A revisão do modernismo paulista, que tomou fôlego com a efeméride dos cem anos da Semana de Arte Moderna de 1922, mas já vem sendo feita há décadas na academia, depende de um debate terminológico que não é fácil de fazer. Modernismo, modernidade, modernização e moderno – para não falar da noção mais que problemática de pré-modernismo – são quatro conceitos que parecem se referir à mesma ideia central, mas a ampla gama de significados dificulta a compreensão exata dos termos. São palavras que têm usos comuns e especializados diversos, conotações positivas e negativas, que podem se contradizer. No caso brasileiro, há ao menos dois usos que conformam uma constelação específica de significados com a qual sempre lidamos ao usar esses termos: primeiro, o uso no discurso da modernização, de caminho em direção à modernidade (de perfil ocidental), em oposição ao arcaísmo, oposição esta que atravessa o pensamento de autores progressistas e conservadores; segundo, a apropriação pelo Modernismo de 1922, que instituiu, para falar como Pascale Casanova (2002, p. 118), o meridiano que determina, no caso do sistema literário brasileiro hegemônico, o que é moderno, qual é o “presente incessantemente redefinido” a partir do qual autores, grupos, tendências, obras eram situadas, tivessem surgido antes ou depois de 1922.[1] Afinal, “moderno” vem, lembra Williams (2007), do latim modo, no sentido de “precisamente agora”, e é a partir desse “agora” que se traçou o que é moderno e o que é arcaico.
Modernidade em preto e branco: arte e imagem, raça e identidade no Brasil, 1890-1945, de Rafael Cardoso (Companhia das Letras, 2022), está inserido nessa onda de revisões dos modernismos e tem o grande mérito de chamar a atenção, na esteira do trabalho de Monica Pimenta Velloso (2010), para outro tipo de modernismo – termo cujo uso discuto mais à frente – que cronologicamente antecederia o movimento paulista de 1922. Esse modernismo, cuja capital era o Rio de Janeiro, ocorria nos bares, nos salões de carnaval, nas galerias de exposição, mas principalmente na imprensa, onde eram testadas novas formas de escrever, mas de maneira ainda mais destacada novas técnicas de desenho e de impressão, em linha com os avanços tecnológicos.
Aliás, é ao analisar as obras gráficas da época que Cardoso, historiador da arte, professor da Universidade Livre de Berlim e membro do Programa de Pós-Graduação em História da Arte da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, atinge melhores resultados analíticos, como no primeiro capítulo (“Coração das trevas no seio da metrópole moderna: favelas, raça e barbárie”), em que relaciona as representações das favelas e dos negros na iconografia da época – indo de Uma rua da favela (c. 1890), de Eliseu Visconti, às caricaturas de J. Carlos no final dos anos 1920 – com os movimentos de modernização, muitas vezes autoritários, do Rio de Janeiro.
Outro exemplo de bom resultado analítico é quando discute Boemia, quadro de Helios Seelinger de 1903. Aquela pintura, escreve Cardoso, é um “manifesto visual, anunciando um novo espírito artístico livre das amarras das convenções, tanto morais quanto pictóricas, e engajado na busca de liberdade e leveza, prazer e vivacidade”, além de registrar, na figura dos boêmios, a existência “de um grupo artístico concreto”, entre os quais estavam Gonzaga Duque, João do Rio, Luís Edmundo, Raul Pederneiras, K. Lixto e Seelinger. Apesar de, para o olhar da época, parecer “esboçada e mal-acabada”, e sua composição, “caótica e confusa” (Cardoso, 2022, p. 100), a pintura foi não apenas aceita como também premiada pelo Salão da Escola Nacional de Belas-Artes (Enba), o que mostraria uma abertura, já no começo do século XX, das instituições cariocas para as novas experiências artísticas europeias e para uma mistura entre tradição e modernidade e entre alta – Boemia tinha 103 por 189,5 centímetros, “grande demais para ser um quadro de costumes” (Cardoso, 2022, p. 102) – e baixa cultura – afinal, o quadro não apenas retrata uma cena boêmia, como nela estavam figuras populares como o caricaturista K. Lixto (Calixto Cordeiro) e o jornalista e escritor João do Rio.
Esse modernismo carioca, que não teria se comportado como movimento organizado, mas como um grupo difuso com práticas comuns disseminadas em meios intelectuais e profissionais, formado por escritores, artistas plásticos e jornalistas que tinham de trabalhar para viver, teria ainda lidado de maneira mais orgânica com a questão racial, incorporando pontos de vista mais variados e menos mitologizantes que o modernismo paulista. Isso porque, diferente de Paris ou Nova York, “o Rio de Janeiro é uma cidade onde o velho e o novo, o rural e o urbano, o sagrado e o profano desenvolveram maneiras únicas e peculiares de coexistir” (Cardoso, 2022, p. 35). Esse contato produziu um fenômeno – o samba e o Carnaval, “formas culturais específicas nascidas do contato entre as elites cariocas, ávidas por uma fantasia da Europa, e a pujante população constituída por imigrantes, migrantes e descendentes de pessoas escravizadas” (idem). Isso permitiu, segundo Cardoso, que “esse modernismo carioca carnavalesco tenha aberto espaço para incorporar artistas afrodescendentes como K. Lixto e um Arthur Timotheo [da Costa]”. Já o “modernismo paulista que o sucedeu – e, em grande medida, apagou sua memória – detinha uma relação bem diferente com temas de negritude” (Cardoso, 2022, p. 143).
Esse breve resumo mostra algumas das contribuições de Cardoso e alguns dos problemas de sua argumentação. A primeira, mais geral, é uma extensão do sentido do autodenominado “Modernismo” (um conceito que é, em si mesmo, questionável) de 1922 para outros grupos mais difusos, como o carioca. Afinal, como Cardoso dá a entender, e parece-me que de maneira acertada, o modernismo carioca não foi um movimento fechado, mas uma movimentação de atores do campo artístico e literário. A segunda é uma questão teórica que relaciona a prática cultural com o movimento histórico concreto: por que a literatura do modernismo paulista se transformou no “agora” literário, mas não ocorreu, por exemplo, com a música paulista?[2] A que problemas históricos essas produções responderam e por que o sistema literário, o sistema artístico e o sistema musical se formaram de maneiras diferentes? Em terceiro lugar, dialogando com as duas primeiras questões, está a relação entre essa modernização (no sentido de absorção, mesmo que transculturada, do “agora” ocidental da virada do século XIX para o XX), representada pelas reformas gráficas no Rio de Janeiro, e o processo de modernização conservadora, que constituiu uma possível constante da nossa história desde a independência.
Comecemos pela ideia de modernismo. Na introdução, Cardoso, com razão, critica uma ideia simples de continuidade e ruptura, que transformaria a história da cultura em algo unidirecional, quando ela deve ser vista como “fenômeno histórico disperso e diverso” (Cardoso, 2022, p. 16). A partir disso, ele propõe a ideia de “modernismos alternativos”, “outras correntes de modernização cultural em paralelo àquela geralmente conhecida”. No caso brasileiro, enquanto o cânone modernista veio das esferas elitistas da arte, esses modernismos alternativos “brotaram da cultura popular e de massa” (Cardoso, 2022, 17). Um dos problemas da instituição do Modernismo de 1922 como centro do cânone, portanto, é o apagamento de outras formas de arte que já rompiam com o academicismo do final do século XIX e do começo do XX, categorizadas como “pré-modernistas” por alguns críticos e historiadores. Como escreveu Beatriz Resende (2016, p. 16), o “cânone modernista terminou por se fazer responsável pelo esquecimento, pela desvalorização ou mesmo pelo desaparecimento de obras e autores que, já desvinculados do academicismo, do beletrismo, não chegaram, porém, às vezes por mera questão de calendário, a fazer parte do que se consagrou como Movimento Modernista”.
O problema aqui é que Cardoso acaba produzindo um esquema binário em que um modernismo vem antes do outro – ou seja, ele recai na história unidirecional que havia criticado –, e esse segundo não apenas se torna hegemônico como também é menos democrático do que o primeiro. Dessa forma, o livro parece instituir outro cânone, o que significa refazer o movimento de exclusão, algo que parece ser uma tendência de outros analistas críticos aos modernistas de 1922. Como termo de comparação, vejamos o que escreveu outro autor, o biógrafo e jornalista Ruy Castro (2021, p. 16), na introdução de As vozes da metrópole: uma antologia do Rio nos anos 1920: “desde 1920, o Brasil já tinha um escrete de escritores afiados na observação de sua época e que já escreviam brilhantemente em brasileiro, em todos os estilos correntes e em outros que, a partir dos anos 1920, seriam caracterizados como ‘modernistas’ (embora os autores do Rio, modestamente, fossem apenas modernos) […] sem dispensarem o humor e a leveza que são as marcas do Rio”.[3] Essa citação de Castro mostra como o uso livre e pouco específico de moderno, modernismo e modernização provocam confusão, sobre a qual falaremos mais à frente. Moderno, enquanto oposição ao antigo (ou ao clássico), não é algo exclusivo das vanguardas do século XX, nem da passagem do século XIX para o seguinte. Para mencionar um uso nas nossas letras, Antonio Candido lembra como Gonçalves de Magalhães justificava seu “repúdio do imaginário clássico” em 1833: “Outro deve ser o maravilhoso da poesia moderna; e se eu tiver forças para escrever um poema, não me servirei dessas caducas fábulas do paganismo” (Magalhães, apud Candido, 2017, p. 378). De forma semelhante, o que se chamou modernismo nas letras hispano-americanas se chamou “art nouveau, modern-style, liberty, jugendstil, sezessionsil” (Ramírez, 2016, p. xx). Um crítico como José Paulo Paes (2002) chegou a sugerir, a partir de Brito Broca e Flávio L. Moura, substituir o infeliz “pré-modernismo” por art nouveau ou “arte nova”, e Beatriz Resende sugere “literatura art-déco” para a produção carioca moderna dos anos 1920 a 1945 (Ferreira; Ernesto; Resende, 2014).
Sergio Ramírez, em sua introdução à obra seleta de Rubén Darío, propõe ainda uma segunda diferenciação, entre o modernismo decorativo e barroco finissecular, cuja figura principal é William Morris, ao modernismo invasivo dos anos 1920, que ele relaciona à Bauhaus e a Walter Gropius (Ramírez, 2016, p. xxi-xxii). Haveria, portanto, dois processos de modernização das artes, ambos com suas contradições: um de resistência à industrialização por meio do artesanato, mesmo que incorporando os novos materiais (Morris), e outro de despojamento (Gropius), entre os quais há tanto continuidade quanto ruptura.[4] No Brasil, a oposição toma outra forma: entre uma “arte nova” ou, mais à frente, “art-déco”, com grupos dispersos, ligada à profissionalização; de outro um Movimento Modernista, com revistas, manifestos e correntes mais ou menos definidas.
Parece-me, portanto, que há, no livro de Cardoso, uma contaminação (talvez inevitável, mas que não é tratada adequadamente) entre moderno (em oposição a arcaico ou clássico), modernismo (enquanto nome de um movimento específico de tentativa de modernização) e modernização (termo que trataremos mais à frente). Sigamos a argumentação. A modernidade carioca é descrita por Cardoso e por Castro em oposição ao modernismo paulista. De um lado, artistas e escritores profissionais, vindos de classes diversas, escrevendo para o público, tratando com organicidade a questão racial e surgindo também organicamente de uma cidade que era em si moderna e cosmopolita, cidade-luz – Ruy Castro (2019, p. 305) menciona que Albert Einstein teria dito, ao visitar o Rio em 1925, que “os brasileiros mataram a noite”. Do outro, artistas e escritores diletantes, saídos da elite cafeeira, escrevendo para os pares, abordando a questão racial de um ponto de vista abstrato, quando não racista, tentando desprovincianizar uma cidade ainda provincial e ao mesmo tempo querendo produzir uma arte não cosmopolita, mas nacional. Mencionando Monica Pimenta Velloso, Cardoso diz que o modernismo carioca é “assumidamente cosmopolita e menos primitivista do que seu equivalente paulista” (Cardoso, 2022, p. 23). No entanto, ao menos no que tange ao aristocratismo do movimento paulista, embora real, talvez também deva ser nuançado, como sugere Maria Arminda do Nascimento Arruda (1998). A citação é longa, mas a reproduzo:
A postura irreverente foi igualmente marca registrada de Oswald de Andrade, comportamento que lhe rendeu incontáveis dissabores e o relegou à posição de marginalidade em relação às instituições. No fim da sua vida, Oswald revelava a consciência agônica do seu distanciamento diante das instâncias de consagração cultural e de inserção institucional, o que o tornava um verdadeiro outsider na vida intelectual paulista. Diferentemente, vários membros do grupo carioca possuíam empregos públicos, entretinham colaboração permanente em jornais e revistas, criavam anúncios para o nascente mercado publicitário, cultivavam relações próximas com políticos, altos funcionários e empresários, que lhes rendiam financiamentos para a publicação das suas obras. Emílio de Menezes conseguiu até mesmo ser admitido na Academia Brasileira de Letras. Por isso, é desejável redimensionar a possível marginalidade desses intelectuais cariocas e, talvez, interrogar sobre a construção das autoimagens que proliferam entre os produtores culturais, sequiosos em se destacarem do conjunto dominante.
Para que o esquema de Cardoso funcione, é preciso criar algumas divisões onde não havia ou onde não eram tão claras, muitas vezes recorrendo a supressões de evidências ou ao menos a interpretações bem controversas. Menciono um caso específico. Ao falar da Antropofagia e, dessa forma, tratar das fases do modernismo,[5] Cardoso faz uma ótima análise da oposição entre primitivo e selvagem segundo o movimento liderado por Oswald de Andrade, assim como do seu vínculo com a psicanálise e da contradição entre a prática e o discurso antropofágico. No entanto, ao tratar da relação do grupo antropofágico com os demais subgrupos, afirma que, “dado o desgaste das relações entre Mário de Andrade e Oswald de Andrade, que foi da amizade para o antagonismo, seria temerário presumir qualquer continuidade entre os propósitos da Semana de Arte Moderna e da Antropofagia” (Cardoso, 2022, p. 206). Há aqui um salto argumentativo, que permite que o autor não leve em conta que os posicionamentos artísticos sempre são respostas tanto aos movimentos reais da sociedade quanto às disputas e tensões internas ao campo artístico (que é relativamente autônomo, como tão bem demonstra Pierre Bourdieu). Logo, mesmo que tenha havido ruptura pessoal entre os dois principais nomes do modernismo paulista, cabe ao historiador e ao crítico inquirir as movimentações reais dos atores. Desse ponto de vista, o que há é uma dialética sempre aberta entre ruptura e continuidade, como o próprio Cardoso sugere na introdução. Mas, afinal, o que permite que ele afirme não haver continuidade? Segundo ele, “as opiniões dos próprios antropofagistas”, como quando Oswald afirma que a Semana de Arte Moderna seria um “falso modernismo” (Cardoso, 2022, p. 201). Aqui o autor decide tomar ao pé da letra as afirmações dos atores, como se elas próprias não fossem posicionamentos em grande medida em reação a movimentações de outros atores dentro do campo artístico. Uma crítica das fontes ajudaria a ler com um grão de sal afirmações como a de Oswald.
A própria formação de grupos é uma resposta a essa dupla pressão sobre os atores, tanto externa (social, econômica e política) quanto interna ao campo artístico.[6] É interessante que, ao descrever Boemia, Cardoso chegue perto do tema ao notar que o quadro expressa a existência “de um grupo artístico concreto”. Essa afirmação poderia abrir espaço para outro tipo de investigação, de caráter mais sociológico, que levasse em conta a importância de grupos para a transformação estética e social, como mostrou Raymond Williams – autor citado por Cardoso – em relação ao Círculo de Bloomsbury (Williams, 2011, pp. 201-230), ou Bourdieu com os grupos realistas, naturalistas e impressionistas franceses (Bourdieu, 1996). No caso brasileiro, é o que Sérgio Miceli tem feito com o próprio modernismo, mais recentemente em Lira mensageira: Drummond e o grupo modernista mineiro (2022). Miceli é um bom exemplo – com acertos e erros, como qualquer pesquisa – de análise que busca trabalhar as mediações contraditórias entre os campos políticos e intelectuais na história do modernismo.
Por fim, para concluir esse tópico, a impressão que se pode ter é de que se quer instituir outro modernismo canônico, em que uma cidade substitui a outra, as artes gráficas, a crônica e a imprensa profissional substituem as artes plásticas, o quadro, a escultura e o livro. Mas, como sugere Maria Arminda Arruda (1998), “as discussões construídas em torno de primazias e de correntes hegemônicas são desnecessárias e podem até aludir a posições revalidadoras de disputas ingênuas”. O caminho de crítica ao cânone modernista talvez possa ser outro. Por um lado, é necessária “uma releitura [do modernismo] onde se dê uma efetiva abertura para a superação de fronteiras definidores e limitadoras”, como sugere Resende (Ferreira; Ernesto; Resende, 2014), levando em conta o trânsito não apenas entre tendências anteriores (como o simbolismo) e o modernismo, mas também entre autores, revistas e jornais identificados com um grupo ou outro. Por outro, dado que há relativa autonomia dos grupos carioca e paulista, é necessária uma releitura em que enxergaríamos em um modernismo a verdade do outro: no carioca, a explicitação da ligação entre arte moderna e mercadoria, relação esta relegada a segundo plano no Modernismo de 1922 por causa do diletantismo; no paulista, a explicitação da relação entre modernidade e escravidão, que no carioca muitas vezes era preterido diante da celebração cosmopolita da democracia que representariam a imprensa e a metrópole.[7] Talvez essa contradição entre dois modernismos (de muitos outros que poderiam ser elencados em Minas Gerais, no Sul ou no Nordeste) seja um caminho mais interessante para descobrir algo novo sobre nossas próprias contradições do que a escolha historicista de um caminho apenas como o da verdadeira (ou melhor) modernidade. Isso se considerarmos mesmo que faz sentido usar o termo “modernismo” para designar não apenas movimentos – uma vez, repito, que havia uma consciência da condição de movimento nos paulistas de 22, não nos cariocas antes dessa data –, mas grupos mais dispersos que promoveriam uma modernização das práticas artísticas e culturais.
Essa dicotomia reaparece quando Cardoso trata da relação de Mário de Andrade com a música, o que nos leva à segunda questão: o que torna uma prática cultural “nacional”? O autor parte de uma série de afirmações de Mário de Andrade sobre Sinhô para afirmar que o autor de Macunaíma sugeria que “ser carioca era ser distinto de ser brasileiro e, por extensão, [que] a capital da República não era representativa do Brasil” (Cardoso, 2022, p. 230). Diante da visão em ascendência “de que a mistura racial seria a maior característica da brasilidade”, característica simbolizada pelo Rio de Janeiro, Mário nutriria “algum paradigma exaltado de pureza cultural e étnica”, contrapondo “a atualidade degradada a um estado primevo de pureza” (Cardoso, 2022, p. 231). Por mais que a relação de Mário de Andrade com a identidade nacional seja complicada – aqui, vale a pena retomar o ensaio “Macunaíma e a ‘entidade nacional brasileira’”, de Leyla Perrone-Moisés (2007) –, as conclusões às quais o autor chega são contundentes demais para as evidências elencadas, que se concentram em poucos textos sobre Sinhô. Ainda mais quando o objeto de crítica é um autor com tantas flutuações quanto Mário de Andrade. Além disso, a crítica à defesa de Mário à gravação de música folclórica nos leva a ver como essa dicotomia leva a um binarismo: ou o cosmopolitismo de Sinhô, ou o primitivismo de Mário, como se a questão fosse determinar qual representa a nacionalidade ou o “agora” do sistema artístico brasileiro. E não uma questão de investigar a quê cada uma dessas práticas culturais responde, a quais pressões internas e externas do campo artístico, e como essas respostas rendem. Cabe ainda refletir quanto há, em Mário, uma crítica à centralidade do Rio de Janeiro na Belle Époque como uma espécie de “meridiano de Greenwich” do agora nacional. No artigo já citado, o autor de Macunaíma escreve que uma das conquistas do modernismo foi a “descentralização intelectual”, contribuindo para que a literatura alcançasse “estabilização normal no país”. E continua: “O movimento modernista, pondo em relevo e sistematizando uma ‘cultura nacional’, exigiu da Inteligência estar ao pardo que se passava nas numerosas Cataguazes” (Andrade, 2002, p. 272), numa referência ao grupo da revista Verde.
Vamos ao terceiro ponto. Embora toque na questão teórica na introdução, ao longo do livro Cardoso não define o que entende como “moderno”, termo que pode recuar até a querela dos Antigos e dos Modernos no século XVII, polêmica possibilitada por um processo que podemos chamar de modernização (estabelecimento de um capitalismo editorial). No Brasil, podemos dizer que há ciclos de modernização, no sentido de atualização das práticas sociais de acordo com a atualidade europeia e, depois, americana, isto é, com o “moderno”: após 1808; a partir de 1821, com a liberdade de imprensa; e assim por diante. Esses processos de modernização sempre foram contraditórios, baseados na manutenção ou no reforço da escravidão, na disputa entre oligarquias regionais, no fortalecimento da exploração da mão de obra assalariada.[8] A pergunta que fica é: qual é a contradição específica do modernismo carioca? Se o modernismo paulista teve uma relação com a oligarquia paulista – por meio do capitalismo editorial modernizante simbolizado pela família Mesquita e pelo mecenato –, quais são as relações entre o modernismo carioca (enquanto momento artístico, não movimento organizado), o grupo de artistas profissionais carioca, que estabelece uma autonomia relativa proporcionada pelo capitalismo editorial da capital da República e que se organiza em torno dos valores da art nouveau e da “civilidade” carioca, e as pressões exteriores ao campo artístico? De que maneira esse cosmopolitismo, em oposição ao nacionalismo paulista, responde a certa necessidade de ignorar, ali no centro de poder, o que havia de permanência de formas antigas de exploração em todo o país, enquanto se olhava para o que havia de moderno, de iluminado e de atual na capital? De que modo o gosto pela velocidade, pelas luzes e pelo prazer seria uma continuidade da “miragem compensadora” de que falava Candido (2023) ao tratar da opulência do parnasianismo?
Se o livro de Cardoso não pretende responder a essas perguntas, certamente acrescenta novas questões e nuances relevantes que podem e devem ser exploradas por pesquisadores. Apesar das imprecisões mencionadas e do que me pareceu uma insistência “em torno de primazias e de correntes hegemônicas”, Modernidade em preto e branco é uma contribuição importante para tentar complexificar a recepção contemporânea dos chamados modernismos e para reaproximar campos de estudo que ficaram por tempos afastados, como as artes gráficas e a literatura.
* Lucas Bandeira é editor da Revista Z Cultural e faz pós-doutorado no PACC/UFRJ, com bolsa da Faperj.
Referências
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Notas
[1] São inúmeras as histórias da literatura que se baseiam na premissa de que a literatura brasileira percorreu um caminho mais ou menos único até chegar à autonomia com o Modernismo de 22, tese que vai de Eduardo Portella (1971, p. 34), em texto 1963, para quem o percurso literário brasileiro se dividiria entre o longo início, a formação em curso e a plena autonomia, ao Antonio Candido de “Literatura e cultura de 1900 a 1945”, texto de meados dos anos 1950, que levanta a hipótese de que haveria dois momentos decisivos da dialética do localismo e do cosmopolitismo que seria como uma “lei de evolução da nossa vida espiritual”, o Romantismo e o Modernismo (Candido, 2006, p. 117-120). Para um apanhado das revisões do modernismo, ver Velloso, 2010, e Dealtry, Fischer e Leite, 2022.
[2] Hermano Vianna (2002, p. 29) trabalha essa questão, a partir de uma breve e instigante observação de Antonio Candido, em O mistério do samba, livro que completa 28 anos em 2023.
[3] Ver também Castro, 2019.
[4] Menciono um pequeno mas curioso momento dessa relação entre ruptura e continuidade no livro de Luiz Ruffato: em cartas ao grupo da revista Verde, Alcântara Machado insiste em que eles simplifiquem o aspecto gráfico da revista, em que ainda perduram, como o leitor pode ver nas capas reproduzidas no livro, elementos art nouveau (Rafatto, 2022, p. 98-99 e 170-182).
[5] Mário de Andrade (Andrade, 2002, 260, 265-266) fala de uma fase heroica, pré-1922, uma fase destruidora e uma fase construtora, em que entram de maneira mais clara o nacionalismo e, dessa forma, a questão racial.
[6] Em A revista Verde, de Cataguases, por exemplo, Luiz Ruffato (2022, p. 133) levanta a importância de publicações fora do Rio de Janeiro e de São Paulo, antes do surgimento da Revista de Antropofagia, em 1928, para a “divulgação das novas ideias modernistas num momento em que praticamente não havia um canal de expressão adequado nos grandes centros”. O livro de Ruffato também tem o mérito de, por meio de um estudo de caso, mostrar a importância das relações pessoais, tanto quanto dos posicionamentos políticos e estéticas, como determinantes das escolhas de filiação dos escritores mineiros às correntes do modernismo. Além disso, ele dá indícios da penetração do modernismo paulista em outros estados já em meados dos anos 1920.
[7] O próprio Mário de Andrade, em uma de suas autocríticas, afirma que, “socialmente falando, o modernismo só podia mesmo ser importado por São Paulo”, já que o “Rio era muito mais internacional”. Em um movimento argumentativo a princípio desconcertante, Mário continua: “É mesmo de assombrar como o Rio mantém, dentro de sua malícia vibrátil de cidade internacional, uma espécie de ruralismo” (Andrade, 2002, p. 258-259). O modernismo é paulista, segundo Mário, porque lá havia uma aristocracia rural – oposta à burguesia carioca – que ao mesmo tempo daria condições financeiras e se escandalizaria com o movimento. No “Rio malicioso, uma exposição como a de Anita Malfatti podia dar reações publicitárias, mas ninguém se deixaria levar” (Andrade, 2002, p. 259).
[8] Ver Arantes, 2021.