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Corpoeticidades dos saraus de poesia: o movimento Eu, Poeta Errante, de França de Olinda | André Telles do Rosário*

A voz e a interação humana voltaram ao coração da comunicação poética. Durante o último século, além de todas as vanguardas, escolas e teorias que ampliaram enormemente as maneiras de se produzir, divulgar e fruir os poemas (tanto no impresso, quanto nas mídias sonoras ou audiovisuais e na internet), aconteceu também a popularização da cultura de encontros para se compartilhar poesia falada, principalmente a partir dos anos 1970 e 80.

Para muitos, o primeiro marco perceptível desta tendência surgiu com a subversão da cultura da leitura de poemas, feita por Allen Ginsberg e os poetas da San Francisco Renaissance, na Six Gallery, em 1955, ao dar àquela noite de leitura um aspecto de happening (ainda antes de Kaprow criar o conceito), principalmente devido à dionisíaca primeira declamação de “Howl”. Nas décadas seguintes, ao encontro da cultura de leitura de livros com o happening e as vivências das artes visuais, foram somadas as performances dos shows de rock e a cultura jovem, e a busca por meios culturais de resistência política e existencial. Estas, entre outras referências, repercutiram no surgimento dos recitais de poesia no Brasil, e da Slam Poetry nos Estados Unidos, entre tantos outros formatos, em várias partes do mundo.

Poesia oral urbana. Ligada a movimentos internacionais e a tradições locais, com diversas formas de materialização. Praticadas nesses eventos, foram se adaptando mais e mais à forma de comunicação através da voz, do corpo e da interação pessoal. Já são décadas de renascimento – com estilos pessoais e de época, de formas e estruturas características, ao longo do tempo. Nesse período, o que se percebe é a consolidação de uma fruição estética que é menos “literária”: mais próxima do jogo e do ritual, da terapia coletiva e da manifestação política, que da leitura solitária.

Sua abundância descentrou o paradigma literário dos estudos de poesia para outro, mais preocupado com o papel do corpo na comunicação artística verbal. Nossa hipótese, neste ensaio, é que a atual poesia corporalmente compartilhada pode ser compreendida de maneira mais apropriada ao ultrapassar a “bidimensionalidade” da maior parte dos estudos literários. Para tanto, acreditamos ser necessário um olhar através das relações entre três elementos centrais nestas manifestações culturais orais urbanas: o Corpo, a Cidade e a Poética.

Este artigo é uma tentativa de observar um sarau de poesia dentro deste ponto de vista “tridimensional”. Assim, vamos passar os olhos sobre o movimento Eu, Poeta Errante, em Pernambuco, liderado pelo Poeta França (Valdemilton Alfredo de França). Mas, antes de partir para a poesia propriamente dita, é necessário explicar o que vem a ser Corpoeticidade.

Figura 1: O poeta França de Olinda (Foto: Fundarpe - divulgação)
Figura 1: O poeta França de Olinda (Foto: Fundarpe – divulgação)

Três elementos e três dialéticas

O neologismo Corpoeticidade é a junção de três elementos importantes na expressão poética performativa contemporânea: Corpo, Poética e Cidade. Três substantivos que se desdobram em três dialéticas: a Poesia no Corpo; o Corpo na Cidade; e a Cidade na Poesia. Estas três dialéticas foram utilizadas para orientar a observação da obra do poeta Miró da Muribeca (João Flávio Cordeiro, recitador e criador famoso da poesia “marginal” de Recife), na dissertação Corpoeticidade – Poeta Miró e sua literatura performática (UFPE, PGLetras, 2007).

Na primeira das perspectivas, a Poesia no Corpo, foram procurados traços de performatividade na sua poesia, ou seja, a forma com que o corpo modula as manifestações do poema. Como sua arte é um híbrido de expressões orais e gráficas, para retratar melhor sua materialização, a dialética poesia e corpo foi dividida em três subconjuntos de comentários.

O primeiro apanhou aspectos visíveis e audíveis de suas performances, de como o corpo se apresenta, desde a voz e o gestual, até a indumentária, o local e a ocasião. O segundo buscou elementos de oralidade dentro da língua utilizada em seus poemas, atrás de alguns padrões e recursos lexicais mais frequentes nos seus textos. E o terceiro leu o planejamento gráfico de suas publicações, em busca da influência da performatividade no meio impresso. Partindo, assim, do foco exclusivo no corpo e no contexto, passando pelas marcas da performatividade no seu discurso, até chegar à intersemiose de seus livretos.

Com a segunda das dialéticas, o Corpo na Cidade, buscou-se retratar a subjetividade que habita seus poemas. Quais as fronteiras para a movência e para o usufruto da urbe por esse protagonista descrito em sua poesia: a cor, a classe e a intimidade do habitante que é o ponto de vista das imagens de suas invenções.

Com limitações mais visíveis e sensíveis para quem está na base da pirâmide social, o cotidiano das grandes cidades brasileiras é repleto de fronteiras e poucos espaços comuns. Para provar os incômodos disparates que sente na pele, o poeta recorta fragmentos da cidade e os cola no poema, deixando ver sua posição dentro dessa sociedade – e transgredindo essas fronteiras através da expressão artística.

E na terceira, a Cidade na Poesia, foi observado o sentimento geográfico que viaja com os versos. Como as representações culturais geográficas locais tradicionais (principalmente da cidade, mas também da região e da nação) são construídas e reinventadas em poemas seus. Como e quais modelos de pernambucanidade e brasilidade são revelados, celebrados e combatidos através da poesia.

Todo indivíduo traz na sua fala signos de pertença a seu lugar (e a sua posição dentro da sociedade desse lugar). O poeta, tecelão de tumultos, cruza estas fronteiras dentro de sua obra, e os moldes com que tece suas bombas de efeito moral revela, também, seu posicionamento político perante questões do ambiente social em que está mergulhado, reinterpretando as representações culturais do lugar.

Corpoeticidades

O caminho para a compreensão de eventos de poesia falada através deste arcabouço teórico passa por adaptá-lo da leitura da obra de apenas um poeta, para a análise de um evento de poesia. Primeiro, é importante entender que a soma das corpoeticidades dos poetas presentes no evento é parte da corpoeticidade do evento. Mas não só, porque o evento em si tem sua corpoeticidade: sua relação e história com práticas corporais e de interação pessoal; com maneiras de entender e trocar criativamente a poesia; e com o lugar onde acontece, dentro da cidade e de culturas mais amplas, nacionais e internacionais. Para analisar a corpoeticidade do evento, o primeiro ponto é compreender que falamos de algo no plural. Poetas e audiência reunidos – Corpos, Poéticas e Cidades.

As poesias nos corpos

Qualquer evento de poesia falada é uma grande compilação de poemas composta por vozes e corpos diferentes num mesmo lugar, durante algumas horas. As performances se juntam umas às outras: a poesia acontece através das pessoas. É assim um jogo, um ritual, uma terapia coletiva, um manifesto. Em vez de livro e leitor sozinhos a dois – vozes e olhares de três ou mais participantes: falas intercaladas, trocadas, conversadas, mais o contexto, o local e o acaso.

A estrutura que ordena o encontro é o esteio por onde os poemas em performances vão se suceder, mantendo o elo de unidade do evento. Observar como se dá a interação pessoal é o primeiro ponto desta dialética. Organizações diferentes geram recitais diferentes entre si. Como o fato do evento ser uma lista ou uma roda de poesia, ou de ter um Mestre de Cerimônias mais ou menos centralizador ou permissivo. A temática e a cultura do recital geram normas implícitas que têm efeito sobre o conteúdo e a forma da poesia trocada nestes ambientes.

Além de atentar à sua estrutura, é importante observar os diferentes estilos de performances pessoais dos principais atores de cada evento. Ainda, entre a análise da corpoeticidade do recital e aquela de cada um dos poetas que se apresentam, observar o diálogo que acontece no nível da performance entre os criadores que recitam.

O segundo ponto é observar a linguagem usada nos poemas dos eventos de poesia falada. Quem são os principais poetas a se apresentarem nele, quais os recursos que suas poesias utilizam. É perceptível um uso da linguagem que é mais oral, mais concreto e coloquial. O evento de poesia falada tende a prestigiar um estilo mais oral de literatura. Neste ponto, é interessante observar o papel do livro em cada um deles, em geral, quanto maior a base na leitura pública de livros, mais distante da oralidade.

Por fim, o terceiro e último ponto desta primeira dialética a ser adaptado do estudo sobre Miró da Muribeca é aquele que observa a performaticidade impressa. Mais uma vez, a soma dos trabalhos dos poetas que frequentam os recitais é parte da corpoeticidade, junto com a divulgação da poesia e do evento em outras mídias. Mas não só, os criadores de um recital muitas vezes formam coletivos de ação artística, e é recorrente para alguns a publicação de coletâneas com os autores, além da produção de zines com parcerias dentro de cada evento. E há ainda a publicação em textos e vídeos na internet.

Os corpos nas cidades

Os criadores que se apresentam em um sarau têm histórias pessoais, percursos pela cidade. Os corpoetas são por necessidade andarilhos, de evento em evento, sem o artista sua poesia não atinge seu público (já que mesmo para vender seus livros, é necessário que o autor os leve, muitas vezes). E o lugar onde mora marca este criador (aberta ou veladamente), desde sua linguagem do lugar, passando pelo ponto de vista, pelo repertório de experiências cotidianas comuns, até a própria descrição da cidade nos poemas. O sarau acaba sendo uma encruzilhada, um ponto de encontro de várias trajetórias, um lugar que se torna um espaço de força.

Histórias que circulam e se fundem e se confundem e fundam. Encruzilhadas de histórias pessoais e identidades de variados tipos. Partes da cidade que se encontram, se aliam, se estranham, se ressignificam. Corpoetas são embaixadores de sua cidade e de suas “quebradas”, de suas histórias, e de outras coisas também: ideias, ideais e muito mais. O caldo todo se anuncia em seus versos, a cidade se apresenta ao “eu-lírico” no poema. Eles carregam, quando falam, seu lugar na guerra, que disputam com a palavra, na sociedade em que moram. Deste ponto de vista, o recital de poesia é também uma manifestação política através da cultura, feita através desta união de vozes, ouvidos e olhares.

Mas além da soma dos percursos dos poetas, o recital tem um “discurso” que diz quem o faz, para quem é feito, quem são essas pessoas, o que é importante para elas – qual cidade é privilegiada em sua atenção e afeto. Assim, o sarau de poesia acaba por interferir de volta na cidade, na linguagem da cidade, na história da cidade – através das pessoas concretas que nela vivem e convivem.

As cidades nas poesias

Para o universo da poesia falada contemporânea, o lugar não é apenas pano de fundo, mas parte fundamental da obra. É em acordo com os detalhes de cada espaço que se organizam os eventos. Além das contingências locais que influenciam a troca de poesia e seus estilos, os movimentos de poesia falada reivindicam o espaço urbano para outros usos – ligados ao prazer do jogo, ao senso comunitário do ritual, ao debate e à luta social.

O lugar de onde se diz algo faz toda a diferença. O ponto onde os pés do corpoeta tocam o chão é um signo a partir do qual os discursos podem ser compreendidos. Revela a classe, a história, a etnia, a cultura local – e para quem, com quem e contra quem se diz. Colocar-se deste lugar é performar o manifesto que dá origem ao sarau de poesia.

Mais do que a compreensão das identidades geográficas e culturais de cada poeta que se apresenta a partir daquele lugar, e da soma das percepções de todos os poetas que compõem o evento, o sarau de poesia como um todo também se manifesta identitariamente, como uma obra. Tanto em cada evento, como na soma dos eventos ao longo do tempo.

Assim, o recital de poesia expressa suas ideologias geográficas e culturais tanto na temática e no discurso-manifesto que o funda, quanto no pensamento de cada participante – poetas, ouvintes-poetas e ouvintes. Mas, para além do texto, a performance de se tomar um lugar para falar poesia e interagir é por si só uma expressão, uma intervenção urbana, para usar a linguagem das artes (e dos movimentos sociais).

A partir do próximo parágrafo, passaremos a vista em um evento de poesia corporalmente compartilhada, utilizando os pontos de partida até agora expostos para sua descrição e leitura. As observações que seguem surgiram através de visitas ao Eu, Poeta Errante, principalmente no último ano de existência do sarau. Este exercício não pretende ser exaustivo ou minucioso, mas uma abordagem que consiga descrever o encontro de poesia de uma maneira mais pertinente e agradável.

Eu, Poeta Errante

Figura 2: França recita no <em>Eu, Poeta Errante</em>, no Festival de Inverno de Garanhuns (2007) (foto: Fundarpe - divulgação)
Figura 2: França recita no Eu, Poeta Errante, no Festival de Inverno de Garanhuns (2007) (foto: Fundarpe – divulgação)

Valdemilton Alfredo de França foi um dos expoentes da poesia corporalmente apresentada da Grande Recife. Dentre as muitas atividades, lançou dois livros: A cor da exclusão, de 1998, e Cafuné, de 2003 (além de Poeminflamado, compilação de toda sua obra, lançada postumamente em 2012).E liderou, por sete anos, o movimento Eu, Poeta Errante, recital aberto e itinerante que acontecia todas as quintas-feiras, de agosto de 2000 até setembro de 2007, pouco antes de seu falecimento.

Em 2000, França começou o primeiro da série, em Olinda. Foram mais de trezentos recitais em dezenas de locais diferentes em Pernambuco e em outros pontos pelo Brasil. O poeta, que já militava pela poesia corporalmente transmitida e socialmente brincada, passou a ter seu compromisso de fé, todas as quintas-feiras, à meia-noite, de encontrar-se com pessoas para recitar e ouvir poemas. Abrangendo desde encontros onde havia apenas ele e poucos participantes, até récitas-festas com dezenas de pessoas.

Poesias nos corpos

Toda semana, alguém diferente hospedava o evento, abrindo sua casa ou bar ou instituição para receber os boêmios. Geralmente em Olinda, mas houve edições na Grande Recife e ainda em Garanhuns, Porto de Galinhas e outras cidades. Com a mudança de lugar toda semana, a conformação do evento sempre tinha uma novidade de encontro para encontro. O que permanecia em todos, era o modelo de roda de poesia, falada sem microfone, trocada no mesmo nível do solo, em formato que tendia para um círculo, com a atenção da maioria voltada para dentro, onde o poeta se apresentava.

Tradicionalmente, uma mesa com muitas frutas e uma garrafa de cachaça à disposição dos convidados. À meia-noite, o dono do lugar abria o sarau com um poema. E então outras pessoas da roda de poesia apresentavam suas performances poéticas. Não havia lista, e o senso do momento que fazia o poeta entrar na roda. França costumava insistir para a pertinência do poema, sua resposta ao que acabou de ser recitado, de forma a construir um diálogo e estimular a brincadeira e o envolvimento de todos. Como uma capoeira, era preciso estar atento, olhando no olho, respondendo criativamente ao seu camará. Além do respeito a todos que declamam seu poema, independentemente do tempo de prática.

Os recitais eram abertos, gratuitos e não competitivos. França era um excelente anfitrião, sempre conseguia deixar todos à vontade. A ponto de pessoas que nunca haviam recitado arriscarem sua voz para fora do peito. Muitos poetas se “formaram” com França. Pelo modo de participação aberta do movimento, a experiência da performance poética neste contexto se aproxima da experimance, que é a obra de arte focada na experiência no receptor, através da intervenção do artista (Gomes, 2007, p. 5). Numa roda de poesia, o espectador pode experimentar a performance de dentro, e França incentivava os presentes a saírem de sua postura defensiva e passiva para outra mais lúdica e ativa.

Subvertendo algumas relações sociais previstas pelo “mercado literário” para a situação de comunicação poética, França reposicionou o foco da cultura na interação da experiência pessoal e coletiva, ao invés da leitura solitária ou solene das livrarias. Fazendo da poesia um estilo de vida: libertário, boêmio, existencialista, contracultural. O Eu, Poeta Errante foi sua obra mais marcante, neste sentido, uma intervenção urbana semanal, happening de poesia trocada.

Figura 3: França interage com público no <em>Eu, Poeta Errante,</em> em Garanhuns (2007). No canto direito da foto, o poeta Miró. (foto: Fundarpe - divulgação)
Figura 3: França interage com público no Eu, Poeta Errante, em Garanhuns (2007). No canto direito da foto, o poeta Miró. (foto: Fundarpe – divulgação)

Cada sarau de poesia tem seu principal organizador, ou grupo de responsáveis. Mas geralmente é uma pessoa (poeta e/ou professor) que coordena o evento. A poesia do evento acaba tendendo a se aproximar daquela do “dono” do recital. Além dessa figura, existe a do apresentador do evento. Muitas vezes é o próprio dono que faz o papel de mestre de cerimônias, mas nem sempre. França era os dois, no caso do movimento que estamos observando. O fato de o sarau ser em formato de roda (com os poetas em círculo e as recitações vindo sem ordem previamente estabelecida) faz o mestre de cerimônias virar mais um mediador entre os poetas, do que um apresentador.

A conformação entre plateia e poetas no formato de roda estimula a participação, a experimance. Neste sentido, há um elemento de jogo na roda, de fluidez, que não se apresenta no outro formato mais usual para recitais, o de lista (que podem ser fechadas antes do evento, ou que resulta das decisões do apresentador do sarau). O formato de lista acontece muitas vezes com a utilização de microfone, outro elemento que altera a performance poética. Como foi feito para multidões, para ser ouvido longe, é um instrumento de poder, que influencia a postura do poeta, afastando-o de quem está próximo, e o aproximando de quem está longe.

É curioso perceber que o microfone acaba tendo uma função de poder próxima da do livro. Ler um livro é um ato de poder, que afasta quem lê de quem está ouvindo. A fala olho no olho da corpoesia memorizada e apresentada busca a aproximação. O livro traz o argumento indiscutível, a conversa de um caminho só, o diálogo abortado ou adiado até que outro texto seja escrito e lido.

No caso do Eu, Poeta Errante, França estimulava a performance sem a leitura (e sem microfone também). Por conta da própria história do uso da cultura impressa contra as matrizes africanas e indígenas, o corpo é colocado como meio privilegiado de contato. O livro é importante, mas não pode ser central, num evento que bole com a poesia e com o corpo dessa forma, essa a mensagem por trás da estratégia.

Até agora falamos da primeira subdivisão desta dialética, a performatividade entre os corpos. Partindo para a performatividade na língua, a poesia apresentada no movimento era muito voltada para a pesquisa com a oralidade, bem-humorada e combatente, principalmente aquela de matriz afro-brasileira. Além de França, muitos poetas de Pernambuco passaram pelo Eu, Poeta Errante, criadores de uma poesia mais das ruas, e vinda das periferias – a poesia marginal de Pernambuco (que, diferentemente da carioca, tem poetas vindos dos subúrbios também – acaba sendo a confluência das duas definições para “marginal”, hoje correntes, a “do Chacal”, e a “do Sérgio Vaz”).

Quanto à terceira subdivisão, a performatividade nos meios de divulgação impressos, às vezes havia venda e troca de livretos alternativos nos eventos. França mesmo vendia livretos seus e as agendas da vida, que fazia com sua editora, a Mão-de-Veludo edições artesanais (junto com a artista visual Sil Beraldo) – mas nada ostensivo. Ao contrário de Miró, que via nos seus livretos e CDs, e DVDs a principal fonte de renda, França vivia em um ambiente mais próximo da economia solidária, morando em Olinda, no Amaro Branco. Portanto, a troca de livros entre os autores era igualmente comum, neste meio de impressos de baixo custo de edição (livretos, zines, cartões, camisetas). Quanto à divulgação dos locais dos eventos a cada semana, França confiava no “Correio Nagô”, como ele definia: a informação passada boca a boca em Olinda ou pelos ambientes boêmios e artísticos de Recife.

Corpos nas cidades

Compreender um sarau a partir das imagens que nele aparecem da cidade que o abriga é jogar uma luz sobre a construção, manutenção e reinvenção das identidades deste lugar, na poesia. Através de narrativas e crônicas, a poesia que faz a descrição da cidade e de seu usufruto (ou sofrimento) é recorrente entre os autores que o frequentavam. Podemos dizer que havia principalmente muitos autores da chamada poesia marginal recifense (mencionada acima) – junto com uma infinidade de outras pessoas, tão importantes quanto, que faziam poesia sem veleidades maiores. Geralmente, a poesia do coordenador do evento é uma tradução, parcial mas significativa, da “média” da poesia praticada naquele evento. A poesia de França é um modelo, nesse sentido.

A oralidade dessa poesia faz dela mais concreta – com citações expressas a partes da cidade, e eventos recentes de sua história. França, por exemplo, tem poemas comentando mudanças urbanas de Recife e Olinda, como quando cercaram de grades o campus da UFPE (“Desengradem as cidades”), ou dizendo da situação de Olinda, todo o ano, após a quarta de cinzas (“Olinda vai mal”). Miró da Muribeca, frequentador do recital também, tem um poema que reflete bem esta materialidade referencial da cidade:

Sem chance

Tem horas que você olha em volta da
janela de um ônibus,
Os outdoors te olhando,
As mulheres sem juízo nas calçadas de
restos de feira.
Mastigando pimentão podre
Um vermelho rasgando o céu da cidade de
Recife, um pouco antes das seis da tarde.
Lotadas loterias e padarias.
Deus foi perfeito em não deixar nenhuma
chance pro homem.
Seja no Restauração ou no Santa Joana.
(Miró, 2006, p. 21)

O verso final só faz sentido para quem conhece Recife. São dois hospitais, um de cada lado da mesma rua. O Hospital da Restauração é o maior dos públicos, e precário. O Santa Joana está entre os mais caros de Recife e tem até heliponto. A referência concreta à cidade e ao seu cotidiano é uma marca desta corporalidade. Dessa forma, os poetas usam a cidade como um repertório comum – tanto geográfico, quanto cultural e social.

Além da sociocrítica desse protagonista descrito nos poemas dos autores que o frequentavam, o movimento mesmo se deslocava pela cidade. O Eu, Poeta Errante, desde seu nome,era itinerante, trazendo outra noção de territorialidade. A movimentação do sarau diz muito – realizado em casas e bares de Olinda, mas não restritivamente – pelo contrário, com abertura a visitas em outros lugares. Era uma encruzilhada ambulante, esticando a compreensão que comentamos anteriormente. Ressacralizando o chão de cada lugar, com poesia e cultura. Assim, tinha funções pedagógicas, terapêuticas, recreativas e políticas.

Nesse sentido, por fim, é ainda interessante observar que um sarau geralmente não existe sozinho. Existem outros lugares onde os criadores se encontram. Dessa forma, em função dos percursos dos poetas e do encontro em lugares diferentes dos mesmos criadores, se constrói um repertório específico dos grupos. Onde, por outro lado, o recital se destaca por alguma especificidade relacionada à cidade e à cultura do lugar, assim como o próprio criador. O olhar deste que recita, mais sua experiência e seu estilo, também são relacionados a como a cidade é descrita, usufruída e enfrentada.

Cidades nas poesias

A movimentação semanal do Eu, Poeta Errante era um manifesto ambulante de uso da cidade: direito de existir transitando, circulando. Em vez da rigidez da defesa de um mesmo território, a valorização do movimento e da troca – para que todos os lugares sejam de todos. Como muitos dos outros saraus, o trauma da exclusão social, étnica, econômica é um dos motores da apropriação da cidade. E é necessário fazer a informação circular, com qualidade, entre as pessoas, e mantê-las em contato. Assim, o evento funciona também como terapia coletiva e manifesto político, com desdobramentos no local e na cultura do local. Além de servir de “revitalização” para os participantes – servindo de lugar de socialização e articulação.

Quando observamos os moldes em que o movimento criado por França se configurou, é possível enxergar traços da ascendência africana. Leda Maria Martins descreve a maneira como algumas culturas afro-descendentes compreendem a arte:

Pela performance, o negro apropria-se espacialmente de territórios geográficos simbólicos, semantizando a cartografia brasileira com os significantes estéticos, religiosos, expressivos, filosóficos e cognitivos africanos. […] Na enunciação performática, em sua moldura cênica, o narrado transmuta-se no dramatizado e o tema do deslocamento mascara-se em várias faces: a travessia da África às Américas, a substituição da morte (escravidão, silêncio, imobilidade) pela vida (liberdade, resistência, voz e movimento) (Martins, 2000, p. 77-78).

“Liberdade, resistência, voz e movimento”. Gerando e difundindo experiências e discursos que se contrapõem à exploração do espaço urbano em favor dos interesses das classes dominantes (que são, estatisticamente, etnias dominantes). Intervenções urbanas de baixo impacto e alta capacidade de troca existencial, todas as semanas.

Sua posição contra o meramente comercial, sua cosmovisão dos processos poéticos e literários, refletiram na expressão completa do evento. Poesia tridimensional, inflamada de revolta e força. Com sede de desmontar o maquinário perverso que sustenta cada privilégio. Concordando com Muniz Sodré, partindo da materialidade da história real, porque:

O euroculturalismo e a educação escolar voltam as costas a tal realidade [a da maioria] instalada na paisagem circundante, não por falta de tematização do problema, mas pelas próprias concepções que lhes servem de fundamento e pelos lugares discriminatórios que ocupam no modo de organização social. […] É forçoso, pois, levar em conta que se exasperam progressivamente as diferenças de modo de existência entre as zonas de habitat no interior da metrópole. A homogeneização operada pelos meios de comunicação e por outros equipamentos urbanos desconhece os focos catastróficos da pobreza ou de sua obscena contigüidade com as zonas abastadas. A fricção social entre incluídos e excluídos (a novíssima face da luta de classes) assume foros violentos, variando de intensidade segundo a diversidade dos territórios (Cabral, 1996, p. 88-89).

Colocar o dedo nas feridas para apontar essas contradições foi um dos papéis que França procurou exercer, através de sua poesia. Ajudando no trabalho de desconstrução da ideologia que mascara, confunde e mantém cada específica exploração. Fazendo o que podia para acelerar o processo de que seu poema, que encerra esse percurso, fala:

Aumenta aos poucos
O grupo que está à porta
As mãos antes vigorosas
No trabalho ou na prece
Agora se fecham em punhos
Feito flor que recrudesce
ao botão
Murmurejam pragas
 Entre as orações
  E assim retiram
   um a um
Os tijolos do edifício
(França, 1998, s/n).

Conclusão

É necessário ampliar a interpretação “literária” do fenômeno da poesia performativa. Estes poetas falam a partir de um lugar específico que importa na compreensão do discurso. E transformam a sua cidade em linguagem, adicionando relevância maior ao contexto local da comunicação poética, a ponto de se pedir traduções aqui e ali para quem não é do lugar (como com o poema de Miró, “Sem chance”). Por fim, fazem da fala uma morada e um veículo, por onde convivem e sustentam os movimentos sociais e culturais de que fazem parte. A poesia falada nesses eventos têm sutilezas que a observação crítica grafocêntrica tem muita dificuldade em compreender.

Essa juntada de observações é uma renovada tentativa de aproximação ao tema, buscando partir de uma perspectiva mais sensível ao que essa poesia possui de mais especial e específico. Surgiu da impressão de que mesmo os estudos literários que aceitam a performatividade da poesia e sua corporalidade ainda partem de pressupostos característicos da cultura tipográfica.

Mesmo Zumthor, quando fala de performance, pensa a partir da relação um a um, ou seja, um emissor e um receptor. Esse modelo um a um é o modelo do livro. Quando observamos a descrição que deu à performance, em Introdução à poesia oral, fica clara tal conformação:

A performance é a ação complexa pela qual uma mensagem poética é simultaneamente, aqui e agora, transmitida e percebida. Locutor, destinatário, circunstâncias (quer o texto, por outra via, com a ajuda de meios linguísticos, as represente ou não) se encontram concretamente confrontados, indiscutíveis (Zumthor, 2010 p. 31).

Um recital de poesia nunca acontece em dupla, mas em três ou bem mais participantes. E escutar e assistir ao poema apresentado junto com outras pessoas, faz a mensagem ter outras conotações. A troca de poesia falada entre pessoas pode ter muitos formatos, mas em todos eles o lugar em que acontece o evento e a maneira como os participantes se organizam e interagem são de fundamental importância. Tão importantes que fundam poéticas próprias desses encontros. Poéticas que demandam novas abordagens da crítica, para que sejam mais bem compreendidas.


* André Telles do Rosário é pesquisador de Programa Avançado de Cultura Contemporânea, onde realiza estudos sobre o impacto dos novos meios eletrônicos na performance poética contemporânea, sob a supervisão de Heloísa Buarque de Hollanda, com financiamento do CNPq.

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