Tempo de leitura estimado: 5 minutos

DE 1964 A 2024: CAMINHOS, ATALHOS, BARRICADAS

Os desmandos contra a democracia cometidos pelo regime militar de 21 anos instituído pelo golpe de 31 de março de 1964 não podem ser esquecidos. Muito menos empurradas para baixo do tapete as verdades sobre torturas, mortes, desaparecimentos, crimes cometidos em nome do Estado pelas forças repressivas da ditadura. No ano de 1988, com a promulgação de uma nova Constituição, o regime militar foi definitivamente encerrado e substituído por um regime constitucional civil, respaldado por níveis de participação democrática, organização social e representatividade política inéditos em toda a história de nosso país. Pela primeira vez todos os setores da vida nacional, em todas as regiões, organizaram-se para intervir na vida civil.

Quase trinta anos depois, a história buscou se repetir, talvez como farsa, como dizia Marx. Tendo atingido seu ponto culminante no 8 de janeiro de 2023, vimos uma facção de extrema-direita, nostálgica da ditadura militar, envolver parte de seu eleitorado e uma legião de pequenos e médios empresários numa trama golpista imaginada por alguns militares. Para eles, o tempo tinha parado em 1964.

O golpe de 2023 não se materializou até o fim. Foi derrotado na sequência imediata do 8 de janeiro. Se 23 por sorte não reeditou 64, isso se deve em parte à robustez do sistema político e institucional plasmado na Constituição de 88 e vigente até hoje. Não se questiona a autoridade adquirida pelo Supremo Tribunal Federal, pelo sistema jurídico em geral, no tocante a questões de cidadania. A sociedade se uniu contra a volta de uma ditadura militar.

Além da solidez do STF, da Polícia Federal, do próprio Ministério Público Federal e de toda a rede de instâncias jurídicas de escalão superior, existem outros elementos – inclusive em uma esfera que podemos chamar de cultural – que não existiam em 64.

Se o ganho em torno de questões comportamentais foi imenso, se o papel decisivo da cultura vinda da periferia está definitivamente incorporado e o multilinguismo indígena chegou à Academia Brasileira de Letras, muito há ainda a ser conquistado. O aborto continua como cláusula pétrea. Negros, trans e pobres sofrem pelas mãos das polícias. As políticas de cotas significaram vitória de toda a sociedade, mas o racismo deixa traços por toda parte. A luta contra o genocídio indígena acontece, mas a vulnerabilidade continua.

Persiste ainda a sombra do golpismo militar, como um fantasma, que queremos não apenas recalcado, mas extinto. Na linha de uma continuidade que transcende a própria historicidade de 64, no Brasil existem iniquidades e banalizações da violência (de classe, de raça, gênero e sexo, etc.) que vêm lá de trás e foram aprofundadas no período da ditadura militar. A desigualdade de oportunidades e de acesso à renda e aos recursos é uma das mais graves do mundo. Correspondendo aos DOI-Codis da polícia política da ditadura, proliferaram os esquadrões da morte, que se desdobraram nas milícias. Na questão da segurança, verificamos o elo complexo entre estruturas e práticas herdadas da ditadura e a própria raiz violenta dos processos de colonização interna.

Cabe a pergunta para debate: o golpe de 1964 terá efetivamente representado, dialeticamente, ao mesmo tempo o apogeu e o fim de aspirações autoritárias e patriarcais? Como essas questões reverberam na cultura, em um momento em que assistimos tanto a demonstrações de vitalidade de discursos represados por tanto tempo, a exemplo daqueles das minorias, quanto a tentativas, muitas vezes bem-sucedidas, de censura de livros, exposições, espetáculos?

O que a arte e a produção cultural contemporânea retomam do sofrimento, das perdas, das dores, dos anos de chumbo? O que resta, hoje, de arbítrio, de censura ou de falta de estímulo às artes?  O que se tem discutido, escrito, criado, sobre a memória que não pode ser apagada? Como questionar a herança maldita da ditadura no Brasil de hoje? Como lembrar e homenagear os mortos, os desaparecidos, os mutilados física e moralmente pelo regime cívico/militar que durou mais de 20 anos?

O próximo número da Revista Z Cultural, com curadoria de Danielle Corpas (UFRJ) e Italo Moriconi (UERJ/UFRJ), deseja debater as continuidades e rupturas entre 1964 e 2024, tendo como eixos, por um lado, a sombra permanente do autoritarismo como estrutura de sentimento conservador e, por outro, as ações da sociedade civil e das instituições em impedir a reemergência de fantasmas autoritários. Serão bem-vindas contribuições que abranjam discussões políticas, culturais e históricas amplas, assim como estudos de caso pontuais sobre arte, cinema, literatura, exposições, espetáculos etc. que abordem os sessenta anos do golpe, as tentativas de censura e as formas de resistência ao resíduo autoritário.

Os textos podem ser enviados até o dia 31 de agosto de 2024 para o e-mail revistazcultural@gmail.com, respeitando-se as normas de publicação da revista.

Equipe da Revista Z Cultural

Tempo de leitura estimado: 3 minutos

Crítica e curadoria

Falar da crise contemporânea da crítica tornou-se lugar-comum, enunciado quase sempre com pesar por agentes do campo artístico: jornalistas culturais, ensaístas, professores universitários. A ideia de crise costuma subentender duas perdas concomitantes: a derrocada do papel da crítica como instância legitimadora e o decréscimo do debate sobre os elementos especificamente artísticos. No primeiro caso, a recepção do mercado seria sagrada como instância legitimadora, enquanto os veículos tradicionais que abrigavam críticos acadêmicos ou não, como revistas especializadas e cadernos culturais, deixariam seu papel de divulgadores de obras e correntes de interpretação. No segundo, elementos externos, como a identidade do(a) artista, a importância da temática e a representatividade de grupos sociais, teriam centralidade, deslocando outros critérios de avaliação.

O ato crítico – entendido como o ato de discernir e relacionar obras –, no entanto, ganha importância nos mais diversos campos artísticos: a curadoria. Nesse ato, ele usa o trabalho crítico, construindo relações e produzindo, pela escolha, pelo direcionamento e pelos paratextos, uma interpretação, mesmo que aberta, do que é mostrado.

No próximo dossiê, com curadoria de Miguel Conde, professor adjunto do Departamento de Ciência da Literatura da Faculdade de Letras da UFRJ, e de Inês Cardoso, professora do curso de Estética e Teoria do Teatro da UNIRIO e do PPGAC-UNIRIO, a Revista Z Cultural se propõe a discutir o papel, hoje, da crítica e da curadoria nos mais diversos campos artísticos, como as artes cênicas, as artes visuais e audiovisuais, a cena musical e a literatura. Esperamos artigos que tratem das novas tendências da crítica e da curadoria; da relação entre autonomia do campo e representatividade de grupos sociais; da crítica como criação, abandonando o caráter normativo da tradição moderna; da curadoria não apenas de exposições, mas de eventos, coleções, festivais, prêmios. Também serão bem-vindos artigos que revisitem, do ponto de vista contemporâneo, o legado da crítica do século XX, quando jornalistas, ensaístas e pesquisadores construíram leituras canônicas das artes, muitas vezes em polêmica aberta com outros agentes do seu campo de atuação.

Desejamos que este número da Z contribua para qualificar o debate sobre as transformações e possibilidades do crítico e do curador, figuras ainda fundamentais para o campo artístico.

Equipe da Revista Z Cultural

Os textos podem ser enviados até o dia 30 de novembro de 2023 para o e-mail revistazcultural@gmail.com, respeitando-se as normas de publicação da revista.