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Da fronteira ao originário: estranheza e familiaridade no romance – Relato de um certo Oriente | de Daniela Birman

“E foi atirado para sempre àquele lugar intermediário […].”
Salman Rushdie

Introdução
Um estranho e pequeno peixe, de olhar cindido, é objeto de um breve diálogo desdobrado no conto “A casa ilhada”, de Milton Hatoum.1 Neste, o narrador nos relata a cena em que admirava tal peixe, no aquário do Bosque da Ciência, em Manaus, quando um estrangeiro se dirigiu a ele: “Então eu soube que o tralhoto, com seus olhos divididos, vê ao mesmo tempo o nosso mundo e o outro: o aquático, o submerso”2, nos conta ele. Encontrados na região amazônica, tais peixes são comparados pelo escritor manauara aos seus narradores romanescos.3 Com efeito, em seus três romances o autor criou personagens que podem ser caracterizados como fronteiriços, situados num posicionamento limítrofe: entre a família e fora desta, a cidade e seu exterior, entre dois tios, ou entrepai e filho em extremo conflito.4 E esta localização, segundo buscaremos expor ao examinarmos o olhar que norteia a narrativa de Relato de um certo Oriente,5potencializa a capacidade de enxergar o próprio universo com olhar estrangeiro. A visão do narrador-fronteiriço, nesse contexto, pode ser aproximada daquela do tralhoto. Citamos a comparação feita por Hatoum:

É como se fosse aquele peixe da Amazônia, o tralhoto […]. Ele vive na superfície, tem um olhão e metade do olho fica para fora, metade para dentro. Vê o céu e vê a água, as profundezas. É esse olhar duplo, do interior e do exterior, que é importante para esse tipo de narrador.6

Neste artigo, enfocaremos a posição limiar ocupada pela narradora do Relato em diversos espaços e grupos sociais: na família que a criou, a qual integra na condição de filha adotiva; em sua cidade, da qual partiu há mais de quinze anos; e em seu país natal. Buscaremos expor de que modo o posicionamento desta narradora, personagem responsável pela reunião e ordenação de todas as vozes do romance, a levará a se defrontar com a ausência de uma utópica origem7 e a se deparar com a camada do originário.8 Nesta, ela desnaturalizará o lugar que ocupa em sua família, verá sua cidade como marcada pela heterogeneidade e aprenderá ser perpassada por construções múltiplas e pela contingência. Procuraremos mostrar ainda como essa posição característica, que implica um esforço produtivo no sentido de demarcar seu espaço na sociedade, na casa ou na cidade em que se mora, é capaz de levar à indagação sobre os limites e as possibilidades de se contar uma história. Afinal, quem sabe que seu lugar no mundo é construído, e não dado, pode sentir como sua voz também o é; perceber que sua distância em relação ao objeto narrado é variável e, consequentemente, sua visão e as formas como ele o afeta.

Posição limítrofe
A narradora anônima do romance de estreia de Milton Hatoum é uma figura ao mesmo tempo familiar e estrangeira em sua cidade natal, Manaus, a qual visita após quase vinte anos de ausência e de onde escreve seu relato a partir deste olhar capaz de estranhamento e intimidade. O livro que lemos constitui, pois, uma longa carta redigida ao seu irmão, na qual ela conta sua passagem pelo espaço da infância deles e transmite a triste notícia da morte de Emilie, matriarca da família libanesa na qual os dois cresceram. Mas não é somente em Manaus que ela ocupa esta posição fronteiriça. Na casa de sua infância, seu lugar também é limiar. Ela faz e não faz parte da família de Emilie, ou pelo menos possui um estatuto diferente de seus outros membros, pois, ao lado de seu irmão, foi adotada pela matriarca. O lugar da principal instância organizadora do Relato é ocupado, portanto, por uma figura que receberá contornos mais precisos e fortes no segundo romance de Hatoum, Dois Irmãos: a do agregado da família, personagem emblemático da nossa sociedade e presente em obras seminais da literatura nacional.9

Além de estar associado ao afastamento da cidade natal e à condição de filha adotiva, o olhar fronteiriço de nossa narradora também pode ser relacionado ao estatuto limiar da nacionalidade desta: nem inteiramente brasileira nem estrangeira. Com efeito, ao apontar o caráter limítrofe da narradora do Relato e do personagem André, de Lavoura arcaica, Sarah Wells ressalta o fato de ambos pertencerem à segunda geração de imigrantes, nascida no país de destino de suas respectivas famílias. Ou, como ela escreve, os dois são “parcialmente definidos por seu estado intermediário: nem nascidos aqui nem inteiramente lá”.10

Segundo a autora, para tais personagens, a história de migração de seus familiares, e as rupturas que estas implicam, ao mesmo tempo em que não podem ser esquecidas, não são priorizadas em suas experiências. Desta forma, “a nova pátria não é de todo nova para membros da segunda geração. Tampouco podem eles recriá-la como bem entenderem. O solo pode não ser construído com gerações de antepassados, mas também lhes é vedado buscar em outro espaço sua realização”.11 Nesse sentido, o fato de ter nascido no lugar em que se cresceu, e no qual é possível permanecer, não garante uma relação estável com a noção de identidade, pois a construção desta não pode excluir o vínculo com o país de origem e a cultura de seus pais nem aceitar integralmente este país e cultura como suas únicas “pátrias”. Pelo contrário. O pertencimento à segunda geração de imigrantes é entendido aqui como fator agravante do caráter fronteiriço de nossa narradora.

Mas vejamos como a própria personagem enuncia e problematiza sua condição. Embora seja agregada da família, ela acredita ser tratada exatamente como os outros membros, enunciado que, ao negar sua diferença, já o torna suspeito. Ao falar de seu “avô”, o marido de Emilie, por exemplo, a narradora comenta:

Foi ele quem me ajudou a sair da cidade para ir estudar fora, e além disso nunca se contrariou com a nossa presença na casa, desde o dia em que Emilie nos aconchegou ao colo, até o momento da separação. Desfrutamos os mesmos prazeres e as mesmas regalias dos filhos, e com ele padecemos as tempestades de cólera e mau humor de um pai desesperado e de uma mãe aflita. Nada e ninguém nos excluía da família, mas no momento conveniente ele fez questão de esclarecer quem éramos e de onde vínhamos.12

Ao citarmos este trecho do livro, chamamos a atenção para o fato de ela declarar seu estatuto igualitário em relação aos outros integrantes da família, declaração que só se faz necessária num contexto em que a igualdade de tratamento coexiste com certa distinção. Nesse caso, a igualdade não pode ser naturalizada e calada, mas deve ser enunciada como resultado de uma conquista ou da generosidade e bondade alheia (evidentes na frase “nunca se contrariou com a nossa presença na casa”). Nesse contexto, podemos supor que, ao se deparar com o fato de que sua condição no interior da família não é dada, a personagem se defronta com o caráter contingente de sua entrada na casa em que cresceu – dependente de diferentes fatores, como a receptividade positiva da família adotiva, a impossibilidade de sua mãe de criá-la ou a vontade desta em entregar-lhe para adoção –, de seu próprio lugar na casa e, quem sabe, na sociedade.

Por meio da diferença em relação ao outros membros da família, que desnaturalizasua condição no interior desta, faz-se presente no romance uma importante temática vivida por nossa narradora: a questão da ausência, em seu modo positivo, de uma procedência que ela poderia utopicamente tomar (e desejar) como umaorigem. Ao citarmos o termo origem aqui, o entendemos como um utópico solo fundador, lugar primeiro, inicial, que deteria a verdade e a essência dos que dali se originaram. Apoiamo-nos, assim, no sentido do termo exposto por Foucault em “Nietzsche, a genealogia e a história”.13

Nesse contexto, o caráter contingente do lugar de nossa narradora no mundo pode lhe apontar como seu modo de viver, pensar e sentir não são inatos nem necessários e que, para além de seu universo, há sempre um fora. Ao enunciarmos aqui este termo, de inspiração claramente blanchotiana, restringimos seu sentido àquilo que é exterior a um determinado ambiente, que, como qualquer espaço-tempo, limita de um determinado modo as vivências, as reflexões e os discursos possíveis de serem produzidos em seu interior.

Supomos ainda que nossa narradora, ao se deparar com a ausência de origem, defronta-se com a camada do originário, aquela que, de acordo com a descrição de Foucault, indica que não possuímos um solo fundador nem somos contemporâneos do que nos faz ser, visto sermos determinados por construções mais antigas do que nós, com temporalidades próprias – as quais podemos, ilusoriamente, supor como fixas e naturais, acreditando no mito da origem. Essa camada do originário é assim apresentada em As palavras e as coisas:

[…] o originário no homem é aquilo que, desde o início, o articula com outra coisa que não ele próprio; é aquilo que introduz na sua experiência conteúdos e formas mais antigas do que ele e que ele não domina; é aquilo que, ligando-o a cronologias múltiplas, entrecruzadas, freqüentemente irredutíveis umas às outras, o dispersa através do tempo e o expõe em meio à duração das coisas. […] O que se anuncia no imediato do originário é, pois, que o homem está separado da origem que o tornaria contemporâneo de sua própria existência.14

Neste caso, nossa narradora perceberia que, embora constituída e atravessada pelas histórias, pelos hábitos e pelos afetos de sua família adotiva, esta não constitui um fundamento de seu modo de ser, visto que sua entrada nela é marcada antes pelo acaso do que pela necessidade. Dessa maneira, ela não pode nem se desvincular inteiramente da influência da esfera familiar nem acreditar como natural e obrigatória sua inserção numa história linear e contínua deste grupo de pertencimento. E se ela consegue se ver como fruto de construções diversas, também poderá assim enxergar seus próximos. Além disso, ao se defrontar com o desmoronamento da ideia de origem, nossa personagem terá acesso ao pensamento e ao desejo de liberdade, que inclui a possibilidade de se abrir para outros modos de ser e viver, de escolher outras máscaras.

A temática da ausência de origem e da entrada na camada do originário também transparece no fato de que ela não possui uma cidade natal onde se sinta inteiramente em casa – e para a qual, portanto, possa voltar como quem retorna aomesmo, o que lhe restituiria ou lhe confirmaria sua identidade, essência e verdade. Certamente, nem ela nem ninguém tem acesso a tal cidade, mas esse fato pode se tornar mais evidente para aqueles que se afastaram de onde nasceram e, ao retornar, percebem como o lugar de regresso se distanciou dele mesmo (e como o que foi ontem já não é mais).

Com efeito, nossa narradora reconhece, logo no primeiro capítulo do livro, antes de começar a lembrar e contar sobre seu tempo de menina, que a cidade visitada não existe como objeto real, mas é produto da imaginação (e, podemos supor, do afeto e do desejo). Trata-se, nesse caso, da Manaus evocada pela rememoração de sua infância, cuja fundação não coincide, portanto, com o tempo usual da história, mas refere-se àquele da memória:

Antes de sair para reencontrar Emilie, imaginei como estarias em Barcelona, entre a Sagrada Família e o Mediterrâneo […], quem sabe se também pensando em mim, na minha passagem pelo espaço da nossa infância: cidade imaginária, fundada numa manhã de 1954…15

Ao iniciar o livro com este ato de recordação, nossa narradora indica que a Manaus que busca não é (ou não apenas) aquela a qual encontra como presença, mas, sobretudo, a de seu passado. Qualquer viagem de retorno se torna, nesse contexto, impossível, visto que a infância não se fará de novo presente e a cidade não voltará a ser o que era. Contudo, através dos seus passeios pelas ruas, do encontro com diferentes personagens, cores e cheiros da Manaus atual, a paisagem e os fatos da infância podem ser evocados e construídos. Nesse contexto, o que nossa narradora poderá fazer, tal como ela anuncia, é declarar a dimensão imaginária da passagem por esse espaço que, para ser visitado, deverá ser rememorado.

Hatoum tem plena consciência da existência desta barreira intransponível entre o presente e o passado, não acreditando, pois, em nenhum projeto de restituição deste. O autor conta em entrevista que, ao voltar para Manaus, em 1984, após quase vinte anos fora da cidade16, ele “sentia falta de algumas paisagens e vozes da infância, estas coisas que constituem a nossa pátria simbólica”.17 No entanto, apesar da saudade (e das possíveis idealizações e devaneios a que esta pode levar), ele não parecia ter ilusões quanto a qualquer plano de retorno à terra de sua meninice: “Sabia que iria encontrar uma cidade devastada, e que toda busca de um paraíso é infrutífera, pois só há paraísos perdidos”.18 Em outra entrevista, porém, a história contada não é exatamente a mesma. Hatoum afirma, pois, ter retornado a Manaus “em busca de minhas primeiras paisagens, que não encontrei mais”.19Porém, independentemente das expectativas alimentadas na época, anterior à conclusão e publicação do Relato, o escritor hoje sabe que não há retorno à cidade encantada da infância. Mais do que isso. De volta a Manaus, não escapa de certo sentimento de dépaysement. É assim, por exemplo, que se refere à enxaqueca que o abate desde a infância “como uma metáfora de um mal-estar mais profundo: sentir-se exilado e estranho na própria terra natal”, segundo escreveu Carlos Graieb em reportagem sobre o autor.20

O estranhamento em relação à própria cidade também se faz presente no sexto capítulo do Relato, no qual a narradora nos conta a visita realizada a um bairro cujo acesso lhe fora proibido quando criança, vivenciando a ameaça, o medo – e, acreditamos, o abalo de se deparar com a diferença num mundo que julgava ser o “seu” e no qual ilusoriamente se supõe somente o encontro com a identidade. Como Maria Zilda Ferreira Cury comenta, referindo-se a esta passagem do romance, “o espaço de origem torna-se estranhamente desconhecido. A narradora transforma-se em estrangeira, suscitando um olhar de estranheza dos outros nativos, pondo […] em ‘suspeição’ a inteireza identitária”.21 Reproduzimos, pois, o trecho em questão:

Atravessei a ponte metálica sobre o igarapé, e penetrei nas ruelas de um bairro desconhecido. Um cheiro acre e muito forte surgiu com as cores espalhafatosas das fachadas de madeira, com a voz cantada dos curumins, com os rostos recortados no vão das janelas, como se estivessem no limite do interior com o exterior, e que esse limite (a moldura empenada e sem cor), nada significasse aos rostos que fitavam o vago, alheios ao curso das horas e ao transeunte que procurava observar tudo, com cautela e rigor. Havia momentos, no entanto, em que me olhavam com insistência: sentia um pouco de temor e de estranheza, e embora um abismo me separasse daquele mundo, a estranheza era mútua, assim como a ameaça e o medo. E eu não queria ser uma estranha, tendo nascido e vivido aqui.22

Embora o enunciado não nasça de uma visita a um lugar familiar, o desconforto de nossa narradora em sua cidade natal aparece de modo bastante evidente no seu desejo em não ser uma estranha ali. Pois, podemos supor, caso ela se sentisse em Manaus como em casa, de acordo com o sentido dado pelo senso comum a essa palavra, o estranhamento da visita a um lugar desconhecido poderia ser experimentado por meio da transformação apenas do outro no estrangeiro, naquele que difere dela – e na exclusão daquele espaço do território da “sua cidade” (que poderia, desse modo, ser declarada “partida”). Esta seria, pois, a atitude decorrente de um olhar em busca do exótico que, independentemente da atração ou do medo despertados pelo Outro, o mantém à distância (mesmo quando se aproxima dele e acredita entabular um diálogo). O equívoco, nesse caso, parece residir na ideia e no sentimento de que em casa só nos deparamos com o conhecido ou homogêneo. E que, caso o diferente surja, este só pode ser estrangeiro e, consequentemente, pertencer a outro espaço, denominado por expressões como as de “cidade proibida”23 ou “outro lado da cidade partida”.

O olhar de nossa narradora não realiza, contudo, esta operação de classificação e exclusão. Com efeito, em vez de enfatizar a estranheza daquele que é diferente dela, e em relação ao qual ela sente ameaça e medo, ela ressalta sua vontade em não ser uma estrangeira ali, potencializada pelo fato de estar na sua cidade natal – ou seja, a imagem do lugar aonde nasceu e cresceu abrange espaços que não a incluem, onde ela não é reconhecida pelos outros, não os reconhece e nem experimenta nenhuma espécie de acolhimento.

No lugar da origem como fundamento temos, portanto, a camada do originário, indicando-nos que a cidade natal (em seus territórios familiares e estrangeiros) é atravessada e marcada por ordens e construções múltiplas, as quais não dominamos nem muitas vezes temos acesso. Apenas com a substituição da origem pelo originário, substituição que desvincula nosso lugar de procedência das noções de identidade e essência, nossa ideia da cidade de onde viemos poderá incluir espaços e indivíduos que não reconhecemos e com os quais não nos identificamos. Será, portanto, a partir da defrontação com esta camada que nossa narradora poderá perceber Manaus como atravessada pela heterogeneidade e pela diferença – noções incompatíveis com aquelas comumente aceitas de solo, raiz, lar ou origem e capazes, quando lidas pela ótica dessas últimas ideias, de gerar ameaça e medo.

A casa materna
Mas não é apenas a cidade natal, a infância ou a família que podemos confundir ingênua ou apressadamente com a noção de origem. A ausência desta, e a experiência do caráter inalcançável de sua busca, também serão indicadas no romance por meio da distância entre nossa narradora e sua mãe biológica, a quem ela viu apenas uma vez quando criança. Surge aqui, porém, uma importante diferença. Como pretendemos mostrar, nossa narradora nunca confundiu a figura materna com uma ideia positiva de origem e de fundamento. Ela parece antes ter buscado, obstinadamente, enxergar a ausência da figura da mãe, ver a origem como ausência, em sua dimensão negativa, experiência radical que consideramos importante indicar.

Com efeito, embora se dirija à casa materna quando chega a Manaus, nossa narradora não planejava encontrar a mãe por lá. Como ela mesma nos conta: “Já passava das onze horas quando cheguei na casa que desconhecia. Ninguém foi avisado de que eu chegaria aquela noite, mas eu sabia que, na ausência da mãe, a empregada ficaria sozinha na casa construída próxima ao sobrado onde Emilie morava.”24 E no final do romance, a personagem nos revela ter conhecimento da localização materna naquele momento: “Ela (sua amiga Miriam) soube que minha mãe ia viajar pela Europa e passaria por Barcelona para te visitar. Minha história com ela é a história de um desencontro.”25

Neste caso, contudo, o “desencontro” parece ter sido planejado. Por que, ao retornar a Manaus, ela volta à casa materna, e não à de Emilie, sabendo que sua mãe, porém, não estará lá, mas sim com o irmão em Barcelona? Que ausência perturbadora é essa que ela parte à procura? Citando suas próprias palavras, podemos dizer que ela buscava o encontro com o impossível, que nunca se materializará: “Emilie nunca me escondeu nada, como se me dissesse: tua mãe é uma presença impossível, é o desconhecido incrustado no outro lado do espelho.”26

E ela enfatiza o vazio existente na casa materna assim que entra nos aposentos localizados em seu andar térreo, no dia seguinte àquele de sua chegada. Dessa forma, ao nos expor os objetos “orientais” reunidos no ambiente, e o reflexo destes num espelho que produzia “uma perspectiva caótica de volumes espanados e lustrados todos os dias”27, ela acrescenta: “como se aquele ambiente desconhecesse a permanência ou até mesmo a passagem de alguém.”28

Como sabe de antemão que a casa estará repleta da ausência da mãe, podemos concluir que esse impossível que ela procura não consiste em algo positivo: algo que existe, ou existiu, mas ela não poderá encontrar (sua mãe, por exemplo, ou outro lugar de “procedência”, como sua cidade natal), referindo-se antes à experiência de não se alcançar, de se buscar uma ausência que nunca surgirá na sua concretude, tal como a morte. A sua busca, assim, é atravessada por uma impossibilidade fundamental e sua viagem de retorno é interminável.

Nesse contexto, o seu afastamento possui um caráter radical, já que não existe um lugar que faça com que nossa narradora sinta-se plenamente em casa; que dê a sua vida um local próprio na ordem do universo, com um sentido correspondente e, portanto, uma identidade sólida, uma subjetividade estável. E esse sujeito “desenraizado” (termo que discutiremos logo abaixo), que estranha o mundo aonde mora e aquele de onde veio, poderá notar com facilidade como as narrativas, as crenças, os hábitos e as identidades são construções. Mas ao mesmo tempo em que percebe isso, sentirá que sua voz, e aquela que reproduz dos outros, também o são.

Exílios
Gostaríamos de enfatizar algumas conclusões, refazendo em parte o caminho percorrido e introduzindo novas noções. A primeira apoia-se na ideia de que o “desenraizamento” não significa aqui somente uma distância em relação à terra natal, que desaparece com a simples volta ao país “de origem”. O imigrante, migrante ou, em última instância, qualquer indivíduo, pode também experimentar uma perda radical da pátria e do sentimento de pertencimento a um país, uma cultura, uma língua. Por esta razão, consideramos delicado utilizar, sem o devido cuidado, termos como “desenraizamento” ou “exílio” neste sentido e contexto específicos, pois estes supõem a existência de raiz, pátria, solo. E, se o que se quer ressaltar não é a distância da cidade ou do país natais, mas justamente a impossibilidade de se sentir em casa, em qualquer lugar do mundo, o emprego de noções como estas deveria ser acompanhado da ressalva de que esta “casa” ideal inatingível pode ser vivida, de modo intenso, como perdida, porém não apenas não existe no presente como nunca existiu.

Esta concepção de perda radical da terra natal é aquela priorizada por Hatoum não apenas na construção da personagem-narradora do Relato, mas também na interpretação de sua própria enxaqueca como metáfora da experiência de exílio e estranhamento em terra natal29 e na sua descrição daquele que se muda para outro país. Para o autor, com efeito, “o imigrante é aquele sujeito que diz: ‘Percebi que não tenho nenhum lugar para ir e não tenho também nenhuma razão para ir para algum lugar.’”30

É também de acordo com essas considerações que compreendemos o vínculo traçado por Lukács entre romance e exílio, quando este se refere à forma da nossa grande épica como “expressão do desabrigo transcendental”.31 Entendemos, assim, o vínculo criado pelo teórico húngaro para caracterizar o romance como uma enunciação da perda da ideia de origem e de fundamento – e, consequentemente, das tradições estáveis, dos sentidos e valores dados. No entanto, consideramos que, embora outrora se impusesse como absolutos, a “pátria transcendental” ou, citando outras expressões do léxico de Lukács, o mundo como “totalidade-homogênea”, o “sentido imanente à vida”, sempre resultaram de construções, de modo que sua perda é antes signo do desmoronamento destas do que do fim de uma presença dada. Isto não impede, claro, que esta “perda” seja vivida com a nostalgia de quem foi expulso do paraíso ou com os festejos daquele que saúda, enfim, a liberdade.

Ao diferenciarmos os “exílios” aos quais nos referimos também impedimos uma perigosa generalização da questão. Evitamos, desse modo, banalizar um problema político de importante dimensão no mundo contemporâneo: aquele das massas de refugiados, expatriados e imigrados formadas nos séculos XX e XXI. Evidentemente, as duas formas de desterramento se entrecruzam e se influenciam de diversos modos. Como afirmamos, aquele que deixa sua terra natal, segundo sugere a criação da personagem de nossa narradora, pode se deparar com a ausência de origem e com o estranhamento dos seus supostamente “iguais”. Da mesma maneira, num mundo de fronteiras móveis, ou, segundo o exame de Lukács, num universo que teria perdido a totalidade e a homogeneidade, nos defrontamos com a existência do fora. Dessa forma, a diferenciação aqui defendida não se acredita pura, reconhecendo sua precariedade. No entanto, ao apontarmos o estranhamento radical de nossa narradora e enfatizarmos sua possibilidade de ser vivido por qualquer um de nós, corremos o risco, identificando-o a uma ideia genérica de exílio, de transformar a dor dos indivíduos integrantes das massas acima referidas naquela de qualquer um, o que significa, em termos de força política, na de ninguém. Concordamos, nesse contexto, com Said quando este afirma que

para tratar o exílio como uma punição política contemporânea é preciso mapear territórios de experiência que se situam para além daqueles cartografados pela própria literatura de exílio. Deve-se deixar de lado Joyce e Nabokov e pensar nas incontáveis massas para as quais foram criadas as agencias da ONU. […] Negociações, guerras de libertação nacional, gente arrancada de suas casas e levada às cutucadas […] para enclaves em outras regiões: o que essas experiências significam? Não são elas, quase que por essência, irrecuperáveis?32

Após essas ressalvas, podemos retornar às nossas conclusões e ao exílio radical de nossa personagem. Gostaríamos de ressaltar o movimento da passagem, que acreditamos ter sido realizado por nossa narradora, do posicionamento limiar à defrontação com a ausência de origem e com a camada do originário. Como vimos, ao ocupar uma posição fronteiriça na família em que foi criada e na cidade em que nasceu e cresceu, ela estranhou a si mesma, ampliou as fronteiras da Manaus visitada e “visitável” e desnaturalizou sua condição na casa da infância. A posição fronteiriça, nesse caso, impulsionou o enfrentamento desta camada, a partir do qual podemos questionar as ordens em que vivemos e que nos constituem. E nossa personagem, com efeito, viveu a experiência de que, embora formada por esses antigos hábitos e vivências em comum, nenhum deles contém uma verdade ou essência sobre si mesma, de modo que ela pôde se estranhar, transgredir limites e ver-se como fruto de contingências e acasos aos quais não domina e muitas vezes não tem nem sequer acesso.

No entanto, se ela não possui uma identidade primeira, qual voz deve adotar para nos contar a história? Esse posicionamento fronteiriço, ao exacerbar o descentramento de nossa narradora e levá-la a se deparar com a constelação de contingências, historicidades e acasos que a atravessam, a impelirá também a questionar e a refletir sobre os limites de se contar uma história.33 Neste caso, ela se defrontará com o fato de que nem sua fala nem aquelas que nos restitui são naturais, que toda citação é uma forma de apropriação e os sentidos constituem construções.

E será através do embate entre, de um lado, o desejo de relatar sua história e, de outro, a impossibilidade de encontrar uma voz natural e de reproduzir de forma “adequada” aquela dos outros, que ela optará por uma escrita auto-reflexiva, marcada pela renúncia às noções de verdade e de totalidade e pela assunção de seu caráter inventivo e rememorativo. Assim, ao concluir, ao menos aparentemente, sua carta ao irmão, a narradora nos conta que voz é essa que ela buscou criar para resgatar sua infância, perdida no passado, e transmitir, à distância, uma terrível notícia: a morte de Emilie. Ela procurou, pois, reinventar um tom familiar e esquecido, incorporando nele, de modo ativo, as lacunas deixadas para trás: “Era como se eu tentasse sussurrar no teu ouvido a melodia de uma canção seqüestrada, e que, pouco a pouco, notas esparsas e frases sincopadas moldavam e modulavam a melodia perdida.”34

 

* Daniela Birman é jornalista e doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Fez pós-doutorado em Estudos Culturais no Programa Avançado em Cultura Contemporânea (PACC/UFRJ).

NOTAS

1 HATOUM, Milton. A casa ilhada. Estudos Avançados, São Paulo, vol. 19, n. 53, p. 325-329, 2005. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ea/v19n53/24097.pdf . Acesso em: 7 out. 2007.

2 Ibidem, p. 325.

3 Cf. BIRMAN, Daniela. Das cinzas à memória. O Globo, Rio de Janeiro, 20 ago. 2006. Suplemento Prosa & Verso, p. 6.

4 Referimo-nos aqui aos seguintes narradores: a mulher ao mesmo tempo estrangeira e enraizada na cidade de Manaus, de Relato de um certo Oriente; Nael, o curumim bastardo que mora numa casa de brancos de ascendência libanesa de Dois irmãos; e Lavo, o órfão criado por dois tios em pé de guerra de Cinzas do Norte. Cf. HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. Idem. Dois irmãos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. Idem. Cinzas do Norte. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

5 A partir de então, poderá ser chamado apenas de Relato.

6 BIRMAN, Daniela. Das cinzas à memória. O Globo, Rio de Janeiro, 20 ago. 2006. Suplemento Prosa & Verso, p. 6.

7 Sobre o conceito de origem, ver FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogia e a história. In: ____. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979. P. 15-37.

8 Sobre o sentido do termo originário aqui empregado, ver FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1987. P. 345-351.

9 Ver o estudo clássico de Roberto Schwarz sobre o tema em Machado de Assis. SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. 5. ed. São Paulo: Duas Cidades/ Ed. 34, 2000.

10 WELLS, Sarah. O improvável sucessor de Nassar: a genealogia alternativa de Milton Hatoum. In: CRISTO, Maria da Luz Pinheiro de (org.). Arquitetura da memória. Manaus: Editora da Universidade Federal do Amazonas/UNINORTE, 2007. P. 63, grifo da autora. Podemos considerar nossa narradora integrante da segunda geração de imigrantes de duas diferentes maneiras: como filha adotiva de Emilie ou como filha “natural” da mulher desconhecida de ascendência árabe, habitante da casa de decoração suntuosa e gosto duvidoso descrita no primeiro capítulo do livro. Neste segundo caso, porém, não possuímos nenhuma prova da procedência de tal mulher. Trata-se, pois, somente de uma hipótese interpretativa.

11 Ibidem, p. 64.

12 HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. Op. cit, p. 20.

13 FOUCAULT, Michel. “Nietzsche, a genealogia e a história”. In: ____. Microfísica do poder. Op. cit., p. 15-37.

14 FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Op. cit., p. 347-348.

15 HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. Op. cit., p. 12.

16 Nascido em Manaus, em 1952, Hatoum viveu nesta cidade até os 15 anos, quando se mudou para Brasília (onde morou nos anos de 68 e 69). Ele passou a década de 70 em São Paulo e depois ganhou o mundo, tendo vivido em Barcelona, Madri e Paris. Após 18 anos fora, retornou a Manaus, onde foi professor de literatura francesa da Universidade Federal do Amazonas. Em 1999, deixou a cidade de novo. Desde então, mora em São Paulo.

17 GRAIEB, Carlos. “Amazônia está à margem da História”, diz escritor. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 8 mar. 1995. Caderno 2, p. D1.

18 Ibidem.

19 CASTELLO, José. Milton Hatoum reclama a volta da indignação. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 14 nov. 1998. Caderno 2, p. D4.

20 GRAIEB, Carlos. Milton Hatoum cria pátria entre dois mundos. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 8 mar. 1995. Caderno 2, p. D1.

21 CURY, Maria Zilda Ferreira. De orientes e relatos. In: SANTOS, Luis Alberto Brandão; PEREIRA, Maria Antonieta (orgs.). Trocas culturais na América Latina. Belo Horizonte: Pós-Lit/FALE/UFMG; Nelam/FALE/UFMG, 2000. P. 172.

22 HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. Op. cit, p. 123.

23 Ibidem, p. 123.

24 Ibidem, p. 164.

25 Ibidem, p. 162.

26 Ibidem, p. 162.

27 Ibidem, p. 10.

28 Ibidem, p. 10.

29 Cf. GRAIEB, Carlos. Milton Hatoum cria pátria entre dois mundos. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 8 mar. 1995. Caderno 2, p. D1.

30 CASTELLO, José. Milton Hatoum reclama a volta da indignação. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 14 nov. 1998. Caderno 2, p. D4.

31 LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. São Paulo: Duas Cidades/Ed. 34, 2000. P. 38.

32 SAID, Edward W. Reflexões sobre o exílio. In: ____. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. P. 48-49.

33 Identificamos nesta passagem do fronteiriço à reflexão sobre nossos limites, realizada pela narradora do romance, a postura integrante da concepção de crítica defendida por Foucault e presente em suas ontologias do presente. Com efeito, em “Qu’est-ce que les Lumières?”, o filósofo defende um ethos filosófico no qual o sujeito romperia com a escolha entre exterior e interior, localizando-se no limiar, de onde examinaria os limites que constituem nosso modo de agir, pensar e dizer – e que, transgredidos, permitirão nossa transformação e o exercício de nossa liberdade. “Parece-me que a questão crítica, hoje, deve ser invertida em questão positiva: naquilo que nos é dado como universal, necessário, obrigatório, qual é a parte do que é singular, contingente e causado por coações arbitrárias”, escreve Foucault. Cf. FOUCAULT, Michel. Qu’est-ce que les Lumières?. In: ____. Dits et écrits IV. Paris: Gallimard, 1994. P. 574.

34 HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. Op. cit., p. 166.