produção audiovisual expressaram uma mutação da subjetividade humana, no contexto que ele denominou de “era paleocibernética”. No prefácio desse livro o autor já anunciava que as tecnologias de produção de imagens aumentariam a capacidade de comunicação e que um novo cinema, como forma de linguagem,  emergiria da fusão entre a sensibilidade estética e o desenvolvimento tecnológico.

O synaesthetic cinema, termo utilizado para definir essa linguagem estética audiovisual, seria a forma de expressão mais apropriada para o ambiente pós-industrial e sua rede multidimensional de informações. Segundo o próprio autor, não há um rótulo ou categorização adequada para o synaesthetic cinema, pois se trata de algo impossível de ser definido (Youngblood, 1970: 82).  Por outro lado, há uma série de fenômenos analisados por ele que permitem apontar as diversas características, experiências e repertórios que representam o conjunto das produções artísticas que podem ser assim classificadas.

É no sexto capítulo que o autor trata mais especificamente do cinema como intermedia. Nele, Youngblood (1970: 345) afirma que o artista é uma espécie de ecologista, isto é, aquele que se preocupa com as relações entre o homem, a arte e o ambiente. O cinema como intermídia é a definição que mais se aproxima, em toda a obra de Youngblood, daquela utilizada atualmente pelos autores referidos no início desse texto para caracterizar o cinema expandido.

Evidências dessa forma de apropriação do cinema como linguagem intermídia são também notadas no contexto da London Film Makers Cooperative (Film Co-op), criada em 1966, a partir da associação de um grupo de artistas ingleses. Grande parte desses realizadores era oriunda das escolas de arte e não tinha formação cinematográfica, se interessando, portanto, muito mais pelos aspectos materiais e formais da produção e projeção da imagem fílmica do que pelo seu apelo naturalista e narrativo. A Film Co-op se estabeleceu em 1971 como espaço para a prática do filme experimental, dispondo de infraestrutura de produção e promovendo mostras e festivais nos quais esses projetos eram difundidos.

Uma série de eventos foram realizados para dar vazão aos projetos de performances e instalações desenvolvidos na Film Co-op. O primeiro deles, denominado Film Action and Installation Show, apresentou durante um final de semana, em março de 1973, na Gallery House – um espaço alternativo de arte ligado ao Goethe Institut de Londres –, uma série de multiprojeções realizadas por Malcom Le Grice, David Crosswaite, Gill Eatherley, Annabel Nicolson e William Raban. No mesmo ano, em Liverpool, a Walker Art Centre apresentou a exibição Filmaktion – New directions in film art, reunindo o mesmo grupo de realizadores e contando também com a participação de outros artistas ligados ao Film Co-op. O texto de apresentação do evento declarava o foco de atuação e interesse de seus realizadores: “Um programa contínuo de trabalhos recentes de jovens cineastas independentes. A ênfase será nas cineinstalações, performances ao vivo, eventos expandidos e trabalhos para multiprojeções, com a oportunidade de debates informais”[3].

Malcom Le Grice foi o artista dessa geração que desenvolveu um trabalho mais nitidamente dedicado ao experimento com imagens projetadas. Entre 1968 e 1975 realizou vários projetos de performances e multiprojeções, todos caracterizados pelas possibilidades de manipulação técnica da imagem e de sua composição formal com procedimentos de projeção. No evento da Gallery House, Le Grice apresentou Matrix, uma multiprojeção em 16 mm formando uma grande tela, a partir de seis projeções simultâneas. Disposta de maneira a formar duas linhas com três projeções cada, Matrix exibia formas geométricas coloridas, que ao serem justapostas, criavam um painel cinético iluminado e pulsante, acompanhado por uma trilha sonora de ruídos eletrônicos (Le Grice , 2006: 225).

É nesse cenário que Nam June Paik realiza um de seus primeiros trabalhos em que a imagem em movimento lhe serve de elemento de criação, levando a experiência cinematográfica para o contexto da experiência intermídia dos projetos de Fluxus: Zen for film (1964). A luz projetada sobre a parede branca, delimitada como uma tela pelo próprio campo luminoso, tem como origem a lente de um projetor de 16 mm. O branco da projeção sofre a interferência delicada dos riscos da película e da poeira que se acumula sobre ela. Em movimento contínuo, a película corre por um carrossel especial, que permite que ela circule ininterruptamente, sem que se perceba um corte ou junção. Um filme sem imagens, princípio, meio ou fim, que evidencia uma situação cinematográfica em que o aparato técnico da projeção – projetor, película, tela, som e luz – se converte em sua própria referência e significação.

Esse filmeinstalação é emblemático ao propor uma reflexão sobre o dispositivo e o discurso cinematográfico. Para permitir o deslocamento do espectador, para que este se aproximasse e se afastasse da imagem, o projetor ficava propositadamente colocado no meio do ambiente, fazendo com que o espectador obrigatoriamente tivesse que cruzar pelo foco luminoso. Isso provocava a formação de uma silhueta na tela, que passava a projetar a sombra do espectador, criando um duplo cinemático. A situação provocada pela instalação, aparentemente prosaica e simplista, refere-se em termos semióticos à própria relação direta entre o processo constitutivo da imagem (a projeção) e o efeito cênico, narrativo, ao fazer o próprio espectador constituir-se em imagem. Um não-filme, que projeta imagens do próprio espectador, nessa condição subvertida de observar e ser observado, de estar dentro do filme e ao mesmo tempo assisti-lo.

Paul Sharits foi outro artista que iniciou sua produção ainda no contexto do Fluxus e que produziu filmes para serem exibidos como instalações. Interessado pela composição formal e pelos efeitos cinéticos do cinema, suas criações fazem parte do grupo de realizadores do chamado filme estrutural (structural film), ao lado da cinematografia de Michael Snow, Anthony McCall, Tony Conrad, Peter Gidal, entre outros (Meigh-Andrews, 2006). Durante sua trajetória, Sharits realizou vários projetos baseados no princípio das multiprojeções, filmeinstalações que alinhavam dois, três ou quatro projetores de 16 mm, posicionados um ao lado do outro, criando no ambiente da projeção uma grande tela horizontal. Essa configuração redimensionava a escala da imagem projetada, rompia com o padrão tradicional da proporção da tela e destacava os aspectos plásticos e sensoriais das imagens abstratas de seus filmes. Sharits denominou de locational pieces essa série de projetos, em que os filmes eram exibidos no espaço da galeria, projetando imagens contínuas, em looping, sem princípio, meio ou fim[4].

Um dos trabalhos de locational piece mais importantes, restaurado em 2009 pelo Anthology Film Archives, é Shutter Interface (1975). Os aspectos técnicos e conceituais da formação da imagem cinematográfica estão representados no filme, no qual o artista ressalta, por meio de campos abstratos de cor, o mecanismo intermitente de rotação que permite criar a ilusão do movimento. As imagens de Shutter Interface são uma metáfora desse aparato, tendo sido elaboradas como uma espécie de esquema de cores, que representam o próprio efeito cinemático que é produzido pelo projetor. Trata-se, portanto, de um filme cujas imagens abstratas são representações conceituais do próprio processo de formação da imagem, uma característica típica da estilística trabalhada nos filmes estruturais daquela época.

Para representar isso, Sharits criou um filmeinstalação em que a justaposição dessas imagens, pulsantes e de formas retangulares coloridas, compõe uma área de projeção a partir de quatro projetores de 16 mm, posicionados no próprio ambiente da instalação. Associados a essas imagens e dispostos logo abaixo da tela, quatro alto-falantes emitem um som eletrônico contínuo, correspondente ao efeito de flicagem produzido pelas imagens de cada um dos projetores. Ao justapor as áreas da projeção, Sharits sobrepunha as bordas das imagens, fazendo com que os limites entre as telas não fossem percebidos, criando fisicamente um efeito de fusão entre elas. Essa particularidade na maneira de montar os projetores criava um único e extenso campo da imagem[5], ressaltando assim a sua materialidade.

A definição de cinema expandido aparece atualizada nas várias concepções audiovisuais no contexto da arte contemporânea. O cinema de exposição, o cinema exposto, a cineinstalação, o filmeinstalação, “o outro cinema”, termos correlatos que revigoram as proposições visionárias de Gene Youngblood publicadas em 1970. Não é por acaso que o autor seja frequentemente citado nas reflexões atuais sobre as muitas obras que dialogam com o cinema e incorporam sua linguagem.

A imagem projetada está presente de forma massiva nas principais exposições de arte em todo mundo. Essas obras não são expressamente cinematográficas e muitas delas soam estranhas aos olhos de um espectador menos comprometido. Nesse contexto, o cinema se revigora. Ao ser projetado em salas e ambientes pelos quais o espectador circula livremente, o filme adquire uma escala ampliada, é combinado com outras imagens, é passível de ser associado a outros elementos sonoros e cenográficos. Volta a seus primórdios, possibilitando modos de exibição em telas de tamanhos e formatos diversos. Solicita uma audiência apta a perceber estímulos visuais e sonoros. Recria a linguagem, propondo narrativas descontínuas.

* Curador independente e produtor cultural. É doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) e mestre em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Idealizou e coordenou os projetos Made in Brasil – três décadas do vídeo brasileiro (2003-2004) e Visionários – audiovisual na América Latina (2008-2009). Coordenou a produção dos cinco filmes de longa-metragem da série Iconoclássicos, sobre os artistas Itamar Assumpção, Nelson Leirner, Zé Celso Martinez, Paulo Leminsky e Rogério Sganzerla. Atualmente realiza consultoria para o Itaú Cultural na aquisição e constituição da coleção de filmes e vídeos de artistas da instituição. Lançou recentemente a Duplo Galeria (www.duplogaleria.com.br), representando artistas que trabalham exclusivamente com filmes e vídeos.


[1] O texto original, L’éntre-images – Photo, Cinema, Video foi publicado em 1990, pela editora La Difference.

[2] Citado em Movie-drome, Stony Point, NY, 1963–1965 (arquivo para download) sem a fonte em http://projectstanvanderbeek.com/where/1.2/index.html. Acesso em 5 de março de 2010.

[3] Disponível em  www.studycollection.co.uk/filmaktion/Frameset14.html. Acesso em 5 de março de 2010.

[4] Conferir reprodução de documento escrito pelo artista, disponível em:
www.paulsharits.com/locational.htm. Acesso em 29 de maio de 2010.

[5] Em uma recente apresentação de Shutter Interface, na Greene Naftali Gallery de Nova York, em 2009, a obra foi apresentada exatamente como foi planejada por Sharits, exibindo as imagens projetadas em uma tela de 8 m x 1,80 m.

Referências:

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O olhar como um veículo de interação estética: visualização afetiva na experiência imersiva | tradução de Rita Lima do texto original de Brigitta Zics

Este artigo explora o potencial de uma nova tecnologia de visualização que tenta responder às mudanças afetivas do usuário pela leitura do olhar. Nessa experiência de visualização, a interação tem por base uma estetização da relação entre efeito tecnológico e resposta afetiva, que implica a criação de uma estrutura semântica dos elementos visuais, explorando a capacidade afetiva do usuário. A fim de introduzir essa nova tecnologia, o artigo se apoia em investigações críticas da experiência estética e em estudos dos movimentos dos olhos, com o objetivo de construir um modelo afetivo na interação estética. O documento sugere que esse tipo de reflexão crítica é crucial para novas modalidades de experiência na interação humano-computador. Isso é exemplificado na prática recente da autora, que explora a interconexão entre formas de visualizações inteligentes e alterações nas dinâmicas afetivas do usuário na experiência de imersão.

A filosofia do olhar: o problema olho-mente

Através do estudo do movimento dos olhos, pesquisadores têm tentado construir modelos de como o olhar pode servir como uma tela da mente, embora a maioria deles tenha falhado nessa demonstração. As primeiras pesquisas apontam para dois caminhos significativos mas bem diferentes entre si, que permanecem relevantes, particularmente nas suas observações entre atenção e movimento dos olhos. Ambos questionam a importância do olho no processamento da informação e apontam como significantes os processos voluntários da mente enquanto mecanismo de controle da atenção ou imaginação.

Hermann von Helmholtz foi um dos primeiros estudiosos que tentaram explicar como a mente é fundamental para os padrões de movimento dos olhos. Ele afirma que as características ópticas do olho na coleta de informações é bastante pobre. Portanto, a visão só é possível com alguma forma de inferência inconsciente que dá sentido à informação com base em experiências anteriores do mundo[1]. Estudando a relação entre os movimentos dos olhos e atenção visual, Von Helmholtz descobriu o fenômeno da “atenção encoberta”, que explica porque a atenção visual nem sempre é para onde o olhar se dirige (fixação em um único local); ele aponta que pode-se responder a um estímulo sem mudar o foco visual. Observando letras em uma tela muito grande para ser vista de uma só vez, ele percebeu que sem mover os olhos podia “secretamente” ver qualquer local da tela. Embora as observações de Von Helmholtz em atenção visual introduzam questões importantes sobre a relação entre movimento dos olhos e processamento cognitivo, pode-se afirmar que o movimento dos olhos refletem de forma mais comum uma vontade de ver objetos em detalhes (atenção aberta).

William James, refletindo sobre as pesquisas de von Helmholtz, dá uma explicação de um aspecto muito diferente da experiência visual em sua discussão sobre o “olho encarnado”. James sugeriu que a atenção “é a tomada de posse da mente, de forma clara e vívida, de um fora do que pode parecer vários objetos simultaneamente possíveis ou comboios de pensamentos […] Isso implica a retirada da atenção de algumas coisas a fim de lidar eficazmente com outras”[2]. Ele afirma que a atenção e a imaginação estão diretamente relacionadas; quando a atenção não regula os órgãos dos sentidos isso implica imaginar coisas ou ações em que se está envolvido, ou na busca. James afirma que prestar atenção ao que se está fazendo muitas vezes consiste em um tipo similar de envolvimento imaginativo antecipatório. Tal como acontece com a “atenção encoberta” de Von Helmholtz, a “atenção imaginativa” de James deu destaque à complexidade da relação olho-mente, reconhecendo que, embora a qualidade do movimento e fixações possam ser mensuradas, a sua causa não é totalmente determinada.

A fisiologia do olho dinâmico

A fim de compreender melhor as capacidades fisiológicas do olho em relação à experiência estética, esta seção vai trabalhar as funcionalidades básicas do olho e suas características. É bem conhecido que o tamanho do campo visual é limitado e pode ser dividido em: “visão da fóvea” (abrangendo 2 graus do centro do campo visual) responsável pela visão nítida detalhada e a “visão parafoveal” (2 a 10 graus fora do centro) responsável ??pela informação compactada de baixa resolução próxima ao “campo periférico” (> 10 graus fora do centro) (Figura 1). Uma vez que o campo de visão não pode ser percorrido a partir de uma fixação simples (180 e 275 ms), como resultado da acuidade limitada da retina, os movimentos rápidos do olho são necessários para trazer à imagem da retina um objeto de interesse que está na fóvea (“saccade”; duração entre 10 ms e 100 ms). A atenção inicialmente escolhe um alvo antes que os movimentos rápidos dos olhos aconteçam. Durante esses movimentos rápidos, a visão fica adormecida e novas informações são adquiridas somente durante a fixação [3] (Figura 2).

Figura 1: A imagem do lado esquerdo é Luc Desnoyers [4] reinterpretando desenho de Ernst Mach  do campo visual [5); o círculo branco mostra o ponto de fixação do olho e a densidade do espectro no detalhe do ambiente da visão parafoveal. Figura 2: No lado direito, a imagem mostra através de escaneamento a análise de peritos sobre radiografia do tórax. As linhas representam padrões (saccades) entre os pontos de fixação;  isso mostra a ordem temporal na qual o espectador se fixa em uma parte particular da imagem e adquire informação. Como a informação é adquirida através de análise se baseia em conhecimento prévio (expertise) [6].
Figura 1: A imagem do lado esquerdo é Luc Desnoyers [4] reinterpretando desenho de Ernst Mach do campo visual [5]; o círculo branco mostra o ponto de fixação do olho e a densidade do espectro no detalhe do ambiente da visão parafoveal. Figura 2: No lado direito, a imagem mostra através de escaneamento a análise de peritos sobre radiografia do tórax. As linhas representam padrões (saccades) entre os pontos de fixação; isso mostra a ordem temporal na qual o espectador se fixa em uma parte particular da imagem e adquire informação. Como a informação é adquirida através de análise se baseia em conhecimento prévio (expertise) [6].

Para a análise de movimento dos olhos existem três tipos de movimentos que podem ser modelados para entender a localização provável da atenção visual (quando a atenção e a localização dos olhos coincidem). Fixação, buscas suaves e movimentos rápidos estão todos sob controle “voluntário” e, como tal, são resultado de uma decisão intencional (enquanto movimentos “involuntários”, tais como micro-movimentos rápidos (saccades), e são inconscientes[7]. Embora as saccades sejam saltos rápidos do olho para deslocar o olhar para um objeto de interesse, fixações e buscas suaves ocorrem durante o intervalo entre as saccades. Nas buscas suaves, o olho segue o rastro de um objeto em movimento e faz a compensação a partir da velocidade do movimento da retina. Alguns desses movimentos voluntários dos olhos podem ser realizados e melhorados através de controle, no entanto, um movimento rápido (saccade) não pode ser desfeito. Movimentos involuntários da pálpebra, tais como piscar de olhos, são aplicados de forma recorrente para medição de estados afetivos do usuário[8].

Experiência estética e pesquisas sobre movimento dos olhos: uma revisão crítica

Embora haja uma longa história de pesquisas sobre a relação entre o movimento dos olhos e a experiência estética, os métodos aplicados muitas vezes reduzem a ação do espectador (usuário) a uma participação mecânica, tornando essas pesquisas muitas vezes questionáveis. Esta seção analisa criticamente essas pesquisas, demonstrando que uma investigação sobre a relação entre o movimento dos olhos do espectador e o ato de visão na arte pode apenas ser significativo quando a participação do espectador acontece de forma global.

Desde que a pesquisa do movimento dos olhos e seus métodos de registro vêm, comumente, reduzindo a experiência estética a características de comportamento, os pontos de vista psicológicos tornaram-se populares. Um exemplo inicial é Alfred L. Yarbus que usou um “scanpath” (um gráfico de saccades e fixações) e os registros visuais dos movimentos dos olhos (fixações e sacadas) para estudar cenas complexas identificando principalmente padrões de tarefas dependentes das fixações.

O bem conhecido estudo de Yarbus, “Um visitante inesperado”, propõe que a interpretação de uma composição pode se basear apenas no espaço para onde o espectador se fixa na imagem[9] (Figura 3).

Figura 3: Quando o observador é questionado sobre a idade das pessoas (à esquerda), seu olhar foca somente as pessoas: se é questionado para simplesmente olhar a imagem, muitas fixações ocorrem em áreas diferentes (à direita). A razão mais provável foi a de que o espectador pode se envolver no aspecto estético da imagem sem ser distraído por uma tarefa. As duas imagens são atualizações das imagens originais de Yarbus [11] aqui acrescidas a um escaneamento sobreposto [12].
Figura 3: Quando o observador é questionado sobre a idade das pessoas (à esquerda), seu olhar foca somente as pessoas: se é questionado para simplesmente olhar a imagem, muitas fixações ocorrem em áreas diferentes (à direita). A razão mais provável foi a de que o espectador pode se envolver no aspecto estético da imagem sem ser distraído por uma tarefa. As duas imagens são atualizações das imagens originais de Yarbus [11] aqui acrescidas a um escaneamento sobreposto [12].

Da mesma forma que Donald W. Graham descreveu como a composição orienta a atenção do espectador por um agradável caminhar entre os elementos visuais da cena[10], Yarbus destaca que as composições facilitam a experiência de olhar do espectador na proposição do artista. Ele explica o processo de visualização mais como uma tarefa a ser resolvida, e mostra que o espectador retorna a elementos da pintura que prometem explicar a imagem. Ele reconhece que  “esses elementos dão informações que permitem extrair o significado da imagem. Os movimentos dos olhos refletem os processos de pensamento humano”[9].  A abordagem de Yarbus negligencia a multidimensionalidade da qualidade estética da imagem, resultando em um ponto de vista limitado da experiência estética,  com foco único na atenção visual na experiência de visualização do espectador.

Um conceito frequentemente usado nas pesquisas dos movimentos dos olhos é a descrição de Daniel Berlyne dos padrões de comportamento “diversidade – especificidade” do espectador[12]. O ponto de vista de Berlyne tem sido negligenciado pela psicologia contemporânea, apesar de continuar sendo usado em pesquisas atuais sobre movimentos dos olhos[14] [15] [16]. De acordo com esses estudos, a “investigação de comportamentos diversificados” se dá quando o espectador busca estímulos  fragmentados (como complexidade, novidade, surpresa e incerteza); que podem desencadear efeitos de prazer independentemente do conteúdo ou origem[13]. Um “comportamento de exploração específica” acontece quando a curiosidade do espectador desperta através da incerteza ou falta de percepção de uma informação particular da imagem[14]. Os dois tipos de comportamento demonstram padrões diversos de fixação dos olhos. O primeiro mostra conjuntos difusos de fixações, enquanto o último contém alta densidade de fixações (Figura 4). O uso inicial do trabalho de Berlyne por François Molnar sugere que enquanto o conhecimento baseado na exploração é lento e intencional, portanto específico, a exploração baseada no prazer é diferente. Ele ainda propôs que a boa e a má composição podem ser mostradas em diversas transições no escaneamento da imagem antes que o trabalho exploratório chegue a um equilíbrio; ele conclui afirmando que o engajamento estético do espectador acontece no primeiro contato e que boas composições requerem algumas transições.

Na sequência desses estudos fundamentais, houve muitas contribuições valiosas investigando a experiência estética com base em características distintas da experiência de visualização do espectador. Por exemplo, avaliar a apreciação estética entre os espectadores de arte treinados e não treinados[18] [19] [14] [16], ou entender a percepção do artista no desenho[15], ou o desenvolvimento de métodos multidimensionais inclusive do registro verbal[16], registro de tarefa dirigida[22] e de movimentos das mãos[20]. No entanto, o principal problema metodológico de tal pesquisa permanece o mesmo, ou seja, a capacidade limitada dos aplicativos de escaneamento para avaliar a experiência dinâmica do espectador com base na análise de valores estáticos. Como consequência, o uso de concepções reducionistas da experiência humana tem gerado uma visão fragmentada da estética que influencia largamente a compreensão dos movimentos dos olhos em experiências estéticas e limita suas aplicações futuras.

Figura 4: Nodine et al afirma que o espectador de arte treinado (à esquerda) e o espectador não treinado (à direita) veem a imagem de formas diversas. Enquanto a imagem da esquerda (Pintura de Seurat, Les Poseuses, modificada para a pesquisa) mostra explorações diversas do espectador (pequenos grupos de pontos de fixação), a imagem da direita, com sua densa fixação (longa duração do olhar), mostra uma exploração específica. Nodine et al demonstra que o conhecimento especializado tem um impacto na maneira de olhar e, portanto, na experiência estética como um todo [23].
Figura 4: Nodine et al afirma que o espectador de arte treinado (à esquerda) e o espectador não treinado (à direita) veem a imagem de formas diversas. Enquanto a imagem da esquerda (Pintura de Seurat, Les Poseuses, modificada para a pesquisa) mostra explorações diversas do espectador (pequenos grupos de pontos de fixação), a imagem da direita, com sua densa fixação (longa duração do olhar), mostra uma exploração específica. Nodine et al demonstra que o conhecimento especializado tem um impacto na maneira de olhar e, portanto, na experiência estética como um todo [23].

Rumo a um olhar afetivo: movimento ocular como interação estética

Mark Johnson declarou que “a estética não deve ser estreitamente construída como o estudo da arte e da chamada experiência estética. Em vez disso, a estética torna-se o estudo de tudo o que o homem é capaz de produzir como experiência significativa”[24]. Seguindo as palavras de Johnson, esta pesquisa também tenta explicar a experiência estética (e a interação estética), como a criação de sentido por uma mente encorpada (embodied mind). Na abordagem de Johnson, a capacidade humana na produção de experiências é explicada aqui como afecção, quando “o significado vem de nossas conexões viscerais com a vida e com as condições físicas da vida […] as forças encorpadas em significado”[25]. De forma semelhante, Brian Massumi, referindo-se a Deleuze e Guattari, descreve afecção como “a capacidade de afetar e ser afetado. É uma intensidade pré-pessoal que corresponde à passagem de um estado experiencial de um corpo para outro, que implica aumento ou diminuição da capacidade de agir”[26]. Como tal, o objetivo da experiência estética é entender o significado das nossas “afecções  diárias”, afim de facilitar a participação efetiva do usuário na criação de um novo significado. John Dewey explica que “para compreender o significado de produtos artísticos, temos de esquecê-los por algum tempo, para retornar em outro momento e reconectá-los às condições normais da experiência”[27]. Ele prossegue afirmando que “essa experiência se torna consciente, como forma de percepção, somente quando seus significados são derivados de experiências anteriores”[28].

Seguindo com esses argumentos para compreender os movimentos dos olhos, é crucial entendê-los como uma capacidade global na produção de significados corporalizados através de ações. Nesse sentido, para compreender o olho-afecção, temos de compreender os “aumentos e diminuições” do corpo em seus estados afetivos[26]. O dinamismo dos olhos, então, é crucial para a compreensão da experiência estética; qualquer tipo de tentativa de representar essa ação dinâmica pode levar a uma redução de suas características. Portanto, no âmbito dessa pesquisa, sugere-se que o olhar na interação estética deve ser entendido como um dado em tempo real em vez de um valor estático. Como tal, esta investigação desconsidera os métodos de escaneamento com base na análise do movimento dos olhos e introduz a “interação estética” para a criação do sentido estético.

Interação estética, aqui, se afasta das concepções correntes das interfaces homem-computador que elegem a “invisibilidade” da interface como o aspecto mais relevante da relação homem-computador. Em vez disso, a interação estética requer uma visão na qual o sistema é uma estrutura facilitadora da expressão e da interpretação do usuário, promovendo serendipity[1], provocação, surpresa ou, como Umberto Eco a nomeia, “deslumbramento”[29]. Assim, a interação estética reconhece a capacidade do usuário de se apropriar da tecnologia e, em vez da invisibilidade imediata, oferece um processo de reflexão intelectual, onde as interpretações do usuário são fundamentais para o sistema. Como Graves Petersen et al explica, a interação estética “promove improvisando para ser a modalidade chave na forma como o usuário explora os mundos ao seu redor e apreende novos aspectos”[30].

De maneira semelhante à abordagem apresentada neste artigo, eles seguem o modelo pragmático de Dewey para explicar a experiência corporal como um aspecto significativo da interação, acrescentando que “temos de ir além dos ideais de reunir habilidades sensório-motoras e somático-sensíveis dos humanos, para incluir, entre outras, a capacidade intelectual humana de compreender e dar sentido a sistemas complexos, contraditórios e até mesmo sistemas e situações ambíguos”[30]. Em resumo, em tempo real, processos dinâmicos permitem uma significativa exploração do movimento dos olhos para uma produção estética específica. Como resultado, um sistema aberto se configura e o significado é estabelecido através de um mecanismo de resposta indireta em que a curiosidade e a imaginação do usuário dirigem a interação para estados imersivos. O objetivo de tal interação não é ganhar o controle total ou a invisibilidade total da tecnologia, mas envolver o espectador em um processo autoexplicativo de interação através do movimento dos olhos. Como resultado estético, o sistema interativo é projetado para responder aos “aumentos e diminuições” do corpo[26] (neste caso, o olho) e produz respostas ao modo como é afetado, emergindo o significado através de circuito cognitivo contínuo (loop) entre olho e sistema.

O olhar como condutor da visualização afetiva e comportamento encorpado

Tendo explorado o sentido estético do movimento dos olhos, esta seção apresenta o conceito de visualização afetiva; um dispositivo visual que facilita a experiência estética através do olhar. A visualização de dados é geralmente descrita como “apoiada por computadores, interativas, representações visuais de dados abstratos usados ??para ampliar o conhecimento” etc.[31]. Uma visualização afetiva é um sistema interativo onde informações em tempo real são coletadas e devolvidas ao usuário após avaliação da forma como ele foi afetado. O mecanismo de retorno da informação ou resposta é crucial para que a interação com o fluxo de dados em tempo real seja visualizada provocando uma experiência estética. Nesse sentido, a visualização não tem como objetivo específico representar dados, mas sim refletir sobre as qualidades dinâmicas do fluxo de dados.

A modelagem do usuário na visualização afetiva explora esteticamente o retorno da informação entre o efeito tecnológico e a resposta afetiva. A união do fluxo dinâmico dos elementos visuais (efeito) com o movimento dos olhos, pela passagem dos estados experimentais do corpo (afetos), será  explicada  aqui como “resposta cognitiva contínua”[32]. Esse acoplamento implica aumento na capacidade de agir do corpo, promovendo o envolvimento do usuário em direção a estados inexplorados de imersão. No dispositivo, a resposta cognitiva contínua é um sistema aberto onde, em vez de valores distintos para estados afetivos, o sistema dá sentido às mudanças dos afetos do usuário. Essa abordagem é semelhante ao conceito de “ciclo afetivo[2][33] introduzido pela pesquisa HCI (Interface Humano-Computador), já que ambos os conceitos enfatizam a modalidade de entrada e saída afetiva, a fim de facilitar experiências únicas e individualizadas do usuário. No entanto, a resposta contínua cognitiva com base na dinâmica de interação em tempo real não representa estados afetivos, mas dispara afetos em tempo real; essa é uma distinção significativa, já que o sentido aqui está ligado a eventos dinâmicos em vez de qualidades passivas.

Um exemplo de aplicação do modelo descrito é o trabalho desenvolvido para a instalação com bio-resposta “Cúpula da Mente”[32]. O principal conceito estético da exposição é gerar um sistema aberto que organize as informações para o usuário enquanto acompanha o movimento dos seus olhos, de forma que reflita seu comportamento. O objetivo da visualização é guiar o usuário para um estado de equilíbrio no qual a interação se dá entre controle e satisfação estética visual. Não há meta específica no sistema senão explorar se esse processo de interação pode ativar as capacidades imaginativas na experiência do usuário pelo seu envolvimento na criação de sentido.

A modelagem afetiva do usuário se baseia em três características: engajamento estético com a tela (grau de envolvimento), interação em tarefas dirigidas (grau de atenção, envolvimento, performance) e medição de respostas involuntárias como movimentos de piscar de olhos (velocidade do movimento, duração do fechamento da pálpebra). O sistema incorpora todos os movimentos voluntários dos olhos, como saccades (movimentos rápidos), buscas suaves e fixações, medição do piscar de olhos involuntário, bem como a captura das respostas do usuário no tempo.

Figura 5: Esta é uma imagem conceitual do comportamento grupal na visualização afetiva da “Cúpula da Mente”. A simulação visual  do comportamento em grupo como cardumes de peixes (à esquerda) e bandos de pássaros (à direita) está ligada ao movimento dos olhos do usuário para gerar respostas do estado afetivo na experiência estética [33].
Figura 5: Esta é uma imagem conceitual do comportamento grupal na visualização afetiva da “Cúpula da Mente”. A simulação visual do comportamento em grupo como cardumes de peixes (à esquerda) e bandos de pássaros (à direita) está ligada ao movimento dos olhos do usuário para gerar respostas do estado afetivo na experiência estética [33].

A interface visual consiste em um sistema de partículas (coleção de objetos independentes) que responde ao movimento dos olhos do usuário de modo que represente três diferentes comportamentos inteligentes de acordo com suas respostas. Esse comportamento inteligente pode ser descrito como uma forma de “inteligência coletiva”[28], projetada para visualizar fenômenos naturais como cardumes de peixes, bandos de pássaros e enxames de insetos (Figura 5). Padrões específicos (de elipses a vórtices) com qualidades tais como densidade, velocidade e cor são organizados de forma dinâmica para avaliar as mudanças nos estados afetivos do usuário. Por exemplo, padrões  de cardumes de peixes são organizados como nível baixo de envolvimento, bandos de aves como ótimo desempenho e enxame de insetos como envolvimento normal. O sistema de partículas não só produz comportamentos de grupo, mas também forma mensagens simples, como textos ou formas identificáveis com significados afetivos. Eles servem como mecanismo de resposta para o participante, informando-o sobre seu desempenho ao longo do tempo e aumentando sua experiência. Como resultado, experiências estéticas são incentivadas através da qualidade dinâmica e afetiva dos padrões de  respostas sensíveis ao movimento dos olhos.

Um aspecto significativo da experiência estética é a relação entre esses padrões emergentes e os movimentos dos olhos em saccades. O enxame pode seguir ou evitar o foco do olhar, o que pode ser descrito como comportamento “predador” ou “amigo”. Isso é depois utilizado como um mecanismo de resposta para o usuário; em cada situação, o sistema começa a distribuir o enxame de tal forma que há um deslocamento para a visão parafoveal e o campo periférico. Isso retorna para o conceito de Von Helmholtz da atenção encoberta, que implica que o utilizador é convidado a mover sua atenção para fora da sua visão fóvea. Aspectos de interação em tarefas dirigidas acontecem quando o usuário é convidado a guiar um enxame. Movimentos de busca suave são aplicados aqui para seguir um determinado caminho, ou fixações quando os usuários são convidados a se concentrarem para manter o enxame em um determinado ponto da tela evitando, por exemplo, objetos com comportamento predador. Em equilíbrio, os padrões se tornam mais harmônicos, sem predadores, prevalecendo como objetivo a interação prazerosa com base no envolvimento estético dos movimentos.

Conclusão

O objetivo deste artigo foi discutir um modelo de experiência estética não redutível, que provoca um envolvimento afetivo do usuário através das informações do seu olhar. A semântica dessa interface de visualização tem por base os movimentos voluntários dos olhos, enquanto ambas as respostas, voluntárias e involuntárias, contribuem para gerar respostas cognitivas contínuas. Tem sido proposto que o comportamento coletivo de enxames pode simular estados da consciência. Como Johnson já demonstrou, qualidades estéticas têm o objetivo de desencadear novos sentidos através do corpo; com o uso de informação visual de relativa qualidade e da inteligência afetiva, o usuário reavalia sua experiência diária de visão e acrescenta novos sentidos às suas ações. A  avaliação crítica dessa pesquisa espera estimular novas formas de aplicação estética e teórica da experiência de visualização afetiva com o objetivo de gerar um sistema aberto para experiências imersivas singulares.

* Este texto é a versão mais completa do artigo apresentado inicialmente no Isea 2011 em Istambul: O olhar como um veículo para a interação estética: visualização afetiva na experiência imersiva. Em: 17° Simpósio Internacional sobre Electronic Arts (Isea). 2011, Istambul: Sabanci Universidade, Leonardo / ISAST e Goldsmiths College, Universidade de Londres.

* Brigitta Zics é artista e pesquisadora com base no Culture Lab, Newcastle University, Inglaterra. Seu principal interesse é a investigação do potencial da tecnologia como ferramenta para uma estética  ecológica e filosófica na relação com a experiência humana. Sua pesquisa recente inclui tópicos em estética computacional, experimentação na visualização de dados, interatividade afetiva e estéticas ecológicas como facilitadoras de experiências imersivas. Seus trabalhos como artista e pesquisadora têm sido amplamente apresentados e publicados em revistas como Leonardo (MIT) e Journal of Visual Arts Pratice (Intellect), em livros como o New Realities: Being Syncretic (Springer) e exibições como Siggraph (Los Angeles), Imagina (Monte Carlo) e Artes e Espaço (Budapeste). Foi professora visitante no Transtechnology Research, membro do painel de comentários da Leonardo e conselheira da Escola de Doutorado na Universidade Húngara de Artes.

Rita Lima é professora e pesquisadora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), no Curso de Cinema e Audiovisual, com o Projeto de Pesquisa Cinema Expandido, experimentação e novas formas de cinema: um diálogo com o Recôncavo Baiano. Mestre em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde desenvolveu trabalho sobre a autoria na produção independente de vídeo no Brasil na década de 1980, e doutorado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), com trabalho sobre a artista multimídia Sandra Kogut e reflexão sobre o lugar do artista no mundo atual. Tem experiência acadêmica nas áreas de Artes e Tecnologia, com ênfase em Cinema, novas tecnologias digitais. É também pesquisadora do PACC/UFRJ no grupo de pesquisa Polo Digital.

[1] Serendipity: a arte de reconhecer e aproveitar as descobertas acidentais (N.T).

[2] Affective loop (N.T).


Referências:

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2. W. James, The Principles of Psychology, Vol. 1 (New York: Henry Holt, 1890), 403-404.

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6. Krupinski E. A. Eye-Position Recording / Medical Image Perception & Performance, Data Recording. University of Arizona, 2008, http://www.radiology.arizona.edu/krupinski/eye-mo/data-analysis-data.html (accessed: August 24, 2011).

7. A. T. Duchowski. Eye Tracking Methodology: Theory & Practice (London, UK: Springer, 2007).

8. R. Heishman, Z. Duric, H. Wechsler. “Understanding Cognitive and Affective States Using Eyelid Movements”. In Proc. IEEE Conf. on Biometrics: Theory, Applications And Systems (Washington: 2007).

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10. D. W. Graham. Composing pictures. (New York: Van Nostrand Reinhold Co, 1970).

11. A. L. Yarbus, Eye Movements and Vision. (N York: Plenum, 1967), 174.

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25. ibid., ix.

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35. G. Beni, G., J. Wang. “Swarm Intelligence in Cellular Robotic Systems”. In: Proceed.

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iMaGeNSoNS: sincronias entre acontecimento e narrativa | de Marcus Bastos

O tempo montando sobre o corpo sua lanterna mágica e fazendo coexistir os planos em profundidade.
Marcel Proust

Dois homens passam apressados diante do Conjunto Nacional, fones-de-ouvido que parecem não impedir uma sintonia incompatível com os bulbos dentro da orelha[1]. Os fios brancos que balançam em volta do pescoço chamam menos atenção que a parada súbita diante de uma loja qualquer. Não porque, hoje em dia, o branco cintilante dos cabos de fone-de-ouvido cause menos estranheza que desejado por Steve Jobs ao incluí-los no iPod[2], mas pela coreografia que executam. Um deles pousa a mão sobre o ombro do outro. Evento minúsculo, que poderia desaparecer na ampla confusão paulistana, não fosse a ênfase nos gestos (decididos? desajeitados? tímidos? espalhafatosos?). Ainda mais que, mesmo sendo noite de lua cheia, é sem precedentes a concentração de acontecimentos[3] fortuitos nos 300 e poucos metros que separam as ruas Augusta e Padre João Manuel.

Sem saber, quem andava nos arredores participava de Como se fosse a última vez…, narrativa[4] em que voluntários encenam instruções ditadas por um roteiro sonoro ouvido em dispositivos portáteis guardados nos bolsos ou fixos no corpo de alguma outra forma. O mp3 distribuído para os inscritos na performance (uns também não sabem quem são os outros, e não podem ouvir o roteiro antes da hora marcada para o encontro) propõe gestos e atos que enredam o espaço público geralmente impessoal das grandes metrópoles em acidentes sutis, de sincronia imprevisível e cumplicidade discreta. O excesso de normalidade revela aspectos pouco percebidos, apesar de rotineiros, da situação proposta. Deslocando para outro contexto a afirmação de Deleuze, seria possível dizer que estão “entregues a algo intolerável: sua própria cotidianidade”[5]. Como num plano sem corte do cinema-direto, é radical a sincronia entre acontecimento e narrativa.

Remetendo a uma versão super realista da cena em que Cecilia salta para fora da tela, em A rosa púrpura do Cairo, a subtlemob[6] rompe o limiar entre ficção e realidade, conforme seus participantes se misturam aos transeuntes incautos (não aqueles aglomerados na multidão do conto de Allan Poe, mas quem circulava na região da Avenida Paulista em 27 de Novembro de 2010). Mais que semelhanças, as duas propostas tem diferenças significativas, que permitem discutir o que distingue o cinema de manifestações audiovisuais contemporâneas como o live cinema e o audiovisual em mídias móveis. Uma distinção óbvia entre o filme e a subtlemobé o enredamento complexo proposto no segundo, através da sobreposição entre trilha sonora fictícia e mundo real. O efeito de coincidência entre narrativa e vida, num espaço que oscila entre a rotina e interferências inesperadas, rearticula ambas de forma recíproca, imprevisível, difusa, constante durante o tempo em que a performance é executada, e imediata[7].

O filme de Woody Allen, assim como outros que se empenham em desestabilizar a barreira imaginária entre os espaços ficcional e de fruição, serão sempre jatos de luz acomodados entre as quatro arestas que emolduram a tela no fundo de uma sala de cinema. Como se fosse a última vez… materializa e amplia o trajeto da personagem vivida por Mia Farrow, que se projeta mundo adentro. Mimese literal das fraturas entre filme e público criadas por Godard, possivelmente o cineasta que procurou mostrar com maior insistência que seus filmes eram construções a partir de realidades contraditórias, e não decalques de mundos estáveis ou fabulações especulares de imaginários imaculados.

É como se a tecnologia tornasse possível o desejo reiterado de fratura entre tela e público, inaugurando um cinema espraiado, que dissolve o regime de exibição na forma de uma janela para o mundo, em favor de uma ocupação direta do mundo[8]. O que não garante qualquer tipo de vantagem irreversível para os formatos que se beneficiam da diferença entre projeção em sala de cinema e acontecimentos no espaço. Há tanto filmes capazes de extrapolar os limites impostos pela tela às experiências com imagem e som recortadas em seu quadrante fixo quanto obras em mídias digitais presas ao roteiro de seus programas — e vice-versa. E, se a exibição de filmes em salas escuras dá sinais de obsolescência, é antes pelo ritmo vertiginoso que faz o mundo girar em círculos como quem segue adiante, que pelo esgotamento da experiência cinematográfica[9].

A comparação entre o instante de Como se fosse a última vez… e a cena de A Rosa Púrpura do Cairo permite listar algumas características dos formatos audiovisuais que surgem com a popularização das tecnologias de realidade mixta[10] ou realidade aumentada. A narrativa não acontece mais na tela, e sim em lugares específicos; o público não é mais espectador, mas participante (ou coautor); o roteiro nem sempre conta uma história, e geralmente propõe regras; nem sempre há atores, mas é comum o recurso a voluntários e o estímulo de acontecimentos espontâneos e temporários. Não há apenas uma coincidência entre acontecimento e narrativa, mas também a diluição da fronteira entre o lugar da narrativa e seu contexto[11]. Isso só é possível em função do uso cotidiano de dispositivos em rede que geram espaços informacionais cuja invisibilidade não os impede de remodelar de forma significativa arquitetura, geografia, fluxos sociais etc. São formas de construir espaços híbridos, em que ficção e realidade mudam de sentido de formas nunca imaginadas. Há elementos comuns ao universo dos games nesses formatos mais abertos, em que a participação se torna imprescindível para o desenrolar da narrativa.

Se assim a humanidade caminha entre virtualidades, resta saber qual o rumo do cinema em tempos de cultura digital. A resposta não é simples. Não bastasse a miríade de rotas que as tecnologias audiovisuais sugerem (resoluções cada vez mais altas, 3-D, síntese numérica, edição em tempo real, consumo em trânsito nas telas portáteis de celulares e tablets), certas reconfigurações da produção audiovisual parecem colocar em dúvida o próprio conceito de cinema como uma noção suficiente para explicar as sequências articuladas de imagem e som inventadas a reboque da multiplicidade de câmeras e dispositivos de edição surgidos nas últimas décadas.

O problema não é tanto a heterogeneidade de rumos sugeridos, mas a obtusidade das histórias do cinema melhor conhecidas. Conforme aponta Michael Punt, em The Jelly Babe OnMyKnee, “há alguma evidência de que o Cinematógrafo não emerge de uma obsessão com realismo e movimento como as histórias materialistas reivindicam”. Punt sugere que “a convergência de uma obsessão com outras dimensões e um desvio radical no relacionamento entre pessoas comuns e tecnologia convergiu para um número de máquinas e as reinterpretou, para satisfatoriamente estabilizar ideias irreconciliáveis. Não reconhecer este fato contribuiu para uma história frouxa do cinema, que se tornou uma barreira ao nosso entendimento do cinema, agora e no futuro”[12]. Este caráter ecsomático, que Punt atribui ao cinema, ressalta seu elemento mágico. Há algo de assombroso num mecanismo que faz corpos e coisas aparecerem diante do olhar e, além disso, mostra o invisível (o sonho de um personagem, os detalhes perceptíveis apenas em slowmotion etc.). A relação entre cinema e magia proposta por Punt (retomando um tema caro a Walter Benjamin) é uma chave para entender a história do audiovisual de uma perspectiva menos centrada no mecanismo de contar histórias. É uma forma de perceber o cinema como uma linguagem que modela experiências, pelo uso da luz. O filme como condutor de percepções advindas de mundos externos ao real[13]. Nesse sentido, haveria uma proximidade entre o cinema e o paranormal, na medida em que um filme é uma forma de incrustar no imaginário de quem o assiste mundos inexistentes ou extraordinários[14].

Esta abordagem outra da história do cinema não representa exatamente um surto de heterogeneidade. A produção audiovisual sempre foi mais versátil do que as histórias oficiais do cinema, com base no surgimento da chamada narrativa clássica. O primeiro cinema, a visual music e o cinema abstrato são apenas alguns exemplos de um tipo de imagem que remete antes às paisagens interiores da memória que aos acontecimentos do mundo, para retomar a contraposição proposta por Gilles Deleuze. O filósofo francês ressalta que “o cinema europeu defrontou-se muito cedo com um conjunto de fenômenos: amnésia, hipnose, alucinação, delírio, visões de moribundos e, sobretudo, pesadelo e sonho”. Para Deleuze, isso era “um meio de romper com os limites “americanos” da imagem-ação, e também de atingir um mistério do tempo, de unir a imagem, o pensamento e a câmera no interior de uma mesma “subjetividade automática”, em oposição à concepção demasiado objetiva dos americanos”[15]. André Parente recupera este tema em Tudo Gira: “As imagens-sonho formam um vasto circuito (“o envelope extremo de todos os circuitos”, segundo Deleuze), em série de anamorfoses em que cada imagem,na sua relação a imagem seguinte, que a atualiza, como na famosa imagem de O Cão Andaluz (1928), onde a imagem da lua, cortada por uma nuvem,  dá lugar a imagem de um olho, cortado por uma navalha”.

Um bom ponto-de-partida para discutir a consistência do termo cinema, e sua capacidade de abranger os formatos audiovisuais mais recentes aqui discutidos, é o livro Expanded Cinema, de Gene Youngblood. Mesmo interessado em fenômenos discrepantes da cinematografia mais convencional, Youngblood não abandonou a palavra usada para descrever a linguagem inventada e reinventada por nomes como Meliés, Godard e Von Trier. A diversidade de cinemas existentes na história do cinema parece encorajar o apego ao termo, mesmo que o próprio Youngblood considere que seu livro surge “no fim da era do cinema como o conhecemos, o começo de uma era de troca de imagens entre homem e homem”[16].

Youngblood declara a transmissão do pouso na Lua um emblema desse momento em que os homens passam a ver outras imagens. Ele descreve com sagacidade o efeito de desrealização produzido pela lineatura espessa da imagem de tevê em baixa resolução (basta imaginar que um aparelho da época tinha um número de linhas equivalente a menos de um quarto do tamanho das telas de computador mais comuns às vésperas de 2012). A textura porosa, associada ao feito inédito, que muita gente pensava ter sido uma simulação, tornavam a transmissão incrível (tão sensacional quanto difícil de acreditar, para usar o sentido que Flusser propõe no artigo Coincidência Incrível[17]).

O texto de Youngblood deixa entrever os efeitos da combinação entre imagem precária e realidade fantástica no imaginário da época. Mesmo mentes esclarecidas e poderosas como a do teórico, ou visionários como Stewart Brand (criador do Whole Earth Catalog, uma das publicações símbolo da contracultura), demonstram mais fascínio que discernimento, quando falam sobre a missão da Apollo 11. Certamente, o pouso do homem na Lua produz efeito equivalente à descoberta de Copérnico. Ver o planeta como um ponto mínimo num espaço vasto faz pensar em quanto um corpo é insignificante diante de tamanha amplitude.

Ver o planeta como um ponto mínimo e perceber que as imagens em movimento tornam-se menos precisas no registro eletrônico mudam o mundo de forma definitiva, mas isso é assunto para um longo livro, em parte já escrito por Youngblood. Corte, então, para o cinema: os filmes já não eram tão épicos quanto a realidade; as imagens, no início de um processo de multiplicação que se revelaria vertiginoso, já não eram sempre nítidas ou amplas como o cinemascope. O regime audiovisual torna-se, aos poucos, um regime de maior granularidade sintática e também se configura a partir de seus modos de transmissão.

Quem viu as primeiras imagens em movimento também sentiu um deslocamento cujo fascínio é difícil discernir[18]. Foi preciso mais de meio século para que os novos cinemas construíssem um repertório de filmes engajados em procedimentos capazes de reverter o amortecimento produzido por esse truque de luz (para usar a expressão precisa usada por Wim Wenders no título do filme em que resgata os primórdios do cinema na Alemanha). E, ao mesmo tempo em que o cinema reverte esse elemento que oscila entre o mágico e o demiúrgico, surgem novos deuses na tela[19]. O mundo que recebe a tevê de salas abertas é o mesmo em que, ainda segundo Youngblood, Michael Snow, “confronta diretamente a essência do cinema: os relacionamentos entre ilusão e fato, espaço e tempo, sujeito e objeto”[20]. Wavelenght, um de seus filmes mais conhecidos, tem uma única tomada de mais de quarenta minutos. Um amplo estúdio, pouco a pouco dissecado por um zoom sistemático. É um dos muitos filmes da época que igualam sua duração à duração dos acontecimentos filmados (numa espécie de etnografia reversa como a proposta por Andy Warhol em seus retratos filmados). É uma cinematografia mais interessada em revelar os procedimentos da câmera diante do mundo, que preservar a autenticidade do que é mostrado, transformando pessoas e coisas em personagens de ficção feitas de realidade. São filmes que ilustram a provocação feita por Godard, quando afirma que o documentário é uma ficção sobre a vida dos outros.

Uma série de fatores conduzem a esse contexto em que não se fará mais cinema como antigamente. A história dos novos cinemas e da videoarte são melhor conhecidas, ao menos no âmbito dos estudiosos da linguagem audiovisual, que a convergência entre produção de imagem e transmissão. Em ArtoftheElectronic Age, Frank Popper afirma que “a circulação instantânea de informação dissociada dos limites geográficos, resultante [da chegada de tecnologias sofisticadas de processamento de informação], sobrepujou nossa percepção tradicional do mundo”[21]. É um processo que se articula pelo gradual abandono da tela como janela para o mundo. Os dois trabalhos analisados a seguir ilustram esse processo. Não é uma cronologia exata, já que as instalações surgiram antes que os ambientes virtuais. Em todo caso, é significativa a forma como ambos fraturam de alguma forma a lógica de enquadramento. Ambos permitem propor um trajeto da história do audiovisual que vai do surgimento do enquadramento ao estilhaçamento da tela, tendo como estágio intermediário a invenção das interfaces que permitem ao usuário mudar o enquadramento[22].

Um bom exemplo é Desertesejo, de Gilbertto Prado. É um ambiente de realidade virtual que explora a tensão entre encontro e isolamento. Modelado em VRML[23], permite que seus usuários experimentem diferentes pontosdevista, conforme o avatar[24] que escolhem. Navegar pelo ambiente implica duas formas de escolha. É possível movimentar a câmera por meio de gestos do mouse, transformando o usuário em coautor dos ângulos e travellings executados. É possível rastejar, voar ou caminhar pelos desertos inventados com precisão irônica. A riqueza das experiências possíveis tem menos relação com o realismo inverossímil que com o convite ao retiro compartilhado. Tanto em termos de metodologia de desenvolvimento, quanto em termos de resultado, o projeto se apoia em pesquisa de campo minuciosa. Mesmo que não se trate de um mapeamento estatístico ou de um levantamento topológico exato, a situação de estar em um deserto informa a produção do espaço virtual proposto.

Há sempre elementos que remetem à etnografia nessas experiências em que a extensão do tempo é elástica e modelável. Provavelmente porque os filmes etnográficos e o cinema-direto foram as primeiras experiências audiovisuais de sincronia entre acontecimento e narrativa. Mas, nos ambientes virtuais, a duração estendida assume outro sentido, na medida em que é um convite à exploração. A despeito da capacidade de reconstituir em detalhes os mundos que representam, os ambientes virtuais 3-D funcionam no reverso do contemplativo. Tampouco procuram um afastamento prudente entre câmera e mundo, como forma de preservar a autenticidade do registro. Pelo contrário, sugerem que apenas o mergulho no ambiente permite compreender seus aspectos com maior intensidade. É esse entendimento mais subjetivo (no sentido que Deleuze opõe a imagem-memória do cinema europeu à imagem-ação do cinema norte-americano) que aparece em Desertesejo, para propor um terceiro incluído[25].

A obra de Gilberto Prado atua no limiar entre o prolongamento da experiência e o gesto sobre o ambiente. Da mesma forma que os raccords falsos deslocam o espectador de um filme do seu lugar de conforto, a experiência do vazio subverte as vontades de quem navega na Internet. Ao fazê-lo, Desertesejo indica um elemento central da experiência contemporânea: a estranha simetria que, ao mesmo tempo, aproxima e afasta as pessoas conforme suas vidas são transmitidas de forma intermitente. Ambientes de rede são tidos como espaços de compartilhamento remoto, que aproximam distâncias e conectam diferenças. Mas nem sempre é assim. Como numa versão multiplicada da letra de Cazuza, Desertesejo propõe solidão a dez de dia.

Em palestra no Intermeios[26], Christine Mello analisa o ambiente dos cinco céus compartilhados como melhor exemplo da articulação entre estar junto e estar sozinho. Mello considera a possibilidade de ver, em tempo real, uma amostra do céu na cidade do usuário que navega pelo ambiente, colocada em conjunto com amostras do céu nas cidades dos demais usuários, uma metáfora exemplar das possibilidades de compartilhamento. Ao inserir Desertesejo no conjunto das obras de Gilberto Prado, a crítica e curadora mostra como o artista se ocupa de formas de gerar comunidade (algo que ela identifica em seus trabalhos, desde as experiências pioneiras de arte postal). Para Mello, Prado atua nesse desvio em que não basta estar em rede, em que é preciso deixar-se contaminar pelos efeitos dissipadores que a rede sugere. Parece pouco, mas faz muita diferença, diante da vertigem de cliques desencontrados que tornaram-se a experiência mais comum em espaços cuja vocação seria, supostamente, aproximar as pessoas. Basta pensar no que acontece com as redes sociais.

Circuladô, de André Parente, reconfigura o sentido do cinema de várias maneiras. A obra explora a circularidade de movimentos que levam ao transe, dos sufis que giram sobre seu próprio corpo, a um corisco à beira da morte, passando por Thelonious Monk no palco, o Édipo de Pasolini, e uma pombagira. São cenas de filmes e documentários tiradas de contexto, que em conjunto ganham novos sentidos, e também propõem um discurso mais amplo. A obra é construída em giros, como num zoetrópio. As imagens se repetem, aproximando o círculo do loop, provavelmente a figura de linguagem central da cultura digital[27]. E a própria configuração do espaço é circular, posicionando o interator no centro, diante de um mecanismo que ele pode girar.

Em Tudo Gira, Parente lembra que o zoetrópio foi dos primeiros dispositivos de imagens em movimento. Inventado em 1834 por William Horner, o zoetrópio foi batizado “Daedalum” ou “roda do diabo”. Ele afirma que “o zoetrópio é um tambor contendo ranhuras ou frestas que permitem ao espectador visualizar um conjunto de imagens em seu interior. Essas imagens formam uma animação. Na época em que o zoetrópio foi inventado, as imagens eram geralmente feitas à mão. Posteriormente o zoetrópio se tornou um instrumento dos animadores, que podem utilizá-lo para testar o processo de intervalo-ação”.

Se a magia da sala escura estimula o transe pelo fluxo de luz diante de seus olhos, Circuladô é um convite ao trânsito pelo contraste entre claro e escuro, reiterado a cada volta dos corpos em torno deles mesmos. Encontro às claras, este chamado à vertigem distancia, no melhor dos sentidos, a instalação de André Parente do cinema convencional. Conjunto de imagens potentes, a obra demanda uma atitude ativa do público. Como se, ao mostrar como os círculos levam ao êxtase, propusesse um formato em que a experiência do transe pudesse acontecer em interface, num gesto que emancipa quem participa do jogo proposto. É um mecanismo sofisticado, na medida em que atua no território sensível no limiar entre as representações de estados de fuga do real e o estímulo a potências que o cotidiano apaga.

Nas palavras do próprio artista (ainda no artigo Tudo Gira), “trata-se de misturar, em um único trabalho, dispositivo e conceito, loops mentais e loops físicos, imagens de giro e dispositivos circulares, imagem em movimento e movimento do espectador. Ou seja, fazer desse trabalho uma ponte que conecta os dispositivos pré-cinematográficos aos dispositivos pós-cinematográficos tendo como conteúdo e como forma a questão do giro e do corpo da imagem”.

O transe tem um sentido emancipatório muitas vezes desprezado pela cultura ocidental. Mesmo que hoje em dia o racionalismo não seja mais tão central, ainda há grande resistência a reconhecer o papel que estados alterados de percepção podem desempenhar no engendramento de novas formas de entender o mundo. A obra de Parente coloca a questão de forma sucinta, mas consistente, ao oferecer um mecanismo por meio do qual o interator gira junto com as imagens da obra, e ao fazê-lo altera seu giro. Não é apenas uma forma de interação, mas antes um convite ao compartilhamento de gestos e de imagens que produzem pensamento háptico. Se alguém já sonhou tocar a tela quando assistia a um filme, essa é uma boa oportunidade. Diferente de muitas das obras de arte digital, que exploram a interação pela interação, Circuladôsemantiza de forma rara sua interface, que não é apenas um dispositivo para manipular as imagens da instalação, mas também uma chave para entender os sentidos que giram na obra.

A interface de edição disponível em Circuladô esgarça os sentidos do circular, conforme gira um mecanismo para controlar as imagens da instalação. Ela remete a formas de edição que propõem elos entre o passado e o futuro do cinema[28]: retoma a fisicalidade da moviola e incorpora a atomização da linguagem digital. Não por acaso, o mecanismo lembra as pickups dos DJs, que marcaram de forma definitiva a cultura baseada em loops que o computador multiplicou[29]. Ela sugere um vínculo entre o giro dos personagens na tela e o giro mental que sugere ao público, explorando a conexão entre o corpo e o espaço da obra por meio da interface tátil.

O cinema tem ingredientes que remetem a esse espaço de sonho compartilhado, conforme discutido por Deleuze em A imagem-tempo. Deleuze considera que o “ato cinematográfico consistente em que o próprio dançarino entre em dança, como se entra no sonho”. Esse mergulho no imaginário que o cinema proporciona acontece sempre num espaço de trânsito entre a contemplação e o arrebatamento. Em todo caso, é sempre um acontecimento mental, que opera enquanto o corpo repousa diante da tela. Nos formatos contemporâneos de audiovisual, esse ato de convocação do público é mais direto e físico. Isso não garante maior empatia ou capacidade de deslocamento do espectador de seu mundo, mas certamente modifica a experiência, tornando-a mais vigorosa.

Em Tempestade, de luisduVa, há um percurso inverso ao discutido até aqui: o público é convidado a entrar no palco, para assistir a apresentação de seu interior; a obra reconstrói a experiência do artista diante de tempestades, algo que lhe inspira profundo temor. É o oposto simétrico dos mecanismos de alargamento da tela como forma de aproximar o público dos sonhos ali narrados. Como se o pesadelo tivesse uma viscosidade que atrai pela ausência de luminosidade, ao invés de dispersá-la na direção da plateia. Quem já acordou de forma súbita à noite, entende a força centrífuga desmesurada que rege o pesadelo.

Mas a composição audiovisual de duVa não modula esse aspecto terrível. Pelo contrário, ela explora o elemento sublime que existe no desconhecido[30]. Tempestade é o relato de um percurso em que imagens interiores e acontecimentos exteriores se fundem, mostrando os momentos de uma busca cujo sentido é equalizar os dois mundos. Por isso, o efeito estroboscópico funciona como motor que alterna de forma estonteante entre o mais claro e o mais escuro, justamente a tensão expressa pelo personagem em sua peregrinação entre tempestade e floresta. O fluxo não acontece apenas no plano da luminosidade que oscila, mas também no “enxugamento” expresso pela passagem da água conturbada à terra firme, do sonho ao acordar. Ao contrário da maioria das experiências em live cinema, duVa conta uma história consistente, e apresenta um imaginário rico. É um dos projetos melhor resolvidos no gênero cinema ao vivo, combinando experimentação de linguagem, reordenamento de possibilidades da estrutura fílmica e improviso, que resultam em uma composição audiovisual madura.

Diante de tamanha diversidade de exemplos, é surpreendente que exista um elemento comum no trânsito direto entre tela e plateia. O tipo de imagens-sons gerados pela sincronia entre acontecimento e narrativa parece obliterar essa distância. De certa forma, este é o sentido do chamado tempo real: a ausência de limites. A tela do cinema, mesmo nas durações prolongadas das tomadas sem corte, remete sempre a algo que já passou, a algo que está ausente. Só pelo rompimento da distância entre acontecimento e narrativa é possível instalar um presente compartilhado. É esta busca pelo momento em que todos fazem rede em torno do mesmo imaginário que une as obras aqui analisadas. Elas permitem propor que o cinema do futuro, com seus desejos polifônicos e participativos, é tudo o que o cinema quis ser a partir da Nouvelle Vague e suas montagens desconexas. Mas, com suas tecnologias que não existiam quando a tela era uma superfície intocável e o diretor decidia o que ali seria exibido, o cinema do futuro não é nada que o cinema tivesse pensado antes. Paradoxo? Só se você achar que a arte se limita ao que sua época permite. Ou se você achar que a arte é capaz de escapar do que sua época permite.

*Professor da PUC-SP. É doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Atua como artista, curador e pesquisador nas áreas de convergência entre arte, design, audiovisual e mídias digitais. Desenvolve a pesquisa Mundo em Rede: ecologias celulares num mundo em tempo real. É curador, com Lucas Bambozzi e Rodrigo Minelli, do Vivo arte.mov Festival Internacional de Arte em Mídias Móveis. Foi editor do Webpaisagem0, único projeto brasileiro indicado para o ://international/media/art/award, do ZKM e diretor do vídeo interativo Interface Disforme (premiado na Fiat Mostra Brasil) e do curta-metragem Radicais Livre(o)s (financiado pelo Programa Petrobras Cultural).


[1] Mark Shepard discute o uso do fone-de-ouvido como um escudo que separa seu usuário do entorno, especialmente em grandes cidades em que aparelhos portáteis para ouvir música funcionam como uma forma de evitar o contato com desconhecidos. Shepard também propõe formas de reverter esse comportamento com ferramentas que estimulam a socialização pelo cultivo coletivo de sons, numa forma de reinventar com celulares e aplicativos gratuitos as práticas de jardinagem comunitária, que já foram bastante comuns, na cidade de Nova Iorque. Cf. Shepard, Mark. “Tactical Sound Garden [TSG Toolkit]”, in: Bambozzi, Lucas; Bastos, Marcus; e Minelli, Rodrigo. Mediações, tecnologia, espaço público — Panorama crítico da arte em mídias móveis. São Paulo: Conrad, 2010.

[2]Sobre a relação minuciosa de Steve Jobs com o design de seus produtos, conferir: Isaacson, Walter. Steve Jobs. São Paulo: Companhia das Letras, 2011 e Kelley, David. The First Mouse, www.wired.com/magazine/2011/11/ff_stevejobs_sidebars/4/. Várias decisões de design da empresa que pareciam extravagantes mostraram-se, pelo contrário, formas atraentes de conciliar funcionalidade e estilo. Além dos fones-de-ouvido brancos que, quando foram usados no primeiro iPod, eram uma exceção depois transformada em rotina, vale lembrar o formato compacto e as cores cítricas do iMac.

[3]O conceito de acontecimento é importante para entender os tipos de audiovisual baseados em agenciamentos em tempo real aqui discutidos. No sentido usado neste artigo, o acontecimento é uma ação incomum, que desestabiliza a rotina. O conceito é discutido na edição da revista Communications dedicada ao tema, editada por Edgar Morin. O acontecimento, para Morin, tem um escopo amplo, relacionado com o funcionamento dos sistemas complexos, em que um acontecimento é um evento que reorganiza o sistema (seu estado inicial sendo sempre desestabilizador). Em certo sentido, há uma proximidade entre o conceito de acontecimento e a ideia foucaultiana de heterotopia, espaço de exceção que fulgura momentaneamente e rompe a tessitura dos fatos. A performance no espaço público com aparelhos de realidade aumentada explora essa instalação de lugares transitórios que surgem como camadas temporárias em um espaço dado, reconfigurando-o durante sua execução. Cf. Morin, Edgar. “Le retour de l’événement”, In:www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/comm_0588-8018_1972_num_18_1_1254 e Foucault, Michel. “Outros Espaços”, In: Ditos e Escritos 3. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.

[4] O conceito de narrativa também é bastante importante neste texto. Narrativa, conforme diferentes definições propostas por semioticistas que se dedicaram ao tema, é uma série de acontecimentos que se desdobra em um certo intervalo de tempo. Neste sentido, é possível dizer que há narrativa em um filme abstrato, por exemplo, na medida em que diferentes configurações visuais constroem uma trama visível, que comunica sua materialidade, sugere ritmos e vibra pulsões. Este entendimento da narrativa permite olhar de outra maneira para a história do cinema, recuperando procedimentos muitas vezes deixados em segundo plano nos estudos mais tradicionais sobre o tema, que colocam o surgimento da chamada narrativa clássica, de matriz grifftiana, como marco zero da linguagem cinematográfica. Claro que autores sofisticados como André Bazin e Ismail Xavier colocam o problema com as devidas nuances, mas o pensamento predominante do cinema parece construído como um pensamento sobre a ação no filme. Esta aproximação entre narrativa e ação privilegia certo tipo de cinema, que opta por contar histórias ao invés de, por exemplo, pesquisar durações ou texturas audiovisuais. Em Cinema II – A Imagem-Tempo, o filósofo francês Gilles Deleuze propõe formas de entender o cinema para além do problema da ação fílmica. A proposta deleuziana, baseada em imagens cuja latência revela tempos, cores, texturas, sonoridades, como alternativa à análise fílmica focada em como os filmes constroem suas histórias, é mais amplo que o próprio espectro de exemplos incluídos no livro faz supor. Deleuze concentrou seus estudos em um tipo de cinema bastante marcado pela trama, em momentos que seus conceitos parecem melhor aderentes a experiências menos convencionais como a visual music e o cinema não-narrativo. Sobre o conceito de narrativa, verNoth, Winfried.Handbook of Semiotics. Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press, 1995. Sobre os diferentes tipos de imagem possíveis além do que Deleuze chama de “imagem-ação”, ver  Deleuze, Gilles. Cinema II – A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 2007.

[5]Cf. Deleuze, Gilles. Cinema II – A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 2007, p. 55.

[6]O conceito de subtlemob foi forjado pelo grupo inglês homônimo, para descrever performances baseadas em acontecimentos temporários no espaço urbano, em que grupos de participantes, inscritos previamente, encontram-se num horário determinado para encenar uma narrativa que transforma a cidade em cenário, numa espécie de cinema em tempo real no espaço público. É uma variação do flashmob, intervenção relâmpago geralmente articulada através de dispositivos em rede (listas de discussão, mensagens virais de SMS, etc.). Ao contrário do flashmob, que é factual e breve, a subtlemob é narrativa e tem duração suficiente para instalar espaços ficcionais sobrepostos à realidade. A despeito das diferenças de procedimento, ambos propõem irrupções que descontinuam a ordem dos acontecimentos cotidianos, instalando espaços de heterotopia que redesenham o campo do possível. No artigo “CrowdControl”, publicado na revista Wired de janeiro de 2012, Bill Wasik (que, além de colaborador da revista foi o criador do primeiro flashmob) discute a relação entre esse tipo de manifestação relâmpago e a onda de protestos políticos, e também alguns tumultos involuntários, que assolaram o ano de 2011. Wasik mostra o papel das novas tecnologias em rede nessas articulações coletivas que surgem com rapidez estonteante e modificam-se em ato, por meio de troca de torpedos que aumentam sua difusão articulada e dificultam as tentativas de reprimi-la. Mas, no texto, ele evita uma posição determinista, ao discutir diferentes aspectos diversos da psicologia das multidões que revelam padrões de comportamento coletivo típicos de grandes grupos independente de sua articulação através de tecnologias de rede.

[7]O problema da mediação nesses formatos em que há sincronia entre acontecimento e narrativa é um tema bastante complexo, que poderia ser objeto de um segundo artigo sobre o universo das imagens-som em tempo real. Por um lado, obras como Como se fosse a última vez… ou Tempestade, de LuisDuva (duas obras analisadas neste artigo) acontecem no momento de sua fruição. Nesse sentido, elas invocam um sentido de imediatismo, ao se construírem em ato. Há algo de teatral nessa configuração em que o improviso, a presença do corpo e a partilha de um ambiente são inerentes à obra. Por outro lado, são trabalhos que dependem de tecnologias de síntese e transmissão que perfuram esse ambiente compartilhado, multiplicando seus espaços e tempos. São obras que exploram as formas mais intricadas de mediação, produzindo lugares crivados de potências latentes. Sobrepõe-se assim, à configuração primeira, com base em certa teatralidade do acontecimento em tempo real, algo que remete ao elemento mágico discutido por alguns autores que procuram entender o cinema num registro menos apegado ao formato da narrativa. O aleatório, o desmanche da corporeidade e o compartilhamento de tramas simultâneas são características marcantes. Mas a sobreposição entre imediato e inflação de mídia é aparente, apenas. O próprio processo de mediação é mais complexo e incorpóreo do que certos entendimentos correntes fazem supor. Basta pensar na trama complexa que permite ao ser humano falar. Ele articula um aparelho fonador visceral, que combina balbucios estruturados, por paradoxal que possa parecer. Quem fala, opera sempre a sinergia entre ar pressionado corpo afora e articulação gravada na mente. Entender esse mecanismo em que é impossível separar natureza e cultura, é um ponto-de-partida para entender o problema da mediação. As formas contemporâneas de comunicação são sempre desdobramentos do modo de funcionamento do corpo. Não há, portanto, tanta distância quanto parece entre o imediato e o super mediatizado. Impossível, no espaço desta nota (apesar da extensão barthesiana) dar conta de todos os aspectos da questão.

[8]Em “Cinema x VRML”, Lev Manovich demonstra como a maior diferença entre o cinema e os formatos audiovisuais digitais refere-se ao lugar do espectador diante da imagem. No cinema, o enquadramento é estabelecido pelo diretor do filme, que decide o que será visto e o que ficará extracampo. Em formatos como o VRML, o enquadramento é escolhido pelo interator, que navega por um ambiente que ele acessa conforme escolhe a direção que a câmera percorre. É possível argumentar que experiências como o já citado Como se fosse a última vez… ou CanYouSee Me Know?, do grupo inglês BlastTheory, desdobram a passagem de um mundo ficcional forjado em um enquadramento que o público só pode fruir, para um mundo ficcional que modela enquadramentos possíveis conforme a escolha do interator. São experiências que exploram o próprio mundo como cenário, onde injetam narrativas ao inserir elementos virtuais em um espaço físico determinado. Há, assim, um engajamento direto do interator, que não é mais transferido em forma de avatar para um corpo que ele controla à distância, mas sim participa de uma experiência em que seu próprio corpo ativa acontecimentos. Em sentido contrário, o entorno afeta a narrativa, emprestando-lhe elementos causais e oferecendo circunstâncias imprevistas. O resultado é um espaço fluído entre rede e mundo, entre ficção e realidade, onde ambos se entrelaçam e se modificam.

[9]O surgimento de novas tecnologias de difusão audiovisual (em serviços como o Netflix e vários semelhantes que transmitem filmes via Internet) resulta em uma diversificação dupla: tanto as salas de cinema ampliam seu escopo, exibindo jogos de futebol e shows de rock como forma de impedir uma evasão do público, quanto o fã de filmes passa a dispor de mais opções (cinema, tevê, computador, tablets e celulares são os mais populares). Essa diversidade permite ampliar o escopo de produção audiovisual. Um exemplo é a quantidade de vídeos domésticos que atingem altos índices de exibição em plataformas como o YouTube. Outro, os circuitos voltados ao chamado Microcinema, em que produtores independentes exploram o potencial das câmeras portáteis e da ilha de edição digital para renovar com agilidade inédita o repertório audiovisual. Certamente, o volume da produção implica numa aparente inconsistência, mas uma análise mais cuidadosa do acervo de festivais voltados para esse tipo de produção confirma o alto nível dos trabalhos, assim como a possibilidade de concretizar modelos alternativos de distribuição, mais versáteis e baratos que a película.

[10]O texto vai adotar realidade mixta como tradução de “mixed reality”, para ressaltar o aspecto de mixagem entre mundo e rede implícito no termo, que se perde na tradução literal.

[11]Esse embaralhamento entre narrativa e contexto obriga repensar um par de conceitos que estrutura a linguagem do cinema: diegese/extra-diegese, e a articulação entre campo e contracampo como forma de modificar o ponto-de-vista na narrativa audiovisual. Imagens e sons embutidas em espaços redefinem de forma radical a ideia de que há um locus onde a narrativa é visível e um espaço externo relacionado, logicamente inserido na história, mas inacessível através do olhar. Esse embaralhamento entre diegese e extra-diegese, associado à rearticulação da relação entre campo e contracampo, acontece em ambientes virtuais, em instalações interativas e nas performances com realidade aumentada, conforme será mostrado nos estudos de caso incluídos no final deste artigo. O tema merece ser melhor explorado, na medida em que não surge apenas como decorrência da tridimensionalidade presente em experiências audiovisuais fora da tela, como já foi sugerido na bibliografia especializada. Também na esfera das artes tridimensionais, como a escultura, é possível pensar um espaço narrativo extracampo. Por exemplo, quando o personagem da escultura olha adiante, é possível supor que ele olha na direção de alguém ou de alguma coisa não incluídas entre as formas recortadas pelo escultor. Nos espaços de realidade aumentada e nas instalações, os limites entre os elementos são mais dissolutos, o que dificulta o estabelecimento de distinções claras entre seus campos, entre seu espaço de fruição e um exterior logicamente associado, mesmo que ausente do campo visual. Uma obra como Invisíveis, de Bruno Viana, explora justamente esse embaralhamento, ao propor uma narrativa em que personagens virtuais surgem na tela do celular conforme o público caminha pelo Parque Municipal de Belo Horizonte, onde o trabalho foi implementado. Como Viana afirma, em entrevista sobre a obra, no documentário Telemig Celular Arte.Mov 2007, os personagens de sua narrativa não são apenas fictícios, mas também virtuais. Essa percepção precisa do artista sugere uma gama de relacionamentos existentes no âmbito da realidade aumentada: fictício / virtual, “real” / virtual, fictício / atual, “real” / atual. É a articulação entre esses elementos, que nunca se dá de forma estável, que produz oembaralhamento entre narrativa (ou acontecimento) e contexto.

[12]Traduzidopeloautor, a partir do original: “there is some evidence that the Cinematographe did not emerge from an obsession with realism and movement the way that materialist histories demand, but that a convergence of an obsession with other dimensions and a radical shift in the relationship between ordinary people and technology converged on a number of machines and reinterpreted them to satisfactorily stabilize irreconcilable ideas. Not to acknowledge this has contributed to a flawed history of cinema that becomes an impediment to our understanding of the cinema now and in the future”. Cf. Punt, Michael. “The jelly baby on my knee”, In: Eves, Frans; van der Velden, Lucas; e van der Wenden, Jan Peter (Eds). The Art of Programming – Sonic Acts 2001 conference on digital art, music and education. Amsterdan: Paradiso / SonicActs Press, 2002.

[13]O cinema empresta materialidade a um tipo de fenômeno que desafia os limites da percepção, criando aquilo que Walter Benjamin chama de inconsciente ótico. Seu efeito mágico está relacionado à capacidade de corporificar elementos do imaginário humano, num formato que permite a sensação de transferência para lugares fantásticos, aterrorizantes, surpreendentesetc. Este efeito imersivo está intimamente ligado à experiência de preenchimento do campo visual (seja aproximando os olhos de um dispositivo de visão ou sentando-se diante de uma tela grande o suficiente para arrebatar o olhar). É um aspecto da linguagem audiovisual que não acontece com igual potência em experiências mais espacializadas, como as discutidas neste artigo. Por esse motivo, nesse tipo de experiência, há uma ênfase maior no som (nas obras que acontecem em espaço público), uma busca por tipos de imagens ou configurações arquitetônicas diferenciadas (nos ambientes virtuais e instalações) e um esforço para redesenhar o formato de palco italiano de forma a incluir o público (nas performances de cinema ao vivo).

[14]As imagens de inscrição, conforme a terminologia cunhada por Philippe Dubois para descrever a fotografia e o cinema, podem ser lidas como formas contemporâneas de magia, algo reconhecido tanto por baluartes da indústria como George Lucas (que batiza sua empresa de Industrial Light & Magic) quanto por pesquisadores como ZiegfriedZielinski (que estrutura sua arqueologia das mídias a partir do resgate de formatos audiovisuais como a fantasmagoria e a câmera obscura). Um estudo consistente sobre essa capacidade que as tecnologias audiovisuais têm de dar materialidade a acontecimentos invisíveis, inclusive na forma limite de servir como testemunho de fenômenos paranormais, é a tese de doutorado de Mario Ramiro, O gabinê fluidificado e a fotografia dos espíritos no Brasil: a representação do invisível no território da arte em diálogo com a figuração de fantasmas, aparições luminosas e fenômenos paranormais. São Paulo: USP, 2008.

[15]Cf. Deleuze, Gilles. Cinema II – A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 2007. p. 71-2.

[16]Traduzidopeloautor a partir de: “I’m writing at the end of the era of cinema as we’ve known it, the beginning of an era of image-exchange between man and man”, in: Youngblood, Gene. Expanded Cinema. Toronto e Vancouver: Clark, Irwin &CompanyLimited, 1970, p. 49.

[17]“A coincidência entre pensamento lógico e “realidade” é incrível. Não pode ser acreditada”. Cf. Flusser, Vilem. “Coincidência Incrível”, in: Da Religiosidade — A literatura e o senso de realidade. São Paulo: Escritura, 2002. p. 32.

[18]É esse o sentido da mítica fuga de espectadores diante do trem que se agigantava na tela, naquela que é tida como a primeira exibição de cinema.

[19]O caráter mítico dos astronautas é evidente e, em certo sentido, a história da televisão pode ser contada como um esforço constante para repetir o efeito de deslumbre hiperbólico. Curiosamente, há uma simetria entre as histórias do cinema e da tevê, neste âmbito da busca por efeitos capazes de manter o espectador em um estado mágico (em que pese o contexto muito mais dispersivo de fruição televisual). Em linhas gerais, é possível defender a existência de uma segunda fase na história do cinema, em que é bastante comum a reversão do caráter mítico da tela. São diversas estratégias, como filmar fora de estúdio, em situações precárias, tratando de temas mais típicos do jornalismo ou do romance naturalista. Em geral, esses novos cinemas também passam a desfazer, por meio da metalinguagem e dos raccords falsos, certa transparência típica da linguagem cinematográfica instituída na época. Eles exploram as quebras de continuidade como forma de manter o espectador alerta, ao contrário do cinema clássico que usava a continuidade como forma de manter o espectador enfeitiçado. No caso da história da tevê, se é possível considerar que o momento atual corresponde a esse ponto de reinvenção da tevê em função do surgimento de novas tecnologias audiovisuais que deslocam seu lugar na ecologia dos signos. É significativo o surgimento de formatos como o Big Brother, em que o cotidiano, um estranho tipo de não-acontecimento que se torna acontecimento pelo simples fato de estar em quadro, e a duração que explora a sincronia entre acontecimento e narrativa, parecem inverter a tentativa inicial da tevê de mostrar momentos fantásticos e especiais. É preciso considerar, também, que a grade de programação de tevê tem uma diversidade que dificulta tratá-la de forma homogênea. Mas, se é possível considerar a transmissão ao vivo de fatos que assumem súbita importância coletiva (um acidente, a visita do Papa) como ápice do mecanismo televisual, o surgimento de programas que exploram o cotidiano ao invés do extraordinário certamente reconfiguram o regime de exibição.

[20]Traduzidopeloautor a partir de: “I’m writing at the end of the era of cinema as we’ve known it, the beginning of an era of image-exchange between man and man”, in: Youngblood, Gene. Expanded Cinema. Toronto e Vancouver: Clark, Irwin & Company Limited, 1970. p. 122.

[21]Traduzido a partir de: “The resulting instantaneous circulation of information without regard to geographical limitations has overthrown our traditional perceptions of the world”. Cf. “Communication Art”, in: Popper, Frank. Art of the Electronic Age.London: Thamesand Hudson, 1993. p. 122.

[22]The Engineeringof Vision, de Lev Manovich, e  “História da Perspectiva”, de Erwin Panofisky, podem ser entendidos como estudos que mostram a formação do tipo de representação em que a tela funciona como uma janela para o mundo. Por ser mais recente, o texto de Manovich trata as imagens térmicas e os dispositivos de visão por infravermelhocomo indícios de estratégias de visualização não mais com base na constituição de duplos do campo visual. Os exemplos apontados por Manovich são casos limites. Os ambientes virtuais e as instalações interativas também podem ser incluídas neste vetor de visualidades que rompem com a representação em perspectiva.

[23]Virtual Reality ModelingLanguage, uma linguagem que permite construir mundos tridimensionais por meio de imagens vetoriais navegáveis.

[24]Apesar de bastante conhecido no contexto da cultura digital, vale lembrar que o conceito de avatar remete à personas virtuais que um usuário assume ao participar de mundos virtuais (seja em jogos de RPG, em narrativas multiusuário ou em experiências de realidade virtual). No caso de Desertesejo, o usuário pode escolher entre três avatares que definem características do pontodepartida em que acontecerá a navegação pelo ambiente 3-D (rastejar, andar ou voar).

[25]A figura, sugerida por Deleuze, de uma subjetividade automática produzida pela sobreposição entre imagem, pensamento e câmera interior, também foi analisada por PhilipeDubois sob a nomenclatura de sujeton, um sujeito em certo sentido externo à subjetividade que o produz, na medida em que é resultante da articulação entre sujeito e máquina agenciadora (por exemplo, na relação entre homem e câmera, em que a câmera inclui elementos na imagem impossíveis de o olhar capturar).

[26]VII Encontro arte e meios tecnológicos — Leituras críticas / Núcleo contemporâneo — Parte 4. 8 de dezembro de 2011.

[27]A cultura contemporânea tem sido definida por procedimento reiterativos, em diversos níveis. Na música eletrônica, por exemplo, o loop é usado como motivo estruturante. Depois de um esfacelamento da harmonia tradicional, com notas, escalas e acordes, a música se volta para a materialidade do som e constrói suas unidades mínimas de significação usando estruturas circulares que serão moduladas e repetidas. Na música eletrônica de pista-de-dança, que se tornou mais popular que as vertentes experimentais, o loop é usado de forma quase abusiva, o que serve para ilustrar o argumento aqui resumido de que a repetição é uma meme dos dias atuais. Há exemplos equivalentes no cinema, sendo Quentin Tarantino e David Lynch, talvez, os diretores que melhor representam a prática de construir roteiros por meio de estruturas circulares que retornam de forma modulada durante o filme. Num nível menos visível, é possível lembrar que o loop (assim como as estruturas bifurcadas baseadas em decisão) é um dos mecanismo fundamentais das linguagens de programação. Um programa de computador é, em certo sentido, resultado de um pulso regular que coloca em funcionamento um conjunto de regras baseadas na repetição de processos e na decisão a respeito de seu uso.

[28]Há outros exemplos de mecanismo do tipo na produção contemporânea, como é o caso de 5x4x3x, de Lea Van Steen e Raquel Kogan. Em artigo escrito para o catálogo da obra, há uma breve apresentação desse universo, que merece ser retomada aqui: “Arlindo Machado sempre defendeu o primeiro cinema como um repositório de possibilidades coerentes com os rumos do que ele denominou pós-cinema.  Machado, assim como SiegfriedZielinski e Oliver Grau, discutiram diversos aspectos deste elo entre passado e futuro do cinema, que permite entender a história das imagens em movimento em um registro em que a invenção é mais importante que a narrativa, em que a forma de contar é tão importante quanto o que é dito. São autores que definem um campo de experimentação onde o relato por meio de imagens e sons acontece em sua forma plena, muitas vezes relacionado às diferentes possibilidades de diálogo com os aparelhos e espaços em seu entorno (no avesso da narrativa clássica, que confia na transparência da exibição). Meliés, EijaLiisa-Ahtila ou Milton Marques são bons exemplos desta prática de inventar formas de narrar que são tão importantes quanto a própria narrativa (para citar exemplos que abrangem um amplo intervalo de tempo, abrigando artistas/inventores que estabeleceram as bases para o tipo de pesquisa feito por Kogan e Van Steen e outros que propõem desdobramentos recentes para as mesmas premissas)”. Cf. Bastos, Marcus. “multiplicações: rever(so d)a ilha”, in: Kogan, Raquel e Van Steen, Lea. 5X 4x 3x. São Paulo: Funarte, 2012.

[29]Cf. Bastos, Marcus. A cultura da reciclagem. São Paulo: Galeria Noema, 2007.

[30]Para uma discussão sobre o conceito de sublime como um temor diante do desconhecido e com as forças desmesuradas da natureza, ver Burke, Edmund. A philosophical enquire into the origin of our ideas of the Sublime and the Beautiful. Oxford: Oxford University Press, 1990.

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Corpo-dança expandido pelos "tempos" do ciberespaço: novas dramaturgias | de Ivani Santana

Este artigo apresenta uma análise da pesquisa iniciada em 2005 no campo da dança que utiliza as redes avançadas de telecomunicações como o locus e a “matéria-prima” para o desenvolvimento do que aqui consideramos uma dança (e um corpo) expandido. Serão discutidos alguns resultados dos projetos realizados pelo Grupo de Pesquisa Poéticas Tecnológicas que apontam a dança telemática como um reflexo da cultura digital que tem o tempo como fator relevante para seu acontecimento. Essa nova configuração artística promove o surgimento do que denominamos dramaturgia telemática.

Desde o evento Nine Evenings for Theatre and Engeneering (Nova York, 1966) é possível dizer que a arte (re)conheceu novos e complexos ambientes de atuação. Esse evento idealizado pelo artista visual Robert Rauschenberg (1925-2008) e pelo engenheiro Billy Klüver (1927-2004) reuniu 30 engenheiros da Bell Telephone Laboratories e 10 artistas americanos. O projeto levou um ano para ser produzido e mostrou ao mundo performances e instalações que surpreenderam o público. Naquele momento, Nine Evenings fincou um novo marco na história da arte. Segundo Michael Rush, essa é uma reverberação do “confronto com a tela” (1999: 7) que já tinha sido iniciada pelos russos Kasimir Malevich (1878-1935) e Vladimir Y. Tatlin (1885-1953) e, um pouco depois, contou com Paul Jackson Pollock (1912-1956) nessa ruptura, para citar apenas alguns. Esse confronto encontrou eco, portanto, em movimentos como o Futurismo, o Abstracionismo, o Surrealismo, o Conceitualismo e outros. Ainda segundo Rush (1999), a tela representa o pictórico e sua dependência do espaço. A realidade era, até então, expressa pelo espaço (compreendido como um local específico, um ambiente) capturado e fixado nas imagens criadas pelo artista, aspecto que foi efetivamente alterado pela cultura digital. O mundo do código binário apontava para um outro alvo. O foco de interesse se movia do espaço para o tempo, um tempo redimensionado da contemporaneidade.

A exploração do tempo alcançou seu ápice quando o ciberespaço saiu das histórias de ficção científica para concretizar uma realidade (a nossa contemporânea). Muitos consideram o ciberespaço como um “não-espaço”, posição contrária a deste texto. A compreensão de “não-espaço” ocorre pela manutenção da visão pictórica em detrimento da cultura digital. Entretanto, na era da informação, espaço não significa mais lugar, local fixo à espera de ser representado pela obra do pintor, que buscava recriar a realidade tal e qual. O espaço, que agora é virtual, sintético, digital, torna-se múltiplo, é contextual e transitório. O espaço não está dado (pronto e definido), ele é um enunciado que depende de suas situações internas e externas para existir em contínua transformação e articulação. Nesse sentido, espaço é contexto. Tais aspectos estão ancorados no mundo contemporâneo que se interessa pelo processo e não mais (apenas) pelo produto. Estamos em um mundo rizomático e não serial e (exclusivamente) linear . Como contexto, vincula-se aos seus antecessores (situação externa) como os cubistas que desejavam, de certa forma, ter todos os tempos ao mesmo tempo ao “abrir” todas as faces e fases de um mesmo objeto em um único instante (situações internas aquele contexto).

Mas antes de discutir os tempos do ciberespaço, é necessário trazer o contexto, a situação externa que estimulou o surgimento da dança telemática para então poder analisar as obras que serão apresentadas neste artigo. Para os idealizadores de Hole-in-Space. A Satellite Comunication Sculpture (1980), Kit Galloway e Sherrie Rabinowitz, esse “túnel do tempo” que colocou os transeuntes das ruas de Los Angeles em contato com aqueles que se encontravam em Nova York tinha como objetivo criar uma “performance sem nenhuma fronteira geográfica” (Chandler, 2005:154). Essa já era a segunda obra nesse sentido. A primeira, Satellite Arts (The Image as Place) (1977) foi realizada graças ao interesse da Nasa em aproximar e ganhar simpatia e confiança dos estadunidenses aos seus projetos. Para isso, abriu uma chamada para associações da sociedade civil com interesse em realizar experimentações com o satélite US-Canadian. Apesar de nada compreenderem dessa tecnologia, Galloway e Rabinowitz intuíram que essa poderia ser uma nova forma de fazer arte, uma arte sem fronteira, como afirmaram. Nesse trabalho, dançarinos preparados pelas orientações de improvisação da artista da dança pós-moderna Ann Halprin e autodenominados “Mobilus” foram convidados para realizar uma performance entre duas cidades dos Estados Unidos (Califórnia e Maryland), as quais estão distantes 3 mil milhas e em lados opostos daquele continente. No meu entendimento, o furo (hole) não estava (apenas) no espaço, mas nos tempos sobrepostos daquele contexto.

Quem já vivenciou reuniões por sistemas de videoconferência ou mesmo por aplicativos somo o Skype entre países diferentes deve ter percebido que o enunciado para marcar a reunião é outro, não mais pela medida de hora convencional. Agendar para as 3 horas da tarde ou 15 horas não significa nada, a não ser que se indique o horário de cada um dos locais envolvidos. Talvez não tardará muito para que a unidade de referência do (até então) confortável relógio, que uniformiza nossa agenda cotidiana, seja trocado pelas novas medidas de tempo, agora atômicas e universais. O mundo é constituído de outras unidades de referência, que agora passam a fazer sentido não apenas para especialistas ou cientistas, mas para um cidadão comum e seu cotidiano globalizado. O sistema de referência não pode mais ser local e o Tempo Universal Coordenado (UTC) torna-se o mapa indicativo dos vários tempos de um mundo sincronizado .

Hole in Space não estava furando os espaços, pois o que se tinha deles era apenas uma pequena parede, um muro, um ponto de uma rua da cidade. Nem Los Angeles e tampouco Nova York, como qualquer outra cidade (espaço), podem ser reduzidas a essa parte insignificante do seu contexto. Mas o tempo, esse sim é atravessado e sobreposto em projetos telemáticos, convergindo dois instantes de tempo em um mesmo. Hole in Space ocorre em Nova York que encontra-se no UTC -3, enquanto Los Angeles está na UTC -5, o que corresponde a uma diferença de 3 horas de fuso. Os tempos dessas duas cidades convergiam para um mesmo instante de acontecimento. Pode-se dizer que aquelas pessoas de Nova York estavam em um futuro em relação a Los Angeles, e vice-versa. Um portal do tempo se abria para colocar passado e futuro juntos num mesmo instante. Essa diferença aumenta quando, por exemplo, desenvolvemos o projeto entre três continentes, como em nossa criação entre América do Sul, Europa e Ásia com os seguintes fusos horários: Salvador/Brasil (UTC -3), Barcelona/Espanha (UTC +1) e Chian Mai/Tailândia (UTC +7) . A diferença real entre Brasil e Tailândia é de 10 horas, mas desce para 9 horas por conta do horário brasileiro de verão. Dançamos aqui logo cedo pela manhã, enquanto em Chian Mai o sol já teria se posto.

A dança telemática potencializa a visualização dessa convergência do tempo quando é construída através de camadas de imagens, como será mostrado adiante. O tempo é uma variante muito maior do que usualmente se imagina no cotidiano, pois não visualizamos essas pequenas diferenças no nosso dia a dia; o tempo civil fez com que a vida fosse baseada no fuso horário mais próximo. Se um indivíduo verificasse o tempo solar a cada instante, provavelmente obteria uma medida diferente do que o relógio marca. A vida é experienciada em um tempo convencionado que a cultura digital pode desconstruir para dar visualidade aos instantes até então invisíveis.

Para contextualizar a dança telemática de hoje, além de Rabinowitz e Galloway, vale ressaltar a importância de Nam June Paik (1932-2006) com suas obras provocativas que transgrediam as possibilidades (e interesses) dos meios de comunicação em massa, tais como o inaugural Global Groove (1973) realizado em parceria com John Godfrey e, na década seguinte, Goog Morning Mr. Orwell (1984), com vários participantes ilustres como o músico John Cage (1912-1992) e o coreógrafo e dançarino Merce Cunningham (1919-2009). Desde Paik, os meios de comunicação passaram a ser transgredidos pelos artistas expandindo o corpo humano e a arte como expressão.

Vários acontecimentos continuaram a provocar e a desafiar essa fricção entre arte-ciência-tecnologia. Os reflexos e ecos daqueles experimentos já pincelados em Nine Evenings for Theatre and Engeneering (1966), em Hole-in-Space, a Satellite Comunication Sculpture (1980) e nas transgressões de Paik estão hoje na apropriação que fazemos com as redes avançadas de telecomunicação. Músicos reúnem-se diante de máquinas digitais e das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) para tocar a partir de locais geograficamente, ou melhor afirmando, temporalmente distintos. O mesmo ocorre com dançarinos e atores realizando espetáculos por meio do uso das TICs.

Para a artista e pesquisadora da cultura digital Gisele Beiguelman, os usos da rede se dão porque o espaço de ação da cultura das redes é um espaço informacional, mediado por redes de comunicação que vêm implodindo sistematicamente não só as noções de distância e de localidade, mas também os limites entre os lugares da arte, da propaganda e da informação por um lado, e as relações entre lugar e não-lugar, por outro (2008: 190).

O aspecto informacional se deve à potência e à natureza das máquinas digitais. Essas tecnologias são as primeiras capazes de “roubar” do mundo informações que podem ser manipuladas e transmutadas em algo outro, diferente de sua configuração primeira. Assim é a tecnologia digital: ela atua como mediadora dos sistemas de signos do mundo através do trânsito de informações. Esse é o ciberespaço: as TICs como parte da sua história, ou seja, uma situação externa; e a informação como “matéria-prima”, a situação interna desse contexto. O espaço da contemporaneidade, portanto, é constituído por esse contexto com as situações das TICs e da informação, que são responsáveis por fazer do tempo um dos grandes marcos da atualidade.

A dança telemática surge então desse contexto de um espaço informacional que se apresenta não mais fixo, mas múltiplo na convergência de vários tempos que se sobrepõem pelas redes avançadas de telecomunicação. Essa configuração estrutura uma dança que é realizada entre corpos remotos, ou seja, entre dançarinos situados em diferentes pontos temporais: corpos e dança expandidos pela cultura digital.

A afirmação “corpos localizados em pontos geográficos distintos” é a forma convencional com que normalmente a dança telemática é definida, o que procede, e era como até há pouco tempo eu também a considerava. Todavia, conforme tenho concluído após seis anos de pesquisa nesse campo, o local da apresentação não interfere concretamente na configuração telemática, a não ser pelo seu posicionamento em um determinado fuso horário. Em um processo de criação, o maior empenho dos engenheiros é minimizar ao máximo a latência e o atraso no fluxo de transmissão. Numa situação hipotética, se as estruturas de todas as redes do mundo fossem completamente idênticas, contando com a alta velocidade de transmissão, com os dispositivos para alta definição etc., e os dançarinos fossem todos vinculados à dança contemporânea, não haveria nenhuma diferença dançar em Chian Mai, Barcelona, Fortaleza, Buenos Aires, ou qualquer outra cidade, a não ser que houvesse algum interesse artístico, estético e/ou conceitual em abordar as questões culturais de cada local. Do ponto de vista da engenharia de rede o que está sempre em destaque é o tempo de conexão. Diferentemente de compreender que essa é uma questão apenas tecnológica, é importante assegurar que uma criação sempre está implicada com seus dispositivos e é justamente por isso que a considero como uma mediação tecnológica: uma está implicada na outra. Portanto, não apenas pode existir uma diferença de fusos horários que se sobrepõem como, por exemplo, uma performance entre Salvador (UTC -3) e Barcelona (UTC +1), ou ainda, Proyecto Paso (2006, Estados Unidos/ UTC -7, Brasil/ UCT -3 e Espanha/ UTC +1), mas contamos também com um retardo no tempo de transmissão da informação. As redes de telecomunicação, mesmo as mais avançadas, contam com uma latência na transmissão da informação que gera um atraso (delay no jargão do meio informacional) de segundos. Dependendo da quantidade e da qualidade da informação, maior poderá ser esse atraso.

Portanto, a conclusão é que se trata de uma dança de tempos e não de espaços por mais que estes, de certa forma, agreguem alguma importância cultural e semântica. A convergência desses tempos nas obras de dança telemática é o foco de discussão deste artigo, cujas análises demonstram que esse corpo e essa dança estão agora expandidos.

O corpo, a dança e o código digital

Minha experiência de praticamente 20 anos trabalhando com a mediação tecnológica na dança e na performance permitiram investigar diversas formas de transmutar o corpo do dançarino, ou seja, digitalizando-o é possível transformá-lo em imagem, em som, em texto etc., pois ele estará em forma digital, traduzido em código binário, em informação. Donald Kuspit argumenta que

com a arte digital pós-moderna, a imagem passa a ser uma manifestação secundária – um epifenômeno material, por assim dizer – do código abstrato que, desse modo, se converte em um veículo principal da criatividade. […] Agora, a criação do código (ou, em termos gerais, o conceito) tem se convertido na atividade essencial. A imagem já não existe por seu direito próprio, sua função é sacar a luz do código invisível sem dar importância ao meio material empregado (2005:11-12).

O autor conclui seu texto afirmando que o “computador não é um novo instrumento para fazer a antiga arquitetura, pintura ou escultura”, e afirma que as artes que se utilizam dos “algoritmos ‘encrustrados’ do computador são novas formas artísticas com um potencial estético, criativo e visionário inesperado e, em parte, ainda não explorado” (ibidem: 37). É dessa forma que compreendo a emergência da dança telemática.

Quando o corpo do dançarino é convertido em códigos binários e esses são transmitidos para seu parceiro em um ponto temporalmente distinto, o que está em jogo não é o espaço (no sentido pictórico anteriormente mencionado), mas o tempo que, fragmentado em vários tempos, converge para um mesmo acontecimento formado de camadas temporais.

Na dança telemática, os corpos tornam-se códigos que podem migrar pelos fluxos informacionais sendo capturados em um ponto remoto e redistribuídos pela rede. De forma simplificada, pode-se dizer que para compor um espetáculo de dança telemática é necessário um dispositivo de captura, denominado encoders (por exemplo, as câmeras de vídeo), ligado em um computador com conexão de rede de alta velocidade que transfere a informação para um ou vários pontos, além da própria internet, conforme o objetivo da performance. Para a recepção, é necessário um outro computador ligado na mesma rede e a um decoder (por exemplo, o projetor de vídeo) (Figura 1). Um programa específico para a transmissão de áudio e vídeo também é necessário para essa operação. Existem trabalhos que utilizam a rede apenas para envio da imagem de um local para outro, sem o interesse de que as mesmas sejam disponibilizadas na internet, como é o interesse das nossas pesquisas.

Figura 1: Mapa da rede interligando as três cidades: Salvador (Teatro 1), Brasília (Teatro 2) e músicos em João Pessoa. No canto inferior esquerdo, a taxa de transmissão de dados de cada parte do trajeto.
Figura 1: Mapa da rede interligando as três cidades: Salvador (Teatro 1), Brasília (Teatro 2) e músicos em João Pessoa. No canto inferior esquerdo, a taxa de transmissão de dados de cada parte do trajeto.

A dança telemática do Grupo de Pesquisa Poéticas Tecnológicas: experimentos e conclusões

Meu primeiro contato em dança telemática ocorreu nos Estados Unidos, em 2001, quando participei do Environments Lab (Ohio State University) como convidada do professor Johannes Birringer para uma residência artística durante meu período de doutoramento. De volta ao Brasil em 2002, minhas tentativas para realizar uma sessão com o ADaPT foram frustradas já que o sistema de rede que possuíamos não suportava conexões dessa natureza. Entretanto, em 2005 fui convidada pela Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP) para criar um espetáculo de dança telemática para o lançamento da nova rede avançada (Rede Ipê), que seria uma homenagem ao 10º aniversário do Ministério de Ciência e Tecnologia. A Rede Ipê foi lançada com 10 gigabits por segundo, ou seja, uma velocidade superior em cerca de 40.000 vezes à conexão doméstica de 256 Kbps. Naquele momento, nossa rede acadêmica estava equiparada às principais redes avançadas do mundo, como Géant2 (Europa), CaNet*3 (Canadá) e internet2 (EUA).

Foi assim que surgiu Versus (2005) (Figura 2), um espetáculo performado simultaneamente e em tempo presente por artistas distribuídos em três cidades brasileiras: Salvador, Brasília e João Pessoa. Os dançarinos do Grupo de Pesquisa Poéticas Tecnológicas (GP Poética) estavam nas duas primeiras cidades e, na Paraíba, a música eletroacústica foi tocada em tempo real e enviada para os dois outros pontos. O espetáculo podia ser assistido no Distrito Federal e pela internet.

Figura 2: Versus (2005) entre Salvador, Brasília e João Pessoa.
Figura 2: Versus (2005) entre Salvador, Brasília e João Pessoa.

Além da minha experiência nos Estados Unidos no ADaPT, formato que não pretendia seguir, eu não possuía nenhuma referência nesse campo e, como não era uma linha de pesquisa de interesse naquela época, não tinha uma investigação prévia para auxiliar no processo criativo. Assim, iniciei do zero, sabendo apenas o que eu não queria e carregando a experiência de trabalhar com imagem em tempo presente nos espetáculos cênicos e alguns estudos em videodança. Percebi que investigar as possibilidades de um dançarino efetivamente interagir com seu parceiro virtual (aquele que estava no outro ponto remoto) seria a melhor forma de utilizar aquele contexto para criar realmente uma relação de mediação explorando as características que considero relevantes nas redes de telecomunicação. A estratégia encontrada para atingir o objetivo pretendido centrava-se na criação de camadas de imagens (e tempos). Cada ponto remoto constituía-se como uma das camadas, sendo a última a compor o resultado final da obra (Figura 3). Em virtude do delay, um dançarino vê sua própria imagem na tela-guia atuando com seu parceiro remoto durante a performance, mas em um tempo passado, já transmitido pela rede. Dessa forma, o dançarino se percebe no palco em dois instantes sobrepostos: o tempo presente do “corpo de carne e osso” que dança no palco, e um tempo passado inscrito nas imagens que constroem a relação entre os parceiros dos diferentes pontos remotos.

Figura 3: Por onde cruzam as alamedas (2006) entre dois pontos em Salvador, Reitoria e Escola de Dança, campi universitários de Ondina.
Figura 3: Por onde cruzam as alamedas (2006) entre dois pontos em Salvador, Reitoria e Escola de Dança, campi universitários de Ondina.

Portanto, trata-se de um jogo de camadas de imagem e de tempo que compõem um todo e, ainda, esse processo criativo demanda a construção simultânea de duas estruturas semânticas, ou seja, uma dramaturgia era criada para aqueles que se encontravam na plateia de Brasília, outra era percebida pelos usuários da rede. Nesses seis anos de pesquisa em dança telemática, temos utilizados essas premissas para aprofundar a investigação nesse campo e desenvolver uma dramaturgia telemática.

A enorme complexidade para realizar o espetáculo Versus tornou-se um estímulo para a formação do Grupo de Trabalho de Mídias Digitais e Artes (GTMDA) em 2009 com o objetivo de criar uma ferramenta que facilitasse a construção de obras dessa natureza. Através do GTMDA desenvolvemos a ferramenta Arthron, para a transmissão e o gerenciamento de imagem em alta resolução via redes avançadas, e o espetáculo e_Pormundos Afeto, que contou também com a parceria do grupo catalão Konic Thtr. Contemplado pela RNP por dois anos, esse foi o projeto com maior tempo para criação e desenvolvimento, contando com financiamento nos anos de 2009 e 2010 e, em 2011, foi convidado para participar do evento The Third European Network Performing Arts Production , realizado no Gran Teatre del Liceu em Barcelona. O Laboratório de Vídeo Digital (UFPB), coordenado pelo Dr. Guido Lemos, foi responsável pela tecnologia desenvolvida e tem sido um dos grandes parceiros dos meus projetos desde 2005, quando criamos Versus.

Um dos objetivos do espetáculo e_Pormundos Afeto foi possibilitar a interação do público da internet permitindo que qualquer pessoa conectada à rede tivesse condições de assistir e participar do espetáculo. Para isso, o público, usuário da rede, entrava em um sistema no qual podia interagir com um ambiente virtual através de um avatar que escolhia. Essas imagens eram projetadas no palco compondo uma imagem final com o ambiente virtual, os avateres e os dançarinos remotos. Assim, na obra e_Pormundos Afeto todos os tempos do mundo poderiam estar sobrepostos, uma vez que qualquer pessoa do planeta que estivesse conectado à internet poderia entrar no sistema.

A questão do tempo nesse trabalho também foi explorada de outra forma. Meu interesse era continuar a pesquisa estética na utilização do delay, já iniciada em Versus. Construímos então uma cena que apresentava os vários tempos de ação dos dançarinos através de um efeito conseguido por colocar a projeção dentro do próprio enquadramento da câmera, criando uma multiplicação da imagem. Na Figura 4, a dançarina Aline Rosas aparece no palco e na imagem repetidas vezes. Cada imagem da Aline é a captura de um instante de tempo atrasado no fluxo de informação da rede e revelado pela multiplicação das imagens. Quanto mais ao fundo, há mais tempo foi capturada aquela camada de imagem.

Figura 4: e_Pormundos Afeto (2009) entre Fortaleza, Natal e Barcelona.
Figura 4: e_Pormundos Afeto (2009) entre Fortaleza, Natal e Barcelona.

Portanto, a dança telemática propicia outras formas de configuração que alteram a maneira de compreender e criar sua narrativa, que é distendida no tempo e na relação entre corpos remotos. Consequentemente, outras possibilidades de dramaturgia surgem nesse novo contexto.

Para tratar dessa questão, analiso nosso último trabalho realizado em 2011, o espetáculo Frágil, resultado do projeto Laboratorium Mapa D2 (2011) que articulou diferentes linguagens artísticas em espaços distribuídos. Participaram desse projeto: o grupo de Fortaleza, Laboratório de Poéticas Cênicas e Audiovisuais (LPCA-UFC) , voltado para o trabalho cênico com ênfase na exploração vocal; o Núcleo de Artes e Novos Organismos (Nano-UFRJ) , do Rio de Janeiro, responsável pela criação de uma escultura eletrônica-digital que recebia inputs das ações dos dançarinos e atores de forma a interagir com os mesmos; e o GP Poética (UFBA), de Salvador, responsável pela composição sonora, que se valia das vozes dos atores em sua construção e da condução da performance através do desenvolvimento cênico dos dançarinos. A obra como um todo, ou seja, em todos os seus núcleos de atuação, contou com nove câmeras de captura que foram disponibilizadas na internet através do Arthron, de forma que o usuário-web podia construir em tempo real sua narrativa.

Na telemática, as linguagens se fundem para a construção da obra criando uma forma de dramaturgia específica desse meio. A criação a partir do jogo de camadas, da convergência de diferentes tempos e a relação de interação virtual propiciam uma narrativa que denominamos dramaturgia telemática, a qual emerge da confluência entre (os códigos d)as estruturas da narrativa audiovisual, das tensões de uma estrutura teatral e dos elementos composicionais da dança e da música. Os músicos especializados em telemática, Pedro Rebelo e Franzisca Schroeder (2009) advertem que muitos autores buscam “repensar o modelo de comunicação e argumentam em favor de um quadro que, contrário à frequente abordagem holística de performance na rede, favoreça uma visão por golpe de vista, fragmentos e desejos”. Compartilho essa posição justamente por considerar que na dança telemática trabalhamos com “pedaços” do tempo que convergem para um mesmo instante e com corpos transformados em códigos, conforme discutido neste artigo.

O projeto Laboratorium de Arte Telemática Mapa D2 é um reflexo de todas as pesquisas anteriores que realizei, promovendo não apenas a construção de uma mesma obra vista por diferentes pontos de vista (muitos deles remotos), mas também outras formas de articulação entre os pontos e entre a obra e o usuário da rede. A utilização do tempo na telemática foi investigada nesse espetáculo também por um outro prisma. Diferente das demais obras, as quais envolviam apenas o universo da dança, no espetáculo Frágil, além da interação entre linguagens artísticas diferentes, cada grupo concebeu uma configuração estética específica. Fortaleza criou um espaço de “corpos instalados”, ou seja, os atores permaneciam numa mesma ação durante toda a obra que era pautada nas cenas construídas pelo grupo de Salvador. Nosso grupo estava interessado em construir uma performance cênica desenvolvida por um encadeamento de cenas com começo, meio e fim, mas estruturado por uma semântica não-figurativa e não-linear. O organismo híbrido, até mesmo por sua configuração escultórica, permanecia instalado no espaço compartilhado com Salvador no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.

Como diretora artística, meu objetivo foi orientar para que conseguíssemos criar pontos de articulação com a obra do outro, respeitando assim, as características internas, os interesses estéticos de cada grupo. Considero essa postura uma continuidade da investigação do jogo de camadas, que também puderam ser contempladas na internet. Diferentemente da pesquisa anterior, que colocava o público dentro da obra, nesse projeto, o objetivo foi enfatizar a individualidade do espectador, bem como a individualidade de criação dos grupos, expandindo ainda mais a ideia de fragmentação, camadas e convergências. Construímos uma interface (Figura 5) na internet na qual o usuário-web podia construir a narrativa da obra em tempo presente, ou seja, a obra era contemplada de acordo com as escolhas desse público específico da internet.

Tanto os vários aspectos das obras citadas neste artigo, como o potencial que temos propiciado na rede para a participação do usuário-web, demonstram que essa é uma dança expandida que promove a criação de uma outra narrativa e uma outra forma de configuração de arte, específica da cultura digital. O corpo e a dança são expandidos em camadas de imagem-tempo no campo da dança telemática através de códigos que se entrelaçam em diferentes tempos para a criação de novos/ outros significados para uma dramaturgia telemática.

Figura 5: Frágil (2011) entre Fortaleza e Rio de Janeiro.
Figura 5: Frágil (2011) entre Fortaleza e Rio de Janeiro.

* Ivani é mestre (2000) e doutora (2003) em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Fez pós-doutorado no Sonic Arts Research Centre, Queen’s University Belfast, na Irlanda do Norte, pesquisando a relação da sonoridade do corpo em ambientes telemáticos. Desde o início da década de 1990 pesquisa a relação da dança com as novas tecnologias. Tem atuado intensamente nesse campo, contando com expressiva produção artística e científica. Em 2006, pela apresentação de sua pesquisa no Monaco Dance Forum (MDF), recebeu o Prêmio Unesco para promoção das artes: novas tecnologias e a Residência Artística no renomado Centre Choregraphique National, com direção artística do coreógrafo Angelin Preljocaj, em Aix-en-Provance, França.


[1] Os vídeos das obras citadas neste artigo encontram-se no site do grupo. www.poeticatecnologica.ufba.br.

Referências:

BEIGUELMAN, G. Por uma estética da transmissão. In: Interterritorialidade. Mídias, contextos e educação. Orgs. Barbosa, A.M. e Amaral, L. São Paulo: SENAC, p. 189-198, 2008.

KUSPIT, D. et al. Arte digital y videoarte. Transgrediendo los límites de la representación. Madrid: Circulo de Belas Artes. 2006.

REBELO, P. “Dramaturgy in the Network”. In: Contemporary Music Review 28, no. 4, London: Routledge, 2009.

REBELO, P. Haptic Sensation and Instrumental Transgression. In: Contemporary Music Review 25, no. 1/2, London: Routledge, 2006.

RUSH, M. New Media in Late 20th-Century Art. Ney York: Thames&Hudson, 1999.

SCHRODER, F., REBELO, P. Sounding the Network: The Body as Disturbant, Massachussets: Leonardo Eletronic, Almanac, 2009.

SCHRODER, F., REBELO, P. Weareble Music in Engaging Technologies. In: AI & Society, vol. 22, issue 1, 2007. www.informatik.uni-trier.de/~ley/db/journals/ais/index.html

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Deslocamentos de Paulo Bruscky por Gabriel Mascaro: um documentário no Second Life | de Patrícia Moran

Tomamos o documentário de Gabriel Mascaro, As aventuras de Paulo Bruscky, para problematizar propostas audiovisuais contemporâneas estruturadas no deslocamento de estratégias discursivas que atravessam gêneros e disciplinas. Mascaro e Bruscky jogam com o lugar dos sujeitos e objetos, colocam problemas que extrapolam o escopo do cinema narrativo, seja ele documental, de ficção ou mesmo ensaio. Esse documentário sobre, e no Second Life, chama alguns debates sobre os limites da representação e evidencia a necessidade de aportes teóricos transdisciplinares para a investigação do audiovisual.

Errantes no cinema do futuro

É de 1985 O século do cinema, livro de Glauber Rocha sobre movimentos, autores e obras cinematográficas selecionadas segundo o gosto de um inventor. Neste século do transcinema de Kátia Maciel, do pós-cinema de Arlindo Machado ou do cinema pós-fílmico de Garret Stewart, o que esperar da realização de imagens em movimento? E da teoria do cinema, ou melhor, teorias do cinema? Alcançamos novos marcos divisores estéticos e poéticos, ou os marcos não cabem em uma sociedade descrente em projeções de futuro, descrente de propostas salvacionistas e utopias? Hoje estamos no futuro com a ciência e suas prospecções na medicina, na política ambiental, no avanço constante dos meios de comunicação pessoais e públicos. O futuro passa pela racionalidade do cálculo, projetada a partir de dados do presente. Como pensar o futuro do cinema, quando estamos no futuro e um dos cineastas mais citados e discutidos em nossa cinematografia datou o pertencimento de sua arte ao século passado? O que é mesmo cinema?

Oferecer respostas a essas questões extrapola o escopo deste artigo, as perguntas nos interessam como recurso para problematizar os entusiastas, falam sobre o presente de um futuro já colonizado e o passado como matéria a ser esquecida, como cemitério de experiências ricas, porém circunscritas a uma época. Através do documentário de Gabriel Mascaro As aventuras de Paulo Bruscky propomos um dos caminhos do futuro já presente.

O elogio ao futuro está expresso em publicações clássicas recentes como o livro e a exposição Future Cinema (2003) do ZKM. Nesse livro, o também clássico Gene Youngblood assina o artigo “Cinema and Code”. Ele ainda é mencionado no título de um artigo de Peter Weibel, um dos organizadores do livro e da exposição. Em 1970 Youngblood diagnosticou a ampliação de experiências de cinema, incluindo a televisão e o vídeo ao nomear como cinema expandido autores e trabalhos destoantes das poéticas hegemônicas à época. Esse projeto seminal carece de sistematização e rigor teóricos, no entanto representou um avanço ao incluir a proposta sensível como um dado necessário para a compreensão das estratégias de trabalhos realizados em vídeo e película, e exibidos no cinema, na tevê e em galerias de arte. Merece ainda menção por tornar evidente os limites de recortes lineares calcados exclusivamente na cronologia. O cruzamento de produções com distintas materialidades, propostas expressivas e meios de difusão é uma contribuição desse autor cuja obra é reveladora das debilidades da análise e teoria cinematográficas de então para abarcar a grande produção emergente desafinada dos padrões médios em vigor.

Na década de 1970, a reflexão sobre o audiovisual não englobava a diversidade de problemas trazidos pelos realizadores, pois ainda vigorava a grande teoria e metodologias calcadas na interpretação fílmica. Quando falamos em grande teoria nos referimos à psicanálise, ao marxismo e ao estruturalismo que dominaram a pesquisa cinematográfica até os anos 1970. No Brasil, Fernão Ramos tem procurado ampliar as abordagens do nosso mercado editorial com traduções de autores como David Bordwell, crítico da grande teoria. Representante de análises cognitivista e estilística, não vê como problema a falta de um escopo teórico capaz de responder a uma gama generalista de questões trazidas pelo cinema. Robert Stam, crítico de Bordwell, também teve um trabalho teórico traduzido pela mesma linha editorial coordenada por Ramos. Ele procura em seu livro, Introdução à teoria do cinema, recuperar a historicidade na teoria do cinema e evitar as generalizações insuficientes para dar conta de trabalhos singulares. A perspectiva de Stam se confronta abertamente com  Bordwell, no entanto esses autores têm em comum a crítica da grande teoria e o fato de  privilegiar uma cinematografia calcada na narratividade e no avanço de um enredo.

Outra proposta a realinhar as pesquisas realizadas no Brasil tem em Arlindo Machado um dos representante mais eloquentes. Em seu livro, O sujeito na tela: modos de enunciação no cinema e no ciberespaço, alinha-se a Borwell ao criticar as limitações de análises importadas da literatura para o cinema. Ele não aposta na teoria em sua investigação, mas na pesquisa histórica de repertórios potentes do cinema, do vídeo, da televisão e de jogos eletrônicos. Machado representa o grupo da Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo que, juntamente com pesquisadores como Nelson Brissac e Lucia Santaella, entre outros, capitanearam a inclusão de formas expressivas audiovisuais raramente tratadas na reflexão acadêmica brasileira. Partiram da semiótica como perspectiva de abordagem, ainda uma grande teoria, mas tampouco suficiente para se pensar fora do sentido e da interpretação. Incluíram novos objetos da mídia para a pesquisa e aos poucos se abriram para novas ferramentas de abordagem dos objetos. André Parente, no Rio de Janeiro, agremia outro grupo com Kátia Maciel, organizadora de Transcinemas. O início da década de 1990 é marcado pela formação de jovens pesquisadores, quando a diversidade temática e a pesquisa de cunho filosófico em comunicação e cinema ganham terreno. Este curto parágrafo esboça alguns caminhos da pesquisa sobre audiovisual no Brasil levando em conta a proposta deste texto e desta publicação, a saber, pensar novos cinemas. Não representa toda a produção brasileira, nem honra todas as contribuições para o debate, como as do artista e pesquisador Julio Plaza. Optamos manter este parágrafo pois ao iniciar sua redação nos demos conta da falta de uma reflexão sobre os caminhos e descaminhos da pesquisa brasileira de cinema, vídeo e novas mídias, hoje já velhas em termos de existência. Essa nota vale como estímulo a um debate ainda por vir, vale ainda como uma provocação para velhos e novos pesquisadores pensarem nossos percursos e filiações.

Como já dissemos, Ramos, Stam, Bordwell e Machado não veem a falta de uma grande teoria como problema. Nós entendemos que a complexidade de propostas expressivas do cinema contemporâneo e de outros campos do audiovisual traz questões que solicitam escopo teórico e metodológico diversificado. A história do cinema nunca foi monotemática ou uniforme como poética, já no cinema mudo há diversas experiências desafinadas em relação às linhas de força dominantes. A diferença dos trabalhos em termos expressivos, em seus dispositivos de exibição e materialidade apontam o cruzamento de áreas como a arquitetura, a filosofia, a performance (teatro, artes plásticas etc.), as ciências exatas, entre outras. Ou seja, além da diversidade de perspectivas de análise, coloca-se hoje o desafio dos estudos transdisciplinares, para os quais não cabem metodologias e teorias com discursos sobre a especificidade. Um dos caminhos para o pensamento sobre o audiovisual contemporâneo é o cruzamento de campos, pois os trabalhos têm abraçado recursos diversos, como a mescla de materialidades, de estratégias naturalistas e ilusionistas, de narrativas ficcionais com marcas do documentário e do jornalismo. Enfim, cada trabalho poderá demandar ferramentas de análise singulares.

O pensador russo Lev Manovich é um exemplo de abordagem rica em termos metodológicos sobre a relação entre estudos de cinema, artes visuais, design e estudos de software. Arquiteto, crítico literário, estudioso de cinema e realizador, Manovich abandona perspectivas genealógicas ao eleger Um homem com uma Câmera, de Dziga Vertov para problematizar novas e velhas mídias. O novo e o velho são tratados como linhas de força. O trabalho de vanguarda de Vertov tem na sobreposição de quadros, na explicitação da sua estrutura, na composição visual em janelas em um mesmo quadro, na junção de imagens com escalas diferentes em um mesmo quadro, recursos expressivos recorrentes em trabalhos contemporâneos, como muito bem colocou Philippe Dubois. A composição do quadro do filme de Vertov está presente na interface do computador. Uma nova mídia? Melhor pensá-lo como um novo ambiente, nele cabem todas as mídias. Um ambiente cuja interface em janelas com distintos materiais e escalas está mais próximo do quadro do filme de Vertov do que de uma série de projetos cinematográficos e televisivos contemporâneos. Além da composição do quadro, o filme é disnarrativo, como coloca André Parente e pode ser analisado em uma perspectiva contemporânea por sua montagem, autoreferencialidade, e pelo uso do movimento não como dado da imagem, mas como recurso expressivo, apenas para ficar em alguns exemplos.

A aventura: premissas iniciais

O documentário de Gabriel Mascaro As aventuras de Paulo Bruscky[1] é uma experiência exemplar de estratégias discursivas e técnicas que atravessam gêneros e disciplinas. Joga com o lugar dos sujeitos e objetos, enfim coloca problemas que extrapolam o escopo do cinema narrativo, seja ele documentário, ficção ou mesmo ensaio. O espaço diegético onde se dá o acontecimento fílmico é o Second Life, os personagens avatares se movimentam a partir de comandos previamente automatizados. Mas, como acontecem no ambiente do Second Life, estabelecem relações com outros avatares comandados em algum computador por pessoas e corpos em ação no mundo físico.

Esse não é o primeiro documentário no Second Life. Life 2.0, de Jason Spingarr-Koff, estreou no Sundance Festival; Johnny Menemonic foi exibido no HBO, Mulheres da Vida trata da prostituição no Second Life, ou seja, leva um problema do mundo material para o espaço virtual. A particularidade do documentário de Mascaro está no uso do espaço virtual não como uma continuidade do mundo cotidiano, não como um lugar sujeito a leis físicas como a gravidade por exemplo, mas como campo para reinvenção de toda e qualquer regra. O corpo/imagem do avatar não está sujeito a qualquer tipo de constrangimento físico ou biológico, ele voa, ele se joga do alto de um edifício e de uma escada em espiral e sai da aventura sem qualquer dano corporal.

Figura 1: Avatar salta prédio
Figura 1: Avatar salta prédio
Figura 2: Avatar voa
Figura 2: Avatar voa

A primeira aparição do personagem é de costas no fundo do mar. Inicia sua aventura andando dentro do mar em direção à praia. Encontra-se com o documentarista e lhe pede para ser “o outro, o objeto” de um documentário no Second Life. Como na tradição mais corriqueira de um certo tipo de documentário, começa-se com uma entrevista. Acontecerá dentro do mar. Os avatares de Paulo Bruscky e de Gabriel Mascaro com a câmera estão entre as ondas. Seu movimento não segue convenções naturalistas, as ondas não arrebentam na praia. Paralelas a Bruscky e Mascaro, encontram-se e arrebentam nos dois lados deles, sem atrapalhar a entrevista a se desenrolar no face a face. O Second Life não é extensão do mundo material, é um espaço de divulgação de atividades artísticas e culturais ou de promoção de produtos do mundo dos negócios, mas espaço virtual, logo, tudo pode ser reinventado, inclusive leis físicas, pois foram programadas. Esse espaço não é levado a sério, ao contrário, é tratado como matéria-prima para se pensar o meio, para reinventar pactos e convenções já que estamos em um lugar regido por leis matemáticas inventadas por nós.

Figura 3: Entrada no vídeo.
Figura 3: Entrada no vídeo.
Figura 4: Entrevista no mar
Figura 4: Entrevista no mar
Figura 5: Entrevista no mar 1
Figura 5: Entrevista no mar 1

As aventuras de Paulo Bruscky é um documentário sobre o Second Life, por Gabriel Mascaro, ou melhor, um documentário sobre Paulo Bruscky, ou, de Paulo Bruscky através de Gabriel Mascaro e sua equipe. Vamos, por partes, melhorar essa confusão. O diretor de cinema Gabriel Mascaro e o artista experimentador Paulo Bruscky são os personagens e realizadores do vídeo As aventuras de Paulo Bruscky no Second Life. Paulo Bruscky, o inventor, Gabriel Mascaro, o diretor, o Second Life, o ambiente, se constituem no tripé do acontecimento fílmico. O Second Life confere ao vídeo sua materialidade, não é um meio de realização como outro qualquer, como seria a captação ou animação, pelo menos na maneira como é trazido por Mascaro e Bruscky.  A imagem é de síntese, as experiências vividas mesclam encontros de pessoas de carne e osso mediadas pelos avatares em paisagens de síntese. A voz, a entrevista e as questões colocadas são repertoriadas com mediações como em qualquer documentário de animação, já as experiências, contrariando as leis da física, jogam contra gêneros e suas convenções, quebram a reverência e a seriedade facilmente imputadas a personagens consagrados como Paulo Bruscky.

O trabalho em tese é um documentário, mas seu título filia-se, ao contrário, a ficções de ação, ficções criadas pelo cinema dominante de Hollywood. Trata-se de um filme de aventura do personagem do documentário, mise en abyme como diriam os franceses. Temos efetivamente um personagem e suas aventuras no sentido mais banal possível. As aventuras do avatar de Bruscky incluem experiências e peripécias típicas de super-heróis. Ele voa entre continentes e monumentos de cartão postal de países diversos, ele dança dando piruetas no ar, ele se senta em um vulcão, ele visita no fundo do mar o acidente com o avião da Air-France, enfim, o repertório cultural do mundo dos objetos físicos é matéria da aventura pop de Bruscky e Mascaro.

A aventura pop se sustenta também em soluções fáceis como o rock’n’roll com intérpretes consagrados como David Bowie, Paul MacCartney e a banda Sonic Youth, com a música “Superstar” imortalizada por diversos grupos musicais. Além de promover a adesão do espectador por facilitar a identificação com esses clássicos do pop rock, a trilha inscreve o documentário, ou seu personagem, em um universo de referências. Entre o romântico MacCartney e o experimental Sonic Youth, David Bowie traz o universo psicodélico com “Ground Control to Major Tom”. A música encerra o documentário com a dança, tai-chi-chuan solicitado pelo documentário. Os avatares  dançam na lua, realizam a poesia prevista na letra da música.

Figura 6: Tai-chi-chuan
Figura 6: Tai-chi-chuan
Figura 7: Avatar dança Sonic Youth
Figura 7: Avatar dança Sonic Youth

O personagem: o objeto-sujeito

Paulo Bruscky é um criador. Se notabilizou como um explorador da arte com diversos experimentos. Reconhecido no Brasil e no exterior com alguns prêmios, como o Guggenheim de Artes visuais, em 1981. No ano seguinte, trabalhou na indústria, nos laboratórios da Xerox, criou Xerox-filmes. Suas áreas de atuação incluem o desenho, a performance, happenings, copyart e fax-art, arte postal, intervenções urbanas, fotografias, filmes, poesia visual, experimentações sonoras e intervenções em jornais. É detentor de uma das maiores coleções do mundo do grupo internacional Fluxus, do qual participaram George Maciunas, Yoko Ono, Wolf Vostel, Joseph Beuys, Nam June Paik entre outros. Mais do que um movimento artístico, o Fluxus é considerado um modo de se encarar a arte. Essa época heroica de crítica e reinvenção de instituições é revivida por Bruscky no Second Life. Arte com atitude, como acontecimento.

Talvez venha do Fluxus, da coleção de trabalhos guardada, seu afã pelo colecionismo, pelo arquivo, hoje tão em voga. Em suas duas participações na Bienal de São Paulo, Bruscky levou como obra parte de seu atelier, de trabalhos que consistem em salas e mais salas repletas de livros, quadros, filmes, cartazes, recortes de jornais etc. Esse material é a obra de Bruscky, repertório significante para se produzir deslocamentos de funções e usos dos objetos, para criação de camadas de sentidos em harmonia e/ou choque. Aqui estamos diante da arte como conceito, campo de invenção de experiências e deslocamentos estéticos pela renovação do olhar para o já visto. Sua fonte de criação está em todos os lugares, como pode ser visto com nosso personagem em pequenos vídeos no youtube buscando tesouros no lixo. Ele se associa a catadores de lixo e já realizou um trabalho de fotografia com catadores. O dejeto do mundo, aquilo que a indústria e os indivíduos não têm interesse, transforma-se em matéria viva. Pensamento sobre nossa época, sobre nossos valores, sobre como a poesia pode estar em qualquer lugar. Como enquadrar uma figura de tamanha complexidade?

O documentário e o documentarista dão voz ao outro e suas experimentações. Bruscky é documentarista no seu colecionismo ao trazer os sentidos agregados aos objetos do mundo, também se relaciona com pessoas como já dissemos, mas nos interessa especialmente os acontecimentos por ele provocados através dos objetos, ou melhor, dos readymade, ou objetos encontrados. Eduardo Coutinho, no Festival de cinema documentário É tudo verdade, alegou faltar-lhe repertório para a duração da fala solicitada pelo evento. Para garantir apresentação pública tão extensa, necessitaria lançar mão de citações. Explicita e brinca com essa estratégia usando seu lugar de documentarista para afirmar: “Somente me interessam as coisas que são dos outros” (2005: 111). A presença do outro, seja através da seleção de objetos ou pessoas é comum nos documentários. Mesmo em trabalhos ensaísticos, o realizador deposita suas impressões e conceitos a partir de um substrato visto no outro. Em suma, podemos entender o outro da aventura como um outro objeto da cultura, como uma coleção de experiências encarnadas na experimentação que nega o objeto, ou no objeto da cultura pop heroica, aquela questionadora de valores estabelecidos. Só me interessa o que não é meu, diz Oswald de Andrade no Manifesto Antropofágico. Bruscky, através de Mascaro, leva essa máxima às últimas consequências.

O Avatar

O avatar de Bruscky destoa do Second Life. Ele é velho, tem o cabelo branco e é barrigudo. Muito diferente daquele ambiente higienizado com figuras prototípicas da noite, figuras góticas com cabelos esculpidos e corpos modelados segundo os padrões contemporâneos de um belo corpo. O corpo do avatar de Bruscky é poderoso na sua inadequação, gera simpatia aquele velhinho com figurino anacrônico em um corpo macilento, mas super ágil. O velho grisalho barrigudo é o mais empolgado da noite, o corpo deixa de ser impedimento ou limite, o avatar de Bruscky chama a atenção no Second Life, entusiasma as figuras góticas presentes na festa. As falas sobre Bruscky e seu diálogo com outros avatares são disponibilizadas na tela, desconhecemos seu teor pois são ilegíveis, mas o frisson causado pelo velhinho que dança sozinho e com outros, é indicado pelas frases se substituindo. No Second Life as falas são escritas. Como em diversos momentos do vídeo, os recursos do Second Life para as escolhas técnicas como a iluminação, a passagem de tempo pela chegada da noite, a movimentação e dança do avatar, ou a definição de seu humor como o riso, tem expostos na imagem esses comandos. Neste aspecto, As aventuras de Paulo Bruscky é um documentário contemporâneo ao explicitar suas estratégias, ao exibir seus mecanismos de construção.

Figura 8: Avatar
Figura 8: Avatar
Figura 9: Avatar
Figura 9: Avatar

O documentário, depois de se deslocar do gênero no título, nas ações do personagem, no foco narrativo, produz na própria inadequação da figura de Bruscky outro deslocamento. O riso ao vê-lo dançar é resultado da evidente impossibilidade de um corpo como aquele executar tantas peripécias. Aquela imagem-corpo não sugere no mundo material tamanha maestria.

Em uma ação mórbida ele se encontra com uma garota morta. Como no Second Life vida e morte são convenções técnicas, ele logo está fazendo sexo com ela. Uma das mais belas, engraçadas e deserotizadas cenas de um documentário, ou de uma ficção. O velhinho barrigudo com um avatar sangrando, mas com um corpo esculpido com muito silicone. O jogo com a realidade, a segunda realidade, cresce, pois o sexo é realizado em um espaço virtual circundado por imagens fotográficas especulares. Ou seja, os avatares fazem sexo, trata-se de um avatar feminino ressuscitado e um velho barrigudo, é bom lembrar, enquanto corpos estelares em uma fotografia com uma representação especular das figuras humanas é objeto de cena. O cartaz publicitário com modelos eróticos anuncia um concurso de beijos, enquanto os avatares de fraco apelo sexual fazem sexo.

A figura ressuscitada do acidente da Air-France e o avatar de Bruscky se envolvem em uma das felações menos erotizadas já vistas em uma ficção ou documentário. Neste momento se ainda podemos falar em documentário é no caminho da experimentação do lugar. Mas, diante das evidências de haver uma roteirização da experiência, é difícil pensar em documentário. O que temos são discussões sobre temas como a representação e a mercantilização do sexo. Sem julgamento moral e com muito humor, criticam e ironizam diversos padrões contemporâneas explorados pela mídia exaustivamente. A crítica é construída pelo riso, que se vale da heterogeneidade de recursos expressivos para oferecer uma situação em que os dados no conjunto traçam um painel das questões. A fotografia publicitária com corpos esculpidos e os avatares se amando ao som da música romântica “No more lonely nigths” de MacCartney esvaziam o sexo, fica o riso. Novamente o vídeo se vale do riso, a solução para a solidão no Second Life é insustentável. Não fosse a somatória desses elementos tão díspares, seria fácil o humor negro ou o ridículo, no documentário, sobre a situação proposta.

Figura 10: Avatar com personagem gótica
Figura 10: Avatar com personagem gótica
Figura 11: Avatar com outra personagem gótica
Figura 11: Avatar com outra personagem gótica
Figura 12: Avatar: peripécias na noite
Figura 12: Avatar: peripécias na noite

Terminada a cena, sem gozo evidente a não ser o do espectador com o absurdo visto, o avatar se dirige a uma escada espiral. Ele já havia se jogado de um prédio, agora se jogará da escada. Experimentar a morte é uma constante na aventura. No desenho animado é comum personagens sobreviverem a quedas e atropelamentos, são ainda recorrente saltos e voos impensáveis, sem que tenham qualquer consequência negativa. No entanto, em desenhos animados os riscos dos personagens relacionam-se a objetivos dramáticos, a desafios a serem superados pelo herói. Na aventura, os saltos são imotivados em termos narrativos, não se subordinam ao desenrolar de qualquer temática ou ação. As sequências do documentário avançam pela sobreposição de informações sobre a personalidade, desejos, opções artísticas e posturas existenciais do personagem, como já dissemos, não há qualquer objetivo a ser alcançado pelo avatar. Ele produz acontecimentos ao viver sua aventura. No entanto, podemos inferir que a motivação é oferecer diversas faces da discussão sobre convenções realistas do documentário. Os saltos seriam então motivados pela afirmação desta tese.

O debate sobre os limites da representação são explicitados quando o avatar se joga da escada. Coloca-se em questão a história. Ele sobe a espiral duas vezes, claro que ao chegar ao topo não voltará pela escada, mas se jogará. Enquanto sobe, fala sobre a verdade e a arte, questões caras ao documentário, pelo menos para determinado documentário, em determinada época. Haverá verdade? Onde? Verdade na representação? A espiral é uma resposta, sobre a impossibilidade de resposta.  Representa a “retroalimentação, efeito bola de neve, círculo vicioso ou círculo virtuoso: ocorre quando uma pequena mudança provoca pequenas mudanças que se acumulam numa desproporção cada vez maior sobre aquilo que provocou a mudança inicial, realimentando o processo. Pode ser uma ‘espiral de declínio’ (círculo vicioso) ou uma ‘espiral de ascensão’ (círculo virtuoso)”[2]. Problema na filosofia, para Kierkegaard representa a vida e a morte. No caso dos pulos de Bruscky, uma morte sem danos; no caso de um problema filosófico, do mundo material. Traz também uma discussão sobre o eterno retorno em Nietzsche, estamos sempre presos a um número limitado de fatos, fatos estes que se repetiram no passado, ocorrem no presente e se repetirão no futuro, como guerras, epidemias, amores fracassados e de sucesso.

Na literatura e na física, as figuras espirais trazem a noção de causalidade, seja ela linear ou não. No documentário no Second Life, as relações actanciais podem ser abolidas de maneira ainda mais radical. Por que caminhar até o chão se posso saltar? Por que caminhar na terra se posso andar na água? Por que manter distância do vulcão se o fogo não queima? Ou seja, a organização social e espacial do Second Life permite o renascimento social e não um duplo da realidade. É possível uma segunda vida que não é duplo da primeira, o uso diferente do que se vê comumente. A trajetória artística de Bruscky nos auxilia a entender seu uso desta ecologia.

Figura 13: Realismo
Figura 13: Realismo

Ao fazer o avatar saltar da escada em espiral, o criador retoma o debate sobre os limites da representação e convoca os artistas para a conversa. Questiona a escrita da sociedade pela história e pelos historiadores. Quais fatos são mais relevantes ao se proceder uma genealogia do nosso tempo? Desde a Escola de Annales e, posteriormente, Michel Foucault nos ensinaram que escrever a história implica em escolhas de pontos de vista, muitas vezes na construção do discurso dos vencedores. Em discurso direto, sem qualquer pergunta como motivação, Bruscky retoma esse debate e volta à discussão sobre a representação em uma fala que vemos claramente cortes de montagem pelo tom de sua voz e pela organização das ideias. Nos diz Bruscky montado: “claro que cada época tem sua escrita. E é importante você ser contemporâneo pelo menos de si próprio. Os historiadores nem sempre falam a verdade. Então a arte é que deixa um registro da história mais bem feito, mais real.” O ilusionismo, a representação assumida como tal, e o artista como um promotor de acontecimentos sociais são o repertório mais confiável da memória de cada época. Ou seja, aquilo que é mostrado e o como é mostrado falam mais de uma época do que leituras supostamente objetivas.

Figura 14: Avatar se joga da escada em espiral
Figura 14: Avatar se joga da escada em espiral

O documentário

O documentário como um gênero desaparece? Diante de tamanhos deslocamentos estamos em um documentário sim, mas de Paulo Bruscky em aventura no Second Life. Questões caras ao documentário perdem o sentido. Não há realidade a ser registrada, ela é construída virtualmente a partir de parâmetros. A imagem inexiste a priori. Logo, como o realizador deve se posicionar, pouco importa. Ou melhor, importa muito pois no lugar da voz de Deus dos documentários, temos a imagem de Deus. Uma câmera onisciente que adota todo e qualquer ponto de vista, pois ela não tem limites físicos. O som, o texto, que é uma montagem de falas de Bruscky, nos informam menos sobre seu passado e mais sobre seus desejos. Se o cinema verdade opera tornando evidente o dispositivo e o cinema direto procura apagá-lo, aqui o documentário é o dispositivo, pois o Second Life e suas possibilidades são tema do trabalho tanto quanto Bruscky. É o criador vivendo na criatura que lhe permite não ter limites, pois ele vai explorar as bizarrices desse lugar sem cerimônia, evidenciando-se como personagem único. Mas quem explora é um personagem ficcional e a falta de limites é um traço do personagem de carne e osso. Bruscky não se oferece ao documentário como personagem mítico, como uma trajetória de sucesso sustentada por falas e ações, ou mesmo como um realizador consagrado. Pelo contrário, estamos diante de uma figura que se expõe ao ridículo, alvo de chacotas de uma outra obra e, finalmente, que dá vida ao diretor ao apagá-lo. Não valem as perspectivas do cinema direto, do cinema verdade, do cinema de comportamento, do cinema de poesia, da living câmera, do candid eye, do filme ensaio ou de qualquer outra denominação existente para o documentário. Estamos diante de um trabalho singular realizado por Mascaro para Bruscky e com Bruscky.

A materialidade do meio: Machinima

O documentário é realizado no Second Life, eles denominam a técnica de Machinima. Na verdade, o Second Life é uma ampliação do movimento inicial do Machinima, uma forma de produção audiovisual totalmente contemporânea. É resultado de uma série de apropriações dos videogames pelos jogadores. Jogadores com domínio técnico invadiram o engine da máquina e realizaram vídeos. O engine faz parte do hardware, define procedimentos do jogo como velocidade, lei da gravidade, movimento etc. O que é mais interessante a meu ver é que o jogador é um criador, ele é um técnico e realizador. Papéis são intercambiáveis, como o de sujeito e objeto no documentário de Mascaro.

Algumas marcas do Machinima o colocam como uma forma de realização privilegiada para pensarmos as imagens da contemporaneidade. Ele também é modular[3], advém da montagem de arquivos, mas arquivos com inteligência maleável, passível de ser modificada. Neste aspecto, o meio em sua materialidade se assemelha ao processo de criação de Bruscky, a diferença são os materiais utilizados pelo poeta. A aproximação também procede, menos no Second Life mais nos Machinimas seminais, por ser esta invasão um gesto político. Não calculado como o de Bruscky, mas num primeiro momento há uma transgressão e subversão no uso de um meio. Vale lembrar a famosa visão de Vilém Flusser dos artistas como funcionários das máquinas pois utilizam-se do output sem conhecer a caixa preta. As aventuras de Paulo Bruscky é um documentário exemplar do trânsito entre input e output. Questiona-se, inclusive, o estatuto de arte: Bruscky afirma não viver de suas ideias. A arte é assim um conjunto de ideias não objetos, das quais o artista não vive. Ele propõe um documentário de entretenimento sem busca de filiação a qualquer movimento de arte.

É esta a proposta de Gabriel Mascaro ao propor um vídeo-documentário de um criador profícuo como Paulo Bruscky: alcançar a singularidade do criador, mantê-lo como sujeito da criação, mesmo sendo ele o objeto do trabalho. Ou seja, já não se trata de um vídeo sobre o Paulo Bruscky, mas com o Paulo Bruscky. Temos pouquíssimas informações sobre a vida de Bruscky, mas ele está presente como obra em ação e com depoimentos sobre seu passado pouco esclarecedores para quem não o conhece. Quem deseja ser objeto do documentário é Bruscky, é ele quem demanda a Gabriel Mascaro a realização de um documentário sobre sua pessoa, ou melhor com a sua pessoa no Second Life.

Se Gabriel tivesse escolhido gravar Bruscky, mostrar seu atelier e seus documentos, ou mesmo realizar uma performance, teríamos um Bruscky encenado a partir de referentes palpáveis e de acontecimentos conhecidos sobre sua pessoa. Para explorar a singularidade do realizador, Gabriel propõe uma obra conjunta. A estratégia do documentário é “fazer cinema dentro do cinema”, conta Bruscky, é “explorar uma dupla realidade”, a do Second Life e do realizador. Iluminado em termos teóricos e criativos, Bruscky associa a opção de produzir o documentário em Machinima, no Second Life, como um processo semelhante à sua arte com o fax, onde há a desmaterialização dos objetos (do mundo das coisas) e uma rematerialização no outro lado do planeta, como ele mesmo diz em depoimento. Seu processo em termos de imagem no Second Life é o de materializar o imaterial. Imagens sem referente físico, pois visualmente os lugares muitas vezes nos são familiares. O documentário é assim uma oportunidade para serem mostradas as ideias de Bruscky. O arquivo de ideias viáveis e inviáveis como sua poética reinvenção do cinema, sua bela colaboração a Lumière ao fazer dos trilhos suporte para a projeção. A movimentação do trem produziria o movimento da imagem. Segundo Bruscky, dessa maneira, a invenção do cinema teria sido mais fácil, e seria um outro cinema. O cinema do futuro, encontrado pelo artista de muitos talentos, no passado.

* Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professora do Curso Superior do Audiovisual e do Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais, ambos na ECA/USP e vice-diretora do Cinusp Paulo Emílio. Pesquisa atualmente performances audiovisuais em tempo real, apoiada pela Fapesp com o projeto Audiovisão em tempo real: uma poética entre jogos óticos e de sentido. Sua pesquisa integra o Laboratório de Crítica e Investigação Audiovisual (Laica) da ECA.  Diretora de cinema e vídeo, participou de importantes festivais internacionais, como o Festival de Berlim, e foi premiada em festivais nacionais e internacionais com seus ensaios audiovisuais. Editora de livro sobre Machinima lançado pelo Cinusp. Premiada com bolsa da Fundação Vittae de artes.


[1] http://gabrielmascaro.com/blog/2010/07/31/as-aventuras-de-paulo-bruscky-2/ Trechos do filme e dados fornecidos pelo autor.

[2]Wikipedia: http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=C%C3%ADrculo_virtuoso&action=edit&redlink=1

[3] A modularidade é uma das marcas das novas mídias, segundo Lev Manovich em “The language of new media”.

Referências:

COUTINHO, Eduardo; FURTADO, Jorge. XAVIER, Ismail. “O sujeito (extra)ordinário”. In: LABAKI, Amir e MOURÃO, Dora (orgs.). O cinema do real. São Paulo: Cosac Naify, 2005.

DUBOIS, Philippe. Cinema, vídeo, Godard. São Paulo: Cosac Naify, 2004.

MACHADO, Arlindo. Pré-cinemas & pós-cinemas. São Paulo: Papirus, 1997.

MACIEL, Kátia (org). Transcinemas. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2009.

MANOVICH, Lev. The language of new media. Cambridge, Massachusetts, London: MIT Press, 2001.

ROCHA, Glauber. O século do cinema. Rio de Janeiro: Alhambra, 1985.

SHAW, Jeffrey & Weibel, Peter. Future Cinema. Cambridge, Massachusetts, London: MIT Press, 2003.

STEWART, Garret. Framed Time. Toward a postfilmic cinema. London, Chicago:  University of Chicago Press, 2007.

WEIBEL, Peter. “Expanded Cinema, Vídeo and Virtual Environments”. In: Shaw, Jeffrey. Weibel, Peter. 2003. Future Cinema. Cambridge, Massachusetts, London: MIT Press, 2003.

YOUNGBLOOD, Gene. Expanded Cinema. New York: E.P. Dutton & Co., Inc, 1970.

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O bloqueio: experimentação e composição audiovisual | de Fernando Rabelo

O artigo trata sobre processos de composição visual realizados para o filme O bloqueio. Propõe reflexões sobre a influência das montagens cinematográficas, colagens bidimensionais, esculturas tridimensionais e os hibridismos das mídias digitalizadas no processo de criação contemporâneo da imagem em movimento.

A composição visual é um dos processos de criação mais utilizados na produção de conteúdo cultural do nosso tempo. Híbridos por natureza, possuem como princípio básico a colagem ou a edição de objetos, imagens, textos, sons, em um determinado espaço de tempo ou de tela, compondo um novo objeto feito de fragmentos da realidade.

A composição de imagens pode ser dividida em dois tipos distintos: a composição bidimensional e a composição temporal ou tridimensional. Na composição bidimensional de imagens convivem diferentes materiais (papel, plástico, madeira etc.) que representam símbolos para nossa sociedade. Tipografias, tecidos, pedaços de objetos, imagens de jornais e revistas são compostas em uma única imagem ou quadro. Encontramos compostos em maior quantidade em telas bidimensionais ou montados como esculturas tridimensionais estáticas ou automáticas. Como exemplo, podemos citar os ready-mades de Marcel Duchamp ou o método da colagem de papel, papier colé, muito utilizado pelos artistas cubistas e dadaístas.

Figura 1: Raoul Hausmann, O crítico de arte, 1919-1920.
Figura 1: Raoul Hausmann, O crítico de arte, 1919-1920.

Na composição temporal, quadros separados que registram uma determinada realidade geram por consecutividade um momento de tempo/espaço. A montagem cinematográfica é o exemplo mais utilizado desse tipo de composição visual. Grandes cientistas da imagem em movimento, como o russo Dziga Vertov, pesquisaram que o efeito de compor diferentes imagens, pensando em uma linha temporal sequencial, poderia produzir diversos tipos de construções e interpretações mentais. A montagem das sequências, escolhas das cenas ou imagens, é concebida intencionalmente através das características estéticas e semióticas. Estudos realizados por Lev Kulechov foram bastante aprofundados para o entendimento das diversas reações causadas pela combinação sequencial de diferentes imagens; sua ideia era a de que duas imagens, (A) e (B), são interpretadas e geram uma terceira síntese, inédita (A+B=C). Aqui vemos a similaridade do conceito da montagem cinematográfica com certos aspectos do hibridismo: a síntese, onde dois elementos são combinados para gerar um terceiro.

Figura 2: Efeito Kulechov
Figura 2: Efeito Kulechov

A composição temporal a partir do advento da imagem em movimento se tornou um paradigma instigante para a simulação do espaço/tempo. A criação das falsas realidades, efeito particular da composição temporal, foi e ainda é muito utilizada intencionalmente para criar conclusões preconcebidas em uma sequência de imagens.

Aspectos sociais e culturais são facilmente manipulados para deduções, montadas para induzir um resultado específico no espectador. Provocar uma síntese já estudada, atribuindo uma falsa premissa, torna-se bastante útil para a propagação de ideologias dominantes. Podemos evidenciar esse tipo de montagem ideológica nos filmes de propaganda de guerra, acentuados nas produções cinematográficas do comunismo e do nazismo. Também encontramos sutilmente nos filmes americanos, ambos logrando modificar a opinião dos espectadores com suas ideologias montadas. Percebemos estes índices em algumas produções norte-americanas, como a sugestão de nacionalidade mexicana dos vilões de Vida de inseto (A Bug’s Life, 1998), de John Lasseter, na cena em que as “cucarachas” se reúnem próximas à bala da revolução mexicana.

Com a introdução do computador como mais uma máquina de composição visual, esse paradigma ganha nova versão. Alguns métodos mais antigos de edição desenvolvidos por Serguei Eisenstein como a montagem métrica, que usa a duração das sequências para estabelecer uma batida, e a montagem rítmica, com base nos padrões de movimento da imagem, se tornam bases para as recentes composições em mídias digitais, desde os sampleamentos até a manipulação de imagens em tempo real.

Lev Manovich, outro grande cientista russo das mídias digitais, destaca um novo tipo de composição que é a espacial ou espacializada, originada pelo uso de hiperlinks dentro de uma sequência de imagens que podem ser visualizadas em janelas dispostas (compostas) na tela do computador. Essas janelas apresentam espaços fragmentados de tela, que desestruturam o significado da imagem única da tela.

Filmes como O homem que odiava as mulheres (The Boston Strangler, 1968), de Richard Fleischer, exemplificam bem esse tipo de composição que parece com a diagramação espacial das imagens nas histórias em quadrinhos. Outros tipos de composição visual, citados por Manovich, são interessantes de serem comentados: a composição estilística ou estética e a composição ontológica.

Figura 3: Composição em vídeo digital O bloqueio (2002).
Figura 3: Composição em vídeo digital O bloqueio (2002).

O processo de construção da animação O bloqueio, realizada como projeto final de graduação, de Cláudio Luiz de Oliveira e Fernando Rabelo, na Escola de Belas Artes da UFMG em 2000, posteriormente ganhadora de prêmios, um dos quais possibilitou sua finalização digital e transposição em película de 35mm, caracteriza-se pela composição de várias mídias: filme de 16 mm, fotografia, vídeo analógico e vídeo digital. Seu roteiro foi desenvolvido tendo como base o conto homônimo do escritor mineiro Murilo Rubião, especialista no gênero de literatura chamado de realismo fantástico, característica marcante das histórias que acontecem em ambientes “reais”, mas acrescentadas de situações inusitadas ou absurdas, ontologicamente impossíveis na realidade.

Figura 4: Estudos de Fernando Rabelo para o personagem Gérion, inspirados em Murilo Rubião.
Figura 4: Estudos de Fernando Rabelo para o personagem Gérion, inspirados em Murilo Rubião.

Na sua construção original, captamos todas as cenas em filmadora de vídeo analógica e usamos poucos recursos de interferência na imagem original. A composição final foi realizada com poucos efeitos, concentrados nas cenas nas quais desenhos dos personagens aparecem flutuando em uma camada (layer) acima do vídeo. Na sequência inicial de O bloqueio, o sonho do rato no labirinto, realizamos uma animação de tinta a óleo sobre vidro e papel, filmada em película de 16 mm. Essa animação foi construída tendo como referência de roteiro o conto “Um rato em seu labirinto”, de Franz Kafka. Sabíamos, por nossa pesquisa no Centro de Estudos Literários (CEL-Fale) e no Acervo de Escritores Mineiros da UFMG, que Oswald de Andrade havia citado um certo alemão, do qual esquecera o nome, que o impressionara em seus contos e disse a Murilo, em uma carta, que suas histórias eram similares com os contos escritos por Rubião na época.

Figura 5: Sequência de animação de Fernando Rabelo (tinta a óleo sobre vidro e papel) filmada em 16 mm e digitalizada para segunda versão de O bloqueio.
Figura 5: Sequência de animação de Fernando Rabelo (tinta a óleo sobre vidro e papel) filmada em 16 mm e digitalizada para segunda versão de O bloqueio.

Depois de finalizarmos o projeto de curso que culminou nessa animação, conseguimos realizar um segundo tratamento, que só foi possível com a premiação da animação no I Prêmio Estímulo à Produção de Curtas-metragens de Minas Gerais, criado pela Associação Curta Minas. Com essa premiação conseguimos realizar em O bloqueio uma homenagem póstuma ao grande escritor Murilo Rubião, mixando a estética das fotografias do escritor com o material já captado em vídeo.

A etapa seguinte foi a digitalização ou transferência do vídeo analógico para o computador, na época, um poderoso Powermac G4. Nesse processo, separamos para digitalização somente a sequência de imagens em que o ator estava presente, realizada através do programa da Pinnacle: Commotion (v4.1 PPC). Realizamos toda a composição de vídeo e fotografia em um programa que funcionava com composições em camadas (layers) e permitia visualizar, pintar, borrar e clonar áreas similares. Nesse trabalho foram gerados mais de 8.000 frames de vídeo tratados quadro a quadro, compostos com recortes das fotografias que retratavam o escritor na sua vida durante trinta anos (ontologia da vida) e com o filme em vídeo que tratava de um personagem que envelhecia rapidamente na sua própria estória (ontologia do filme). Para propor sequências de animação do personagem mais aproximadas ao estilo do realismo fantástico, decidimos usar as fotos que mais se enquadravam proporcionalmente à perspectiva do personagem filmado no vídeo, usado como referência temporal da animação.

Figura 6: Fernando Rabelo sem “máscara” e com a “máscara” de Murilo Rubião.
Figura 6: Fernando Rabelo sem “máscara” e com a “máscara” de Murilo Rubião.

A convivência de várias realidades distintas e distantes no tempo/espaço proporcionou uma montagem visual, denominada por Manovich como montagem ontológica, que se caracteriza principalmente pela coexistência de elementos ontológicos incompatíveis em uma mesma cena, tempo e espaço. Em O bloqueio coexistem, em um mesmo campo visual, a moldura que direciona o espectador, o mundo real, capturado em vídeo, um ator (Fernando Rabelo) e o próprio Murilo Rubião em imagens fotográficas (elemento usado como refutação “concreta” de pessoas e lugares).

Manovich, em seu estudo sobre os tipos de montagem, cita como exemplo de composição ontológica a animação criada por Zbigniew Rybczynski intitulada Tango (1980), na qual diferentes situações acontecem em um mesmo quarto; as situações são possíveis pois foram capturadas em separado, mas ao serem executadas ao mesmo tempo e no mesmo espaço tornam-se ontologicamente impossíveis.

Figura 7: Zbigniew Rybczynski, Tango (1981)
Figura 7: Zbigniew Rybczynski, Tango (1981)

Além do conceito de composição ontológica, percebemos que todos os elementos dúbios que denunciam e explicitam a ilusão de uma composição fragmentada, produzida pelas imagens manipuladas, também caracterizam o conceito literário do realismo fantástico. Em O bloqueio, cenas como a do personagem Gérion subindo a escada do edifício, com sua sombra projetada na parede denunciando que não é bem ele que está subindo, observável pela comparação da forma da sua cabeça com a forma projetada na parede, podem passar despercebidas pelos espectadores, mas fazem parte da realidade fantástica proporcionada pela montagem e pelo tratamento digital das imagens.

Figura 8: A sombra não condiz com os aspectos físicos da cabeça do personagem.
Figura 8: A sombra não condiz com os aspectos físicos da cabeça do personagem.

Outras cenas, que mostram objetos como balas de revólver, máquina de escrever, rascunhos etc., do próprio escritor, misturam-se na edição, contribuindo para a transposição do conceito literário do realismo fantástico para a linguagem visual.

Nas sequências do filme, todos os efeitos foram usados, não para esconder ou maquilar a cena ou torná-la verossímil para o público: usamos os mesmos efeitos para “mixar” dois mundos diferentes em um terceiro, de ontologia fantástica, que não esconde, mas abre, como no conto, possibilidades para diversas interpretações.

Outro elemento importante nessa composição foi o áudio, que reage conforme as preocupações e ou “delírios” do personagem, fazendo com que ele reaja as suas manifestações, levando-o ao clímax da história. O áudio pode ser considerado como um segundo personagem pela sua inserção, não apenas como ilustrador da imagem, mas como elemento incontrolável, onipresente e totalmente ativo, que desencadeia a história.

A poética do oroborus, o infinito, é um elemento marcante da obra de Murilo Rubião, como nos relatou a professora Vera Andrade, do curso de Letras-UFMG. Essa metáfora manteve-se constante em toda a animação na qual o próprio autor é em parte ator, e vice-versa, e as imagens mentem e confirmam sua presença de forma visual ou literária, compondo assim o ciclo da serpente que morde sua cauda: o autor inserido como personagem da sua própria obra literária.

Os processos de montagem com base na colagem de vários elementos distintos, cada um com seu significado, propõem uma ruptura com os sistemas de criação purista, que valorizam a habilidade de usar um tipo de técnica. As composições digitais potencializam a edição de múltiplas imagens nas diversas linhas de tempo e utilizam como matéria prima tudo o que é digitalizado pelo homem.

* Professor do Curso de Artes Visuais da UFRB em Cachoeira/ BA. Participou de várias exibições internacionais e nacionais e foi ganhador do 8º Prêmio Sergio Motta de Arte e Tecnologia em 2009/2010. Suas criações autorais têm base em possibilidades tecnológicas reconfiguradas de forma crítica, reflexiva e propositiva em que convivem animação, ilustração, projetos educativos e instalações com gambiarras domésticas interativas ou sistemas sofisticados de projeção digital em 360.


[1] Johnson, GLEN. http://faculty.cua.edu/johnsong/hitchcock/pages/kuleshov.html (acessado em 10/11/2012).

Referências:

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1993.

MANOVICH, Lev. The language of new media. Cambridge: Ed. MIT Press, 2001.

NAZARIO, Luiz. “Pós-modernismo e novas tecnologias”. In: O pós-modernismo. São Paulo: Editora Perspectiva, 2003.

SANTAELLA, Lúcia. Matrizes da linguagem e pensamento: sonora, visual e verbal. São Paulo: Ed. Iluminuras, 2001.