Ano XVII 01
1º semestre de 2022
dossiê
Tempo de leitura estimado: 73 minutos

CONTOS, CANTOS E DESENCANTOS SOBRE A MATERNIDADE EM ROMANCISTAS DO BRASIL E DA AFRICA

1. Apresentação

Este artigo decola de outro (Leal e Castro, 2018), contudo se expande para mais debate sobre os temas gênero, patriarcado e maternidade, em especial na literatura brasileira e africana, referindo-se a outras romancistas, além das consideradas no primeiro artigo nosso sobre o tema. Como o anterior, é modelado por quatro mãos, na intersecção entre psicanálise, literatura e história (Leal) e estudos culturais, feminismo, em especial de corte decolonial e sociologia (Castro); navega por perspectiva interdisciplinar, tecida em diálogos gostosos, pelo comum interesse na construção sociopsicológica da maternidade como saber/poder. Conhecimento e prática que entrelaçam ordem patriarcal e maternagem como afeto, cuidados e dádiva como expectativa de trocas.

Vasculhando a palavra mais apropriada para iniciar um artigo sobre literatura e feminino, ocorreu-nos falar da maternidade. Como a literatura escreve a maternidade e a mãe? O que escutamos nessas narrativas? O que escutamos é uma espécie de voz que nunca foi ouvida. Um não lugar, carregado de ruídos que tiveram que permanecer sempre inaudíveis. Um grão de voz que arranha os ouvidos. Um ritmo sem precisão, sem previsão. O grito sufocado. A solidão. Um oco. Um eco que clama, que rompe a barreira do silêncio ao qual foi condenado.

O que de fato encontramos nessas narrativas escapa àquilo que foi construído ao longo da história da mulher e da mãe. Não se trata nem da santa-mãe do período colonial, muito menos da maternidade regida pelo discurso maternalista dos manuais de puericultura que parecem ter definido o ideal de maternidade da década de 1920. Encontramos corpos cansados, o corpo de quem passou pela maternidade, como mãe, como filha, como mulher. Encontramos o atravessamento dessa experiência, do ser mãe, do que ela deixa de rastros invisíveis, os restos, tudo aquilo que as sociedades que funcionam a partir da diferença de gêneros, de sexo e de classe não querem ver sobre a realidade do ser mãe e do ser mulher.

O cenário da maternidade na literatura nos coloca diante de uma realidade bem diferente daqueles discursos que ao longo da história transitam entre a concepção naturalizante que tende a endeusar a mulher que, sob a auréola da mãe ideal, conduz sua maternidade e o contexto de enquadramento e normatização que esse ideal propõe à conduta feminina. A crítica feminista, por outro lado, tende tanto a narrativas em que a maternidade é codificada como uma estratégia patriarcal de limitação da mulher ao privado, culpas e frustações quanto a um poder feminino que há que resgatar.

De fato, uma perspectiva que se proponha como único modelo possível de mãe e maternidade representa não apenas o enquadramento das relações humanas (no caso, a relação mãe e filhos) num molde predeterminado, de influência patriarcal, mas principalmente representa a negação da ancestralidade e da história de cada povo e de cada mulher.

Ainda hoje, a mulher que se aventura a ser mãe encontra nesse percurso referências e expectativas que, se não inviabilizam, ao menos dificultam a experiência pessoal de maternidade. É o que testemunha com frequência a clínica psicanalítica. Encontramos no contexto clínico o eco dissonante de vozes raramente ouvidas para além dos limites da privacidade do consultório do psicanalista. São vozes que ressoam e entoam experiências de conflitos, angústia e mesmo de sofrimento, relacionadas à tarefa de ser mãe, que muito escapam aos ideais maternos socialmente valorizados. Presas no espaço privado, que se assemelha ao confessionário – e, portanto, recheado de culpas e autorrecriminações –, essas histórias permanecem secretas e, portanto, como que inexistentes, mantendo-nos abrigados da difícil realidade que presente no mundo materno.

Essa história é antiga, tem suas raízes no Brasil de 1500. Raízes antigas que, no entanto, foram sendo realimentadas ao longo da história e que hoje adquirem versão ainda mais opressora, visto que as mudanças do mundo moderno e as conquistas das mulheres, sobretudo na esfera pública, se tornaram, em muitos aspectos, difícil, senão incompatíveis, com o modelo ideal de mãe. Além disso, para muitas mulheres, como as na pobreza, o público e o privado se interpenetram quanto a cargas de trabalho como cuidadoras e provedoras.

São muitos os saberes que colaboraram para o reforço da idealização da mãe, como a influência das teorias freudianas sobre a feminilidade. A premissa freudiana de que o bebê corresponde ao “objetivo do mais intenso desejo feminino” (Freud, 1933, p. 128) acaba por favorecer uma concepção da mulher e da mãe como personagens equivalentes e ao mesmo tempo a maternidade como algo natural do feminino, sobretudo quando lida e entendida unicamente a partir das ideologias de seu tempo. Mas não estamos mais no século XIX. E pensar a mulher dos séculos XX e XXI com a lente dos séculos anteriores é enveredar por uma espécie de atrofiamento, ou mesmo de involução, como bem destacou Badinter (2011, p. 9) ao se referir a acontecimentos que influenciaram a vida da mulher em fins do século XX e início do século XXI:

1980-2010: quase sem que percebêssemos, aconteceu uma revolução em nossa concepção da maternidade. Nenhum debate, nenhum estardalhaço acompanharam essa revolução, ou melhor, essa involução. Contudo, seu objetivo é considerável, já que se trata, nem mais nem menos, de recolocar a maternidade no cerne do destino feminino.

Não se trata, portanto, de identificar o desejo feminino – enigma perseguido, e não solucionado, por Freud –, mas de desconstruir a ideia de que a maternidade é o fim natural de toda mulher. A maternidade não esgota o ser feminino, assim como ela não terá a mesma importância para todas as mulheres. Há que olhar e escutar o que elas, as mulheres e as mães, têm a dizer para além daquilo que se quer ouvir. Há que possibilitar uma outra escuta. Uma escuta que, no lugar do enquadramento, permita a revelação, a desconstrução dos padrões preconcebidos. Mas uma escuta que ultrapasse os limites do privado, da confissão, do segredo.

Se as mazelas da maternidade não encontram espaço de manifestação nas sociedades contemporâneas, pois para que isso ocorresse seria necessário um rompimento com o ideal da mãe tão amplamente divulgado e sacralizado, essas mazelas, dificuldades, sofrimentos e adversidades, no entanto, encontram outros espaços, que não se restringem ao privado de um consultório psiquiátrico e psicanalítico, mas ganham as páginas, as escritas, os cartuchos das impressoras, ao transformarem-se em contos, poesias, romances de mulheres que não se calaram. Nessas páginas, encontramos histórias de personagens que representam as Marias, Paulas, Joanas que não tiveram a possibilidade de contarem suas próprias experiências de maternidade. É nesse contexto, da literatura, que as vozes de mulheres podem ganhar uma escuta reveladora, sem o estigma da loucura, da insanidade, do crime. Fictícias, suas personagens dão lugar a fala de mulheres reais, de sujeitos femininos.

Essas vozes, que ressoam íntimos de intensas vivências adversas àquilo que se crê como norma, encontram expressão pública e acessível na literatura, sobretudo na letra de escritoras femininas contemporâneas. Trata-se de escritas que desconstroem a concepção costumeira da maternidade, possibilitando a reconstrução de outras formas de perceber e abordar a mãe e o materno e, consequentemente, a mulher, ou que indicam materialidades, tradições e ética de responsabilidade que de fato colaboram para entender melhor a participação da mulher em performances da maternidade dádiva, ou seja, a que entrelaça ambíguas representações sobre sacrifício e gratificações.

Abordamos neste artigo a maternidade a partir de representações de autoras negras, no Brasil e na África, dando chão a vivências e histórias. O terreno que apresentamos como pleno de poderoso debate se refere à geografia que se concentra entre os trópicos – África e Brasil. Como autoras com tais chãos, e suas histórias, abordam a mulher, a mãe e a maternidade? O que a personagem, mãe, como abordada na narrativa dessas autoras, nos indica sobre a história e a ancestralidades de seus povos?

Não se pretendem comparações, nem busca de comunalidades, escrita de mulher. De comum serem mulheres negras que se referem a elas, ou a outras, em cenários de colonialismo, pós-colonialismo, tempos de barbárie capitalista, histórias de vida por vulnerabilizações e violências várias. Algumas privilegiam mais o plano das relações sociais de gênero sexualizadas, outras a díade mãe e filhos, ou o sentido comunitário da mãe, indicando que não há lugar para concepções essencialistas, como a divisão entre o público e o privado, entre matriarcado e patriarcado, entre prazer e doação, gratificação e sacrifício. De comum a referência a mulheres situadas e sitiadas, que estão na produção de vida, são mães, em tempos de produção da morte, que se metamorfoseiam por sentidos culturais étnicos que englobam histórias de opressão e de resistências, mas que se estruturam territorializados em processos sociais tanto molares como moleculares.

A seguir, primeiro referências ao caso Brasil, em que se destaca como a maternidade é modelada em duas escritoras negras, voltadas para a intersecção classe, raça e gênero e, sobretudo, origem, ancestralidade, em percepções sobre maternidade, a saber: Ana Maria Gonçalves e Conceição Evaristo, análises essas precedidas de breves referências a cenário histórico como apresentado por Mary Del Priori (2008) e Maria Martha de Luna Freire (2007).

Em um segundo capítulo, acessamos tanto a escritora ruandense Scholastique Mukasonga (2017), ilustrando sentidos étnico-históricos da maternidade em vivência de desterro e vésperas do terrível massacre de 1994, e o aclamado trabalho de Buchi Emecheta (1979/2017) em que mais se delineiam os paradoxos da maternidade para as mulheres, fonte de sofrimentos, culpas, frustrações e alegrias, e a vingança de uma mãe que se considera traída em suas expectativas. Precedem essa apresentação reflexões de autoras africanas críticas a categorias feministas ocidentais que tenderiam a generalizações e que essas autoras não consideram pertinentes à compreensão de vidas e imaginários de mulheres diversas e de tradições singulares, como Ifi Amadiume e Oyèrónké Oyèwùmí (Castro, 2021).

Como se trata de um trabalho escrito a quatro mãos, cada seção traz em si uma identidade particular, tanto na forma escrita quando no viés sobre o qual se constroem suas reflexões. É um testemunho de que o feminino não pode ser definido exclusivamente por uma perspectiva, ao mesmo tempo que se revela em subjetividades múltiplas – cada mulher é única, e consequentemente, cada mãe e cada maternidade que decola de materialidades inclusive simbólicas na economia política e cultura de cada tempo.

2. Brasil, reflexões sobre maternidade

2.1 Desconstruindo mitos: o pano de fundo da maternidade no Brasil

Há um pano de fundo, um cenário inaugural, sobre o qual se ergueu aquilo que se transformou no modelo eurocêntrico e normatizador da maternidade e da mãe. Longe de ser um cenário de calmarias e mesmice, o território feminino do período colonial do Brasil mostrou-se repleto de conflitos, ambivalências, diferenças e complementaridades.

Através dos arquivos, documentos históricos e fontes impressas, Mary Del Priori (2009) vai descortinando a realidade da origem da concepção da mulher e da mãe no Brasil. O ideal da santa mãe, criado pela Igreja com o objetivo de organizar o processo de povoamento da nova terra, se encontrava subjugado ao projeto tridentino, criado para assegurar a unidade da fé e a disciplina eclesiástica.

Para execução e êxito desse projeto, a Igreja entendia que era necessário adestrar a mulher. Recorreu a algumas armas para concretização de seu projeto. Dentre elas, explorou a relação de poder já implícita no escravagismo para estendê-la às relações entre marido e mulher. Desta forma, cabia à mulher ser uma escrava doméstica, cuja obrigação se definia em cuidar da casa, cozinhar, servir ao chefe de família com o seu sexo, dar-lhe filhos, assegurando sua descendência e servindo como modelo para a própria família (Priori, 2009).

O importante era fazer da mãe um exemplo, e da maternidade uma tarefa árdua que elevasse a mulher branca ao sagrado a partir do seu papel materno. O sacramento do matrimônio dava-lhe garantias institucionais para proteger o casamento e a ordenação tanto da reprodução quanto dos nascimentos, ao mesmo tempo que fazia de cada mulher uma potencial santa mãe que poderia, ao se dedicar aos filhos e às tarefas domésticas, assegurar a transmissão desses princípios à sua descendência. “A fabricação da ‘santa’ foi resultado da percepção que tiveram a Igreja e o Estado modernos da influência salutar ou perniciosa da mulher na família e na sociedade” (Priori, 2009, p. 107). O papel da mãe jamais poderia ser negligenciado.

Apesar do empenho da Igreja, na prática, as coisas corriam à sua revelia. As famílias nas Colônias se encontravam marcadas pelos “fluxos e refluxos humanos, sobretudo masculino” (Priori, 2009, p. 40). Essa mobilidade masculina, decorrente dos vários momentos econômicos da colonização, acabavam por favorecer um tipo de família que se caracterizava pela ausência de maridos e pais. “Conhecem-se também algumas de suas características: muitos maridos ausentes, companheiros ambulantes, mulheres chefiando seus lares e crianças circulando entre outras casas e sendo criadas por comadres, vizinhas e familiares” (Priori, 2009, p. 42).

Esse cenário demonstrava que, apesar do esforço da Igreja, que queria implantar as regras do matrimônio como forma de garantir o projeto tridentino, grande parte das mulheres, principalmente as “pobres e empobrecidas”, vivia, na verdade, em corriqueiras uniões consensuais. O casamento se encontrava, na prática, reservado às “uniões de elite, em grande parte contraídas no interesse de manter patrimônios, reforçar esferas de influência ou pela necessidade de garantir às filhas a proteção que pais desvalidos não podiam assegurar” (Priori, 2009, p. 43).

Eram frequentes as mulheres que sofriam com a partida do companheiro, que viajava em busca do sustento, seguindo o fluxo da economia do Novo Mundo. Consequentemente, o que prevalecia, sobretudo entre as classes subalternas, casadas ou não, eram as mulheres chefes de família.

As famílias, majoritariamente monoparentais e matriarcais – ainda que condicionadas pelo sistema patriarcal –, se erguiam em torno da mãe e sua prole, que contavam com a solidariedade de outras mulheres (vizinhas, parentes…) que viviam como ela. Assim, “mães e filhos solidarizavam-se numa cadeia de rentabilidade doméstica voltada para a produção de gêneros comestíveis e para o comércio de retalhos” (Priori, 2009, p. 57). Ser mãe representava a possibilidade de enfrentar as limitações impostas às mulheres pela Metrópole, e principalmente pela Igreja. Desta forma, a maternidade no período colonial acabava por se tornar um forte campo de poder informal da mulher (Figura 1).

Figura 1: Desenho de Carybé (Fonte: Fundação Pierre Verger: Carybé e Verger: Gente da Bahia. Salvador: Solisluna Design Editora, 2008). “São aguadeiros, lavadeiras com trouxas, homens e mulheres com balaios e tabuleiros, flores, cestos, latas d’água, tijolos, frutas, animais, moringas, madeira, caixas e caixotes, barris, até caixões de defunto. Aqui, tudo nessa vida se carrega na cabeça” (p. 126).
Figura 1: Desenho de Carybé (Fonte: Fundação Pierre Verger: Carybé e Verger: Gente da Bahia. Salvador: Solisluna Design Editora, 2008).
“São aguadeiros, lavadeiras com trouxas, homens e mulheres com balaios e tabuleiros, flores, cestos, latas d’água, tijolos, frutas, animais, moringas, madeira, caixas e caixotes, barris, até caixões de defunto. Aqui, tudo nessa vida se carrega na cabeça” (p. 126).

Mas, além disso, a maternidade permitia à mulher exercer, dentro do lar, um poder e uma autoridade que raramente dispunha em outros campos da vida social. Assim, identificada com o papel de mãe, que lhe era culturalmente atribuído, a mulher valorizava-se socialmente por uma prática doméstica quando era excluída de qualquer atividade na esfera pública.

No Brasil Colônia, a realização do poder feminino residia, portanto, apenas e exclusivamente, na maternidade. Apegar-se e dedicar-se aos filhos e à maternidade não era apenas um desejo, mas uma necessidade. Ainda que a história da maternidade no Brasil Colônia traga também seus testemunhos de conflitos, violência, abortos e abandono materno, o que prevalece é a aderência da mulher a esse modelo sacralizado da mãe. Lugar de refúgio, conforto e poder, assim podemos definir o que foi a maternidade no Brasil do período colonial.

Essa antiga origem alcançou um novo impulso no mundo ocidental após a Primeira Guerra Mundial, refletindo de formas diferentes em cada sociedade. E, para complexificar ainda mais a situação da mulher, além das justificativas demográficas, sanitárias ou patrióticas, “o maternalismo associou-se, na década de 1920, à valorização social da ciência, a qual lhe conferiu novo caráter” (Freire, 2008, p. 154).

Se, no período colonial, o ideal da santa mãe – criado pela Igreja, com o objetivo de organizar o processo de povoamento da nova terra – encontrava-se subjugado ao projeto tridentino, criado para assegurar a unidade da fé e a disciplina eclesiástica, na década de vinte foi o projeto modernizador republicano – que depositava na conservação das crianças, entre outros elementos, a esperança de viabilidade da nação – que desenhou o novo panorama materno.

Os esforços eram outros na década de vinte. Objetivava-se a eliminação de elementos do passado que representassem “atraso”, pois o projeto republicano visava à ordem e ao progresso, e com isso a uma verdadeira transformação cultural, que implicava “a adoção de comportamentos e atitudes adequados aos ‘novos tempos’” (Freire, 2008, p. 154).

Se antes a mulher se encontrava a serviço do marido e dos filhos, ou seja, da cena doméstica, na década de vinte ela é convocada a permanecer na cena doméstica, porém, não apenas como mãe, esposa e dona de casa, mas como a responsável principal na educação dos filhos de acordo com os propósitos da nação. E para isso era necessário se preparar. Suas armas, no entanto, seriam outras. Colher, panela, mamadeira/seio, colo, continuariam ferramentas fundamentais na sua lide diária, mas além disso, a mãe da década de 1920 carecia de um saber.

De santa, a mãe torna-se um ser social de suma importância. A maternidade adquire um valor social. Agora, todavia, sua principal fonte inspiradora era a França, como destaca Freire (Freire, 2008, p. 156): “o discurso maternalista brasileiro mostrava-se claramente inspirado no modelo francês de sociabilidade e civilização, ainda hegemônico nas primeiras décadas do século XX”. E entre os costumes importados da França, encontraremos o costume de ler revistas femininas. “Veículo privilegiado para a expressão de opinião dos diversos grupos sociais, a revista assumiria o duplo caráter de entretenimento e doutrinação, transformando-se no suporte ideal para a atividade política mais ampla, a difusão de ideários e propostas de mudanças de comportamento” (Freire, 2008, p. 157).

Seduzidas pela ideia de modernidade, as revistas femininas viraram febre. Se, por um lado, elas podiam ser um signo da mulher moderna, por outro elas acabavam contribuindo para a conformação das mulheres às transformações que a sociedade sugeria.

Exclamações e metáforas exaltavam, nas páginas dos periódicos, aquela que era considerada a missão primordial da mulher, como revelava o título da longa matéria ilustrada de Vida Doméstica de 1928: “A glória incomparável de ser mãe!”. Articulistas, médicos, educadores, feministas, juristas e políticos, todos concordavam quanto à relevância da maternidade como o principal papel social das mulheres e, ao mesmo tempo, sua própria essência, devendo, portanto, ser amparada e protegida (Freire, 2008, p. 157).

Assim, a década de vinte imprime na maternidade e no ser mãe uma missão divina e um dever social. Porém, para isso, era preciso se munir das novas ferramentas necessárias ao cumprimento da missão. Os médicos defendiam a existência do instinto maternal, contudo, “consideravam-no insuficiente para o desempenho da maternidade conforme os novos padrões exigidos pela modernidade. Devia, portanto, ser aprimorado pela educação” (Freire, 2008, p. 161). Era indispensável que as mulheres se preparassem intelectualmente para essa tarefa, e quem oferecia o caminho era a ciência, na figura dos médicos higienistas, puericultores, especialistas na promoção da saúde das crianças. Dessa forma, esses mestres acabavam por contribuir para a redefinição do papel feminino que comportava o novo papel social da mulher: a mãe moderna.

Vemos então, a partir da segunda metade da década de 1920, as revistas femininas serem invadidas por artigos que privilegiam esse modelo de mãe moderna, aquela que se dedica a compreender aquilo que é importante na educação dos filhos de acordo com os médicos e cientistas da puerperalidade. Mais do que propagar informações técnicas sobre a fisiologia infantil – que implicavam consequentemente mudanças nas atitudes e nos comportamentos da mãe com o filho –, esses artigos tinham outro propósito, o de disseminar o ideário da maternidade científica, como indica Freire (2008, p. 161):

O discurso das revistas dirigia-se diretamente às mulheres, confirmando que a elas competia tal função. Munidas do arsenal científico da puericultura, com base na supremacia da razão sobre a emoção, e rompendo com “antigos” dogmas religiosos ou crenças tradicionais, elas estariam supostamente aptas a desenvolver sua “nobre missão”. Usar e fazer ciência: este seria o novo papel social da mãe moderna. A ideologia da maternidade científica aproximava as mulheres do universo “masculino”, racional, da ciência, deslocando a maternidade da esfera estritamente doméstica e lhe conferindo novo status.

Esse novo status contribuiu para a adesão cada vez maior das mulheres à nova maternidade, a mãe científica. E o que inicialmente se configurava como uma atenção voltada ao corpo infantil – preocupação com os cuidados de puericultura e a alimentação adequada – passou também para a mente da criança. Cabia à mãe estar preparada para atuar, com bases nas orientações científicas, diante das peculiaridades da mente infantil.

Esse panorama pode ser lido a partir de um viés que coloca a mulher como refém de modelos construídos pelo mundo masculino, pelo patriarcado, o que nos daria uma interessante reflexão para o debate pretendido, mas optamos por destacar um outro aspecto que não pode ser negligenciado.

Com frequência nos deparamos com abordagens sobre a mulher ao longo da história que a colocam em um lugar de fragilidade. Sempre, de alguma forma, interpretada como o sexo frágil, mas tendo, ao mesmo tempo, destacada sua dimensão desmedida e, portanto, temida, a mulher se encontra na literatura como aquela que possui uma natureza que demanda vários tipos de repressão. Para além desse olhar construído em torno dela, o que de fato salta aos olhos mais cuidados não é a fraqueza, mas a capacidade de se reinventar diante daquilo que lhe é imposto. E não precisamos ir muito longe para identificar isso. A análise que nos propõe Freire sobre a maternidade científica da década de 1920 nos coloca frente a frente com essa dimensão da mulher. Pois foi por causa da mãe, de certa forma, que foi possível à sociedade brasileira materializar as transformações sociais e políticas almejadas, alcançando aquilo que perseguiam, o projeto republicano.

Se, por um lado, o maternalismo – base de sustentação do modelo de mãe na década de vinte – aprisionou as mulheres em sua dimensão biológica, por outro, impulsionou o aumento do poder da mulher na sociedade. Ainda que restrita e exercida no ambiente doméstico, a maternidade científica, valorizada socialmente, ultrapassou os limites da casa e da família, permitindo a permeabilidade das fronteiras entre o público e o privado.

A imagem de fragilidade e incapacidade que às vezes vemos associada ao feminino logo se dissipa no olhar mais atento que dedicamos à sua história, sobretudo a seu papel de mãe. Parece, inclusive, que, historicamente, foi a maternidade quem impulsionou a mulher para além dos limites identificados à natureza feminina. E ainda hoje, não estando mais aprisionada à esfera privada, a maternidade permanece um importante veículo de revanche contra uma sociedade androcêntrica e contra a desigualdade nas relações entre os sexos, mas também um instrumento de enfrentamento das adversidades de uma vida pobre ou empobrecida.

2.2 Cantos e desencantos sobre a maternidade na escrita de Conceição Evaristo e Ana Maria Gonçalves

Considerando esse contexto do período colonial e da década de 1920 no Brasil, é possível identificar o quanto a mãe e a maternidade foram importantes para o processo civilizatório e colonizador do Novo Mundo, bem como para a realização do projeto republicano. Ao debruçar-nos sobre a análise realizada por Mary Del Priori (2009) e por Maria Martha de Luna Freire (2008), nós nos perguntamos o que seria do Brasil e da sociedade brasileira se não fossem a mulher e sua maternidade.

A mãe como detentora do poder sobre a casa e os filhos, o que se perpetua até os dias atuais em uma enorme parcela dos lares brasileiros, é algo que pode soar a princípio assustador, até mesmo como uma responsabilidade que a mulher não deveria carregar sozinha, mas que tem sido um dado de realidade que evitamos, muitas vezes, enxergar, pois furta-se de reconhecer os motivos que a sustenta.

Pois a exclusividade (ou quase exclusividade, dependendo do contexto) dos cuidados dedicados aos filhos, longe de corresponder à realização do maior desejo da mulher – que, com a ajuda da psicanálise freudiana, quiseram propor como resposta ao mistério feminino e, ainda mais distante, como conformidade à equivalência entre mãe e natureza que os discursos masculinos quiseram impor –, contribui para a divisão de trabalho por gênero e, consequentemente, o evitamento de uma possível feminização das sociedades, tão frontalmente temida pelos homens que sempre estiveram no poder.

Na história da psicanálise se reconhece a histeria como sendo, de certa maneira, esse grito retesado das mulheres, como bem destaca Roudinesco (2016, p. 60): “a histeria tornara-se em toda a Europa a expressão de uma revolta impotente das mulheres contra o poder patriarcal assombrado pelo espectro de uma possível feminização do corpo social”.

Mas aqui as falas não são das histéricas de Freud. Aqui serão as vozes femininas que ganharam e ganham um lugar na literatura. É na escrita de mulheres (e às vezes também de não mulheres) que esse real vivido vai aparecer, numa escrita que se realiza a partir de uma experiência com o próprio corpo. Um corpo marcado por essa passagem, de um filho. Passagem que deixa uma marca, um traço, uma rasura, um resto, um risco. Nessa busca pela linguagem que dê conta de tamanho acontecimento, na procura pela palavra retida, riscada, calada, reprimida. Assim vai sendo escrita a mãe, a maternidade, a relação da mulher com essa outra dimensão que não é nem natural, nem biológica, mas um acontecimento de corpo, de linguagem, de ancestralidade, que é o ser mãe.

Arriscamos, então, neste artigo, o encontro com essa realidade a partir de algumas escritoras mulheres, brasileiras e africanas. Uma realidade que não é a da alegria e da realização plena diante do filho, mas da ambivalência e da aventura a que a experiência de maternidade convoca a mulher. Adentremos a saga de Kehinde em Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves (2020), e as escrevivências de Insubmissas lágrimas de mulheres, de Conceição Evaristo (2016), que nos servem de testemunho poético e real.

Nessas histórias, as mulheres encontram na maternidade o suspiro necessário para enfrentar os infortúnios de cada dia, de uma vida de dificuldades e solidão, em que o homem é coisa rara e, quando presente, na maioria dos relatos, é fonte de violência, opressão e exploração. Mas, para além disso, nos deparamos também com a mulher sujeito, aquela que não se define ou não se limita pela sua função materna. São sujeitos complexos, que comportam desejos que extrapolam o ideal da mãe.

Em Um defeito de cor, desde o início da travessia da personagem principal, mulher africana trazida ao Brasil ainda criança num navio negreiro, o livro já nos coloca diante das insistentes provações e ressignificações pelas quais passa uma mulher ao longo de sua vida num mundo regido e ditado pelos homens.

Toda a narrativa é bastante peculiar, sobretudo porque é Kehinde, nossa heroína, quem escreve. Escreve uma carta, uma carta para o filho perdido, roubado, vendido como escravo mesmo depois de ter conquistado a liberdade. E por quem ele foi vendido? Pelo próprio pai. Escreve porque não sabe se ainda estará viva quando finalmente puder tê-lo novamente em seus braços depois de mais de trinta anos distantes.

Entretanto, o leitor só descobre os detalhes desse acontecimento à medida que avança na leitura. São 947 páginas. Mas a grandeza desse livro não está no número de folhas. Apesar de serem inúmeras coisas que fazem Um defeito de cor um grande livro, o que grita, ou que nos arrebata, o que nos captura é a força, a perseverança, a inteligência, a resiliência de Kehinde, mulher, negra, de origem africana, escrava.

A história de Kehinde começa na África. Mas é no Brasil que ela passa a maior parte de sua vida e onde lhe acontece a maioria dos eventos mais significativos. São tantos fatos terríveis, inúmeras situações de provação, que a força de Kehinde nos comove.

Longe do modelo feminino e materno disseminado por alguns discursos masculinos que colocam a mulher como ser frágil e, até mesmo, incapaz, veremos nessa narrativa uma mulher dona de si mesma e do próprio desejo, detentora de uma sagacidade e de uma coragem que muitos homens jamais sustentariam. Além de aprender com certa facilidade a ler e a escrever, nossa heroína mostra sua habilidade na gestão de atividades da esfera pública – campo eminentemente masculino, sobretudo no Brasil colônia –, levando-a inclusive a alcançar uma vida de conforto e posses num Brasil misógino, escravagista e colonialista.

Mas se engana quem pensa que Kehinde rompe com os padrões femininos apenas por sua aptidão para o comércio. A dedicação e o afeto dirigidos aos filhos não impede que Kehinde experimente sentimentos ambivalentes com relação à maternidade, como demonstram esses dois trechos abaixo:

Às vezes eu queria que o tempo passasse logo e eu envelhecesse, mas às vezes queria voltar a ser criança e ter uma vida igual à daquelas que corriam por ali, rindo e brincando. Eu sentia vontade de brincar também, olhava para o Banjokô sugando meu peito e achava que ele era um brinquedo sério demais com o qual eu sempre teria mais responsabilidade que diversão (Gonçalves, 2020, p. 208).

Às vezes eu me sentia culpada por estar feliz longe dos meus amigos, do Francisco e principalmente do Banjokô. Mas cada vez eu sentia mais vontade de trabalhar muito e, nas horas vagas, de ler, achando perda de tempo fazer algo além disso (Gonçalves, 2020, p. 278).

Ser mãe não anula os desejos femininos que não se encontram relacionados aos filhos. Os seres humanos, não importa o sexo, têm uma tendência à ação. Restringir a mulher unicamente às tarefas do lar não corresponde necessariamente ao que elas desejam. Como escreve Charlotte Brontë (2017, p. 153) em Jane Eyre: “é tacanho por parte desses seres mais privilegiados dizer que elas [as mulheres] devem se limitar a fazer pudins e tecer meias, a tocar piano e bordar bolsas” e, acrescento, a cuidar dos filhos. E ela continua: “É insensato condená-las, ou rir delas, quando buscam fazer ou aprender coisas novas, além do que os costumes determinam que é o ideal para o seu sexo”. Mas quem construiu esse ideal? Como ele foi forjado, com que objetivo? Já vimos com Del Priori e Freire que, à frente dos discursos que produziram esse ideal, está sempre o homem. A mulher aí é apenas uma ferramenta. O que mais choca é que ela está sempre sozinha: “… nem a minha avó nem a minha mãe tinham conseguido um homem só para elas. Em relação à minha avó, eu nunca a ouvi falar qualquer coisa sobre o pai da minha mãe; era como se ele não tivesse existido” (Gonçalves, 2020, p. 271).

Sempre só, tendo que se haver com a solidão, com as dificuldades financeiras, com a casa, com os filhos. Essa é a realidade de grande parte da população brasileira (Figura 1). “Achava necessário ter algum dinheiro guardado, principalmente porque a responsabilidade pela criação de Banjokô estava toda em minhas mãos, como também a da criança que estava esperando” (Gonçalves, 2020, p. 354). Os homens, apesar de serem os detentores do falo, tão culturalmente valorizado, representam o ponto fraco. Em vez de significar a autoridade e a potência paterna, algo que, para a psicanálise, se encontra associado ao processo de constituição dos sujeitos e, portanto, sugerindo sua vinculação à ordem e à proteção do homem, no real vivido dessas mulheres o representante fálico mais abriga formas de violência variadas e até mesmo – como no conto “Adelha Santana Limoeiro” (Evaristo, 2016) – a origem das inconsequências, da perdição e da fragilidade masculina. Imaginem se Kehinde tivesse se submetido ao ideal feminino de sua época? O que teria sido dela, de seus filhos, de sua história? A heroína de Um defeito de cor é apenas um exemplo da realidade vivida pelas mulheres, vale dizer, uma realidade que se encontra muito distante dos ideias e dos saberes construídos pelo discurso masculino em torno do feminino.

Não muito diferente é o livro de Conceição Evaristo, Insubmissas lágrimas de mulheres (2016). É difícil, à primeira vista, escolher um conto que retrate melhor essa realidade. Em sua maioria, as histórias reais inventadas, como a autora mesmo considera suas escrevivências, são contos que testemunham a força da mulher e da mãe diante das adversidades da vida. Adversidades essas que transitam entre as dificuldades comuns ao cotidiano das mulheres negras e pobres e situações de verdadeira crueldade e violência humana que mais parecem retiradas de filmes de terror. Como em Um defeito de cor, nos contos de Evaristo as fortalezas são sempre as mulheres e as mães.

Para a protagonista de “Aramides Florença”, primeiro conto do livro, ter um filho fora um desejo desde pequena. “Vivia a espera de um encontro, em que o homem certo lhe chegaria, para ser o seu companheiro e pai de seu filho” (Evaristo, 2016, p. 11). O filho, então, representava a realização resultante dessa união. Depois de uma gestação feliz e um pós-parto, a princípio, dentro das prédicas de um comercial de margarina, não demora muito a verificar que os pequenos acontecimentos vividos durante a gestação, eventos que permaneceram sem explicação – uma lâmina de barbear deixada ao acaso em cima da cama fere o ventre de Aramides; e a queimadura de um cigarro, que se encontrava entre os dedos do amado e fora “macerado e apagado” (Evaristo, 2016, p. 14) no ventre de Aramides num momento em que o marido a abraçara por trás –, não tardariam a marcá-la de forma definitiva.

Os fatos que se seguiram jamais poderiam dar a imaginar a violência a que chegariam. “Passadas as duas primeiras semanas, já deitados, o homem, olhando para o filho no berço, perguntou a Aramides, quando ela novamente seria dele, só dele” (Evaristo, 2016, p. 15). O passado de um tempo que não fora o dela, quando a mulher era propriedade do homem, na verdade, se encontra ainda bastante vivo em muitos enredos familiares, como no de Aramides. “Buscando apaziguar a insegurança do homem, ela se aconchegou a ele, que levantou rispidamente” (Evaristo, 2016, p. 16).

Cenas semelhantes voltaram a acontecer entre eles várias vezes desde então. E, um belo dia, eis que o marido, sem aviso prévio, invade a casa já se apropriando violentamente de Aramides. “Era esse o homem, que me violentava, que machucava meu corpo e a minha pessoa, no que eu tinha de mais íntimo. Esse homem estava me fazendo coisa dele, sem se importar com nada, nem com o nosso filho, que chorava no berço ao lado” (Evaristo, 2016, p. 18).

Encontramos, nesse livro, a superação da mãe e da mulher, a recomposição de vidas devastadas pela brutalidade impiedosa dos homens e da vida. A maternidade que encontramos em Insubmissas lágrimas de mulheres, longe de ser identificada como destino natural do sujeito feminino, se inscreve como parte de uma história pessoal em cenário social de múltiplas violências. Ora desejada pela mulher como realização pessoal, ou como fonte de um sonho comum do casal, como mostra o conto “Aramides Florença”, ora como um descontentamento pela sua inesperada ou não desejada realização, o que apenas ao se debruçar sobre as particularidades de cada experiência é que se pode compreender, a exemplo de “Isaltina Campo Belo” e “Saura Benevides Amarantino”, como podemos verificar a seguir.

Isaltina, vítima de uma violência brutal – fora violentada por cinco homens, entre eles um pretenso namorado que tentara fazê-la mulher mesmo diante das incontáveis recusas dela –, conta: “Depois, apareceu a gravidez, uma possibilidade, na qual nunca pensara, nem como desejo, e jamais como um risco” (Evaristo, 2016, p. 65), pois ela sempre sentira como se fosse um menino, forma que ela encontrava para definir sua identidade sexual. A gravidez, descoberta aos sete meses de gestação, tamanho era o estado de alheamento em que se encontrava, em vez de ter se transformado na cicatriz da brutalidade vivida e, portanto, em objeto de repulsa, foi o que representou o núcleo pulsante da vida adormecida de Isaltina: “Eu vivia por ela. Tudo em mim adormecido, menos o amor por minha filha” (Evaristo, 2016, p. 66). Um amor construído diante do vazio que ficara na vida de Isaltina. Na solidão vivida, Isaltina se apega à única coisa que possuía, sua filha. E dessa relação, do amor que nasceu, retira a força para seguir na vida.

“Saura Benevides Amarantino” nos conduz a um outro caminho, que não é o do amor de mãe, mas “do desprezo que ela pode oferecer” (Evaristo, 2016, p. 115). Dos três filhos que teve, Saura só acolheu dois em seu coração. Nunca conseguiu se vincular afetivamente à caçula. Os dois filhos, abraçados pelo amor materno de Saura, haviam sido frutos do amor dela pelos pais das crianças. O pai da primogênita, primeiro namorado de Saura, fugiu, com seu consentimento e ajuda, já que não queria se casar tão nova. O pai do segundo, de nome Amarantino, com quem Saura se casou e foi feliz por onze anos, “um dia repentinamente, ele adoeceu e se foi” (Evaristo, 2016, p. 119). Ausência vivida com padecimento.

A terceira gestação foi resultado de um namoro rápido com um ex-colega da juventude. Um descuido.

A terceira, a última, foi uma gravidez que se intrometeu na lembrança mais significativa que eu queria guardar. A imagem da última dança do corpo de Amarantino sobre mim, pouco antes dele adoecer. A enjeitada gravidez comprovava que outro corpo havia dançado sobre o meu, rasurando uma imagem, que, até aquele momento, me parecia tão nítida. E desde então, odiei a criança que eu guardava em mim (Evaristo, 2016, p. 121).

Saura queria a criança longe dela. A menina era a presentificação de um ato que Saura queria esquecer para sempre. A caçula fazia parte de uma história que Saura não conseguia suportar. Foi incapaz de incluí-la entre os seus.

Esses testemunhos literários são escrevivências, contos, cantos, que revelam experiências únicas de maternidade. Os filhos de uma mãe, eles fazem parte de uma história. Uma história bastante particular que em hipótese alguma pode ser catalogada dentro de um molde preestabelecido. A relação entre mãe e filhos é algo que se constitui dentro dessas histórias individuais e familiares. Há um enredo sem dúvida, mas não uma predeterminação estática e previsível. Temos, no conto de Saura, um forte exemplo. A fórmula culturalmente defendida de que a maternidade é algo natural do feminino cai por terra, evapora-se. Reforça, por outro lado, um aspecto importante da condição de mulher: são todas sujeitos. Sujeitos de desejo, com suas contradições e complexidades. As vivências maternas revelam, ao mesmo tempo, que a história importa. Pessoal, familiar ou histórica, ela importa. Ela deixa marcas. Marcas muitas vezes invisíveis mesmo aos olhares apurados.

Se na leitura de autoras brasileiras sobre a mãe e a maternidade é possível perceber a inscrição de seu passado, o que devemos aguardar das vozes que entoam histórias de resistência de mulheres e mães africanas? Escutemos algumas dessas vozes na seção que segue.

3. Maternidade em duas autoras africanas: Scholastique Mukasonga e Buchi Emecheta

Figura 2: Foto de Pierre Verger.
Figura 2: Foto de Pierre Verger.

A leitura de autoras africanas nos adverte que há que cuidar do nosso etnocentrismo, do genérico falar sobre direitos das mulheres, assim como de descuidos em relação a um alinhamento acrítico a uma epistemologia com marcas coloniais ao destacarmos a universalidade de certos conceitos, caros para perspectivas feministas, como o corpo, a sexualidade e o patriarcado ou, como adverte Oyèrónké Oyèwùmí (2005, 2015), organizadora da antologia Uma leitura de estudos africanos sobre gênero, o não questionamento sobre outras lógicas de organização do pensamento, que escapam da metodologia das aparências, da razão em relação ao que se vê, do viés biologizante. Há que imaginar a organização de um outro pensar pelo sentir, pelo simbólico, pelo mágico, que sustentam cosmopercepções na ancestralidade, ou seja, na idade histórica e transcendental, na oralidade, no saber tradição/lenda. Saberes considerados por nós feministas ocidentais como paralisantes de mudanças, mas que, em muitas ambiências, por outras vivências, em especial nas de negação da humanidade do outro, da outra, como das brutalidades coloniais e neocoloniais, assim como as da escravidão, podem alimentar a coragem para a resistência e a utopia de um outro viver.

Há que refletir também sobre como é difícil a seleção de lealdades: estar contra opressões no doméstico quando se vive em relações de macroviolências institucionais, equilibrando sobrevivências na “necropolítica” – ou em tempos de seleção de quem tem o direito à vida e à morte matada por “formas contemporâneas que subjugam a vida ao poder da morte”, como sintetiza Achlle Mbembe (2018, p. 71) sobre os tempos coloniais e pós-coloniais em países da África e não só lá, haja vista a barbárie no Brasil hoje, principalmente contra jovens negros de bairros periféricos.

A violência colonial e a ocupação se apoiam no terror sagrado da verdade e da exclusividade (expulsões em massa, reassentamento de pessoas “apátridas” em campos de refugiados, estabelecimento de novas colônias). Por trás do terror do sagrado, exumação constante de ossadas desaparecidas; a permanente lembrança de um corpo rasgado em mil pedaços e irreconhecível… (Mbembe, 2018, p. 43).

É quando o patriarcado e a dominação colonial e pós-colonial, assim como o poder do pai, do marido, convivem com o matriarcado exercido no plano molecular, da casa, nas relações com os filhos, e até na ordenação da comunidade, lembrando, por exemplo, que as mulheres de diferentes etnias africanas há muito combinam o papel de cuidadoras e provedoras, como comerciantes no mercado. Um híbrido sistema patriarcado/matriarcado, com valências histórico-espaciais diferentes, se afirma em tempos pré-coloniais, coloniais e pós-coloniais, mas não necessariamente com iguais valências de cada poder, pois o espaço e o tempo e a imbricação com outras relações que não as de gênero impõem hierarquias, como, repetimos, a senioridade, os laços consanguíneos e a ancestralidade – princípios amparados nos mitos das origens.

Ao discutir o matriarcado na África em Ideologias e sistemas de parentesco na África e na Europa, Ifi Amadiume (2005) indica a importância, para a memória, do conhecimento das origens, e que no caso de muitas etnias na África – como indicam estudos de casos históricos sobre os Igbos e os Ashanti, entre outros, em tempos idos – se documenta forte presença do matriarcado, principalmente se se entende matriarcado não necessariamente como antagônico, em termos de coexistência, com o poder do pai, mas como formação alimentada pela matrifocalidade, pela ênfase na matrilinearidade e principalmente modelado em uma ideologia que cultiva não necessariamente a violência de Estado, o poder bélico, o domínio, mas a evocação das deusas mães, o poder do afeto de mulheres, a ênfase nos laços mãe/filha/filho e na sororidade, a união e a cumplicidade subversiva de mulheres. Temas de forte ilustração em A mulher de pés descalços, de Scholastique Mukasonga (2017), do protagonismo da mãe em buscar estratégias de proteção dos filhos e da família, diariamente, na árdua sobrevivência em campo de refugiados quando dos massacres em Ruanda, mais referido na parte que segue.

Ifi Amaudine (2005, p. 87-88) assim reflete sobre a importância de olhar mais atento sobre o que seria matriarcado em casos na história de povos na África:

Parece que o principal problema da ênfase no patriarcado e da desconsideração do poder materno na literatura ocidental é a redução da mulher a objeto a ser trocado ou apropriado […]. Se nos afastamos da questão da propriedade e das trocas nas relações de parentesco e focalizarmos o conceito africano de coletividade, usufruto e importância do acesso à terra, voltamos à importante estrutura tripartite matriarcal, ou o que chamo de relação mãe, filha e filho. Tais termos de parentesco deveriam ser vistos em um sentido de agrupamento coletivo e não no sentido individualista europeu.

[…]

Toda a tese do tabu do incesto como marca do início da civilização, seguindo o pressuposto da organização dos clãs como fundada em tal tabu, traz implícita uma perspectiva sobre o progresso da animalidade/natureza para a ordem/civilização, um fato que explicaria o ordenamento do patriarcado na troca e na apropriação. Ora, tal tese não explica o início da regulação social da sexualidade, pois nessa se assume que a unidade matricêntrica não seria em si um construto cultural – ou seja, que a mulher ou a mãe não podem fazer cultura e normas. Ela não tem uma unidade social ou base material para se constituir em um modo de produção. Contudo, de acordo com dados de estudos na África, a unidade matricêntrica é tanto uma unidade autônoma de produção como também é uma unidade ideológica.[1]

Autoras feministas africanas se posicionam contra essencialismos com referência à mulher africana e a representações de feministas do Norte. Criticam vitimismos das mulheres africanas, sublinhando ativismos; questionam reduções da história de diferentes grupos étnicos, inclusive de alguns em que idade, geração e a ancestralidade são mais definidores de hierarquias que propriamente sexo/gênero; discutem que a maternidade, mesmo que com cargas pesadas de trabalho e responsabilidade para as mulheres, em muitos momentos históricos para algumas nações (como os Igbo, da Nigéria) colaborara para a autonomia e o refúgio frente a relações patriarcais com pais e maridos e a busca de um status social, já que a mãe, em especial de filhos homens, seria considerada socialmente “uma mulher completa” (Emecheta, 2017, p. 33).

Grande parte da produção de autoras africanas, como a que figura na antologia organizada por Oyèwùmí (2005), critica a operacionalização de gênero por imposição de conceitos ocidentais, como propriedade privada, divisão sexual do trabalho, centralidade da sexualidade, e o debate sobre maternidade via referência à família nuclear e às relações entre o homem-pai e a mulher-mãe, privilegiando, portanto, conjugalidade. O interessante é que, independentemente das filiações político-teórico-ideológicas, boa parte das autoras em Oyèwùmí (2005) frisa a importância do colonialismo para a perda da força do matriarcado original e o reforço da opressão das mulheres em relações de gênero e apela, em seus escritos e debates teóricos acadêmicos, para a contribuição da literatura, em particular, de tradição oral e para detalhados estudos de casos sobre diversidade étnico-cultural e cenários históricos com ênfase no princípio da ancestralidade e de geração. Diversas autoras africanas são enfáticas em denunciar o que chamam viés eurocêntrico e imperialista dos feminismos do Norte, que trabalhariam com uma “representação estereotipada da mulher africana” (Mama, 1995, em Martins, 2017). “Descolonizar o feminismo implica, para além disto, uma análise crítica dos próprios pressupostos conceptuais e metodológicos dos feminismos ocidentais […], o desafio que Amadiume e Oyèwùmí colocam é pensar a possibilidade de uma organização social em que o sexo não seja estruturante” (Martins, 2017).

Distintos autores destacam o papel da espiritualidade “na estruturação de hierarquia e autoridade” (Oyèwùmí, 2005), o que leva Oyèwùmí a sublinhar que, “para melhor entender sistemas africanos de conhecimento, temos que estar conscientes da relevância do metafisico na constituição do poder e prestar atenção a maneiras pelas quais a espiritualidade pode orientar interpretações sobre o mundo material” (Oyèwùmí, 2005, p. 3).

A seguir, adentramos mais nos romances de Mukassonga (2017) e Emecheta (2017). O primeiro sobre uma mãe do povo, cantada pela filha por seu heroísmo, fazendo a nação, a reprodução social; o segundo, narrativa de mãe sobre desencanto com filhos, mazelas na produção da vida. Estórias tão diferentes às quais recorremos para defender a tese de que as mulheres buscam resistências em ressignificações principalmente da maternidade, complexa categoria que se traduz, insisto, em carga da mulher na reprodução social e na produção da vida, independente da etnia, combinando sacrifícios e gratificações e representações próprias. Em muitos casos, se insinua o resgate da ordem matriarcal para fazer frente ao poder do pai e à ordem colonial e pós-colonial, assim como a subversão do mito, negando o esperado de uma boa mãe.

3.1 Gênero e o lugar da maternidade em A mulher de pés descalços, de Scholastique Mukasonga

Através do romance, teorias feministas africanas tomam corpo, o que não significa que não venha crescendo um acervo de textos acadêmicos, em especial de autoras na diáspora, que transitam entre universidades na África e na Europa e Estados Unidos, como Scholastique Mukasonga, Chimamanda Adichie e Bucchi Emecheta,[2] entre outras.

A seguir, ilustrações de como se infiltram gênero, sexualidade e etnicidade no romance de Scholastique Mukasonga (2017) e se afirmam pistas do matriarcado, outra forma de exercício de poder, nas relações com os filhos, na família, o que não se contrapõe necessariamente à lei do pai, em especial do Estado, mas alimenta resistências moleculares que influenciam no molar, a sobrevivência da nação.

A saga da etnia tutsi, quando milhares foram assassinados no genocídio de 1994, que aliás contou com o tardio espanto das potências ocidentais, é resgatada por Mukasonga (2017) através da história de sua mãe, Stefania, em terra de desterro forçado e vigiado, nos anos 1950. Sua mãe e suas irmãs, como milhares de outros tutsis, foram assassinados no genocídio de 1994.

Em apenas cem dias naquele ano, cerca de 800 mil pessoas foram massacradas em Ruanda por extremistas étnicos hutus. Eles vitimaram membros da comunidade minoritária tutsi, assim como seus adversários políticos, independentemente da sua origem étnica.[3] Nos anos 1950, os tutsis já estavam em área de refugiados, perto de Burundi, vigiados por milícias hutus e teoricamente protegidos por tropas francesas.

Em Bugsera, o lugar do inóspito desterro, a mãe Stefania protege seus filhos dos perigos da guerra, do terror, dos hutus e dos brancos, tenta cuidar e providenciar uma ambiência de normalidade, e ampara vizinhas, inclusive as que tentam abortar. Ainda que a maternidade fosse considerada uma das maiores bênçãos e de prestígio para as mulheres, o aborto era tentando para evitar a dor de verem os filhos assassinados.

A normalidade é tentada pelo exercício dos rituais de uma família tutsi; os ritos do casamento; o reunir as crianças para no fim da tarde contar estórias; as trocas de receitas e de remédios por plantas; o parlamento das mulheres-reunidas para fumar o cachimbo; e o cultivo do sorgo. Segundo Leonardo Tonus, que prefacia o livro: “Por meio de uma narrativa urdida a várias vozes, Scholastique Mukasonga (2017) constrói em A mulher de pés descalços uma história pungente sobre o amor materno, o gesto testemunhal e nossa implicação face ao dever de memória”.

Em respeito à escuta, seguem destaques que selecionamos do livro de Mukasonga (2017) que ilustram a centralidade da mãe para a sobrevivência da organização tanto familiar como comunitária, e o lugar do imaginário, da tradição tutsi, no período de resistência ao exílio.

A mãe ensaiava rotas de fugas e escondia alimentos em buracos, para o caso de invasões, constantes, dos soldados hutus, que violentamente pisavam os tutsis, para eles baratas. Stefania garantia clima de família e se reunia com as mulheres da comunidade para ter “os seus momentos”, quando juntas fumavam cachimbo e contavam-se estórias que as jovens e os homens não podiam ouvir. Ela constrói uma casa, o inzu, com ajuda das filhas e um filho, já que o pai estaria envolvido em coisas da igreja e da comunidade. Aliás, o pai é pouco referido no romance e, quando o é, é com respeito. Homem que lia a Bíblia, que, diferentemente da mãe, “adotava algumas das novidades trazidas pelos brancos” (Mukasonga, 2017, p. 35), como a casa que a mãe rejeitava, de tijolo e terra batida. A casa que Stefania queria seria diferente da dos brancos, desprezada por ela por “vazia de espíritos”. Era o pai quem ia ao vilarejo comprar o pão, quem fazia para o filho o pedido da noiva aos pais dessa – noiva escolhida por Stefania. O pai é mencionado como um dos “sábios” que administravam negócios da comunidade de refugiados junto aos missionários e “aos brancos”. O pai, como os irmãos, era considerado “civilizado” pela adoção de costumes dos brancos. O pai, o patriarca, cuidava de coisas do Estado, coisas de guerra. Já a matriarca, do bem-estar da comunidade.

A seguir seleção de trechos que a nosso juízo ilustram o exercício do matriarcado em Mukasonga (2017):

Parecia que, graças à casa, Stefania tinha recuperado o prestígio e os poderes que a tradição ruandesa atribui a uma mãe de família. Dobrando com cuidado um talo seco de sorgo com belos reflexos dourados, ela fez um urugori, o arco que prende a cabeleira das mulheres, símbolo da fecundidade, fonte de benção para as crianças da família (p. 37).

Stefania se tornara a guardiã do fogo, esse fogo que, no centro do inzu, nunca deveria apagar (p.39).

Sempre vi minha mãe com a enxada na mão revirando a terra, semeando, capinando e colhendo […]. Foi trabalhando na plantação de sorgo que mamãe me ensinou muitas coisas sobre a Ruanda de antigamente […] segredos passados de mãe para filha (p. 41 e 44).

[Stefania com as mulheres conversava sobre as jovens em busca de casamento:] Mamãe era uma casamenteira de mãos cheias. As opiniões dela sobre essas moças contavam muito na decisão das matriarcas que buscavam esposas para seus filhos. [Cabia às matriarcas a escolha da mulher para os seus filhos.] (p. 88)

As jovens em busca de marido conheciam a influência que minha mãe podia ter sobre seu projeto de casamento. Desse modo elas arrumavam qualquer pretexto para entrar no nosso quintal e para desfilar para ela (p. 89).

É claro que a beleza física não era a única qualidade exigida de uma candidata ao casamento. Na desgraça e na miséria que vivíamos em nosso exílio em Nyamata, o que se esperava de uma boa esposa era sua força de trabalho; pois sobre ela recairia a necessidade de cultivar o campo para alimentar a família (p. 108).

Falar sobre sexo e nomear os órgãos sexuais era proibido, mas havia muita preocupação de que as moças ficassem grávidas, em especial por um estupro das forças de ocupação, ainda que ter um filho fosse conquistar o auge da admiração, respeito e poder desejado por todas as mulheres (Mukasonga, 2017, p. 147).

As mães mandavam as filhas se informar sobre gravidez com uma vizinha mais velha, a quem cabia atestar se as noivas estariam de acordo com a tradição, em estado de virgindade. Caso contrário, a jovem estaria em estado de limbo social. Outro medo é que viessem a ser estéreis, situação que permitia ao marido rejeitar a esposa para evitar o desprezo dos outros homens.

Os interditos das falas sobre sexualidade foram encorajados pelo receio do “estupro revolucionário”, que além de deixar a jovem violentada pelos soldados da repressão, grávida, ainda jogaria sobre ela o estigma de mulher a ser rejeitada e uma possível infecção por HIV-Aids. Mukasonga se refere ao caso de uma jovem estuprada por soldados e que pela tradição seria marginalizada, não sendo considerada digna para se casar. Mas no exílio se desenvolve uma sororidade entre as mulheres que muda a tradição e, no caso, as matriarcas da comunidade consideraram que, se a jovem mãe violentada e a criança fossem banhadas pelas águas do rio, as águas de Rwakibirizi, ela poderia vir a casar com um viúvo. Porém, esse foi um caso único, muitas mães arcaram com a carga de criar seus filhos, sós e marginalizadas, contudo, contribuíram para que Ruanda e a etnia tutsi se reproduzisse. Scholastique Mukasonga (2017, p. 153-154), assim termina o romance:

Em 1994, o estupro foi uma das armas usada pelo genocídio. Quase todos os estupradores eram portadores do vírus HIV. Nem toda a água de Rwakibirizi e de todas as nascentes de Ruanda teriam bastado para “lavar” as vítimas da vergonha pela perversidade que sofreram. Nem toda a água seria suficiente para limpar os rumores que corriam dizendo que essas mulheres eram portadoras da morte, e fazendo com que todos as rejeitassem. Contudo, foi nelas própria e nos filhos nascidos do estupro que essas mulheres encontraram uma fonte viva de coragem e a força para sobreviver e desafiar o projeto de seus assassinos. A Ruanda de hoje é o país das mães-coragem [grifo das autoras].

3.2 Os desencantos de uma mãe em As alegrias da maternidade, de Buchi Emecheta

A rica narrativa de Buchi Emecheta (2017) em As alegrias da maternidade nos situa em uma Nigéria, então colônia britânica (o romance cobre o período de 1930 a 1950), e ilustra uma literatura que critica tradições que legitimam a ordem patriarcal, subordinações da mulher nas relações familiares e como a colonização impede oportunidades de saídas das mulheres dessas situações. Por outro lado, destaca nessas tradições ambiguidades e a força das matriarcas. Emecheta aborda as expectativas de Nnu Ego, a mãe, por recompensas de uma vida de carga com a maternagem, e frustrações com tal dádiva (Mauss, 1950): “a alegria de ser mãe era a alegria de dar tudo aos filhos, diziam” (Emecheta, 2017, p. 308).

Biografia e fantasia se entrelaçam. A autora teve uma vida com casos de violência doméstica, pobreza e sobrecarga para manter os filhos. Seu marido até os manuscritos de seu primeiro romance, por inveja de sua arte e como seu proprietário, queimou, e quando ela pediu divórcio, já vivendo o casal na Inglaterra, renegou a paternidade dos cinco filhos. Coube a ela o sustento da família, mas mesmo assim ela conseguiu concluir seus estudos em sociologia em 1974, trabalhando como bibliotecária e correspondente de vários jornais. Escreveu vários livros sobre saga de mulheres em relações patriarcais e coloniais, quer na Nigéria quer na Inglaterra. As alegrias da maternidade, que data de 1979, é escrito após suas filhas decidirem ir morar com o pai. Entre outros eventos, conta a frustração de não ter sido amparada pelos filhos em sua velhice, mas ser por todos eles venerada após sua morte e contar com um enterro com muita pompa, como reza a tradição da etnia Igbo.

No romance, encontramos a recorrência de temas comuns em outras autoras africanas, mesmo que se referindo a diferentes etnias, quais sejam, sentidos e consequências para as mulheres da centralidade sócio-político-cultural da maternidade, amparada por tradições que atravessaram os tempos, ainda que não se conservem intactas, sobrevivências do período pré-colonial.

O valor para a nação, para a comunidade, para os homens e para as mulheres do ser mãe levou Oyèwùmí (2015) a imprimir o conceito de materpotência, que de alguma forma se confunde com o de matriarcado e que se fundamenta em escritos sobre o sagrado, já que no Ifá, livro baseado na oralidade sobre o espiritual, Oyá é a origem, e a origem é a mãe – quem não se originou de uma mãe? Mas que também decola de teses sobre a singularidade da África versus o Ocidente. Por exemplo, para o historiador africanista Diop, enquanto a civilização africana teria sido modelada no matriarcado, a ocidental, posterior, destacaria o patriarcado.[4]

Diversos romances de autoras africanas sobre tempos pré-coloniais, coloniais e atuais sugerem que, para os homens, os filhos machos não só atestam a virilidade do pai, mas seriam a garantia de uma descendência e de um lugar para este entre os ancestrais. E, no mundo material, seriam guardiões do nome e de bens, como o maior, a terra. O homem que não tem filho é desprezado no seu meio social. Mais ainda as mulheres, com o agravante de que podem ser rejeitadas pelo marido, cabendo à sogra – uma das principais representantes do patriarcado a nível da micropolítica das relações familiares – arranjar outra esposa para seu filho, transformando em poligamia o pensado como uma relação monogâmica e legitimando a rejeição da esposa tida como “seca”, estéril.

Se o formato das tradições muda historicamente, o colonialismo, segundo distintas autoras, como em Emecheta (2017), impinge humilhações a homens e mulheres, desestabiliza marcas tradicionais de gênero. Por exemplo, já em Lagos, a personagem Nnu Ego se choca ao ver o novo marido lavando e cozinhando para os patrões brancos e indo para uma guerra, a Segunda Guerra Mundial, que não é sua, vindo ele de uma etnia, a Igbo, que condena o matar sem justa causa. Mas são as mulheres mães na pobreza as mais penalizadas pela junção patriarcado-colonialismo, quer por imposição de crenças moralistas de um cristianismo que codifica a sexualidade, o vestir e o falar e limita a circulação no público, quer porque o respeito à mãe não tem o amparo econômico-legal com que antes ela contava na vida comunal.

É comum o registro do desespero das mulheres por ter filho, quer para garantir que uma relação conjugal iniciada por amor não seja ceifada pela sogra, quer para agradar o seu homem, quer para gozar de status social, quer pela relação com a criança, tida como o seu único bem. É comum, como no caso do romance em foco, indicar que cabe à mulher maiores encargos com a criança inclusive como provedora, geralmente em vendas no mercado, o que a impede de acumular algum capital, mesmo que se goze da ideia de que se é rica por ser mãe.

As alegrias da maternidade inicia na área rural da Nigéria, na cidade de Ibuza – expressão do pré-colonial, cidade em que se desprezava o branco colonizador, como atestavam várias covas de missionários pela estrada. Daí o romance atravessa fronteiras, desenvolvendo-se na colonial Lagos, chegando às vésperas do pós-colonial.

Expressões do patriarcado patrimonial em tempos pré-coloniais são registradas, bem como o híbrido patriarcado-colonialismo:

Nwokocha Agbadi era um chefe local muito rico. […] Era mais alto que a maioria dos homens e, já que nascera numa era em que a bravura física era o que determinava o papel da pessoa na vida, todos aceitavam com naturalidade que ele fosse o líder. […] Quando ele era moço, a mulher que cedia a um homem sem antes lutar pela própria honra não era respeitada. Considerar uma mulher sossegada e tímida como desejável foi uma coisa que só surgiu mais tarde, depois do tempo dele, com o cristianismo e outras modificações. […]

Nwokocha Agbadi desposou umas poucas mulheres no sentido tradicional, mas quando as via, uma a uma, afundar na vida doméstica e na maternidade, logo se entediava e saía em busca de alguma outra fêmea excitante, alta e orgulhosa. Essa sua predileção também se aplicava às amantes (Emecheta, 2017, p. 17).

Uma das amantes de Agbadi foi avó da personagem central do livro, Nnu Ego, e as referências a ela (apelidada de Ona-joia) indicam a existência naqueles tempos de mulheres com vontade própria, não se ajustando a narrativas lineares de mulheres passivas, mesmo em tempos de patriarcado ativo. A passagem seguinte sugere ambiguidades intrapatriarcais, o poder do pai versus o poder do amante/marido:

Uma dessas amantes era uma jovem muito bela que conseguia ser ao mesmo tempo teimosa e arrogante. Ela era tão teimosa que se recusava a viver com Agbadi. Sendo os homens do jeito que são, ele preferia passar todo o seu tempo livre com ela, com aquela mulher que gostava de humilhá-lo recusando-se a ser sua esposa. Não raras noites ela o punha para fora, dizendo que não estava inclinada a ter fosse o que fosse com ele, embora supostamente Agbadi não fosse o tipo de homem a quem as mulheres dissessem esse tipo de coisa. […]

O pai da moça também era um chefe, e Agbadi a conhecera ainda criança, andando atrás do pai. […] O pai, apesar das diversas esposas, tinha poucos filhos e, na verdade, nenhum filho homem vivo, mas Ona cresceu para corresponder às expectativas do pai. Ele havia insistido para que ela nunca se casasse; sua filha jamais inclinaria a cabeça diante de homem algum. No entanto, podia ter homens, se quisesse, e se tivesse um filho, ele receberia o nome do pai dela, retificando assim a omissão da natureza.

[…] Já que seu pai não tinha um filho, fora dedicada aos deuses para ter filhos com o nome do pai, não com o de algum marido qualquer. Ah, como estava dividida entre dois homens: precisava ser leal ao pai e também ao amante, Agbadi (Emecheta, 2017, p. 18-19).

O extrato seguinte sugere algo sobre o matriarcado, o poder das mulheres, desigualdades de classe/berço mesmo no mundo dos encantados, mesmo em tempos com costumes pré-coloniais:

“[…] O sepultamento da esposa de um chefe não é pouca coisa em Ibuza.”

As danças e os festejos fúnebres começaram muito cedo pela manhã e se prolongaram ao longo de todo o dia. Diferentes grupos de pessoas chegavam e partiam e deviam ser acolhidos. Ao entardecer chegou o momento de instalar Agunwa em sua sepultura. Todas as coisas de que teria necessidade na outra vida foram reunidas e dispostas em seu caixão de madeira confeccionado com o melhor mogno que Agbadi conseguiu encontrar. Depois sua escrava pessoal foi convocada pomposamente em voz alta pelo curandeiro: ela deveria ser posta no interior do túmulo em primeiro lugar. O certo seria que a boa escrava pulasse na sepultura por vontade própria, feliz de partir ao lado da ama; mas aquela jovem e bela mulher ainda não desejava morrer.

Desagradando a muitos dos homens que cercavam a sepultura, ela implorou insistentemente pela vida (Emecheta, 2017, p. 32-3).

Por maldição da escrava, Nnu Ego, filha de Ona, não consegue engravidar. Mesmo tendo casado por amor, por não conseguir ter filhos, Nnu Ego é rejeitada pelo marido, que a amava, mas se curva ao dever comunal de homem, fazer filhos.

Nnu Ego é enviada para Lagos, para um casamento arranjado, quando o romance se situa em tempos coloniais, de dominação inglesa. O desprezo pelo novo marido é substituído por respeito quando ela tem filhos. O primeiro morre e Nnu Ego tenta o suicídio, já que não consegue ser uma mulher completa, mas vem a ter outros e a relação se consolida. A colonização humilha, subverte padrões patriarcais tradicionais, mas se afirma em outros: o marido é o senhor.

O romance de Emecheta faz uma rica etnografia das condições de vida na Nigéria no final do século XIX, das relações interétnicas, da sutil dominação colonial imposta pelo poder do cristianismo e do seu poder pelas armas e pelo domínio econômico, como dos contrastes entre normas culturais e as impostas como legais.

Quando Nnaife, marido de Nnu Ego, é alistado no exército para lutar pelos ingleses na Segunda Guerra, sem saber nem por que, cabe a ela criar, sustentar os cinco filhos. Eles eram sua riqueza, e ela comentava com vizinhas que um dia seria por eles amparada, como se esperava de filhos Igbos. Reage Nnu Ego quando Nnaife é alistado à força, mas se resigna:

“Você já esqueceu que em Ibuza é uma maldição para uma mulher de respeito dormir com um soldado? Já esqueceu todos os costumes de nosso povo, Nnaife? Primeiro, lava a roupa de uma mulher, agora quer se reunir a pessoas que matam, violam e são a desgraça de mulheres e crianças, tudo em nome do dinheiro do branco. Não, Nnaife, não quero esse tipo de dinheiro […]” (Emecheta, 2017, p. 126).

Responde o irmão de Nnaife sobre por que ele foi alistado – pegado à força pelo exército colonizador: “Não há nada que a gente possa fazer. Nós pertencemos aos britânicos, assim como pertencemos a Deus e como Deus eles podem se apropriar de qualquer um de nós” (Emecheta, 2017, p. 205). Reação do senhorio, iorubá: “Por que eles não lutam suas próprias guerras sozinhos? Por que arrastar africanos inocentes como nós para o meio?”, e responde outro: “Não temos escolha” (Emecheta, 2017, p. 206).

De fato, espada e cruz fizeram uma aliança básica para a colonização. Predomina a passividade em gênero, imposta pelo cristianismo: Nnu Ego se resigna à “sua nova religião cristã que a ensinava a carregar sua cruz com fortaleza” (Emecheta, 2017, p. 127).

Nnu Ego por muitos anos passa a ser a chefe de família, da qual constava outra esposa. Nnu Ego costumava reprimir expressões sentimentais, era a esposa mais velha, e a sua cultura “não lhe permitia que se entregasse aos seus temores”. Gênero, como bem observa Oyèrónké Oyèwùmí (2005) sobre muitas tradições étnico-africanas, não se sobrepõe a idade, ao contrário, é a senioridade que desenha papéis. A esposa mais velha, em casa em que não está o homem, é o homem da casa: “E já que os homens não podiam sofrer abertamente ela tinha que aprender a também esconder sua dor. Ouviu Akadu [a outra esposa do seu marido] chorar e invejou sua liberdade” (Emecheta, 2017, p. 192).

A mãe se sacrifica vendendo no mercado fósforo e outras coisas para a educação dos filhos homens, segundo ideólogos da independência “para formar seus governantes e lidar com a modernidade”, para ela para que fossem respeitados inclusive por brancos e a amparassem no futuro. Já para as filhas, a educação seria para lhes buscar um bom casamento. Os filhos vão estudar e trabalhar nos Estados Unidos e no Canadá e não dão mais notícia, e as filhas ao se casarem vão para outras províncias.

Um tipo de matriarcado ou o que chamaríamos de “martiriocado” se modela na vida de Nnu Ego enquanto o marido está na prisão. Ela é dona de seu dinheiro, consolida-se em atividades no mercado, por mãe de filhos homens tem o respeito da comunidade e se encontra ajustada à lógica do mundo dos encantados, encaminhando-se para ser uma respeitável e adorada ancestral quando morresse. Sobre ela se refere um homem iorubá: “Nossa vida começa em imortalidade e termina em imortalidade […] Nnu Ego está imortalizando seu marido” (Emecheta, 2017, p. 230). Os filhos não mandam notícia nem dinheiro: “Durante algum tempo Nnu Ego suportou tudo aquilo sem reagir, até que seus sentidos começaram a ceder. Tornou-se vaga e as pessoas comentavam que ela nunca fora forte do ponto de vida emocional”. Morreu só à margem de uma estrada, “Sem nenhum filho para segurar sua mão e nenhum amigo para conversar com ela. Nunca fizera muitos amigos, de tão ocupada que vivera acumulando as alegrias de ser mãe” (Emecheta, 2017, p. 307).

Já seu sepultamento em Ibuza foi com fausto, vieram todos os filhos e lhe construíram um altar para que os netos apelassem para ela se fossem estéreis. Mas a vingança de Nnu Ego se realiza no plano do transcendente, e ela, ao contrário de atender aos pedidos das mulheres que   lhe vinham orar por filhos, as fazia estéreis. Como era possível, diziam, ela que tivera a alegria de ser mãe e de dar tudo aos filhos?

Por acaso não tivera o maior sepultamento que Ibuza já vira? Oshia [o filho que vivia na América] precisou de três anos para conseguir pagar todo o dinheiro que pedira emprestado para mostrar ao mundo o bom filho que era. Sendo assim, as pessoas não entendiam por que Nnu Ego não atendia às preces que lhe dirigiam, pois o que mais uma mulher poderia desejar, além de ter filhos que lhe dessem um sepultamento decente? Nnu Ego recebera tudo isso, e nem assim atendia às preces dos que lhe pediam filhos (Emecheta, 2017, p. 307).

4. Reflexões finais

A história sugere que o feminino e a maternidade representam um mistério. Inspirado pelo medo, o homem foi obrigado a adestrar o feminino para que pudesse prever seus passos; para que nenhuma surpresa desagradável o surpreendesse. Como observa Priori (2009, p. 33): “Seria impossível conviver impunemente com tanto perigo, com tal demônio em forma de gente”.

O caso Brasil aqui retratado com o apoio de contos de Conceição Evaristo e do romance de Ana Maria Gonçalves, da análise histórica de Mary Del Priori e da médica brasileira Maria Martha de Luna Freire, revela que o que decorreu desse adestramento escapou às expectativas e aos receios temidos. A mulher, principalmente se mãe, mostrou-se maior do que tudo. Uma deusa. Certamente, ainda temida. Mas universalmente endeusada. Na história do Brasil, essa mãe adquire uma importância que transborda, por exemplo, os preceitos psicanalíticos. Nos referimos à relevância que o pai tem na obra de Freud em detrimento da mãe. Para a psicanálise freudiana é sempre o pai quem se encontra como vetor e norteador das vicissitudes do sujeito humano. Ainda que encontremos a mãe como porta-voz, Freud sempre nos lembra que é o pai o centro da família, e o centro dos complexos familiares (Roudinesco, 2003).

Contrastando com a família edipiana proposta por Freud, onde é o pai quem reina, na história dos brasileiros, principalmente entre as classes pobres e empobrecidas, não encontramos o pai, quem dirá um Deus Pai. O discurso é masculino, mas a verdade é que a sociedade brasileira, ao menos uma parte considerável dela, foi feita pelas mulheres. Ainda que submetida ao patriarcado, foi a mãe quem ofereceu uma via de constituição e edificação dos pequenos sujeitos, que surgiam para povoar o Novo Mundo e para realizar o projeto republicano. Quanto ao homem, nem função de pai, nem obrigações de homem (considerando aquilo que prega o patriarcado, já que é ele que serve de suporte ao adestramento feminino). Estes, os homens, são aqueles que escapavam, fugiam, ou se negavam, como nos contos de Evaristo.

Somos, no caso do Brasil de baixo, aquele das periferias, uma nação feita pelas mulheres. Quando o homem se encontra presente, não é regra, mas a exceção. A função paterna aparece sempre longinquamente, como um adereço. Em alguns casos, como um fator e vetor importante que atua ativamente junto à mulher, mas em outros, na maioria deles, o papel do homem e do pai é quase inexistente. Diríamos até que, nesse último caso, o pai e o homem mais atrapalham, pois, ao se manifestarem, o fazem a partir da violência e da crueldade do homem contra a mulher.

Vozes femininas da África trazem ilustrações do matriarcado em nações dominadas pelo patriarcado e pelo colonialismo. O relato de Scholastique Mukasonga (2017) sobre maternidade e o feminino destaca como sua mãe modelou proteção, esconderijos territoriais e anímicos, pelo trabalho de sobrevivência e afetos para seus filhos e sua família, e contribuiu para a vida em comunidade de refugiados da etnia ruandense, tutsis, sob a constante ameaça e violências dos soldados da etnia inimiga hutus, antes do genocídio que contou com o apoio e o beneplácito das forças coloniais e das nações soberanas no cenário internacional de 1994. Narrativa emblemática do ápice do necropoder, “um poder que embaralha as fronteiras entre resistência e suicídio, sacrifício e redenção, mártir e liberdade” (Mbembe, 2018, p. 71).

Ecos de necropolítica pavimentam, ainda que não necessariamente nomeados, o texto sobre as violências sofridas nas vidas das mulheres negras, também brasileiras, que nos chegam pelas escrevivências de Evaristo (2016).

Se o romance de Scholastique é narrado pela filha, o de Emecheta representa os sentidos de ser mãe por uma mãe quando alegrias se entrelaçam a frustrações. Emecheta (2017) dialeticamente indica formas da mãe se rebelar, inclusive recorrendo à tradição e ao pensamento mágico: quando morre, o espírito de Nnu Ego não atende às preces das mulheres “que lhe pediam filhos” (Emecheta, 2017, p. 308).

As famílias entre os deserdados combina ser sítio de violências de gênero e de produção de gratificações; ser refúgio e proteção inclusive anímica contra o conquistador ou o Estado. É quando a economia de cuidados da mãe, se não enfrenta a lei do pai, colabora na sobrevivência da prole e da comunidade e na sutil instauração de um matriarcado, simbólica proteção, tema que pede mais espaço.

Falta melhor conhecer portos de decolagem no plano de micropolíticas coletivas para aterrisagens mais de acordo com necessidades e principalmente imaginários e cosmovisões, pois é a partir desses que se constroem formas de resistência, de acomodação ou de mudanças. Ou seja, a partir de materialidades vividas e, principalmente, da maneira como essas vivências são modeladas pelo sagrado, pela espiritualidade, por imaginários que fogem do visto e se instauram no sentido, ainda que emprisionadas em uma economia política que cultiva a morte, de muitos, muitas.


*Mary Garcia Castro é Ph. D. em Sociologia pela Universidade da Flórida, pesquisadora Visitante Emérita (FAPERJ/UERJ/NUDERG), professora aposentada da UFBA e pesquisadora na FLACSO-Brasil; Fernanda Andrade Leal é psicanalista, psicóloga perinatal e parental, doutora e mestre em Família na Sociedade Contemporânea e autora do livro A tristeza comum da mãe: reflexões sobre o estado psíquico do pós-parto.

 

Referências

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ROUDINESCO, E. A família em desordem. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.

 

Notas

[1] Original em inglês (tradução livre das autoras).

[2] Scholastique Mukasonga, nascida em 1956, originaria de Ruanda e que hoje vive e trabalha na região da Normandia; Chimamanda Adichie, nascida em 1977, nigeriana que leciona parte do tempo em universidades nos Estados Unidos e na Nigéria; e Bucchi Emecheta, que viveu na Nigéria, em Londres e Nova York, 1944-2017.

[3] “Por que as milícias hutus quiseram matar os tutsis? Cerca de 85% dos ruandeses são hutus, mas a minoria tutsi dominou por muito tempo o país. Em 1959, os hutus derrubaram a monarquia tutsi e dezenas de milhares de tutsis fugiram para países vizinhos, incluindo a Uganda. Um grupo de exilados tutsis formou um grupo rebelde, a Frente Patriótica Ruandesa (RPF), que invadiu Ruanda em 1990 e lutou continuamente até que um acordo de paz foi estabelecido em 1993. Na noite de 6 de abril de 1994, um avião que transportava os então presidentes de Ruanda, Juvenal Habyarimana, e do Burundi, Cyprien Ntaryamira, ambos hutus, foi derrubado. Extremistas hutus culparam a RPF e imediatamente começaram uma campanha bem organizada de assassinato. A RPF disse que o avião tinha sido abatido por hutus para fornecer uma desculpa para o genocídio. […] Alguém tentou pará-los? ONU e Bélgica tinham forças de segurança em Ruanda, mas não foi dado à missão da ONU um mandato para parar a matança. Um ano depois que soldados norte-americanos foram mortos na Somália, os Estados Unidos estavam determinados a não se envolver em outro conflito africano. Os belgas e a maioria da força de paz da ONU se retiraram depois que dez soldados belgas foram mortos. Os franceses, que eram aliados do governo hutu, enviaram militares para criar uma zona supostamente segura, mas foram acusados de não fazer o suficiente para parar a chacina nessa área. O atual governo de Ruanda acusa a França de ‘ligações diretas’ com o massacre – uma acusação negada por Paris. […] Como terminou? A bem organizada RPF, apoiada pelo exército de Uganda, gradualmente conquistou mais território, até 4 de julho, quando as suas forças marcharam para a capital, Kigali. Cerca de dois milhões de hutus – civis e alguns dos envolvidos no genocídio – fugiram em seguida pela fronteira com a República Democrática  do Congo”, BBC, 7 abr. 2013. Disponível em:  http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/04/140407_ruanda_genocidio_ms – 7.4.2014. Acessado em 20 mar. 2018.

[4] Ver Oyèwùmí, 2015 e Castro, 2021, n.p.