editorial
Tempo de leitura estimado: 4 minutos

Humanidades digitais e cultura tecnocientífica

Nas humanidades, o desenvolvimento e emprego intensivo das novas tecnologias de informação em análises de grandes volumes de dados e na produção de visualizações dos resultados das análises têm redesenhado não somente as formas de divulgação das pesquisas, como também os meios pelos quais o pesquisador se insere no campo, o inquire, disputa credibilidade e prestígio, escolhe temas, formula objetos, aprende novas técnicas e desenvolve metodologias. Esse quadro traz consigo a exigência epistemológica de se pensar criticamente sobre como a produção do conhecimento nas ciências humanas passa cada vez mais a vincular-se a uma cultura tecnocientífica altamente estetizada, em meio à qual os recursos computacionais, com sua propriedade não só de processamento acelerado de big data, mas também (e talvez principalmente) de produzir visualizações atraentes, arrisca por si só legitimar os resultados das pesquisas assim produzidas e postas em circulação. A consciência desse risco, por outro lado, não recusa o potencial de produção e divulgação de conhecimento relevante no universo das Humanidades Digitais. Pelo contrário, pretende contribuir para a sua máxima atualização.

Este dossiê demonstra, numa rica variedade de recortes temáticos, métodos e problemas de pesquisa, como as Humanidades Digitais têm ganhado mais e mais interessados em desenvolver suas investigações, por meio de uma práxis que se diz transdisciplinar, e que, de fato, contribui para a dialogia entre competências e disciplinas distintas em torno de objetos comuns.

Roberto Bartholo e Claudia Holanda, em “Sondando a cidade. Memória, cartografias e caminhadas”, propõem uma heurística sobre a zona portuária do Rio de Janeiro a partir do exercício de audição de uma cidade que se evidencia pela plataforma Sons do Porto (http://www.sonsdoporto.com).

Ainda em “sintonia” com a busca pelo desvelamento de uma “nova” cidade a partir da intermediação digital no campo de pesquisa, Maria Thereza Sotomayor e Vera Dodebei evidenciam, em “A vulnerabilidade social e as memórias subterrâneas: o fenômeno Rio Invisível”, as experiências e memórias de atores sociais em situação de vulnerabilidade na cidade do Rio de Janeiro, mediante uma abordagem netnográfica da página do Facebook “Rio Invisível”, na qual narrativas e demais relatos desses (e sobre) esses atores sociais ganham visibilidade.

Entre espaços físicos ou eletrônicos de sociabilidade, Mônica Machado traz uma rica contribuição em “A teoria da Antropologia Digital para as Humanidades Digitais”, ao nos apresentar o conceito de antropologia digital e como este está ligado à cultura digital vigente, cujas formas de sociabilidade são em grande parte mediadas pelas tecnologias digitais.

É com o olhar voltado para essas mesmas tecnologias que Renan Marinho de Castro e Ricardo Pimenta apontam para uma crescente cultura visuocêntrica imanente às diversas redes e plataformas existentes na internet, onde torna-se possível concatenar dados de bases diferentes com o intuito de gerar informação. Assim, com o emprego do software VOSViewer, o recorte escolhido por esses autores é o que se produz (e de onde se produz) sobre as próprias Humanidades Digitais no Brasil.

As mediações tecnológicas, com seu potencial estetizante de registro e comunicação, também compõem o repertório de produções ou problematizações sobre recursos e usos de smartphones nas humanidades, entre outros dispositivos. Exemplo disso são os artigos “Narrativas audiovisuais entre coletivos artísticos”, de Lara Lima Satler e Alice Fátima Martins, e “O smartphone nos trajetos cotidianos: refúgio, jogo e presença”, de Gabriel Bursztyn, Roberto Bartholo e Khaldoun Zreik.

Por fim, uma entrevista com Andreas Fickers, do Centro de História Contemporânea e Digital (C2DH) da Universidade de Luxemburgo, nos elucida mais algumas das características quanto aos recursos, à comunidade internacional, à questão da estética presente em suas atividades e produções, assim como ao panorama epistemológico geral das Humanidades Digitais e, mais particularmente, da História Digital.

Finalizando, este dossiê busca contribuir para o esclarecimento sobre o mais e mais presente campo das Humanidades Digitais brasileiras, com variedade temática e pluralidade disciplinar. Certos da qualidade dos artigos aqui publicados, desejamos uma ótima leitura, apostando em um contínuo, edificante e criativo processo reflexivo sobre o papel das humanidades, incluindo suas possíveis reestruturações, em meio à cultura digital.

 

Ricardo M. Pimenta e Marco Schneider

Organizadores

dossiê
Tempo de leitura estimado: 37 minutos

SONDANDO A CIDADE. MEMÓRIA, CARTOGRAFIAS E CAMINHADAS SONORAS

“Durante vinte e cinco séculos, o conhecimento ocidental tenta ver o mundo. Ainda não compreendeu que o mundo não se vê, se ouve. Não se lê, se escuta”.

(Jacques Attali, Ruídos, 1995)

 

Resumo: Este artigo fala sobre sons do espaço urbano, tendo como local da pesquisa empírica a região portuária do Rio de Janeiro, localidade que sofreu desde 2011 uma imensa e veloz transformação estrutural e arquitetônica por conta da implementação do Projeto Porto Maravilha. A partir do referencial teórico sobre Paisagem Sonora (Schafer, 1977; 2011) e Acustemologia (Feld, 1996; 2003) foi realizada pesquisa de campo apoiada em heurísticas tais como caminhadas sonoras e produção de mapa sonoro além de recursos tecnológicos digitalizados para apreensão e análise da escuta como forma de conhecimento.

Palavras-chave: Acustemologia, paisagem sonora, escuta, caminhada sonora.

Abstract: This article talks about sounds of urban space, having as a place of empirical research the port region of Rio de Janeiro, a place that has suffered in the last four years an immense and rapid structural and architectural transformation due to the implementation of the “Porto Maravilha” Project. Based on the theoretical framework on Soundscape (Schafer, 1977; 2011) and Acoustemology (Feld, 1996; 2003), the field research was carried out based on heuristics as soundwalks and production of a sound map and digitized technological resources for the apprehension and analysis of listening as a form of knowledge.

Keywords: Acoustemology, soundscape, listening, soundwalks.

 

Primórdios. Schafer e os elementos da paisagem sonora

A ideia do ambiente acústico como campo de pesquisa na modernidade contemporânea fica enfatizada a partir do projeto Paisagem Sonora Mundial (The World Soundscape Project – WSP), liderado por Murray Schafer, no final dos anos 1960, quando era professor do departamento de Estudos da Comunicação da Universidade Simon Fraser, Vancouver, Canadá. A palavra Soundscape foi um neologismo introduzido por Schafer, que vem sendo traduzido como “paisagem sonora” nos países latinos. A paisagem sonora seria então qualquer campo de estudo acústico: “podemos nos referir a uma composição musical, a um programa de rádio ou mesmo a um ambiente acústico como paisagens sonoras” (Schafer, 2011, p. 23 e p. 366).

O World Soundscape Project (WSP)[1] nasce com a preocupação de registrar sons nas regiões estudadas criando um catálogo das sonoridades características de cada região. Foram produzidas mais de 300 fitas analógicas com o apoio do gravador estéreo Nagra – o primeiro portátil de fato, que pesava em torno de sete quilos. Na origem do projeto estava a insatisfação de Schafer com a abordagem negativa do ambiente sonoro marcada pelo empenho em identificar ruídos a serem combatidos. Para Schafer (1997; 2011), a paisagem sonora seria composta essencialmente de três elementos: sons fundamentais, sinais e marcas sonoras.

Os sons fundamentais de uma paisagem são aqueles criados por sua geografia, clima, recursos materiais e naturais disponíveis e fontes de energia, podendo ser provocados pela água, pelo vento, ou pelos animais. Imprimem-se profundamente na vida vivida das pessoas, tanto que seu silenciamento pode ser por elas sentido como um empobrecimento. É assim, por exemplo, o som do mar para quem mora perto da praia, ou do vento para quem vive em áreas de montanha. Para Schafer, “são o fundo contra o qual as figuras dos sinais se tornam evidentes” (Schafer, 2011, p. 94) e são marcadamente notados quando desaparecem.

Os sinais são sons destacados, ouvidos conscientemente. São sons que muitas vezes precisam ser ouvidos porque são recursos de avisos acústicos, como sinos, apitos, buzinas e sirenes. Assim, por exemplo, numa comunidade cristã tradicional, um sinal sonoro bastante significativo é o sino da igreja. Corbin (1998) diz que o impacto emocional dos sinos ajudou a criar uma identidade territorial nestas pequenas cidades.

O termo marca sonora tem uma especificidade singularizada e “se refere a um som da comunidade que seja único ou que possua determinadas qualidades que o tornem especialmente significativo ou notado pelo povo daquele lugar” (Schafer, 2011, p. 27). O sino de uma igreja que tenha atributos acústicos muito peculiares não é apenas sinal, é marca de um lugar. Marcas sonoras são crivos identitários. Perdê-las é perder parte dessa identidade mesma. A proteção de marcas sonoras pode ser um imperativo político, quando a afirmação de uma identidade é vista como um valor mais alto.

Antes de lançar seu principal livro The tuning of the world em 1977, Schafer (1969) havia criado o termo “esquizofonia”[2] para expressar a separação do som original e sua transmissão ou reprodução eletroacústica, que está na base do desenvolvimento das tecnologias de reprodução sonora. Esquizofonia indica assim que um som escutado por alguém por meio de algum aparato técnico de gravação e reprodução sonora está deslocado de seu contexto original.

Quase num lamento incontido, Schafer diz que antes da invenção do rádio e do telefone, “todos os sons eram originais” (Schafer, 1969, p. 43), pois estavam originariamente ligados aos mecanismos e organismos que os produziam. Assumidamente, Schafer quis evocar o mesmo senso dramático da palavra “esquizofrenia”. Para ele, “a vida moderna foi ventriloquizada” (Schafer, 1969, p. 44).

O neologismo schaferiano aponta para uma certa negatividade dos aparatos de gravação e reprodução e uma certa romantização da interação sonora direta face a face. Ironicamente foram esses aparatos que tornaram possível a realização do World Soundscape Project. Para Shafer hi-fi/low-fi, são designações de ambientes onde os sons podem ser ouvidos com clareza ou não. O ambiente urbano típico é low-fi, devido a característica de apresentar grande quantidade de sons de fundo. O viés romântico de Schafer em sua crítica da estressante e fragmentária vida urbana moderna, e sua nostálgica valoração da integralidade da vida rural despertou críticas diversas (Obici, 2006; Sterne, 2003, 2013; Ingold, 2007; Stanyek & Piekut, 2012; Samuels et al, 2010).

Ruptura. Steven Feld no rumo de uma Acustemologia

Quando ainda era aluno de Alan Merrian nos anos 1970, Steven Feld propôs a ideia de uma antropologia do som fazendo um contraponto com o livro The anthropology of music, que seu professor havia publicado em 1964. Feld considerava que uma antropologia da música era etnocêntrica e insuficiente para analisar a diversidade sonora, por não estar aberta a perguntas sobre como escutar e ouvir, e por não analisar outras formas de expressão que estão entre linguagem e música. Feld criticava as limitações sonoras e culturais impostas pela noção ocidental de música (Feld, 1984; Feld & Brenneis, 2004).

A antropologia do som estudaria as relações entre música, linguagem e os sons do meio ambiente, abordando o papel do som na vida de um grupo de pessoas (Feld, 2012; Silva, 2015). Sua contribuição instiga a investigação de cotidianos aparentemente sem sentido, por meio de uma escuta atenta capaz de mergulhar em outras camadas de sentido.

“Não era à música, canto ou ao som instrumental que estava me referindo, mas ao jeito como as pessoas escutam”, diz Feld em entrevista para Rita de Cácia da Silva (2015). Ainda na mesma entrevista, prossegue Feld:

“Todos nós, seres humanos, sabemos muito do mundo que habitamos só o escutando. Isso não tem a ver com a música, tem a ver com a capacidade de escutar. O som é importante desse jeito, mas também porque tanto a linguagem como a música envolvem som” (Silva, 2015).

Feld estava interessado em realizar um estudo do som como um sistema cultural (Feld, 2012). Seu livro clássico é Sound and Sentiment, publicado em 1982, fruto de sua pesquisa de doutorado junto ao povo Kaluli, em Bosavi, Papua Nova Guiné. No livro, Feld aborda a relação do povo Kaluli com os sons, a floresta e as emoções. Posteriormente, Feld cunha o termo acoustemology (acustemologia). A palavra vem da junção de acoustics (acústica) e epistemology (epistemologia). A acustemologia investiga os saberes adquiridos ou como os saberes se tornam conhecidos, através do som e da escuta. Feld propõe com a acustemologia que os sentidos, a emoção, as práticas corporais e os agenciamentos sociais estão conectados de algum modo com o som (Feld, 1996, 2003, 2015; 2015b).

A acustemologia investiga o som e a escuta como um saber em ação: um saber com e através do audível (Feld, 2015). Adotando uma ontologia relacional, a acustemologia é situacional, e explora o espaço mútuo do saber sonoro como dialógico e transitório. A antropologia do som, segundo o próprio Feld, “parecia ser mais sobre propagação do que a percepção; mais sobre a estrutura do que o processo” (Feld, 2015, p. 14).

Em 1983, Feld produziu junto com Mickey Hart, baterista do Grateful Dead, o CD Voices of the Rainforest[3], com registros sonoros de Bosavi, Papua Nova Guiné. Provavelmente, é um dos títulos da maior vendagem na história da soundscape composition. Feld possui uma bem cuidada página na internet (http://www.stevenfeld.net/) que reúne sua produção em texto, imagens e sons. Desde 2002, Feld possui um selo, Voxlox, onde a produção audiovisual é central. Seu objetivo é misturar arte e antropologia como um meio de promover e ampliar diálogos (Silva 2015; Feld & Brenneis, 2004). Com sua produtora audiovisual, Feld quer fazer uma antropologia do som pelo som, e não apenas pela escrita, linguagem tão cara à academia. Para ele, a fonografia e as técnicas de edição sonora deviam ser aprendidas por antropólogos e etnomusicólogos.

Levamos a escrita profundamente a sério (…) acho que vai levar um tempo considerável até que o uso mais sofisticado das tecnologias sonoras tome lugar na prática etnográfica. Até lá, a antropologia do som continuará a ser basicamente sobre palavras (Feld & Brenneis, 2004, p. 471).

Como escutar o urbano? A pesquisa no “Porto Maravilha”

Ainda que o trabalho de Schafer tenha aberto possibilidades de estudo sobre um registro sensório até então negligenciado, a ideia de paisagem sonora se mostra insuficiente para investigação situada e relacional de ambientes acústicos no espaço urbano. O estudo do som em relação a um lugar não pode prescindir de considerar contextos. “Escutar as histórias de escuta”, como diz Feld (2015), é meio de acesso a um lugar e de entrar em contato com o conhecimento que alguém possui sobre esse lugar. O som tem implicações políticas. A partir desse referencial teórico sobre a escuta do lugar, sinalizamos a importância das sonoridades para conhecimento e produção do espaço, propondo uma acustemologia urbana como forma de investigação de aspectos políticos e culturais de espaços das cidades.

Recorremos à ideia de território sonoro (La Barre, 2014) em contraposição a de paisagem sonora de Schafer (1977, 2011) para reflexão das cidades na pós-modernidade, onde o espaço público é entendido como um organismo flexível, moldado deliberadamente também pelas sonoridades. Os lugares vão se tornando significantes ambivalentes de uma estrutura caracterizada precisamente pela ausência de função pre-determinada. Um dos efeitos da “revitalização” seria o de “idealizar” o lugar, que passa a operar enquanto lugar multifuncional, feito de potencialidades diversas que irão permitindo uma multiplicidade de territorialidades, provisórias e flexíveis (La Barre, 2014, p. 4). A região portuária seria um exemplo de espaço público de múltiplas territorialidades. Se os espaços da cidade contemporânea são marcados pela fluidez e territorialidades provisórias, em que medida o som participa dessa produção? Qual seria o papel do som na produção do espaço urbano ou na produção de um sentido de lugar?

A acustemologia investiga o som e a escuta como um saber em ação: um saber com e através do audível. Para acessar o lugar, escuta-se não só o lugar, mas também as histórias de escuta e os sujeitos desse lugar. Acustemologia é uma maneira sonora de conhecer o lugar, uma maneira de atentar ao ouvir (Feld, 2003, 2015).

Portanto, por seu caráter relacional e processual, argumentamos que uma acustemologia urbana é um modo de entrar em contato com o vozerio da cidade. As sonoridades produzidas e encenadas são também formas de disputa do imaginário urbano. Não há como realizar tal tarefa por uma escuta que visa o controle de um ambiente ou que guarde fobia às mudanças, mas por uma escuta que procura por sentidos e reconheça a cidade como um território cindido, um plano de desejos múltiplo, heterogêneo e, tantas vezes, em dissenso.

O trabalho de campo na região portuária foi iniciado em 2014 por meio de caminhadas sonoras (Westerkamp, 1974, 2006). Westerkamp define caminhada sonora como “qualquer excursão com o propósito principal de escutar o ambiente, expondo nossos ouvidos a qualquer som ao nosso redor” (Westerkamp, 1974, não paginado). Até a própria atitude de perguntar aos habitantes do lugar como se chega a determinado local pode dar uma pequena ideia do caráter da cidade ao escutar como as pessoas respondem, como soam suas vozes, seus acentos. O espaço se torna espaço acústico, e não apenas visual. Escutar e caminhar, nesse sentido, são gestos criativos de investigação que levam a um contato sensível com o ambiente.

Por conta da implementação do Projeto Porto Maravilha, a região era um ambiente em destruição e reconstrução. A Praça Mauá era alvo de uma reconfiguração completa. O viaduto da Perimetral estava sendo demolido, revelando novamente aquela paisagem encoberta da cidade. Essa cartografia de sonoridades foi realizada por meios técnicos e heurísticas inventivas, como a prática de caminhadas sonoras e a elaboração do mapa sonoro Sons do Porto (www.sonsdoporto.com). Voltaremos a falar do mapa sonoro mais à frente.

As instruções para uma caminhada sonora são simples: percorrer ou habitar um espaço priorizando a escuta dos seus sons (Westerkamp, 1974, 2001, 2006). Dependendo do objetivo da caminhada, a análise desses sons pode ser feita com base nas sensações que se fixaram na memória, em anotações escritas ou registros de audiovisuais. Para a caminhada na qual se pretende registrar os sons, é recomendável o uso de fones de ouvido, por amplificar a audição ao mesmo tempo em que proporciona maior imersão no ambiente acústico. É um exercício que sensibiliza os participantes para o ambiente sonoro e consequentemente para o modelo de espaço que habitamos. Na prática, a caminhada sonora é uma escuta do campo.

A caminhada sonora (soundwalking) foi uma prática importante dentro do World Soundscape Project. Embora não tenham sido os primeiros pesquisadores que buscaram se orientar pelos sons do ambiente, foi a partir desse projeto que o termo “caminhada sonora” (soundwalking) começou a ser adotado (McCartney, 2014). Mostrando-se como prática versátil, tem sido usada por inúmeros artistas que trabalham com material sonoro. Hildegard Westerkamp foi uma das integrantes da equipe de Schafer no World Soundscape Project. Além disso, Westerkamp desenvolveu sua própria abordagem para ouvir o ambiente sonoro, incluindo a prática de caminhadas sonoras, individuais ou em grupo.

Foto 1: Paulo Sill (canto esquerdo) fazendo registros de áudio da Praça Mauá, durante uma caminhada sonora que realizamos no dia da abertura dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. Fonte: Claudia Holanda
Foto 1: Paulo Sill (canto esquerdo) fazendo registros de áudio da Praça Mauá, durante uma caminhada sonora que realizamos no dia da abertura dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. Fonte: Claudia Holanda

É um tipo de passeio que permite aos participantes escutarem o ambiente e tornarem-se conscientes de sua própria relação com a paisagem sonora (Westerkamp, 2006). Para a pesquisa na região portuária, foram realizadas caminhadas sonoras tanto individualmente quanto em grupo. Após o passeio, conversávamos sobre a experiência. Como comentou Paulo Sill (Foto 1), integrante do coletivo Viajantes do Território, durante uma caminhada sonora que realizamos numa Praça Mauá lotada dia 5 de agosto de 2016, primeiro dia dos Jogos Olímpicos na cidade do Rio de Janeiro: “Quanto mais a gente se fixa em ouvir, melhor a gente vê”. Na mesma direção, a filósofa Salomé Voeglin (2010) afirma que uma sensibilidade sônica pode iluminar os aspectos invisíveis da visualidade.

As caminhadas sonoras também fazem parte da metodologia do coletivo Ultra-Red[4], junto a outras estratégias. Todos os procedimentos são desencadeados por protocolos previamente elaborados pelo Ultra-red para orientação do trabalho de campo. “Os protocolos para essa escuta produzem não apenas consenso, mas também dissonâncias, uma multivalência de subjetividades. Aprender a escutar é uma tarefa intencional de solidariedade” (Ultra-red, 2012, p. 2).

Fundado em 1994, em Los Angeles, por dois ativistas engajados em políticas sociais para portadores de HIV, o Ultra-red, ao longo dos anos vem se expandindo incluindo artistas, pesquisadores e organizadores de diferentes movimentos sociais. Simultaneamente às caminhadas sonoras, os participantes vão ainda aprendendo a usar os equipamentos e a editar sons, além de criarem intimidade com o próprio campo. “Todos dividem experiências sobre o que foi ouvido. Em outras palavras, começa-se a estar com o campo” (Ultra-red, 2012, p. 15). Muitas vezes, como resultado dessas pesquisas e dinâmicas, o grupo produz programas de rádio, performances, gravações, instalações, textos e ações no espaço público (Ultra-red, 2008; 2013). Ao longo de mais de duas décadas de existência e dezenas de ações, palestras, publicações e incontáveis produções em áudio[5], as práticas do Ultra-red têm mudado e se diversificado a cada trabalho com grupos em busca de justiça social como também pela chegada de novos membros. A sua atuação valida o som e a escuta como elementos potentes de produção de conhecimento e sentido.

Além das caminhadas, outra heurística utilizada foi a produção do mapa sonoro Sons do Porto (www.sonsdoporto.com). Por desenvolver uma pesquisa que trata do urbano pelo viés sonoro, a produção dessa ferramenta foi útil para abrigar parte do material audiovisual gerado durante a investigação, que, por sua natureza (sonora), não poderia ser replicado na forma textual. O mapa seria um transbordamento material da pesquisa, com a realização de um trabalho prático onde a escuta é convocada.

Steven Feld, por meio de sua produtora audiovisual Voxlox, busca criar uma antropologia do som pelo som, com o objetivo de ampliar diálogos e alcançar públicos para além da escrita acadêmica. Fazendo uma analogia a Feld, no mapa sonoro Sons do Porto estão disponibilizados registros sonoros e de imagens da região portuária, numa tentativa de se fazer uma cartografia do som pelo som, gerando um registro sensível diverso da narrativa escrita. Já que o som é o elemento guia dessa pesquisa, por que não criar uma plataforma onde possamos ouvir, em vez de apenas falar ou escrever sobre eles?

O mapa sonoro é uma ferramenta digital que coloca a escuta no centro da experiência de navegação (Holanda, Rebelo e Paz, 2016). Os eventos sonoros estão dispostos numa tela de visualização que també é a interface de navegação para acesso ao conteúdo. Produzir esse mapa sonoro foi útil como ferramenta de pesquisa e aprendizado de escuta, onde se destaca seu aspecto processual. Além disso, o mapa também abriu possibilidades de inserção em redes que se interessam por mapas afetivos e aproximação de pessoas e comunidades que lidam com o aspecto estético e epistemológico do som.

A escuta da região portuária se alimentava do que colhia durante as entrevistas como também das inúmeras caminhadas realizadas em horários diversos. Fiz o registro do som das localidades com um gravador digital portátil Tascam DR-40. Montei o mapa utilizando a ferramenta Story Map JS[6], uma interface online bastante amigável e esteticamente interessante, criada pelo Knight Lab da Northwestern University, sob licença do Massachusetts Institute of Technology (MIT). Sem os aparatos digitais, as etapas da pesquisa de campo não teriam sido possíveis de realização dentro do cronograma.

A escuta posterior dos registros sonoros servia para rememorar a experiência ou, por vezes, para apontar outras nuances que tinham passado despercebidas no momento da gravação. Nesse processo de fazer, foram também desenvolvidas habilidades para escutar, gravar e editar sons, manipular softwares de áudio, fazer anotações sobre o campo e estar em contato com o local de pesquisa, ou seja, aprender mais sobre os territórios.

O projeto Porto Maravilha é uma Parceria Público Privada (PPP) formada pelo Consórcio Porto Novo (um condomínio de empreiteiras formado pela Odebrecht, OAS e Carioca Engenharia) e pela Prefeitura do Rio de Janeiro através da CDURP (Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro), instituída pela Lei complementar nº 102. Um projeto cercado de polêmicas, falta de transparência e acusações de corrupção. Esse projeto ambicioso pode ser visto a partir da literatura sobre Grandes Projetos Urbanos (Coma, 2011; Swyngedouw et al., 2002), que se valem da realização de eventos internacionais para desenvolver operações de marketing urbano (Coma, 2011) e justificar amplos projetos de reforma em áreas urbanas negligenciadas pelo poder público. Esses projetos se apresentam como meios de promover a regeneração e requalificação de espaços urbanos deteriorados, mas com potencial de valorização, especialmente em áreas portuárias e de frentes marítimas (Coma, 2011).

Outras características desses projetos são a entrada do setor privado dentro dos processos de política pública e o desenvolvimento urbano pós-fordista (pós-industrialização) como estratégia para a concentração de atividades intensivas em entretenimento, cultura e turismo (Judd & Fainstein, 1999). Num ritmo acelerado, as intervenções mudaram a face de várias localidades, onde se observam processos de gentrificação junto às políticas de regeneração urbana. Transformações que muitas vezes são pautadas pelo mercado imobiliário e pela “turistificação” de centros históricos. Ocorre uma estetização urbana (Jeudy, 2005) de forma indissociável das novas estratégias de branding urbano, chamadas de revitalização (ou requalificação, a exemplo do discurso sobre a região portuária do Rio de Janeiro), as quais buscam construir uma nova imagem para as cidades dentro do mundo globalizado (Jacques, 2005; Jeudy, 2005; Jeudy & Jacques, 2006).

Num curto período, um lugar antes negligenciado pelo Poder Público tornou-se um território-cenário. Foi um imenso projeto de reforma urbana e de espetacularização do espaço público que também gerou efeitos de gentrificação. Como também observa Jean-Paul Thibaud (2011), pesquisador do Centre de Recherche sur l’Espace Sonore & l’Environnement Urbain (CRESSON)[7], os atuais projetos que pretendem modificar o ambiente urbano envolvem uma gama de componentes sensoriais, fazendo com que a esfera urbana testemunhe um movimento duplo de programação de festividades e de medidas ostensivas de segurança, saindo do discurso da “ecologia do medo” (Mike Davis, 2001) para a “ecologia do encantamento” (Christine Boyer, 1992). O discurso do “abandono” do espaço público e das “áreas degradadas” são parte da estratégia para implementação desses projetos, de forma a gerar uma agenda positiva e deslegitimar dissensos no espaço público. Da música nas ruas, da cooptação dos lugares simbólicos da cultura africana ao ambiente tranquilo do Morro da Conceição, tudo é capturado na região portuária para provocar sensações ao visitante-consumidor.

Pode-se dizer que a região portuária é um caso de “branding urbano” (Jeudy, 2005): a promoção de um espaço urbano como uma marca, onde se inclui estratégias e criação de cenários atrativos para as sedes de grandes empresas internacionais, turismo e entretenimento. Para uma análise sensível do urbano, cabe a pergunta: como o ambiente acústico afeta e é afetado na criação do território-marca? Um efeito inevitável é que atividades e ritmos do lugar mudam e são reorganizados.

Luis Claudio Ribeiro (2015), professor e um dos produtores do mapa sonoro de Lisboa (www.lisbonsoundmap.org), argumenta que o entendimento do mundo apenas pelo visual apresenta falhas. Para ele, o mapeamento das sonoridades é uma questão relevante não só porque os fluxos sonoros são excelentes sinais do estado da vida urbana e das formas de interação do humano com o meio e com os outros em comunidade, mas como parte integrante da revisitação de um patrimônio imaterial que a todo o momento se perde e ganha novos aspectos por efeito do comportamento humano.

Michael Bull & Les Back (2003) argumentam que o som pode nos fazer refletir sobre o sentido, a natureza e o significado da nossa experiência social, pois através dele podemos repensar a nossa relação com a comunidade: como nos relacionamos com os outros, conosco e com os espaços que habitamos. O som é também um meio para se observar relações de poder. Num exemplo básico, qual som que mais escutamos no ambiente urbano? Provavelmente, o som fatigante do tráfego. Isso pode nos dar pistas sobre onde estão as prioridades dos planejadores da cidade. Naturalizamos muitas coisas que nos cercam cotidiamente até chegar ao ponto que se tornam inquestionáveis. Num primeiro momento, a metrópole é uma cacofonia. Há ruídos, rumores, ritmos, eventos sonoros produzidos por fontes diversas que se cruzam, se reforçam e se mascaram. Uma escuta cartográfica (Holanda, 2016), aprimorada por caminhadas sonoras, gravações de campo e uma intenção cartográfica pode desvelar relações.

A cidade-cenário e os sons do silêncio. Da Praça Mauá ao Morro da Conceição

Hoje, totalmente reformulada, a Praça Mauá é o território símbolo do Projeto Porto Maravilha. Não seria exagerado dizer que na Praça Mauá imagens e sonoridades estão no campo da estratégia de espetacularização e turistificação da região. Como um espaço afinado com a economia da experiência (Pine e Gilmore, 1999), a Praça Mauá combina controle, vigilância e encenação. A Praça Mauá é um espaço produzido que busca oferecer sensações memoráveis para o visitante-consumidor. Agora sem o peso cinza e bruto do elevado da perimetral, o espaço se ampliou. Já não há mais o som fatigante do tráfego intenso, substituído pelo do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT) e sua suave sinaleira. O VLT, aliás, é um dos protagonistas do cenário. É tamanha sua evidência que ele parece desfilar. Seu caminho é totalmente compartilhado com o espaço de pedestres.

A Praça Mauá é agora espaço de shows e eventos, dos food trucks, das barraquinhas estilizadas de artesanato, do Museu de Arte do Rio – primeira âncora-cultural do Projeto Porto Maravilha – e do icônico Museu do Amanhã. A nova Praça Mauá destapou a Baía de Guanabara, onde do Píer Mauá meninos dão mergulhos espetaculares. O som do mar voltou a ser ouvido nessa área do Porto. Com novo paisagismo, criação de cenários e sendo abrigo de festas e eventos, a Praça Mauá ganhou nova ambiência (Thibaud, 2011), e especialmente, ganhou gente. Turistas e cariocas agora ali transitam para aproveitar as inúmeras possibilidades de entretenimento e consumo. À sua maneira, de lugar de passagem virou local de encontro e de futuras memórias.

Como defende La Barre (2014), os projetos conhecidos como de revitalização, requalificação, reabilitação ou recuperação são também projetos ambíguos de ressignificação, na medida em que eles se recusam a fechar um significado específico para o lugar. “Pelo contrário, a ambição é deixar abertas todas as potencialidades – performáticas, empíricas, interativas, participativas, etc –, de significações territorializantes” (La Barre, 2014, p. 4).

Ou seja, os lugares são caracterizados precisamente pela ausência de uma função pré-determinada, mas por uma idealização, enquanto lugar multi-funcional, feito de potencialidades diversas que irão permitindo uma multiplicidade de territorialidades, todas pensadas como provisórias e flexíveis (La Barre, 2014). Para La Barre, sendo a cidade contemporânea marcada pelo paradigma flexibilista, o som seria então o elemento mais adequado para pensá-la, por sua constituição fluida e flexível. Há os sons que são consequência, um efeito secundário de uma intervenção (trânsito, obras). Há sons que são encenados intencionalmente (sino da igreja, apito da fábrica). Droumeva (2004, p. 23) afirma que “quem controla o som, controla a vida pública”, dando a entender que o uso do som no espaço público dificilmente pode ser considerado como neutro, mas reflexo de poder.

As sonoridades possuem efeitos performativos que geram processos de territorialização. La Barre (2014) sugere uma transição do termo paisagens sonoras, enquanto ambientes naturais, para a ideia de territórios sonoros, ou das territorializações sonoras enquanto processos performativos que ocorrem em contextos cada vez mais tecnológicos, interativos e móveis. A paisagem urbana pós-moderna não é consumida apenas em seu aspecto visual, mas há uma produção performativa de territorialidades através do consumo auditivo (La Barre, 2014).

Na cidade-conceito para consumo, ganham prevalência os sons encenados, aqueles “produzidos para conferir um sentido de lugar, para representar o lugar no sentido performativo” (La Barre, 2014, p. 10). A encenação do som como estratégia do poder instituído (Certeau, 2008) de ressignificação do espaço é uma constante no ambiente da Praça Mauá. Além de toda programação educativa, o Museu de Arte do Rio é contumaz realizador de eventos, sejam shows no final da tarde ou festas que atravessam a noite. São eventos em grande parte patrocinados pelo poder público estadual e municipal, muitas vezes gratuitos ou com ingressos a preços populares.

Um momento exemplar dos sons encenados[8] no espaço público flexível, como La Barre se refere, se deu na Praça Mauá e adjacências durante os Jogos Olímpicos de 2016. Festas temáticas aconteciam aos domingos no Boulevard. A Praça Mauá, com telões de alta definição, era o ponto de encontro daqueles que não tinham ingresso para acompanhar as competições. Não à toa o grande palco montado na Praça Mauá foi chamado de Encontros, onde junto às vizinhas Praça XV (Palco Tendências) e a Orla Conde (Palco Amanhã), receberam artistas renomados de diversas vertentes da música brasileira. Mais de 80 artistas e grupos se apresentaram durante o período dos Jogos contribuindo para o estado de lotação eterna daquela área. A política de encenação do som dos espaços públicos dinamiza os lugares pela via cultural através da realização de eventos que tem a música como atrativo para atrair e entreter frequentadores na região.

Foto 2 - Palco Encontros, montado na Praça Mauá durante as Olimpíadas. Fonte: Claudia Holanda
Foto 2 – Palco Encontros, montado na Praça Mauá durante as Olimpíadas. Fonte: Claudia Holanda

O Morro da Conceição é frequentemente narrado como uma espécie de oásis dentro do caos do centro da cidade. Esse lugar calmo, bucólico, com cara de cidade do interior, especialmente no decorrer do Projeto Porto Maravilha foi fartamente divulgado nos veículos de comunicação como um lugar a ser visitado, tanto por sua riqueza histórica como por se diferenciar do roteiro turístico comum da Zona Sul. Ao se estar no Morro, entra-se num ambiente acústico diferente daquele por qual passamos segundos antes, especialmente se o caminho de entrada foi pela Rua Camerino ou a Travessa do Liceu, na Praça Mauá. As sonoridades são tão mais gentis que nos sentimos em meio ao silêncio. Mas um silêncio relativo ao que se ouvia logo antes. Não que de fato seja o silêncio – inexistente, segundo Cage (“There is no such thing as silence”, Cage, 1961) –, mas uma outra temporalidade e um ritmo que difere da atmosfera de centro da cidade, onde ele está localizado. Não é o silêncio, mas justamente sua ambiência peculiar que o torna interessante.

Foto 3 - Visitantes passeando no Morro da Conceição. Fonte: Claudia Holanda
Foto 3 – Visitantes passeando no Morro da Conceição. Fonte: Claudia Holanda

Desde o lançamento do projeto Porto Maravilha em 2009, a localidade já rendeu seis curtas-metragens[9] produzidos pela LC Barreto (produtora do cineasta Luiz Carlos Barreto). Patrocinados pela concessionária Porto Novo e lançados na internet, os curtas possuem um inequívoco ar publicitário, e também exploram o casario, a história e ambiência acústica da localidade. Hoje em dia, é comum em qualquer dia da semana, a chegada de grupos turísticos em passeios a pé, ou simplesmente curiosos que querem conhecer a aura de paz tão disseminada do local em meio ao centro financeiro da cidade (Foto 3). Junto à sua arquitetura, a ambiência silenciosa do Morro foi vendida, virou mercadoria imaterial. É como se essa qualidade sonora peculiar também se tornasse uma das cartas na manga para a mercantilização do espaço. O morro abriga ateliês de diversos artistas plásticos, alguns que veem com bons olhos o aumento do fluxo de visitantes. De outro lado, alguns moradores se sentem incomodados com essa onda de pessoas circulando no espaço, e especialmente com a presença mais frequente de carros e motos.

Um conjunto de presenças sonoras locais e ambiências contribuem para que o Morro seja um lugar agradável de viver e frequentar. Schafer, crítico dos efeitos da globalização que também homogenizam as sonoridades urbanas, provavelmente sentiria que o Morro da Conceição ainda é um território que guarda suas especificidades, inclusive acústicas. Como diria Westerkamp (1974), é um espaço dimensionado na escala humana. “Se você pode ouvir até o mais silencioso dos seus próprios sons, você está se movendo através de um ambiente que é dimensionado em proporções humanas” (Westerkamp, 1974, não paginado). Para Schafer (2011), o Morro da Conceição seria um ambiente hi-fi (alta fidelidade), onde todos os sons podem ser ouvidos com clareza, sendo possível distingui-los.

Ursula Franklin (2000) entende o silêncio como um bem comum com similaridades com a água, ar e solo, “que já foram uma vez tidos como dados, mas foram se tornando especiais e preciosos em ambientes mediados pela tecnologia” (Franklin, 2000, p. 14). Na era da Cybercultura, a palavra tecnologia muitas vezes é associada como sinônimo de tecnologia digital, esquecendo de uma longa história de invenção de instrumentos que se estendem durante toda a civilização humana. A cidade é rodeada de tecnologias: carros, aviões, televisão, caixas de som, um instrumento musical, o maquinário do ferreiro, o condicionador de ar, entre tantos, este último também como presença constante nas cidades quentes sendo capaz de produzir campos de sonoridades drone com seu ruído branco. É impossível fugir do ruído nas cidades, ao mesmo tempo o Morro da Conceição parece providenciar um breve refúgio num silêncio relativo.

Para Karlsson (2000), cada vez mais, o ambiente acústico se torna uma questão de poder e dinheiro. “O silêncio se tornou uma questão de consumo de luxo” (Karlsson, 2000, p. 11), tanto que nas áreas mais ruidosas da cidade o valor dos imóveis é mais baixo. A demanda por ganhos econômicos e entretenimento vem abalando áreas antes silenciosas da cidade. O silêncio adquiriu valor econômico e social no capitalismo que tudo captura. Não só a visualidade, mas também as sonoridades se tornaram ferramentas para a produção da cidade-mercadoria.


* Claudia Holanda é doutora do Programa de Engenharia de Produção (PEP) da COPPE, Mestra em Engenharia de Produção na UFRJ e graduada em Comunicação Social pela UFPE. Integra a rede de pesquisadores sobre narrativas digitais interativas BUG404 – www.bug404.net. Cantora e compositora.

** Roberto Bartholo é professor titular da UFRJ na área de Gestão e Inovação (GI) do Programa de Engenharia de Produção (PEP) da COPPE. Chefe do Laboratório de Tecnologia e Desenvolvimento Social (LTDS).

 

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Notas

[1] Os arquivos de imagem e de áudio do World Soundscape Project foram digitalizados e estão disponíveis na página www.sfu.ca/sonic-studio. Para ter acesso, é necessário requerer registro ao administrador e ex-integrante do projeto, Barry Truax.

[2] Esquizofonia vem da junção do prefixo grego schizo (cortar, separar) e da palavra phone (som/voz).

[3] É possível escutar trechos das composições como também comprar o CD no portal https://folkways.si.edu/voices-of-the-rainforest/world/music/album/smithsonian

[4] Site oficial: http://www.ultrared.org

[5] Alguns trabalhos de áudio do Ultra-red podem ser acessados aqui: http://www.publicrec.org/archive/2-06/2-06-005/2-06-005.html

[6] Disponível em https://storymap.knightlab.com/

[7] Fundado em 1979na Escola Nacional de Arquitetura de Grenoble, na França, o Cresson é uma referência de estudos urbanos relacionados ao ambiente sonoro.
http://aau.archi.fr/cresson/

[8] Registros de áudio da Praça Mauá realizados à tarde no dia de abertura dos Jogos Olímpicos – 5 de agosto de 2016 – podem ser acessados diretamente na página Escutando a Cidade, do Soundcloud, que abriga arquivos da pesquisa: https://soundcloud.com/escutandoacidade/sets/praca-maua-na-abertura-das-olimpiadas como também no mapa sonoro Sons do Porto (www.sonsdoporto.com), que disponibiliza registros de áudio e imagem de localidades diversas da região portuária do Rio de Janeiro.

[9] Link dos curtas no youtube: https://www.youtube.com/channel/UCNWpInL240jIV1vKz7TcENg – acessado em 15 de setembro de 2017.

dossiê
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VULNERABILIDADE SOCIAL, MEMÓRIAS SUBTERRÂNEAS E O RIO INVISÍVEL

Resumo: O presente artigo tem como objetivo compreender o desenvolvimento das relações sociais no âmbito da internet, mais especificamente no contexto da mídia social Facebook, usando como objeto de pesquisa a página Rio Invisível. Para isso, foi utilizada como instrumento metodológico a netnografia em conjunto com análises teóricas sobre a complexidade das grandes cidades. As pesquisas sobre vulnerabilidade e sua influência no silenciamento de memórias de pessoas em situação de marginalidade, procuram verificar o quanto a conscientização dessa vulnerabilidade pode ajudar a modificar a nossa relação com o outro, e como a memória criativa, que se separa de atitudes automáticas e irrefletidas, pode se tornar um instrumento de luta para a modificação do mundo ao nosso redor.

Palavras-chave: Memória social, internet, mídia social, vulnerabilidade, criação.

Abstract: This article aims to understand the development of social relations in the context of the internet, more specifically in the social media Facebook, using the page Rio Invisível as a research object. In this sense, a methodological tool – the netnography – in conjunction with theoretical analyses on major cities and its complexity was chosen. The research on the vulnerability and its influence on the silencing people memories in situation of marginality tries to seek how the awareness of this vulnerability can help changing our relationship with each other, and also, how creative memory, which separates itself from automatic and unreflective attitudes, can become an instrument of resistence to changing the world around us.

Keywords: Social memory, internet, social media, vulnerability, creation.

 

Introdução

Ao longo dos últimos anos a realidade digital tem tomado cada vez mais espaço na sociedade. As mídias sociais tem sido um exemplo disso. Em 12 anos de existência, o Facebook já conseguiu mobilizar movimentos sociais em praticamente toda parte do mundo. Apesar de ser um ambiente também fértil para boatos, discursos de ódio, e até mesmo ser considerada como fonte de distração excessiva, podemos verificar alguns focos de trabalhos interessantes aproveitando o interesse da população nesse ambiente, para alertar as pessoas para o que elas não veem (ou não querem ver) no mundo que existe fora das telas do computador.

A página “Rio Invisível” é um desses exemplos. Com dois anos de existência e 89 mil curtidas, a página já divulgou cerca de 70 histórias de pessoas em situação de rua na cidade do Rio de Janeiro. Ela tem como propósito a ressignificação da percepção sobre a população de rua da cidade, trazendo suas narrativas sobre suas histórias para a mídia social e compartilhando-as com os internautas que acessam esse espaço. Isso possibilita que memórias inauditas por muito tempo se propaguem pela sociedade e saiam do subterrâneo, como nos aponta Pollak (1989).

Nossa pesquisa tem por objetivo observar como essas relações em meio digital podem influir também na vida offline e no desenvolvimento de possíveis afetos para com as pessoas em situação de rua. Essa análise será feita com inspiração na netnografia, que consiste basicamente numa etnografia online, salvas as devidas proporções, visto que no ambiente digital as pessoas se comportam de uma maneira diferenciada do contato offline, e como atentam Amaral, Natal e Viana (2008), muitas vezes nuances que são captadas pelo elemento gestual da comunicação acabam se perdendo em meio a esse ambiente de palavra, ‘emoticons’, ‘memes’, etc. Então, fazendo uma análise netnográfica da página Rio Invisível, pretendemos alcançar um maior entendimento acerca desses novos fenômenos que ocorrem no âmbito da comunicação no ciberespaço.

Dentro do contexto das mídias digitais, utilizamos o conceito de cibercultura de Lévy (1999), para entender parte do processo de relações sociais online. Dito isso, no presente artigo, iremos discutir também as ambivalências e complexidades das grandes cidades, em que os movimentos e barulhos que anestesiam os sentidos e amortecem os afetos através dos sucessivos choques a que as pessoas das cidades são diariamente submetidas (Benjamin, 2015), banalizam a existência da miséria que rodeia o cidadão urbano. Judith Butler (2009) nos auxilia a trabalhar as questões da vulnerabilidade e a necessidade de desenvolvermos a capacidade de sentir com o outro sua dor e, portanto, dar mais possibilidades de lutar por esse “outro”. A autora nos lembra que existem corpos mais vulneráveis do que outros, e que é admitindo isso que podemos passar a nos importar mais com as pessoas. A questão sobre o “eu” e o “outro” é trabalhada numa perspectiva menos polarizada e mais agregadora, procurando compreender onde realmente residem esses limites, partindo da premissa de que todos somos vulneráveis e precisamos de ajuda e ajudar alguém.

Ao utilizarmos o pensamento de Pollak (1989) sobre essa questão, tentamos relacionar a vulnerabilidade ao silenciamento das memórias de pessoas em situação de marginalidade e a relevância de se ouvir essas histórias para que elas possam disputar visibilidade social também com as memórias oficiais que circulam na sociedade. Para isso, uma análise sobre as redes sociais se faz necessária, visto que é nesse espaço que podemos perceber o desenvolvimento de grupos como o Rio Invisível, que procura, ao tirar essas memórias do subterrâneo, colocá-las em disputa.

A cidade que transborda

A grande cidade oferece tantos movimentos simultâneos para as pessoas, que elas por vezes desenvolvem uma espécie de anestesia, adquirida como uma proteção aos diversos estímulos e choques a que são submetidas. Olham para os sinais, para os prédios, mexem no celular e estão muitas vezes à procura de um aplicativo que as faça mergulhar mais fundo numa realidade “alternativa”. Se alguém levantar os olhos do celular e observar ao seu redor, o que se vê são pessoas apressadas andando por todo lado. Atentos aos sinais quase instintivos de perigo pode-se perceber o medo de movimentos estranhos, pois o outro (quando é visto), parece uma ameaça em potencial. E essa cena descrita acima é tão normal que pode acontecer em qualquer dia, tudo parece habitual nessa configuração da grande cidade. Como nos aponta Velho (2003, p.79), “os trabalhos do grupo de Chicago mostraram que, na grande metrópole contemporânea, encontramos não só um maior número e diversidade de papéis e domínios, como evidentes descontinuidades e contradições entre estes”. Então, ao caminharmos pelas ruas podemos ver pessoas em situações diversas, desde suas misérias até o conforto de estarem prédios suntuosos.

E de dentro dos ônibus, carros, ou no caminho até em casa, lá estão eles: os invisíveis. Quem são eles? Aqueles que fazem da rua sua morada. E eles estão lá, todo dia, mas ainda assim parece que ninguém os vê. Sua presença (ou ausência) é tão banalizada que chega a parecer natural que seja assim, uns vivem com uma casa, com sua família e outros não. Ao descrever o cenário da modernidade, Benjamin (2015) comenta que de certa forma nos acostumamos com essa automatização a que somos submetidos.  Esse comportamento quase robotizado, típico dos habitantes das grandes cidades, é mais uma reação ao choque a que somos expostos diariamente. Então, muitas vezes, seguir adiante sem olhar o que há ao nosso redor torna-se uma proteção contra esses choques sucessivos a que somos submetidos. Ainda segundo Benjamin (2015, p. 130), “a vivência do choque que o transeunte tem no meio da multidão corresponde à ‘vivência’ do operário junto da máquina”. Ou seja, assim como os operários trabalhando nas fábricas, o citadino perdeu a capacidade de viver uma experiência, pois tem apenas vivências. A questão é que são tantos ‘choques’ acontecendo, que isso acaba nos preparando para novos choques e vamos por fim nos anestesiando.

Benjamin (2015) apoia-se em Freud para compreender a questão da consciência e da memória. Partindo dessa análise, ele nos aponta que para Freud só se pode entender como memória o que não chega ao nível do consciente. Seguindo esse raciocínio, “ainda segundo Freud, a consciência enquanto tal não registraria absolutamente nenhum vestígio da memória. Teria antes, outra função significativa, a de agir como proteção a outros estímulos” (Benjamin, 2015, p. 111).  Isso significa que, como uma forma de defesa, a nossa mente procura tornar o registro da nossa consciência o mais habitual possível, pois quanto mais anestesiados, menos iremos ter efeitos traumáticos decorrentes desses choques.

Ao transportarmos esses conceitos para a questão das grandes cidades atuais é possível perceber que, ao mesmo tempo em que se almeja o novo e se deseja experimentar novas sensações, é preferível muitas vezes se habituar às cenas das ruas. Quando a pessoa em situação de rua é vista por quem não vivencia essa realidade, ou seja, uma pessoa que passa aleatoriamente diante de uma pessoa em situação de rua, aquele é colocado diante de outro ser humano numa situação tão estranha à sua que muitas vezes evita-se olhar do que pensar ou sentir algo sobre isso. Isso não significa que se trate de uma polaridade de “maus” e “bons”, mas apenas uma adaptação às diferentes formas de vida que coabitam a sociedade.  A falta de estímulos acaba então por se tornar uma proteção contra algum tipo de afeto que possa surgir desse encontro. Esse tipo de amortização dos estímulos, como nos alerta Bergson (2009), ocorre quando atitudes se tornam automáticas e nossa consciência se retira delas.

Benjamin (1985), ao perceber a pobreza de experiência existente na modernidade, não traz um discurso saudosista. Porém, constata que a tradição vai se perdendo e o conselho dos mais velhos, por exemplo, vai perdendo cada vez mais seu valor. É preciso, para ele, admitir a pobreza de experiência que acomete toda a humanidade surgindo, então, uma nova barbárie. O autor reforça que o que resulta para esse novo é o positivo conceito de bárbaro, dessa pobreza de experiência que “leva-o a começar tudo de novo, a voltar do princípio, a saber, viver com pouco, a construir algo com esse pouco, sem olhar nem à esquerda nem à direita” (Benjamin, 2016, p.87). Ou seja, apesar de um cenário difícil e pobre de experiência, podem surgir possibilidades de reconstrução que em outras circunstâncias não seriam pensadas. Ele nos convida a ser esse novo bárbaro e, a partir de uma “tábula rasa” (Benjamin, 2016), como os grandes criadores fazem, inventar algo novo e impensável anteriormente.

A memória e os vulneráveis

Judith Butler (2009) nos chama atenção para a existência de uma vulnerabilidade inerente aos corpos, mas também nos alerta que alguns corpos são mais vulneráveis que outros; e ainda, que a violação ou morte de alguns desses corpos é mais passível de luto do que de outros. Isso porque, quanto mais afastados nos encontramos de outra pessoa, mais fácil é para nós ignorarmos sua dor. Segundo a autora, em última instância, todos são vulneráveis e é preciso admitir isso para que, de alguma forma, possamos nos compreender como seres humanos como um todo, e por isso mesmo entender que todos importam (ou deveriam). Não que ela proponha um conceito universal de ser humano, mas “uma concepção mais geral do humano, pelo qual estamos, desde o começo, entregues ao outro” (Butler, 2009, p. 57, tradução nossa). Ao contrário, quando ignoramos isso, acabamos mantendo um sistema de pensamentos em que:

Certas vidas estão altamente protegidas, e o atentado contra a sua santidade basta para mobilizar as forças da guerra. Outras vidas não gozam de um apoio tão imediato e furioso, e não se qualificariam inclusive como vidas que “valham a pena” (Butler, 2009, p. 58).

Então, muitas vezes não sabemos o que se passa com o outro, porque ao ignorarmos a existência dessa vulnerabilidade que nos cerca, não nos permitimos sequer o luto pela sua morte, já que são mortes que não fazem diferença, e acabamos também por ignorar o seu sofrimento cotidiano. Afastar a condição de “irreal”, de espectral, em que as pessoas em situação de rua se encontram é um caminho para o desenvolvimento de uma outra consciência acerca delas e nos colocar em uma posição menos passiva diante da sua situação de vulnerabilidade. Butler (2009, p. 57) nos convida a “elaborar o luto e transformar a dor como um recurso político”, e com isso, desenvolver uma identificação com o sofrimento do outro.

Ferenczi (1992) também compreendeu, ao longo de seus estudos psicanalíticos, que, na verdade, a base do trauma reside não exatamente na experiência do sofrimento em si, mas acima de tudo, na maneira como este é recebido por aqueles que fazem parte da vida do traumatizado. Ou seja, quando alguém sofre descrédito, não é compreendido como sujeito, e sofre então um aniquilamento subjetivo. No caso específico de Ferenczi, ele trabalha com traumas infantis, especialmente com relação a abusos sexuais. Mas podemos pensar em quantos grupos que vivem à margem da sociedade também sentem os efeitos da desconsideração de sua fala, e até da sua própria existência. Isso porque, como Butler (2009) salienta, apesar de todos sermos vulneráveis, podemos perceber que uns são mais do que outros. E então, daí em diante, a autora alerta para uma triste realidade: todos os dias, nas favelas, nas ruas, nos países em guerra do Oriente Médio, ou na África, morrem milhares de pessoas inocentes, mas, nos acostumamos tanto com isso, que as notícias quase nunca provocam comoção. Então, eis a pergunta que Judith Butler se faz, e nos insta a pensar:

De que modo nossos marcos culturais para pensar o humano põem limites sobre o tipo de perdas que podemos reconhecer como uma perda? Depois de tudo, se alguém desaparece e essa pessoa não é nada, então o que, e onde desaparece, e como pode ter um lugar de luto? (Butler, 2009, p. 59).

Ou seja, nossa própria cultura coloca limites sobre até onde podemos ir no reconhecimento de uma perda, e além de tudo, que algumas pessoas não são nem consideradas pessoas para que se possa sentir suas perdas. As pessoas em situação de rua são mais um exemplo disso. Muitos cidadãos morrem todos os dias vítimas da violência urbana, mas quando se analisa a ênfase que certos grupos recebem ao vivenciar uma perda, é possível perceber que, poucas vezes a perda de um morador de rua é noticiada ou compreendida como importante o suficiente para ser passível de luto. Isso porque é difícil sentir a dor da perda quando não se conhece quem são e o que suas perdas realmente significam para a sociedade.

Pollak (1989) compreende bem esse processo de silenciamento de grupos quando se encontram em situações-limite. O autor faz uma análise crítica acerca do conceito de memória coletiva estudado por Halbwachs (2004), o qual entende a memória coletiva como coesiva e não como instrumento de coerção. Para Halbwachs, que era contemporâneo e simpático às ideias de Durkheim, a memória coletiva chegava ao seu ápice de coesão quando pensada numa nação inteira. Ou seja, as memórias dos grupos têm o poder de mantê-los unidos, e para isso era preciso que essas memórias não possuíssem discordâncias, caso contrário elas não seriam coletivas. Isso se dava desde uma dupla de amigos até um país inteiro. Pensar então numa memória nacional era entender que um povo possuía memórias comuns que os identificavam como provenientes de tal nação.

Ainda, Pollak (1989) entende que nessa concepção de memória, ficavam de fora muitos grupos que não se viam representados por essa dita memória oficial e coletiva. Ele vê nos depoimentos orais a possibilidade de os grupos marginalizados poderem construir e protagonizar as transformações e fatos da sua própria história, e afirma que:

Ao privilegiar a análise dos excluídos, dos marginalizados e das minorias, a história oral ressaltou a importância de memórias subterrâneas que, como parte integrante das culturas minoritárias e dominadas, se opõem à “Memória oficial”, no caso a memória nacional. Num primeiro momento, essa abordagem faz da empatia com os grupos dominados estudados uma regra metodológica e reabilita a periferia e a marginalidade. Ao contrário de Maurice Halbwachs, ela acentua o caráter destruidor, uniformizador e opressor da memória coletiva nacional. Por outro lado, essas memórias subterrâneas que prosseguem seu trabalho de subversão no silêncio e de maneira quase imperceptível afloram em momentos de crise em sobressaltos bruscos e exacerbados. A memória entra em disputa (Pollak, 1989, p. 4).

Com ajuda das redes sociais, as memórias subterrâneas das pessoas em situação de rua podem entrar em disputa com as memórias que estão oficialmente sendo lidas, vistas e ouvidas nas instituições que tradicionalmente guardam e divulgam os documentos memoriais, Segundo o autor, “os rastros desse trabalho de enquadramento são os objetos materiais: monumentos, museus, bibliotecas etc.” (Pollak, 1989, p. 11), isto é, espaços que materializam o enquadramento de memórias, que se caracteriza por ser um elemento importante tanto para manter as fronteiras sociais como também para manter as estruturas sociais coesas.

Então, o silêncio, como o autor bem coloca, não necessariamente significa um esquecimento, mas muitas vezes a falta de um interlocutor, e a “voz” chega novamente quando encontra um momento em que a possibilidade de ser ouvida aparece. A falta de interlocutor é um fenômeno bem comum na vida das pessoas em situação de rua, que frequentemente têm suas histórias e sua própria existência ignoradas. Segundo Pollak (1989) essa memória marginalizada é denominada memória subterrânea e, quando existe a oportunidade de trazê-la para o âmbito da sociedade, é possível colocá-la em disputa com a memória dita coletiva.

As redes e os rastros

Segundo Castells (2000), a criação da Internet em 1960, pela Agência de Projetos de Pesquisa Avançada do Departamento de Defesa dos Estados Unidos (DARPA), teve o objetivo de, em caso de guerra nuclear, impedir os soviéticos de destruir ou capturar o sistema norte-americano de comunicação. O tempo foi passando e essa ferramenta ganhou outras funções além das que motivaram a sua criação. Hoje podemos entender esse espaço como parte integrante da nossa vida social:

O resultado foi uma arquitetura de rede que, como queriam seus inventores, não pode ser controlada a partir de nenhum centro e é composta por milhares de redes de computadores autônomos com inúmeras maneiras de conexão, contornando barreiras eletrônicas (Castells, 2000 p. 44).

Ou seja, a partir desse modelo de comunicação, a rede não teria mais um centro de expansão, mas certa horizontalidade, tendo ao longo dos anos chegado ao modelo de Internet que possuímos hoje. Segundo Castells (2000), é em meio a esse mundo de mudanças confusas e sem controle, que grupos tão fragmentados tendem a reagrupar-se a partir de elementos que os identifiquem como semelhantes. E essa identidade tem se tornado a principal e algumas vezes a única fonte de significado, nesse período caracterizado por esse constante esfacelamento das estruturas e organizações.

O Facebook é uma rede social e traz em si a característica de formações de grupos dentro de um mesmo espaço heterogêneo. Nele, é possível reagir às publicações fazer comentários, compartilhar as publicações e também publicar. Em meio a todo esse mundo de informações, pessoas e páginas, o “Rio Invisível” surgiu no Facebook em setembro de 2014 e continua seu trabalho até hoje, contando com 90 mil curtidas, o que significa que esse mesmo número de pessoas pelo menos soube da existência do projeto, ainda que só tenha visto alguma postagem somente uma vez. Segundo a própria descrição da página, o Rio Invisível tem como objetivo “ressignificar a população em situação de rua no Rio de Janeiro e repensar o modelo de cidade”.

Imagem do campo “Sobre”, da página Rio Invisível, no Facebook. Encontram-se informações de contato e também constam os objetivos da página. Fonte: facebook/rioinvisivel
Imagem do campo “Sobre”, da página Rio Invisível, no Facebook. Encontram-se informações de contato e também constam os objetivos da página. Fonte: facebook/rioinvisivel

Para isso, cada postagem conta com uma fotografia (autorizada pela própria pessoa) de uma pessoa em situação de rua junto à sua narrativa. Algumas vezes, é feita uma filmagem, e sempre há uma narrativa escrita que a acompanha a postagem. E desse momento em diante todas as pessoas que acessam o Facebook, têm a possibilidade de conhecer histórias de pessoas que quando vistas na rua são em geral ignoradas. Pela própria característica do Facebook, essas postagens são constantemente compartilhadas e comentadas e, portanto, também as histórias dessas pessoas.

Postagem de 21 de dezembro de 2016. A história de Hélio, pessoa em situação de rua entrevistada pelo grupo. Fonte: Facebook/rioinvisivel
Postagem de 21 de dezembro de 2016. A história de Hélio, pessoa em situação de rua entrevistada pelo grupo. Fonte: Facebook/rioinvisivel

No exemplo acima, a postagem teve 655 reações. As chamadas “reações” contemplam: surpresa, tristeza, raiva, alegria, amor e a mais antiga delas, o sinal positivo de “curtir”. Nesse caso, foram 364 curtidas, 274 manifestações de tristeza, 12 de surpresa e 5 de amor, além de 35 comentários e 92 compartilhamentos. Ao ver esse exemplo, é possível compreender o caráter de rede da internet. A história do senhor Hélio pôde ser vista e replicada uma série de vezes para muitas pessoas em diferentes lugares. Em alguns comentários é possível ver manifestações de interesse em acessá-lo para além das telas do computador, o que é bastante interessante, pois se trata de um movimento de olhar para a história dele através de uma tela de computador e se sensibilizar a partir daí para talvez tomar alguma atitude fora dela.

Comentários na postagem do Sr. Hélio. Manifestações dos usuários e visitantes da página e respostas do grupo. Fonte: Facebook/rioinvisivel
Comentários na postagem do Sr. Hélio. Manifestações dos usuários e visitantes da página e respostas do grupo. Fonte: Facebook/rioinvisivel

Com exemplos apresentados, é possível perceber, por parte dos internautas, uma sensibilização que pode ou não resultar em atitudes mais ativas diante de pessoas nessa situação. Sendo ou não aprofundada, uma relação de proximidade com essa pessoa acaba se formando ali no contato com a página. Pierre Lévy (1997) auxilia a compreensão das novas possibilidades vindas através do ambiente virtual que transformam as interações sociais. E no caso da página Rio Invisível, essas interações tem a função de despertar sensibilidade nas pessoas que a acessam.

Além disso, para Lévy (1999), o virtual não significa o oposto do real, mas na verdade, ele opera num espaço-tempo distinto, no qual não existe um polo físico específico, funcionando por meio de um dispositivo que pode ser acessado de qualquer lugar, a qualquer hora. Dessa forma, ao fazer um paralelo com a página Rio Invisível, pode-se perceber que o espaço online e offline se encontram, já que as histórias contadas são de pessoas que estão fora da rede social e o tempo, por sua vez, não tem a mesma dimensão que o cronológico, sendo possível acessar essas histórias a qualquer momento.

Segundo Lévy (1999), o meio digital é “universalizante não totalizante”, e isso só é possível porque o ciberespaço seria capaz de dissolver a “pragmática da comunicação, que desde a invenção da escrita havia reunido o universal e a totalidade” (Lévy, 1999, p. 118). Isso porque se trata de um ambiente que permite uma comunicação interativa das coletividades humanas e contato das comunidades heterogêneas (Lévy, 1998). Essa característica possibilita a construção das páginas em conjunto com os diversos internautas que as acessam, já que estas só podem se manter realmente através das interações que existem dentro delas, utilizando-se de uma comunicação mais transversal. Caso contrário, elas não cumprem seus objetivos.

Castells (2013) nos alerta que as mudanças sociais são emocionalmente motivadas, e passam por algumas etapas, como medo, raiva e entusiasmo, que é exatamente quando é possível atuar de maneira concreta, e nesse momento a união de pessoas entusiasmadas se transforma num “coletivo consciente”. Não seria diferente no caso do movimento iniciado pelo Rio Invisível. São pessoas que usam de sua liberdade para tentar modificar uma realidade. Essa extensa rede virtual tem transformado as comunicações, e com base em “redes horizontais de comunicação multidirecional”, há também a emergência do que o autor denomina “autocomunicação em massa” (Castells, 2013). Isso quer dizer que os novos movimentos sociais, para o autor, se constroem de forma horizontalizada e em redes e assim não mais necessitam de uma comunicação que venha de um centro para os demais, e sim a partir da possibilidade de cada um poder contribuir em algum aspecto.

Para Bergson, a consciência nos possibilita criar o futuro a partir das experiências do passado. Segundo ele, a matéria é submetida às leis da natureza que não são passíveis de mudança. Mas a consciência sim é passível de modificações. Segundo Bergson (2009, p.13), “a matéria é necessidade, consciência é liberdade”. Mas embora sejam diferentes, uma é intrínseca à outra. Isso porque, para ele, “a vida é precisamente a liberdade, inserindo-se na necessidade, e utilizando-a em seu proveito” (Bergson, 2009, p. 13). Então, ao agirmos como autômatos, não permitimos que a consciência exerça sua liberdade e, portanto, negamos a nossa capacidade de criar e de experimentar de fato a vida e o mundo que nos cerca. A criação só é possível na brecha desses movimentos habituais e quando nos permitimos isso, exercemos nossa liberdade. Então, ao tomarmos consciência das coisas ao nosso redor, saímos dessa anestesia e temos a possibilidade de sentir. Talvez, num movimento consciente e voluntário de olhar nos olhos do outro, começamos uma verdadeira revolução interna. Como nos coloca Butler (2009, p. 67) “a partir da consequente experiência de perda e fragilidade, surge a possibilidade de construir outro tipo de vínculo”. Parece então que o desenvolvimento da empatia através de formas alternativas de compreensão do poder e da memória é um caminho possível para o desenvolvimento de afetos sobre o outro.

É no processo criativo que temos possibilidade de ver o mundo mudar. E através de uma tela de computador, existe um espaço possível para o desenvolvimento da empatia, e podemos perceber isso lendo os comentários e compartilhamentos da página Rio Invisível, que evidencia a sensibilidade das pessoas que acessam essas histórias. Como afirma Bergson:

Mas criador por excelência é aquele cuja ação, sendo intensa, é capaz de intensificar também a ação dos outros homens e também de ativar, generosa, focos de generosidade. Os grandes homens de bem, e mais particularmente, aqueles cujo heroísmo inventivo e simples abriu para a virtude de caminhos novos, são reveladores de verdade metafísica (Bergson, 2009, p. 24).

Considerações finais

Retomando as palavras de Bergson, a partir do processo criador se torna possível intensificar focos de generosidade, que possibilitam mudanças positivas no mundo. E o Rio Invisível encontrou uma forma de provocar alguma mudança, ou ao menos, uma possibilidade de reflexão usando um meio alternativo, procurando colocar em evidência os diversos discursos que povoam a questão das pessoas em situação de rua. Ao dar a possibilidade de fazer com que as memórias e experiências das pessoas marginalizadas sejam ouvidas e vistas, a exposição dos relatos nessas páginas torna possível também que outros indivíduos se sensibilizem com suas perdas, e principalmente, que entendam suas ausências como sendo reais (Butler, 2009). É preciso então, apontar não apenas para uma memória coletiva, mas também que seja possível expandir nossa capacidade de coletivizar os sentimentos do cuidado e, como consequência disso, sentimentos de aproximação com os problemas dos outros, saindo do fechamento em nós mesmos e nos conectando com o outro.


*Maria Thereza Monteiro Pereira Sotomayor é mestranda em Memória Social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e trabalha no Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. Graduada em Arquivologia pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: therezasotomayor@gmail.com

** Vera Dodebei é professora titular da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Doutora em Comunicação e Cultura e docente e pesquisadora no Programa de Pós-Graduação em Memória Social -PPGMS.

 

Referências

AMARAL, A.; NATAL, G.; VIANA, L. Netnografica como aporte metodológico da pesquisa em comunicação digital. Famecos. Porto Alegre v.20. Dez\2008  <http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/famecos/article/viewFile/
4829/3687.AcessadoAcesso
> Acesso em: 10 jan. 2017.

BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: O Anjo da História. .2 ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016.

BENJAMIN, Walter. Sobre alguns motivos na obra de Baudelaire. In: Baudelaire e a Modernidade. 1 ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.

BERGSON. Henry. A Consciência e a vida. In: A energia Espiritual. São Paulo: wmf/Martins Fontes, 2009.

BUTLER, Judith. Vida precaria: El poder del duelo y la violencia. 1 ed. Buenos Aires: Paidós Argentina, 2012.

CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. 8 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

CASTELLS, Manuel. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

FERENCZI, Sándor. Confusão de língua entre os adultos e a criança (1933). In: Obras completas. Psicanálise IV. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 97-106.

HALBWACHS, Maurice. Memória Coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.

LÉVY, Pierre. Cyberculture. São Paulo: Editora 34, 1999.

LÉVY, Pierre. A nostalgia do totalitarismo: difusão de informações pelo ciberespaço ameaça as castas intelectuais. In: Folha de São Paulo, 1998. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs14069804.htm Acesso em 17 Jun. 2017

POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, vol. 2, n. 3, Rio de Janeiro, 1989.

VELHO, G. Projeto e Metamorfose: Antropologia das sociedades complexas. 3ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

 

Notas

[1] São memórias que ficam à margem, ou seja, não são consideradas dentro do escopo das memórias coletivas oficiais e só podem sair dessa condição quando podem ser apresentadas publicamente, seja pela situação política vigente, ou quando elas querem ser ouvidas, caso contrário, elas permanecem na obscuridade.

dossiê
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A TEORIA DA ANTROPOLOGIA DIGITAL PARA AS HUMANIDADES DIGITAIS

Resumo: Este artigo visa discutir o conceito de antropologia digital na tradição inglesa com ênfase no diálogo com a noção de humanidades digitais. As proposições conceituais da antropologia para a cultura digital investem no vínculo entre as relações socioculturais e os usos de plataformas, dispositivos midiáticos e aplicativos digitais contemporâneos (Miller, 2011; Miller & Horst, 2012; Miller & Sinanan, 2014; Costa, 2016; Machado, 2017; Venkatraman, 2017). A base dos estudos é a de compreender as sociabilidades digitais como fenômenos tão autênticos como os demais campos de mediação anteriores, a exemplo da comunicação face a face. Cabe ainda enfatizar os princípios da dialética nos usos sociais da tecnologia, revelando as tensões entre o local e o global, os universalismos e particularismos, as contradições entre os efeitos positivos e negativos nos usos sociais da tecnologia na vida social dos grupos culturais. Cabe ainda refletir sobre a noção de theory of attainment, compreendendo como certas experiências culturais precedentes tendem a influenciar no modo como as culturas atuam na apropriação e produção de sentido de dispositivos tecnológicos contemporâneos ainda que usos criativos se instituam.

Palavras-chave: Antropologia digital, Humanidades digitais, mediações e cultura digital.

Abstract: This article aims to discuss the concept of digital anthropology in the English literature given that this theory emphasis the digital humanities concept. The anthropology’s theory of digital culture can be seen as a link between sociocultural ties and the uses of platforms, media devices or contemporary digital platforms (Miller, 2011; Miller& Horst, 2012; Miller & Sinanan, 2014; Costa, 2016; Machado, 2017; Venkatraman, 2017). The main subjects of this studies are to understand digital sociabilities as phenomena of an authentic to other previous mediation fields, such as face-to-face communication. It is also important to emphasize the principles of dialectics in social uses of technology, revealing the tensions between the local and the global, the universalism and particularism, the contradictions between the positive and negative effects on social uses of technology in the cultural groups in the everyday life. We must highlight the concept ‘theory of attainment’, understanding how certain previous cultural experiences can be seen in acts of cultures in the contemporary technological devices even if new creative uses are coined.

Keywords: Digital anthropology, digital humanities, digital culture and mediation system.

 

Introdução

O conceito de humanidades digitais delineia um campo teórico ainda em construção, mas com uma breve história que já nos permite identificar as matrizes que orientam a sua fundação. As diretrizes transdisciplinares tendem a integrar propostas que salientam os estudos sobre as culturas digitais e as experiências humanitárias no século XXI. A Alliance of Digital Humanities Organizations (ADHO)[1] afirma que se propõe a promover e dar suporte para pesquisas na área do digital, reunindo publicações, conferências, congressos e seminários do campo. Nesse sentido, a instituição abre espaço para dar voz a diversas comunidades científicas europeias, americanas, japonesas e em outras partes do mundo. Segundo o grupo de pesquisa de Humanidades Digitais da USP[2], existem atualmente cento e quatorze grupos no mundo agrupados sob a denominação Humanidades Digitais em 24 países. No site do grupo os pesquisadores afirmam que o Manifesto das Humanidades Digitais desenvolvido no ThatCamp 2010 compreende a expressão Humanidades Digitais como um eixo transdisciplinar que “incorpora os métodos, os dispositivos e as perspectivas heurísticas das ciências humanas e sociais, ao mesmo tempo em que mobiliza as ferramentas e perspectivas singulares abertas pela tecnologia digital”[3].

A experiência da UCL – Centre of Digital Humanites[4] em Londres, fundado em 2010, tem importante destaque no debate, pois é um centro que atravessa vários campos do conhecimento científico no impacto cultural das expressões digitais contemporâneas. O centro está fundado na premissa de que o DH (Digital Humanities) é uma área de estudos interdisciplinares que compreende os meios digitais como mediadores de outras linguagens como textos, dados e objetos culturais precedentes. Nessa tradição, a cultura digital colabora estendendo radicalmente os usos de dispositivos anteriores como o texto, a música, o audiovisual, o livro. Em todos esses centros, observamos que a orientação conceitual está voltada para análise da cultura digital como campo de mediação com formas precedentes de conhecimentos, sistemas de pensamentos e suportes mnemônicos fora da mente. Assim, passamos agora ao diálogo sobre como o conceito de antropologia digital pode contribuir para esse debate.

O conceito de antropologia digital

A proposta do campo teórico da subdisciplina da antropologia digital é a de estabelecer pontes de reflexão entre o digital, a cultura e as redes de sociabilidades. Nesse contexto, Miller e Horst (2012) definem seis princípios que seriam os norteadores dessa perspectiva. A primeira noção vai salientar a dimensão dialética da cultura digital.  Os contrastes dessa visão dialética se expressam na noção de que o digital, embora possa ser reduzido ao código binário, será também um espaço de produção de muitas diferenças e pluralidades. Os estudos de diversas experiências etnográficas comparadas em países como Turquia, Índia e Brasil (Costa, 2016; Spyer, 2017; Machado, 2017) revelam como os usos das mídias digitais em diferentes culturas locais podem ter significados eminentemente particulares. Em Mardin, na Turquia, por exemplo, nota-se que em função da hipótese da vigilância cibernética pelo estado, as redes sociais são usadas para tornar público apenas temas pouco comprometedores do ponto de vista político. Assim, os ativistas quando usam o Facebook para mobilização de suas causas, por exemplo, tendem a usar perfis fakes para garantir o anonimato nas publicações (Costa, 2016). Já na Índia, as redes de sociabilidade dos grupos familiares tendem a se espelhar nas redes sociais. Em um vilarejo indiano nomeado Panchagrami, segundo o antropólogo Venkatraman (2017), seus moradores tendem a vivenciar uma experiência cultural ainda marcada pela ideologia de castas e subcastas. Nessa cultura, o WhatsApp tem a expressiva função de garantir as sociabilidades nas redes familiares e é a principal plataforma para acomodar as trocas de comunicação local entre pares. No Brasil, nas favelas do Cantagalo, Pavão e Pavãozinho, os jovens moradores que possuem smartphones tem, em média, de 15 a 20 grupos de amigos na plataforma do WhatsApp, em uma escala de sociabilidade de gradações entre grupos como os amigos mais íntimos até os apenas conhecidos, traduzindo a experiência da cultura participativa e coletiva do território para o mundo das redes sociais (Machado, 2017). Assim, observa-se, nas etnografias particulares de cada cultura, o diálogo entre construções discursivas mais universais e particularidades da experiência local. O que nos leva à segunda parte dessa acepção.

A dialética da cultura digital propõe que além de produzir localismos e universalismos, também seus efeitos serão contraditórios, positivos e negativos. Como argumenta Miller (2011) em Tales from Facebook, no seu trabalho de campo em Trinidad, o Facebook é nomeado como “fasbook” fazendo referência às experiências socioculturais locais: “fas” significa fofoca na comunidade local e revela o sentido de trocas comunitárias inspirando-se na cultura paroquial. O argumento dominante aqui é de que o Facebook é personalizado em Trinidad para expressar-se como extensão da rede de sociabilidade entre pares. No estudo Kids online, conduzido na London School of Economy por Livingstone (2009), o argumento dominante é de que crianças e jovens estão experimentando novos aprendizados com o uso de plataformas e dispositivos digitais e que as estruturas de cognição recriam os processos de media literacy – apropriação de habilidades de aprendizados para usos dos dispositivos digitais. No projeto de mapear habilidades e apropriações de sentidos dos usos das TICs (Tecnologias de Informação e Comunicação), Livingstone afirma que as oportunidades são mais expressivas do que os riscos para a navegação digital entre crianças e adolescentes. Ela salienta, por exemplo, que os dispositivos digitais colaboram para ampliar o sentido de aprendizado colaborativo e também os modos de participação cívica, explorando a capacidade de criação com o estímulo a produção de novos conteúdos e permitindo o exercício de novas possibilidades de expressão de identidades. Em contrapartida, os riscos também se intensificam com contatos com pessoas desconhecidas, acesso a conteúdos ilegais ou impróprios para a idade, como vídeos violentos ou que incitam a sexualidade precoce (como estímulos de sites pornográficos), ou, ainda, exposição a conteúdos comerciais não regulamentados, publicidade não desejada ou acesso a conteúdos piratas. Livingstone (2009) aposta na importância da supervisão dos adultos e na criação de conselhos consultivos da sociedade civil para mediação das relações entre crianças e culturas digitais.

O segundo princípio da antropologia digital está fortemente relacionado ao conceito de mediação e também argumenta sobre a hipótese da autenticidade nas relações pré e pós era digital. Na perspectiva de Miller e Horst (2012), os seres humanos não passaram a ser mais ou menos mediados em função das tecnologias digitais. Os autores compreendem que diversas posições teóricas tendem a tratar como lamento a noção de perdas e declínios no contexto das novas formas de sociabilidade digital. A noção de habitus em Bourdieu (1977) dialoga bem com o tema das mediações, pois propõe a relação entre estrutura e agência. Para o autor, o habitus é uma categoria conceitual que faz relação entre as referências sociais estruturantes e os processos de agenciamento que conformam as subjetividades dos indivíduos. Nesse sentido, é também uma categoria socioconstrutivista, que se firma no processo de socialização e no contexto histórico. Imaginando, portanto, o habitus como uma matriz cultural na era digital é possível sugerir que as relações socioculturais são mediadas pelas novas tecnologias. Nessa direção, Miller et al (2016) apresentam o trabalho de nove diferentes etnografias com as culturas digitais ao redor do planeta no livro How the world changed social media. A perspectiva aqui é imaginar que as relações sociais de cada grupo cultural produzem mudanças nas mídias sociais e não o contrário.

De forma similar, Miller, em Stuff (2010), publicado no Brasil como Trecos, troços e coisas (2014), argumenta que o sári é a vestimenta que funciona como mediadora dos papéis sociais maternos na cultura hindu. A ponta do sári, denominada “pallu”, serve como apoio para os cuidados maternais, assim como parte do pano da vestimenta acolherá a criança. Assim, Miller (2010) se reporta à tese de Winnicott sobre os “objetos transicionais”, que fazem mediações afetivas entre espaços ou lugares para as crianças, como, por exemplo, entre a escola e a casa. O autor associa a noção de objetos transicionais ao conceito do sári para os bebês indianos. De acordo com esse pensamento, os meios digitais, assim como outros objetos, são compreendidos como mediadores das relações socioculturais em curso.

Na terceira acepção, a dialética da antropologia digital na vida cultural articula-se entre o holismo e o particularismo. As experiências de normatividades ou usos criativos da tecnologia vão se dar na associação com os modos de apropriação das culturas locais. Geismar (2012), por exemplo, ao refletir sobre as apropriações epistemológicas da cultura digital para os sistemas de catalogação, acervos e mapeamento do que deve ou não ser considerado patrimônio nos Museus, afirma que as escolhas de como categorizar o patrimônio dependem do modo como cada cultura entende seus dispositivos museológicos e os modos de documentação do legado cultural. Nesse sentido, a experiência do Museu de Favela como um espaço cultural que afirma a política da museologia social na definição do que é ou não memória e patrimônio na cultura social local transporta para a cultura digital o mesmo modo de sociabilidade (Machado, 2017). A proposta de criação do hotsite que fizemos no Laboratório Universitário de Publicidade Aplicada (LUPA ECO-UFRJ[5]) do circuito turístico-cultural Casas-Tela do Museu de Favela do Cantagalo, Pavão e Pavãozinho inspirou-se nessa premissa e, em diálogo permanente com os gestores, procuramos construir um espaço de experimentação digital que revelasse o espírito do projeto de catalogação de memórias sociais e coletivas da comunidade. A foto a seguir revela a estética visual do hotsite e dialoga sobre como a experiência do turismo cultural na comunidade tem um sentido eminentemente local e fina sintonia com os dispositivos culturais do conceito de museologia social.

Identidade visual do hotsite do circuito turístico cultural do Museu de Favela Fonte: Produção: Lupa ECO-UFRJ. Disponível em: www.museudefavela.org Acesso em: 21 de set 2017
Identidade visual do hotsite do circuito turístico cultural do Museu de Favela
Fonte: Produção: Lupa ECO-UFRJ. Disponível em: www.museudefavela.org Acesso em: 21 de set 2017

O quarto princípio trata do conceito de relativismo cultural. O entendimento aqui é de que as mídias sociais não são produtoras de homogeneização, as expressões digitais são plurais e diacrônicas. É preciso investir sempre em um olhar para o ambiente digital como uma invenção local dos seus usuários. O trabalho de Postill (2008) de comparar o engajamento político das classes médias na cultura digital na Austrália e na Malásia elucida bem as diferenças entre a visão paroquial da cultura e as generalizações possíveis. Nos estudos produzidos por antropólogos de diversos países que publicaram Why the world changed social media (Miller et al, 2016) é possível verificar as diferenças culturais que se expressam nas redes sociais. Por exemplo, ao verificar em que culturas é mais forte o hábito de compartilhar senhas privadas dos aplicativos de redes sociais, observa-se que na China rural e na Índia, 83% e 73%, respectivamente, dos entrevistados afirmam dividir suas senhas com familiares ou amigos. Em contrapartida, no Brasil apenas 37% dizem ter esse hábito, assim como apenas 28% na Inglaterra. Outro tema interessante é observar o número de entrevistados que usam mais de um perfil nas redes sociais com um nome diferente do seu. No Brasil, 92% dizem que possuem apenas um perfil e não têm o hábito de criar perfis com outros nomes, já na China rural somente 26% possuem apenas um perfil, enquanto na China industrial são apenas 8%. Nestes dois universos pesquisados, a emergência de perfis fakes é alta. Outro fenômeno interessante, que revela diferenças culturais, é a discussão sobre a possibilidade de uso das mídias sociais na escola ou no trabalho. No Brasil, 88% dos entrevistados dizem que não é permitido o uso de redes sociais em seus trabalhos ou escolas. O número é ainda maior na Índia, subindo para 92%. Em contrapartida, no Chile, 72% dos respondentes usam as redes sociais em suas atividades laborais ou em estudos escolares. O percentual é também alto na China, 60%. Já na Inglaterra, o número é bem equilibrado: 51% usam redes sociais para atividades de trabalho ou de estudo, enquanto 49% não costumam utilizar as redes sociais no horário de trabalho ou estudo. Tais dados nos levam a uma interessante reflexão sobre os potenciais das redes sociais como forma de literacia ou de construção de aprendizados, mas também como possível campo de dispersão e superficialidade.

O quinto princípio trabalha com a ideia de que há ambiguidades entre a abertura e o fechamento de visão de mundo. Ao mesmo tempo em que a internet promete novas formas de abertura de visão de mundo, muitas vezes cai em novos constrangimentos e controles. Miller e Slater (2000) discutem o quanto o ambiente digital promove a dinâmica da liberdade normativa, prometendo novas formas de aberturas, enquanto de modo ambivalente, pode ser um espaço para controle e supervisão de governos e regimes mais fechados. Por exemplo, no estudo de Costa (2016) na Turquia foi possível identificar que mulheres em Mardin, usam o WhatsApp, uma mídia de uso mais privado, para o compartilhamento de imaginários sobre as liberdades do gênero feminino em países europeus de tradições democráticas; em contrapartida, em seus usos do Facebook, a tendência dominante é de uso de imagens que reafirmem os estereótipos das mulheres vocacionadas para a vida familiar, a introspecção e os cultos religiosos na regulação da lógica de uma sociedade patriarcal.

A última noção vai refletir sobre a relação entre cultura material e cultura digital. Como argumenta Miller (2010) em Stuff, a melhor forma de darmos atenção à nossa humanidade é nos aprofundarmos nas relações com a materialidade. A partir disso, Miller delineia a proposta de uma teoria social dos objetos. Em sua percepção, os artefatos fazem mais do que expressar as humanidades. E não são só as sociedades modernas e industriais que se relacionam com a cultura material. O autor relembra que os anéis do kula descritos por Malinoviski (1976) – sistemas de trocas entre grupos de tribos vizinhas nas ilhas Trobriand na Nova Guiné – produziram lógicas simbólicas interessantes nas transações entre objetos, como braceletes, conchas, colares e canoas.  A complexa rede de relações está ancorada na noção de fama, pois a ideia de reputação, tanto de viajantes como objetos que vivem aventuras, simbolicamente marcam a distinção. Assim, uma concha individual ganha reputação pelas viagens que faz: objetos são dotados de sentidos sociais. No livro Tales from Facebook, Miller (2011) retoma as discussões das redes do Kula, em especial o debate de Nunn (1986) sobre a Fama de Gawa, para fazer uma analogia com a fama e as redes de sociabilidades no Facebook.

Retomando os princípios da cultura material, Miller em Materiality (2005) argumenta que, em uma primeira visão, as experiências religiosas tendem a discursar a favor de uma crítica à materialidade. A ideia de transcendência está presente em praticamente todos os discursos religiosos. No caso do Hinduísmo, a noção de maya trata exatamente da crítica à ilusão da materialidade e o objetivo da conexão espiritual é a transcendência do mundo físico. Contudo, Miller supõe que há contraditoriamente a valorização do imaterial na cultura material das religiões. Ele se reporta ao caso dos cristãos apostólicos do Zimbabue que reivindicando um outro lugar fora da adoração iconoclasta dos católicos e dos rituais protestantes, imaginavam-se em um sistema de culto especial onde tudo que fosse material deveria ser banido. Assim, o livro como objeto seria substituído pela mentalização das escrituras sagradas, o templo pelo campo aberto. O que se observa nesse caso é que no movimento de retirada de tudo que era material, os poucos objetos que restaram para as cerimônias eram supercultuados, como o mel sagrado, símbolo do poder espiritual. O argumento defendido pela antropologia é de que as religiões sempre vão construir suas mediações com a cultura material, mesmo nos casos de redução de objetos mediadores.

Na cultura digital, os artefatos fazem parte da infraestrutura e da tecnologia. Depois há a materialidade dos conteúdos digitais e, ainda, a materialidade dos contextos sociais onde a cultura digital se insere. Como afirmam Miller e Slater (2012), as tecnologias da comunicação são, sobretudo, gêneros culturais em forte relação com a materialidade das suas condições de produção.

Humanidades digitais e theory of attainment

Em Webcam, Miller e Sinanan (2014) refletem sobre as relações entre humanidades, cultura e tecnologia. Os autores se reportam à discussão platônica em Phaedrus sobre a mediação da escrita como tecnologia que surge para armazenar a memória em um suporte fora da mente. Em Phaedrus, Platão afirma a perda da autenticidade com a migração do registro para outro lugar que não os recursos internos da mente humana, provocando a perda qualitativa da criatividade e da memória. Os debates desde então giram em torno da perda da essencialidade humana com as novas tecnologias ou a superficialidade dos registros. Em contrapartida, os autores adotam a expressão theory of attainment, argumentando que as tecnologias emergentes sempre mantêm forte conexão com as experiências socioculturais em curso. Se no contexto da webcam e nas comunicações interpessoais por vídeos temos novos sentidos para tratar do tema da autoconsciência, da copresença ou da intimidade, todos esses conceitos foram construídos historicamente em cada época, a partir dos suportes ou dispositivos disponíveis no contexto temporal.  Com as trocas pela webcam, os sujeitos podem passar horas em conversação, trocando experiências em vídeo onde há a possibilidade de observação de sua autoimagem no canto da tela. Assim, a interação não é só com o outro, mas consigo mesmo.

Os autores argumentam que as experiências de mediatização no contexto digital nos colocam diante do dilema: analisar o quanto as experiências tecnológicas alteram o nosso senso de humanidade e, em contrapartida, admitir que não nos tornamos pós-humanos na cultura digital. Assim, a proposta é investigar o que muda nos nossos sistemas de consciência, nas linguagens, nos usos sociais e nas mediações, sem compreender esse movimento como perda da condição de humanidade.  Nesse sentido, dois pressupostos fundamentam a tese: a investigação dos modos de mediação e a análise da influência do digital nas experiências de cognição e no desenvolvimento de habilidades humanas.

Para Miller e Sinanan (2014), o novo da experiência da webcam é a possibilidade de auto-observação além dos outros, alterando e ampliando as percepções sobre si. Contudo, essa experiência está fortemente relacionada com as tradições psicanalíticas da autoconsciência, orientadas pela perspectiva freudiana do mito do Narciso ou pelo debate da fase do espelho na tradição lacaniana. Quanto ao conceito de intimidade, a perspectiva do always on ou “os sempre conectados” abre espaço para discussão de novos modos de sociabilidades para imaginar como as pessoas podem viver juntas na cultura digital embora vivam separadas presencialmente. Os estudos etnográficos de Miller e Mandianou (2012) nas Filipinas, com mães que migraram para Londres e deixaram seus filhos no país de origem, apontam bem para essa dinâmica. Assim como a noção de copresença se amplia e vai produzir consequências positivas e negativas na cultura digital. Por exemplo, na relação entre pais e filhos e sistemas de supervisão parental, os telefones celulares representam, paradoxalmente, a possibilidade de controle e redução da autonomia dos jovens e a ampliação da segurança e, ao mesmo tempo, a possibilidade de mais autonomia dada a facilidade de geolocalização.

Os processos de mediação são fortemente relacionais no debate sobre as humanidades. Goffman (1956), ao refletir sobre as representações do eu na vida cotidiana, refutava a ilusão da comunicação não mediada e naturalizada. A sua tese é de que todas as relações, até mesmo as interpessoais, são mediadas por interjeições, gestualidades, sistemas sígnicos. Assim, o conceito de “frame” ou “enquadramento” é útil para o entendimento da tese. Segundo o autor, em cada interação social, os sujeitos atuam a partir de papéis sociais que se organizam no fluxo social. Nesse sentido, retomamos aqui a noção de que as relações mediadas pelas tecnologias digitais são tão autênticas quanto as relações face-a-face.

Esse é o pressuposto central para o desenvolvimento do conceito de polymedia (Mandianou; Miller, 2012) na antropologia digital. Na genealogia do conceito encontramos a palavra “poly”, que na tradição da Grécia antiga refere-se à ideia de múltiplos, diversos. Assim, polymedia se reporta ao processo de escolha do público em um conjunto de mídias possíveis. O que interessa nesse processo é a compreensão do que motiva, por exemplo, um jovem a escolher o Facebook como plataforma e não o Instagram ou o Snapchat. A hipótese que fundamenta o debate é de que essas escolhas estão referidas a um conjunto de variáveis: acesso à infraestrutura, custo, experiências de literacia, empatia, vínculos emocionais, regras de sociabilidade. O conceito de polymedia tem também forte relação com a noção de media ecology (Slater; Tachi, 2004), o qual tende a dar significado mais aos nichos ocupados por cada meio: não apenas um meio em relação ao outro, mas também a todo o sistema de comunicação, como transporte e questões de uso relacionadas à política e à saúde. A tese de Mandianou e Miller (2012), portanto, é a de que, na medida em que o custo passa a ser uma questão de background – em que cada vez mais se democratizam os acessos à tecnologia, por exemplo, com a flexibilização de pacotes para compra de serviços de smartphones – o foco passa a residir na análise dos affordances, ou seja, das motivações para uso de plataformas e aplicativos. E, nesse caso, interessa investigar as relações de poder entre usuários, mediações e plataformas, as capacidades de literacia do público, os vínculos emocionais, a familiaridade ou não com dispositivos, aplicativos e plataformas. Com o intuito de estudar as condições de polymedia, o gráfico a seguir mostra as motivações de uso do Facebook entre jovens na comunidade do Cantagalo, Pavão e Pavãozinho.

Conteúdos mais compartilhados no Facebook Amostra: 400 entrevistas entre jovens de 18 a 35 anos, distribuídas proporcionalmente, segundo os dados da PNAD- IBGE e UPP- Social.
Conteúdos mais compartilhados no Facebook
Amostra: 400 entrevistas entre jovens de 18 a 35 anos, distribuídas proporcionalmente, segundo os dados da PNAD- IBGE e UPP- Social.

Nos estudos de literacia nas etnografias comparativas do projeto Why we post, Miller et al (2016) desenvolveram o infográfico a seguir que mostra como as experiências de uso das plataformas digitais em uma escola em um vilarejo inglês desenham diferentes tipos de sociabilidades, produzindo uma escala: enquanto o Twitter é utilizado para ampliar o sentido de fofoca, o WhatsApp auxilia no fortalecimento dos laços sociais com amigos mais próximos, e o Facebook ocupa melhor o papel de broadcasting media, no qual o uso é compartilhado por muitos atores sociais como jovens, pais, avós, professores e redes mais ampliadas de amigos.

Usos das redes sociais com jovens de 11-18 anos na Inglaterra Fonte: MILLER, Daniel et al. How the world changed social media. UK: UCL Press, 2016, p. 5
Usos das redes sociais com jovens de 11-18 anos na Inglaterra
Fonte: MILLER, Daniel et al. How the world changed social media. UK: UCL Press, 2016, p. 5

Um outro conceito importante que atravessa o debate sobre humanidades e culturas digitais é a noção de memórias mediadas, que aparece no trabalho de Van Dijck (2007), Mediated memories in the digital age. De acordo com a autora, o conceito reflete sobre atividades e objetos produzidos e apropriados por meio da cultura tecnológica para criar e recriar o sentido de passado, presente e futuro dos sujeitos sociais em suas relações com os outros. Para estudar as memórias mediadas, a pesquisadora propõe uma matriz com dois eixos: um horizontal, que trata do debate sobre identidades pessoais e coletivas na relação com as manifestações das memórias culturais digitais; e o segundo vertical, que aborda a relação com o tempo, integrando passado e futuro no presente, misturando lembranças e projeções, discutindo a fusão entre preservação e criação. A dimensão criativa das memórias mediadas, segundo Van Dijck, contribui para a sua função formativa e comunicativa das identidades individuais e coletivas.

Todas essas noções importam para desenhar as contribuições da antropologia digital no estudo das humanidades. Como vimos, na perspectiva antropológica o que nos interessa é explorar as percepções sobre as motivações de usos de dispositivos e plataformas digitais. Mais ainda, é refletir sobre as condições das mediações entre indivíduos, grupos sociais e a cultura tecnológica.

Considerações finais

O conceito de humanidades digitais ainda está longe de se consolidar, mas já delineia seus princípios fundadores como campos transdisciplinares de análise. O objetivo da reflexão neste artigo foi proporcionar possíveis aproximações teóricas entre o conceito de humanidades digitais e a antropologia digital na tradição inglesa. Como vimos, nos estudos do Centre for Digital Humanities da UCL[6] em Londres, há projetos dedicados a criação de plataformas digitais para suporte de patrimônios museológicos, assim como para estudos arqueológicos. Há um estudo muito interessante sobre a importância da cultura digital na construção da perspectiva multicultural das imigrações europeias. Outro estudo coloca ênfase na participação da cultura digital nos aprendizados de pessoas com necessidades especiais. O programa, que se chama Learning Disabilities, estuda as experiências cotidianas de uso de plataformas digitais no seu papel de aprimoramento ou facilitação da identidade pessoal e autodefesa de pessoas com necessidades especiais ou quaisquer barreiras à sua exploração plena e produtiva. Outro projeto relevante é o USEUM: um fórum virtual que se propõe a ser uma plataforma colaborativa que reúne artistas, museus e amantes das artes e tem uma dimensão de financiamento por crowdfunding também. Vale observar que alguns projetos são orientados para a criação de bancos de dados, portanto, com diretriz metodológica mais quantitativa, enquanto outros colocam ênfase na dimensão qualitativa da mediação entre culturas digitais e humanidades.

E é nessa última perspectiva que salientamos as contribuições da antropologia digital por sua natureza voltada para a compreensão das relações socioculturais entre humanos e tecnologias.  Como observamos, a perspectiva antropológica coloca em evidência a noção de mediação como central: na era pré-digital os seres humanos viviam em contextos tão mediados quando na contemporaneidade. A interação face a face é vista nessa tradição como relação tão mediada quanto as experiências digitais: gestualidades, comportamentos não verbais ou a própria linguagem oral. Assim, dois conceitos se agregam à noção: o mundo digital é visto como tão autêntico quando outras formas precedentes de comunicação, não tornando os seres humanos mais ou menos mediados em função de seus dispositivos. O outro conceito é a ideia de frame ou enquadramento em Goffman (1956) que nos permite a compreensão de que cada estratégia de mediação acionará modos distintos de realização, explorando diferentes habilidades, expressões de linguagens, sentidos de representação. Assim, o que interessa à perspectiva antropológica é conhecer as especificidades de cada modo de mediação entre humanos e tecnologias em contextos culturais locais. Chegamos, então, a mais uma noção que é o diálogo entre o local e o global. Em um primeiro momento, as experiências da internet podem ser percebidas como orientadas para dispositivos de universalização de sentidos. O que os estudos etnográficos citados nesse trabalho (Miller & Horst, 2012; Miller & Sinanan, 2014; Costa, 2016, Machado, 2017; Venkatraman, 2017) evidenciam é que se na Turquia as questões das imaginações sobre identidades femininas povoam as trocas sociais de mulheres por WhatsApp, na Índia – que é uma sociedade com base na família e nas relações hierárquicas que o imaginário das castas projetou – o WhatsApp é muito utilizado para reafirmar os laços familiares. Já em uma escola de um vilarejo inglês, jovens utilizam o Twitter para ampliar o conhecimento da vida dos famosos, enquanto nas favelas do Cantagalo, Pavão e Pavãozinho é possível ver o uso das redes sociais como forma de atuação política, no sentido de ampliar as referências da imagem da vida local para além de representações recorrentes na mídia que enquadram a favela como local de violência e marginalidade ou como lugar cool, da moda, sem que os valores locais sejam mencionados. Assim, diversos jovens das comunidades fazem usos criativos para reafirmar a identidade do território associando discursos no Facebook que valorizam a cultura local: a musicalidade, as tradições religiosas, as experiências de sociabilidade, as reivindicações por direitos ao estudo, a voz, o entretenimento, a moradia digna. Assim, as redes sociais colaboram na construção de repertórios mais plurais das representações sociais das favelas. Todos esses exemplos reafirmam a tese de que em cada contexto cultural, as redes sociais têm sentidos fortemente locais. Assim, a antropologia nos ensina que os vínculos entre humanidades e culturas digitais salientam a alteridade, as diferenças e os modos de usos distintos que fazem da experiência digital um universo rico para análise e investigação.


* Mônica Machado é doutora em Comunicação e Cultura – PPGCOM ECO-UFRJ, cursou pós-doutorado em Antropologia Digital pelo departamento de Antropologia UCL-London – UK, professora da Escola de Comunicação da UFRJ e do PPG- EICOS – IP – UFRJ. E-mail: monica.machado@eco.ufrj.br

 

Referências

COSTA, Elisabetta. Social Media in Southeast Turkey. London: UCL Press, 2016.

GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. São Paulo: Editora Vozes, 1956.

HINE, Christine. Ethnography for the internet. Embedded, embodied and everyday. London: Bloomsbury Academic, 2015.

HORST, Heather; MILLER, Daniel. Digital Anthropology. London: Bloomsbury Academic, 2012.

LIVINGSTONE, Sônia. Children and internet. Cambridge: Polity Press, 2009.

MACHADO, Mônica. Antropologia Digital e experiências virtuais no Museu de Favela. Curitiba: Appris, 2017.

MANDIONAU, Mirca; MILLER, Daniel. Migration and New Media: trasnational families and polymedia. London: Routledge, 2011.

MALINOVISKI, Bronislaw. Argonautas do Pacífico ocidental: Um relato do empreendimento e da aventura nos arquipélagos da Nova Guiné melanésia. São Paulo: Abril Cultural, 1976. 436 p.

MILLER, Daniel. Tales from facebook. Cambridge: Polity, 2011.

MILLER, Daniel. Stuff. London: Polity Press, 2010.

MILLER et al. How the world changed social media. London: UCLPress, 2016.

MILLER, Daniel; SINANAN, Jolynna. Webcam. London: Polity Press, 2014.

MILLER, Daniel; SLATER, Don. The internet: an ethnographic approach. UK: Bloomsbury Academic, 2000.

NUNN, Nancy. The fame of Gawa. A symbolic study of value transformation in a massif (Papua New Guinea) society. Durham and London: Duke University Press, 1986.

PINK, Sarah. Doing Visual Ethnography. Revised and expanded 3rd. edition. London: Sage, 2013.

POSTILL, John. Localising the internet beyond communities and networks. New media & society, v.10, n.3, p 413-431. EUA: Sage Publication, 2008

TERRAS, Melissa et al (eds) Defining digital humanities. UK: Routledge, 2014.

VAN DIJCK, José Maria. Mediated memories in the digital age. Stanford, CA: Stanford University Press, 2007.

VENKATRAMAN, Shriram. Social Media in South India. London: UCL Press, 2017.

 

Notas

[1] Disponível em: https://adho.org/ Acesso em: 20 set. 2017.

[2] Disponível em: https://humanidadesdigitais.org/breve-panorama/ Acesso em: 10 set. 2017.

[3] Disponível em: humanidadesdigitais.org/breve-panorama/ Acesso em: 10 set. 2017

[4] Disponível em: http://www.ucl.ac.uk/dh Acesso em: 1 out 2017.

[5] O Lupa é um projeto de extensão da Escola de Comunicação cadastrado no SIGPROJ da UFRJ, que tem a coordenação docente de três professoras: Beatriz Lagoa, Marta Pinheiro e Monica Machado.

[6] Disponível em: http://www.ucl.ac.uk/dh/projects Acesso em: 9 out 2017.

dossiê
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UMA TOPOGRAFIA DAS HUMANIDADES DIGITAIS NA CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO

Resumo: A informação tem assumido importância crescente na sociedade contemporânea, na qual está reconhecidamente associada ao poder econômico e cultural, o que ajuda a entender, em linhas gerais, como a entidade informação adquiriu o status que conhecemos atualmente. É justamente neste cenário global que a informação se tornou cada vez mais difundida, produzida e ressignificada no que Gilles Lipovetsky intitulou “ecranocracia”. Nossas formas de perceber o mundo, de interagir nele e por ele, de se comunicar mudaram em face da cultura digital. No tocante à produção do conhecimento, buscamos, aqui, refletir sobre os aspectos críticos, técnicos e práticos de um movimento transdisciplinar que se convencionou chamar de Humanidades Digitais (HD) e como este se adere à Ciência da Informação. Tal fenômeno parece ser expressão e impressão da estética informacional vigente cuja aplicabilidade de ferramentas digitais, entre outros recursos computacionais, vem redesenhando a “forma” como o conhecimento das humanidades vem sendo produzido e comunicado.

Palavras-chave: Humanidades Digitais, visibilidade, informação, ciência da informação, crítica.

Abstract: Information has assumed increasing importance in contemporary society, in which it is admittedly associated with economic and cultural power, which helps to understand, in general terms, how the information entity has acquired the status that we all recognize nowadays. It is indeed in this global scenario that information became increasingly widespread, produced, and resignified in what Gilles Lipovetsky called “ecranocracy.” Our ways of perceiving the world, of interacting in and through it, and also communicating have changed in the face of digital culture, and in terms of the production of knowledge, we seek here to reflect on the critical, technical and practical aspects of a transdisciplinary movement that is conventionally called of Digital Humanities (DH) and how it adheres to Information Science. This phenomenon seems to be expression and impression of the current informational aesthetics whose applicability of digital tools among other computational resources has been redesigning the “form” as the knowledge of the humanities has been produced and communicated.

Keywords: Digital Humanities, visibility, information, information science, criticism.

 

Introdução

A informação tem assumido importância crescente na sociedade contemporânea, na qual está reconhecidamente associada ao poder econômico e cultural, o que ajuda a entender, em linhas gerais, como a entidade informação adquiriu o status que conhecemos atualmente. Sua projeção como uma engrenagem fundamental tanto quanto o próprio capital, criou as bases para o que hoje podemos denominar como sociedade da informação. Na visão de Capurro (2007), a sociedade atual atinge esse patamar ao estar caracterizada pela convergência desses fatores com as tecnologias da informação e seus impactos globais.

É justamente nesse cenário global que a informação se tornou cada vez mais difundida, produzida e ressignificada, no que Gilles Lipovetsky intitulou “ecranocracia” (2009). Nossas formas de perceber o mundo, de interagir nele e por ele, de se comunicar e produzir conhecimento jamais foram tão devedoras das telas. Sejam elas smartscreens, ou touchscreens, dados e mais dados trafegam exponencialmente em um volume como nunca antes imaginado. Dados diferentes, advindos de bases heterogêneas, encontram por mediações tecnológicas possibilidades de produzir informações intercruzadas. Esse fenômeno aparentemente banal é claramente visível quando observamos campos do conhecimento e suas respectivas pesquisas, cuja configuração tradicional de suas práxis parecia ainda distante de recursos tecnológicos de ponta.

Esse fenômeno se verifica até mesmo nos campos do conhecimento mais tradicionalmente dissociados dos usos e métodos tecnológicos de ponta no tocante à informação e à comunicação: história, filosofia, ciências sociais, letras entre outros. Seus processos reflexivos nunca foram completamente subordinados aos recursos tecnológicos – senão pelo básico que é a escrita e sua impressão no suporte papel –, principalmente os oriundos de nossa contemporaneidade digital; mas, hoje, têm encontrado através desses os meios e possibilidades de não somente atingir públicos mais extensos e variados em uma flexibilidade temporal característica de nossa era, como têm construído questionamentos, problemas e erigido olhares críticos a fenômenos antes inexistentes e que se apresentam como novos em face da cultura digital e do mundo social que se desenvolve na chamada hipermodernidade (Lipovetsky, 2004).

Sendo assim, é mister que as ciências humanas sejam hoje o grande campo no qual a inserção da computação e de recursos diversos marcados pelo Big Data mais destacam tal inflexão multidisciplinar e que, talvez, mais demande da Ciência da Informação a necessidade de ser discutida, uma vez que informação, seu acesso, suportes, sistemas, usuários – tanto em aspecto público como privado – tornam-se elementos-chave para compreender o que se convencionou chamar de Humanidades Digitais (HD). Tal necessidade já é presente no cenário acadêmico científico internacional, como podemos averiguar em Robinson, Priego e Bawden (2015), Poole (2017) e Koltay (2016), por exemplo, mas ainda há muito a produzir nesse sentido no cenário brasileiro. Em linhas gerais, temos alicerçadas aí as bases para a consolidação de um cenário no qual a Ciência da Informação por vezes atravessada, por outras atualizada pelo digital, configura-se como um cenário imanente ao fenômeno discursivo, metodológico e estético das humanidades digitais.

Intimamente ligada a uma realidade interdisciplinar a Ciência da Informação (C.I.), em sua breve história, tem a “informação” (Souza, 2013) como seu principal objeto empírico e reflexivo. Desde meados dos anos 1960 a Ciência da Informação debruça-se sobre o estudo da informação, de sua gênese, passando por suas intermediações e estruturas, até seus processos de materialização/institucionalização na forma de discursos, sistemas, políticas e regimes capazes e responsáveis pelo que conhecemos como conhecimento. Apesar da área ser relativamente recente, a C.I. vem se consolidando fortemente com a reflexão de pensadores tradicionais e contemporâneos, mas, principalmente, por uma atuação empírica no campo informacional. Esse movimento deu corpo à abordagem matemática do estudo da informação, remodelou conceitos e marcou definitivamente a área informacional com uma ótica peculiar, própria de uma ciência nascida para dar conta desse fenômeno, a despeito de outras formas de trato informacional como a computação ou a comunicação.

Não se comportando indiferentemente ao seu gene interdisciplinar[1], a Ciência da Informação vem se desenvolvendo atenta a essa vocação e inspirando-se por essa natureza[2]. Amparados por essa função, a utilizamos como razão pela qual exploramos sua capacidade interdisciplinar e sua possível dialogia com as Humanidades Digitais. Ou seja, compreendemos que sua característica fundamental nos serve de mote para buscarmos tomar como objeto de análise a relação de caráter contributivo com a área das Humanidades Digitais (HD).

As HD detêm, em suas dimensões metodológicas e objetivas, uma razoável proximidade funcional com a Ciência da Informação e, mesmo assim, a relação entre as duas ainda é relativamente incipiente e praticamente nula[3] no contexto acadêmico brasileiro. Contudo, ao observarmos os grupos de pesquisa na base de dados do CNPq, identificamos que a maioria dos grupos com alguma ligação às HD é das ciências sociais aplicadas e, por sua vez, da Ciência da Informação. Muitos deles com pouco mais de três anos de existência, jovens portanto. Assim, parece ser acertado que falemos ou sugiramos que há uma tendência em andamento e de produção e construção de um “veio” produtivo das HD, possivelmente na C.I.

Com sete grupos de pesquisa das ciências sociais aplicadas, cinco da área da linguística, letras e artes, três oriundos das ciências humanas e um apenas da engenharia, o horizonte das HD no Brasil parece ser composto em maioria pela grande área das ciências sociais aplicadas onde a C.I. se insere, sendo esta, em todos os casos levantados, a responsável pela condução dos estudos nos grupos referidos.

Gráfico de distribuição dos grupos no CNPq, com relações em estudos de humanidades digitais, por área. Fonte: dos autores
Gráfico de distribuição dos grupos no CNPq, com relações em estudos de humanidades digitais, por área. Fonte: dos autores

Sendo assim, é plausível afirmar que as Humanidades Digitais vêm se projetando no mesmo contexto de sociedade da informação diante da realidade da “explosão informacional”, seguida do comumente conhecido “dilúvio de dados”, com foco nas fontes de informação digitais. De fato seriam elas, as HD, produto dessa mesma sociedade da informação. Ainda em questão sobre se é uma área ou campo, subárea, ou “comunidade de práticas” (Alves, 2016), as Humanidades Digitas já se desenvolvem muito rapidamente por meio da crescente criação de centros acadêmicos e projetos de Humanidades Digitais.

Podemos afirmar que as Humanidades Digitais surgem para dar conta de uma realidade contemporânea de presença e intermediação tecnológica no âmbito das fontes tradicionais de informação, que antes eram usufruídas apenas em seu formato físico. Trata-se de um movimento que, ao impactar a área das ciências humanas e sociais, levam aos pares a percepção de que as pesquisas agora passam a ser mediadas pelas tecnologias. Amparadas pela digitalização, a tendência irreversível de criação de fontes digitais colocou às ciências humanas o desafio de incorporar novos métodos à sua tradicional metodologia de pesquisa. Uma “sedução” pelo techne que se consuma não apenas pelo apelo ao emprego das novas tecnologias da informação e comunicação em diferentes etapas da pesquisa científica em humanidades, como também pelo “canal” de busca por recursos para a pesquisa em ciências humanas. O uso da tecnologia digital, portanto, não deve ser considerada dissociada do aspecto político da luta por captação de recursos e disputa no campo científico por desenvolvimento de infraestrutura básica à pesquisa nas humanidades. Com efeito, é nesse cenário que o desafio das humanidades digitais nos convida a refletir sobre suas respectivas novas formas de trabalhar, tornando essencial sua reflexão pelos envolvidos nela.

Fica-nos evidente que a noção geral sobre as Humanidades Digitais possui vertentes implícitas na direção dos estudos informacionais tão característicos da Ciência da Informação. Essa ideia, somada à interdisciplinaridade, nos motiva a buscar relações entre as duas disciplinas. Assim, nossa proposta de aproximação pretende encontrar o(s) ponto(s) de interseção que podem ser trabalhados entre as duas temáticas.

Desafios em curso de uma proposta transdisciplinar

Buscamos aqui propor um mapeamento da relação entre a área das Humanidades Digitais com a Ciência da Informação, compreendendo tal relação como um espaço transversal entre as respectivas áreas. Dessa forma, é proposta uma análise inter, trans e multidisciplinar dos campos a partir da utilização do software VOSviewer para construção de redes de relacionamento dos termos mais recorrentes na literatura acadêmica indexada por digital humanities, visando encontrar uma proximidade peculiar gerada pelo cruzamento das respectivas fronteiras disciplinares. Com isso, seria possível não apenas estimular o debate sobre as Humanidades Digitais a partir de uma perspectiva da Ciência da Informação, como verificar a produção da C.I. relacionada a esse contexto disciplinar marcado pela cultura tecnocientífica digital. Essa tentativa viabilizaria não somente relacionar conceitos presentes na Ciência da Informação que se assemelham às propostas das Humanidades Digitais, como desvelar um panorama quantitativo sobre a produção em HD no âmbito da C.I.

Como um dos pontos de partida, tratamos da relação semântica-conceitual entre as Humanidades Digitais e a Ciência da Informação. Para tal, a aplicação do software como ferramenta nos permitiu enxergar uma rede de termos/conceitos com força representativa além de suas relações com demais outros termos. Assim, o VOSviewer, além de útil enquanto ferramenta metodológica, possibilitou, pelo apelo da visualização dos termos e de suas relações, uma espécie de legitimação da própria prática enquanto atividade familiar aos recursos metodológicos presentes nas atividades de pesquisa e de metodologia nas Humanidades Digitais. Esse conjunto de práticas se configura grosso modo como o trabalho de produção de conhecimentos no âmbito de uma pesquisa bibliométrica mediada pelo emprego de um software capaz de conjugar um volume de dados que tornaria a priori inviável a pesquisa, caso fosse realizada sem tal recurso computacional.

O apelo à visualidade presente no resultado entregue pelo VOSviewer, assim como tantos outros artefatos tecnodigitais acompanhados de suas respectivas linguagens e gramáticas imagéticas, tem redesenhado o cenário de produção do conhecimento e de comunicação e popularização da ciência. Esse fator, ademais, não deve ser tratado de maneira ingênua. Com efeito, nossa sociedade é pautada pelo visocentrismo (Zhao; Zhang, 2013). O apelo visual ocupa, portanto, o centro de nossos sentidos e, certamente, é levado em conta pela maior parte dos sistemas de informação e comunicação produzidos pelo homem. Nesse traçado, encontramos as Humanidades Digitais como um campo cujas práticas estão intimamente ligadas à inovação da forma de comunicar resultados e visualizar relações e demais análises por meio das tecnologias digitais como o VOSviewer, por exemplo.

O domínio desses softwares, contudo, não é conhecimento comum entre os cientistas da informação e aqueles provenientes das humanidades. Seu uso, assim como de outras ferramentas digitais, vem redefinindo os perímetros disciplinares e suas margens mais ou menos absorventes, além daqueles novos detentores de capital cultural (Bourdieu, 2008, p. 118-119) no campo científico das humanidades que possuem competências informacionais para tal.

Para contribuir com a execução da pesquisa em questão, utilizamos uma revisão de literatura para mapear a produção acadêmica da área desejada como ponto de partida para o desenvolvimento deste artigo. O objetivo desta revisão foi recuperar artigos que tratem de Digital Humanities e suas possíveis inclinações para a Ciência da Informação. Na intenção de obter um esboço temático da relação que se espera, a expectativa de resultado da revisão de literatura foi visualizar as temáticas comuns a partir da análise promovida pelo software VOSviewer.

Partindo dessa proposta, elaboramos uma expressão de busca[4] para dar conta de levantar a publicação sobre Digital Humanities em inglês, espanhol e português para proceder à pesquisa nas bases de dados eleitas para esta revisão. Adotou-se como padrão o filtro “abstract” em todas elas e, naquelas em que essa opção não era fornecida, procurou-se utilizar o equivalente mais próximo desde que contemplasse o “abstract” em sua estratégia de recuperação. O resumo foi escolhido como foco da recuperação por ter maiores condições de reunir um maior número de termos utilizados na expressão de busca.

O primeiro desafio da pesquisa encampada se deu na expectativa de resultados reportados como resposta à expressão de busca aplicada. Grosso modo, a base que melhor atendeu às expectativas iniciais foi a Scopus por ter como estratégia de recuperação a restrição aos resumos, trazendo resultados que continham, efetivamente, as expressões propostas em seus resumos. No geral, as demais bases se utilizam de estratégias particulares para encontrar seus resultados.

No esquema a seguir apresentamos o quantitativo dos resultados recuperados em cada uma das bases, explicitando a forma de gerenciamento da expressão de busca em cada situação.

 

BASE DE DADOS UTILIZADA RESULTADO
GENERALISTAS
Web of Science 732
Scopus 1216
ESPECÍFICAS
Library, Information Science & Technology Abstracts – LISTA 423
Information Science & Technology Abstracts – ISTA 108
Library and Information Science Abstracts – LISA 674

Artigos recuperados pela expressão de busca nas respectivas bases. Fonte: dos autores

 

Descortinando alguns resultados: as humanidades digitais e a C.I.

Os dados foram trabalhados em dois eixos. No primeiro, geramos as redes de relacionamentos nos resultados extraídos das bases consideradas específicas e, no segundo, foram trabalhados os dados das bases tidas como generalistas. No total, excluídas as duplicações de artigos, o corpus total compreendeu-se em 2.172 artigos. As repetições foram administradas e, consequentemente, desconsideradas, com o auxílio do software Mendeley. Dessa forma, as matrizes dos dados extraídos foram administradas de modo a produzir uma visualização para cada proveniência dos dados. Assim geramos o mapa a partir dos dados das bases mais relacionadas ao campo da C.I. como LISTA, LISA e ISTA, ao que denominamos aqui de específicas, além de outro, com dados provenientes de Web of Science e Scopus, ao que denominamos de bases generalistas.

Para as bases específicas, fizemos uso do recurso de criação de mapa embasado em dados bibliográficos, que, enquanto trabalhando com formato .ris, possibilita a análise por co-ocorrência de palavra-chave, com o método de full counting que atribui o mesmo peso para cada link em co-ocorrência. Dessa forma foram localizados com esses padrões 2.720 palavras-chave, que tiveram atribuídas à exigência de 10 como mínimo de repetições da co-ocorrência, o que gerou um grupo de 226 palavras-chave.

Como resultado, obtivemos o seguinte mapa de relações e densidade, sendo exibido abaixo o nível de 500 links de relacionamentos:

Mapa de relacionamento de termos a partir das bases específicas. Fonte: dos autores/VOSviewer.
Mapa de relacionamento de termos a partir das bases específicas. Fonte: dos autores/VOSviewer.

 

Mapa de densidade de termos a partir das bases específicas. Fonte: dos autores/VOSviewer.
Mapa de densidade de termos a partir das bases específicas. Fonte: dos autores/VOSviewer.

 

Na sequência, produzimos o mapa a partir dos dados extraídos das bases generalistas e nestas escolhemos os resumos como objeto para análise. Para esta análise, foi usada a função de criação de mapa embasado em dados textuais. Buscou-se, com essa modalidade, uma mineração dos termos mais recorrentes e seus relacionamentos no campo “resumo”, fugindo, portanto, de uma suposta obviedade das palavras-chave. Sendo contabilizadas, no total, 26.069 palavras, colocamos como critério de corte uma reincidência de 50 vezes por se tratar de um campo que possui muito mais palavras que aquele das palavras-chave. Ou seja, os termos que integram o mapa reincidiram, pelo menos, 50 vezes nos resumos. Atendendo a essa configuração, o resultado apresentado foi de 149 nós ou agrupamentos de termos que se relacionam entre si.  Mais uma vez optamos pela visualização em dois modelos. O de “relacionamento de termos” e o de “densidade de termos”. A ideia foi, novamente, de tornar mais visível os “territórios” de maior relação seja pela conexão entre os termos, seja pela iluminação mais “quente”. As imagens que seguem mostram, portanto, o mesmo resultado, apesar de produzirem formas de leitura diferentes, tendo, na segunda, uma menor complexidade para identificação dos resultados.

 

Assim, tivemos o seguinte mapa de rede de relacionamento e densidade gerado pelo VOSviewer, que, para melhor visualização das relações, foi reproduzido com o nível de 300 links de relacionamentos:

Mapa de relacionamento de termos a partir das bases generalistas. Fonte: dos autores/VOSviewer
Mapa de relacionamento de termos a partir das bases generalistas. Fonte: dos autores/VOSviewer

 

Mapa de densidade de termos a partir das bases generalistas. Fonte: dos autores/VOSviewer.
Mapa de densidade de termos a partir das bases generalistas. Fonte: dos autores/VOSviewer.

 

Os mapas permitem visualizar com nitidez os termos/conceitos mais presentes no corpus e, consequentemente, possibilitam a clarificação da relação entre eles. Mais que isso, representa, grosso modo, um cenário da cultura tecnocientífica em desenvolvimento, na qual o recurso tecnológico e matemático para a comunicação científica e para a visualização de dados parece conferir legitimidade junto aos pares do campo.

Apesar da problematização colocada, é fato que para grandes volumes de dados, o recurso dos softwares como o utilizado aqui é, talvez, a melhor forma para se produzir a análise desejada. É possível identificar mais claramente, por exemplo, a partir da grande rede de relacionamento que os mapas exibem – mesmo quando interpretando apenas os clusters criados –, as áreas principais que interagem para formar tentativa de identificação de uma “topografia” sobre humanidades digitais na literatura científica lato sensu (generalista) e naquela familiar à Ciência da Informação (específica).

Uma constatação pertinente foi a impossibilidade de interpretação de toda a rede de relações mesmo se o tempo não fosse restrito. Como o programa gera uma minuciosa rede de dados relacionados, acreditamos ser profícuo o estabelecimento de um recorte dentro dela para ser privilegiado. Outro ponto importante é a ausência de uma forma de apresentação dinâmica dos mapas exatamente para possibilitar à audiência/leitor uma noção da profundidade do mapa, o que não pode ser viabilizado pela tela estática que o programa disponibiliza para exibição. De toda forma, os mapas nos revelam conceitos que nos permitem inferir sobreposições ou mesmo aproximações das temáticas presentes nas HDs com problemáticas próprias da C.I.

Considerações finais

O VOSviewer é uma ferramenta essencial para visualização semântica de grandes volumes de informação exportados de bases de dados bibliográficas; por essa razão, se apresenta como ferramenta apropriada para manuseio dos dados da pesquisa em curso. A importância do software de análise e construção de redes de relacionamento semântico se dá, principalmente, pela interoperabilidade dos padrões utilizados pelas grandes bases de dados bibliográficos que podem ser trabalhados na extensão .ris[5].

Os mapas de redes de inter-relação permitem identificar as temáticas propostas pela revisão de literatura e consecutivamente pelo objetivo da pesquisa. Dessa forma, com o VOSviewer, temos a possibilidade de aplicar uma lógica de análise automatizada a um processo da pesquisa tradicional que seria impossível por ação exclusivamente humana.

Ainda assim a aplicação desse método corrobora as práticas das humanidades digitais por corresponder às práxis desse novo campo que consiste, basicamente, na delegação ao automatismo tecnológico e à estética comunicacional científica das ações que outrora eram executadas manualmente.

Com efeito, o emprego de tais mapas e demais recursos computacionais calcados pela estética informacional vigente evidencia duas questões que são preponderantes para a compreensão do impacto que as Humanidades Digitais representarão no campo epistêmico da C.I.: (1) O fato de que as novas tecnologias de informação e comunicação, aliadas às novas linguagens computacionais representam um constante e visível desafio do ponto de vista das competências em informação necessárias àqueles atores outrora já possuidores deste capital. Há novas competências em curso e elas contribuirão para a reflexão não somente metodológica do campo da C.I., como igualmente epistemológica. (2) a cultura visuocêntrica, digital, informacional, na qual nos inserimos hoje estão nos levando a uma possibilidade/necessidade de desenvolver cada vez mais uma teoria crítica para a C.I. e para as Humanidades Digitais.


* Renan Marinho de Castro é doutorando em Ciência da Informação pelo Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação (PPGCI/IBICT-UFRJ), coordenador do Programa de Arquivos Pessoais do CPDOC, bibliotecário responsável pelo atendimento à pesquisa na Sala de Consulta e tratamento técnico do acervo de impressos dos arquivos do CPDOC.

** Ricardo Pimenta é doutor em Memória Social, pesquisador 2 do CNPq (bolsa de produtividade) e Jovem Cientista do Nosso Estado FAPERJ (2018-2020), pesquisador associado do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT) do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e professor permanente do Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação (PPGCI/IBICT-UFRJ).

 

Referências

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Notas

[1] Para Saracevic (1996, p.48) a interdisciplinaridade foi introduzida na CI pela própria variedade da formação de todas as pessoas que se ocuparam com os problemas descritos. Entre os pioneiros havia engenheiros, bibliotecários, químicos, linguistas, filósofos, psicólogos, matemáticos, cientistas da computação, homens de negócios e outros vindos de diferentes profissões ou ciências. Certamente, nem todas as disciplinas presentes na formação dessas pessoas tiveram uma contribuição igualmente relevante, mas essa multiplicidade foi responsável pela introdução e permanência do objetivo interdisciplinar na CI.

[2] Apropriamo-nos de uma segunda nuance para a ideia de interdisciplinaridade que Saracevic (1996) nomeia como campo comum. Para ele o campo comum entre a biblioteconomia e a CI, que é bastante forte, consiste no compartilhamento de seu papel social e sua preocupação comum com os problemas da efetiva utilização dos registros gráficos. Mas existem também diferenças significativas em alguns aspectos críticos. […] Todas estas diferenças comprovam a conclusão que biblioteconomia e CI são dois campos diferentes, com forte relação interdisciplinar e não um único campo, em que um consiste na manifestação especial do outro. (SARACEVIC, 1996, p.49)

[3] Baseando-se na BRAPCI – Base de Dados Referencial de Artigos de Periódicos em Ciência da Informação, principal base de dados brasileira de artigos científicos da área, e ao se pesquisar o tema ‘Humanidades Digitais’ não se tem nenhuma resposta sobre artigos que se dediquem ao tema. Cenário apurado em jan/2016, atualmente esse número é de 6 artigos.

[4] A expressão de busca aplica às bases selecionadas pode ser representada pela string Digital Humanities OR Humanidades Digitales OR Humanidades Digitais.

[5] Mesmo com outros formatos de característica tabulada como .csv serem mais robustos, oferecendo outras possibilidades de métricas, no caso deste ensaio a opção pelo formato .ris foi a mais apropriada.

dossiê
Tempo de leitura estimado: 34 minutos

NARRATIVAS AUDIOVISUAIS ENTRE COLETIVOS ARTÍSTICOS

Resumo: Este texto objetiva discutir os filmes criados por dois coletivos artísticos de São Paulo e do Acre durante o projeto Correspondências. Realizado pela Garapa, o projeto levou oficinas multimídias para cinco capitais brasileiras, as quais operaram como um coletivo de comunicadores, arquitetos, fotógrafos, artistas e videomakers. Como foram construídos os filmes pelos coletivos de São Paulo e de Rio Branco, dentro do projeto? De que modo o sentido de correspondência dialoga com o conceito de dispositivo fílmico? Recorte de uma pesquisa que abarca o fenômeno do coletivismo artístico no Brasil, analisamos as imagens originárias dessas correspondências à luz de metodologia fundamentada no campo da Cultura Visual, que considera, além delas, o contexto de produção e se referencia na cultural turn para interpretação do visível. Por meio de entrevistas com participantes dos coletivos do projeto, pretendemos contribuir com pesquisas que discutam sobre coletivismo e suas apropriações audiovisuais, considerando ambos como práticas midiáticas da cultura contemporânea.

Palavras-chave: Coletivo, multimedia, vídeo.

Abstract: This paper aims to discuss about multimedia mailing between the collective of São Paulo and Acre, which it was created for the realization of Mailing Project. This project was organized by Garapa and it offered workshops for five Brazilian cities and it worked like a collective formed by communicators, architects, artists, photographers and video-makers. How was worked the mailing between the São Paulo collective’s and the Acre’s on this project? What means their multimedia mailings? This paper is a fraction of a search that discuss about collective phenomenon in its multimedia uses. We analyses the visual mailing created for the project looking for methodologies that dialogue with Visual Culture. This study area has found references in ‘cultural turn’ studies to analyze and to interpret the meanings of visible. For this paper, we use interviews with the participants of the Mailing Project and we analyze the program and the videos of its workshops. As results, we intend to contribute with searches that investigate collective and its multimedia uses because we consider them a habitude of contemporary culture.

Keywords: Collective, multimedia, video.

 

Apresentação

Este texto tem como objetivo refletir sobre um projeto chamado Correspondências. Para tanto, selecionamos duas correspondências em vídeo construídas pelos seus participantes. A figura 1 é uma montagem de frames da experimentação artística intitulada Rio Branco // São Paulo (lê-se: Rio Branco em correspondência com São Paulo), de autoria de um coletivo criado sob a coordenação da empresa de produção audiovisual Garapa, na capital do Acre.

Figura 1: Acre // São Paulo (Autoria coletiva, 2013)
Figura 1: Acre // São Paulo (Autoria coletiva, 2013)



Rio Branco // São Paulo from Garapa on Vimeo.

A figura 2 é, por sua vez, uma montagem de frames de outra experimentação artística diretamente relacionada com a primeira, mas inversamente intitulada São Paulo // Rio Branco (lê-se: São Paulo em correspondência com Rio Branco), de autoria de outro coletivo, também sob a coordenação da Garapa, mas, nesse caso, na capital de São Paulo. A Garapa, nesse contexto, também se apresenta como um coletivo: são fotógrafos, realizadores e artistas cuja sede de trabalho se encontra na capital paulista.

Figura 2: São Paulo // Acre (Autoria coletiva, 2013)
Figura 2: São Paulo // Acre (Autoria coletiva, 2013)



São Paulo // Rio Branco from Garapa on Vimeo.

 

Observamos essas duas figuras para pensar sobre a produção multimídia – termo usado pelos autores – que esse coletivo brasileiro realizou em seu projeto envolvendo audiovisual e plataformas digitais, tanto para a produção dessas imagens quanto para a sua difusão. Especificamente, nos interessa investigar como foram construídas as correspondências audiovisuais entre os coletivos de São Paulo e de Rio Branco, dentro do projeto. E, ainda, observar quais sentidos elas produzem.

A metodologia de análise das figuras 1 e 2 parte de Rose (2001), com a qual observamos o contexto da produção das imagens em coletivos organizados em São Paulo e Rio Branco. Além disso, a análise dialoga também com os espaços de difusão delas: um canal próprio do projeto Correspondências, na plataforma digital Vimeo[1].

Realizamos entrevistas com participantes do projeto e analisamos documentos referente a ele: o texto submetido à Funarte, o site de divulgação e o programa das oficinas. Adotamos essa perspectiva metodológica por compreender que, para a problematização que guia esse recorte, foi necessário analisar tais imagens considerando seus contextos de produção e difusão.

O dispositivo como estratégia narrativa

No documentário brasileiro contemporâneo, observamos a presença do dispositivo-fílmico como uma estratégia narrativa. Lins (2007) argumenta que cineastas como Eduardo Coutinho, João Moreira Salles, Sandra Kogut, Kiko Goifman têm em comum a adoção do dispositivo-fílmico na concepção de alguns de seus documentários, o que implica a feitura de filmes prescindindo de roteiros em nome de estratégias de filmagem que têm como pano de fundo uma concepção que rompe com a tradição documental.

Mesquita exemplifica que, em produções sob a égide do paradigma documental clássico, dominante no Brasil em certa medida até 1984, já reconhecem “a voz do povo”,  não ainda como “elemento central” da narrativa, mas “mobilizadas na obtenção de informações e ilustrações que apoiam o documentarista na estruturação de um argumento (via de regra elaborado de antemão)” (2007, p. 10). O período classificado pela autora de tempos de vídeo, de 1984 a 1999, torna-se gradualmente um terreno fértil para aflorar a noção de filme-dispositivo no Brasil, afinal, trata-se de um período em que os discursos documentais buscam uma perspectiva mais de dentro dos grupos sociais retratados. Nesses tempos de vídeo, a produção documental apresenta relações com os movimentos sociais, sendo possível observar “a grande influência (temática, estética e de produção) do vídeo popular sobre o documentário independente” (Mesquita, 2007, p. 11).

Nesse sentido, Lins (2007) afirma que, no filme-dispositivo, as imagens são criadas em virtude de determinadas estratégias e as filmagens não refletem uma realidade pré-existente, tampouco se submetem a um argumento preexistente. Por isso, trata-se de uma ruptura sobre a concepção de documentário partilhada pela tradição documental. Por isso,

Para esses diretores, o mundo não está pronto para ser filmado, mas em constante transformação; e a filmagem não apenas intensifica essa mudança, mas pode até mesmo provocar acontecimentos para serem especialmente capturados pela câmera (Lins, 2007, p. 45).

A autora argumenta ainda que a noção de dispositivo no contexto da produção documental independente no Brasil não se vincula diretamente às instalações que se utilizam de vídeo, computador ou cinema de galeria e museu, nos quais o espectador frui a obra por meio de interações em circuitos fechados. Também não se trata da concepção de cinema como dispositivo abordado pela crítica francesa da década de 1970, a qual abrangia a captação de imagens e a exibição em uma sala escura, “imobilizando o espectador entre a imagem e o projetor, favorecendo a identificação dele com os heróis na tela e com o que produz o espetáculo, a própria câmera” (Lins, 2007, p. 43-44).

Assim, afirma que a noção de dispositivo como estratégia narrativa se inspira no realizador, crítico e pesquisador Comolli. A concepção comolliana de filmar sob o risco do real implica o desejo do cineasta de estar no comando da realização e na explicitação das condições da experiência documental. Segundo Comolli, “ao abrir-se àquilo que ameaça sua própria possibilidade (o real que ameaça a cena), o cinema documentário possibilita ao mesmo tempo uma modificação da representação”, uma vez que os filmes documentais “não são apenas ‘abertos para o mundo’: eles são atravessados, furados, transportados pelo mundo. Eles se entregam àquilo que é mais forte, que os ultrapassa e, concomitantemente, os funda” (2008, p. 169).

A noção de dispositivo no documentário independente brasileiro dialoga com a genealogia do poder de Foucault (1979), que fundamentou sua discussão no estabelecimento de uma rede conceitual, optando deliberadamente por análises diversas da tradicional relação entre o poder, as estruturas econômicas e políticas. Nesse sentido, sua contribuição desloca a investigação sobre o poder das ciências políticas, evitando o sinônimo entre Estado e poder. Tal inovação evidencia formas e exercícios de poder diferentes daqueles praticados pelo Estado, articulando-os de modos variados e discutindo suas mecânicas de expansão na sociedade de modo a observar seu alcance na realidade mais concreta dos indivíduos, seu corpo. Desse modo, considera-o nem acima, nem abaixo, mas ao nível do corpo social e suas imbricações nos jogos de poder da vida cotidiana, classificando-os de micropoder.

A partir desse pano de fundo teórico, o documentário independente se apropria da discussão foucaultiana, fazendo uso de seus termos como estratégia, dispositivo, relações de força, jogos de poder, agenciamento. Almeida (2016) sugere ainda que outra referência teórica para tais práticas documentais seria Deleuze (1996) a partir de quem,

Temos que o dispositivo, possuindo uma natureza essencialmente estratégica, sempre lidará com relações de força, instaurando um jogo de poder, com interesses diversos. Ou seja, poderá ser definido como um conjunto de ‘estratégias de relações de força sustentando tipos de saber e sendo sustentadas por eles’, atuando dessa maneira como máquinas, ‘máquinas de fazer ver e de fazer falar’ (Almeida, 2016, p. 13, grifos do autor).

Nesse sentido, o conceito de dispositivo praticado no documentário independente brasileiro dialoga com a terminologia teórica foucaultiana e deleuziana, pois, à medida em pensa a relação entre quem filma e quem é filmado por ‘máquinas de fazer ver e de fazer falar’, busca evidenciar os jogos de poder presentes na produção. Desse desejo de explicitar os jogos de poder presentes na imagem documentária, ou seja, do interesse por ressaltar a opacidade do registro é que pode emergir a narrativa como estratégia.

Migliorin (2005) afirma que o conceito de dispositivo tem sido recorrente em dois campos específicos do audiovisual contemporâneo, no documentário e em produções ligadas à videocriação. O autor pensa no dispositivo como o deflagrador de um processo narrativo, como um jogo ou estratégia que gera acontecimento no mundo e, por conseguinte, na imagem.

O artista/diretor constrói algo que dispara um movimento não presente ou pré-existente no mundo, isto é um dispositivo. É este novo movimento que irá produzir um acontecimento não dominado pelo artista. Sua produção, neste sentido, transita entre um extremo domínio – do dispositivo – e uma larga falta de controle – dos efeitos e eventuais acontecimentos. O dispositivo é a introdução de linhas ativadoras em um universo escolhido. O criador recorta um espaço, um tempo, um tipo e/ou uma quantidade de atores e, a esse universo, acrescenta uma camada que forçará movimentos e conexões entre os atores (personagens, técnicos, clima, aparato técnico, geografia etc.). O dispositivo pressupõe duas linhas complementares: uma de extremo controle, regras, limites, recortes; e outra de absoluta abertura, dependente da ação dos atores e de suas interconexões; e mais: a criação de um dispositivo não pressupõe uma obra. O dispositivo é uma experiência não roteirizável, ao mesmo tempo em que a utilização de dispositivos não gera boas ou más obras por princípio (Migliorin, 2005, p. 3).

Assim, o dispositivo de criação é pensado em termos de instrumentos (as regras para o jogo narrativo, o uso de ‘novas’ tecnologias de imagem e do audiovisual) e de funcionamento (o deslocamento da direção do autor na narrativa, a abertura da condução narrativa aos participantes dela, a definição do processo pelo tempo ou espaço, a supremacia do processo em detrimento do resultado, a imprevisibilidade do resultado dada a abertura do jogo narrativo aos agentes).

No Correspondências, o dispositivo de criação narrativa foi um jogo cartográfico entre as cidades participantes, envolvendo a temática da mobilidade urbana. Inicialmente, os participantes, sem o saber, escolheram um ponto aleatório da sua cidade para captar uma paisagem visual, em uma filmagem fixa do movimento urbano. Essa filmagem foi postada por cada autor em uma plataforma digital, como por exemplo, o Youtube ou Vimeo, e o seu link foi compartilhado entre todos os participantes do projeto por meio de outras plataformas digitais, um grupo fechado no Facebook e um microblog no Tumblr.

Essas mídias sociais serviram aos participantes do Correspondências como mediadoras de conteúdos e comentários sobre esse processo, sobre as diferenças entre as cidades e as perspectivas dos realizadores. Embora já tenhamos discutido, em outro momento, que nem todos os participantes se atentaram para as potencialidades desses meios, essas mídias operaram como redes mediadoras de relações e correspondências.

Observemos o termo correspondências dentro desse projeto. Quando éramos jovens, tínhamos como hábito escrever cartas e enviá-las a amigos, tios e primos. Algumas vezes, quando a distância se prolongava pelo tempo, nos fotografávamos, revelávamos o filme e incluíamos uma foto no envelope. Postar um vídeo, pelos Correios, era quase inimaginável. Ainda não existiam as facilidades do e-mail, Facebook, WhatsApp, Skype, Youtube etc. E só se passaram cerca de 30 anos. Nós nos correspondíamos, mas por meios bem distintos. A partir disso, temos que o termo “correspondências”, no projeto investigado, tem o sentido de carta endereçada a alguém.

Lins (2006, p. 1) classifica a obra Salut les cubains (Agnès Varda, 1963) como “uma espécie de filme-carta endereçada aos cubanos e ao mundo por uma viajante seduzida por tudo que viu”. O projeto do seu documentário nasce de um convite à cineasta francesa pelo Instituto Cubano da Arte e da Indústria Cinematográficas (ICAIC) para passar alguns meses em Cuba.

Agnès Varda faz uso de um dispositivo formal para criação do seu documentário: das três mil fotografias capturadas na ilha, surgiria o documentário, que “extrai ‘cinema’ de imagens paradas através de uma montagem que nos faz ‘ver’ o movimento, mostrando já no início dos anos 60 o quanto o cinema tem a ganhar associando-se a outros procedimentos técnicos” (Lins, 2006, p. 1). Além disso, a narração em off nega o tom professoral que se propõe a explicar o mundo – característica do documentário clássico. Ao invés disso, é composta por saudações a cubanos conhecidos e anônimos que ela viu com suas lentes. Faz sentido, portanto, pensar sobre a noção de filme-carta.

Almeida (2016) utiliza a noção de carta em vídeo ao tratar da obra Rua de mão dupla (Cao Guimarães, 2002). Criado inicialmente para a videoinstalação na 25ª Bienal Internacional de São Paulo, em 2002, duas telas foram colocadas paralelamente, ideia mantida no formato em filme. Em cada lado da tela, vemos imagens em vídeo feitas pelos personagens participantes de um jogo proposto pelo artista-cineasta, que consistia em trocar de casa com um desconhecido por 24 horas, buscando vestígios de quem é esse outro a partir do seu ambiente domiciliar. Tem-se aqui, mais uma vez, a questão do ‘outro’ tão cara à tradição documentária, mas agora subvertida por um dispositivo de criação, filiado a práticas artísticas contemporâneas. Então,

Acreditamos que, em Rua de mão dupla, o registro da casa do outro funciona como uma espécie de carta em vídeo, na qual os indivíduos apresentam-se a seu correspondente, estando na casa dele sem o conhecer, no desdobramento daquelas 24 horas. E, assim, narram audiovisualmente o seu dia, revelando, para além de seu próprio modo de ser, ao operar a câmera, aquele eu que veem no outro (Almeida, 2016, p. 18).

Se a câmera não é transparente nem imaterial, ou seja, se suas imagens são fruto do que foi colocado em cena, como argumenta Comolli (2008), ela materializa o corpo, simboliza o olhar, apresentando-o como relação daquele que olha e é olhado pelo outro.

O contexto da produção do filme-dispositivo no projeto Correspondências

Antes de analisarmos os dispositivos fílmicos, faz-se necessário pensar o contexto de suas produções. O projeto Correspondências é criado pela Garapa, que, afinada com a terminologia contemporânea do coletivismo artístico, da qual faz uso recorrente no seu discurso, pode ser compreendida como um estúdio, bureau ou miniprodutora que articula colaboradores em seus trabalhos comerciais e autorais. Além da apropriação de uma terminologia atual, há outra questão observada: na Garapa há um esforço em se obter o reconhecimento das instituições de arte para o financiamento e distribuição dos trabalhos realizados pelo coletivo. Em decorrência desse esforço, o projeto Correspondências, campo que originou este texto, foi aprovado e financiado pela Fundação Nacional de Artes, Ministério da Cultura.

Desenvolvido em 2013, com o apoio financeiro da 9ª edição do Programa de Rede Nacional Funarte Artes Visuais[2], pela Garapa, o projeto Correspondências levou oficinas de produção multimídia a cinco capitais brasileiras: Curitiba, Fortaleza, Goiânia, Rio Branco e São Paulo. As oficinas, como explicou Fehlauer (2013a), durante uma entrevista realizada na sede da Garapa em São Paulo, não eram técnicas, antes tinham como objetivo “jogar fagulhas de produção coletiva em outros cenários” e produzir “a partir do encontro”.

No projeto Correspondências, ele argumentou, os documentários foram produzidos coletivamente e em rede. A rede aqui tem um sentido de teia (abrangendo geograficamente o Brasil por meio de correspondências com participantes de cinco capitais de regiões distintas), mas também de internet, uma vez que os primeiros contatos e trocas ocorreram por meio de redes sociais nas plataformas digitais.

Assim, dentre o público esperado para essas oficinas multimídias estavam “artistas, estudantes e profissionais do campo das artes visuais, do audiovisual e da comunicação” (Garapa, 2013b). Os objetivos do projeto submetido à Funarte eram “explorar as possibilidades narrativas da linguagem audiovisual nas redes virtuais” (Garapa, 2013b).

Nesse sentido, observamos que as oficinas, nesse projeto, funcionaram como o situacional, nos termos de Hollanda (2013), ou seja, o espaço para o encontro que resultou na produção documental. Desse modo, elas funcionam como um coletivo que se encontra para realizar. As dúvidas técnicas, de linguagem ou de estilo narrativo, foram abordadas caso os participantes perguntassem, durante esses encontros. Assim, temos ainda que as oficinas possibilitaram os coletivos existirem, foram alegoricamente pretextos para que os grupos se articulassem e realizassem os documentários juntos.

A prática de oficinas por meio de projetos financiados pelo Estado, institucionalizadas nas políticas públicas de incentivo à cultura no Brasil do tempo presente, já existia desde a década de 1980 e possibilitou aproximações entre cineastas e alguns movimentos sociais, tais como o do vídeo popular. Segundo Mesquita, “no chamado ‘movimento do vídeo popular’” nota-se com frequência “o projeto de elaborar, ‘de dentro’, as identidades dos grupos sociais retratados, em oposição ao estigma; de dar-lhes visibilidade de uma perspectiva que se propõe ‘interna’” (2007, p. 11). Costumeiramente, tais imagens documentais eram construídas em oficinas em associações de bairro, cineclubes e entidades relacionadas ao movimento popular.

Notamos que a noção de coletivo defendida pela Garapa dialoga com o que Mesquita nomeia de “movimento do vídeo popular” (2007, p. 11), visto que considera a horizontalidade das relações entre seus participantes, mas também a perspectiva de elaborar “de dentro” as identidades dos grupos sociais retratados. No entanto, observamos que a mudança da década de 1980 para esse projeto, realizado em 2013, é dissolução da identidade de grupo social. No Correspondências, não há um grupo social, os participantes não se conheciam antes das oficinas se realizarem, o que possibilitou representações identitárias (de Rio Branco e São Paulo) mais próximas do senso comum do que dos membros do coletivo.

Importa-nos esclarecer que houve, com o projeto, o interesse em abarcar as subjetividades e as autorrepresentações dos realizadores que compunham cada coletivo em correspondência. E, mesmo que o projeto não pretendesse ser lançado em salas de cinema, ele dialoga com o que Mesquita classifica de documentário da ‘retomada’ (2007, p. 12).

Verticalizando nessa direção, além da diversidade de conhecimento técnico e estético dos participantes, nosso argumento se fundamenta na premeditada indistinção sobre as funções específicas que cada um desempenhou na realização dos documentários. Inspirado no modo organizacional da Garapa, que opera a partir de certa horizontalidade das relações, também os coletivos no projeto Correspondências assumem essa disposição. Quando questionado sobre por que produzir documentários em rede e em coletivo, Fehlauer responde que “no nosso trabalho a gente se autodenomina um coletivo e é um trabalho que pressupõe uma horizontalidade nas realizações dos projetos” (2013a).

Desse modo, os coletivos constituídos dentro do Correspondências apontam para a mesma característica organizacional da Garapa. E além das oficinas servirem de pretexto para o encontro, caracterizando-se muito mais como um grupo de trabalho do que como espaço de aprendizagem tradicional, elas traduzem ainda uma organização de certo modo não disciplinar, sem o desígnio de funções específicas ou papéis determinados para cada participante. Assim, “na hora de produzir e montar os grupos de produção mesmo não existia necessariamente uma função, todas as pessoas passavam por todas as etapas” (Fehlauer, 2013a).

Além do Correspondências ter operado como a Garapa, isto é, horizontalmente sem funções pré-determinadas ou fixas, os cinco coletivos criados pela Garapa nas cinco capitais realizaram quatro produções cada, resultando em 20 documentários ao final do projeto. Embora o Correspondências tenha sido unicamente composto por 60 participantes, 12 por cidade, mais os membros da Garapa e alguns parceiros locais durante os diálogos e trocas por meio das redes digitais, no encontro presencial os grupos se constituíram distintamente. A relação estabelecida resultou em caminhos narrativos diversos sinalizando diferentes escolhas, dentro de um mesmo tema a ser trabalhado.

Contudo houve uma opção deliberada por parte da Garapa para construir uma unidade narrativa, sem interferir nas escolhas de cada coletivo. A saída encontrada foram as vinhetas de abertura e finalização. Elas foram editadas pela Garapa e segundo Fehlauer (2013a) cumpriram o papel de dar unidade narrativa para os 20 documentários originados nas oficinas. Essas vinhetas narram o dispositivo do projeto: um jogo cartográfico que a Garapa propôs aos participantes de cada coletivo criado.

O jogo cartográfico como dispositivo fílmico do Correspondências

Quanto ao dispositivo do projeto Correspondências, notamos aí também uma espécie de filme-carta construído desse modo: quando a Garapa se reúne com o coletivo de cada capital, leva mapas impressos de cada uma das cinco capitais. Os mapas utilizados foram os disponibilizados gratuitamente pelos serviços de satélite da Google Maps. Eles foram impressos em papel vegetal em uma mesma escala e já tinham os pontos de todas as paisagens visuais demarcados nos seus respectivos locais de captação, isto é, cada participante teve seu ponto numerado no mapa da sua cidade. A partir disso, iniciou-se o processo de correspondência.

O ponto A é aquele que o Google Maps indica como o centro da cidade; assim, todos os mapas tinham o seu próprio ponto A. Para que o coletivo de Rio Branco fizesse a correspondência com o de São Paulo, o mapa de Rio Branco foi sobreposto ao da capital de São Paulo, de modo que o ponto A das duas capitais fossem coincidentes. A partir disso, o coletivo de Rio Branco definia com qual ponto das paisagens visuais de São Paulo iria se corresponder.

O coletivo de Rio Branco se correspondeu com apenas um ponto de São Paulo. O mesmo processo ocorreu com o coletivo de São Paulo, mas, nesse caso, o mapa dessa capital é que estava sobreposto, de modo que este se correspondeu com apenas um ponto dentre todos os disponíveis no mapa de Rio Branco.

Dentro do coletivo de Rio Branco (bem como no de São Paulo) ocorreu uma negociação sobre qual ponto escolher, a qual segundo Fehlauer (2013a) variou em critérios em cada coletivo. Contudo, de certo modo, perguntas guiaram esse agenciamento, as quais giraram em torno de pensar na mobilidade que um morador de Rio Branco teria, saindo do ponto A para chegar ao ponto B.

Assim, o jogo consistia em deflagrar narrativas em torno de como sair do ponto A e chegar ao ponto B. De bicicleta? De carro? De ônibus? De metrô? De catraia? A pé? Quais eram os desafios do percurso: a distância, a condição das estradas/trilha/caminho, a falta ou abundância de meios de transporte, o tempo gasto para realizar o trajeto, os acidentes geográficos, a questão da segurança, entre outros.

Com o ponto B negociado e definido, cada coletivo se propôs a percorrer o trajeto, filmando-o e construindo a narrativa. Por parte da Garapa, na condição de coletivo proponente do dispositivo, não havia o controle narrativo, sendo impossível prever se os membros de Rio Branco ou São Paulo teriam um filme naquele percurso.

Retomando as figuras 1 e 2, nos perguntamos se, apesar da imprevisibilidade do dispositivo narrativo possibilitado pelo jogo cartográfico, a experimentação construída pelos dois coletivos considerou a perspectiva da correspondência para além dos mapas, isto é, no sentido de se corresponder um com o outro, Acre com São Paulo, este com aquele.

Se nas nossas cartas juvenis, havia um remetente e um destinatário, em que medida o coletivo acreano se considerou remetente de uma narrativa sobre sua mobilidade urbana destinada ao coletivo paulistano e vice e versa? Essa questão torna-se fundamental diante da produção de sentido que essas duas narrativas nos apresentam. Observemos as imagens.

A figura 1 traz frames da narrativa produzida pelo coletivo acreano. Ela apresenta uma duração de 6’52. Em relação à trilha que envolve este experimento, temos ruídos de caminhão (apesar da ausência visual do veículo), moto, carro, mas também uma abundância de grilos e pássaros. Membros do coletivo acreano interagem com as imagens deixando seus ruídos na montagem final, algo como “agência dos correios aqui? Funciona?” denotam que ponto B escolhido está em um local distante do convívio dos autores, que moraram em Rio Branco.

Há um diálogo com a estética da fome (Rocha, 1995), apresentando um misto de cine-denúncia e fragmentos de ativismo, embora sem vínculos explícitos de politização. Imagens denunciam a distância, apresentando ruas fantasmas e um sol escaldante. O coletivo inicia seu trajeto em uma via cujo fluxo de carros é tranquilo e há uma ponte. A denúncia da água cuja força exige que moradores constituam residências móveis, isto é, vivenciem uma espécie de mobilidade residencial, uma vez que a cada enchente precisam mudar-se reaparece no percurso, durante as interações com moradores. Composições que enfocam o lixo, a ladeira filmada do alto, o remendo das paredes e a lama do caminho se estendem pela narrativa.

Nela há a interação com alguns personagens. Na fala dos personagens aparecem temas como desemprego, pobreza, polícia, insegurança, erosões, prostituição, drogas, religiosidade. Dois deles estão em um bar, à contraluz, denunciando que é dia lá fora. Calmamente narram para a câmera que aquele lugar para onde o coletivo vai já foi a diversão de todo homem da região; que ali era “decente, não era vulgar como hoje em dia”, pois cada um tinha seu próprio quarto; mas que “das 8 da noite até ao amanhecer do dia” a farra estava garantida a todo homem que viesse à Rio Branco.

Nesse mesmo lugar, um pastor e ex-usuário de drogas testemunha sobre sua nova vida “resgatando vidas”. Esse personagem demonstra seus conhecimentos ao apontar para as cavernas verdes de uma paisagem vigorosa ladeira a baixo onde usuários se escondem para o vício. A iluminação caminha de modo predominante para tons tropicais.

Quanto ao ritmo da narrativa, temos uma evidência explícita do tempo do sertão, que é o tempo da conversa de bar, da interação que testemunha a fé a estranhos abrindo sua própria casa para o filme acontecer. São três inserções da primeira interação com os personagens profanos e cerca de três com o ícone do sagrado. Os quadros são longos e esperam o ritmo do pedestre chegar de um ponto ao outro dos limites do campo visual. Há cortes secos, mas há também as fusões.

O ponto B que o coletivo acreano selecionou para fazer a correspondência com São Paulo é uma periferia onde a enchente exige mais do que mobilidade urbana, exige a mobilidade residencial. Nesse ponto B escolhido pelo coletivo acreano para se corresponder com um dos pontos de São Paulo há a distância não apenas dos paulistanos, mas também dos autores rio-branquenses. Havia outros pontos possíveis para apresentar na sua correspondência com os destinatários de São Paulo, mas os remetentes acreanos optaram por um que denuncia a periferia. O que isso significa?

Vejamos se a análise sobre a narrativa construída pelo coletivo paulistano nos apresenta pistas para essa problemática. A figura 2 é um mosaico de frames da narrativa construída pelo coletivo paulista cuja duração é de 2’32, cerca de quatro minutos e vinte segundos a menos que a anterior. Quanto à trilha sonora, temos ruídos de um trânsito nervoso, ônibus, buzinas, pingo de água sugerindo goteiras ou vazamentos e, somente no final, sons sinistros do órgão da Catedral da Sé.

Embalada por essa sonoridade sombria, há um diálogo com a estética noir com cenas explorando a luz noturna, composições com predomínio de tons que variam dos acinzentados aos pretos. Os corpos nessa narrativa são, em alguns momentos, partes: apenas pernas, pés ou bustos que sobem e descem escadas apressadamente, sem interação com a câmera; em outros momentos, são silhuetas na contraluz do túnel, cenário predominante da narrativa.

De dentro do túnel, a narrativa emerge subindo as escadas rumo a uma luz naturalmente cinzenta embebida pela “feia fumaça” cantada na poesia de “Sampa” (Veloso, 1978). A presença do verde aparece pela primeira vez em um close, cuja cena enfoca uma mirrada vegetação que insiste em brotar da concretude das escadarias. Nesse deselegante cenário, lemos um “foda-se” grafitado nos muros, só lido entre um e outro transeunte que passa apressado na frente. O ritmo da narrativa é expresso pelo borrão que a velocidade dos carros deixa na fotografia do frame. Os quadros são de curta duração e seus cortes secos, ao estilo de montagem de um videoclipe.

Retomando a problemática, havia outras abordagens possíveis para o coletivo paulistano explorar na sua narrativa. Apesar disso, o grupo remeteu como mensagem ao coletivo de Rio Branco aquilo que compreende ser sua identidade como metrópole. Em resposta, mesmo que as narrativas não tenham operado literalmente como uma carta que se respondeu, o coletivo de Rio Branco remeteu ao de São Paulo uma identidade de periferia, miserável e atrasada. Woodward (2012) argumenta que as identidades se articulam por meio de símbolos e linguagens que as representam e que elas são marcadas pela diferença.

Quando o coletivo de São Paulo se afirma como metrópole, ao se utilizar de uma estética noir, está se diferenciando de Rio Branco por meio de todas as representações simbólicas que a linguagem do cinema, da televisão e do vídeo já construíram em nosso imaginário de representações. O experimento referente à figura 2 se assemelha a muitos filmes de suspense captados nos becos de Londres, Nova York, Paris. Tal associação imprime na mensagem que o coletivo destina ao Acre uma identidade que representa o progresso na cultura ocidental, mesmo que vista na perspectiva do underground. Aliás, toda a produção dos experimentos em coletivo goza, mesmo nas ruas paulistas, de uma identidade underground, fora da lei, por andar na contracorrente do mainstream da cinematografia e do vídeo hegemônico.

Apesar disso, a narrativa da figura 2 constrói uma identidade afirmando elementos reconhecíveis ao imaginário coletivo e, portanto, aos acreanos – seus destinatários – sobre sua exuberância civilizatória, seu progresso e sua modernidade. De modo sofisticado, a narrativa elege o lado sombrio da cidade grande para se representar. Em contrapartida, a narrativa da figura 1 constrói uma identidade do exótico pela contradição do sagrado versus o profano da periferia de Rio Branco. Se Woodward (2012) nos apresenta que a identidade é sustentada pela exclusão, temos aqui um exemplo de que o coletivo acreano se viu como atrasado em relação ao civilizado paulista.

A disponibilização dessa mensagem no espaço público das plataformas digitais aliado ao dispositivo do jogo cartográfico e às mídias que o envolveram parece ter confundido os coletivos quanto à apreensão de que se tratava de uma correspondência tanto quanto as das cartas juvenis de que tratamos no início do texto. Essa mensagem diz respeito ao modo como se identificam, como uma metrópole concreta, ágil, cinzenta, sombria, fria, desenvolvida versus uma periferia pobre, atrasada e lenta. Não nos pareceu que os dois coletivos intencionaram afirmar essa identidade, no entanto, as escolhas estéticas têm sentido mesmo que os autores não tenham tido interesse deliberado de construir tal sentido.

Considerações finais

A Garapa, coletivo proponente do projeto Correspondências, criou coletivos em cinco capitais brasileiras para que cada um deles recebesse uma oficina multimídia presencial. Essas oficinas não operaram como espaços de aprendizados no sentido tradicional dos termos ensinar e aprender, mas como pretextos para o coletivo se reunir e produzir experimentos a partir do encontro. Para fins dessa reflexão, recortamos duas narrativas: construídas pelos rio-branquenses em correspondência com os paulistanos e vice-versa.

Observamos que houve dois coletivos distintos, um em Rio Branco e outro em São Paulo, capital, apesar de a Garapa tê-los coordenado e, ao mesmo tempo, ser parte de ambos. Mas sabíamos sobre São Paulo, a capital? E sobre Rio Branco? E como foram construídas as correspondências entre os coletivos de São Paulo e de Rio Branco, dentro do projeto?

A Garapa, para deflagrar essas correspondências, propõe um dispositivo narrativo, que foi um jogo cartográfico no qual os dois coletivos se corresponderiam em vídeo sobre a mobilidade urbana, tendo dois pontos a percorrer: o ponto A, eleito pelo sistema de mapeamento do Google, e o ponto B, escolhido da sobreposição de mapas impressos em papel vegetal. O jogo cartográfico não se concentrou no ponto B de cada cidade isoladamente, antes, buscou relacioná-las de modo que: o ponto B de São Paulo corresponde a que local no mapa de Rio Branco? Como um rio-branquense vai do centro da sua cidade até o ponto correspondente em São Paulo?

Dessas perguntas emergiu a narrativa centrada em um percurso que elegeu a distância, os meios de transporte e outras histórias que surgiram no caminho para que o experimento se tornasse filme. Observamos, no entanto, que o coletivo de Rio Branco constrói uma narrativa que reafirma sua identidade de lugar nenhum, de periferia atrasada, denunciando os problemas reais que possui uma periferia, mas sem problematizar essa representação. Essa identidade ficou mais evidente quando o coletivo paulistano elege uma identidade metropolitana, cosmopolita e underground para se remeter à correspondência com Acre, também sem problematizá-la.

Se quase ninguém sabe sobre o Rio Branco, no Acre, São Paulo tem sido cantado e propagado hegemonicamente há tempos. Desse modo, a ausência de um questionamento dessa diferença identitária representada e reforçada na estética dos dois experimentos nos mostra uma correspondência em que remetentes e destinatários pouco sabem sobre si e sobre o outro.


* Lara Lima Satler é doutora em Arte e Cultura Visual (PPGACV/ FAV / UFG, 2016), professora e pesquisadora na Universidade Federal de Goiás (UFG). Organizadora do livro Imagens, olhares, narrativas (2016) e autora de “Diários de aula como deflagrador de uma pesquisa com experimentações audiovisuais”, Revista Digital do LAV (2016), “O método cooperação dos Amigos do Cinema”, Visualidades (2016) e “O cinema feito em coletivo”, Artefactum (2015).

** Alice Fátima Martins é bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq – Nível 2. Tem pós-doutorado no Programa Avançado de Cultura Contemporânea da UFRJ (2010), com o projeto de pesquisa Catadores de Sucata da Indústria Cultural, cujo resultado foi publicado, em 2013, com o título Catadores de sucata da indústria cultural, pela FUNAPE/Editora da UFG. É professora na Faculdade de Artes Visuais da UFG e atua no curso de Licenciatura em Artes Visuais e no Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual.

 

Referências

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ALMEIDA, R. Aquele que eu vejo no outro: o dispositivo em Rua de Mão Dupla, de Cao Guimarães. In: MARTINS, A. F.; SATLER, L. L. Imagens, olhares, narrativas. Curitiba/PR: CRV, 2016, p. 13-26.

DELEUZE, G. O que é um dispositivo. In: O mistério de Ariana. Lisboa: Vega, 1996, p. 83-96.

FEHLAUER, Paulo. Entrevista concedida à pesquisa. São Paulo. 11 dez. 2013a.

FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

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HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Coletivos. (Artigo publicado em 10 set. 2013). Disponível em: < http://www.heloisabuarquedehollanda.com.br/coletivos/. Acesso em: 06 jan. 2014.

MIGLIORIN, C. O dispositivo como estratégia narrativa. Revista Acadêmica de Cinema Digitagrama, Rio de Janeiro, nº 3, jan-jun 2005. Disponível em:< http://www.estacio.br/graduacao/cinema/digitagrama/numero3/cmigliorin.asp>. Acesso em: 04 jan. 2014.

ROCHA, G. A arte antes da vida. In: BIRRI et al. A ponte clandestina: teorias de cinema na América Latina. Rio de Janeiro: Editora 34 e Nova Fronteira: 1995. p. 77-114.

ROSE, Gillian. Visual methodologies. London: Sage Publications, 2001.

VELOSO, C. Sampa. In: VELOSO, C. Muito, dentro da estrela azulada. Rio de Janeiro: PolyGram, 1978. 1 disco.

WOODWARD, K. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: TADEU DA SILVA, T. Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis / RJ: Vozes, 2012. p. 7-74.

 

Notas

[1] GARAPA. Correspondência no Vimeo. Mar. 2013d. Disponível em: <https://vimeo.com/channels/correspondencias>. Acesso em: 22 nov. 2015d.

[2] A Fundação Nacional de Artes (Funarte), Ministério da Cultura, divulgou, via portaria nº 366, de 22 de novembro de 2012, o resultado dos projetos aprovados pelo Edital Programa Rede Nacional Funarte Artes Visuais, no qual o projeto Correspondências ocupa o 7º lugar. Disponível em: < http://www.funarte.gov.br/wp-content/uploads/2012/08/Resultado-final_Programa-Rede-Nacional-Funarte-Artes-Visuais-9a-Edicao_2012_Portaria-366.pdf>. Acesso em 04 jan. 2014.

 

dossiê
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O SMARTPHONE NOS TRAJETOS COTIDIANOS: REFÚGIO, JOGO E PRESENÇA

Resumo: Este artigo descreve um experimento realizado com um grupo de estudantes com o objetivo de entender o impacto do uso do smartphone na experiência dos trajetos cotidianos. A metodologia aplicada junto a 13 estudantes de mestrado nos permitiu observar tendências comportamentais e diferentes modalidades de experiência em função da maneira de usar o smartphone nas situações analisadas.

Palavras-chave: Smartphone, experiência urbana, fotografia, cotidianidade.

Abstract: This paper describes an experiment carried out with a group of students in order to understand the impact of the use of Smartphones in the experience of everyday journeys. The methodology applied to 13 masters’ students allowed us to observe behavioral tendencies as well as different modalities of experience depending on the way the Smartphones were used in the analyzed situations.

Keywords: Smartphone, urban experience, photography, everyday life.

 

Introdução

Este trabalho apresenta os resultados de um experimento realizado com o objetivo de verificar tendências comportamentais relativas ao uso de smartphones na cidade, mais especificamente nos deslocamentos cotidianos. O experimento foi realizado entre os meses de fevereiro e abril de 2016 na região parisiense, com treze participantes. Os resultados foram apresentados no congresso Hyperurbain.6 (Chambéry, 2017). O caráter restrito da nossa amostra não nos impede de observar e destacar essas tendências, já que que nosso objetivo é identificar potencialidades no uso dos smartphones, de tal forma que qualquer incidência de um comportamento é suficiente para aceitá-lo como uma possibilidade.

Quando observamos um indivíduo em interação com um smartphone, testemunhamos o magnetismo da sua tela, sua capacidade de solicitar e manter o olhar e a atenção do usuário. A primeira hipótese que serve de sustento à elaboração do nosso experimento é o resultado dessa observação e repousa sobre a importância que toma o smartphone na experiência dos trajetos urbanos cotidianos.

Toda mídia, enquanto suporte de informação e, portanto, de realidade entretém uma competição com o mundo material circundante pela atenção do sujeito. Eis uma característica generalizável a qualquer mídia. Enquanto tela e, portanto, suporte de realidades, o smartphone compete com o real circundante pela atenção do usuário. Podemos pontuar aqui uma importante ruptura consumada pelos smartphones: uma ruptura espaço-temporal da experiência, uma ruptura da presença. A experiência de um indivíduo que interage com um smartphone é híbrida ao ocorrer simultaneamente em duas temporalidades, duas plataformas de experiência. Isso significa que o espaço-tempo vivido pela consciência se encontra raramente no “aqui e agora” (hic et nunc), em que a atenção, estando dividida entre duas temporalidades, é direcionada para outra temporalidade, híbrida e distraída. Falar de uma presença híbrida é aceitar a distinção entre o mundo tela e o mundo situado.

A segunda hipótese diz respeito à prática da fotografia de rua e suas implicações na natureza da experiência vivida. Flusser (2004, 2014) descreve o gesto fotográfico como uma busca de posicionamento em relação ao mundo circundante, uma alternância entre micro-hesitações e microdecisões pontuais. Segundo o autor, o gesto fotográfico é o gesto da dúvida fenomenológica, resultado de uma constante tensão interna/externa, de uma dialética entre intenção e situação.

O estado de disponibilidade mental, do qual falava Cartier-Bresson para descrever sua prática como fotógrafo, torna-se assim uma condição para a realização desse jogo fenomenológico de caça de imagens. Um indivíduo absorvido pelo prisma de intenções do jogo fotográfico atribui uma atenção crescente à realidade circundante pois essa é a fonte de todos os seus elementos de criação e de composição. Se, como proposto por Barthes (2016), a indicialidade é a ontologia da imagem fotográfica, o caráter situado é a ontologia do gesto fotográfico. A experiência do fotógrafo é estética na medida em que representa uma atenção extra atribuída ao mundo circundante, uma imersão no campo psicológico de experiência.

O fotógrafo desempenha um jogo circunstancial de presença, ele brinca com o espaço e o tempo e empreende um exercício de redescrição dos elementos de seu campo de experiência. Nesse sentido, a experiência do fotógrafo, além de fenomenológica e estética, é poética (Rorty, 2007). O espaço-tempo é subvertido em linguagem e o campo-linguagem é subvertido em espaço poético.

Em função da natureza fenomenológica dos gestos implicados, da natureza lúdica do rearranjo da dinâmica das intenções e da dimensão poética da experiência fotográfica, acreditamos que a função fotográfica dos smartphones contém os elementos necessários para catalisar outro tipo de experiência urbana, contrária às tendências de distração que inicialmente observamos.

O experimento

É a partir dessas observações e análises que elaboramos nossos experimentos, confrontados com o desafio de fornecer respostas empíricas às reflexões. As perguntas que orientaram o desenvolvimento do experimento são as seguintes: qual o lugar dos smartphones na experiência dos trajetos cotidianos? Quais efeitos pode ocasionar a prática fotográfica sobre a experiência dos trajetos cotidianos (para aqueles que não possuem veículos próprios, pedestres e usuários de transporte público)?

Desde o final de fevereiro de 2016 até meados de abril, no âmbito da disciplina Prospectivas Digitais do programa de mestrado Master 2 NET (Numérique: Enjeux, Technologies) na Universidade de Paris 8, executamos uma experiência a fim de trazer respostas às questões levantadas. O experimento a desenvolver com os estudantes deveria ser centrado no uso dos smartphones durante os trajetos cotidianos na cidade (Paris e entorno). Cada aluno, possuindo um smartphone e não se locomovendo com um veículo próprio (carro, moto, bicicleta), pôde participar do experimento.

O exercício que desenvolvemos consistia em escolher para cada participante um mesmo trajeto cotidiano (repetido a cada semana) e, durante um período de quatro semanas, abordar o uso do smartphone a cada vez de maneira diferente. A ideia era isolar o parâmetro smartphone tanto quanto possível. Para isso, era essencial que cada experiência fosse realizada nas condições mais semelhantes possíveis. Na primeira semana, os alunos podiam usar seus smartphones como eles queriam, como o faziam habitualmente. Na segunda fase do exercício, eles foram proibidos de usar seus smartphones ao longo do trajeto escolhida. Na terceira e quarta semana, eles foram orientados a usar seus smartphones por meio de uma única função: a fotografia. A repetição da terceira etapa revelou-se necessária no decorrer do experimento, uma vez que a orientação de tirar fotos gerou certa estranheza em alguns estudantes. Além de ter que escolher uma viagem diária para poder realizar todas as etapas do exercício em condições análogas, as únicas instruções foram essas, relativas aos diferentes usos dos smartphones.

Ao cabo de cada trajeto, o estudante devia gravar-se em vídeo selfie com seu próprio smartphone. Pedimos aos alunos que relatassem o trajeto, sem impor-lhes uma direção específica. “Fale sobre seu trajeto, o que você quiser, o que você reteve…”. Propomos as indicações mais genéricas possíveis, de modo a deixar aos estudantes a maior liberdade de reação. Isso causou uma perplexidade inicial, mas uma vez que o exercício começou, todos demonstraram tê-lo entendido. Alguns alunos preferiram descrever suas experiências escrevendo, em vez de filmando-se, o que complica a sistematização quantitativa dos dados recolhidos; um suporte diferente implica em diferentes escolhas retóricas. Ora, como ilustraremos mais adiante neste artigo, se eles foram filmados, escritos ou mesmo declamados em sala de aula sem qualquer suporte além de ouvidos e memórias, esses “relatos” revelaram diferenças cruciais entre as três etapas do experimento.

Estimamos que esses relatos poderiam nos fornecer elementos distintos que nos permitiriam comparar os diferentes trajetos e identificar, por meio do discurso, as divergências fundamentais entre as experiências vividas em cada uma das etapas. Mais especificamente, partimos da hipótese que os relatos revelariam:

  • a importância do dispositivo na experiência de deslocamento urbano quando utilizado de maneira habitual;
  • a importância do vazio deixado pela exclusão do dispositivo da situação;
  • uma mudança de atitude (e de percepção) em relação à realidade circundante para os trajetos realizados em modo fotográfico.

Análise qualitativa dos resultados

A partir da última semana de fevereiro e ao longo do mês de março de 2016, aplicamos a metodologia descrita. Cada etapa do exercício foi realizada (em Paris e no seu entorno), uma vez pelos alunos, exceto a terceira (fotográfico) que foi realizada duas vezes. Durante as aulas, os vídeos eram assistidos coletivamente e, após cada vídeo, os estudantes discutiam e compartilhavam suas impressões sobre a experiência e o depoimento de seu colega. Em cada sessão, um estudante era escolhido para gerar um relatório, um documento contendo os pontos essenciais de cada depoimento apresentado. Criamos um grupo Facebook, uma plataforma na qual os vídeos eram postados, bem como os depoimentos escritos e os relatórios das sessões. Dos 16 alunos inscritos na disciplina e frequentando as aulas, 13 participaram de pelo menos uma das etapas do experimento.

As análises que propomos aqui são o resultado da visualização dos vídeos projetados durante as sessões e compartilhados na plataforma online e da leitura dos depoimentos escritos. Também nos baseamos nos relatórios produzidos em cada sessão por um dos alunos.

A fim de manter o anonimato e preservar a privacidade dos estudantes, nos referiremos a cada um deles por “sujeito 1”, “sujeito 2”… até “sujeito 13”. Por coerência de memória e apesar da impessoalidade do anonimato, nos referiremos a cada um deles por “ele” ou “ela” de acordo com seus gêneros.

Etapa 1: trajetos com uso habitual do smartphone

Todos os participantes começaram por explicar o trajeto que eles haviam realizado, aonde eles estavam indo, quais rotas eles haviam empregado a pé e quais as linhas de metrô, ônibus ou trem eles haviam tomado. Em seguida, eles se puseram a descrever o que estavam fazendo com seus smartphones, pontuando, a cada vez, as grandes mudanças no trajeto, por exemplo, uma mudança de linha do metrô ou qualquer outra mudança substancial de cenário. Qualquer momento de passividade em relação ao ato de deslocamento foi descrito de maneira limitada à experiência do smartphone. Essa tendência foi observada para todos os alunos que participaram da atividade, com exceção do sujeito 11 que empreendeu um minucioso exercício de descrição das situações vivenciadas.

A principal tendência que emerge desses relatos é a importância atribuída ao smartphone ao longo da experiência de deslocamento urbano. A confirmação dessa tendência através dessa experiência era previsível. Esta etapa do experimento atua como uma amostra de controle. A partir dos relatos dos estudantes participantes, além de estabelecer a tendência geral descrita acima, pudemos identificar a importância dos smartphones no trajeto de cada participante. Geramos assim os dados necessários para identificar, pelo menos qualitativamente, os elementos de discrepância entre a experiência cotidiana habitual e as outras experiências que seriam realizadas nas próximas semanas.

Experiência 2: trajetos sem smartphone

Realizamos a segunda etapa do experimento, partindo da hipótese de que a exclusão do smartphone da experiência de trajeto cotidiano revelaria a importância do vazio deixado pela sua ausência e, dessa forma, confirmaria sua importância habitual.

Mais uma vez, a maioria dos depoimentos veio corroborar nossas suspeitas. Sem smartphones, alguns estudantes se viram confrontados com eles mesmos, por vezes angustiados, sem saber o que fazer das mãos, para onde olhar. O tempo vivido tomou uma outra dimensão.

Se a presença do smartphone revelou-se determinante nos depoimentos da primeira etapa, sua ausência exprimiu-se aqui de maneira evidente. Observamos um uso claro de um léxico da dureza, da dificuldade e do tédio. O sujeito 2, por exemplo, não conseguiu terminar o exercício frente à angústia de não poder usar seu smartphone durante longos minutos. Ela se gravou durante o trajeto para justificar: “fiz 30 minutos de trajeto, estava tão lento, tão entediante que retomo meu telefone”.

O depoimento do sujeito 5 contém diversos elementos que ilustram nossas observações. “A gente se sente vazia” diz ela, “todo mundo em volta da gente tem um celular”. Confrontada a uma espera de dois minutos na plataforma do metrô, o tempo lhe parecia “tão longo sem celular”. Ao longo de seu depoimento, ela pontua sua descrição das situações por frases adjetivadas, “foi duro”, “difícil”, “muito, muito longo”. “O fato de não ter nada nas mãos era uma sensação estranha. Então aproveitei para olhar em volta de mim”.

Outra característica desvelada nessa etapa do experimento é uma transferência da atenção do smartphone para a realidade circundante. Isso aparece de maneira clara no relato do sujeito 10 que se põe a descrever cada um dos passageiros presentes no vagão do metrô.

As principais conclusões que extraímos das discussões em aula após a projeção dos vídeos são as seguintes:

  • o smartphone nesse tipo de circunstância atua como uma ferramenta de evasão que permite ao sujeito uma ruptura drástica com sua experiência circundante, por meio de uma imersão no mundo da tela;
  • sem o smartphone, o sujeito se vê obrigado a se confrontar a outra coisa;
  • o sujeito se torna mais atento ao ambiente;
  • o sujeito se torna mais atento a si mesmo;
  • para alguns, pouco muda, pois eles substituem facilmente o smartphone, ocupando-se com outra atividade, como uma leitura ou um jogo como sudoku… o smartphone é para eles uma ferramenta de distração;
  • outros se sentiram desamparados e entregues aos seus pensamentos (para o bem e para o mal) e ao constrangimento do contato do outro. O smartphone é para eles um refúgio.

Experiência 3: trajetos com uso do smartphone enquanto máquina fotográfica

Com exceção do sujeito 7, que relatou já ser praticante de fotografia analógica e, portanto, familiarizada com o processo, o exercício fotográfico nos espaços públicos cotidianos era uma novidade para todos os outros participantes.

Para descrever esta etapa do exercício, selecionamos alguns depoimentos que contêm elementos a partir dos quais podemos inferir sobre a natureza da experiência. O sujeito 1 confrontou inicialmente a sua timidez diante dos outros. “Não ousava fotografar”. Ele fotografou pés, ele se escondia, dando-se conta da falta de naturalidade das posições que ele tinha que assumir para fotografar as pessoas, “estava tão na cara que eu tomava cuidado”. A partir de um certo momento do seu trajeto, ele começou a se impor desafios e a experiência adquiriu uma outra dimensão, uma dinâmica lúdica. Seu desafio era o de fotografar sem que as pessoas percebessem. “Eu fingia jogar um jogo no telefone mas eu tirava fotos. […] Até onde posso ir sem que suspeitem de mim?” Outro desafio era o de efetivamente enquadrar seus objetos, ainda que no canto do quadro, nos limites da fotografia. O sujeito 1 demonstrou satisfação no cumprimento dos desafios. “No começo, vivi com dificuldade o fato de ter que tirar fotos, realmente não me sentia bem; depois virou um jogo, então foi uma experiência mais agradável”.

Podemos enfatizar alguns pontos interessantes. Primeiramente, o reflexo inicial era fotografar pessoas, ainda que isso representasse um desconforto (veremos que quase todos os sujeitos apresentaram a mesma tendência de interessar-se quase automaticamente por alvos humanos). Em segundo lugar, em momento algum ele se referiu ao seu smartphone. Mesmo que o jogo fotográfico tenha sido jogado com seu smartphone, o dispositivo parece ter perdido importância na experiência. O sujeito 1 havia baseado todo seu depoimento da primeira etapa na descrição de atividades “dentro” de seu smartphone. Na segunda etapa, ele havia antecipado a falta de smartphone trazendo o necessário para substituí-lo.

Em terceiro lugar, o sujeito descreveu não somente sua realidade circundante, mas sobretudo sua relação mental e gestual com o espaço vivido. O sujeito questionou-se a respeito do seu lugar em relação aos outros, do seu processo de tomada de posição, do olhar dos outros e do seu próprio. Estas questões são naturais para alguém que caça imagens e a natureza fenomenológica deste tipo de questionamento é nítida.

O sujeito 1 faz parte dos que se prestaram ao exercício fotográfico duas vezes. Na segunda tentativa, alguns obstáculos e dúvidas que o haviam bloqueado na semana precedente pareciam ter-se dissipado no caráter lúdico do procedimento. “Eu me diverti mais tirando fotos dessa vez porque eu o vivi como um jogo, me diverti fotografando principalmente as pessoas”. Espremido contra os outros passageiros no metrô, ele relatou ter fotografado menos os pés e as pernas e ter ousado enquadrar rostos, mesmo que discretamente. “Tive menos o sentimento de desconforto do que na primeira tentativa. Ainda o tive, mas como eu tomei a experiência como um jogo, eu me diverti me escondendo, encontrando técnicas para fotografar as pessoas da maneira mais frontal possível, enquadrando-as ao máximo no centro da imagem”.

Mais uma vez, o sujeito 1 esquece completamente do seu smartphone no seu relato sem sequer referir-se ao dispositivo. Seus questionamentos são relativos ao seu posicionamento em relação às situações vividas e sua postura diante do mundo é mais ativa que passiva, em oposição às etapas anteriores do experimento. A dimensão lúdica foi decisiva na sua experiência. A relação com a alteridade, inicialmente vivida como um desconforto, se transformou em uma espécie de coreografia. O sujeito viveu sua experiência através de uma tomada de consciência de si em contexto.

O sujeito 2 constitui um caso particularmente interessante para analisar. Sua reflexão no final da primeira realização do exercício fotográfico é curta, porém reveladora: “hoje me diverti tirando fotos durante meu trajeto […], e me dei conta de que não é por falta de assunto em volta que a gente é absorvida pelo smartphone, mas talvez por excesso. Normalmente, estou totalmente no meu telefone e só levanto a cabeça para ver se tem alguma pessoa idosa para ceder meu lugar, mas dessa vez percebi que realmente tem muita coisa para ver. Foi interessante pois para mim são coisas que nunca percebo e aqui foi diferente. […] Cada foto representa uma pequena história, um pequeno assunto, uma coisinha engraçada ou séria”. O sujeito 2 chamou-nos a atenção desde a primeira aula por sua reação quando anunciamos que uma etapa do experimento constituía num trajeto sem smartphone. Ela logo nos avisou que ela entretinha uma relação de intenso apego afetivo com seu smartphone e que a antecipação da experiência de ausência já a angustiava. Na ocasião do trajeto sem smartphone, ela havia desistido de concluir o exercício. Se sua expressão facial no vídeo da etapa sem smartphone denotava claramente um sentimento de angústia e apreensão, depois do exercício fotográfico, seu olhar deixava transparecer a serenidade de alguém que acaba de descobrir algo de revelador. O exercício lhe permitiu transformar situações opressivas (das quais ela se esforçava em escapar por meio do seu smartphone) em uma nova fonte de diversão (com as quais ela pode brincar com seu smartphone). A evolução do comportamento do sujeito 2 ilustra com precisão nossas hipóteses; ela passou de um extremo ao outro.

O sujeito 3, na sua primeira realização da terceira etapa, relatou uma dificuldade em lançar-se no exercício, justificando o fato de ter tirado apenas uma fotografia ao longo do trajeto. Ela relatou ter se deixado desmotivar pela dificuldade em obter uma fotografia com foco. Na segunda realização, ela demonstrou ter superado os bloqueios da primeira tentativa. Ela explicou que estava “à espreita” do que lhe interessava. “No começo, fotografei pessoas nos corredores, tentando ser discreta. Em alguns momentos, eu olhava o reflexo das pessoas nos vidros, é mais fácil olhá-los assim”. Ela relatou seu trajeto apontando, em cada situação, os elementos que atraíam seu olhar, sempre justificando seu interesse e revelando as projeções mentais que as situações lhe ocasionavam. Sua atenção ali estava orientada para a realidade circundante e sua intenção orientava-se para a repercussão das imagens que ela produzia. Cada situação capturada, cada fotografia que ela escolheu tirar projetava para o futuro a experiência dos espectadores potenciais. A dinâmica de hesitações que se estabeleceu na primeira realização do exercício transformou-se em procedimento narrativo.

O sujeito 5 teve inicialmente uma experiência bastante difícil na medida em que o exercício exigia dela um comportamento que ia de encontro com seus hábitos e com suas premissas sobre como se deve usar um smartphone num trajeto cotidiano. No seu relato, ela empregou um tom de voz no limite do aborrecimento e anunciou incisivamente que não repetiria o exercício. Selecionamos alguns trechos de seu depoimento que ilustram seus sentimentos frente à imposição de tirar fotografias. “Não é um comportamento normal e habitual […]. Não estava nem um pouco à vontade com essa experiência, a gente tem um sentimento de estresse. […] Não ouso, é algo que não se faz. […] Eu fiz, mas não farei mais!”

Na sua segunda tentativa, ela conseguiu adaptar-se. Ela tomou decisões que lhe permitiram confrontar o exercício sem o embaraço que lhe havia acometido na primeira tentativa. Ela mudou seu centro de interesse; orientou seu olhar para fora, para além da janela, e não mais para as pessoas em volta dela. Ela explicou que, estando apressada, não tirou fotos, mas observou atentamente as situações identificando as fotografias que poderia tirar. “Quando a gente se diz que tem que tirar fotos, a gente se dá conta de todo ambiente”. Ela concluiu da seguinte maneira: “a experiência me permitiu observar a paisagem durante meia hora de trajeto de trem e de esquecer das pessoas em volta, porque o que me interessa é a paisagem, eu estava mais à vontade com o exercício e isso me permitiu olhar mais o ambiente”.

Desde o começo do seu depoimento, o sujeito 6 demonstrou ter-se entregue ao jogo. Ela entrou no metrô com sua “máquina” na mão (ela diz “máquina” e não “smartphone”). Ela se posicionou de maneira a ter uma vista ampla da cena, “bem lá onde eu tinha um bom ângulo” diz ela. “Fiquei de frente para as pessoas; tinha duas fileiras de 4 cadeiras e uma fileira de 3, então, de onde eu estava, eu podia ver todo mundo”. Na medida em que as pessoas entravam no vagão, ela ia identificando suas fotografias potenciais. Ela compartilhou sua dificuldade em concretizar sua intenção, seja por problema de timing, seja por excesso de opções, “no momento em que decidi tirar a foto, outra pessoa chegou e me travou”. Ela percebeu algo de “inquisitivo” no olhar dos outros frente ao seu comportamento. Depois, ela tentou ver o que os outros passageiros faziam com seus smartphones. Ela concluiu relatando hesitação frente às situações que ela queria fotografar, “me perguntei muito se devia tirar fotos ou não”.

O último participante cuja experiência escolhemos mencionar é o sujeito 13. Ela apresentou na aula uma gravação da ambiência sonora do metrô. A gravação (em toda sua banalidade), que não dura mais do que trinta segundos, não contém nenhuma informação objetiva sobre sua experiência senão que ela nos mostra que o sujeito se prestou à atividade de uma maneira diferente dos outros participantes, ao ponto de transcender o suporte previsto para registrar as situações vividas. Esse comportamento deixa transparecer uma atitude cuja intenção não é nem narrativa, nem informativa, nem uma resposta direta às instruções do exercício. Estimamos que tal gravação deriva de uma intenção poética; uma forma espontânea e subjetiva de capturar camadas informativas da realidade circundante e de se adaptar às imposições do exercício. A grande maioria dos participantes relatou uma verdadeira dificuldade em tirar fotografias no metrô; o sujeito 13 subverteu as indicações dadas prestando-se a uma ação que se materializa por um gesto consideravelmente mais discreto.

Interpretação dos resultados

Ao longo das quatro semanas do experimento, recolhemos uma série de dados que nos permitiram colocar à prova as hipóteses que levantamos. Nosso objetivo era estabelecer um experimento capaz de gerar dados a partir dos quais poderíamos empreender um tratamento analítico qualitativo. Dessa forma, as grandes tendências comportamentais (e as respostas às perguntas que formulamos no começo do experimento) apareceram de maneira clara durante as sessões de discussão sobre os exercícios.

A cidade e o smartphone constituem, ambos, plataformas de experiências e, nesse sentido, realidades distintas. Essas diferentes temporalidades entretêm uma competição pela atenção do sujeito. A cidade solicita o sujeito por meio dos estímulos mais significativos da dinâmica de deslocamento; o sujeito deve ir de um lugar até outro, idealmente sem se perder e sem perigos maiores à sua integridade física. O smartphone atrai o sujeito pelo magnetismo vigoroso da sua tela luminosa e pelo universo de possibilidades de atividades (lúdicas, produtivas, comunicativas etc.) acessíveis pela tela. A cidade é, na maior parte dos casos, percebida como um mal necessário a superar para poder chegar aonde se quer ir. O smartphone é uma ferramenta de evasão eficiente para o sujeito que procura extrair-se mentalmente de situações “desagradáveis” da cotidianidade compartilhada. A dureza do contato com a alteridade e a monotonia anônima dos ritmos urbanos são relegados ao plano de fundo neste tipo de experiência. A imersão no dispositivo parece inverter a dinâmica das realidades percebidas; o mundo na tela do smartphone se torna progressivamente a principal fonte de dados da experiência, enquanto a realidade circundante gradualmente se virtualiza em sua repressão periférica. Isso até o advento de um evento situado suficientemente estimulante (para os sentidos) para recuperar a atenção do sujeito, antes que as circunstâncias o permitam novamente deixar-se levar pelo seu mundo-smartphone.

As duas primeiras etapas do experimento lograram ilustrar essa reflexão. A primeira pela importância central dos smartphones no relato da experiência; a segunda pela importância do vazio deixado pela ausência dos smartphones.

A segunda etapa nos permitiu adquirir uma noção palpável da natureza da relação estabelecida entre sujeito e smartphone durante os trajetos urbanos. Essa se revelou de ordem afetiva mais do que prática. Sem os seus smartphones, os sujeitos não se perderam, eles não chegaram atrasados ​​às suas reuniões (não mais do que o habitual), nem perderam oportunidades de trabalho. Eles se sentiram desmunidos, entediados e ansiosos; o tempo custava a passar. Eles se viram confrontados a eles mesmos e à presença humana, por vezes, avassaladora. Aqueles que não substituíram o smartphone por outra coisa (um livro, um jogo etc.) viveram a experiência com grande dificuldade.

Essa experiência nos traz elementos tangíveis para uma observação que se estabelece de maneira axiomática na atualidade. Nos tornamos dependentes desses dispositivos de bolso. Não pela vitalidade das suas inúmeras utilidades, mas porque atribuímos a eles uma parte da nossa intimidade e nos apegamos como nos apegamos a um espaço íntimo. O smartphone se estabelece como um refúgio, um abrigo, fonte de uma temporalidade paralela. O smartphone opera uma distração, no sentido anglo-saxônico do termo, isto é, um processo de desvio da atenção do sujeito. A relação com o objeto é da ordem do fetiche. Este pequeno objeto não é apenas transformador de realidade, ele é criador de realidade.

De maneira mais ou menos manifesta, em função do caso, os quatro aspectos da experiência fotográfica que apontamos na introdução são identificáveis na terceira etapa do experimento. A dimensão lúdica é a primeira que aparece de maneira evidente e consciente por parte dos sujeitos. A partir do momento em que se adota um conjunto de intenções que divergem das habituais e, a partir do momento em que essas novas intenções se traduzem em ação, o processo torna-se lúdico. Isso até quando a experiência é vivida com dureza, pois compreendemos o processo lúdico aqui, não como uma busca pelo prazer, mas como uma subversão das regras de uso.

O aspecto estético é observável através da transferência de atenção de um suporte de realidade para o outro. A atenção que o sujeito (cooptado pelo jogo fotográfico) atribui à realidade circundante é exacerbada. A observação atenta dos fenômenos do mundo circundante é uma condição para a realização da experiência; e isso pode ser inferido dos depoimentos propostos pelos participantes. Muitos esqueceram completamente de mencionar seus smartphones quando relatavam a experiência. Uma participante, por exemplo, se referiu ao seu smartphone como “máquina fotográfica”. Mesmo que o jogo fotográfico tenha sido jogado com o smartphone, este foi sublimado e destituído da sua essência solicitante, até desaparecer da experiência, por momentos. O brilho nos olhos do sujeito 2 ao relatar a descoberta de uma nova fonte de prazer é característico das experiências de fascínio.

O aspecto poético se manifestou mais claramente no sujeito 13 que subverteu as instruções do exercício, registrando a atmosfera sonora de um momento do seu trajeto. Ela foi além das indicações, de modo a encontrar (ou pelo menos procurar) sua maneira pessoal de abordar a situação. Ela entendeu (mesmo que talvez inconscientemente) que o exercício poderia ser realizado à margem de suas próprias regras. Este salto, o atribuímos à intenção poética, que busca redescrever a experiência do mundo.

O aspecto fenomenológico pode ser observado em todos os depoimentos. Podemos identificá-lo quando os participantes se questionam acerca de seu lugar na situação, quando adicionam uma camada de consciência ao processo de tomada de decisão sobre as posições a serem assumidas, num jogo de tensões internas e externas. A corporeidade da experiência torna-se evidente. Essa mecânica de alternância entre hesitações e decisões, resultando em tomadas de posições em relação ao mundo e, neste caso, em capturas de fotografias, é a dinâmica da dúvida fenomenológica explicitada por Flusser (2004, 2014). O estado de consciência que decorre dessa dinâmica nem sempre foi vivido com apreço. O olhar fenomenológico (ou pelo menos sua sugestão) foi experimentado como um choque, uma avalanche de realidade, um transbordamento de alteridade.

A relação com a alteridade revelada nesse momento do experimento escapou das nossas hipóteses iniciais. “Fotografar” tornou-se, para muitos participantes, sinônimo de “fotografar pessoas”. Embora quase todos eles (com exceção do sujeito 2) tenham vivenciado isso como um mal-estar, um duro desafio ou até mesmo uma aberração comportamental, visar os elementos humanos das situações pareceu constituir uma regra implícita, suscitando vívidos questionamentos acerca do lugar de cada um na dinâmica corporal dos espaços públicos compartilhados, da intimidade e até mesmo do direito de imagem.

Todos esses aspectos nos permitem afirmar que os participantes que efetivamente jogaram o jogo fotográfico contrariaram (ainda que por vezes de maneira embrionária) uma tendência estrutural do smartphone, sua capacidade de solicitar o sujeito e de abrigar sua experiência.


* Gabriel Bursztyn é doutor Ciências da Informação e da Comunicação pela escola Cognição, Linguagem e Interação da Universidade de Paris 8 – Vincennes – Saint-Denis, mestre em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade de Paris 3 – Sorbonne Nouvelle e graduado em Comunicação Social pela Universidade de Brasília. É pesquisador associado ao Laboratório de Tecnologia e Desenvolvimento Social (LTDS) e ao Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC). É fotografo e videasta.

** Roberto Bartholo é professor titular da UFRJ na área de Gestão e Inovação (GI) do Programa de Engenharia de Produção (PEP) da COPPE. Chefe do Laboratório de Tecnologia e Desenvolvimento Social (LTDS).

*** Khaldoun Zreik é professor titular, coordenador do departamento de Humanidades Digitais da Universidade de Paris 8 – Vincennes / Saint-Denis, diretor do grupo de pesquisa Cibermídia, Interação, Transdisciplinaridade e Ubiquidade (CITU).

 

Referências

BACHELARD, Gaston. La poétique de l’espace. France: Quadrige PUF, 2012.

BARTHES, Roland. La chambre claire: notes sur la photographie. Mayenne: Gallimard, 2016.

BARTHOLO, Roberto. Desatando a imaginação: breves notas sobre ética no mundo contemporâneo. Educação e contemporaneidade, Salvador, v. 22, n. 39, 2013.

CARERI, Francesco. Walkscapes. La marche comme pratique esthétique. Arles: Jacqueline Chambon, 2013.

DEBORD, Guy. Théorie de la dérive. Publié dans Les Lèvres nues n° 9, décembre 1956 et Internationale Situationniste n° 2, décembre 1958. Disponível em: http://www.larevuedesressources.org/theorie-de-la-derive,038.html.

FLUSSER, Vilém. Les gestes. Sofia: Al Dante/AKA, 2014.

FLUSSER, Vilém. Pour une philosophie de la photographie [essai]. Bulgarie: Circé, 2004.

MONTIER, Jean-Pierre. Henri Cartier-Bresson, l’art sans art. Paris: Flammarion, 1995.

PARRET, Herman. Épiphanies de la presence: essais sémio-esthétiques. France: PULIM, 2004.

RORTY, Richard. Contingência, ironia, solidariedade. São Paulo: Martins, 2007.

STRÖHL, Andreas. Introduction. In: FLUSSER Vilém. Writings. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2002.

SONTAG, Susan. Sur la photographie. Paris: Seuil, 1992.

ZREIK, Khaldoun. Enjeux de l’aménagement de la ville hybridée: une 4ème dimension. In: Hyperurbain 3: villes hybrides et enjeux de l’aménagement des urbanités numériques. Paris: Europia, 2012.

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ENTREVISTA COM ANDREAS FICKERS

Andreas Fickers é professor de História Contemporânea e Digital na Faculdade de Linguagem, Literatura, Humanidades, Artes e Educação, além de diretor do Centro de História Contemporânea e Digital (C2DH) da Universidade de Luxemburgo. O Centro visa a desenvolver novas ferramentas e tecnologias no campo da história digital contemporânea e promover uma abordagem prática na experimentação e reflexão criativa sobre a dimensão hermenêutica da história contemporânea e da história na era digital. Doutorou-se em 2002 na Universidade RTWH Aachen e trabalhou como professor assistente de história da televisão na Universidade de Utrecht (2003-2007) e professor associado da história da mídia comparada na Universidade de Maastricht (2007-2013).

Como foi a sua “entrada” no universo das Humanidades Digitais? Como você explicaria o termo para um público que está ouvindo falar sobre isso agora? O que seriam as Humanidades Digitais e como você localizaria a História Digital dentro desse campo?

Andreas Fickers: Entrei em contato com o campo das Humanidades Digitais (HD) um tanto atrasado (cerca de sete ou oito anos atrás). Como não é uma disciplina, mas sim um campo em emergência e constante negociação, percebi que estava ativo nele mesmo antes de saber que havia um campo específico. A minha entrada foi por intermédio de um projeto de pesquisa europeu denominado Video Active (2006-2009) nos quadros do FP7[1], que mais tarde se tornou o EUscreen (www.euscreen.eu). A ideia era construir uma plataforma europeia para o patrimônio audiovisual digitalizado de instituições de radiodifusão na Europa e, assim, promover pesquisas sobre a história transnacional e da televisão europeia. Assim, desde o início, meu papel foi o de construir pontes entre o mundo arquivístico e a rede de pesquisadores que trabalham na história transnacional da televisão. Por essa razão, criamos a Rede Europeia de História da Televisão em 2005, que, consequentemente, organizou workshops, conferências e livros publicados, além de números especiais sobre essa temática. De certa forma, eu comecei minha “carreira” em HD em um domínio que ainda é bastante marginal: história audiovisual.

O termo Humanidades Digitais conquistou mais e mais estudiosos em todo o mundo. No entanto, sabemos que o financiamento, as tecnologias e outros elementos estruturantes das condições de construção de um programa ou de um laboratório dedicado às Humanidades Digitais já estão disponíveis e acessíveis assimetricamente, apesar da diversidade presente no cenário global. Em uma perspectiva crítica, como lidar com esse fato?

Andreas Fickers: Uma maneira de lidar com essa assimetria ou desigualdade é promover o compartilhamento de ferramentas/recursos através de plataformas online. Plataformas como o Github estão visando ao compartilhamento de software de código aberto para aplicações HD; então, a comunidade HD deve aproveitar ao máximo as políticas e iniciativas de dados abertos. Por outro lado, iniciativas como “DARIAH-EU” visam e compartilham melhores práticas e ferramentas entre diferentes plataformas nacionais – basicamente com a ambição de evitar (custosas) “reinvenções da roda” e de construir as competências e lições aprendidas uns com os outros. Um grande problema de muitos projetos de HD é a característica do projeto, que é um tempo de vida limitado do financiamento associado a um projeto, fazendo de muitos investimentos de curto prazo um negócio arriscado em termos de sustentabilidade e impacto no longo prazo. Com base nas infraestruturas/ferramentas/tecnologias existentes, a adição de recursos específicos com base em necessidades concretas de pesquisa é, certamente, uma estratégia mais sustentável e provavelmente ajudará a desenvolver alguns “padrões ouro” ou “melhores práticas” em longo prazo.

É um fato relevante que o Centro de História Contemporânea e Digital de Luxemburgo possui métodos e ferramentas digitais para pesquisa e ensino de história como um dos seus principais objetivos. Você acha que o exemplo do C2DH, bem como de outros centros, contribui para uma mudança epistemológica no campo específico da História e lato sensu no campo das humanidades?

Andreas Fickers: Nosso Centro se concentra na reflexão crítica dos desafios epistemológicos e metodológicos ligados ao desenvolvimento e uso de novas ferramentas e tecnologias digitais para fazer história na era digital. Em vez de desenvolver/inventar novas ferramentas, tentamos colocar as mãos sobre ferramentas já existentes para testar sua usabilidade para pesquisas históricas. O Centro visa, portanto, promover uma abordagem experimental que descrevemos como thinkering – aproximando o “pensar” e o “brincar” para avançar tanto a nossa “literacia digital” quanto para atualizar a hermenêutica clássica das humanidades na era digital. A hermenêutica digital é necessária para refletir criticamente sobre as possibilidades e limitações das ferramentas e tecnologias digitais e para expandir o nosso conjunto de ferramentas metodológicas – a crítica algorítmica, crítica de ferramentas, crítica de fontes digitais e críticas de interface precisam se tornar parte do repertório hermenêutico em humanidades.

Em uma pesquisa que fiz, fiquei muito interessado no valor estético por trás da disseminação e produção de informação e conhecimento nas Humanidades Digitais. Busco uma tentativa de elaborar um pensamento crítico sobre as HD, chamadas por alguns de transdisciplina. Você diria que a narrativa do historiador também vem desenvolvendo cada vez mais um valor estético para sua legitimação e circulação em uma era de “curtidas” e compartilhamentos?

Andreas Fickers: Definitivamente sim! Eu não uso o termo “valor estético”, mas em minha própria prática de ensino e pesquisa busco experimentar novas estratégias de narrativas online, especialmente a transmedia storytelling. Usando diferentes tipos de fontes digitalizadas (textual, visual e oral), ela pede por uma melhor compreensão das narrativas convencionais relacionadas a mídias específicas, e sua combinação (na transmedia storytelling) é um desafio real para os historiadores (geralmente treinados para escrever artigos e livros!). Assim, as convenções narrativas e as expressões estéticas da narrativa histórica online diferem drasticamente das narrativas das escritas clássicas. Mas a maioria dos historiadores está mal preparada para aproveitar ao máximo o potencial narrativo da transmedia storytelling.

Outro elemento crítico na produção de novos conhecimentos em HD é a tendência crescente de visualizações de dados (redes, nuvens de palavras, simulações etc.). Estou preocupado com o fato de que muitos especialistas em humanidades tomem as “evidências visuais” de tais apresentações, valorizando-as em vez de serem capazes de “desconstruí-las” como representações baseadas em algoritmos, aproximações estatísticas e desenhos embasados em gráficos ou vetores. A “confiança nos números” (Ted Porter) pesa muito e os estudiosos das humanidades muitas vezes têm medo de questionar / interpretar a natureza construída de muitas dessas visualizações de dados.

É possível que algum dia naturalizemos em nossos currículos e praxis de pesquisa e ensino o digital como aspecto sine qua non para nosso ofício. Nesse contexto, seria possível considerar que um dia a História Digital, assim como as Humanidades Digitais, não suportará mais esse nome? Será apenas história novamente?

Andreas Fickers: Espero que sim! A literacia digital é para mim uma parte de uma “literacia multimodal” mais ampla. Formas específicas de expertises e conhecimentos agora ligados ao surgimento de novas ferramentas e tecnologias digitais certamente se tornarão parte do “cânone” das humanidades mais cedo ou mais tarde.

 

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How was your “entry” into the universe of Digital Humanities? How would you put it to an audience that is hearing about it just now, what would Digital Humanities be, and how would you locate the Digital History there?

Andreas Fickers: I came in touch with the field of Digital Humanities quite late (some 7 or 8 years ago). As it isn’t a discipline but rather a field in emergence and constant negotiation, I was actually active in the field before knowing that there was a specific field. My entry was through a European research project called “Video Active” (2006-2009) in the FP7 framework, which later became EUscreen (www.euscreen.eu) The idea was to build a European platform for digitized audiovisual heritage from broadcasting institutions in Europe and thereby promote research on transnational and European television history. So, from the very beginning, my role was to build bridges between the archival world and the network of scholars working on transnational television history. For that reason, we created the European Television History Network in 2005 which consequently organized workshops, conferences and published books and special issues on that topic. In a way I started my “career” in DH a domain which still is rather marginal: audio/visual history.

The term Digital Humanities has conquered more and more scholars around the globe. Nevertheless, we know that financing, technologies and other structuring elements for the construction of a program or a laboratory dedicated to the digital humanities are already available and accessible asymmetrically more for ones despite others in the global scenario. In a critical perspective how to deal with such a fact?

 Andreas Fickers: One way to deal with that asymmetry / or inequality is to promote the sharing of tools / resources through online platforms. Platforms like Github are aiming at sharing open source software for DH applications; so the DH community must take full advantage of open data policies and initiatives. On the other side, initiatives like “DARIAH-EU” aim at sharing best practices and tools among different national platforms – basically with the ambition to avoid (costly) reinventions of the wheel and in building on each other’s competences and lessons learned. One big problem of many DH projects is their project character – that is the limited lifespan of funding associated with a project, making many short-term investments a risky business in terms of sustainability and long-term impact. Building on existing infrastructures / tools / technologies and adding specific features based on concrete research needs is certainly a more sustainable strategy and will probably help to develop some “gold standards” or “best practices” in the long run.

If this fact is relevant. The Luxembourg Centre for Contemporary and Digital History has digital methods and tools for research and teaching history as one of its main objectives. Do you think that the example of the C2DH, as well as of other centers, contributes to an epistemological change in the specific field of History and lato sensu in the field of the humanities?

Andreas Fickers: Our Centre focuses on the critical reflection of the epistemological and methodological challenges linked to the development and use of new digital tools and technologies for doing history in the digital age. Rather than developing / inventing new tools, we try to put our hands on existing tools in order to test their usability for historical research. The Centre thereby aims at promoting an experimental approach that we describe as “thinkering” – bringing thinking and tinkering together in order to advance both our digital literacy and to update the classical hermeneutics of humanities to the digital age. Digital hermeneutics are needed to critically reflect on both the possibilities and limitations of digital tools and technologies and to expand our methodological toolkit – algorithmic criticism, tool criticism, digital source criticism and interface criticism need to become part of the hermeneutic repertoire in humanities.

In a research I have been doing, I have been very interested in the aesthetic value behind the dissemination and production of information and knowledge in the Digital Humanities. An attempt to elaborate a critical thinking about this, called by some as a transdiscipline. Would you say that the historian’s narrative has also been increasingly developing an aesthetic value for its legitimation and circulation in an era of likes and sharing?

Andreas Fickers: Definitely yes! I don’t use the term “aesthetic value”, but in my own teaching and research I try to experiment with new narrative strategies online, especially transmedia storytelling. Using different kind of digitized sources (textual, visual, aural) asks for a better understanding of the narrative conventions of specific media, and their combination (in transmedia storytelling) is a real challenge for historians (which are generally trained to write articles & books!). So, the narrative conventions and aesthetic expressions of historical storytelling online differs drastically from classical written narratives. But most historians are badly prepared to make full use of the narrative potential of transmedia storytelling.

Another critical element in the production of new knowledge in DH is the growing trend towards data visualizations (networks, word clouds, simulations etc.). I’m concerned that many humanities scholars take the “visual evidence” of such presentations for face value rather than being able to “deconstruct” them as representations based on algorithms, statistical approximations and graph – or vector –based drawings. The “trust in numbers” (Ted Porter) weighs heavily and humanities scholars are often afraid to question / interpret the constructed nature of many of such data visualizations.

It is possible that someday we will have naturalized in our curricula and praxis of research and teaching the digital as an aspect sine qua non to our craft. In this context would it be possible to consider that one day Digital History, like Digital Humanities, will no longer bear this name? It will only be history again?

Andreas Fickers: Yes, I hope so! The digital literacy is for me one part of a broader “multi-modal literacy”. Specific forms of expertise and knowledge now closely tied to the emergence of new digital tools and technologies will certainly become part of the “canon” of humanities sooner or later.


* Ricardo M. Pimenta é pesquisador 2 do CNPq (bolsa de produtividade) e Jovem Cientista do Nosso Estado FAPERJ (2018-2020). Pesquisador Associado do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT) do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). Professor Permanente do Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação (PPGCI/IBICT-UFRJ). Historiador pela Universidade Gama Filho (UGF) com pós-graduação em História do Brasil. Possui mestrado em Memória Social e Documento e doutorado em Memória Social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), com estágio doutoral na École des Hautes Études en Sciences Sociales – EHESS de Paris. É líder do grupo de pesquisa Informação, Memória e Sociedade (http://www.memoriaesociedade.ibict.br), registrado no diretório do CNPq, e coordena o Laboratório em Rede de Humanidades Digitais do IBICT (Larhud/COEPE/IBICT – disponível em http://www.larhud.ibict.br). Pesquisador associado do Laboratório Interdisciplinar sobre Informação e Conhecimento (LIINC/UFRJ) e membro da Rede Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade (LAVITS).

 

[1] O FP7 é o 7º Quadro do Programa de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico, que abrangeu o período de 2007 a 2013. O programa busca construir e viabilizar oportunidades para a União Europeia combinar a sua política de investigação com as suas ambições em termos de política económica e social por meio da consolidação do Espaço Europeu da Investigação (ERA).

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CRÍTICA E CRIME, EM 2666 DE ROBERTO BOLAÑO

Resumo: Este texto é uma leitura de duas partes do livro de Roberto Bolaño, 2666: “La parte de los críticos” e “La parte de los crímenes”. A tese que defendemos é: 2666 constitui uma experiência do limite, abre um espaço vazio entre representação e mundo, entre ficção e realidade. Essa experiência permite, do nosso ponto de vista, um descentramento da crítica literária e a individuação de uma nova tarefa para o pensamento: uma crítica que dê conta da ficção através de um pensar ficcionalmente e que abra mão, assim, de constituir-se referência do texto literário. Assim como as leis que regem a literatura são profundamente desestabilizadas, a lei como instituição também o é. Nesse sentido, a literatura desafia o direito e é desafiada por ele.

Palavras-chave: 2666, crítica, direito, vida, poder.

Abstract: This article aims to comment on certain premises of literature and law through the experience of reading two parts of Roberto Bolaño’s 2666: “La parte de los críticos” and “La parte de los crímenes”. We believe that 2666 provides a liminal experience, that is, it opens a void between representation and world, fiction and reality. This experience forces literary criticism to decenter and acquire a new duty: a criticism that accounts for fiction through a fictional way of reading and gives up being the reference to the literary text. As the literary institution and its laws are deeply destabilized by 2666, it follows that law as an institution is problematized as well. Literature defies law and is defied by it. In the friction appears a kind of reference that does not make a proper reference. Language – the language of law as well as the language in literature – does not describe, nor it represents anything but itself and limitless violence. In the frontier between literature and law, language and reality, life itself emerges.

Keywords: 2666, criticism, law, life, power.

 

1. O monstro latino-americano

Neste artigo[1], propomos uma reflexão sobre “La parte de los críticos” e “La parte de los crímenes” de 2666, do escritor chileno Roberto Bolaño. Acreditamos que o livro de Bolaño se constitua um espaço de experiência. O texto, como espaço de experiência, se torna possível quando a relação entre o plano da representação e a ordem do mundo enfraquece a ponto de desaparecer. Nesta abertura, a experiência se dá como pura imanência, além e aquém de qualquer juízo de valor. Em outras palavras, a experiência não remete a algo que a transcenda e, desse modo, a justifique. A experiência que o texto de Bolaño propõe tem a ver com o impossível, o impossível da representação, ou seja, aquilo que a representação deve excluir para constituir-se como tal. Esse impossível é a experiência como pura imanência. O que 2666 relata é a repetição infinita dessa experiência. Um relato que não pode ter fim e tampouco início, porque fim e início se dão somente dentro de uma temporalidade que se pensa teleologicamente. O relato se abre, em vez disso, na dobra de um início que é já iniciado e de um fim constantemente adiado.

A experiência, no momento em que se subtrai da ordem da representação, é uma experiência do limite. 2666 é um texto sobre a literatura na medida em que a literatura, distintamente da linguagem reflexiva redobrada na interioridade do “eu penso”, é capaz de levar o limite ao seu próprio limite (Foucault, 2004b). Quando as palavras e as coisas não coincidem mais, quando a representação não é capaz de corresponder à indeterminação do mundo, aquilo que surge é a experiência da linguagem como devir metamórfico. A ordem da representação se rompe e surgem as forças que existem somente em estado de agitação, remanejamento, mutação (Deleuze, 2002, p. 117). O limite é o lugar, ou melhor o não-lugar, onde as forças que Deleuze define como “forças do fora” emergem determinando outros compostos, outras possibilidades, outras experiências. A literatura, diz Deleuze, é uma prática do informe, da incompletude. Escrever é “caso de devir, sempre em via de fazer-se, e que extravasa qualquer matéria vivível ou vivida. É um processo, ou seja, uma passagem de Vida que atravessa o vivível e o vivido” (Deleuze, 1997, p. 11). Em 2666, a linguagem é levada ao seu limite, num “fora de si” que se manifesta na forma de uma dispersão e não de uma dobra, em um retorno dos signos sobre si mesmos. A palavra se torna transgressiva não pelo conteúdo de sentido que expressa mas porque chega ao próprio limite, ao ponto onde aceita dissolver-se no rumor, na negação daquilo que disse, no silêncio de um fora onde as palavras se seguem infinitamente (Foucault, 2004b). A realidade, em 2666, não é representável, surge somente sob a forma de um ruído mudo, como imagem de um sonho que desaparece apenas acordamos, como os risos que vêm do escuro das ruas das periferias que dão no deserto. Em um diálogo de “La parte de los crímenes”, é exatamente o ruído, o signo sem significado, que funciona como abertura do significado para além do signo. Haas, o gigante “gringo” acusado pelos crimes de Santa Teresa explica a Sergio González, o jornalista vindo da Cidade do México para uma entrevista, que a prisão conhece a sua inocência.

Y cómo lo saben? […] Es como un ruido que alguien oye en un sueño. El sueño, como todos los sueños que se sueñan en espacios cerrados, es contagioso. De pronto lo sueña uno y al cabo de un rato lo sueña la mitad de los reclusos. Pero el ruido que alguién ha oído no es parte del sueño sino de la realidad. El ruido pertenece a otro orden de cosas. Me entiende? Alguien y luego todos han oído un ruido en un sueño, pero el ruido no se produjo en el sueño sino en la realidade, el ruido es real. Me entiende? (Bolaño, 2009, p. 614).

O ruído, como o sonho, como o deserto de Sonora, não é uma metáfora, não representa nada além de si mesmo. É a realidade que se apresenta como excesso em relação à linguagem que tenta representá-la, como violência indiferenciada que suspende o sentido.

Em “La parte de los crímenes”, a violência surge por meio de uma linguagem voluntariamente burocrática. A descrição é aparentemente precisa: diz-se a idade, o peso, a cor dos cabelos, as feridas que são encontradas, as causas prováveis da morte, o lugar onde foram encontrados os corpos das mulheres assassinadas. Ao mesmo tempo, a descrição não descreve nada que não ela mesma, que não a violência da linguagem da descrição que repete, para cada cadáver, o mesmo macabro ritornelo.

Se o conhecimento, o saber, em “La parte de los crímenes” se dá através do sonho e do ruído, através de uma língua e uma linguagem que repete uma verdade que não é representação da realidade; se, enfim, o sentido é interrompido, é porque a língua à qual apela Bolaño é uma língua menor, desterritorializada, linguagem do sonho, do ruído no sonho individual ou coletivo que nos diz do mundo. Ao contrário de certa tendência crítica, pensamos que 2666 não se afirma ao afirmar-se numa relação dialética entre a ficção e a realidade; 2666 não é a denúncia da violência causada pelo capitalismo contemporâneo, neoliberal, patriarcal e político, e nem a representação do fracasso da modernização, e, nesse sentido, das estruturas do Estado e do direito. Mas abre um espaço de ruptura com qualquer narrativa política teleológica e progressista e demonstra o lado normalmente encoberto e desdiferenciado do direito e da literatura[2]. Por isso afirmamos a descentralização do olhar sobre o mundo que 2666 pode operar. Esse movimento, além de uma passagem em direção aos limites da América colonizada e terceiro-mundista, exige o abandono de noções pré-determinísticas de compreensão da literatura como instrumento de uma improvável revanche histórica[3]: a superação, no nível cultural, do atraso ao que o processo de colonização lhe haveria submetido.

Ao mesmo tempo, esse movimento nos conduz ao coração do direito moderno. A violência não é a negação do direito, mas aquilo que pertence ao direito, à sua origem e à sua história. Com uma expressão cheia de significados e à qual voltaremos, Walter Benjamin diz que “Das Drohende”, aquilo que ameaça, pertence ao direito, no sentido que o direito se debruça sobre o abismo da sua origem (Benjamin, 2012). A história do direito que podemos ler nas dobras de 2666 não é aquela que o direito conta sobre si mesmo, uma história gloriosa, de progresso, de reconhecimento, de realização do direito. É, ao contrário, a história da origem do direito moderno, a história de uma violência colonial que se repete em formas e modos distintos no presente pós-colonial.

Bolaño se identifica como escritor latino-americano e isso o insere num grupo bastante heterogêneo que herda a literatura com toda a sua ambiguidade: instrumento do poder, arma contra o poder ou, ainda, literatura como o contrário do poder: “Los que tienen el poder (aunque sea por poco tiempo) no saben nada de literatura, sólo les interesa el poder” (Bolaño, 2011, p. 333). Nossa leitura não adere à crença no caráter emancipatório que imputa à literatura uma certa tradição de pensamento e respeita unicamente “el lenguaje”, “las estructuras” e “la forma de mirar” (Bolaño, 2006, p. 107).

Faz sentido então afirmar que os elementos internos à 2666 e sua relação problemática com a realidade fazem da obra um tipo de monstro. Um monstro bem próprio à América Latina, uma ficção que não pode ser medida pelo seu grau de realidade, mas que não deixa de interrogar a realidade. Ciudad Juárez, a Santa Teresa, cidade vértice de 2666, como o inferno: “nuestra maldición y nuestro espejo, el espejo desasosegado de nuestras frustraciones e de nuestra infame interpretación de la libertad y de nuestros deseos” (Bolaño, 2011, p. 339). Como é típico do monstro, 2666 foge à representação, desativa as categorias do pensamento e os códigos da linguagem com os quais se gostaria de domesticá-lo, torná-lo inofensivo. Desse modo, como um monstro, o que produz é um excesso, que confunde a distinção entre ficção e realidade, entre sentido e não sentido, forçando os fins da literatura e abrindo-a para o impensado. Assim, em “La parte de los críticos”, os quatro modelos europeus da linguagem representativa, depois de uma longa peregrinação que os leva das salas de aula europeias a Santa Teresa, cidade de fronteira circundada pelo deserto, experimentam a aporia da crítica, a diferença irreconciliável entre pensamento e mundo, entre a linguagem e a vida. Amalfitano, “un náufrago, […] un profesor inexistente de una universidad inexistente, el soldado raso de una batalla perdida de antemano contra la barbarie” (Bolaño, 2009, p. 152) busca explicar a fenomenologia do intelectual e da sua sombra. Em um relato delirante, que parece uma paródia do mito da caverna, Amalfitano explica como o intelectual não é mais seguido da sua sombra, “en algún momento te ha abandonado silenciosamente. Tú haces como que no te das cuenta, pero sí que te has dado cuenta, tu jodida sombra ya no va contigo […]” (p. 162). As palavras de Amalfitano re-velam o caráter parasitário da crítica, o seu sonho, a sua impossibilidade:

en ocasiones sólo hay visto a su propia sombra que regresa a casa cada noche para evitar que el intelectual reviente o se cuelgue del portal. Pero él jura que ha visto a un escritor alemán y en esa convicción cifra su propia felicidad, su orden, su vértigo, su sentido de la parranda (Bolaño, 2009, p. 164).

Mas os críticos não compreendem, porque a aporia não se compreende, somente se experimenta. Liz Norton, a crítica inglesa, de fato, diz “No entiendo nada de lo que has dicho”. Amalfitano responde: “En realidad sólo he dicho tonterías” (Bolaño, 2009, p. 164).

Essa mesma impossibilidade, de reduzir o mundo à sua representação, encontramos em “La parte de los crímenes”. Ao trazer para dentro da obra os relatos policiais dos corpos das mulheres mortas, o livro demonstra os limites da literatura: precisamente, o ponto onde esta encontra o direito e o poder. O direito é o limite da literatura ali, o que está do outro lado. Mas a literatura também é o limite do direito. “La parte de los crímenes” é, do nosso ponto de vista, a materialização textual deste limite, uma vez que introduz na linguagem literária e na linguagem do direito um tipo de distúrbio no sistema da referência (Derrida, 1985). A linguagem não descreve nada, não representa nada além de si mesma, nada além da violência ilimitada do limite.

É também nesse encontro, nesse espaço fronteiriço de desafio daquilo que estrutura a realidade e o poder, que podemos imaginar um povo que falta. Os corpos das mulheres mortas no deserto de 2666, lugar fictício na fronteira não-fictícia do México e Estados Unidos, descritos como num relatório policial, povoam o que é, avante de nós[4], um vazio, a ausência das mulheres. Não se trata de pensar uma ausência que pertence ao passado, a falta das mulheres nos discursos sobre a literatura, a sociedade e o direito. Trata-se, ao contrário, de sugerir a não presença do gênero feminino num porvir em aberto, (somente) imaginável pela política, pela história, pela literatura. Trata-se, portanto, de vincular, como faz Derrida, o logocentrismo ao falocentrismo e de compreender a América Latina como espaço desse laço e desse ônus.

Os corpos das mulheres assassinadas surgem diante de nós com todos os machucados e todos os hematomas que são virtualmente permitidos, perpetrados, estimulados, amenizados e disfarçados pelo poder e também pelo micropoder latino-americanos. A crítica Sol Peláez sugere, com razão, que as várias leituras do livro de Bolaño que focalizam as consequências do neoliberalismo, com as maquiladoras funcionando como caso paradigmático, exaltam a violência econômica como explicação para as mortes das mulheres em “La parte de los crímenes” e tornam invisível a violência contra a mulher (Peláez, 2014, p. 36). Segundo essas leituras, o monstro 2666 funcionaria ou incomodaria por sua lucidez histórica e seu poder denunciatório. Para nós, 2666 faz mais do que isso e faz melhor.

2. Os críticos, a crítica

Em “La parte de los críticos”, há três críticos e uma crítica. Quatro europeus. Um italiano, um espanhol, um francês e uma inglesa que estudam a obra do misterioso escritor alemão Benno von Archimboldi, que nenhum deles, nem ninguém que lhes era próximo havia jamais visto. Os quatro, pode-se dizer, passam boa parte da trama de “La parte de los críticos” buscando conhecer pessoalmente Archimboldi. Desejam saber quem era o autor, onde estaria vivendo, que aparência teria. A cada congresso de literatura alemã, a cada candidatura do prêmio Nobel de literatura, uma esperança e uma decepção.

Durante unos meses se había hablado de que el propio Benno von Archimboldi pensaba acudir a esta magma reunión que congregaría, además de los germanistas de siempre, a un nutrido grupo de escritores y poetas alemanes, pero a la hora de la verdad, dos días antes de la reunión, se recibió un telegrama de la editorial hamburguesa de Archimboldi excusando la presencia de éste (Bolaño, 2004, p. 24).

“A hora da verdade” é uma expressão comum, mas que não foi ingenuamente escolhida por Bolaño. A hora da verdade não é só retórica, mas, ao contrário, alude à fome de verdade dos críticos e à identificação da verdade com o autor, com sua materialidade, com seu corpo físico, sua presença e sua voz. Os críticos, então, agem como detetives policiescos que buscam a verdade da obra que leem, buscam a essência daquilo que acreditam analisar. Essa atitude crítica, “sócio-psico-historicista”, tende a avançar contrariamente àquilo que Derrida entende ser a tarefa da crítica literária, a desconstrução “da solidariedade da literatura com a tradição metafísica” (Derrida, 2014, p. 81-82). Nesse sentido, ainda, a postura de Archimboldi, do autor que nunca responde, nunca comparece e simplesmente foge a qualquer possível responsabilidade em relação à sua obra é, paradoxalmente, a atitude mais responsável, posto que clama pela contra-assinatura dos seus leitores e deixa a literatura existir.

Mas os críticos interessados na verdade e nas referências externas que apaziguam a leitura e domesticam a obra não parecem querer lidar com uma instituição sem leis. Não são os quatro archimboldianos protagonistas de “La parte de los críticos” que enunciam, mas o narrador dá voz à ideia difundida entre eles e os demais archimboldianos das razões para, então, daquela vez, um Nobel ser concedido a Benno von Archimboldi:

Y tal vez los académicos suecos tenían ganas de un cierto cambio. Un veterano, un desertor de la Segunda Guerra Mundial que sigue huyendo, un recordatorio para Europa en tiempos convulsos. Un escritor de izquierdas al que respetaban hasta los situacionistas. Un tipo que no pretendía conciliar lo irreconciliable, que es lo que está de moda (Bolaño, 2009, p. 142).

E é por conta dessa veia investigativa, mas também por uma vaidade que se liga ao desejo de andar lado a lado com o autor, a autoridade e a origem que os críticos decidem ir à Santa Teresa, no México, em busca de Archimboldi: “Imagínate, dijo Pelletier, Archimboldi gana el Nobel y justo en ese momento aparecemos nosotros, con Archimboldi de la mano” (Bolaño, 2009, p. 142).

As estratégias detetivescas dos críticos archimboldianos, ao contrário do que se poderia assumir, não estavam em ler e reler seus livros, mas em ouvir relatos, depoimentos, conhecer conhecidos de conhecidos, viajar, perguntar, visitar, conjecturar, seguir pistas. É assim que juntam as escassas informações que têm sobre a suposta ida de Archimboldi ao México e decidem partir em sua busca. É com esse espírito que, juntamente a Amalfitano, resolvem percorrer todos os hotéis da cidade e das redondezas. É assim que chegam a um circo que teria empregado um alemão cuja nacionalidade, de fato, era americana. E se essa estratégia não dá em nada – posto que os críticos não encontram Archimboldi – é a metodologia crítica per se, o ler e reler a obra, que parece gerar em Pelletier e Espinoza, pouco antes de que partissem de volta à Europa, a ciência da impossibilidade e da inutilidade da busca pela essência.

No vamos a encontrar Archimboldi.
Hace días que lo sé – dijo Espinoza. […]
Sin embargo – dijo Pelletier –, estoy seguro de que Archimboldi está aquí, en Santa Teresa. […]
Créeme – dijo Pelletier con una voz muy suave, como la brisa que soplaba en ese instante y que impregnaba todo con un aroma de flores –, sé que Archimboldi está aquí.
En donde? – dijo Espinoza.
En alguna parte, en Santa Teresa o en los alrededores.
Y por qué no lo hemos hallado? – dijo Espinoza. […]
Eso no importa. Porque hemos sido torpes o porque Archimboldi tiene un gran talento para esconderse. Es lo de menos. Lo importante es otra cosa.
Qué? – dijo Espinoza.
Que está aquí – dijo Pelletier, y señaló la sauna [….]
Te creo – dijo, y en verdad creía lo que decía su amigo.
Archimboldi está aquí – dijo Pelletier –, y nosotros estamos aquí, y esto es lo más cerca que jamás estaremos de él (Bolaño, 2009, p. 206).

Se a empreitada dos críticos termina assim, podemos afirmar, por outro lado, que toda a busca por Archimboldi se conformava numa potente empresa com vistas a domesticar o escritor. Os críticos, mais especialmente o espanhol, o francês e a inglesa, se imbuem de um tipo de missão de resgate do escritor que “equivocadamente” se encontrava em território americano. Esse movimento de recuperação toma ares de uma dupla expedição colonial. Primeiro e mais obviamente porque Espanha, França e Inglaterra formaram as três principais potências colonizadoras do continente americano. As nacionalidades escolhidas por Bolaño para os críticos não nos permitem seguir a leitura senão por aí. Mas, além disso, Espanha, França e Inglaterra também são consideradas o berço da literatura ocidental moderna. Isto é, se a literatura é uma instituição moderna, ela tem sua origem na Europa (Derrida, 2014). Origem e essência, contudo, não se identificam. Os críticos buscam a essência da literatura, confundindo-a com sua origem. Ainda mais porque a essência, compreendida como origem (sempre deslocada – Archimboldi, entendido como origem da obra, nunca foi acessível), haveria, dessa vez, se movido em direção à América. De qualquer forma, podemos afirmar que se trata de três críticos (Morini, o crítico italiano, nunca havia deixado o velho continente) numa missão que viria cobrar e recobrar a origem da literatura (de Archimboldi), de forma muito parecida às expedições europeias que, além da conquista num primeiro momento, buscavam na América a origem de espécies naturais e a essência da vida em geral.

A crítica, como modalidade de pensamento tipicamente moderna, assim como a colonização, portanto, não pode não se assumir colonizadora; paradoxalmente, subordinada ao território a que se dedica e no qual se embrenha. Se, como diria Deleuze, o escritor está preocupado não com a literatura, mas com a vida, os críticos, por sua vez, veem o sentido das suas vidas na literatura, desenvolvendo uma espécie de relação de dependência, quando não parasitária. Derrida diria que “a ‘boa’ crítica literária, a única que vale a pena, implica um ato, uma assinatura ou contra-assinatura literária, uma experiência inventiva da linguagem, na língua, uma inscrição do ato de leitura no campo do texto lido” (Derrida, 2014, p. 78). Mas esse é precisamente o ponto limítrofe da crítica. Momento em que a oposição entre crítica e literatura não faz mais sentido.

Os críticos archimboldianos – Espinoza e Pelletier (Norton já havia partido de volta à Europa) – adeptos de uma prática crítica fundada sobre a diferença entre o ser e a representação, só podem terminar sua missão crítica melancolicamente, afrontando o limite que em última instância os paralisa. É o reconhecimento dessa aporia que faz com que Pelletier não saia mais do hotel, não se mova mais em direção alguma em Santa Teresa e somente espere que Espinoza volte de suas investidas ao mercado e aos bares locais.

A veces Pelletier estaba en la piscina, abrigado con un suéter o con una toalla, bebiendo whisky a sorbitos. Otras veces lo encontraba en una sala presidida por un paisaje enorme de la frontera, pintado, eso se adivinaba en el acto, por un artista que no había estado nunca allí: la industriosidad del paisaje y su armonía revelaban más un deseo que una realidad (Bolaño, 2009, p. 199).

A crítica, a crítica moderna eurocêntrica de Pelletier e Espinoza, não pode contra-assinar o texto, como descreve Derrida, até borrar o limite que separa a crítica da literatura. Não se trata de uma crítica somente inventiva, mas de uma crítica que, diante do inconcebível e incognoscível ser do Outro descobre seu próprio limite. É quando, como explica Bolaño, a paisagem real da fronteira se deflagra diante dos críticos que se compreende que a representação, no quadro, revelava “más un deseo que una realidad”. Não há correspondência possível entre a obra e o escritor, entre “representação” e vida. Ler os livros de Archimboldi em Santa Teresa era o mais próximo ao escritor que os críticos haveriam de chegar, era o mais próximo à vida.

É aqui que a anedota em “La parte de los críticos” sobre o artista plástico Edwin Johns, cuja obra-prima consistia num quadro que colava à tela sua mão direita, cortada pelo próprio artista, além de funcionar como uma espécie de catalizador da experiência de Liz Norton no México, adquire plena significação. Em sua correspondência com Pelletier e Espinoza, Norton conta que, ao voltar a Londres, havia estado numa exposição de Johns.

Me detuve delante de una especie de paisaje, un paisaje de Surrey, de la primera etapa de Johns, que me pareció melancólico y a la vez dulce, profundo y en modo alguno grandilocuente, como sólo pueden serlo los paisajes ingleses pintados por pintores ingleses (Bolaño, 2004, p. 195).

Em contraste com a grandíssima paisagem da fronteira mexicana, idealizada e artificial, no quadro do hotel em Santa Teresa, a paisagem pintada que descreve Norton tem as qualidades do comedimento e da perspicácia inglesas. O interessante é que, nesse caso, não só o retrato seria dotado de tais qualidades, mas também a paisagem em si e o próprio pintor. Todos ingleses. O que invoca Norton é a sensação da medida certa, das proporções exatas entre objeto representado, sujeito representante e meio de representação. O sentimento de familiaridade se confirma porque Norton afirma que “con ver ese cuadro ya tenía suficiente” (Bolaño, 2009, p. 195) e se dispunha a partir. A doçura da obra que tão harmonicamente mostra o que vê o artista inglês e o que veem todos os ingleses, no entanto, foi bruscamente interrompida pela visão, no outro lado da galeria, do quadro “con la mano cortada, la pieza maestra de Johns, y en donde con números blancos se señalaba su fecha de nacimiento y su fecha de muerte” (Bolaño, 2009, p. 195). O reconhecimento de que Johns estava morto e não onde pensava a crítica inglesa: num manicômio na Suíça rindo de si mesmo e dos outros; essa crise instaurada pela diferença entre representação e vida ou a ideia que havia da vida que levava Johns e a morte do artista é, ainda, aumentada por sua obra-prima, o quadro com sua mão decepada. Esse quadro já operava naquele limite de confusão entre ficção e realidade, vida e obra, literatura e crítica, verdade e representação. Essa fronteira, que nunca havia sido o lugar que ela e os críticos archimboldianos haviam habitado, esse espaço de algum desentendimento (onde se inventa algo, se contra-assina uma obra), essa faixa de indiscernimento a que a obra-prima de Johns tão bem alude, cria um significado para a experiência no México dos críticos que a crítica não pode suportar. Norton deixa o México por não conseguir e não querer habitar aquela fronteira incerta. É a incerteza da vida que ela deixa para trás ao retornar à Inglaterra e ao afirmar, no final do seu relato sobre Johns, que muito mais real que Johns, sua mão e sua morte era a paisagem suíça que ela imaginava a partir do relato de Pelletier e Espinoza sobre quando ambos haviam estado, com Morini, no “manicomio civilizado” onde Johns vivia internado. Mas, àquela descrição, Norton adicionaria os detalhes contados por Morini sobre o acidente que causara a morte de Johns: a queda em um abismo. Johns, acompanhado por um auxiliar e por uma enfermeira que usou de modelo, desenhava uma paisagem que “comprendía la cascada, las montañas, los salientes de roca, el bosque y la enfermera que ajena a todo leía el libro” (Bolaño, 2009, p. 197), quando haveria escorregado e caído. Entre a morte e a representação da paisagem, Norton não hesita na sua escolha, mas a estada no México talvez tenha transformado sua capacidade de experimentação. Talvez, até, Norton já estivesse se endereçando à vida ao rasurar uma representação “sob medida”, incorporando os contornos da morte: “mucho más real resultaba el paisaje suizo, ese paisaje que vosotros visteis y que yo desconozco, con las montañas y los bosques, con las piedras irisadas y las cascadas de agua, con los barrancos mortales y las enfermeras lectoras” (Bolaño, 2009, p. 198).

3. Os crimes, a violência e o poder

“La parte de los crímenes” é, seguramente, a aposta mais alta de Bolaño numa escrita do limite, é seu investimento mais robusto em uma zona onde ficção e realidade não funcionam como categorias independentes. Sol Peláez (2014) vê a impossibilidade de um julgamento definitivo sobre o estatuto, ficção ou realidade, da narrativa. Ela chama nossa atenção para a expressão que as mulheres que haviam encontrado o corpo da jovem morta, o primeiro corpo encontrado na narrativa, utilizam para dizer que não a conheciam: “Esta criatura no es de aquí” (Bolaño, 2009, p. 443). Peláez alude, por meio da expressão que Bolaño escolhe colocar na boca das mulheres, ao outro lugar de onde aquela criatura poderia ser: não a obra literária, mas a realidade.

Santa Teresa, lugar imaginado no real deserto do norte do México e do sul do Novo México, estado norte-americano, é o nome em 2666, de Ciudad Juárez. Assim como os corpos das mulheres assassinadas, esse local nos coloca na aporia da situação limite, quando nenhum juízo é claramente possível e o que há é indiscernível. Os contornos da cidade nunca parecem ser estabelecidos. Narrativamente somos conduzidos à sempre maior periferia da cidade, aos seus incontáveis parques industriais e lícitos e ilícitos basureros. As mulheres mortas muitas vezes não são identificadas, muitas outras não são sequer reclamadas por qualquer familiar ou amigo. O tempo é incerto: quando começaram as mortes, quando ocorreu uma específica morte, quando nasceu ou quantos anos tinha uma menina ou uma mulher morta. Quando o primeiro corpo aparece, na primeira página de “La parte de los crímenes”, o narrador nos diz que o ano é 1993, “enero de 1993” (p. 444) e que a partir de então se começou a contar os assassinatos de mulheres. Mas é esse mesmo narrador quem nos lança, já aí, no absurdo:

Pero es probable que antes hubiera otras. La primera muerta se llamaba Esperanza Gómez Saldaña y tenía trece años. Pero es probable que no fuera la primera muerta. Tal vez por comodidad, por ser la primera asesinada en el año 1993, ella encabeza la lista. Aunque seguramente en 1992 murieron otras. Otras que quedaron fuera de la lista o que jamás nadie las encontró, enterradas en fosas comunes en el desierto o esparcidas sus cenizas en medio de la noche, cuando ni el que siembra sabe en dónde, en qué lugar se encuentra (Bolaño, 2009, p. 444).

Essa indeterminação, tão real quanto o livro e as reportagens do escritor e crítico literário Sergio González Rodriguez que Bolaño leu, se instala em todos os níveis da narrativa de Bolaño sobre o feminicídio em Ciudad Juárez. Aqui, o que se gostaria de manter separado, claro e distinto é violentamente confuso, nada pode ser decidido, nem julgado.

“La parte de los crímenes” é uma aposta alta, um passeio na borda de um precipício. Seu estilo, suas repetições, o mantra das mortes e dos encontros dos corpos. O refrão dos casos encerrados sem resolução, sem identificação, sem compreensão. Um sem número de assassinatos aos quais não se dedica atenção policial suficiente. Montanhas de corpos mortos virtualmente permitidas, omitidas e estimuladas pela violência econômica (o neoliberalismo, as maquiladoras e o narcotráfico); sociocultural (o patriarcalismo); física (do homem sobre a mulher). Mas essa macro violência se inverte, funciona e reproduz-se internamente às relações cotidianas, familiares, determinando uma violência difusa, que passa através dos corpos, os constitui e destitui como objetos de uso e de abuso. Sol Peláez (2014) fala de “violência menor” quando pensa “La parte de los crímenes”. O certo é que a violência é ostensivamente efetuada contra a mulher, com exceção, talvez, dos crimes cometidos na prisão, quando a narrativa se dedica a Haas, possível bode expiatório que a polícia local incrimina e mantém detido, ainda quando os crimes seguem sendo cometidos.

Os corpos encontrados estabelecem o compasso e o ritmo da narrativa de “La parte de los crímenes”. É o único tema que retorna, diferente mas repetido, enquanto outras pequenas histórias se desenvolvem e são deixadas: o caso do penitente, o caso de amor entre um judicial e a diretora do hospital psiquiátrico, a chegada de um sherif americano, a eventual cobertura da imprensa, a vinda do ex-agente do FBI. Com Deleuze e Guattari (1997 [1980]), diríamos que o ritornelo dos corpos encontrados pela/na narrativa cria um território e que este é expresso tanto porque os corpos são corpos de mulheres (um território das mulheres) quanto pela linguagem forense (o território da lei). E esta última, ainda que normalmente utilizada no sentido da desambiguação e clarificação, participa, em vez disso, do intenso absurdo que é “La parte de los crímenes”. Se a linguagem forense é expressão do território da lei, sua incapacidade de julgamento e sua impotência num julgamento resulta na e da (in)operância de um suposto direito.

Os corpos das mulheres assassinadas desenvolvem uma função determinante em 2666. São capturados na linguagem que descreve a morte e nas práticas de um poder que extrai o seu valor de uso dentro de uma economia política da exploração, econômica e sexual. Ao mesmo tempo, porém, constituem o espaço de emergência tanto da aporia do direito moderno, do seu paradoxo constitutivo, quanto de um dispositivo de poder intrinsicamente violento, que funciona mais e mais independente da lei e que se manifesta na sua suspensão, no seu silêncio e na sua incapacidade de decidir. Santa Teresa, já dissemos, constitui o limite de um discurso moderno, das categorias sobre as quais ele é construído e das distinções que usa para poder funcionar. Em “La parte de los críticos”, o limite é aquele entre ficção e realidade. É o limite com que opera a crítica como discurso que reivindica um estatuto de verdade. Em “La parte de los crímenes”, ao contrário, o limite tem a ver com a relação entre direito e violência, o limite com o qual opera o direito moderno como mecanismo social de neutralização do conflito.

Em 2666, Santa Teresa é Ciudad Juárez, mas Ciudad Juárez é Santa Teresa. A ficção da realidade não é distinguível da realidade da ficção. Nessa duplicação da ficção através da realidade e da realidade através da ficção, não é possível distinguir platonicamente a cópia do simulacro, não é possível distinguir o verdadeiro do falso. Porque, na ausência de uma metafísica de uma ontologia do modelo, cópia e simulacro não são distinguíveis. É aqui que o discurso dos críticos chega a tocar o próprio limite.

Crítica na tradição moderna, com Kant, significa determinar as condições para um uso correto da razão a partir da definição dos limites. O limite na tradição filosófica moderna indica aquilo que é necessário reconhecer e determinar para poder responder às três questões que fundam a empresa crítica de Kant: o que posso conhecer? Como posso agir? O que posso esperar? A crítica tem por objeto não o dado, mas o modo com que algo é dado. Ora, em Santa Teresa, os críticos experimentam o limite: a distância do mundo, segurança e garantia da crítica, esvanece e, pela primeira vez, eles se encontram imersos no mundo. É assim que se torna cada vez mais complicado pressupor uma consciência correlata ao mundo, porque falta a distância que separa o pensamento e o mundo. A consciência não é mais a condição de “pensabilidade” do mundo, mas é somente uma sua dobra. A condição que os críticos experimentam em Santa Teresa é a impossibilidade da crítica como mimesis. Os pressupostos do dizer e do fazer parecem frágeis e sem fundamento. Como disse Amalfinato, alguém acredita ver um escritor alemão, mas é somente uma sombra, a sombra de quem acredita ou quer crer que é ainda possível distinguir entre aparência e realidade, entre cópia e simulacro.

Em “La parte de los crímines”, nós dizíamos, os corpos das mulheres são capturados na linguagem, são corpos falados. Se manifestam no burburinho desse encontro com a linguagem que os (de)nomina. A listagem, página após página, dos nomes e dos modos como foram assassinadas as mulheres, apesar da aparente precisão do relato, tem, entretanto, um efeito alucinatório, em que cada singularidade é perdida, um nome é equivalente a outro. Esperanza Gómez Saldana, Luisa Celina Vázquez, Isabella Urrea, Isabel Cansino, Guadalupe Rojas, Emilia Mena Mena, Margarita Lopez Santos, todos diferentes e todos iguais, indistinguíveis apesar dos nomes, todos destinados a serem nada mais que uma marca de tinta sobre um relatório policial, ou em um artigo de jornal, ou em um livro, evidentemente. Nomes que são a repetição, cento e oito vezes, do “mesmo” nome: corpo de mulher que pode ser violentado, mutilado, assassinado e, enfim, abandonado num “lixão”, em uma rua empoeirada de uma periferia que se perde no deserto. O que emerge desse ritornelo macabro do nome é a impossibilidade de nominar, o vazio que se abre entre a linguagem e aquilo que se quer descrever. Os corpos estão dentro da linguagem, eles existem somente na trama de um poder que lhes plasma como corpos dóceis a serem explorados nas maquiladoras, como corpos-órgão: corpo ânus, corpo vagina, corpo seio. Corpos organizados hierarquicamente dentro de relações patriarcais que estabelecem as normas para seu uso e abuso. Ao mesmo tempo, o corpo constitui aquilo que excede a linguagem que o nomina, hierarquiza e plasma. Os corpos das mulheres assassinadas são nomeados e permanecem inomináveis. Nesse excesso, as mulheres assassinadas nos conduzem à aporia do direito moderno.

No espaço poroso da fronteira, o direito é indistinguível da violência, no sentido em que o direito se manifesta como violência e a violência se coloca como direito. Entre a cidade e o deserto, lixões e maquiladoras, em uma periferia que não começa e nem termina, justamente como o ar do deserto que cobre tudo, a tradição jurídica moderna experimenta a própria impossibilidade de fundar a diferença entre violência e direito. O pensamento jurídico-político moderno, tanto com Hobbes e a antropologia política, quanto com Weber e Schmitt, havia visto na violência aquilo que deveria ser domesticado e neutralizado para tornar possível o estado, a sociedade civil, a liberdade. O direito se configurava como o dispositivo através do qual a violência vinha excluída por meio da sua inclusão na ordem do direito como violência legítima. “La parte de los crímenes” constitui uma radical desconstrução de tal tradição. Trata-se de uma viagem ao coração do direito moderno. Em Zur Kritik der Gewalt, o jovem Benjamin escreveu que havia algo de podre no direito, etwas Morsches im Recht (2012, p. 68). O cheiro de podre que o direito emana diz respeito ao direito, à sua origem e sua conservação. O direito funda a si mesmo, constrói continuamente a própria diferença ocultando, nessa operação, o “infundamento” da origem. Atrás do direito tem um vazio que Derrida chama, retomando Benjamin, de violência: “Já que a origem da autoridade, a fundação ou o fundamento, a instauração da lei não podem, por definição, apoiar-se finalmente senão sobre elas mesmas, elas mesmas são uma violência sem fundamento” (Derrida, 2010, p. 26). A violência é, em um certo modo, o signo da aporia e um nome para o indecidível (La Capra, 1994). A violência é o conceito designado a resolver o paradoxo da origem. A origem, o não-fundamento do direito, reaparece como aporia em cada decisão jurídica. Em cada evento-decisão, em cada diferença, em cada operação do direito reside um espectro substancial, o indecidível (Derrida, 2010). Os casos das mulheres assassinadas não são resolvíveis, não só por causa da corrupção e desinteresse da polícia, mas porque remetem a um modelo de poder no qual o direito, como sistema de neutralização da violência, não funciona mais.

Ao final de um caso, o narrador declara: “Vanos fueron todos los intentos de identificarla y el caso se cerró” (p. 630); no seguinte: “El caso lo llevó el judicial Carlos Marín y no tardó en clasificarse como caso no resuelto” (630); em outro, próximo: “El caso lo llevó el judicial Lino Rivera, quien inició y agotó sus pesquisas interrogando a las compañeras de trabajo y tratando de encontrar a un novio inexistente. No se rastreó la zona del crimen ni nadie tomó moldes de las numerosas huellas que había en el lugar” (p. 631). E no seguinte: “No tenía papeles que facilitaran su identificación y nadie acudió a reclamar el cadáver, por lo que su cuerpo fue enterrado, tras una espera prudencial, en la fosa común” (p. 631). Dos corpos, muitas vezes, esclarece o narrador, não se sabe nem há quanto estariam sem vida: “Según el informe forense se trataba de una mujer, y las causas de la muerte, debido al tiempo transcurrido, quedaron sin determinar” (p. 775). Ainda quando o suposto assassino, o gigante loiro Haas, é preso, o processo é sempre adiado, mês a mês.

Mas, na “indecidibilidade” jurídica dos casos, na impossibilidade de finalizar um processo, surge o outro lado do direito, o direito da violência (e o direito que a literatura tem de incluir a violência). Uma das passagens mais violentas de “La parte de los crímenes” é um “suplício”. Na lavanderia da prisão de Santa Teresa, os membros de um grupo, os Caciques, são literalmente empalados. A lei da prisão é clara a todos. Os presos esperavam os membros do grupo: “Klaus Haas sentió la excitación delas crujías y se preguntó si cuando él llegó había pasado lo mismo. No, esta vez la expectación era distinta. Tenía algo de espeluznante y algo que alivianaba” (Bolaño, 2009, p. 651). Os carcereiros, quando os três membros estão na lavanderia sob tortura e diante da morte,

desde una ventana […] observaban la escena que se producía en la lavandería. La luz que salía de aquella ventana era amarilla y débil en comparación con la luz que irradiaban los tubos fluorescentes de la lavandería. Los carceleros, notó Haas, se habían quitado las gorras. Uno de ellos llevaba una cámara fotográfica (Bolaño, 2009, p. 652).

Quando Haas conta à sua advogada o que havia acontecido, a resposta é: “Y tú crees, dijo la abogada, que afuera no lo saben? Ay, Klaus, qué ingenuo eres” (p. 655). A violência não opera aqui como o momento de fundação da ordem, mas como instrumento ordinário de gestão das relações sociais. Na parte dos crimes, no silêncio do direito, emerge o direito da violência não como exceção soberana e fundadora, mas como práxis de governo de toda a economia, textual e não. Mas 2666, como dissemos, não é representação da violência, da violência do direito sem direito que se manifesta e funciona no espaço da fronteira real e imaginária. Não é uma crítica do direito e da violência. “La parte de los crímenes” rompe o quadro da representação e conduz a linguagem mesma do direito ao seu próprio limite. O que surge é a violência do direito sem direito, mas mesmo isso foge, inquieta e desativa a linguagem do poder. Quando o poder se torna poder da vida, poder sobre os corpos, a resistência ao poder se torna resistência da vida contra o poder. Os corpos das mulheres assassinadas, dissemos, estão presos na linguagem, linguagem do texto, do poder econômico, do direito; mas, ao mesmo tempo, a multidão dos corpos mutilados, machucados, cortados constitui, apesar de tudo, um excesso, inapagável e inassimilável. Um excesso espectral que implica a abertura ao fora da representação, àquele fora sempre irrepresentável. Os relatos dos corpos são uma abertura constante ao fora e a escrita de Bolaño se apresenta como escrita da resistência.

4. O povo que falta

O personagem de “La parte de los crímenes”, o jornalista Sergio González, é especialmente eficaz no estabelecimento da confusão das fronteiras entre realidade e ficção, complicando, assim, a possibilidade de um juízo crítico. O caos se instaura a partir do fato de que o jornalista do DF, cujas reportagens sobre mulheres mortas em Ciudad Juárez Bolaño efetivamente seguia, se chamava Sergio González Rodriguez. Os dois Sergios eram jornalistas de cultura e escritores. Os dois passam a investigar os crimes contra mulheres no norte do México. González Rodriguez escreveu um livro e tornou-se o grande e melhor denunciador do feminicídio que assola o norte do país latino-americano desde, “pelo menos”, 1993. O personagem Sergio, nesse sentido, também funciona como um excesso, algo que não cabe totalmente em 2666, um personagem cujo nome nos remete ao fora da linguagem e à vida mesma. Não se trata de imaginar um como referência do outro, mas, ao contrário, de suspeitar que um e outro se conduzem em direção aos limites da realidade e da ficção, insinuando-se em ambas e tornando-se, portanto, e por conta do mesmo nome, uma espécie de nó indesatável, que resiste e perdura. Contudo, se a engenhoca “La parte de los crímenes” de Bolaño faz algo que seja diferente da contínua supressão das mulheres na história, nos imaginários e na economia latino-americanos, isso acontece não somente pelos corpos encontrados que povoam 2666. Bolaño, ademais, situa duas mulheres, duas personagens mulheres que veem, denunciam e estão, de certa maneira, por trás das ações investigativas do Sergio-personagem: Florita Almada e Azucena Esquivel Plata.

Florita Almada é uma yerbatera que tem visões das meninas e das mulheres mortas em Santa Teresa. Ela, porque fala disso num programa de TV, é a primeira a falar em mortes em série, a falar das mortes como assassinatos, numerosos e repetidos assassinatos de mulheres, chamando a atenção do público de TV, de uma massa, portanto. Não que sua denúncia tenha sido levada a sério. Não que ela tenha efetivamente mudado o rumo dos assassinatos. O próprio Sergio-personagem a visita, mas segue descrente no seu confronto. Mas Bolaño cria uma vidente, uma mulher de setenta anos que num transe durante a emissão televisiva declara “a verdade”: “Cerró los ojos. Abrió la boca. Su lengua empezó a trabajar. Repitió lo que había dicho: un desierto muy grande, una ciudad muy grande… Es Santa Teresa! Es Santa Teresa! Lo estoy viendo clarito. Allí matan a las mujeres. Matan a mis hijas. Mis hijas! Mis hijas!” (p. 546).

O ventríloquo, a atração anterior a Florita no programa televisivo de variedades, sentiu o cheiro do perigo:

la revelación no solicitada y posteriormente tampoco entendida, esa clase de revelación que pasa frente a nosotros dejándonos sólo la certidumbre de un vacío, un vacío que muy pronto escapa hasta de la palabra que lo contiene. Y el ventrílocuo sabía que eso era muy peligroso. Sobretodo peligroso para las personas como él, hipersensibles, de espíritu artístico y con heridas aún no cicatrizadas del todo (Bolaño, 2009, p. 546).

O que Bolaño faz aqui é criar uma relação, uma zona de vizinhança, entre Florita, os artistas e os Sergios, que, de verdade e na ficção, se põem a investigar e a escrever sobre as mortes. É Florita quem começa essa relação, através, precisamente, de um transe, da sua sensibilidade, da sua hipersensibilidade, como pensa Bolaño e o ventríloquo. É uma mulher, uma vidente com o espírito sensível e com feridas ainda não cicatrizadas que pode dar ouvidos às mortas. Pode, até, dar seu corpo e sua língua, como no transe. González e González Rodriguez também têm esse ponto fraco, essa debilidade. Eles eram escritores e jornalistas de cultura, mas são os dois que se colocam a investigar as mortes. Deleuze (2001 [1993]) diz que o escritor é alguém com uma “frágil saúde irresistível, que provém do fato de ter visto e ouvido coisas demasiado grandes, fortes demais, irrespiráveis” (p. 14). “O escritor – de novo Deleuze (2001, p. 16) – vidente e ouvidor, finalidade da literatura: é a passagem da vida na linguagem que constitui as Ideias”. É a revelação de Florita Almada à que González dá continuidade.

A outra mulher seria o oposto de Florita, em um certo sentido. E é ela quem mobiliza efetivamente González. Ela lhe fornece informações e segredos. Garante proteção, sustento e mobilidade ao jornalista e escritor do DF. “Por supuesto, no va a estar solo. Yo estaré siempre a su lado, aunque usted no me vea, para ayurdalo en cada momento” (Bolaño, 2009, p. 790). Assim termina a longa conversa que mantêm e na qual a poderosa diputada Azucena Esquivel Plata conta sobre sua amiga Kelly Rivera, desaparecida, possivelmente assassinada como as outras mulheres, de forma ainda misteriosa, mas cujo sumiço, de acordo com o detetive que Esquivel Plata contratou, mistura os mais importantes narcos do norte mexicano, um empresário do ramo de transporte de lixo e que trabalhava com a maioria das maquiladoras de Santa Teresa, um outro empresário, um banqueiro e meninas pobres, “una colección de próceres. Y una mañana o una noche mi amiga se desvanece en el aire” (Bolaño, 2009, p. 786).

O ódio que sentira Esquivel Plata a mobiliza, a faz contratar Loya, o melhor investigador privado, e a leva até Sergio González.

Qué es lo que quiero que usted haga?, dija la diputada. Quiero que escriba sobre esto, que siga escribiendo sobre esto. He leído sus artículos. Son buenos, pero a menudo golpea allí donde sólo hay aire. Yo quiero que golpee sobre seguro, sobre carne humana, sobre carne impune y no sobre sombras (Bolaño, 2009, p. 788-789).

Dizíamos, no início deste artigo, e com Deleuze, que a literatura inventava um povo que falta. Bolaño, especialmente em “La parte de los crímenes” de 2666 investe num povo de mulheres, as mulheres que faltam, cujos corpos, incompletos, e cujas identidades foram capturadas pela linguagem e também pelo logos. Dizíamos de uma tradição (literária, mas não só) que não se identifica com as mulheres, que é incapaz mesmo de identificá-las ou nomeá-las ao atribuir a razão das suas mortes à ordem neoliberal ocidental. E eis que Bolaño inventa um povo, na literatura, mas não sem mostrar suas marcas, os machucados expressivos de uma tra(d)ição. “A saúde como literatura, como escrita” afirma Deleuze, “consiste em inventar um povo que falta. Compete à função fabuladora inventar um povo. Não se escreve com as próprias lembranças, a menos que delas se faça a origem ou a destinação coletivas de um povo por vir ainda enterrado em suas traições e renegações” (2001, [1993], p. 14). Se é a vida que interessa, e não exatamente o escrever, Bolaño escreve sobre carne humana, sobre carne impune y no sobre sombras.

“Caitlin Macnamara”, “Portrait of a Chinese woman”, “Head of a Jamaican girl”, “Josepha” e “Portrait of Muriel Grant”. Todos os retratos são de Augustus Edwin John e estão disponíveis em: https://www.pinterest.com/slaviolamore/rt-john-augustus-edwin/ e https://www.pinterest.at/nicokeus1/augustus-edwin-john-art/.


* Carolina Correia dos Santos é pesquisadora em pós-doutoramento FAPERJ-10 no departamento de Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: caro.corre.san@gmail.com

** Luciano Nuzzo é professor de filosofia do direito na Università del Salento, doutor em filosofia do direito e pesquisador visitante na Faculdade Nacional de Direito / UFRJ. E-mail: lucianonuzzo@unisalento.it

 

Referências

BENJAMIN, Walter. “Sobre a crítica do poder como violência”. In: O anjo da história. Trad. e org. João Barrento. São Paulo, Belo Horizonte: Autêntica, 2012. p. 57-82.

BOLAÑO, Roberto. 2666. Nueva York: Vintage Español, 2009.

BOLAÑO, Roberto. “Preliminar. Autoretrato”. In: Echeverría, I. (ed.), Entre Paréntesis. Barcelona: Editorial Anagrama, 2004.

BOLAÑO, Roberto. “Carmen Boullosa entrevista a Roberto Bolaño”. In: Manzoni, C. (ed.), Roberto Bolaño: la escritura como tauromaquia. Buenos Aires: Corregidor, 2006.

DELEUZE, Gilles., GUATTARI, F. Mille Plateaux. Paris: Les Éditions Minuit, 1980.

DELEUZE, Gilles. Foucault. Napoli: Cronopio, 2002.

DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. São Paulo: Editora 34, 2011.

DERRIDA, Jacques. Essa estranha instituição chamada literatura: uma entrevista com Jacques Derrida. Trad. Marileide Dias Esqueda. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.

DERRIDA, Jacques. Préjuges. Devant la loi. Paris: Éditions de Minuit, 1985.

DERRIDA, Jacques. Força de lei. Trad. Leyla Perrone-Moyses. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

LA CAPRA, Dominick. Gerechtigkeit und Gesetzeskraft. In: Anselm Haverkamp (ed.), Gewalt und Gerechtigkeit. Derrida- Benjamin. Frankfur a. M.: Suhrkamp, 1994.

PELÁEZ, Sol. “Counting Violence: Roberto Bolaño and 2666”. In: Chasqui, n. 43, 2014.  p. 30-47.

FOUCAULT, Michel. “Prefazione alla trasgressione”. In: Scritti letterari. Milano: Feltrinelli, 2004a. p. 55-72.

FOUCAULT, Michel. “Il pensiero del fuori”. In: Scritti letterari. Milano: Feltrinelli, 2004b. p. 111-134.

 

Notas

[1] Este artigo foi pensado e elaborado conjuntamente. Apesar disso, podemos atribuir a Carolina Correia dos Santos as partes 2 e 4 e a Luciano Nuzzo, as partes 1 e 3.

[2] A crítica Sol Peláez, em “Counting Violence: Roberto Bolaño and 2666“, traça um quadro geral da fortuna crítica sobre 2666. De acordo com Peláez, os críticos que lêem “La parte de los crímenes” como a denúncia e a representação (boa ou má) da violência compartilham a fé na literatura como instrumento de emancipação. A literatura, nesta concepção, é compreendida como lócus privilegiado de superação de um atraso e uma desvantagem históricos. Segundo nossa leitura, 2666, ao contrário, não se relaciona dialeticamente com uma sociedade indígena que poderia ser salva – ainda que somente discursivamente – pela e na literatura, crença sustentada por uma importante parcela da crítica literária latino-americana (ver nota 2). Tampouco se relaciona com o passado histórico, ainda que estejam presentes, no texto de Bolaño, os elementos de uma violência “originária”.

[3] A crítica literária latino-americana construiu uma forte tradição de pensamento da literatura como salvaguardas de valores da cultura ocidental. Ver, neste sentido, os trabalhos de críticos como Angel Rama e Antonio Candido; em especial: “Os Processos de Transculturação na Narrativa Latino-Americana” (1974), do primeiro, e Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos (1959), do segundo. Ver, ainda, Silviano Santiago, “O entre-lugar do discurso latino-americano” (1972). Santiago modifica as condições da relação entre literatura europeia e latino-americana, sugerindo, a “revanche histórica” que mencionamos, ou a rasura da literatura da metrópole, sem, contudo, abalar o conceito notadamente positivo da literatura: “O silêncio seria a resposta desejada pelo imperialismo cultural, ou ainda o eco sonoro que apenas serve para apertar mais os laços do poder conquistador. Falar, escrever, significa: falar contra, escrever contra” (Santiago, 2000 [1972], p. 16-17).

[4] Avante aqui tem a o sentido de reforçar aquilo que está diante de nós e que precisa ser visto, assim como a possibilidade de um porvir que desminta o que está.

 

Recebido em: 16 de novembro de 2017
Aprovado em: 26 de novembro de 2017

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QUESTÕES DE CONSUMO E A FEMINIZAÇÃO DA REVISTA DA SEMANA

Resumo: O objetivo do presente artigo é mapear as mudanças pelas quais a Revista da Semana passou a partir de 1914, principalmente pela perspectiva dos universos de consumo que passaram a ser mediados pela publicação em seu redirecionamento editorial, com ênfase na análise dos aspectos composicionais presentes nas imagens publicadas nas capas da revista e nas novas seções relacionadas à literatura de aconselhamento. No período pré-1914, a publicação era marcada por uma forte valorização do universo masculino e, após esse período, as mulheres passaram a ser representadas de forma mais frequente, embora circunscritas a estereótipos de gênero próprios da época. No artigo, iremos discutir as implicações dessa mudança nas estratégias de circunscrição de um universo de consumo mediado pela publicação.

Palavras-chave: Consumo; mulheres; Revista da Semana; projeto editorial.

Abstract: The objective of this paper is to map the changes that Revista da Semana passed from 1914, mainly from the perspective of the consumption universes that began to be mediated by the publication in its editorial redirection, with an emphasis on the analysis of the compositional aspects presented in the images published in the magazine covers and in the new sections related to the counseling literature. In the pre-1914 period, the publication was marked by a strong appreciation of the masculine and, after that period, women came to be represented more frequently, although circumscribed to gender stereotypes. In this paper, we will discuss the implications of this change in the strategies of circumscription of a consumption universe mediated by the publication.

Keywords: Consumption; women; Revista da Semana; editorial project.

 

A Revista da Semana nasce em 1900 como um encarte do Jornal do Brasil e, em seu projeto editorial, estava pressuposto um público de classe média variado, composto tanto por homens quanto por mulheres. Tal como posto por Luca (2006, p. 121), “a Revista da Semana é unanimemente apontada como marco do surto (…) das chamadas revistas ilustradas” que “forneciam um lauto cardápio que procurava agradar a diferentes leitores, justificando o termo variedades”. Para a autora, a pluralidade de conteúdo cumpria uma função estratégica: “diante do relativamente minguado público dependia de se conseguir ampliar ao máximo os possíveis interessados, daí o recurso a uma rubrica ampla, que permitia incluir de tudo um pouco”.

Não obstante, em seus primeiros anos, a Revista da Semana deu uma ênfase acentuada à figura masculina, fato que pode ser observado pela marcante presença de fotografias e gravuras que retratavam homens em suas capas e no seu conteúdo interno. Nos dois primeiros anos da publicação, do total de imagens de capa com temáticas jornalísticas

[1], 69,4% eram compostas apenas por homens e somente 4,7% apenas por mulheres. Homens com mulheres compunham 15,3% das capas e 10,6% não continham pessoas na imagem (como paisagens, monumentos etc.). A masculinidade, portanto, para a Revista da Semana, se mostra na capa como um produto à venda. Ela se alicerçava principalmente a partir de algumas figuras-chave: o militar (presentes em 41,5% das capas com pessoas), os criminosos e os profissionais ligados a atividades que na época eram consideradas tipicamente masculinas (como médicos, cientistas e políticos). Os primeiros anos de publicação da Revista da Semana são marcados por essa orientação editorial.

A partir de 1914, há uma mudança radical no projeto editorial da publicação. Nesse momento a Revista da Semana se dedicará de forma mais pormenorizada às mulheres. Em 1915, ela deixa de pertencer ao Jornal do Brasil e é vendida a Carlos Malheiro Dias, Aureliano Machado e Artur Brandão, que aprofundam essa readequação editorial. De acordo com Peixoto (2001), a partir desse período, a publicação foi pensada para “as senhoras e moças da sociedade, os frequentadores dos salões abertos para o five o’clock tea e do Municipal” (p. 12). Ou seja, embora fosse uma revista para o público geral e muitos homens ainda consumissem a Revista da Semana (com textos destinados a eles), passou-se para o direcionamento editorial de uma revista com um forte consumo feminino. Tal característica começa a aparecer nos aspectos composicionais de suas capas. Das 42 capas publicadas em 1914, 74% delas continham mulheres, em contraste com a marcante presença masculina dos anos anteriores. Quanto a essa divisão, é interessante notar que a presença de homens só é expressiva nas capas que noticiam a guerra, de forma que, em todas as outras, a presença de mulheres é dominante em uma orientação editorial que irá durar até, pelo menos, meados da década de 1930.

O objetivo do presente artigo é mapear as mudanças que a Revista da Semana sofreu nesse período, principalmente pela perspectiva dos universos de consumo que passaram a ser mediados pela publicação a partir de seu redirecionamento editorial, com ênfase na análise dos aspectos composicionais presentes nas imagens publicadas nas capas da revista e nas novas seções relacionadas à literatura de aconselhamento. O interesse na análise de imprensa para entender o consumo está no fato de que, em tais produções, não há uma intencionalidade explícita de venda de um produto e, portanto, as relações entre comunicação e consumo mostram-se a partir da articulação de campos discursivos ligados aos ideais de felicidade, aos mapas de sucesso, às políticas de visibilidade e aos comportamentos validados nos processos de subjetivação do eu a partir do consumo. Há, na Revista da Semana nesse período, certo modelo de mulher engendrado – ligado a um ideal imaginado de sociedade e de seus modos de funcionamento, em uma hierarquização de valores sociais, regras e normas e, fundamentalmente, de afetos que garantem a adesão imaginária a essas normas. Tais elementos podem ser correlacionados a valores de consumo que não estão postos na comercialização de produtos específicos, mas sim na venda de modos de vida validados, como será esmiuçado a seguir.

Os universos de consumo mediados pela Revista da Semana

 Conforme colocamos anteriormente, em 1914, 74% das capas com temática jornalística continham mulheres na capa. A divisão de gêneros aqui não é apenas temática, mas se expressa também em certos aspectos composicionais. Das capas com mulheres, 64,5% são compostas por personalidades que podem ser identificadas pelo nome – muito embora seus nomes não apareçam necessariamente expostos. Nos outros 35,5%, as mulheres retratadas representam coletividades, processos ou instâncias sociais (as enfermeiras, por exemplo). Além disso, em 77% das capas com mulheres, elas aparecem sozinhas, de forma que é possível inferir que elas passam a ser valorizadas em suas individualidades e não a partir de suas relações no projeto editorial urdido.

No que diz respeito às capas com homens, a composição é ligeiramente diferente. Entre estas, em apenas 36% delas os homens são identificados pelos nomes, ao passo que, nas restantes (64%) eles são representados como uma coletividade ou metaforizações de processos – especialmente vinculados aos assuntos da guerra. Os homens estão em conjunto (acompanhados de outros homens) em 55% das capas (estando sozinhos em 44% delas).

Quanto a outros dados da composição imagética, também é possível inferir algumas questões. Nas capas com ambos os sexos há a totalidade de ângulos retos, porém, nas capas com mulheres, há a prevalência do plano médio (com 58% das incidências) e do plano geral (com 41%). Nas capas masculinas, há a prevalência do plano geral (com 90% das incidências). Isso conota uma valorização do personagem nas capas com mulheres, ao passo que as capas com homens valorizam uma situação (com a interação personagem e cenário).

Além disso, nas capas com mulheres, há a prevalência do equilíbrio dinâmico (54,8%) em detrimento do estático (45,2%). Nas capas com homens, há a prevalência do equilíbrio estático (em 82% delas). Lembramos aqui que o equilíbrio dinâmico sugere uma ideia de movimento e de leveza em comparação ao equilíbrio estático, reforçando lugares comuns a respeito da constituição da masculinidade e da feminilidade no período.

Capa da edição de 01/08/1914
Capa da edição de 01/08/1914
Capa da edição de 31/08/1915
Capa da edição de 31/08/1915

 

Em 1915, as características descritas se aprofundam. Nesse ano, 88% das capas publicadas tinham mulheres na capa e em apenas 12% havia a presença masculina – e ainda restrita aos assuntos que versavam sobre a cobertura de guerra. Das capas com mulheres, 75% delas possuíam personalidades que podiam ser identificadas pelo nome, ao passo que dentre as capas com homens, 66% eram relativas a personagens que figurativizavam processos ou instâncias sociais. Além disso, em 86% das capas, as mulheres apareciam sozinhas – o que acontece em apenas 50% das capas com homens. Também nesse ano, portanto, há a valorização do feminino nas capas.

No que se refere às técnicas de composição, também há a predominância do ângulo reto em todas as capas e a maior frequência do plano médio (67%) e do equilíbrio dinâmico (52%) nas capas com mulheres e do plano geral (66%) e do equilíbrio estático (83%) para as capas com homens.

As capas publicadas no período estão em correlação com o conteúdo interno da publicação que, contudo, em relação ao período anterior, apresentam poucas mudanças. Na edição de 05 de junho de 1915, é possível observar as seguintes pautas: uma foto da Mme. Laurinda Santos Lobo, as festas das regatas de Botafogo, a soirée íntima do Club 24 de Maio, algumas fotos obtidas à porta do Cine Palais, “o cinema chic da avenida”, reportagem intitulada “Interiores elegantes: a casa de Madame Santos Lobo”, a cobertura social das movimentações políticas da semana, material literário, algumas crônicas de moda, a cobertura sobre submarinos ingleses na guerra, uma fotografia da imperatriz da Rússia, uma reportagem sobre engenhos explosivos, cobertura sobre personalidades brasileiras em Washington, reportagem sobre a companhia edificadora, “um estabelecimento que honra o Brasil”; cobertura fotográfica do “festival do Germânia, em benefício da Cruz Vermelha Alemã”, reportagem sobre reprodução de aves, além de diversas seções de aconselhamento. Como pode ser observado, as pautas articulam-se ao colunismo social, característica já presente no período anterior, e com a diferença de que as mulheres passam a obter um destaque um pouco maior no enquadramento dos assuntos.

Uma das mudanças editoriais mais sensíveis pode ser observada em relação às colunas, ligadas ao que na época se denominava “literatura de aconselhamento”, uma prática comum em várias revistas desse período. As temáticas envolvidas nessas editorias abarcavam desde conselhos médicos e de beleza até sugestões de comportamento e consultórios sentimentais. Uma parte importante da Revista da Semana passou a ser destinada em um primeiro momento às Cartas de Mulher: crônicas sobre fatos da atualidade assinadas por “Iracema”. Normalmente posta no início da revista, essa seção, segundo Buitoni (2009, p. 60) embora não se destinasse somente às mulheres, caracterizava-se justamente por apontar os fatos do cotidiano sob um ponto de vista feminino. A autora destaca um texto, publicado em novembro de 1918, que saudava o término da Primeira Guerra Mundial a partir do ponto de vista de uma narradora que soube da notícia em uma loja de chapéus: “Eu me achava numa casa de chapéus, aonde acompanhava uma amiga. (…) Entre as vendeuses, havia uma mulher magra, loira, com vestígios de beleza e vestida de preto, com a aparência de idade em que já se pode ser a mamãe de jovem soldado”.

Posteriormente inaugura-se o Jornal das Famílias que, segundo a sua própria linha fina, dedicava-se às “modas, costuras e bordados, a vida no lar, receitas e conselhos práticos, economia doméstica e alimentação”. Trata-se de uma seção destinada a dar conselhos práticos, de higiene e de cuidado com a família para jovens moças. Entre os textos publicados ali podemos encontrar, por exemplo, colunas sobre como agir socialmente de acordo com as regras de etiqueta em voga – como em uma edição que anunciava que “os gestos, a maneira de andar e o som da voz revelam melhor e mais completamente o íntimo da personalidade humana do que a palavra, o olhar e o sorriso” – assim, “duas senhoras da mesma idade, uma de educação fina, a outra de educação vulgar, têm um andar muito diferente e seria impossível confundi-las se estivessem elas igualmente vestidas e enchapeladas” (Revista da Semana, 08/10/1921).

Na mesma edição, a seção “Preceitos de Hygiene” aconselhava que “o riso é excelente para a saúde e dá novo vigor a todo o nosso ser. Um riso bem sincero e bem franco dilata os nossos pulmões, ativa a circulação do sangue e dá um tom rosado à mulher que ri”. Além dos benefícios inegáveis à saúde, a revista relata as benesses sociais de um bom sorriso, vinculando o sorriso largo ao sucesso no casamento:

Muitas vezes um rapaz teme pedir em casamento uma moça cujos lábios finos e cerrados denotam um mau gênio. O homem é egoísta e deseja, sobretudo, o seu bem-estar, tanto físico quanto moral. Ele deseja sempre atingir a felicidade completa e não se cansa de a procurar, tendo a convicção íntima de que o acordo não pode reinar num casal quando a mulher tem mau gênio. A amabilidade, a mulher devia sabê-lo, é uma verdadeira força. Por seu bom humor e sua amabilidade, a mulher toma império sobre seu marido (Revista da Semana, 08/10/1921).

As seções de aconselhamento eram mesmo bastante disciplinadoras e mostravam de forma evidente a ideologia conservadora da Revista da Semana. Na edição de 01/10/1921, a coluna Conselhos Sociais explicava porque “o que se chama uma moça moderna não é mais que uma falsificação da verdadeira moça” que “perdeu o que fazia o encanto da sua primavera”. Criticando os novos costumes, a coluna dizia às “moças chamadas a seguir o caminho sagrado do casamento” que elas “devem saber em que grandes e magníficos deveres ela terá a honra de empenhar a sua vida. Mas ela pode, tomando consciência do estado de esposa e de mãe ao qual ela aspira, guardar a sua candura, sobretudo não fazendo alarde de conhecer precocemente aquilo que, por tradição, uma donzela deve ignorar; tal sabedoria é aliás tão deplorável como perigosa”:

Em grande parte, o nosso mal atual vem daí: sob o pretexto de desemburrar-se, a moça atira-se no campo da ciência completa do que, por falta de discernimento, resulta muitas vezes a perversão do espírito. Para guardar a alma pura das moças, não lhe deem senão gostos simples. Antes, a entrada na sociedade não se fazia tão cedo; as toaletes de baile eram modestamente decotadas; não usavam joias ricas antes do casamento, nada de meias de seda nem roupas de baixo de luxo, todo o vestuário era simples. Hoje o enxoval de uma menina comporta roupas de seda, em todos os coloridos, ricas rendas, bordados de fadas, joias riquíssimas. O vestido de baile de uma moça moderna só pode servir para afastar os pretendentes sérios. E, muitas vezes, esse luxo não corresponde ao dote nem ao que se chama abominavelmente as esperanças. Os costumes antigos tinham o seu lado bom e o casamento mais estabilidade (Revista da Semana, 01/10/1921).

Na edição de 05 de junho de 1915 é possível encontrar, por exemplo, a coluna Consultório da Mulher, composta por conselhos sobre itens de beleza que devem ser adquiridos, dados pela Mme. Selda Polocka, “a eminente especialista nos tratamentos de pele e de cabelo”. Segundo ela:

A cabeça não deve lavar-se com sabão, nem tampouco com preparados ácidos, que quebram o cabelo, nem com soluções de alcatrão. O Shampoo-Powder é o preparado ideal para uma perfeita higiene da cabeça. Limpa, desinfeta, tonifica, remove a caspa, refresca o couro cabeludo. Toda mulher ciosa da conservação e saúde do seu cabelo deve lavar a cabeça de oito em oito dias. Nunca compreendi porque se esquecem tantas mulheres de prestar aos seus cabelos os cuidados que têm com o seu rosto. Por isso mesmo seus cabelos embranquecem e caem prematuramente. A limpeza é a vida do cabelo, não me cansarei de repetir. Quase todas as doenças se evitariam com cuidados de higiene (Revista da Semana, 05/06/1915).

É possível encontrar, também, a seção Momento Elegante, que combinava conselhos práticos da vida (especialmente direcionado a mulheres) com cobertura de eventos importantes: “No domingo, houve uma regata na Bahia de Botafogo. Raras são as festas esportivas que conseguem ter um aspecto tão deslumbrante e tão prodigiosa magia. A tarde, o céu, os morros altos, a verdura, toda a maravilha dispersa da paisagem concorriam para a glória da festa”. Na sequência, o texto comenta o comportamento de mulheres no local:

Procurei guardar nas raízes remotas do meu ser a imagem nítida daquela forma singular e perfeita que enchia de graça a festa e a tarde. Fixei-a e ouvi-a. Ela falava ciciante para o companheiro, comentando a tarde bela, a pureza do céu, a alegria da multidão, toda a radiosa mocidade que a cercava (Revista da Semana, 15/06/1915).

Os signos da diferenciação e da elegância passam a ocupar grande parte das preocupações da revista de forma que “a busca dos sinais de distinção estava na ordem do dia, traduzidos por práticas também estimuladas e assimiladas via periodismo. A começar pela vestimenta, seguida das relações de sociabilidade, a ida ao prado, aos recitais” (Martins, 2001, p. 382).

A moda, por exemplo, ocupava grande parte das colunas de aconselhamento. Em um estudo sobre essa temática na Revista da Semana, de 1915 a 1918, Czrnorski e Meyer (2016, p. 250) apontam para o fato de que a moda aparece na publicação como um mecanismo de condecoração social, de forma que o vestir-se bem se configurava um ato de significação demarcador de identidades e posicionamentos de classe que ultrapassava a mera vestimenta e se espalhava em direção a atos e comportamentos tomados como adequados. “Verifica-se, então, um costume, um comportamento consolidado pela moda vigente que propunha trajes para mulheres – manhã, tarde e noite – para bailes, passeios, visitas, chás, teatro, interior (para o lar), campo, recepções, e cada qual com seus respectivos ornamentos e detalhes”. Assim “para o público feminino elitista, consideravam-se certas maneiras de convívio em sociedade como regras de etiqueta, cordialidade, saber conversar com as pessoas e ser agradável. O bom gosto da escolha da vestimenta era critério para ser, ou não, considerada distinta”. As seções de moda, portanto, eram acompanhadas por textos que versavam sobre comportamento, vida cotidiana, habilidades domésticas, decoração, cuidados com a beleza, entre outros.

Certa Europa imaginada compunha o ponto nodal a partir do qual a Revista da Semana organizava seus aconselhamentos sobre moda e comportamento. “A combinação dos adornos, dos tecidos requintados, ter bom gosto na escolha do vestuário seguindo as tendências da moda etc., não bastavam para as mulheres das elites cariocas” uma vez que “para ser considerada ‘chic’, distinta e elegante, era necessário ter os ‘trejeitos’ apropriados, saber se comportar em sociedade, frequentar bailes, teatros, os chás de caridade e ter o conhecimento das ‘prendas domésticas’” (Czrnorski; Meyer, 2016, p. 256), em um complexo afetivo-editorial que enfatizava a beleza também como um conjunto de valores morais e habilidades específicas.

Para Czrnorski e Meyer (2016) a qualidade dos tecidos utilizados tanto no vestuário quanto na decoração do lar era um importante elemento de distinção nas reportagens da Revista da Semana, de forma que era constante a sua categorização em elegantes ou mais simples. A qualidade do material não raro era correlacionada também às atividades e papéis destinados às mulheres, ganhando um caráter moral. Os ornamentos também eram um fator de distinção relevante e normalmente eram acompanhados de descrições sobre os lugares e ocasiões adequados de uso. Os cuidados de beleza também eram importantes como fatores de diferenciação social, sendo a manutenção da juventude a principal temática tratada. Não raro, as mães eram tomadas como responsáveis pela manutenção da beleza de suas filhas, como responsáveis pelos cuidados que iriam mantê-las jovens por mais tempo a partir da adoção de um conjunto de práticas. “Esse comportamento pode ser entendido como mais um elemento de distinção entre as classes sociais, contribuindo na construção do arquétipo do chic”, uma vez que “a beleza fazia parte do ‘conjunto’ na construção da imagem das mulheres das classes mais abastadas, diferenciando-as daquelas que não tinham tempo nem capital para tal” (Czrnorski; Meyer, 2016, p. 264).

Complementarmente a esses aspectos, a revista também criava diferenciações a partir de uma espécie de manual de boas maneiras, que indicava quais eram as leituras adequadas, quais conhecimentos de mundo dever-se-ia ter, quais as vivências necessárias, os hábitos mais saudáveis, os modelos de educação, entre outros aspectos do comportamento social. “Nesse sentido, as mulheres descritas na revista como chics, elegantes e distintas frequentavam os salões, os bailes, os teatros, as cerimônias importantes, sendo que, nesses ambientes, o cumprimento às normas de conduta, designadas para o público feminino, era rigorosamente observado” (Czrnorski; Meyer, 2016, p. 267).

Soma-se a essa questão o ideal higienista da Primeira República. Um corpo limpo e saudável passa a ser valorizado como uma questão importante e é ligado às formas de beleza. É possível notar um tensionamento entre a dificuldade de adaptar a moda europeia aos padrões climáticos nacionais (com seus tecidos grossos e pouco confortáveis às áreas tropicais), as dificuldades impostas pelas modas (com seus vestidos longos que se sujavam com facilidade) e tal ideal higienista. Não obstante, a ambição do Brasil moderno presente na Revista da Semana combinava certos preceitos de higiene à elegância e sofisticação, mesclando-os aos ideais de beleza. Um dos apelos mais importantes da publicidade do período e das colunas de aconselhamento voltava-se justamente para exploração da morte e da doença. “A concorrência entre os fabricantes de remédios fortaleceu a necessidade de recorrer a testemunhas ilustres e a exibir o nome de médicos, mesmo quando o produto anunciado era apenas um sabonete” (Sant’anna, 2014, p. 36). Não é por acaso que uma das editorias de aconselhamento da Revista da Semana chamava-se justamente Consultório da Mulher, embora pouco falasse de saúde e muito de beleza nesse espaço.

Acompanhado da simbiose entre os modelos de beleza e o ideal higienista, há também uma renovada valorização da aparência jovem. Ao contrário da valorização da tradição e dos laços de sangue que sustentavam parte do imaginário da elite monarquista, a República irá movimentar um trabalho simbólico de valorização do novo de forma que o combate à velhice conquista um espaço importante da publicidade:

Gilberto Freyre reconheceu que o período imperial havia morrido ‘sob as barbas brancas e nunca maculadas pela pintura do imperador D. Pedro II’, ao passo que, em seu lugar, resplandeciam as barbas escuras dos jovens líderes republicanos, ávidos pelo poder (Sant’anna, 2014, p. 25).

A questão comportamental não vinha sozinha na Revista da Semana, estando associada de maneira orgânica a universos de consumo bastante determinados. Tal como exposto por Martins (2001) cabia às mulheres “muitas das decisões de gastos diários. Desde os fortificantes para a prole, dentifrícios para a família, produtos alimentícios, sabonetes de qualidade no apuramento higiênico aos remédios para a ‘saúde da mulher’, produtos largamente anunciados pelas revistas”, tanto na publicidade como nas colunas de aconselhamento. “A aquisição de figurinos era o primeiro passo para a produção dessa nova mulher, atenta aos ditames da moda, via Paris” (Martins. 2001, p. 379).

Para tratarmos dessa questão é interessante observar que, conforme posto por Stillerman (2015, p. 111), as práticas de consumo sempre foram atravessadas pelas questões de gênero. Ao longo do século XIX, o consumo vulgar feito para o mantimento da casa era considerado uma atividade menos prestigiada e, por isso, pensada como uma atividade tipicamente feminina, um comportamento que se prolonga no século XX. Durante as primeiras décadas, as mulheres passam a ser representadas de uma maneira mais consistente como “especialistas em consumo”, principalmente a partir da óptica de um cuidado com a família e especialmente com as crianças. Apelava-se ao senso de responsabilidade das mulheres com a saúde de seus filhos e o bem-estar do marido.

A partir desses parâmetros é possível estabelecer que no projeto afetivo-editorial da Revista da Semana, a mulher era projetada como responsável pelo consumo da casa e, portanto, como fiadora desse conjunto de valores ligados à distinção. O consumo das mulheres, nesse sentido, não estava restrito aos produtos que ela própria consumia, mas sim ao consumo da família como um todo.

Os significados que preenchiam simbolicamente os sentidos distintivos que tais produtos deveriam ter se encontravam na cobertura jornalística que, imaginariamente, preenchiam o que significava ser elegante e sofisticado naquele desenho social. Esse direcionamento do projeto afetivo-editorial da Revista da Semana se mantém até, pelo menos, meados da década de 1930, quando outros pressupostos editoriais passam a ser dominantes no mercado de revistas brasileiro.

As relações de consumo nem sempre se deixam entrever nos lugares mais óbvios. Na Revista da Semana elas estão mediadas não apenas pelos anúncios que são publicados em suas edições – como lugares em que a evocação ao consumo aparece de forma mais imediata – mas também nas reportagens jornalísticas – não necessariamente no nível dos seus conteúdos específicos, mas sim, no complexo afetivo-editorial que é urdido pela publicação. Tal complexo afetivo-editorial é marcado tanto por um projeto editorial específico, comum às revistas ilustradas do período, em associação a mecanismos de convocação que são historicamente marcados.

As revistas ilustradas do início do século XX constituíram-se como espaços privilegiados de representação de uma sociabilidade da época “num momento em que a ascensão de uma classe média e a promoção da vida urbana contribuía para o surgimento de novos espaços públicos e eventos sociais para atender à demanda desses novos grupos: eventos, recepções, óperas, teatros, dentre outros” (Czrnorski; Meyrer, 2016, p. 252), constituindo-se em um mediador importante das relações de consumo.

O modelo afetivo-editorial da Revista da Semana está inserido em um contexto em que, pautada pela “reestruturação das cidades e do perímetro urbano”, de forma que “os passeios, bailes, chás, eventos de caridade, dentre outros, eram uma forma de socialização. O aumento dos espaços e das redes de sociabilidade levou à necessidade de um preparo específico para as novas atividades, passando, essa preparação, a integrar a educação formal e informal”. Tal modelo de educação implica em ideais de “civilidade, polidez, relacionado, nesse contexto, aos manuais de boas maneiras, aos protocolos que ‘devem’ ser seguidos conforme as regras da ‘boa educação’” (Czrnorski; Meyrer, 2016, p. 266). Ele materializava-se em variados aspectos: desde a forma de agir (andar, conversar, socializar, vestir) até os conhecimentos de mundo necessários para a socialização nesse imaginário. Eram esses elementos que, de uma maneira geral, formavam o complexo afetivo-editorial da Revista da Semana ao resumir todos esses aspectos sob o signo da elegância, materializado em imagens específicas.

O complexo afetivo-editorial da Revista da Semana é marcado justamente pela valorização dos signos da distinção social, evocando uma estrutura sentimental em que a convocação ao ser elegante era a linha mestra das estruturações do material jornalístico encontrado tanto em termos de escolha de assuntos quanto do enquadramento dado aos textos e às fotografias publicadas. A massificação da fotografia na imprensa brasileira acentuou a importância da aparência física (Sant’anna, 2014), mas não era apenas isso que estava em jogo na publicação: embelezar-se, para a Revista da Semana, é um signo de distinção (não é algo ao alcance de todos) e envolve um complexo afetivo-editorial que engloba comportamentos, habilidades e objetos demarcados.

A distinção é uma marca constituinte das relações de consumo, tal como explorado por diversos autores clássicos. Para Bourdieu (2007) a constituição do gosto – que é um aspecto determinante em muitos níveis dos atos de consumo – não é aleatória: ela é socialmente determinada e está diretamente vinculada aos sistemas de classificação social hierarquicamente estruturados. O que chamamos de estilo de vida, assim, “é um conjunto unitário de preferências distintivas que exprimem, na lógica específica de cada um dos subespaços simbólicos” como mobília, vestimentas, linguagem etc., “a mesma intenção expressiva, princípio de unidade de estilo que se entrega diretamente à intuição e que a análise destrói ao recortá-lo em universos separados” (Bourdieu, 1983, p. 83). Para Douglas e Isherwood (2004), os atos de consumo são muito pouco marcados pela utilidade que os objetos possuem, mas sim, pelo valor acordado socialmente que é atribuído a eles e, por conseguinte, demarca certas posições sociais para o sujeito. Também para Baudrillard (1996, p. 10), o consumo “é uma função social de prestígio e de distribuição hierárquica”, de forma que podemos “considerar os objetos em si próprios e a sua soma como índice de pertença social, mas é muito mais importante considerá-los, na sua escolha, organização e prática, como o suporte de uma estrutura global do ambiente circundante, que é simultaneamente uma estrutura ativa de comportamento”.

Na Revista da Semana, a distinção articulava-se não apenas nesse nível mas também como marca constituinte de seu projeto afetivo-editorial, na articulação de uma espécie de manual de boas maneiras que, a partir de uma perspectiva bastante didática, mostra aos seus leitores quais preenchimentos deveriam ser dados ao signo genérico da distinção, guiando-os através dos caminhos do bom gosto.

A elegância era uma palavra-chave da distinção no período da Primeira República, de forma que “o andar e a prosa das mulheres eram muito importantes” para os cronistas do período: “enfeava-as definitivamente ou, ao contrário, dava-lhes graça e formosura” (Sant’anna, 2014, p. 13). Trata-se de uma herança ainda do século XIX, de forma que “nos centros urbanos em desenvolvimento no começo da República dizer que alguém era elegante figurava um elogio importantíssimo. A deselegância podia trazer sofrimentos atrozes, mesmo quando a sua definição permanecia vaga ou unicamente concentrada nas vestimentas e no porte físico” (Sant’anna, 2014, p. 30). Nesse sentido, manuais de comportamento (muitos deles importados da Europa) eram artigos comuns obtidos por mulheres do período. A Revista da Semana apresenta-se como um manual de comportamento, preenchendo progressivamente o signo vazio da elegância com um conjunto de características físicas e comportamentais que deveriam ser observados por seus leitores e estão materializados nas imagens e fotografias publicadas.

Ao longo do período estudado é possível notar que a elegância e a distinção são articuladas por diferentes tipos de materiais imagéticos. Em suas primeiras capas, nos primeiros anos da publicação, há o topos viril do militar e dos homens de poder que, paradoxalmente, é complementado com a virilidade do criminoso, ambos com a função de demarcar certas características masculinas tidas como desejáveis e atraentes, perpassando desde um modelo comportamental específico até a delimitação de certo savoir faire, seja pela via do positivo (no militar) ou da negação (no criminoso). A partir do final da década de 1910, essas figuras não são mais as protagonistas nas capas e a revista se consolida como uma revista feminina, trazendo em suas capas pela primeira vez a figuração da mulher complementada por uma escolha editorial que privilegia as colunas de aconselhamento. Nessa fase, os apelos à elegância e ao bom gosto ficam mais evidentes, contudo é inegável que eles estiveram presentes em todo o período estudado, especialmente se for considerado o conteúdo das imagens internas da revista. Desde 1900, a Revista da Semana dava uma grande atenção aos eventos da grande sociedade e às imagens do progresso brasileiro, no esforço de construir um ethos para a elite da época. É possível considerar que o conteúdo das fotos internas da Revista da Semana dava materialidade para o ideal de elegância construído nos textos, constituindo-se como as exemplificações dessa espécie de guia ou manual de boas práticas de elegância que era construído pela publicação.

O signo da elegância para A Revista da Semana é enquadrado como uma instância intransitiva, ou seja, desejável em si algo intrinsecamente almejável em seu projeto afetivo-editorial. Tal elegância, contudo, tem um significado múltiplo e flutuante que é preenchido de diferentes formas pelas fotografias que são publicadas. As imagens na Revista da Semana funcionam como suportes materiais dos afetos que dão conteúdo ao que significa ser distinto.

O consumo de produtos, bens e serviços não é colocado de maneira direta: ele está articulado nas afetividades evocadas que direcionam a um enquadramento minimamente comum do mundo – e especialmente do que é necessário consumir para habitar um recorte pautado pela elegância, sofisticação e distinção. Trata-se de um complexo afetivo-editorial que utiliza convocações para o consumo que são historicamente marcadas e que irão mudar ao longo do tempo.


* Eliza Bachega Casadei é doutora em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Professora titular do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Práticas de Consumo da Escola Superior de Propaganda e Marketing (PPGCOM-ESPM).

 

Referências

BAUDRILLARD, Jean. Para uma crítica da economia política dos signos. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp, 2007.

BUITONI, Dulcília Helena Schroeder. Mulher de papel: a representação da mulher pela imprensa feminina brasileira. São Paulo: Summus, 2009.

CZRNORSKI, Sediana Rizzo; MEYER, Marlise Regina. “Chics, elegantes e distintas: a moda na seção Jornal das Famílias da Revista da Semana (1915-1918)”. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais, v. 8, n. 15, 2016, p. 247-271.

DOUGLAS, Mary; ISHERWOOD, Baron. O mundo dos bens: para uma antropologia do consumo. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2004.

LUCA, Tania Regina de. “História dos, nos e por meio dos periódicos”. In: PINSKY, Carla Bassanezi (Org.). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2006.

MARTINS, Ana Luiza. Revistas em revista: imprensa e práticas culturais em tempos de república, São Paulo (1890-1922). São Paulo: Edusp, 2001.

PEIXOTO, Níobe Abreu. “Na Revista da Semana, Paulo Barreto”. In: BARRETO, Paulo. Crônicas efêmeras: João do Rio na Revista da Semana. São Paulo: Ateliê, 2001.

SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. História da beleza no Brasil. São Paulo: Contexto, 2014. STILLERMAN, Joel. The sociology of consumption: a global approach. Cambridge: Polity Press, 2015.

 

[1] Foram descartadas da contagem capas que não versassem sobre temas jornalísticos (como aquelas que continham pinturas ou outras obras artísticas), de acordo com os objetivos da pesquisa.

 

Recebido em: 23 de fevereiro de 2017
Aprovado em: 06 de outubro de 2017

artigo
Tempo de leitura estimado: 32 minutos

PERSONAGENS FEMININAS DO NARCOTRÁFICO EM RAQUEL DE OLIVEIRA E ALESSANDRO BUZO

Resumo: A partir da trajetória de duas personagens femininas da periferia, Bonitona do romance A número um, de Raquel de Oliveira e “Rose” do romance Guerreira, de Alessandro Buzo, foram traçados apontamentos sobre as relações entre as duas personagens e delas com seu meio, bem como discutimos aspectos dessas narrativas, de acordo com estudos da literatura contemporânea brasileira.

Palavras-chave: Centro versus periferia; ficção e realidade; mulheres e narcotráfico.

Abstract: From the trajectory of two female characters from the periphery, Bonitona from the novel A número um by Raquel de Oliveira and Rose from the novel Guerreira by Alessandro Buzo, notes were drawn on the relations between the characters and between them and their environment. We also analyze these narratives according to studies of Brazilian contemporary literature.

Keywords: Center versus periphery; fiction and reality; women and drug trafficking.

 

Histórias do tráfico de drogas e de seus chefes nas favelas de grandes cidades são tema tanto das páginas de noticiários policiais quanto de obras literárias de ficção, em histórias que prendem a atenção por apresentarem personagens fascinantes e pelo tom espetacular de suas façanhas no mundo da contravenção e do crime. Neste artigo, a proposta é discutir as personagens de dois romances escritos por autores ditos escritores da periferia: Bonitona, a narradora do romance A número um, de Raquel de Oliveira, e Rose, a personagem do romance Guerreira, de Alessandro Buzo.

Ambos os romances fazem parte da chamada literatura marginal, já que são escritos por autores que viveram ou ainda vivem à margem, em favela ou no subúrbio, longe dos centros das cidades, enfatizando a característica que acaba por nomear o gênero. Por isso, configuram-se por apresentar questões de denúncia e testemunho, além de relatos de vida específicos do ambiente da periferia das grandes cidades brasileiras. O próprio tom confessional da narrativa como testemunho factual soa como crítica à realidade de um tecido social fragilizado, mas também orienta para um entendimento que pretende encontrar verdades relacionadas com o que se espera de uma obra com esse tom, consequentemente direcionando o olhar para leituras autobiográficas.

O estudo não pretendeu fazer análise literária das obras, mas sim levantar os aspectos que tangenciam algumas das questões urgentes dos estudos da literatura contemporânea, que remetem também aos problemas da sociedade, isto é, drogas, tráfico, preconceito, pobreza e outros que fazem da existência das pessoas que vivem na periferia uma aventura perigosa.

A número um: aspectos da obra e da personagem

O romance de Raquel de Oliveira (2015), logo no início da leitura, parece estar associado ao gênero escritas de si, pois é o caso em que uma mulher escreve suas memórias, recuperando lembranças da própria vida. Nesse sentido, o romance A número um inaugura a voz autoral de uma mulher que, diferente do que vinha predominando na literatura contemporânea, fala a partir do seu lugar, daquela parte periférica da cidade que ela conhece e vivencia, narra e dá a conhecer. Dali, ela aborda sua passada relação com o crime e com a sua sobrevivência nele e apesar dele. Trata-se de um gênero recente no que se refere à voz de uma mulher da favela e ex-traficante falando de dentro do seu território sem subterfúgios, sem meias palavras.

O romance é composto por sete capítulos. A narrativa está em primeira pessoa e em todo o romance a voz da narradora evidencia os fatos que a levaram a escrever o livro. Logo no primeiro capítulo, ela dialoga com uma personagem ausente (que depois o leitor fica sabendo se tratar do amor de sua vida). Pará, o protagonista do início da trama, é narrado no passado como lembrança, como ausência e com saudade. É a partir dele que Bonitona passa a existir como ele designou. Sem ele, ela não seria quem chegou a ser e nem seria o que ela é hoje.

Nos capítulos seguintes, a narradora alterna suas lembranças com descrições de situações do passado nos diálogos encetados com as personagens secundárias do romance, que vivenciaram tais situações na história narrada, conformando a trama e dando sentido ao narrado. No entanto, dentre todos os aspectos dessa trama, a favela da Rocinha é um dos mais importantes, pois ela se configura como ambiente e local geográfico da narrativa. A Rocinha é o lugar emblemático, o palco das guerras às quais o romance se refere e é também o ambiente cultural, político e psicológico do enredo. Pode-se afirmar que a Rocinha é também uma personagem do romance.

A protagonista do romance é a própria narradora. É uma narradora-personagem, portanto, não é onisciente em relação às demais personagens. Ela narra a si mesma e aos fatos que lhe concernem. Não é neutra: analisa o ambiente e faz suposições com base no conhecimento factual do lugar e das situações daquele ambiente e daquela atividade.

A linguagem da narrativa usa moderadamente o jargão da favela e do pessoal do morro, do crime. Alguns palavrões e gírias que a narradora conhece aparecem no texto de modo bastante integrado ao contexto. As personagens secundárias da trama são bem delineadas por ela e todos acabam sendo complementos dramáticos que compõem o seu próprio perfil. Ela também dá notícia dos próprios fatos narrados quando veiculados na mídia, reverberando as reportagens jornalísticas.

Bonitona não oferece mistérios a serem resolvidos no final da trama, nem tem um grande conflito ideológico. Durante todo o trajeto da fabulação o que se depreende é uma forte oscilação. No início, ela só queria morrer para poder encontrar seu amor. No meio da trama, ela luta para sobreviver, mesmo passando por situações de alto risco. No final do romance, ela aponta para a saída da vida no tráfico e relata sua salvação quando fica sabendo pelos jornais que seu último inimigo foi encontrado morto. Assim, a partir do momento em que ela se torna a personagem da trama de seu romance, Bonitona é uma personagem circular.

Guerreira: a obra e a personagem

 O romance Guerreira, de Alessandro Buzo, retrata as carências, a pobreza, a violência e as práticas relacionadas aos espaços e aos sujeitos marginais da cidade de São Paulo. Buzo apresenta uma personagem comum, sem conflitos ideológicos nem questionamentos morais, que age de modo condizente com o ambiente narrado. Ainda que tenha sido criada a partir de um quadro da realidade que o autor conhece de perto, e embora contendo quadros ficcionais novelescos, todo o conjunto – trama e personagens – são pouco verossímeis. O livro está organizado em 14 capítulos.

O narrador é onisciente e conhece bem suas personagens. Rose é o centro de toda história e todas as demais personagens são acessórios. A falta de complexidade das personagens se reflete na pobreza dos diálogos. O narrador por diversas vezes associa à sua narrativa citações de dramaturgia popular das novelas, interferindo na narração e até colocando textos descritivos entre parênteses no meio do texto narrativo. É possível deduzir que Buzo pretendeu um leitor X para seu romance, pois quando ele interfere na narrativa para explicar determinadas situações das personagens passa a impressão de que ele está se dirigindo a um leitor de outra classe social que não conhece o mundo marginal narrado por ele. Essa posição deixa duas questões para serem analisadas no livro: o autor como narrador se coloca em um lugar específico, isto é, de periférico, mas quer ser visto por leitores de outro lugar, diferente daquele que ele ocupa; ao agir assim, o autor desconsidera os leitores que realmente conhecem o lugar de onde ele fala.

Por conta dessas questões, o aspecto mais marcante da obra aparece no embate de classes, onde expressam-se as diferenças contidas na oposição do binômio centro-periferia, com os aspectos culturais e econômicos que caracterizam esses dois lugares. Pelo fato de ter escrito uma narrativa retratando um ambiente burguês que ele não conhece bem, o enredo do romance não está “amarrado” de modo a convencer o leitor da verossimilhança da trama. No entanto, a lógica da transferência de capital do rico para o pobre, do centro para a periferia, deslocando a personagem da periferia para o centro é colocada em prática no romance, quando a personagem da garota pobre se torna uma empresária rica e passa a se comportar socialmente como uma mulher burguesa.

A leitura do livro deixa transparecer certa imaturidade literária do autor, já que ao analisarmos a personagem – que o autor coloca como a protagonista – encontramos uma caricatura de traços comuns. Os diálogos que representam a voz da protagonista são superficiais, sem conflitos, ideológico ou psicológico. Com essa personagem não ocorre uma travessia em que se vislumbre uma trajetória transformadora do ponto de vista do caráter. Apesar disso, por ela se transformar social e economicamente, pode ser vista como personagem circular. As duas personagens femininas, Bonitona e Rose, fazem parte de um lugar social, neste caso, a periferia, a margem. Vamos chamar esse lugar de território (Carril, 2006), lembrando que esse lugar não é estático, nem uniforme e que ele está em constante movimento.

“Nu cubista”, Anita Malfatti (1919)
“Nu cubista”, Anita Malfatti (1919)

Periferia: território da marginalização

A mulher da periferia é marginalizada em relação à lei e à sociedade. Ela sofre um múltiplo processo de marginalização: social, político e econômico. Essa dupla condição de marginalização coloca essa mulher em situação de constante deslocamento, onde a ascensão da marginalidade passa pela diáspora de sentido, conforme alude Hall (2005). Nesse processo, as mulheres da periferia respondem a demandas locais pelo viés disjuntivo da alteridade a partir de fissuras e deslizamentos identitários próprios e de injunções diferenciadas. Tais injunções remetem as mulheres da periferia à condição de seres em reciclagem identitária, no sentido que Bauman (2005) propõe, já que não se encontram acomodadas ao que ele chamou de “destino de mulher”, diante da aparente possibilidade de deixar de ser o que é para se transformar em alguém que ainda não é.

Para Sandra Maria do Sacramento (2011), a identidade feminina suburbana, através da transgressão, coloca-se como negadora de qualquer pretensão ao uso de uma racionalidade que não reflita suas existências periféricas. Assim, as personagens femininas colocam-se como “sujeitos-satélite” que buscam a construção de uma identificação a partir de referências próprias. Com isso, ocorre a inserção de vozes, até então silenciadas, em um processo de construção de sua própria historicidade. A representação feminina, sob essa ótica, resgata o universo cultural e altera o acontecer ficcional alicerçado na ideologia vivenciada.

No romance Guerreira, Alessandro Buzo não apenas retrata a violência e as práticas relacionadas a espaços e sujeitos marginais, mas também questiona e critica a situação da marginalidade em que vivem tais periferias. A trama expressa uma oposição entre centro e periferia, delineando espaços socialmente distintos. De um lado, Ferrugem, há três anos morando só, depois que os pais foram pra Austrália; do outro, Rose e Tonho, dois viciados, usuários de crack, que não têm outro objetivo na vida que não seja o de fazer sexo e se drogarem. Mas ao estabelecer limites “difusos” entre o eu e o outro, a literatura dita periférica acaba por redefinir ou mesmo reafirmar essas construções identitárias, recuperando ou até potencializando preconceitos.

Rose é a personagem reveladora das representações suburbanas. Dentro da respectiva construção de sua alteridade, inclusive com limitações e imposições, essa personagem, ao se tornar consciente, revela um sujeito de reconfiguração identitária. Ao surgirem de uma ordem cultural (que não a eurocêntrica), os relatos de sujeitos periféricos fazem emergir vozes silenciadas em espaços da imaginação e da reflexão, impensável no discurso do branco colonizador.

Segundo Bourdieu (2016), a dominação masculina é uma expressão de poder que comporta uma dimensão simbólica na qual o polo dominado da relação (a mulher) submete-se a uma forma de adesão que não é fruto de uma decisão deliberada ou de consciências esclarecidas sobre a própria dominação, mas sim a submissão de corpos socializados. Portanto, se a identidade feminina é uma construção que se dá a partir do outro com quem se relaciona – seja companheiro, marido, filhos – não se deve falar em identidade, e sim em múltiplas identidades, resultado de diversos referenciais. Nesta perspectiva, a matriz homogênea da feminilidade – com um caráter biológico determinante, que pautou o modelo de razão imposto pela cultura ocidental, presa a preceitos que submetiam os corpos para o trabalho doméstico – é ressignificada no contexto suburbano das periferias, mas não deixa de ser referencial nas condutas adotadas.

Em suma, essa sociedade sexista reforçou a extrema submissão das mulheres tanto no centro quanto na periferia. Com Butler (2017) pode-se reafirmar que a categoria “mulheres”, esse sujeito do feminismo, é tanto produzida quanto reprimida pelas mesmas estruturas de poder por intermédio das quais se busca a emancipação.

No mesmo patamar, encontra-se a Bonitona, narradora-personagem do romance de Raquel de Oliveira, essa mulher que vem buscando sua emancipação através da literatura. No capítulo “A origem: a afilhada do bicheiro”, um dos mais impactantes do romance, é narrada sua infância até o final da adolescência, quando conta que, ainda menina, para pagar dívida de jogo, sua avó a vendeu para um bicheiro. Mesmo tendo sido vendida para “servir” ao bicheiro, por um golpe de sorte, ela acaba se salvando do destino de ser prostituta. E é o próprio bicheiro, a quem ela chama de padrinho, que, mais tarde, arranja-lhe o primeiro namorado. O texto mostra a condição da mulher da periferia, da menina pobre, objeto de domínio do sujeito masculino. Até a escolha do namorado teve de ser mediada pelo padrinho, para mostrar quem era o verdadeiro “dono” da garota.

Feminino & periferia: representações e idealidades

Sandra Maria Pereira do Sacramento, sobre o romance Guerreira, comenta que a personagem Rose cria suas próprias condições de sobrevivência e opta pelo embrutecimento da sensibilidade para sobreviver. Para Rose, a condição de ser mulher não é nada confortável, sempre à espera dos favores sexuais. Nesse sentido, Rose mostra-se subversiva: inicialmente tímida, que vai aos poucos se tornando autônoma, lutando contra a hegemonia do discurso masculino. Neste romance, está mais uma instrutiva demonstração da natureza cultural da masculinidade, ou seja, para analisar a identidade feminina deve-se partir do contraponto com o legado opressor masculino.

Tanto Rose como Bonitona precisam agir de modo a preservar suas próprias vidas. Partindo da perspectiva das questões de gênero historicamente estabelecidas, questiona-se como a mulher traficante de drogas, neste caso a Bonitona, se posiciona enquanto sujeito e quais as implicações da compreensão de sua própria identidade dentro do universo representacional em que vive.

Em A número um, na sujeição do feminino ao masculino, a mulher traficante passa a conceber a sua própria identidade a partir do outro com o qual se relaciona afetivamente, de modo que as práticas ilícitas do companheiro passam a fazer parte de seu cotidiano. Mesmo enfrentando recusas por ser mulher, ela acabou por se fazer respeitar enquanto chefe do tráfico.

Simone de Beauvoir afirma: “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher” (Beauvoir, 2016, p. 90). Levando em conta a época em que a autora escreveu, e desse ponto de vista, a identidade feminina é algo construído socialmente a partir de parâmetros culturais, inclusive relacionados com uma determinada ideia de sexualidade feminina reduzida ao papel da reprodução. Portanto, a mulher passa a existir a partir do outro, que é o homem, o que por si só já enseja uma ideia de complemento. No entanto, numa visão atualizada, Butler diz que:

Se há algo de certo na afirmação de Beauvoir de que ninguém nasce e sim se torna mulher, decorre de que mulher é um termo em processo, um devir, um construir de que não se pode dizer com acerto que tenha uma origem ou um fim. Como uma prática discursiva contínua, o termo está aberto a intervenções e a significações (Butler, 2017, p. 58-9).

Por outro lado, a ideia de “uma história compartilhada” (como aparece nas entrelinhas de A número um) faz com que a mulher tente construir uma identidade sua para preencher um vazio. E esse vazio tem diretamente a ver com a própria alteridade, pois, em certo sentido, o indivíduo fragmentado quer tornar-se inteiro. No caso da relação afetiva entre Raquel de Oliveira e o traficante Naldo (contada por Bonitona, a protagonista do romance), nota-se como a mulher não tem uma identidade própria, mas a constrói a partir do outro, ainda que buscando um espelhamento que apareça como igualdade:

Sempre o olhava com uma admiração profunda. Ele sentia isso e me amava ainda mais. Éramos iguais. Nossas histórias de vidas eram iguais. Só se diferenciavam pela geografia. Ele vindo do sertão da Paraíba ainda criança. Eu, cria da favela da Rocinha (Oliveira, 2015, p. 176).

No contexto das relações sociais com o homem traficante e a partir das representações sociais que formulam acerca do papel feminino na relação afetiva é que as mulheres do tráfico justificam suas práticas relacionadas ao crime, mais precisamente as do tráfico de drogas, ainda que o envolvimento seja esporádico ou relacionado a uma situação que envolve o próprio uso da droga. Pergunta-se, então, de que modo a mulher traficante de drogas se posiciona enquanto sujeito e quais as implicações da compreensão da sua própria identidade dentro do universo representacional em que vive.

Lúcia Osana Zolin (2006, p. 159), em sua análise das personagens femininas dos romances de Patricia Melo, afirma que a representação dessa faceta, ou seja, da adesão e prática da violência, “vai ao encontro de uma realidade feminina pouco explorada nos estudos de gênero”. Zolin, citando Badinter (2005), explica que “mesmo sendo mais numerosa entre os homens, a prática da violência consiste em uma espécie de inadaptação ou maldade patológica, a qual homens e mulheres estão sujeitos” (2006, p. 159).  Hoje, pode-se perceber uma volta ao passado, se levamos em conta o aumento do número de mulheres infratoras encarceradas.

Nesse sentido, a narradora-personagem de A número um reflete que, mesmo com toda a afetividade e amor que sentia por Naldo, a vida no tráfico de drogas estava se tornando cansativa. Em meio a tanta violência, diante de um cotidiano sempre igual, foi quando ela percebeu que estava se tornando numa pessoa má, uma mulher sem escrúpulos:

Àquela altura eu já não me sentia mais motivada. Estava cansada e a vida me castigava. Administrar três pontos de uma favela como a Rocinha não era tarefa fácil. E eu estava cada vez mais desumana. Agora eu é que era o terror. (…). Nada me restituía a alegria de viver e nada conseguia preencher aquela maldita falta, aquele buraco dentro de mim (Oliveira, 2015, p. 109).

Agora que Naldo havia morrido, ela estava sozinha. Ela era a dona da favela, agindo como líder do tráfico na Rocinha. Mas, ao contrário, na vida pessoal ela continuava convivendo com um vazio interior que não era possível preencher. Nem com a violência nem com a droga.

Caracterização e gênero das obras

A trama de A número um contém elementos autobiográficos e ficcionais. Na trama de Guerreira, de acordo com palavras do autor, podemos encontrar traços autobiográficos em toda a trajetória dos protagonistas, tanto da personagem feminina quantos das duas personagens masculinas evidenciadas no enredo. A seguir, levantamos a conceituação de alguns estudiosos que tratam do tema – autobiografia e autoficção – para podermos apontar as características mais evidentes nas obras examinadas.

Conforme Tiago M. Velasco (2015), o conceito de autoficção parece-nos muito útil para pensar escritas contemporâneas por problematizar categorias como o eu, o real e a verdade, e por tematizar a dificuldade de distinção entre realidade e ficção, já que tudo seria parte real do “eu” porque se encontra na mente do autor e se concretiza no ato da escrita. Por outro lado, na autobiografia, o autor tem um compromisso com seu leitor que é o de contar a verdade. Assim, se o autor está contando a verdade está fazendo autobiografia. Mas também, devemos lembrar que a verdade narrada é aquela que o autor quis contar, ou seja, é uma mistura de fatos e também de ficção.

Para Diana Klinger (2012, p. 57), autoficção é “uma narrativa híbrida, ambivalente, na qual a ficção de si tem como referente o autor, mas não como pessoa biográfica, e sim o autor como personagem construída discursivamente”. Ou seja, o autor constrói uma “personagem que se exibe ao vivo no momento mesmo da construção do discurso, ao mesmo tempo indagando sobre a subjetividade e posicionando-se de forma crítica perante os seus modos de representação”, diz a autora.

No entanto, pelo fato de os conceitos de autobiografia e de autoficção serem ambíguos e suscitarem diversas discussões no âmbito da teoria, encontra-se na tese de Anna Martins Faedrich (2014) uma definição que parece mais satisfatória. Ela explica que a autobiografia se dá no vetor vida => texto, enquanto que a autoficção contraria essa direção e vai no sentido inverso, ou seja, segue o vetor texto => vida.

Ela afirma que na autobiografia, “o narrador-protagonista é, geralmente, alguém famoso, ‘digno de uma autobiografia’”. Por isso o vetor da narrativa é vida => texto. Primeiro ocorre a ascensão na vida do narrador para depois ele contar essa vida a quem interessar. Porém, afirma Faedrich, “o movimento da autoficção é outro. Um bom escritor pode chamar a atenção para a sua biografia através do texto ficcional, entretanto, é o texto literário que se destaca em primeiro plano” (Faedrich, 2014, p. 23, grifo meu). Assim, confirma-se o vetor texto => vida.

Com isso em mente, podemos dizer que o romance A número um, de Raquel de Oliveira, pode ser classificado como autoficção.

“Vendedora de cheiro”, Antonieta Santos Feio (1947)
“Vendedora de cheiro”, Antonieta Santos Feio (1947)

Bonitona e Rose: onde está o feminino?

 Na narrativa de Oliveira (2015), podemos encontrar ações que evidenciam traços de caráter feminista, como valores femininos de luta pela emancipação da mulher, luta por direitos iguais aos dos homens, representatividade social e política em seu meio, e outros.

Resende e Deyques (2016) consideram que a obra de Raquel de Oliveira é um romance ambíguo no que diz respeito a poder considerá-lo um romance feminista, ou de temática feminista. Sim, a história é de uma mulher, a voz é de uma mulher, mas Bonitona, a narradora-personagem, por sua criação e pelos códigos que ela deveria seguir para sua própria sobrevivência naquele lugar, por inúmeras vezes, teve que se masculinizar e seguir os preceitos adotados pela “lei” dos homens daquele lugar. No entanto, conforme dizem as autoras, isto não desqualifica a obra em relação à voz feminina, apenas fortalece a questão de um discurso que mostra o quanto as mulheres são oprimidas em relação ao seu gênero, montando um poder consentido e reconhecido, que é tão somente um substituto do lugar masculino, do lugar vago daquele homem que ela, a Bonitona, passou a ocupar.

Sob a ótica transgressora, vemos o desnudamento das regras de obediência e submissão ao macho dominador: se à mulher, categorizada universalmente numa “estrutura reificada” do binário disjuntivo e assimétrico masculino-feminino, conforme observa Butler (2017), estava destinado o lar burguês, em que os afazeres domésticos e a total submissão ao chefe da família se constituíam uma espécie de perpetuação hereditária, nos romances dos dois autores encontram-se os requisitos desse comportamento opressor do gênero, mas repensado pelos desregramentos do ser e pela subversão da identidade, segundo um padrão cultural e geográfico próprios. No romance de Oliveira (2015), encontramos uma mulher que rompe barreiras de gênero ao se tornar uma chefe do tráfico na Rocinha (RJ), e Buzo nos apresenta uma mulher que explora seus atributos físicos e usa o seu desejo de sair da pobreza para mudar o status social em uma São Paulo capitalista e rica, mas de certo modo também decadente.

Ficção versus realidade: vozes femininas em percurso

Edward Said, em Orientalismo (2007), afirma que os estudos feministas, do mesmo modo que os étnicos ou anti-imperialistas, contribuem para promover um deslocamento de visão sobre a realidade, ao assumirem como ponto de partida de suas pesquisas o direito de grupos marginalizados, excluídos dos domínios públicos e sem possibilidade de enunciação no discurso oficial. Pela intromissão da voz feminina, a subversão da ordem, dita falocêntrica, coincide com o direcionamento que tomam os estudos pós-estruturalistas e com muitas das preocupações da psicanálise lacaniana.

Um movimento totalmente oposto ao da tradição dos estudos literários – principalmente os estudos da primeira metade do século XX – é o que marca a preocupação da crítica feminista, isto é, a reafirmação da autoridade da experiência e a conquista de um espaço de expressão para as vozes silenciadas. Para alguns, então, a crítica feminista pode ser vista como um “ato de resistência”, por confrontar-se diretamente com os cânones e julgamentos existentes. Nesse sentido, Zolin esclarece, também, que:

Ao trazer a marca da especificidade feminina, tendencialmente libertária e emancipadora, o aporte teórico feminista, num certo sentido, opõe-se às concepções teórico-metodológicas da ciência contemporânea pautadas no ideal de conhecimento objetivo, neutro, visando atingir uma pressuposta verdade universal; ao invés disso, incorpora a dimensão subjetiva, emotiva e intuitiva no processo de conhecimento. Consequentemente, abandona a pretensão de ser a única possibilidade de interpretação do mundo, além de descartar a linha evolutiva inerente aos processos históricos, ao enfatizar a historicidade dos conceitos (Zolin, 2012, p. 100).

Judith Butler (2017, p. 18) afirma que

para a teoria feminista, o desenvolvimento de uma linguagem capaz de representá-las completa ou adequadamente pareceu necessário, a fim de promover a visibilidade política das mulheres. Isso parecia obviamente importante, considerando a condição cultural difusa na qual a vida das mulheres era mal representada ou simplesmente não representada (Butler, 2017, p. 18).

Por fim, a lucidez das palavras de Teresa de Lauretis resume a consciência sobre a importância e a tarefa dos estudos feministas:

Apesar das divergências, das diferenças políticas e pessoais, e da angústia que acompanha os debates feministas dentro e além das linhas raciais, étnicas e sexuais, devemos ser encorajadas pela esperança de que o feminismo continue a desenvolver uma teoria radical e uma prática de transformação sociocultural (1994, p. 216).

Como bem salienta Heloisa Buarque de Hollanda (2003, p. 15-16), o pensamento crítico feminista “revela certa especificidade em relação ao quadro teórico no qual se insere”, no qual coexiste com o novo historicismo, a história das mentalidades e os estudos pós-coloniais. “Passado o momento inicial da crítica do desgravo, da denúncia da lógica patriarcal nas relações de gênero”, as teorias críticas feministas começam a mover-se “em direção a uma perspectiva mais sutil e talvez mais radical”.

Patrocínio (2010, p. 28) considera a literatura feminina – ou feminista – como exemplo de estruturação discursiva que busca a valorização do sujeito da enunciação. Na realidade, o sujeito feminino ao longo da história foi considerado subalterno, sendo o objeto do discurso, jamais o sujeito. Ao apropriar-se da palavra, a mulher procurou transformar as representações que traduziam o ponto de vista masculino, constituindo-se em sujeito e elaborando representações próprias, de acordo com sua história e suas especificidades.

O autor afirma ainda que

a literatura feminina busca a formação de um espaço próprio […], em que a mulher seja o sujeito do discurso e possa, a partir de um ponto de vista e de um sujeito de representação próprios […], ir construindo sua própria representação” e que, “dessa maneira […], possa constituir-se enquanto sujeito discursivo, livrando-se da silenciosa posição de objeto (Patrocínio, 2010, p. 29).

Sandra Maria do Sacramento (2011, p.158) comenta que, quando investida na posição de líder, Bonitona adota uma postura que em nada deixa a desejar face ao mundo masculino de liderar no universo do narcotráfico. Bonitona era a dona do morro. A série de ações que vai marcando sua trajetória de líder do tráfico de drogas na Rocinha é marcada pelas variadas formas de violência: “Eu cuidava de tudo pessoalmente e era completamente inflexível com os vacilões e os ladrões que tentavam se aproveitar do desequilíbrio da favela. Conquistei de volta este equilíbrio com sangue” (Oliveira, 2015, p. 208-9).

Portanto, com o romance de Raquel de Oliveira, a figura da personagem mulher-criminosa-masculinizada fica evidenciada. Uma vez que a mulher, diante de seu alardeado “temperamento dócil”, não oferece perigo, aquela que escapa desse estereótipo é equiparada ao homem, principalmente em crimes violentos. Pode-se afirmar que começa a se delinear nessa literatura um “sujeito” feminino violento. Nesse sentido, Butler completa a crítica: “Assim, a unidade do sujeito já é potencialmente contestada pela distinção que abre espaço ao gênero como interpretação múltipla do sexo” (Butler, 2017, p. 24).

Lúcia Osana Zolin (2006, p. 17) comenta que no cenário no qual vem se constituindo a literatura de autoria feminina brasileira, já se desenham representações de mulheres que caminham na contramão da estética da vitimização de que fala Badinter (2005). Veja-se a ficção de Patrícia Melo. Em Inferno (2000), por exemplo, ao trazer à baila personagens femininas tão ousadas como Suzana e Marta, capazes de se igualarem aos chefões do narcotráfico das favelas cariocas, a escritora demonstra não estar preocupada em denunciar a tão propalada opressão feminina. Parece interessante, então, traçar um breve paralelo entre as personagens, ou seja, Bonitona, de Oliveira (2015) com a personagem Marta, de Melo (2000). Como Bonitona, Marta também, sem qualquer preocupação com barreiras de gênero, entra na liderança do tráfico de drogas da favela, inaugurando assim um novo estatuto da personagem feminina na literatura brasileira escrita por mulheres.

No entanto, comparando as trajetórias das personagens Bonitona e Rose, e o modo como ambas deixam para trás o mundo do crime e das drogas, pode-se perceber uma diferença entre ficção e realidade. A narradora-personagem Bonitona, que na vida real é a própria Raquel de Oliveira, segundo seus relatos de memórias, teve que passar por diversas casas de recuperação para viciados, largou as drogas e saiu do mundo do crime, passando o poder para outro traficante. Já a Rose, de acordo com a narrativa do romance, largou de vez a droga, “tendo só uma certeza: nunca mais iria se deixar ter uma recaída”, situação que, por comparação, nos parece pouco verossímil.

Nessa trajetória, ficção e realidade andam paralelas, mas deixam em evidência que a realidade é um pouco mais cruel e complicada do que a ficção. Esse “largar as drogas” não é uma experiência tão simples. E Raquel de Oliveira repete a frase que também foi dita por Esmeralda Ortiz (2000), falando sobre as dificuldades da vida depois do período do vício: “a gente tem que matar um leão a cada dia”.

Ambos os romances comentados não deixam de ser histórias de amor, mesmo que sua narrativa esteja centrada em uma atmosfera na qual convivem pedófilos, bicheiros, bandidos, traficantes, todos os tipos de droga, e a pobreza endêmica das favelas e das periferias. Trata-se, no entanto, de relatos que mostram erros e acertos de mulheres que tinham um (mau) caminho traçado, mas que, no final, ao descontinuarem no mundo do crime e ao tentarem uma nova vida, ainda tiveram forças para modificar esses caminhos, travando suas lutas contra a dependência química.

Bonitona e Rose são representações femininas, cujas identidades estão marcadas não apenas pelo eixo do gênero a que pertencem, como também por classe, nível de escolaridade, ambiente social, cultural e outros. As personagens transitam pelo universo masculino, deixando suas marcas, ora como líderes do tráfico ora como seres independentes, que questionam a ideologia patriarcal, sendo capazes de desempenhar os mesmos papéis, de edificar as mesmas obras e, também, de sofrerem as mesmas penalidades por seus crimes, que podem ser crimes tão graves quanto os cometidos pelos homens.

Assim, tanto a literatura produzida por autores da periferia quanto aquela escrita por mulheres, ambas constituem espaços nos quais é construída uma representação simbólica, cujo potencial subversivo pode possibilitar a fratura do silêncio dessas minorias e o seu reconhecimento pelas e nas instâncias de poder.


* Rachel Fátima dos Santos Nunes é professora do curso de Letras da Universidade Estácio de Sá. Atualmente está fazendo o pós-doutorado pelo PACC na UFRJ, com a linha de pesquisa “Estudo da personagem feminina na literatura das escritoras da periferia”, tendo como orientadora a professora doutora Heloísa Buarque de Holanda.

 

Referências

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BOURDIEUR, Pierre. A dominação masculina: a condição feminina e a violência simbólica. Tradução de Maria Helena Kuhner. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.

BUTLER, Judith. Problemas do gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar. Revisão técnica de Joel Birman. 13.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.

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Recebido em: 28 de agosto de 2017
Aprovado em: 29 de outubro de 2017

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Tempo de leitura estimado: 37 minutos

A SOLIDÃO EM CORPO: OS DUOS DISSONANTES EM BEATRIZ BRACHER

Resumo: Estes escritos têm como objetivo fazer uma leitura dos personagens Mariana e Jorge, e Félix e Vanda, respectivamente, dos livros Azul e dura (2002) e Anatomia do paraíso (2015), primeiro e último romance de Beatriz Bracher. A esses pares, chamarei de duos e justamente não de casais, apropriando-me de um termo oriundo da música. Para pensar essa dualidade recorrerei a associações com a música e as artes visuais, demonstrando que nos dois romances há uma figura insistente do isolamento e da solidão: os personagens estão a sós no meio da paisagem congestionada da modernidade.

Palavras-chave: Beatriz Bracher; literatura brasileira contemporânea; música; artes visuais; solidão.

Abstract: These writings aim at making an interpretation of the characters Mariana and Jorge, and Felix and Vanda, respectively from the books Azul e dura (2002) and Anatomia do paraíso (2015), both of the author Beatriz Bracher, her first and last novels. To these pairs, I will call duos and not couples, appropriating a term from music. To think of this duality I will consult associations with music and the visual arts, to demonstrate that in these two novels there is a persistent figure of isolation and solitude: the characters are alone in the midst of the congested landscape of modernity.

Keywords: Beatriz Bracher; contemporary Brazilian literature; music; visual arts; solitude.

Sintesi: Questo articolo ha come obiettivo quello di presentare una interpretazione dei personaggi Mariana e Jorge, e Félix e Vanda, rispettivamente dei libri Azul e dura (2002) e Anatomia do paraìso (2015), il primo e l’ultimo romanzo di Beatriz Bracher.  Queste due coppie di personaggi le definisco “duos” duetto, prendendo in prestito un termine che proviene dal campo della musica. In tal modo, vorrei dimostrare che nei due romanzi ricorre la figura insistente dell’isolamento e della solitudine: i personaggi sono soli nel paesaggio della modernità.

Parole chiave: Beatriz Bracher; letteratura brasiliana contemporanea; musica; arte visuale; solitudine.

 

Nos quadros representando janelas, fachadas de prédios, ruas, praças, restaurantes, estações de trens, bombas de gasolina em estradas isoladas pintados por Edward Hopper, o espectador, trazido “voyeuristicamente” para observar a cena, parece condenado a compartilhar a mesma solidão dos personagens representados. Uma espécie de solidão e distância urbanas (quase) inevitáveis parecem invadir a todos, personagens e espectador, todos ao mesmo tempo juntos, porém separados, uma existência a dois (ou três) a sós, um eu com (sem) o outro. Em lugares que comumente se esperaria pela presença de pessoas, encontramo-los vazios. Mesmo quando há mais de um sujeito ocupando o mesmo espaço, todos parecem isolados, incomunicáveis. A sós. Um crítico escreveu que “a solidão de Hopper é a solidão a dois, a mais angustiante de todas, porque divide o que não se consegue somar”.

Edward Hopper, Room in New York, 1932
Edward Hopper, Room in New York, 1932

Esse parece ser o mesmo movimento que acontece com os personagens Mariana e Jorge, e Félix e Vanda, respectivamente dos livros Azul e dura (primeira edição de 2002 – a segunda que será usada é de 2010) e Anatomia do paraíso (de 2015), ambos da autora Beatriz Bracher, seu primeiro e último romances. A esses pares, chamarei de duos, e justamente não de casais, apropriando-me de um termo oriundo da música por razões que ficarão claras a seguir. A oposição e simetria revestem uma dualidade conceitual e metafísica: profundidade e superfície, interioridade e exterioridade, transcendência e imanência, mundo das palavras e mundo concreto. Para pensar essa dualidade recorrerei aqui a associações com a música e as artes visuais (pintura, instalação, filme). Entrar na literatura pela porta da música e das artes plásticas me parece um exercício justificado pelos próprios romances de Beatriz Bracher. Os duos se dividem, assim, em metades complementares que nunca se completam, por vezes desejam o outro e desejam ser o outro, sem que esse desejo jamais se realize. A solidão a dois é a dissonância nos duos, é a comunicação fissurada, ausente, é o que há na conversa desencontrada entre Félix e Vanda. A comunicação que não se dá envolve dois mundos: o mundo da profundidade interior, solitária do sujeito e a da superfície exterior da existência. É essa passagem incompleta que as artes visuais nos ajudarão a vislumbrar, como veremos adiante. Em uma passagem do livro, Félix diz: “você só sabe ouvir com um ouvido. Existem muitos e todos são verdadeiros” (Bracher, p. 2015, p. 231); o que Vanda refuta: “eu posso ouvir o que você fala. Mas você não fala […]. Você se perde dentro de você, eu fico esperando aqui fora” (2015, p. 231-232). A solidão que os dois personagens compartilham ao mal se comunicarem é o que denominarei a solidão em corpo, posto que essa experiência parece acometer ao homem que a sente por dentro, como se a solidão fosse um órgão que abarrota o corpo por inteiro e que não se pode compartilhar. Servi-me de uma passagem do livro Anatomia do Paraíso em que o personagem Félix pensa essa expressão para o título de sua dissertação de mestrado, mas acaba por usar outro. Assolados por uma interioridade avassaladora, os personagens que parecem viver “dentro” de si mesmos almejam o “fora”, a superfície, como maneira de recusar a solidão. Assim, Mariana, de Azul e dura, diz:

As coisas existem vivas, não as tornamos vivas, ao contrário. Talvez. Preciso lembrar do que acontecia fora de mim, preciso saber do que acontece agora. Escrever o fora deve me ajudar. […]. Preciso ir mais fundo ao avesso, ir mais para a superfície (Bracher, 2010, p. 112, grifos meus).

Dessa forma, viso demonstrar que nos dois romances há uma figura insistente do isolamento: os personagens estão sós no meio da paisagem congestionada da modernidade. Perguntar-nos-emos em que medida a linguagem de Beatriz Bracher é atravessada, necessariamente, por uma figura da dissonância, da fissura e da solidão a dois que se infiltra entre os membros dos duos, Mariana-Jorge e Félix-Vanda. A solidão é sempre dupla: a acompanhada, entre pessoas e a solidão como separação para com o mundo. O que pode levá-los à ânsia e ao desejo da experiência da superfície, um devaneio que aspira a existência livre do pensamento em consonância com os homens e com as coisas.

Os personagens Mariana e Felix experienciam a solidão, o que implica em uma leitura do isolamento contemporâneo. Nele, o fechamento do mundo se abre em uma experiência de transcendência, no entanto, incompleta e fragmentada. Interrompida. Fazendo com que a iluminação fissurada vivida pelos personagens seja o passo anterior da vivência da solidão e do caos, pois ambos os membros dos duos a cada vez enxergam a unidade, mas não podem vivê-la na totalidade. Eles enxergam o real, mas esta visão apenas faz com que afundem ainda mais na solidão e almejem com força redobrada a superfície. Uma via de mão dupla da perigosa estrada dos personagens solitários na comunhão rompida com a experiência contemporânea. Por isso os diálogos entre Mariana e Jorge e Félix e Vanda são sempre dissonantes, pois, como pode haver consonância quando a dissonância é a única possibilidade de junção? Como disse o teórico musical Bohumil Med a respeito das expressões de origem musical, intervalos dissonantes e consonantes:

Dois ou mais sons simultâneos produzem o efeito de consonância ou dissonância. A consonância proporciona uma sensação de repouso e estabilidade […]. Intervalo consonante é aquele cujas notas se completam. Tem o caráter estável, conclusivo, passivo e de repouso. […]. A dissonância proporciona uma sensação de movimento e tensão. […] cujas notas não se completam. Têm o caráter ativo, dinâmico, transitivo, instável e de movimento. […]. Criam a impressão de intranquilidade […] soam como se fossem incompletos ou inacabados […] (Med, 1996, p. 97 e 274, grifos meus).

Por isso insisto aqui nas expressões de origem musical, duo e dissonância, porque me parece que apenas pela música se pode entender o drama dual contido nos romances que tentei encerrar no título deste trabalho. Entre os duos não há consonância, posto que não encerram em si uma sensação de estabilidade, relaxamento e tranquilidade, como dito na passagem acima de Med. De maneira oposta, são dissonantes em razão de manifestarem uma sensação de incompletude, instabilidade, intranquilidade e, sobretudo, tensão. Mariana e Félix são dissonantes ao mesmo tempo em que se portam dessa mesma forma com os seus respectivos pares complementares, Jorge e Vanda, pois os primeiros vivem na solidão, no profundo estar a sós com o mundo e no mundo, ao passo que os últimos vivem na superfície do mundo concreto, e essa dessemelhança entre íntimos engendra a dissonância, mesmo ela sendo alguma coisa que pode estabelecer um diálogo.

Schoenberg (1999, p. 59) definiu a dissonância como “as relações mais afastadas e complexas”, como Mariana e Félix (respectivamente, de Azul e dura e de Anatomia do Paraíso), que acabam por gravitar em torno da solidão que produz a dissonância na relação com seus “complementos”, Jorge e Vanda. Estão sozinhos juntos no ermo labirinto da unicidade de cada um.

Mariana-Jorge, Félix-Vanda não conseguem constituir o que na música pode ser chamado de “conversa” ou “interação”, posto que a dissonância está sempre presente, expondo-os ao perigo dos aspectos contraditórios da alma, causando-lhes tensão, instabilidade e incompletude. No entanto, parecem almejar a consonância para que haja o “consoar”, cujo sentido etimológico pode ser conferido no dicionário Latim-Português:

Consŏnu, -as, -are, -sonui (-sonitum) I – Sent. Próprio: 1). Produzir um som junto, ressoar juntamente, consoar, retumbar (Verg. En. 8, 305). II – Sent. Figurado: 2). Estar em harmonia com, estar de acordo com (Sên. Ep. 88, 9). Na língua retórica: 3). Ter o mesmo som, ter a mesma terminação (Quint, 9, 3, 75); e concordar (concordância) (Quint. 9, 3, 45). (Faria, 1962, p. 238).

“Ter a mesma terminação e concordar” com os homens e com o mundo tangível e dizível daqueles que apenas existem. Mas não, Mariana e Félix estão sempre na irresolução, na indeterminação. Comunicam-se na superfície pela dissonância antes do retorno ao profundo exílio no espírito que os conduz. Comunicam-se, pois, afastados uns dos outros, na solidão a dois que “divide o que não se consegue somar”, retomando aqui o comentário sobre Edward Hopper.

Quando, por exemplo, ouvimos a belíssima gravação de Almost Blue executada por Chet Baker ao trompete e Bill Evans ao piano, ouvimos não somente um consoar, mas um diálogo, mesmo solitário, que cria a atmosfera do almost, do quase. Estão imersos um com o outro, quase um-no-outro em absoluta consonância. Um discorrer íntimo e belo. Ou, quando ouvimos a segunda parte do Concerto n° 2, de Sergei Rachmaninoff, apreciamos a interação entre os membros da orquestra, mas principalmente entre três músicos. No documentário dirigido por João Moreira Salles sobre o pianista Nelson Freire, há uma cena que se chama “uma conversa entre o piano, a flauta e o clarinete”. Em intensa consonância uns com os outros os músicos Natalia Setchkariova à flauta, Adil Fiodorov ao clarinete e Nelson Freire ao piano parecem submergir num alumbramento musical à beira do precipício da solidão, ainda que “acompanhados” em uma sala de concerto, seja pelos outros músicos da orquestra, seja pelo público na plateia, ou assistindo por uma tela de cinema. Ao contrário, os personagens dos duos parecem apenas se comunicar superficialmente numa sequência estática de palavras que se sobrepõem umas às outras, mas sem profundidade. É comunicação, não é uma conversa. Dizem, mas não falam, não se ouvem, colidem na assimetria de suas palavras.

Posto isso, a consonância, ou o “ressoar juntamente” como inscrito no dicionário latino por Faria, parece apenas anteceder o caos, a dissonância e a tensão. Assim, pois, ocorre a fissura entre Mariana-Jorge, Félix-Vanda, duos que não se unem pela consonância ou em uma resolução harmônica, mas apenas pela superficialidade interlocutória subjazida pela incompletude, pela dissonância. Este trabalho não é sobre teoria musical ou sequer sobre música, porém é a música, enquanto uma experiência passiva de audição a sós, que nos permite acessar algo da experiência dos personagens de Bracher. Eis o que escreve Hegel sobre ela:

(…) o som penetra no eu, percebe-o em sua existência simples, coloca-o em movimento e o leva em seu ritmo cadenciado, enquanto que as outras combinações de harmonia e de melodia, como expressões de sentimentos, completam e precisam o efeito produzido sobre o sujeito, contribuindo para comovê-lo e despertá-lo (Hegel, 1964, p. 103, grifos meus).

Trata-se, em suma, de despertar o homem em sua solidão. A música é a arte subjetiva por excelência.

A nomenclatura musical permite incrível consonância com a literatura e vice-versa. Os subtítulos deste trabalho foram escolhidos não por uma questão de métrica ou estilo, consonância ou dissonância, mas por uma questão de gosto e atentando ao fato de que todas as músicas citadas possuem na letra a palavra “alone”, ou, “sozinho”. Ao longo do texto, outras ressonâncias aparecem, com a pintura e o cinema, mas sempre atentando ao mesmo problema: a dissonância e a fissura nos duos Mariana-Jorge, Félix-Vanda, atentando, pois, à solidão que aparece no intervalo entre os duos.

ALMOST BLUE
Almost blue,
Flirting with this disaster became me
(Chet Baker)

Se a prática da dúvida foi meu inferno, o exercício da ingenuidade, minha possibilidade
(Beatriz Bracher, Azul e dura)

“Mariana, nunca te perguntei, mas o que aconteceu naquele dia? Como foi o acidente?” (Bracher, 2010, p. 117). A pergunta fatídica desdobra o inferno de Mariana, personagem principal do primeiro romance de Beatriz Bracher, Azul e dura, como já vimos. A partir de leituras de velhas anotações guardadas na mala – que dá título ao livro – e de novas escritas que se perdem dentro de si mesma, Mariana se debruça sobre um jogo reflexivo arriscado: dias perdidos do passado, dias perdidos do presente. O entrelugar da loucura e da sanidade, da loucura sobre a dúvida como sanidade, o benefício da ingenuidade e da escrita como a possibilidade da redenção: “Havia, quando comecei a escrever, sem que eu soubesse, havia o desejo de ser absolvida, de morrer com a consciência limpa, em dia com os homens” (2010, 111).

Mariana atropela e mata uma criança. Não sabe se dolosa ou culposamente. Ela própria não sabe. Não sabemos. O buraco da dúvida se sobrepõe à vida concreta, sobre o próprio tempo, às vezes narrado de trás para frente, às vezes de frente para trás: “Lerei com ácido minhas anotações antigas. Se do que restar não sobrar mais eu, então veremos” (2010, 14). As anotações remetem aos tempos da juventude saudosa, quando estudante de cinema, vívida e inflamada pelo impulso artístico da profissão. Logo, o casamento e a vida estreita e comprimida de esposa exemplar de um advogado bem-sucedido, Jorge. Filho e filha, Tomás e Gabriela, as preocupações mornas de família de classe média da zona sul do Rio de Janeiro. Tempos em uma estação de esqui nos alpes suíços e a tentativa de evocar e reviver o dia do acidente. Rememorações distorcidas: não se sabe se lúcidas ou insanas mas, por certo, labirínticas. Por conseguinte, entrega-se ao alcoolismo e à depressão, toma remédios entre doses de vodca e bitucas de cigarros esquecidos. Ocorre a separação do marido e ela descobre que a prática da dúvida foi seu inferno.

Milton Ohata, na orelha de Azul e dura, explica que “a fragilidade da personagem é acolhida pela consciência da fragilidade do ato de narrar”. Ora, a fragilidade é a própria solidão, é por causa dela, e nela, no labirinto da solidão, que Mariana se perde e se encontra a um só tempo, a própria lucidez ou a própria loucura. A solidão em corpo, enfurnada e isolada no meio do caos que assoma em meio aos seus dias perdidos e encontrados na mala de azul e dura, nas velhas anotações que conservam o que sobrou e o que há de sobrar. É aí que lemos com ela o tormento de suas descobertas e hesitações, mas lemos sobretudo a sua solidão. A sua solidão em corpo.

SOLITUDE
In my solitude
You haunt me
With dreadful ease
Of days gone by
(Billie Holiday)

Em Azul e dura, Mariana diz: “Quando nos casamos, estar com Jorge era estar com o real. Jorge era a parte ativa do mundo existente […] Jorge estava em contato com o mundo, não com o pensamento sobre o mundo” (Bracher, 2010, p. 25, grifos meus). Jorge é advogado e seu trabalho é a lei, não o pensamento sobre a lei. Ele busca recursos externos à lei para absolver a mulher. O “pensar a lei” é feito por Mariana. O pensamento em si é objeto de sua reflexão e loucura. Ela se encontra no lugar privilegiado da classe média da Zona Sul do Rio de Janeiro, o que lhe faculta uma condenação amenizada por atenuantes: ré primária e sem intenção de matar, veredicto: homicídio culposo. No entanto, paira sobre a situação sendo ela própria ré, promotora e juíza, condenada e condenando em pensamento e ao pensamento:

Pensei que chegaria lá, diria o que tinha acontecido e acabou. Mas o delegado, o policial que nos recebeu, o escrivão, Maria Alice […] diziam, não se preocupe, nós vamos te proteger da lei. […]. Existem códigos, existem leis, coisas escritas, sólidas […]. Não importa o delegado, o ministro, elas estão lá, é só ler e ver qual a punição. Pronto, é tão seguro isso, porque é claro, não depende da boa vontade de ninguém, de favor nenhum, de merda de delegado e polícia nenhuma (2010, p. 88).

Após o acidente, esperando o veredito e mesmo após o veredito, Mariana parece procurar elucidar a própria vida como maneira de fazê-la voltar ao seu sentido sem saber que as suas indagações, as suas maiores verdades, suas únicas certezas, acabam por transformar o mundo inteiro, colocando-a de encontro às suas visões fragmentadas com a mala de azul e dura (a própria mala que dá nome ao livro), ela mesma já enxergando o mundo dessemelhante de si. Seus escritos são o que sobrou, relatos dela mesma como outro alguém que se perdeu no tempo. A busca por alguma coisa, talvez a inquietação que a movia na juventude quando estudante de cinema, talvez a busca por Jorge, seu marido, um homem que existe na concretude. No entanto, a perda acontece como um encontro e a escrita é o meio para se encontrar. A loucura acaba por produzir a lucidez sobre as coisas: ela significa ao mesmo tempo um afastamento de si mesma e uma profunda aproximação, impossibilitando-a de estar na “parte ativa do mundo existente” (2010, p. 25).

Mariana parece viver no entrelugar de seus escritos. Ela faz um percurso interno duplo e contraditório: rememora o que é e o que já foi, julga seus atos e seus anos do passado, ao mesmo tempo em que é julgada (e que julga a si mesma) pelo acidente de carro. Ela se aprofunda em literatura jurídica, ao mesmo tempo em que submerge em si e julga a si mesma: homicídio doloso.

Lembra-se de seus pais, culpa seus pais e Jorge. A culpa é o predicado do pensamento que a leva à solidão e à beira da insanidade. Já não parece enxergar a si mesma, e mesmo os seus escritos da mala de azul e dura já a confundem, misturam e atordoam: “Espremo de mim fracassos orgulhosos […] forço a sair o relato de quem fui. Não sei quem fui. Desempenhei o papel de quem tenta organizar e fazer” (2010, p. 35). Ela se confunde com os outros familiares e busca a sua própria imagem nos parentes. Novamente perde-se em fragmentos da memória e na escrita: “Reli o que escrevi nessa primeira semana e não me suportei […]. É a escrita feminina no que ela tem de pior” (2010, p. 73).

Mariana busca a superfície em Jorge. Busca estar na superfície se segurando na mala de azul e dura, sempre procurando estar “lá fora”, onde “há vida no chão, nas paredes, nos panos, nos esquiadores” (2010, p. 112). Arrumando obsessivamente a casa: “os armários tornaram-se minha obsessão […]. Arrumar, arrumar, manter arrumado.” (2010, p. 59). Tentando “arrumar-se”. Ela: o armário bagunçado e solitário da cozinha e do banheiro.

TEA FOR TWO
I’m discontented with homes that I’ve rented
So I have invented my own
(Ella Fitzgerald, “Tea for two”).

Uma história tem que se cercar de histórias (…) A cegueira clareia os ouvidos e nos dá a antevisão, é isso o que contam os livros
(Beatriz Bracher, Anatomia do paraíso).

“O que você viu, Félix? Escreva!” (Bracher, 2015, p. 53). Félix é um estudante de mestrado que está escrevendo sua dissertação sobre o Paraíso perdido, de John Milton. Mineiro, bissexual e epilético, submerge e absorve-se nas traduções do poema que o conduz a um salto no vazio da leitura, que o conduz à irresolução do poema. Não o compreende, e o narrador, como Deus, o expulsa do paraíso, relegando-o ao paraíso perdido num perpétuo castigo na cidade do Rio de Janeiro, em seu cubículo-quarto. Ainda assim, o romance é de uma beleza arrebatadora porque há mais que metalinguagem (ou “metaescrita”, “metaleitura”) em Anatomia do paraíso. Nele, há uma espécie de corporificação, um belíssimo e violento relato (ou bem mais que um relato!) do exercício da leitura e da escrita. A beleza da recepção e da gênese das palavras que se unem, constituem e estabelecem formas, atribuem significados umas às outras, ou umas nas outras, como se dependessem mútua e reciprocamente para conferir-lhes um significado total, talvez uma história, qualquer coisa da ordem do dizível. A leitura e a escrita aparecem como processos e formas de descobertas das coisas, nomes, gestos, palavras. Mais que a fruição estética, trata-se, em Anatomia do paraíso, da fruição da criação e das possibilidades da criação. Félix descobre as possibilidades criativas nas traduções do poema épico de Milton, numa atmosfera de devaneios e invenções que o levam à profundidade e à descoberta. O percurso que Félix faz o leva do jogo arriscado com a reflexão à solidão: as palavras se processam na interioridade, o personagem é todo interioridade.

Em vista disso, ele busca a superfície em Vanda, sua vizinha e técnica de autópsia no Instituto Médico-Legal. Como diz José Luiz Passos, na orelha de Anatomia do paraíso, o romance enfeixa uma contradição entre idealismo e mundo prático: um “contraste entre o idealismo de Félix e as exigências práticas do cuidado com a vida – representadas sobretudo por Vanda” e de outro modo com Maria Joana (a “Jojô”), irmã de Vanda, e o tenente Nildo.

Em Félix, parece que há um vislumbre direto da matéria sensível espiritualizada, aquilo que as coisas emanam, dizem de si silenciosamente como uma natureza que falasse, disseminada em palavras. “Quem será a Luz feita pela voz?” (2015, p. 120), pensa ele em comentário a um trecho de John Milton. Aqui, as palavras são mais do que vocábulos que dão nomes às coisas. São manifestações aparentes, apresentam-se ao mundo. Já não parece haver distinção entre ele e John Milton, entre o Paraíso perdido e ele como próprio sujeito do mundo. Félix parece ser tomado pela visão já perdida de Milton, já completamente cego no momento em que escreveu Paraíso perdido, tornando-se ele próprio o narrador do poema de Milton, de Anatomia do paraíso, o livro que estamos lendo e de tudo o que ele vê com seu olhar físico. O céu não é mais apenas o céu que os homens enxergam; é o céu estendido do Paraíso perdido, estendido acima de Copacabana, mesmo deslocamento que acontece com o Inferno. O corpo de Félix é uma extensão de sua leitura meticulosa e apaixonada: paraíso, inferno, anjos, demônios. Adão e Eva perambulam e coabitam em seu bairro, em tudo. E em Milton ele encontra a razão da sua escrita, de sua própria vida. As palavras dizem mais que o Paraíso perdido, envolvem Félix e sua visão é tomada e derramada sobre o poema, e também fora do poema. Ele vive na sensação: “sendo guia […] querendo ser cego, mesmo nos dias em que consegue enxergar, Félix entende de novo o caminho, entende que o caminho é dele” (2015, p. 152). No entanto, parece haver a ânsia e o desejo de apenas existir, de viver apenas na superfície, assim como Vânia, assim como Jorge, de Azul e dura. Grosso modo, ele almeja ser uma pessoa comum e não percorrer “extensas solidões” na sua condição de homem enfurnado e isolado em si mesmo (Bracher, 2010, p. 187):

Ter uma televisão ver televisão, ter dinheiro e ir ao cinema, ler jornal, gostar de futebol […], pensa que […] seria uma pessoa mais densa. Enxergar o mundo, ter olhos e ver. Mas não. Sempre na órbita dos cegos, orgulhoso com sua cegueira, enfurnado e vendo o que não existe, pureza e podridão (Bracher, 2015, p. 186, grifos meus).

A contrariedade inscrita pela conjunção adversativa, seguida por um advérbio de negação, na expressão, “mas não”, exprime a condição do homem enfurnado e isolado em si mesmo, que não pode sair pelo fato de ter nascido humano e pensar. Ele não pode possuir uma natureza que não lhe pertence. Não pode apenas existir livre do pensamento sobre a própria existência. Como a própria Beatriz Bracher disse em entrevista ao jornalista Daniel Benevides: “os narradores do Félix e da Vanda são na terceira pessoa, mas são diferentes: o do Félix é de pensamento interior e o da Vanda é mais realista”.

Félix se expande para as coisas, seus aspectos constituídos, reais, palpáveis e os vocábulos e passagens que sucedem dão formas aos seus atos, mostram gestos que não se dizem mais abstratos, impalpáveis, quase que obscuramente incompreensíveis àqueles que não sentem o mundo e seu peso. Ele sente as coisas, talvez como uma busca desesperada de pertencer a alguma coisa. Ele desenha como se fosse a única forma de sair de seu isolamento subjetivo e indefinido: desenha a linha da parede, a linha do chão, da cama, da estante (…). Segura o cabo com o punho fechado, abre sulcos na madeira deixando ver a cor castanho clara do compensado sob a fórmica, o canivete escapole e fere o polegar de sua mão esquerda. (…). Olha para o dedo, a lâmina fez um corte reto na almofada da última falange do polegar, continua sangrando (Bracher, 2015, p. 175, grifos meus).

O sangue é o ultimato de suas ações, o que mostra sua natureza, vivo, carnalmente vivo, humanamente vivo. Assim como Mariana, de Azul e dura:

Sempre sangra um pouquinho, sangue nunca é morto. Nunca é só pele, é um pouco carne. Pele é carne, casca é fruto. É o que protege e separa, mas é corpo, não só capa. Furar a casca para achar o dentro, para descobrir a verdade, mas a casca já é verdade. E de qualquer forma se rasgo o fora, o dentro se transforma no fora no instante preciso em que encontra o ar, em que meu olhar o encontra, nesse instante ele já está se coagulando, se tornando avesso, casca (Bracher, 2010, p. 34-35, grifos meus).

A vida concreta é metaforizada em uma única coisa, sangue: “Assim como o sangue é sangue, ele é um mortal, tem um corpo” (Bracher, 2015, p. 220-221). Vê-se homem, “livre para pecar, livre para não aceitar a salvação nem o amor do pai” (p. 175), sente-se homem, frágil e findável, desolação do mundo exterior e do seu próprio mundo interior. Um ser que também morre. Mas ainda assim, livre, ou querendo ser livre. É a inversão do paraíso. Félix é aquele que “come” a maçã do pecado, por isso perderá a ligação direta com seu criador, jamais entendendo o Paraíso perdido. Ele está no próprio paraíso perdido. E, apesar disso, a trajetória que percorre é outra, que não a da liberdade, mas a ânsia e o desejo de apenas existir, assim como Vânia, assim como Jorge, de Azul e dura, como vimos.

Por outro lado, em oposição simétrica a Félix, a natureza de Vanda é a da concretude, tão belamente e simbolicamente inscrita em sua profissão, como técnica de autópsias. Não se trata de uma mulher das palavras, não é uma mulher da escrita, trabalha com corpos, costura corpos. E é no Instituto Médico-Legal que forma pensamentos, mas a eles não se entrega. A única coisa que examina é a carne em seu desfecho, que é a morte:

Mas eu nunca tinha pensado no amor que a gente tem pelo corpo da pessoa que morreu e que, enquanto não começa a apodrecer, está lá para ser amado e protegido. […] nunca achei o meu trabalho ruim, mas hoje foi estranho mexer com os corpos. Não porque estavam mortos, mas porque tinha gente esperando por eles (Bracher, 2015, p. 244, grifos meus).

Ela é também uma mulher que está grávida e carrega em seu útero um pedaço de corpo, um pedaço vivo de si. Tudo nela está relacionado ao estrito mundo da existência desde os seus pequenos gestos à novela que assiste ao jantar que prepara para a irmã, Maria Joana, até a matéria que estuda no pré-vestibular: medicina.

Vanda não entende o mundo de Félix, a dissonância entre suas conversas é extremamente visível, ele diz: “você só sabe ouvir com um ouvido. Existem muitos e todos são verdadeiros.” (Bracher, 2015, p. 231). A que Vanda refuta: “eu posso ouvir o que você fala. Mas você não fala […]. Você se perde dentro de você, eu fico esperando aqui fora” (2015, p. 231-232). Sempre essa insuficiência na interlocução. Os duos como a fissura entre dois corpos. A dissonância como a possibilidade da fala.

ALONE TOGETHER
Through the window, the night’s so still
And if you listen you can hear
That lonesome whippoorwill
(Chet Baker)

Mariana (de Azul e dura) e Félix (de Anatomia do paraíso) estão “sozinhos juntos” (ou “Alone together” como a música de Chet Baker) e se dissolvem no mundo, com o mundo às vezes longe ou intimamente ligados ao seu próprio ser e estar no mundo, mas em uma espécie de “conexão” distante, fissurada. A disposição entre eles lembra a fórmula de Lukács sobre os tempos afortunados do mundo grego que se perderam para nós e agora tudo é distância e abismo: “de agora em diante, qualquer ressurreição do helenismo é uma hipóstase mais ou menos consciente da estética em pura metafísica.” (Lukács, 2000, p. 35, grifo meu).

Assim, os personagens parecem findar no enfrentamento do vazio com uma visão metafísica, dirigida ao mundo, que quer se dirigir ao mundo: “Possa eu olhar e contar as coisas invisíveis à vista dos mortais” (Bracher, 2015, p. 120), pensa Félix sobre uma citação de John Milton. Entretanto, irrealizável, posto que os duos vivem em sua própria solidão, na solidão em corpo. Para eles, a superfície é uma quimera que os leva à dissonância com a contemporaneidade mas ao mesmo tempo a uma vivência em consonância, ainda que ilusória, com o mundo grego da plenitude líquida das coisas, sobre a qual fala Lukács:

Aqui não é o lugar para discutir se o nosso avanço (como ascensão ou declínio, tanto faz) é causa da mudança ou se os deuses da Grécia foram expulsos por outros poderes. (…) a força sedutora, que jazia ainda no helenismo morto, cujo brilho luciferino, ofuscante, fez sempre esquecer as cisões insanáveis do mundo e sonhar novas unidades, em contradição com a nova essência do mundo e, portanto, em constante ruína (Lukács, 2000, p. 35, grifos meus).

No outro extremo se situam Jorge e Vanda (Azul e dura e Anatomia do paraíso, respectivamente) que representam a concretude, a existência sem reflexão. Nas palavras de Bracher, o “real” (Bracher, 2010, p. 25), a “parte ativa do mundo existente” (p. 25), uma vivência de certa forma ambicionada pelos personagens que vivem no alumbramento das coisas, Mariana e Félix.

Puramente interiores, Mariana e Félix parecem incertos quanto ao exterior das coisas. Instabilidade e incertezas das coisas deste mundo, um desatino que chamo “descômodo” (por oposição a “incômodo”) e que quer ser perturbado, ser descoberto, descortinado, vulnerabilizado. Eles querem perturbar as certezas e as incertezas. Debruçam-se sobre si mesmo através do exercício de reflexão, o próprio sujeito narrativo sendo observador ativo das coisas, das palavras, dos homens e do mundo. Há nisso algo de semelhante ao que Lukács descreve n’A teoria do romance. Na fissura ou na dissonância, que se abre com a modernidade, ocorre a perda de um mundo unitário no qual o homem se reconhecia:

Eis por que a filosofia, tanto como forma de vida quanto como a determinante da forma e a doadora de conteúdo da criação literária, é sempre um sintoma da cisão entre interior e exterior, um índice da diferença essencial entre eu e mundo, da incongruência entre alma e ação (Lukács, 2000, p. 26, grifos meus).

E assim, os personagens passam a buscar a experiência nas coisas e a partir delas. Uma busca talvez pela potência. Félix e Mariana pairam sós sobre o mundo: eles problematizam a existência, habitando no interstício que existe entre o mundo representado e o mundo das ideias, o pensamento e a metafísica, tentando decifrar a grandeza do Universo. Há nisso tensão, medo, loucura. O medo da inexistência, medo de existirmos e estarmos no mundo sem resposta sobre a pergunta do porquê da existência. Um vazio: “Deus – que exista Deus! – livre de mim o peso que me constringe a respiração e a existência, a pedra que me aperta coração, pulmão, garganta, céu da boca, dentes e língua” (Bracher, 2015, p. 209).

Dessa forma, para Mariana e Félix, as palavras apresentam e retratam imagens silenciosas, movimentadas pela rapidez da modernidade e dotadas de significados pela contemplação dos personagens. Eles se abrem ao meticuloso deslumbramento do pensamento não só com o Belo, mas com o Real da presença das coisas. Eles perturbam ao mesmo tempo em que, às vezes, são involuntariamente perturbados. Buscam a quietude e mergulham na solidão na profundidade que impossibilita que alcancem a superfície e os seus respectivos pares dos duos, Jorge e Vanda, que alcancem, portanto, a consonância. Assim, apenas a tensão da dissonância comunica a fissura, apenas por ela é permitida a comunicação entre eles.

A sombria desordem que se manifesta nos personagens de Bracher, faz com que pareçam perder suas identidades como sujeitos do mundo, pendendo para a loucura. Eles são verdadeiros loucos naquilo que toca a sensibilidade de seu próprio eu, de um ser ou estar no cosmos, que esconde a máxima de sua natureza, no concreto das cidades e dos homens que são símbolos de inquietudes, arbitrariedades, traumas, o desvario do mundo medíocre. Vale lembrar aqui as palavras de Foucault sobre uma dimensão da loucura como inseparável da verdade:

A denúncia da loucura torna-se a forma geral e crítica. […] Ele não é mais, marginalmente, a silhueta ridícula e familiar: toma lugar no centro do teatro, como o detentor da verdade – desempenhando aqui o papel complementar e inverso ao que assume a loucura nos contos e sátiras. Se a loucura conduz todos a um estado de cegueira onde todos se perdem, o louco, pelo contrário, lembra a cada um sua verdade […] ele diz […] a medíocre realidade das coisas para os orgulhosos, os insolentes e os mentirosos (Foucault, 2012, p. 14, grifos meus).

Os personagens Mariana e Félix dizem a verdade, mas quem há de ouvi-la quando a dissonância é a única forma de comunicação? Eles passam a ser tidos como loucos, mesmo e sobretudo porque a loucura é um caminho para a verdade. Eles mergulham no desconhecido como forma de conhecimento, sempre uma busca, talvez buscas que se desdobram em hesitações, fragmentações, duplicação entre dois sujeitos. Sempre há mais personagens em um só: aquele que é e aquele que quer ser. Aquele que quer existir: a existência livre do peso do pensamento, entretanto, irreal, posto que eles próprios indagam, divagam, refletem e, sobretudo, pensam.

A dissonância entre os personagens Mariana e Jorge, Félix e Vanda consiste num abalo das possibilidades de comunicação. Os personagens se comunicam, mas superficialmente apartados uns dos outros. Eles se comunicam desarmonicamente pela tensão e pela dissonância. É a pintura quem melhor descreve esse jogo entre profundidade e superfície. Assim, existe a profundidade, mas a superfície é sempre mais clara para aqueles que nela vivem, como na série de quadros de David Hockney, Swimming pools. Dentre eles, um dos mais famosos, A bigger splash (de 1967), parece figurar o limite entre o piso de pedra e a água da piscina que se mostra sem profundidade, superfície azul clara enquadrada no plano do quadro. O quadro representa um salto que não é visto e o que resta é o grande “splash”.

Por outro lado, e em sentido inverso, a instalação feita pelo artista argentino Leandro Erlich, que criou uma piscina falsa para o Museu de Arte Contemporânea do Século XXI em Kanazawa no Japão pode mostrar duas possibilidades: que a profundidade, vivenciada através da sensibilidade, pode ser sempre mais clara para quem nela está a superfície turva, movente em seu próprio reflexo e quem olha da superfície vê apenas a opaca movimentação. O que lembra a definição da sensibilidade formulada por Kant em A crítica da razão pura: “A capacidade (receptividade) de receber representações através do modo como somos afetados por objetos denomina-se sensibilidade” (Kant, 2012, p. 71). O resultado é a incomunicabilidade. Os personagens dos duos são assim: alguns parecem findar em sua presença e profundidade, mesmo almejando a superfície e outros existem na superfície, ainda que experimentem pequenos lampejos do splash, o mergulho fugaz na profundidade que ao perder o ar retorna à superfície, assim como Jorge e Vanda, de Azul e dura e Anatomia do paraíso, respectivamente.

David Hockney, A bigger splash, 1967
David Hockney, A bigger splash, 1967
Leandro Erlich, Swimming pool, 1999
Leandro Erlich, Swimming pool, 1999
Leandro Erlich, Swimming pool, 1999
Leandro Erlich, Swimming pool, 1999

O isolamento sempre existirá, estar no mundo não é ser para o mundo. Nos romances de Bracher, o ser é para dentro, vive para dentro como os próprios órgãos que existem em si, por mais que almejem a superfície. Os personagens solitários se dissolvem nas coisas e as coisas se dissolvem neles. Por vezes, vivem na presença delas. Deleuze, em um belíssimo capítulo do livro, Francis Bacon. Lógica da sensação escreve: “Ao mesmo tempo eu me torno na sensação e alguma coisa acontece pela sensação, um pelo outro, um no outro […] é o mesmo corpo que dá e recebe a sensação, que é tanto objeto como sujeito” (Deleuze, 2002, p. 42). Mariana e Félix são para o mundo, eles ao mesmo tempo existem e se dissolvem nele, mas como uma angústia do eterno retorno à solidão de si mesmos, o corpo único com a potência pairando sobre o indeterminado. Porque vivem a solidão em corpo. Apenas pela dissonância conseguem enxergar uma parte da superfície em Jorge e Vanda. Um instante fugaz que lhes permite respirar a resolução da consonância lacônica, mas que em seu íntimo sabem eles que estão irremediavelmente sós. Termino estes escritos com uma citação da própria Beatriz Bracher: “Não quero mais reler quem fui. Esse tipo de memória fixada na escrita não me interessa mais” (Bracher, 2010, p. 153).


* Ana Beatriz Costa da Silva de Castro é mestranda em Teoria Literária, pelo programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura da UFRJ. Esta publicação responde a um convite.

 

Referências

BRACHER, Beatriz. Azul e dura. São Paulo: Editora 34, 2010.

BRACHER, Beatriz. Anatomia do paraíso. São Paulo: Editora 34, 2015.

BENEVIDES, Daniel. Dissecando desejos. Disponível em: <http://brasileiros.com.br/2015/11/dissecando-desejos/. Acesso em: 24 de fevereiro de 2017

DELEUZE, Gilles. Francis Bacon: lógica da sensação. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

ERLICH, Leandro, Swimming pool, 1999. Disponível em: <https://www.ignant.com/2016/01/07/an-illusory-swimming-pool-by-leandro-erlich/>. Acesso em: 9 de setembro de 2017.

FARIA, Ernesto, Dicionário escolar latino-português. 3ª edição. Rio de Janeiro: C.N.M.E, 1962.

FOUCAULT, Michel. História da loucura: na idade clássica. São Paulo: Perspectiva, 2007.

HEGEL, G.W.F. Estética. Trad. Álvaro Ribeiro e Orlando Vitorino. Lisboa: Guimarães Editores.

HOCKNEY, David. A bigger splash, 1967. Disponível em: <https://www.theguardian.com/artanddesign/jonathanjonesblog/2016/feb/10/an-even-bigger-splash-why-david-hockneys-pop-art-poem-lives-on> Acesso em: 9 de setembro de 2017

HOPPER, Edward. Room in New York, 1932. Disponível em:  <https://www.edwardhopper.net/room-in-new-york.jsp>. Acesso em: 9 de setembro de 2017

LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. Trad. José M. M. de Macedo. São Paulo: Duas cidades/ Ed. 34, 2000.

OHATA, Milton. Orelha de Azul e dura. São Paulo: Editora 34, 2010.

PASSOS, José Luiz. Orelha de Anatomia do paraíso. São Paulo: Editora 34, 2015.

SCHOENBERG, Arnold 2002. Harmonia. São Paulo: Editora da UNESP [1911]

Filmografia

Nelson Freire. Direção: João Moreira Salles, 2003.

 

Recebido em: 04 de setembro de 2017
Aprovado em: 16 de outubro de 2017

resenha
Tempo de leitura estimado: 10 minutos

A INTIMIDADE DAS MERCADORIAS EM A FEIRA, DE ADRIANA ARMONY

Em seu quarto romance, Adriana Armony põe pela primeira vez a serviço da sátira a habilidade de fazer soarem vozes alheias que veio exercitando nos livros anteriores. Para lembrar só os protagonistas: um jovem Nelson Rodrigues (A fome de Nelson), uma avó que emigrou da Palestina (Judite no país do futuro) e um rapaz com sequelas neurológicas de acidente que comprometeram competência com a linguagem (Estranhos no aquário). Sempre lidando com dados documentais estrategicamente diluídos na construção ficcional, Adriana experimentou desafios bem diferentes entre si, para compor possível discurso do escritor brasileiro que estudou na tese de doutorado, uma memória judia e feminina que lhe é distante mas também é sua ou um modo de percepção e expressão refratário ao próprio ordenamento que a escrita impõe.

Em A feira já não há voz principal, são várias que se alternam nos capítulos curtos que rapidamente vão tecendo a singularidade de cada uma. Parece que Adriana Armony escolheu mesmo se dedicar a esse trabalho minucioso de fazer as palavras figurarem contornos de indivíduos que se tornam nossos próximos ao longo da leitura. O que pensam, fazem e sentem é intenso e banal, terrível e mesquinho, compreensível e indecifrável, como a vida de qualquer um. Com manejo delicado do vocabulário, do ritmo das frases e da sequência de informações, vão se delineando personagens e acontecimentos ao mesmo tempo familiares e estranhos. Algo dessa técnica está revelado no Pós-escrito autoirônico do livro, na passagem que descreve A rifa, de Alby Bloom – romance dentro do romance, cujo título anagramático, junto ao nome do pretenso autor, se sobrepõe na tarja que abraça a capa de A feira, num evidente jogo metaliterário (e também crítico em relação à recorrência desse tipo de recurso na ficção contemporânea):

[…] o romance refletia sobre a reificação dos indivíduos na sociedade pós-capitalista. […] O que na superfície era uma história fantasiosa, cheia de peripécias e emoção, na verdade era uma alegoria sofisticada, de uma ironia profunda. A linguagem limpa do livro não passava de uma armadilha: em determinados momentos-chave, ela se enrodilhava sobre si mesma em longas frases de um virtuosismo barroco. O leitor se sentia amarrado nessa armadilha, louco para voltar à superfície do enredo, onde, no entanto, o recebiam outras histórias. Não era apenas uma rifa de pessoas, mas de narrativas; e o leitor ficaria na fila até o fim (Armony, 2017, p. 154-155).[1]

A fluidez do texto e a platitude das situações em A feira provocam certo desconforto porque exprimem, de modo paradoxalmente natural, a dimensão tanto trivial quanto dolorida das complicações que habitam gente como a gente. E, aqui, a expressão “gente como a gente” não designa alguma genérica Humanidade, vem para especificar o objeto da sátira: gente como eu e você que me lê. Leitores, escritores, críticos e professores de literatura, jornalistas e produtores culturais, editores, curadores… “hypocrite lecteur, mon semblable, mon frère!” (p. 157) – a citação de Baudelaire nas últimas palavras do romance revela claramente do que se trata.

As personagens sem nome, identificadas pelo papel que desempenham no meio literário, não deixam de guardar um quê de caricato, com suas atitudes calculadas e frases feitas. Não que sejam meros tipos – fazem tipo. A narrativa as flagra justamente no cálculo dos gestos, e mesmo os mais corriqueiros podem estar esvaziados de espontaneidade para cumprir função na construção de imagem pessoal. Por exemplo, quando a poderosa Editora se esmera em preparar o papel para deixar um bilhetinho para o amante que deixa dormindo na cama “com todo o mau gosto típico de motel replicado num fim de tarde comum”: “Rasgou a parte usada com o cuidado suficiente para parecer casual, mas não desleixada” (p. 11-12).

A miséria da vida íntima submetida à lógica de mercado, em alguns casos, aflora à consciência, como acontece com a Curadora, que se sente desconfortável o tempo todo e em qualquer lugar, seja no próprio corpo cada vez mais sem viço, seja na casa deserta, sem afeto familiar, seja no espaço virtual do site de relacionamentos – o que contrasta com a performance pública de executiva bem-sucedida, ainda que ciente de há tempos ter abdicado da “literatura de verdade” (p. 15), para desfrutar o “falso gostinho do poder” (p. 14), “num país em que as virtudes republicanas caducaram antes de nascer” (p. 68).

De fato, em A feira não há nada de republicano nas relações que se estabelecem entre escritores e outros atores do meio. O Escritor Talentoso, “agora profissional” (p. 58) depois de premiado no ano anterior, põe em segundo plano suas inquietações para ocupar-se com o papel de intelectual inconformado e algo excêntrico; a barba cuidadosamente por fazer, a camisa amarrotada e uma firula gastronômica lhe conferem tanta singularidade quanto rótulos como “Borges nacional” ou “antropofágico universal” (p. 57). Na mesma linha, uma moça bonita, estrando com romance “a um tempo ágil e denso, de engenhosa sensualidade” (p. 16), que a promoveu a Promessa da Literatura, empenha com desenvoltura seu sex appeal para se aproximar dos “contatos certos”, confiante de que assim “conquistaria uma posição na Literatura nacional” (p. 21).

Do modo parcimonioso como recorre ao pastiche (discretamente explícito, muitas vezes entre aspas), a narrativa de Adriana Armony (auto)ironiza diversos artifícios literários, inclusive desmascarando a inverossimilhança do mistério pífio com que construiu suspense ou interrompendo o envolvimento do leitor com cena erótica por passagem abrupta a situação que lembra o pastelão no cinema. “Que tudo, inclusive a vida, é um grande e imperfeito jogo de palavras” (p. 155) – essa hipótese da Autora no Pós-escrito, confirmada por tantos escritores, teóricos e críticos de literatura às voltas com a crise da representação, parece tanto afirmada quanto desmentida no romance.

A feira não redime ninguém que se localize em alguma das categorias que atuam no funcionamento do mercado literário formado no Brasil das últimas décadas. Girando em torno dos preparativos e da realização de uma feira de literatura em cidade turística (qualquer semelhança com a realidade não é, claro, mera coincidência), o romance encena de modo bem-humorado diversos vícios que esse braço da indústria cultural alimenta. Ficam de fora os méritos de eventos do gênero (feiras, festas, bienais, prêmios), mas isso, de fato, não seria preciso divulgar, já há bastante mídia cumprindo esse papel; o romance de Adriana Armony assume outro. É uma empreitada corajosa da Autora, que conta de dentro o preço que se paga para participar do meio literário profissional tal como se configura hoje, revelando o lado mais perverso desse universo: as disputas por prestígio, divulgação e vantagens comerciais; o culto à celebridade; clichês que vão do modo de posar para foto – “com os olhos penetrantes (parece que a mão no queixo saíra de moda)” (p. 61) – ao jargão empregado em palestras, entrevistas, críticas e releases; dinâmica de tendências contemporâneas convertidas em nichos de mercado; mecanismos de favor e de sedução; bastidores do marketing pessoal que se veiculam em cadernos de cultura, blogs, redes sociais e queijandos…

A opção por evidenciar meandros subjetivos implicados na mercantilização da literatura é tão marcada que, afora os pequenos dramas pessoais das personagens, nada de sério vem à tona, nem mesmo a negociação comercial. Isso é literalmente visível na sequência em que editores e organizadores da Feira se reúnem para acordar os últimos detalhes da programação e da distribuição de espaços de venda. “E assim teve início a reunião” (p. 46), anuncia o capítulo que relata a chegada da Curadora à Associação dos Editores às vésperas da Feira. Porém, nos blocos seguintes, os termos do negócio são substituídos por reticências entre colchetes, à la Machado, assinalando que, na economia do romance, são dispensáveis esses dados objetivos. O que se salienta é o jogo de aparências que obedece a protocolos de uma sociabilidade pautada por encenação de finesse e cordialidade.

A REUNIÃO

[…]

Aliás, outros happenings estavam previstos, acrescentou a Curadora, sorrindo sugestivamente; em breve enviariam o comunicado com a programação fechada. Se tivessem alguma dúvida podiam perguntar.

Mas ninguém disse mais nada. A perspectiva dos comes e bebes era cada vez mais palpável. De fato, sinais auspiciosos vinham do salão anexo: ruído de talheres, arrastar de cadeiras, aromas insinuantes.

E, com isso, deu-se a Reunião por encerrada.

O COQUETEL

De pé no salão anexo ao principal, o meio editorial se dedicava a pequenas cumbucas de conteúdo delicadamente incompreensível.

Enquanto os minúsculos pratos se sucediam, a Curadora voltava-se de um para outro comentando os sucessos, os últimos lançamentos, a aparência física de um – como estava bem disposto! Como fora a viagem? Paris continuava linda? –, o casamento da filha de outro.

Ali, entre uma cumbuca e outra, as mensagens importantes eram trocadas. (p. 46-47).

Assim como a “aparência de uma conversa sobre autoficção na literatura” (p. 47) é apenas pretexto para negociação de espaço de vendas, também nas mesas de debate entre escritores nenhuma discussão literária relevante tem lugar, fica sugerida uma sucessão de lugares-comuns em debates inócuos, falas pré-moldadas em conformidade com modismos. Sobressai, como anunciado na Reunião, um happening ruidoso e um tanto ridículo, que rouba a cena dos livros para entreter o público com performance protagonizada por figuras familiares aos frequentadores de redes sociais.

Aprendemos com Guy Debord que a lógica de nossa sociedade do espetáculo não se define simplesmente pela subordinação de todas as esferas da vida à dinâmica midiática, à prevalência da imagem administrada. O que está na base da espetacularização das relações na sociedade de consumo, antes do modelo dos meios de comunicação, é a forma-mercadoria. “O espetáculo é o momento em que a mercadoria ocupou totalmente a vida social. Não apenas a relação com a mercadoria é visível, mas não se consegue ver nada além dela: o mundo que se vê é o seu mundo” (DEBORD, 1997, p. 31). É essa cara do nosso mundo literário que Adriana Armony dá a tapa em A feira, com olhar múltiplo, como se fosse aquela mosquinha em que a gente tem vontade de se transformar quando quer saber de minúcias do que transcorre mais ou menos em segredo.


* Danielle Corpas é professora de Teoria Literária na Faculdade de Letras da UFRJ, autora de O jagunços somos nós: visões do Brasil na crítica de Grande sertão: veredas.

 

Referências

ARMONY, Adriana. A fome de Nelson. Rio de Janeiro: Record, 2005.

______. Judite no país do futuro. Rio de Janeiro: Record, 2008.

______. Estranhos no aquário. Rio de Janeiro: Record, 2012.

______. A feira. Rio de Janeiro: 7Letras, 2017.

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

 

[1] As páginas de que foram extraídas as próximas citações de A feira serão indicadas entre parênteses.

entrevista
Tempo de leitura estimado: 20 minutos

CAMINHOS CÊNICOS DE SARAH BENSON PARA A MONTAGEM DE BLASTED

Sarah Benson (1978  ̶  ) é diretora artística do Soho Rep – Soho Repertory Theatre – em Nova York, desde 2007. O Soho Rep é um espaço dedicado ao teatro contemporâneo com enfoque em novos autores e cuja proposta é apoiar projetos que não partem necessariamente do texto pronto do autor:  por exemplo, projetos de diretores-autores, como Lear de Young Jean Lee, ou de grupos de pesquisa com trabalhos laboratoriais experimentais, como o Life and Times do grupo Nature Theater of Oklahoma. Segundo Benson, o que move seu critério de escolha de artistas para os programas de desenvolvimento de obras no Soho Rep é, além da voz autoral “única” dos autores/criadores, o potencial de teatralidade de seus projetos. Estes devem reivindicar as especificidades do teatro e resistir a uma adaptação fácil a outras mídias. Benson considera importante que o espaço seja usado por artistas contemporâneos com trajetórias já reconhecidas no teatro off-Broadway, como Richard Maxwell, mas também por jovens autores, buscando encontrar essa “voz autoral” através de processos de experimentação e amadurecimento.

Em ocasião de minha pesquisa de doutorado sobre a dramaturga inglesa Sarah Kane, em 2012, estive com Benson para uma conversa sobre a primeira montagem da peça Blasted (Detonado, 1995) de Sarah Kane em Nova York, dirigida pela própria Benson em 2008 no Soho Rep. O trecho transcrito abaixo em versão bilíngue português/inglês, faz parte dessa conversa na qual Benson compartilha algumas soluções cênicas que fizeram parte de seu processo de direção e um pouco de sua visão sobre a peça Blasted.

Sarah Benson (Foto: Pavel Antonov)
Sarah Benson (Foto: Pavel Antonov)

Obrigada mais uma vez por me receber aqui, no Soho Rep. Esta conversa é muito importante para a pesquisa. Primeiramente, gostaria de te perguntar como você teve contato com a obra da Sarah Kane. Sei que você é da Inglaterra. Você teve a chance de ver algum trabalho dela por lá?

Sarah Benson: Obrigada, Juliana, pelo seu interesse. Bem, eu tive contato com o trabalho dela pela primeira vez quando Blasted foi escrita, acho que em 95 (talvez escrita em 1993 e encenada em 1995). Eu estava no colegial na época e lembro que fez muito barulho na imprensa. As pessoas ficaram indignadas, ficaram furiosas. Estava sendo produzida no Royal Court, que é um teatro subsidiado. Então deu primeira página nos jornais. As pessoas estavam furiosas com o dinheiro público usada naquela peça. Então, a situação estava pegando fogo. Eu li a peça naquele momento e me apaixonei imediatamente, mas, para mim, ela parecia ser realmente sobre a Irlanda do Norte porque era esse o conflito que estava muito vivo para mim naquele período. As nossas escolas estavam na lista de alvos e eu tenho família lá, então era sobre esse conflito que a peça parecia falar, para mim. Eu, na verdade, não vi nenhuma das peças quando fizeram aquele grande festival quando a Sarah [Kane] morreu porque eu já estava fora do país. Então, a primeira montagem que vi de seu trabalho foi a de 4.48 (Psychosis) do James Macdonald, quando veio em um tour para St. Ann’s Warehouse [NYC]. A Marin Ireland estava nessa montagem. E foi a primeira vez que a vi em cena também. Foi certamente muito inspirador ver o trabalho dela aqui. Pouco depois, resolvi chamar a Marin para um workshop de uma outra peça que eu estava fazendo e num intervalo de almoço ela me falou: “Nós devíamos fazer Blasted, Eu quero muito fazer Blasted!”.  E, por um acaso, eu estava com uma viagem marcada para a Inglaterra. Então ela me colocou em contato com o Simon Kane, o irmão da Sarah, que é responsável pelos direitos da obra dela. Eu fui para a reunião com Simon esperando ter uma conversa mais de investigação de possibilidades em relação às peças da Sarah. O Simon tinha acabado de se mudar para cá (isso foi antes de eu começar o trabalho no Soho Rep). Ele havia tentado por meses colocar a peça nos teatros principais sem conseguir nada. Então, ele ficou muito entusiasmado com a ideia da peça acontecer aqui. Ao final da reunião, estávamos todos pegando os nossos calendários e planejando um jeito de fazer isso acontecer. Então, foi mais ou menos assim que as coisas se deram.

Marin Ireland foi quem instigou e eu amava a peça. Quando eu voltei [para NY] depois de uma conversa com ela em que combinamos uma leitura já com a ideia de montagem em mente, eu esperava ter a mesma sensação de que a peça era sobre a Irlanda do Norte porque havia sido essa a minha experiência e lembrança da leitura que fiz quando era adolescente. E naquele momento percebi, “uau”, essa é uma peça que, em qualquer momento que eu leio, ela parece ser sobre o agora e sobre o conflito que estiver mais presente. Quando a peça foi escrita, a Guerra na Bósnia foi uma referência para a peça. Mas é realmente sobre conflitos civis. Então esse foi realmente um momento poderoso, quando decidi: “Sim, eu quero fazer isso!”

Você chegou a considerar montar as outras peças da Sarah Kane ou Blasted pareceu ser a peça certa desde o início?

Sarah Benson: Por algum motivo simplesmente pareceu ser a peça certa. Eu também sempre tive vontade de fazer Phaedra’s Love [O Amor de Fedra]. Eu devo montá-la em algum momento.  Pode parecer estranho, mas eu sou uma otimista e considero Blasted a peça mais otimista dela. Realmente me apaixonei e quis fazer essa peça.

E quais foram os maiores desafios durante o processo? Li que você chegou a ficar deprimida durante o período de ensaios.

Sarah Benson: Acho que foi o New York Times que decidiu que eu estava deprimida.

[risos]

Ah, então você não [estava]…

 Sarah Benson: Eu acho que não… acho que fiquei muito cansada quando estava trabalhando nela. Bem, fiquei doente. Não acho que estava… quero dizer, talvez durante o tempo em que fiquei imersa na pesquisa sobre a guerra civil. O material é muito deprimente. Acho que quando se trabalha em qualquer peça é preciso ficar imersa naquele universo. Foi também um período de estresse enorme em torno de recursos para a produção. Se estivéssemos “sãos” não teríamos topado fazer essa montagem. Então, em termos de produção material foi a montagem mais desafiadora que eu já fiz até os dias de hoje. Foi um grande desafio. Acho que foi tudo isso.

Como foi trabalhar os temas de violência da peça na prática com os atores?

 Sarah Benson:  Nos aproximamos desses temas de modo muito pragmático. Do mesmo modo que me aproximo de qualquer desafio da ordem da fisicalidade. Primeiramente é preciso criar um ambiente seguro onde os atores sintam que podem fazer o que precisam fazer. Reed Birney tirou as roupas no terceiro dia. É preciso ter uma sala de ensaio onde as pessoas se sintam seguras, então este é o primeiro passo. E, então, honestamente, a questão foi criar formas físicas e trabalhamos com o brilhante diretor de lutas, David Brimmer. Ele me ajudou a encontrar formas trabalhando a fisicalidade dos atores. Coreografamos os atores e eles praticaram como se fosse uma dança até o ponto em que estavam tão confortáveis que, fosse qual fosse a cena, eles estavam muito confortáveis em termos técnicos. A parte da emoção veio depois. E eu não tive que fazer nenhum [tipo de trabalho emocional]. Era apenas trabalhar na peça e os atores traziam essa outra parte. Trabalhar com coisas como a respiração foi importante. Quando entrávamos nas cenas mais intensas, nos preocupávamos em descobrir como fazer a respiração. Foram todas essas coisas que realmente tornaram as cenas plausíveis para mim. Eu acho que a violência não precisa ser abstrata. Por vezes acho que funciona melhor quando estilizada, mas, nesse caso, é preciso ter a sensação de que realmente estava acontecendo na sala, sem ser como num estilo de filme ou TV. Então você simplesmente tem que fazer o mínimo que deve ser feito para desencadear isso, acho. Então eu recuava constantemente quando o diretor de luta apostava numa dinâmica mais sanguinária. Eu refreava muito, mas foi incrível tê-lo [o David Brimmer] porque foi assim [nessa diferença] que conseguimos descobrir como fazer.

Há uma explosão no meio da peça. Como resolveu isso?

Sarah Benson: Então, falando em real abstrato, acho que a explosão é ambos. É uma metáfora, é o título da peça – os acontecimentos da peça são grandes demais para estarem na peça e então a peça quebra, basicamente, formalmente.

Começa como uma peça naturalista e se torna uma série fragmentada de cenas sem nenhuma fala. Então o detonar tem que operar nas duas camadas – na medida em que esse quarto de hotel realista é explodido, a forma teatral também é explodida, a relação entre palco e plateia, até esse momento, é completamente diferente: modifica-se de repente de modo radical e se torna um evento cívico no qual estamos todos ocupando o mesmo espaço. Então, todas essas coisas devem estar contidas na explosão para que de fato funcione. Louisa Thompson, a designer de cenografia incrível que se tornou minha colaboradora há muito tempo, encontrou um modo de captar uma impressão de sensação que se tem na guerra que seria: de repente seu mundo está de cabeça para baixo. Nós olhamos fotos reais para ver como é um quarto depois de uma explosão ou como é a imagem de ruínas e detritos pós bombardeio. Essas imagens não me interessaram nem um pouco porque não conseguiríamos fazer algo assim. Se você quer fazer esse tipo de coisa, faça um filme. O que nós estávamos tentando fazer era captar teatralmente a essência de qual deveria ser a sensação disso, que para mim era ter tudo destruído de um momento para o outro. Então o gesto que finalmente encontramos, depois de passar por, provavelmente, vinte diferentes ideias ruins e imitações dessas ideias, foi basicamente: o cenário estará sobre trilhos. Quando a explosão ocorre, o teto e o chão recuam e tudo o que estava no quarto cai no chão. Para mim, isso de certa maneira captava a violência repentina do ato e isso também realmente espelhava o estupro [de Cate por Ian] que acontece na noite anterior. Isso deveria dar a sensação de violação. E, então trabalhamos em torno dessa ideia para descobrir como viabilizá-la. Toda a equipe de design estava envolvida, especialmente na explosão, que foi uma colaboração entre Louisa, Matt Tierney [o designer de som] – boa parte do que fazia a explosão funcionar era o som  ̶  e também a iluminação [por Tyler Micoleau] e eu. Foi uma solução de várias cabeças.

Do que era feito o bebê?

Sarah Benson: Nossa, não consigo me lembrar agora. Nós tentamos tantas coisas diferentes…

Era comestível.

Sarah Benson: Sim, era algum tipo de adereço comestível. Eles experimentaram várias opções de coisas que pareceriam realistas o suficiente para que fosse crível, basicamente.

Como foi a reação do público? Eu sei que tiveram muitas críticas positivas e que ganharam o prêmio Obie. Houve uma resposta de amor e ódio do público, como foi na estreia original da peça?

Sarah Benson:  A resposta nos surpreendeu. Eu esperava uma reação muito mais polarizada, o que não aconteceu de maneira alguma. E acho que no período em que estávamos produzindo a peça, no outono de 2008, estava havendo as eleições, a economia estava despencando, e havia um tipo de fragilidade no estado emocional pelo qual as pessoas estavam passando – a peça realmente trata disso. Quer dizer, tivemos algumas pessoas saindo no meio do espetáculo, é claro, mas tivemos uma resposta positiva bem uniforme e forte. Foi realmente incrível.

 

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Thanks again for having me here. This is really important for the research. Well, first of all, since you are from UK, I was curious about how you came across Sarah Kane’s work and if you ever got to see any of her work back in UK.

Sarah Benson: Thank you, Juliana, for your interest. Well, I first came across her work when Blasted was written, I think in in 95 [perhaps, written in 1993 and staged in 1995]. I was at high school then, and I remember it was like a huge deal in the press, people were outraged, people were furious. It was being produced at the Royal Court, which is a subsidized theatre. So, it was front page of the tabloids. People were outraged that the public money was being spent on the play. So it really kind of caught fire. I read it at that point and I loved it immediately, but it really felt to me that it was about Northern Ireland because that was the conflict that was very vivid for me at that point. Our schools were on the hit lists and I have family there, so that was the conflict that the play seemed to me to be about. I actually didn’t see any of her plays when they did that big festival when Sarah [Kane] died, because I was out of the country at that point. And so, the first production of her work that I saw was James Macdonald’s touring production of 4.48 [Psychosis] at St. Ann’s Warehouse [NYC]. And Marin Ireland was in that show. And that was actually the first show I’d seen her in as well. So it was definitely very inspiring to see her work over here. Soon after that, I decided I wanted to cast Marin for a workshop of another play I was working in at the time. So, we were working on this other play, and eventually on a lunch break she was like “We should do Blasted, I really want to do Blasted!”. And I happened to be going over to the UK right after that, so she put me in touch with Simon Kane, Sarah’s brother, who runs her estate. You know, I went into the meeting expecting us to have a sort of very exploratory conversation about Sarah’s plays. And Simon had essentially moved over here – this was before I’ve taken the job here at Soho Rep. He’d been over here for months trying to get the play on, and nothing had happened on the major theaters. So he was thrilled about the idea of the play happening in here. By the end of the meeting we were all getting out our calendars and really thinking a way of making this happen. So that was kind of how it came to be. Marin Ireland was the instigator, and I loved the play. When I went back, after that conversation with her to read it with this idea in mind, I expected it to feel about Northern Ireland because that was my experience, what I remembered reading when I was a teenager, and it seemed about now. So at that point, I realized that, “wow”, this is a play that at any and every point I read it feels that it is about right now and the whatever conflict is the most present. When she wrote it, the Bosnian war was a real jumping point for the piece. But it is really about civic strife. So that was really a powerful moment where I decided: “Yes, I want to do this!”.

 Did you ever consider doing other of her plays or did Blasted just feel right?

Sarah Benson: For some reason it just felt right. I’ve always wanted to do Phaedra’s Love as well. And I will do it in some point. I know that this might sound weird, but I’m an optimist and I find Blasted the most optimistic play of hers. And I really loved it and wanted to do it.

 And how about the biggest challenges that you faced during the process? I read that you even became depressed while you were working on it.

Sarah Benson: I think that it was the New York Times who decided that I became depressed.

[laughs]

Oh, so you [weren’t]…

Sarah Benson: I didn’t think so. I think I became tired while I was working on that. Well, I got sick. I don’t think I was… I mean, maybe for a period when I immersed myself in research about civil war. The material is very depressing. I think any play you work on, you have to find yourself immersed in that world. It was also a time of enormous stress for us in terms of production resources. If we’d been sane we would not have taken on doing the show. So, in terms of physical production it was the most challenging show we’ve ever done before or since. It was a real challenge. So I think it was all of that.

How was it approaching the violent themes in the work with the actors?

Sarah Benson: We approached those themes very pragmatically. The same as I approach any sort of challenging physical material. First it is about creating a safe room where the actors feel they can do what they need to do. Reed Birney took off his clothes on day three. You need to have a room where people feel safe in and so that was the first thing. And then, honestly, it was all about creating physical shapes and we worked with the brilliant Fight director, David Brimmer. He really helped me shape the physicality for them. It was really about choreographing them and practicing like it was a dance, until it was just so comfortable for the actors that whatever scene it happened to be they were very comfortable in a technical pattern. The emotion kind of came latter. And I didn’t do any of that [emotional approach]. It was just about working on the play and the actors brought that. Working with things like breathing was huge. When we got into very intense scenes we were figuring out how to do the breathing.  It was all those things that really made me buy it. I think that the violence has not to be abstract. Often I feel that it works better when it is stylized but, in this case, it had to feel like it was actually happening in the room, without it being like movie or T.V. style. So, you kind of just have to do the least you have to do to pull it off, I think. So I was constantly sort of pulling back, when the Fight director would have much more gory details. I was constantly pulling back, but it was amazing to have him there because that’s how we managed to sort of find it.

There is an explosion in the middle of the play. How did you solve that?

 Sarah Benson: So, talking about the real and the abstract, I think the explosion is both. It is the metaphor, it is the title of the play – the events that happen in the play are too big to be in the play and so the play shatters, basically, formally.

It starts out as a naturalistic play and it becomes a fragmented series of scenes with no text at all. So, the blast has to operate both levels – as this realistic hotel room has been blown apart and the form of theater has also been blown apart, the relation between audience and the performer, up to that point had been completely distinct, suddenly radically shifts, and it becomes a civic event where we are all occupying the same space. So all of those things have to be contained in the blast for it to actually succeed. And the thing is that Louisa Thompson, the amazing designer who has become a long time collaborator of mine, she found a way to capture the sense of how war feels. Which is just: suddenly, your world is upside down. We looked at realistic pictures of how a room looks like after it has been blown apart or what post-bomb debris look like. None of those interested me at all, because we can’t pull that off. If you want to do that, make a movie. What we were trying to capture theatrically was the essence of how that must feel, which to me is like everything has suddenly changed instantly. And so the gesture that we finally landed on after probably going through out twenty different bad ideas and imitations of this idea, was basically – the set was on a track – when the blast happened, the floor and the ceiling essentially tracked back and everything that was in the room fell on the floor. To me that kind of captured the sudden violence of the act and it is really mirroring the violation of the rape that happened the night before. That’s meant to feel like violating. And then we worked around that to figure out how to support that. And all the design team was involved, especially on the explosion, which was really a collaboration between me, Louisa, Matt Tierney [the sound designer] – a huge part of what made the explosion work was the sound and also the lights [by Tyler Micoleau]. So it was really a multi-headed solution.

What was the baby made of?

Sarah Benson: God, I can’t remember now. We tried so many different things…

It was eatable.

Sarah Benson: Yes, it was some kind of eatable prop. They tried various things that would look realistic enough that we’d buy it, basically.

How did the audience respond to the show? I know that you got very good reviews and an Obie award. Was there also a love-hate response?

Sarah Benson: The response absolutely took us by surprise. I expected a much more polarizing response which didn’t happen at all. And I think it was the time we were producing the play which was in the fall of 2008 and the election was going on, the economy was falling apart, and something about the fragility and the emotional state that everyone was in – this play literally tapped right into it. I mean, we did have some people walking out of the show, of course, but we had a pretty uniformly strong [positive] response. It was really amazing.


* Juliana Pamplona é autora, diretora teatral e doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas na UNIRIO com a tese Transtornos dramatúrgicos – temas-procedimentos nas peças de Sarah Kane. Foi pesquisadora visitante no departamento de Performance Studies na NYU (New York University, 2012) através da CAPES/PDSE e atualmente é pesquisadora Pós-doc FAPERJ Nota 10 e do PACC na Faculdade de Letras – UFRJ.