Entrevista
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É preciso falar: Entrevista com Dulce Pandolfi

A professora e historiadora Dulce Pandolfi recebeu a Revista Z para uma corajosa conversa sobre a violência política da Ditadura Militar de 1964-1985 no Brasil. Entre amigos, ela falou da importância, sobretudo neste momento de ascensão da extrema-direita no mundo, da responsabilização dos agentes que promoveram a ruptura democrática, a repressão política e a tortura como método para calar os opositores do regime. “Meu problema não é prendê-los, é reconhecê-los como torturadores. […] Não fazer isso foi muito ruim para a sociedade brasileira, porque dá uma sensação de impunidade muito grande”, defendeu.

Dulce é filha de um professor universitário e crítico literário e cresceu convivendo com a intelectualidade progressista de Pernambuco na época do Governo Arraes. Ingressou na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Pernambuco em 1967 e logo se envolveu com o movimento estudantil. Procurada pela polícia pernambucana, fugiu para o Rio de Janeiro. Foi presa em agosto de 1970 e levada para o DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informações e Centro de Operações de Defesa Interna), no quartel da Polícia do Exército, na Rua Barão de Mesquita, na Tijuca. Nos três meses que esteve ali, foi barbaramente torturada, fatos que relatou em depoimento à Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro em 2013. Ao sair da prisão, voltou a estudar Ciências Sociais, agora na Universidade Federal Fluminense (UFF), e formou-se em 1975. Em 1976, entrou no CPDOC da Fundação Getúlio Vargas, onde atuou até fevereiro de 2018. Em 1981, concluiu o mestrado em Ciência Política pelo IUPERJ (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro) e, em 1981, o doutorado em História na UFF. Dulce foi ainda diretora do Ibase (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas) e é autora, entre outros livros, do clássico Camarada e Companheiros: História e Memória do PCB, editado pela Relume Dumará em 1995. Em 2003, publicou em coautoria com Mario Grynszpan, A favela fala, pela Editora FGV. Hoje, está à frente da Rádio Cidadania, onde se relaciona com o coletivo de vozes de comunidades periféricas.

Foto de Dulce no DOI-CODI em 1970 (Acervo Pessoal)
Foto de Dulce no DOI-CODI em 1970 (Acervo Pessoal)

Italo Moriconi: Você acha que a sociedade brasileira fez o ajuste de contas com o que houve de pior no período da ditadura, que foi a repressão? E como é o seu ajuste de contas? Seu relato é muito impressionante, assim como sua capacidade de resistência, resiliência, para usar essa palavra da moda, e de reinvenção e reinauguração. Como você se situa diante desse ajuste de contas tão parcial?

Dulce Pandolfi: Fico muito honrada com essas palavras do Italo. Às vezes me sinto um duplo – usando uma expressão do Luiz Eduardo –, às vezes parece que não fui eu que passei por aquilo tudo, parece que foi com outra pessoa. Realmente foi uma barra impressionante. Eu faço questão de dizer sempre, quando fui presa, não é que eu não sabia. Não, acho que todos nós que militávamos sabíamos que a barra era muito pesada, que tinha uma tortura estabelecida no Brasil. Então quem estava em organização, assim como eu na ALN [Aliança Libertadora Nacional], sabia que, no dia que fosse preso, seria um massacre, mas a teoria na prática é outra. O negócio é um absurdo tão desumano que chegava naquele limite, enfim… Então foi pauleira mesmo. Às vezes, penso: como é que eu posso estar aqui hoje? E, como você falou, com esperança e com vida. Acho que sou uma pessoa que gosta muito da vida. Isso para mim é até um pouco de mistério. Ouço alguns depoimentos de pessoas que dizem: “Ah, eu queria morrer ali.” Eu nunca tive vontade de morrer na tortura. Tentava me fingir de morta, é diferente. Mas queria viver ao me fingir de morta. “Eu tenho que sobreviver a isso tudo”, pensava. Então, montei uma estratégia de sobrevivência. Eu já contei em alguns depoimentos da tortura. Em algumas horas, achei que ia enlouquecer, porque você sai da tortura e fica ouvindo outras pessoas sendo torturadas, sabendo que vai voltar a qualquer momento. É uma coisa terrível aquela espera.

Lembro de fazer duas coisas na Polícia do Exército: uma era contar os ladrilhos da cela no quartel. Não tinha nada para fazer ali. Acho que era saudável. Inventei também de tirar palhas do colchão. Fazia isso escondida, porque tinha medo de alguém ver. Tudo era proibido, qualquer coisa ou qualquer tentativa de sobrevivência era impedida. Pegava as palhas e fazia tranças, amarrava e amarrava. Depois desamarrava, botava de novo no colchão. Enfim, fui bolando esse tipo de coisa. Quando saí da prisão, contava minhas torturas para todo mundo, era algo meio louco, mas também uma maneira de extravasar. Eu chorava. Lembro da empregada horrorizada comigo. Eu falava tanto que, um dia, denunciei as torturas, falando dos meus castigos, e fui transferida da PE [Polícia do Exército] para o DOPS [Departamento de Ordem Política e Social]. Eu não sabia se ia ser transferida de vez, a gente não sabia de nada, eles eram donos da nossa vida ali. Me levaram para o DOPS e fiquei encantada com o que vi, porque não tinha tortura, a cela era limpa. Foi aí que conheci a Germana Figueiredo, que o Luiz Eduardo conhece. Ela limpava a cela com primor. Quando fui depor, comecei a denunciar as torturas para o cara que estava me interrogando. Aí ele virou para mim e disse: “Você é louca, senhora?”. Eu digo: “Não, por quê?” “Você está denunciando tortura para mim? Então, significa que você não está curada, vai ter que voltar para a PE e apanhar mais para entender que não é assim. Você tem que ficar quieta, tem que responder as minhas perguntas e não denunciar tortura.” Então voltei para a PE.

Uma coisa que me ajudou muito, que falei no primeiro depoimento que dei para o Luiz Eduardo, é que foi muito bom ter voltado a estudar. Havia certo preconceito com o estudo, quer dizer, as pessoas saíam e ficavam naquele gueto dos ex-presos, achando que a universidade era toda vendida. Consegui transferência para a [Universidade Federal Fluminense] Fluminense e, como eu era pernambucana, voltei a estudar sem ninguém saber da minha história, como uma anônima qualquer. Entrar naquele universo foi um choque cultural positivíssimo, porque eu tinha passado um ano e meio presa, vivi um pedaço da clandestinidade em Pernambuco, e cheguei aqui na UFF, onde estava o centro cultural: drogas, homossexualidade, uma esquerda sem estereótipo, de cabelos grandes, o que para mim era então inadmissível. Enfim, era um mundo completamente diferente, que me fez um bem enorme. As pessoas foram me descobrindo aos poucos, até porque o meu caso se tornou público, mas eu já estava bem enraizada na universidade, com novas amizades. Voltar a estudar foi muito saudável, mas voltei apenas porque deu vontade de estudar, e ter caído na Fluminense, que acho que era o melhor curso de Ciências Sociais no Rio na época, foi muito bom. Lembro em detalhes, a gente estudava [Karl] Marx e Lenin e eu ia com o livro encapado porque não tinha coragem de deixa-lo à mostra. Achava aquilo uma loucura, como é que alguém podia estudar Lenin em 1972? Ia tremendo de medo porque tinha processos correndo contra mim e eu podia ser presa a qualquer momento. Mas foi uma experiência que me ajudou muito.

Eu me tornei um case. Atualmente esse é um assunto muito recorrente na minha vida, sou muito solicitada a contar, a falar. Eu sei que meu depoimento [na Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro] foi bombástico. Hoje mesmo, acabei de gravar um vídeo para uma série de televisão sobre a Zuzu Angel. Quem vai ser a âncora é a Rita Von Hunty. Na minha entrevista, claro que perguntaram sobre as torturas etc. e tal. No início, eu contava mais no particular, não queria publicizar porque aquilo também me incomodava um pouco. Lembro que estava na Fundação [Getúlio Vargas] quando fui chamada porque tinha um torturador ligado ao governo do Rio que tinha me torturado barbaramente e depois deu um depoimento terrível na Comissão da Verdade. O Grupo Tortura Nunca Mais tinha acabado de ser montado, estávamos em 80 e pouco, no governo Brizola, era o início da redemocratização, mas ainda ditadura, e me perguntaram se eu topava dar um depoimento sobre como tinha sido torturada por ele no Palácio Guanabara. Eu fiquei em pânico, lembro que me desesperei, tinha televisão, mídia. Como é que eu vou denunciar esse homem de público? Mas também não conseguia não ir. E o pessoal: “É importante, o seu depoimento é chave”, o pessoal queria denunciá-lo, porque ele estava em um cargo de confiança do governo Brizola, imagina! Ele estava no BANERJ [Banco do Estado do Rio de Janeiro], mas as pessoas não sabiam. Realmente os torturadores e a tortura foram abafados. Jamais Brizola colocaria um torturador no governo se soubesse da história. Então, a ideia era essa, que a gente fosse ao Palácio [das Laranjeiras] para denunciar o torturador. Me lembro que fui, mas sofri muito. Quase entrei em parafuso com isso, foi uma semana de indecisões, mas resolvi ir e obviamente saiu na primeira página do Jornal do Brasil: “Dulce Pandolfi dá depoimento dizendo que seu torturador que fez isso e aquilo”. [O JB publicou, no dia 29 de junho de 1985, a seguinte chamada: “Major do Banerj é tido como o maior torturador”, referindo-se ao major da PM Riscala Corbaje, então assessor de segurança da presidência do Banerj.] Nessa época, a diretora do CPDOC, a Celina [Vargas], foi nota mil. Ela foi super solidária a mim. A Fundação [Getúlio Vargas] não sabia que tinha, entre os seus quadros, uma pessoa que tinha passado por aquilo tudo. Ela veio me dizer: “Estou te chamando aqui para prestar solidariedade a você e, se precisar de alguma coisa, me fale”.

Recorte da capa do Jornal do Brasil de 29 de junho de 1985 (Hemeroteca Digital/Biblioteca Nacional)
Recorte da capa do Jornal do Brasil de 29 de junho de 1985 (Hemeroteca Digital/Biblioteca Nacional)

Sei que sou uma referência. Sei que sou tachada como aquela que teve a hora da tortura, aquela que foi marcada. No início, falava como uma maneira de extrapolar aquilo, mas evitava ter um papel público. Lembro de negar quando fui convidada para o Grupo Tortura Nunca Mais. Eu era muito ligada à Cecília Coimbra, uma das articuladoras do grupo, que o coordenou muitos anos, e na minha cabeça ser do Tortura Nunca Mais era viver em função desse passado que não quero viver. Quero construir para a frente. Não quero ficar vivendo a tortura. Eu falava como desabafo, não queria que a sociedade soubesse, não queria viver em função disso, mas depois me tornei uma referência. Sei disso e hoje sou bastante solicitada para falar sobre o que aconteceu. Me dói profundamente, por isso acho que a luta não tem fim e temos um papel educativo.

Lembro que uns dos dias marcantes na minha vida foi quando fui assistir a um filme da Lúcia Murat, que depôs comigo na Comissão Estadual da Verdade, um depoimento bombástico. É só saber que tem um filme sobre a ditadura que vou assistir. Vou, choro, me debulho toda, mas tenho que estar lá! Fui ver o filme da Lúcia Murat uma noite no Cine Paissandu, que era uma referência da nossa geração. Era a última sessão, das dez da noite. Pego um táxi com o Agostinho [Guerreiro], meu companheiro, e estou totalmente tomada. No táxi, era uma mulher dirigindo, eu chorando muito e ela apavorada. Ela perguntou: “O que aconteceu?” Falei aos trancos e barrancos: “Assisti um filme agora sobre as torturas e estou super tomada”. A mulher, que você não pode dizer que é uma alienada, porque é uma motorista, uma mulher dirigindo um táxi à meia-noite, uma mulher trabalhadora, falou: “Tortura?” Eu disse: “Sim, sobre tortura”. “Esse filme é sobre a Argentina?”, ela perguntou, e eu respondi que era sobre o Brasil. “Mas teve tortura no Brasil? Eu só sei da Argentina.”, ela disse espantada. Foi aí que chorei mais e disse: “E a nossa luta, gente? Como é que uma mulher dessa não sabe do que aconteceu”. Eu perguntei a idade dela, e era um pouco mais nova do que eu, havia morado em Brasília, onde tinha feito um curso não sei de quê. Ela me disse que nunca havia sabido de ditadura no Brasil, que ela votava, e me perguntou se eu tinha certeza do que falava. “Eu tenho certeza, fui uma das torturadas e ainda estou aqui”, respondi para ela, que ficou desconcertada.

Tive experiências como essa também com alunos. É duro e por isso acho que a gente não pode parar, é isso que me move. Nunca nego quando sou convidada a falar sobre essas coisas, porque tem um lado pedagógico para as pessoas mais jovens. A gente viveu um período que espero que não volte, mas a democracia brasileira vive sob ameaça e agora, fazendo um link com 2023, o que aconteceu com aqueles vândalos em Brasília tem a ver com o pouco sucesso da nossa luta, por não termos levado aqueles torturadores para a condenação, para a prisão. Hoje tenho horror a prisão, horror, então nem sei se a prisão é a solução. Meu problema não é prendê-los, é reconhecê-los como torturadores. Afastá-los de cargos públicos, impedi-los de ocupar qualquer cargo público. Não fazer isso foi muito ruim para a sociedade brasileira, porque dá uma sensação de impunidade muito grande. A polícia se sente dona do mundo, dona da vida dos outros, essas chacinas em favelas, a maneira como abordam as pessoas pobres e negras é terrível, e acho que tem uma relação com esse fato. Por isso, acho que a gente tem que lutar para que aqueles caras que fizeram o 8 de janeiro em Brasília não sejam anistiados, não podem ser, e tomara que a gente consiga agora, depois de muita luta. Em 1964, eu achava que o mundo era linear e caminhava para o socialismo, que o governo Arraes, com o Paulo Freire e aquela turma toda, era um caminho sem volta e que os camponeses iam ter seus direitos. Fui muito engajada e lembro de ter tomado um susto enorme no dia do golpe: “Não, esse negócio não pode parar, como é que pode parar?”. Hoje sei que são idas e vindas. Tomara que neste momento a gente consiga retomar essa luta, porque é uma luta sem fim mesmo. Agora foi reativada a Comissão dos Mortos e Desaparecidos, a Comissão da Verdade chegou a fazer algumas recomendações, tomara que elas tenham algum desdobramento agora, porque na época não teve. A Dilma foi impedida, depois veio o governo Bolsonaro.

IM: A primeira vez que seu caso específico veio a público foi nessa ocasião do governo Brizola ou já tinha vindo antes?

DP: Não, denunciei minhas torturas quando ainda estava presa. E também em uma publicação na Alemanha. Depois, meu caso saiu no livro Brasil: Nunca Mais. Denunciei as torturas também nas auditorias militares. Essa é uma outra particularidade da nossa sociedade. Aqui se montou, durante a ditadura, um Estado que tinha, apesar do arbítrio, um lado altamente legal. Isso não aconteceu na Argentina. Fiquei três meses no DOI-CODI, ninguém sabia que eu estava presa, aquela coisa totalmente ilegal. De repente, vou para um presídio e começa uma vida “legal”. Como presa, a gente ia para as auditorias militares e havia um processo que corria legalmente. Porque no Brasil temos a Justiça Militar. Nós, os presos políticos, éramos atendidos pela Justiça Militar. Havia as auditorias militares, onde a gente depunha, e os advogados orientavam, a quem tivesse coragem, a denunciar as torturas. Nem todo mundo fez isso, e entendo por quê. Nossa situação era constrangedora. Era uma fila de militares datilografando na máquina de escrever enquanto a gente falava. Era um interrogatório clássico: nome, sua minibiografia, e depois começavam a perguntar: “Você fez isso?”, “Você fez aquilo?” etc., e, no final, tinha aquele: “Mais alguma coisa a declarar?” Era quando a gente declarava as torturas. Era tão burocrático que o escrivão continuava batendo à máquina e pegava seu depoimento, que era assinado por todos aqueles caras. É incrível esse arquivo, que é o arquivo Brasil: Nunca Mais. É uma das coisas mais ricas do mundo, porque talvez seja o único lugar em que você tem depoimentos, provas de torturas registradas e assinadas pelos próprios torturadores. Formou-se uma comissão quando começou a redemocratização, antes da Anistia, que era um grupo de pessoas coordenado por Dom Evaristo Arns, com o Jaime Wright, Paulo Vannuchi, a advogada Eny [Moreira]. Eles se juntaram e começam a retirar aquele material dos acervos das autoridades militares e do Superior Tribunal Militar. Eles pegavam aquelas pastas clandestinamente e xerocavam os documentos. No dia seguinte, devolviam escondido as pastas. Com isso, montaram um acervo monumental. Foi quando o meu depoimento veio a público. O livro Brasil: Nunca Mais foi coordenado por Dom Evaristo Arns e pelo Jaime Wright e lançado em 1985.

Um dia, estava na sala de espera do dentista e uma amiga me mostrou o livro e disse: “Olha, Dulce, que barra, não sabia que você estava aqui no livro.” Levei um susto porque não sabia do livro. Nele tinha inclusive a minha aula de tortura. E antes, na Fluminense, teve outro episódio. Entrei em 1972, era 73 ou 74, já não sei, e meu nome sai no jornal, porque a gente ia ter auditoria militar. A diretora viu. Na minha cabeça de ex-presa, achava que, como era uma diretora de instituto, só podia ser uma mulher de direita. Era o governo Médici. Quando lembro que voltei a estudar no governo Médici, que ia de noite para a UFF, pegava barca, penso quanto de coragem eu devia ter também, com os processos rolando, porque fui solta por um relaxamento de prisão preventiva, mas meus processos continuavam na auditoria. Então ela me chama na sala dela, para saber se eu era aquela pessoa, e aí eu falei que não. Olha a maluquice! “Aquela jovem?” “Não sei quem é não, não sei do que se trata.”. Quando cheguei em casa, pensei: “Como você falou que não era você? Você tem que dizer que é você.” Porque foi pior ainda, porque sonhei. No dia seguinte, voltei para dizer que era eu e foi incrível porque ela falou: “Dulce, sei que é você, claro. E você nem me deixou continuar. Te chamei porque imagino a sua barra, é um processo barra pesadíssima. Um processo bem longo. Assalto a banco, ação armada. Eu só quis garantir que posso te ajudar.” Toda vez que tinha alguma audiência, eu escapava, fugia, pois não queria voltar ser a presa, se fosse condenada a dois anos teria que cumprir seis meses. Se eu fosse condenada a quatro anos, ficaria um ano e meio presa e não queria nunca mais passar por uma prisão. Então, minha ideia era nunca me apresentar na auditoria, porque quem se apresenta, se for condenado, já sai preso de lá, algemado. Então, eu escapava toda vez. Cada vez que tinha uma audiência dessa, acho que tive cinco processos, escapava. Enfim, não sei quem leu, quem não leu, mas ela, a diretora ficou sabendo. Depois disso, fiquei mais aliviada e ela ficou muito amiga minha. Nunca poderia imaginar que, sendo diretora do Instituto de Filosofia em 1973, no governo Médici, ela pudesse ser uma pessoa bacana.

Lucas Bandeira: Antes de passar a palavra para o Luiz Eduardo, queria pedir que você falasse mais sobre o momento antes da prisão em Pernambuco. Qual era a sua proximidade e da sua família com o momento político antes da prisão?

DP: Acho que Pernambuco foi o principal laboratório de uma postura mais avançada em relação àquelas bandeiras importantíssimas das reformas de base, que eram as grandes bandeiras do governo Jango [João Goulart], cujo centro era a reforma agrária. Havia aquela ideia de que o Brasil era um país muito atrasado, muito desigual, muito injusto, e que, se não se fizesse uma reforma agrária, não conseguiria avançar, para inclusive atingir o capitalismo. Em várias análises, inclusive a do Partido Comunista, a gente era um país ainda pré-capitalista. E Pernambuco foi uma experiência incrível, porque, com o governo Arraes, foi também um celeiro de quadros. A gente tinha um prefeito, o Pelópidas Silveira, muito interessante, muito progressista, e uma série de pessoas que giraram em torno disso, como o Paulo Freire, que é o pai de alfabetização de adultos. O Movimento de Cultura Popular de lá também foi muito interessante. Eu era muito jovem, não participei dessas coisas, mas estava muito engajada. Fui de um colégio de freiras super tradicional, minha família era bem tradicional. A minha mãe era ligada a engenho, meu avô era senhor de engenho, e meu pai era um acadêmico, um intelectual, professor de direito e muito voltado para a literatura, foi até crítico literário.

Tinha um grupo que transitava muito lá em casa. Um grupo formado nos anos 50 que hoje é objeto de estudo, o Gráfico Amador, que tem umas figuras incríveis, como Aloísio Magalhães, Orlando [da Costa Ferreira], a Ana Mei [Barbosa], o pessoal de São Paulo, Glauco Campello, o Osman Lins. Eles me chamavam de Dulcinha. Sebastião [Uchoa Leite] frequentava lá em casa. Eles se reuniam todo sábado e, como minha casa tinha um terraço muito grande, eles se revezavam entre a minha casa e a casa de Gastão de Holanda, que era compadre do meu pai e uma figura incrível. O Gastão foi poeta e romancista. Eu muito garota convivi com essa turma. Me lembro que minha mãe dizia assim: “Vai dormir, menina!” Eu sentava em uma janela baixa e ficava ouvindo aqueles papos, porque achava incrível. Às vezes, até o Ariano Suassuna ia lá, o João Cabral [de Melo Neto] também chegou a ir nessas reuniões. Era um pessoal progressista, mas não era filiado a partido. Pelópidas era nosso vizinho, a gente se frequentava, eu adorava ir na casa dele. Meu pai também era um cara progressista, e aquilo tudo me encantava muito. Era professor da faculdade de direito. Meu irmão já estudava direito quando entrei para a universidade. Então, o meu trajeto já estava quase decidido. Também tinha uma prima que militava muito, que fazia medicina e era muito próxima a mim.

Então, eu vivia um pouco esse clima. Por outro lado, tinha a família da minha mãe, essa coisa de engenho, usina, um lado mais reacionário. Eu gostava muito deles, mas tinha alguns comentários que me chocavam. Quando começaram as greves camponesas no final do governo Arraes, em 1963 ou 1964, uma tia minha entrou em parafuso: “Os trabalhadores vão parar de cortar cana, porque agora vão ter direitos!” Isso me marcou profundamente. No dia do golpe, fiquei arrasada, fiquei deprimida. Eu tinha 14 anos e não queria nem voltar para a escola, porque era um colégio muito tradicional. Eu devo minha militância também a essas freiras, porque o colégio era tão reacionário que eu fazia umas revoltas lá dentro. Ficava inconformada. A gente tinha dois modelos de freira, uma que a gente tinha que tratar bem porque era rica e a outra que a gente tinha que tratar mal porque era pobre. Uma era soror e a outra era a ma soeur, até a roupa era diferente. Essa ma soeur era quem limpava o banheiro, varria as coisas, atendia na cantina, e as outras davam aula pra gente. E a gente levantava e abaixava a cabeça quando passava a soror. Aquilo me dava uma revolta, até que um dia eu chamei as meninas da minha sala para a gente fugir, fazer uma incursão pela clausura e descobrir como era lá dentro as diferenças de classe. Foi um choque! A gente fugiu, subiu a escada e montamos um esquema de segurança. Eu liderando, imagina. E aí descobrimos que até a mesa era diferente, as camas eram diferentes, minha revolta ficou monumental. Então, devo um pouco a essas freiras do Colégio Damas, dissidência do Sacré-Coeur do Rio, a minha consciência de classe, a minha militância.

Luiz Eduardo Soares: Tenho uma imensa admiração pela Dulce, ela sabe disso. Tive a oportunidade de entrevistá-la para o livro Rio de Janeiro, que é dedicado a ela. O capítulo que escrevi foi agora muito bem elaborado pela Dulce na primeira exposição, que é essa relação problemática entre o público e o privado quando se trata da exposição do sofrimento pessoal da dor, no nível de radicalidade, de brutalidade, de vileza, de crueldade que é o da tortura. Então, é alguma coisa extremamente problemática e isso para mim sempre esteve presente, porque sou amigo da Dulce desde que a conheci em 1972 por meio da Germana Figueiredo, companheira de cela e de infortúnio dela, que também merecia mais reconhecimento, agora post mortem, do que ela teve até aqui. As famílias eram amigas e nós nos encontrávamos regularmente. Convivemos eu e Bárbara, com quem era casado, Dulce e Agostinho. Nossos filhos cresceram, brincando, se encontrando etc. A Dulce seria depois madrinha do meu primeiro neto. Nós éramos próximos e jamais tinha ousado fazer qualquer pergunta a ela sobre tortura. Achava que seria uma indelicadeza, um desrespeito até. Mas, durante muitos anos, tive curiosidade, não mórbida, mas no sentido de ajudar a trazer à tona, porque também acho que esses relatos e a memória reapresentada são absolutamente fundamentais na luta política contemporânea. São cruciais particularmente porque nós não tivemos justiça de transição, como a Dulce já disse. Nós não tivemos um momento de reconhecimento da verdade, porque, como ela disse também, a punição é uma segunda questão, mas o fundamental, como Mandela reconheceu, é o reconhecimento da verdade. Isso retorna como trauma a nos assombrar, e só é possível a reemergência do fascismo no Brasil, embora haja mil condicionantes para isso, porque há esse negacionismo histórico. Então, quando a Dulce corajosamente deu aquele depoimento a Comissão da Verdade do Rio, tomei coragem. Eu estava escrevendo sobre o Rio de Janeiro e não queria escrever sobre cartões postais ou trivialidades, queria trazer cenas que eram eloquentes, pouco conhecidas e mais trágicas. Ela generosamente me concedeu várias horas de entrevista e uma parte sintética, que está lá no capítulo “A mulher em comum”. Dado esse contexto, como é que você avaliou essa resistência do governo Lula em retomar o esforço de memória? Isso ficou muito claro nos eventos aí de cinquenta anos do golpe e toda a orientação para o governo não se manifestar. Nós entendemos as motivações táticas em função da correlação de forças, isso tem sua lógica política, mas causou muita revolta. Talvez essa decisão tenha expressado um tipo de avaliação do que vale a pena enfrentar, mesmo com o preço do desgaste, e o que não vale a pena.

DP: Eu estava vendo televisão quando Lula deu aquela entrevista, porque sou uma lulista. O Lula vai falar, estou sabendo, vou lá assistir. Quando ele falou aquilo tomei um susto: “Não podemos remoer o passado.” Gente, o que que é isso? Tomei um susto, não gostei, claro. Então, vou fazer uma pequena avaliação. Acho que essa não é de fato a pauta do Lula, nunca foi. Não é uma pauta que ele toca normalmente. Essa pauta é nossa. Tortura, mortos e desaparecidos, a luta por memórias de justiça e de verdade. O Lula está muito mais com a pauta da desigualdade social. Melhorar a vida dos pobres, essa é a grande pauta do Lula. Então, esse é um lado, mas eu fiquei chocada, e até surpresa, porque tem pessoas, inclusive no governo, que admiro profundamente e tem educação nessa pauta. Mas acho lamentável. Me doeu, embora explique por esse lado. Acho que as pessoas, às vezes, não têm muita ideia da barra que é ser presidente da República pós-Bolsonaro, em um momento delicado, onde essas forças estão vivas e atuando. E tinha tido atentado no ano passado. Coisa inacreditável que eles fizeram em Brasília. Fico imaginando o que deve passar na cabeça de Lula. Se alguém estivesse ali, naquele Palácio, poderia ter morrido com uma pedra, com uma foice.

Felizmente, agora, a Comissão dos Mortos e Desaparecidos foi reativada. Como estava falando, a história não é linear, é um processo com vindas e voltas. É uma pena, porque o governo Bolsonaro acabou com a Comissão da Anistia. Ele fez uma coisa pior ainda, porque tentou destruir por dentro as instituições, deu àquela instituição uma função que não era dela. Acho que o caso mais irritante é o da Fundação Palmares. Ele botou um negro na Fundação Palmares, que é o resultado da luta do movimento negro, e o Sérgio Camargo dizia que o movimento negro era a escória da sociedade. E ele fez o mesmo com a Comissão da Anistia. Botou Damares para ficar lá, para pegar casos das pessoas sendo anistiadas e “desanistiar”, digamos assim. Então, o Lula tomou o poder em uma conjuntura em que a máquina do Estado está muito detonada. Como sou lulista, sofri, discordei, critiquei, mas entendo um pouco a situação dele. Felizmente temos figuras como o Nilmário [Miranda), assessor especial de Defesa da Democracia, Memória e Verdade], que fez algumas coisas. Eu participei de um ato em que o Nilmário estava presente. O Nilmário, para quem não sabe, é de Minas Gerais. Ele fez caravanas lá em Minas, em alguns lugares. Não teve nada de oficial do governo, isso não teve, foi proibido, mas algumas pessoas do governo fizeram alguma movimentação, inclusive em uma marcha para Juiz de Fora. Mas acho que temos chance de ganhar o Lula para a nossa pauta, acho que a gente tem que convencê-lo, porque essa pauta é decisiva, inclusive para não corrermos o risco de ter outro 8 de janeiro de 2023. Acho que ele deve assumir essa luta por memória, justiça e verdade, porque isso vai fazer bem para o Brasil e para o governo dele.

Beatriz Resende: Dulce, quero falar muito dos seus depoimentos. Estive, na semana passada, no lançamento do filme da Lúcia Murat, O Mensageiro, um filme muito bonito. É todo passado em Niterói, com isso tirou um certo realismo às vezes excessivo e tornou o filme mais poético. É muito importante continuar a falar, é muito importante dar depoimentos, é muito importante escrever, é muito importante fazer cinema. Nós tivemos pouco disso, a Argentina tem muito mais, tem muito mais cinema e muito mais literatura. Não falo daquela literatura do primeiro momento, não, que era uma literatura mais de depoimento. Eu digo de uma ficção que relate todo o sofrimento, o golpe, o exílio. Agora ela está começando a aparecer e fiquei muito impressionada com o seu depoimento na Comissão da Verdade. Inclusive, por exemplo, a história do jacaré, que a gente achava que era uma metáfora ou não era exatamente isso, ou era um certo delírio. Quando você conta que o torturador traz um jacaré para, sobretudo, colocar em cima das mulheres, eu achei aquilo de uma força, levei alguns dias para me recuperar. Eu sofri o golpe, sofri o golpe na família, perdi minha avó. Pois quando invadiram a casa dela pela primeira vez para pegar o tio Francisco, ela enfrentou. Quando voltaram, já estavam buscando os netos. Ela subiu, teve um infarto e morreu. Meu pai perdeu todos os cargos que tinha, eu saí do país e tudo o mais, mas nunca senti o golpe como quando eu li o seu depoimento. O impacto que aquilo me deu, nem a ficção consegue atingir. A ficção poderia até ter mais liberdade em relação a tudo isso, mas aquilo é fundamental. A partir do seu depoimento, eu queria que você falasse como mulher sobre isso. A vulnerabilidade não por ser mulher, mas porque era uma presa.

DP: Ah, Beá, primeiro queria falar uma coisinha relacionada ao depoimento. Eu sei que foi uma construção, mas tão dolorosa para mim. Você não tem ideia. Passei quinze dias enfurnada, batendo aquilo no computador e chorando. A sorte é que tem computador, porque se fosse na máquina nem sei como seria. Eu fazia, desfazia, fazia, desfazia. Que coisa, gente, que sofrimento. Acho que a minha vida parou. Porque tinha a responsabilidade pública também, aquele drama que falei, entre o público e o privado. Eu ia expor todo mundo, sabia que ia ser um negócio na Assembleia Legislativa, com mídia, com tudo. Tinha meu papel de mulher, meu papel de historiadora, meu papel de mãe, de avô. Mas, acho que depois consegui, até com muito orgulho. Não sei se vocês sabem, ele foi publicado, no ano passado, pelo pessoal do MASP [Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand], que fez um livro coordenado pela Lilia Schwarcz.

Quando me chamaram para autorizar a publicação, eu disse: “É claro, fico super orgulhosa por isso”, e comentaram: “Ah, um primor literário”, mas foi muito duro.

Dulce Pandolfi com a cineasta Lúcia Murat no dia em que deram depoimento à Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro, em 2013.
Dulce Pandolfi com a cineasta Lúcia Murat no dia em que deram depoimento à Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro, em 2013.

LB: Você usa a forma do “Eu acuso”, do Emile Zola, não é?

DP: Foi o meu alívio! Então eu parei o choro… Porque tinha chegado em um ponto em que via se aproximando o dia e não conseguir fazer. Sempre odiei esse papel de vítima, de mulherzinha vítima, também não queria falar de sexo, não achava que era por aí. Também não queria me expor demais, mas queria me expor, queria denunciar. Então o “Eu acuso” me fez sair do papel de vítima. Encontrei um caminho que me confortou. Tanto que conto sobre o jacaré naquela parte do “Eu acuso fulano que colocou o jacaré em cima de mim nua.” Foi uma maneira de contar que fiquei nua, obviamente que a gente ficava nua, porque eles tiravam as nossas roupas. Mas é coisa de mulher. Imagina o que era o Recife em 1968. Como meu pai era professor universitário, chegava aos ouvidos dele que a filha estava no Savoy, um bar bem famoso na época, na Guararapes. “Ah, sua filha foi vista tomando cerveja”, o que era impossível para uma menina de classe média. Foi complicado esse papel. A gente lutando por emancipação, mas o preconceito em relação à participação da mulher era enorme. Na prisão você sente isso muito forte, até porque acho que o ódio era maior contra nós, mulheres. “Você é uma menina assim, assado, bonita, não sei o quê, tinha tudo para estar não sei onde, e se mete em uma coisa dessa.” Havia um ódio. Não sei se existia essa coisa de bater mais ou menos, mas acho que para cima da gente eles descarregavam para valer, então você sente ali o machismo em um nível! Os comentários, os deboches. Lembro que, apesar de toda noite ter uma visita dos comandantes, eles abriam a cela, entravam lá, alguns com cachorros lambendo a gente, era uma coisa barra pesada. E vinha o deboche, com o seu corpo, com você. Eu me lembro como falavam assim: “Ah, uma mulher tão bonita toda machucada, ou ela gosta de dançar muito ou ela gosta de descer de tobogã para ficar nesse estado. Chega aqui toda quebrada, é porque requebrou muito.” Comentários terríveis, terríveis. Uma companheira nossa, a Maria do Carmo Rezende, que estava grávida, ela apanhou e a gente chamou o médico para dizer: “Não dá para bater nela, ela está grávida.” E a resposta dos caras era sempre: “Teve filho porque quis, comunista não pode ter filho. Vocês não são mulheres, vocês são homens, então a gente tem que tratar como homem.” O machismo que a gente sente na pele é barra pesada. Então, senti muito, enfrentei e nunca me senti inferior. Acho que nós todas que chegamos aqui, chegamos exatamente por isso, porque, embora pusessem a gente em um lugar abaixo, a gente nunca aceitou esse lugar. E daí eles terem mais raiva da gente.

IM: Já ouvi você dizer que não faz questão de ter uma leitura linear da vida. Tanto que disse que às vezes pensa nesse período de 1964 como se fosse uma outra pessoa, e, no entanto, [sua pesquisa] está completamente ligada a esses mecanismos de cura, pela fala. E quanto a 2024, como é que você se situa? Bom, primeiro, houve uma reinvenção, porque você fez a sua carreira de historiadora, depois saiu da FGV. E agora está engajada na Rádio Cidadania, que serve como um farol, em termo de memória. Não sei se você faz algum tipo de conexão com esse tipo de militância ligada às comunidades, às periferias, às identidades.

DP: Esse mundo foi uma grande descoberta para mim. Não que eu não soubesse de nada, mas agora estou muito mais próxima. Quando fui demitida da Fundação Getúlio Vargas (FGV) – vocês sabem, aquele grande movimento etc. e tal – passei a dar aula de história em casa para pessoas da nossa geração. É uma pena eu não ter tirado foto. Uma amiga, a Flávia Martins, que foi casada com o Roberto Machado, que me propôs isso. O Roberto fazia muito isso. Então, eu dei a aula aqui pra ela nos domingos. A gente arrumava a sala e eram quarenta pessoas. Dei vários cursos de história para uma geração até mais velha do que eu. Como posso dar aulas para essas pessoas? Vários psicanalistas, o Claudius Ceccon, a Carmen da Poian. Foi um sucesso. Era um negócio tão incrível que me deu um gás danado. Até hoje eles cobram uma continuidade para o curso, mas não vai ter não. Cada coisa no seu lugar e a seu tempo, tudo tem começo, meio e fim. Logo depois fui convidada para trabalhar nesse projeto. Um dos braços do Fórum de Ciência e Cultura [da UFRJ] é a Universidade da Cidadania. Ela, na verdade, tem poucas funcionalidades, mas a ideia é que seja uma ponte entre a universidade, o saber acadêmico, e o saber popular, o mundo não acadêmico, os movimentos sociais. Fui convidada e logo depois veio a pandemia. Foi, então, que tivemos a ideia de criar uma rádio. Uma rádio onde se faz tudo on-line. Começamos com os grandes movimentos sociais, o primeiro entrevistado foi o João Pedro Stédile, o segundo foi o [Guilherme] Boulos e, depois, começamos a sacar o seguinte: faltavam as pessoas pequenas.

Hoje, acredito piamente que a saída do país é muito por aí. Esses movimentos têm uma riqueza. As pessoas não têm ideia do que tem nessas comunidades, não é pouca coisa não, é tanta coisa que a gente não consegue nem dar conta de todos os setores, o setor cultural, o de artes. A próxima entrevista que vai ao ar é inacreditável, é de uma senhora da Favela de Manguinhos que tem oitenta e tantos anos. O nome dela é Celeste, ela é poeta. A Conceição Evaristo é super fã dela. Ela foi super perseguida enquanto negra. Imagina! Oitenta e tantos anos, contando que ela foi de um orfanato onde a mulher gritava: “As negrinhas atrás, as negrinhas não podem se misturar com os brancos”. Hoje, ela volta para a cidade em que nasceu, acho que é Carangola, para ser homenageada como poeta, e conta isso com um prazer enorme. Então, é uma descoberta muito grande e acabei virando estudiosa de movimento social. Eles são chaves, são fundamentais, porque aí é que está a alma da sociedade. Então, quando as pessoas dizem que a sociedade brasileira é amorfa, não é o que acho, há aminhos. A gente não conseguiu ver a nossa pauta de memória e verdade incorporada à sociedade. A gente não conseguiu de fato. Participei de um debate com argentinas e elas falaram para mim: “Nossa, acho muito interessante, porque na Argentina o desaparecido não é o desaparecido da fulaninha, da viúva tal, é da sociedade. Aqui vocês falam como se fosse ‘meu desaparecido político’.” Aí você saca que é diferente mesmo. Na Argentina, a sociedade incorporou essa pauta, oxalá a gente consiga chegar lá. Acho que até a gente consegue, é um caminho longo. Mas tem essa outra grandeza da sociedade em nessas causas pequenas, pessoas que tinham tudo para estar desesperadas e estão atuando. São museus que elas estão construindo nas comunidades, cursos, rádios comunitárias, levantamentos. No passado, quando uma pessoa mais pobre conseguia chegar num nível X, ela largava aquilo. Hoje, está acontecendo um movimento belíssimo. Essas pessoas viram doutoras, mas ficam nas comunidades trabalhando. Temos vários casos. Tem, por exemplo, a Redes da Maré. A última moça que entrevistei de lá criou o Museu da Maré. É impressionante! O Itamar Silva, do Santa Marta, tinha tudo para não estar lá mais, mas mora lá e bota seu conhecimento para tentar melhorar a vida daquelas pessoas. Eu encontrei muita gente que faz isso, vários professores, universitários que estão morando em comunidades, no lugar de origem deles, produzindo material didático para aquelas comunidades. É um movimento realmente muito bonito. Então, nunca fiz um link disso com minha história de vida, mas acho que, como Italo falou, tem tudo a ver, porque é uma grande forma de militância também. A gente milita com nossa atitude diante do mundo, diante da vida, pode ter a ver com a questão ambiental, a sala de aula, acho que o professor é um grande militante, aliás, um dos maiores.

Para mim dar aula é um grande prazer, porque ali você consegue um diálogo muito bom com as pessoas. A militância é isso. Então, [a Rádio Cidadania] é uma forma de militância que encontrei e me dá um prazer enorme. E agora, até Luiz Eduardo vai participar, a gente vai montar um Cine Cidadania, também da Universidade da Cidadania. O nosso primeiro projeto é passar o filme Notícia de uma Guerra Particular, que é impressionante. Como o filme já tem mais de dez anos, vamos discutir o que avançou na sociedade, pouquíssimo, em relação a essa guerra particular: o tráfico de drogas. O João Moreira Salles já topou e Luiz Eduardo também, então vamos discutir com os dois e o Itamar [Silva, do Santa Marta], e passar o filme em uma sala de cinema. A ideia é que a cada mês a gente apresente um filme com pessoas que atuaram e que têm a ver com o tema do filme, com o território, porque estou muito preocupada com a questão do território. Acho essa questão-chave para termos uma cidade um pouco mais democrática.

BR: Esse material Rádio Cidadania está sendo guardado aonde?

DP: No Spotify, você encontra tudo lá. São podcasts. Você os acessa pela Rádio Cidadania. Em alguns deles, fiquei até entalada no meio da entrevista. Olha, tem um menino, que é gari comunitário, gari não, né? É lixeiro. Pega lixo. Ele se chama Felipe e estuda Ciências Sociais na PUC, conseguiu uma bolsa. O discurso dele é uma coisa. No meio da entrevista, parei e disse: “Eu vou tomar uma água e volto daqui a pouco”. O garoto é de uma garra. Ele diz: “Eu conheço esse macacão amarelo, aqui, laranja, mas as pessoas me acham invisível.” Ele atende a população do Leblon, então conta que passa naquelas ruas e conhece as pessoas e as pessoas não falam com ele. Ele dá bom dia, boa tarde e ninguém responde. “Mas será que, com essa roupa, as pessoas não conseguem me enxergar?”. Aí eu perguntei como ele estuda na PUC e qual é a reação das pessoas lá. Ele disse: “Eles é que estão perdendo mais do eu. Eles podiam aproveitar muito mais o meu convívio aqui e aprender muito comigo.” Esse menino montou um pré-vestibular que se chama Círculo Laranja, para os garis. Inacreditável a vida desses caras. O cara mora em Acari, trabalha em um depósito, já fez quatro cirurgias no joelho, porque eles caem daquele caminhão. O caminhão começa a andar e eles caem. O menino tem 40 anos e já fez quatro cirurgias na perna. Um cotidiano barra pesadíssima, com um trabalho insalubre e um discurso lindo, uma alegria de viver e uma garra. Até o motivo do nome dele perguntei. “Porque você se chama Felipe Luther?” Achei que era o nome de verdade, mas não, era uma homenagem ao Martin Luther King, que é um dos ídolos dele. A gente também já fez um primeiro livro, com os trinta primeiros depoimentos, se chama Combates na Pandemia: Os Movimentos Sociais. Estamos juntando e organizando o segundo livro, que vai sair pela editora da UFRJ.

IM: A Dulce é apaixonada por lideranças, pessoas que têm uma força de mobilização e ela adora isso. Esse trabalho que ela está fazendo agora é isso, né? Acho que isso também é um sinal dessa saúde que ela tem. Agora um comentário político mais geral, voltando pro Lula e aquela dualidade. Claro que isso aí remonta às discussões políticas de muito antigamente, em que a gente investia nas organizações políticas e na prática para tomar o Estado. Mas o que é mais necessário é esse trabalho no interior da sociedade. O próprio processo histórico fez com que os partidos se tornassem partidos de governo. Então a única maneira de você realmente recolocar o problema político, de maneira mais ampla, em termos de uma mobilização social, é através desses trabalhos que estão sendo feitos. É preciso que a gente ouça e recolha o que vem das lideranças, que, como a Dulce está mostrando aí, não precisam de ninguém. Elas já estão fazendo as coisas e elas crescem sem parar, tanto intelectual quanto praticamente. Não estou falando em burocratização, não estou falando em crítica, não estou falando criticamente, acho que foi um processo natural. Nós tivemos dois governos do Lula e estamos novamente com o Lula, mas a gente sente que precisa de uma visceralidade maior na luta política. Acho que ela acontece nessa esfera cultural mesmo, dando ouvidos e estando presente, ajudando, digamos assim. 

DP: Certo, concordo. Só acho que a gente não pode deixar de lado a grande política, que tem grande importância. Eu brinco sempre que uma canetada resolve coisas que a gente fica suando a camisa para conseguir.

IM: Você acha que existe preconceito ou disposição dessas novas lideranças a se vincularem a um jogo mais institucional?

DP: O universo é muito variado, não posso falar por ninguém. Não gosto desse papel, mas observo que é super importante continuar esse trabalho de formiguinha. Algumas dessas lideranças estão um pouco distantes do mundo da política e outras, não, nem tanto. Outras estão até filiadas a partidos. Mas é sempre essa garra. Entrevistei uma vez um cara que é DJ, Salada Maleiko. Eu perguntei: “De onde vem esse nome?” Esse cara vendia salada aqui na Praia de Copacabana. Ele começou a ouvir música e hoje é uma referência, tem um canal de TV. Ele conservou o nome de salada. Salada Maleiko! Genial! São pessoas incríveis. Agora vai perguntar se ele quer votar em A, B ou C, eu acho que não.

LB: Quero fazer uma pergunta para a historiadora. Estamos falando da questão da memória oral, da história oral, dessa memória individual. Você já escreveu no livro sobre o PCB sobre a disputa da memória coletiva, que mencionamos quando falamos do Lula e da questão da Comissão dos Mortos e Desaparecidos. Eu queria saber, do ponto de vista da historiadora, qual a importância da memória e da história oral para as disputas da memória coletiva e o que você, que disse ver todos os filmes sobre a ditadura, acha da ficção, que é um outro regime de verdade, para a disputa da memória coletiva da ditadura, ou de qualquer memória coletiva do país.

DP: Eu acho que essa disputa se dá o tempo todo, em várias camadas, digamos assim. É algo permanente, uma coisa bem ingrata, porque nós estamos do lado daqui, digo, das minorias. Quer dizer, não é minoria física. É minoria do ponto de vista dos projetos. Mas acho que a ficção é fundamental. Se a sua mensagem chega através de um filme, através de um poeta, através de um poema, através de um texto literário, você está cumprindo um papel enorme, e essa disputa é permanente. Um exemplo disso é a questão da democracia racial. Que mito é esse tão forte que perpassou séculos? E é agora que ele está começando a ser desmontado. Quer dizer, um país como o Brasil, que é campeão da discriminação racial, ser considerado o da democracia racial? Então, é um trabalho realmente constante, que foi sendo detonado por vários caminhos. Cinema, literatura, política, enfim, debate. Então, é isso, tudo isso tem importância muito grande. Acho que a memória é a chave. A questão do testemunho, por exemplo, é fundamental no caso da repressão. Tanto que a Comissão da Anistia começou a fazer um trabalho lindo com o Paulo Abrão, quando ele entende que aqueles depoimentos têm que ser gravados e divulgados, que não bastava apenas a gente chegar lá e denunciar. Era importante divulgar, até porque fomos abafados. A memória é isso, a memória é disputa. Você tem várias camadas, vários níveis, e a memória oficial precisa ser combatida. E não é pelo fato de ter o governo Lula que nós conseguimos chegar lá, a gente não consegue chegar lá com facilidade, a gente consegue chegar lá através desse nosso trabalho permanente, constante, que vai da sala de aula ao que a gente escreve e comunica. Eu vejo por aí, esse trabalho de vocês, fazendo uma revista de literatura voltada para 1964, que é o marco da nossa sociedade, quando tem gente que acha que nem teve uma ditadura no Brasil.

* Beatriz Resende é editora da Revista Z Cultural; Dulce Pandolfi possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense, mestrado em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, IUPERJ e doutorado pela Universidade Federal Fluminense; Lucas Bandeira é professor adjunto do Instituto de Letras da UERJ e editor da Revista Z Cultural; Italo Moriconi é crítico, curador literário, ensaísta, poeta e professor da UERJ; Luiz Eduardo Soares é escritor, antropólogo, professor visitante da UFRJ e ex-professor da UERJ, do IUPERJ e da UNICAMP.
Entrevista
Tempo de leitura estimado: 44 minutos

ORIGINAL É O PECADO: ENTREVISTA COM BIA LESSA

Bia Lessa é uma artista multimídia que não hesita em encarar grandes temas e grandes autores. Uma ousadia que é sua marca desde a estreia como diretora em 1983, com a peça A terra dos meninos pelados, baseada no livro homônimo de Graciliano Ramos. De lá para cá, encenou no teatro obras como Orlando, de Virginia Woolf (com texto de Sérgio Sant’Anna) em 1989, e Os possessos, de Fiódor Dostoiévski, em 1987; montou óperas como Don Giovanni, de Wolfgang Amadeus Mozart, em 1992, e Suor Angélica, de Giacomo Puccini, em 1990; e foi responsável pela criação e curadoria do Pavilhão do Brasil na Exposição Universal de 2000 (EXPO) em Hannover, Alemanha, do Módulo Barroco da Mostra do Redescobrimento, no Museu Nacional de Belas Artes, em 2000, no Rio de Janeiro, e das exposições Grande Sertão: Veredas, na Inauguração do Museu da Língua Portuguesa, em 2006, e Brasileiro Que Nem Eu. Que Nem Quem?, na Fundação Armando Alvares Penteado, em 1999, ambas em São Paulo.

Nesta entrevista concedida à Revista Z Cultural em 19 de janeiro de 2024, em sua casa no Cosme Velho, Bia Lessa comenta a sua trajetória, iniciada em 1975 como atriz no Teatro Tablado, no Rio de Janeiro, e a sua relação com a recepção da crítica e do público: “O teatro é uma humilhação diária”.

Por ocasião do lançamento de seu filme O Diabo na Rua, no Meio do Redemunho, fala do desafio de levar Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, ao Museu da Língua Portuguesa, ao teatro e, depois, às telas de cinema e trata, ainda, da inquietação que a faz explorar diferentes suportes e meios.

Foto: Arquivo Pessoal
Foto: Arquivo Pessoal

Beatriz Resende: O tema deste número é crítica e curadoria, entendendo, inclusive, a curadoria como um tipo de crítica, e a crítica contemporânea menos como crítica e mais como uma espécie de curadoria. Por isso, veio essa ideia de conversar sobre seu trajeto, sua independência, e de que maneira você convive com avaliações, com críticas.

Bia Lessa: Acho o tema extraordinário. É o que mais anima: essa ideia de curadoria e crítica como sendo a mesma coisa, porque, de fato, não há como ter uma curadoria sem uma análise crítica muito firme ou muito determinada. Também acho extraordinário pensar crítica como ação. Vivo falando para a Flora [Süssekind] que, muitas vezes, quando ela fala sobre o meu trabalho, ela inventa um trabalho que eu nem sabia que existia. Então, quando ela cria, tem uma ação em cima do próprio trabalho. O outro vem e coloca outra camada. É isso que eu acho excepcional.

Do meu caminho, não sei muito por onde começar. Fiquei um ano no Antunes [Filho], que é uma pessoa extraordinária. Eu tenho um respeito imenso por ele, mas uma hora entendi que não ia poder ficar mais. Achei que, se ficasse em São Paulo, não ia dar conta de criar o meu caminho do lado de uma pessoa tão poderosa para mim. Daí eu vim para o Rio. E, quando vim, o Antunes estava começando a história dele no SESC. Foi quando conheci o SESC na Tijuca, que era um espaço fora da zona sul, à margem. Fiquei animada, porque ficar em um canto que ninguém queria, fora de tudo, me parecia ideal. E encontrei o Ubiratan Correa, que era o presidente do SESC naquela época, que se tornou uma pessoa fundamental na minha trajetória e um amigo como poucos. Lá, fui convidada a dirigir um espetáculo infantil. Fazer o quê? Como fazer? Eu tinha acabado de ver Memórias do cárcere, [filme] do Nelson Pereira [dos Santos], que amei. Não esqueço a cena final do chapéu que voa da prisão e cai no mar. E eu me deparei com o texto de A terra dos meninos pelados [de Graciliano Ramos], uma versão infantil de Memórias do cárcere. Havia ali várias questões que me interessavam e que não eram propriamente do universo infantil. O universo só da criança não me interessava, me interessava o universo do homem. Era um espetáculo infantil que era também adulto. Na minha cabeça, se é bom para criança, é bom para adulto. Começou a minha briga, que era convencer o SESC e convencer os jornalistas que valia a pena divulgá-lo. Naquela época a gente não tinha divulgação, nós mesmos fazíamos esse trabalho. A gente ia no Jornal do Brasil e falava: “O Macksen [Luiz] tem que ir”. Na época o crítico era o Yan [Michalski] ainda, brigávamos na redação com o cara do tijolinho: “Tem que ter tijolinho de manhã e de tarde no infantil.” Era muito extraordinário ter essa relação direta com os jornalistas e críticos – hoje temos intermediários.

Flora Süssekind: Eu me lembro que o Yan fez a matéria de lançamento de A terra dos meninos pelados. Eu escrevi também sobre a peça, graças à matéria dele, anterior, e muito cuidadosa, acho que a crítica foi capa, ao menos lembro que teve uma página enorme.

Inês Cardoso: Era uma época em que havia matéria de estreia de teatro, e depois a crítica. O que já não tem mais.

BR: Quer dizer, a crítica de jornal tinha um papel fundamental.

BL: O Antunes tinha uma coisa que eu achava espetacular: nos colocar para fazer cenas. A gente ficava uma semana estudando a cena, oito horas por dia, ele parava e perguntava para cada um. “Você, o que achou da cena? E a interpretação? E o espaço? E o cenário?” Era amedrontador, uma sabatina oral… Ele geralmente nos massacrava, mas aprendíamos a decodificar. Você aprendia o espaço, você aprendia a interpretação, o figurino, a luz, cada objeto. Era uma coisa extraordinária.

Então, fiquei muito vinculada ao exercício da crítica permanente, a ter alguém com quem estabelecer um diálogo de fato. Porque, no fundo, é o que a gente mais gosta. Foi quando chamei a Ângela Leite Lopes para fazer essa dramaturgia comigo. Foi ela que me apresentou o [Tadeusz] Kantor. Não, o Antunes me apresentou o Kantor, mas ela me apresentou mais coisas dele. Antunes também me apresentou o Bob Wilson. A Ângela ficou durante um tempo comigo, acompanhando alguns trabalhos. O trabalho teórico sempre foi fundamental para mim, unir teoria e prática, ou melhor, a estética ser o resultado do conteúdo. E meu trabalho foi tachado no começo como teatro da imagem.

BR: Mas essa clarificação era algo bom ou não?

BL: Nem um nem outro. É o que falavam. Acho uma besteira, porque não tem teatro da imagem, a imagem faz parte do teatro. Como é que você faz teatro sem imagem? Acho bobo, mas já me interessava essa coisa de um homem inserido em um espaço, o homem não era mais o centro de tudo, então, se ele não é o centro de tudo, o espaço é um personagem extraordinário. Lembro que estava estudando Dostoiévski para montar Os possessos e fiz o Exercício número um, que era uma abstração um pouco em cima de Os possessos, os cientistas correndo atrás do conhecimento como o burro querendo a cenoura… Era um espetáculo de 45 minutos em que chovia papel picado. Nunca esqueço da gente picando papel a noite inteira, porque a minha vida é feita das pessoas dizendo para mim: “Não dá”, e eu fazendo. Então falei: “Precisamos que tenha papel picado caindo o tempo todo”, porque queria que as pessoas vissem o espaço. Só a luz não ia bastar, queria que vissem a pessoa dentro do espaço. “Então vamos picar o papel e ver quanto tempo dura de papel picado”. Gente, moleza, gastamos dez sacos de 100 litros, tínhamos picado cinquenta: deu e sobrou.

No primeiro dia de espetáculo, abre a cortina, mostra o espetáculo, fecha a cortina e a plateia não vai embora. Ninguém percebe que acabou. Fica aquele negócio constrangido, abro a cortina e falo: “Gente, acabou”. Ficava aquele constrangimento, e um jornal publicou, não lembro quem era o jornalista, uma crítica muito ruim, em um pequeno espaço, não chegava a ser uma crítica, era um comentário. O Yan foi para a briga e escreveu uma crítica bastante interessante e foi quando me chamaram para fazer a capa da revista Programa [do antigo Jornal do Brasil], era a capa da revista. Essa crítica, foi um divisor de águas. O SESC, através do Ubiratan, nos dando suporte, nos cedendo o espaço onde podíamos montar os espetáculos, fazer as oficinas, proporcionar espetáculos de novos diretores etc. Tínhamos o espaço, mas não tínhamos nenhum patrocínio nem apoio financeiro.

Não tinha nem papel higiênico. Não tínhamos patrocínio, mas éramos muito mais estruturados do que hoje. Éramos uma equipe, Suzana Macedo, Fernando Mello da Costa, o Alberto Renault, André Monteiro e Zé Luiz [Rinaldi]. Registrávamos em texto todos os espetáculos, todos os ensaios, as experiências, as tentativas… Tínhamos o pensamento teórico do que era cada cena e fazíamos o que chamávamos de escritura cênica. A escritura cênica, é o registro do espetáculo, com todos os elementos que o constituem. Quando o espetáculo vai para a cena, o texto não é mais o texto, ele é o texto com a luz, com a música. Então começa com o sinal, e o silêncio, aí entra a luz, e, quando a luz toca no rosto do ator, o ator sente a luz e por isso ele responde àquele estímulo e, porque ele reage à luz, a música entra. Os elementos estão sempre ligados um ao outro, pedindo uma ação ou reação.

Quando estou muito obcecada, ainda faço como uma partitura de música – de forma que se saiba que a luz entra com determinada intensidade, a música entra baixinho etc. –, tudo como se fosse um gráfico mesmo. Não para ter um registro, e sim para os atores entenderem que estão em diálogo com a luz, com o figurino, que não estão sós e que o diálogo não é apenas com a outra pessoa. O diálogo é com tudo que está em volta, com a roupa, com a cadeira que entrou. É assim até hoje. Esse é o princípio do meu trabalho. Lembro que, em Os possessos, eu precisava que o “ar” fosse “concreto” como uma massa sólida. Eu pretendia que o ar criasse uma atmosfera densa, uma tradução do universo do Dostoiévski. Um universo denso, onde os personagens estão presos. Era assim: a atriz, Lilia Cabral, dava um passo, e o outro ator tinha que recuar um passo – estabelecendo uma ligação entre os três: espaço e atores –, se um ator anda ele de certa forma “empurra” o outro.

A partir disso dá para falar um pouco de como fui fazer curadoria e expografia. Me interessava pensar a exposição também como arquitetura, não só como curadoria, mas como espaço – um caminho natural. O raciocínio entre o fazer teatral e a exposição são muito parecidos, o diferente é o processo. Me chamam de artista multimídia, mas no fundo é a mesma coisa, o mesmo pensamento – o que muda é a matéria-prima. No cinema o mesmo, uma maravilha! No cinema o espaço é também a lente que você escolhe, o movimento da câmera.

BR: E você ficou muito tempo no espaço do SESC?

BL: Uns sete ou oito anos. Foi bastante tempo. Só que no final era tão exaustivo, é a maluquice de a gente trabalhar no Brasil. É muito duro. É um esforço. Eu não ganhava dinheiro nenhum. O SESC nos cedia o espaço, mas gerenciar o espaço, dar conta dele, sem um apoio financeiro, era nossa função. A gente tinha inclusive que pagar um percentual da bilheteria, então não havia verba. Eu com uma filha pequena, sozinha. O jeito que consegui para viver foi dando cursos. Eu ia para Campo Grande com a minha filha, ficava lá duas, três semanas; ia para Salvador, voltava; ia toda semana para Volta Redonda, pegava um ônibus. Fora fazer os espetáculos. Lembro que a minha mãe ficava enlouquecida, porque eu vendia tudo. Fui casada com o pai da minha primeira filha, que era rico em relação a mim, e ele tinha muitos móveis antigos, cômodas, penteadeiras. Quando vim para o Rio, a metade ficou comigo e eu vendi tudo. Mas os espetáculos tinham o cenário que queríamos, o figurino, o registro escrito do processo de criação, como a gente não tem mais. Mas tinha e tem o custo da exaustão. Fico até emocionada de falar, por exemplo, da morte do Zé Celso. Ele foi um herói. Você vê, o Zé tinha 80 e poucos anos. Estava vivo pra caramba, mas fisicamente… Ele segurou a coisa no braço, na unha, percebe? Queimado em praça pública. Então é muito simbólico, é muito verdadeiro. A morte do Zé é o Brasil puro.

BR: Mas você sentia que o público retribuía isso?

BL: O público ora adorava, ora detestava.

BR: E quando detestava?

BL: Quando detestava era difícil, porque o teatro é uma humilhação diária. Você tem que ter uma espinha dorsal, porque todos os dias você espera uma pessoa que não vai, você vê uma plateia que não gosta, e isso durante 3, 4 meses. Lembro de Os Possessos quando a Fernandona [Fernanda Montenegro] foi… Alguém tinha dito que achava que ela ia. O SESC tem várias sacadinhas, pelas quais você fica vendo as pessoas chegarem. Estávamos eu e o Alberto [Renault] esperando, deitados em uma sacadinha, e a Fernandona apareceu lá. Avisamos ao elenco, porque era um acontecimento. Vinham quatro, vinham cinco, vinham seis [espectadores] às vezes. Isso não só em um espetáculo, mas em muitos. A gente vai aprendendo. O teatro é parecidíssimo com os desafios da vida.

Lembro que, primeiro, eu ficava muito mal com as críticas. Recebi críticas muito graves na vida. Lembro de uma do Flavio Marinho, em A tragédia brasileira, que era uma coisa assim: “É uma pena que essa menina exista”. Nesse grau. Até agora. O [Artur] Xexéu escreveu sobre Formas breves: “Soube que a Bia vai voltar ao teatro, que infelicidade, lá vem bomba”. Com o tempo, você vai entendendo que o que fica é o trabalho. É claro que [a crítica negativa do] jornal leva menos gente. Mas o que conta é o trabalho. Se o trabalho é bacana, se ele tem o que dizer, ele segue seu próprio caminho. Mas tive críticas maravilhosas, não apenas no sentido de enaltecer o espetáculo, mas de gerar reflexão, da Flora Süssekind, Yan Michalski, Gerd Bornheim, Haroldo de Campos etc.

Foto: Entrevista na casa de Bia Lessa no Cosme Velho Arquivo Pessoal
Foto: Entrevista na casa de Bia Lessa no Cosme Velho. Arquivo Pessoal

Lucas Bandeira: Você falou que, quando a Flora escreve sobre sua peça, ela acrescenta algo. É como se tivesse um que diminui e um que aumenta.

BL: Sim, sem dúvida. Só que na realidade essas que diminuem são umas pessoas que estão distantes do universo em que trafego, então não contam tanto. Quer dizer, contam para o negócio do teatro, mas não para o teatro em si.

FS: Agora eu acho que nem há mais isso de levar público. Nem sei o que de fato leva público ou não, possivelmente o Instagram. Ainda assim a primeira recepção é sempre curiosa. Eu me lembro da Barbara Heliodora escrevendo sobre você, sobre o Gerald Thomas. Não se tratava simplesmente de incompreensão, mas de construir, fixar, uma espécie de invisibilidade. Porque, assim, se mantém uma mediania que não incomoda. Em grande parte, a primeira recepção resguarda padrões e convenções. Por isso é infelizmente difícil imaginar a persistência, em grandes veículos, de uma crítica que desafie esses padrões.

BR: A gente reconhece o talento da Barbara, mas sabia que era uma pessoa reacionária.

BL: Lembro que, no Formas breves, encontrei com ela antes de ela entrar e falei: “Preparada para a luta?”. Eu acho até engraçado. Olha o grau de distância dela sobre o espetáculo. Ela escreveu: “Bia continua não fazendo teatro, agora ela faz artes plásticas”. Quer dizer, a concepção dela de teatro não possibilitava ver que o teatro hoje pode ser também artes plásticas. Ela tinha um valor, mas um valor fixado num modelo, modelo que hoje em dia já não é mais possível. Se há modelos hoje, são infinitos.

Quando eu fiz a minha primeira ópera, que foi a Suor Angélica, com Paulo Mendes da Rocha, um trabalho que adorei fazer, foi um sucesso do ponto de vista de levarmos à cena o que pretendíamos e também da compreensão do público de nossas intenções. Quando acabou, lembro que a gente foi para um restaurante e comemoramos muito a noite inesquecível. A gente sabe quando alguma coisa acontece, foi uma comoção! Naquele tempo a gente ficava acordado para esperar o jornal sair. E estava escrito assim na Folha de S. Paulo: “Bia Lessa copia Bob Wilson” [a crítica saiu com o título: “Bia Lessa faz cópia dos cenários de Bob Wilson”]. Quase morri. Nunca tinha visto o Bob Wilson na vida, a não ser algumas fotos que o Antunes tinha me dado. Daí, um cara lá da Bienal, amigo do [Emilio] Kalil, falou assim: “Vamos ver o que tem do Bob Wilson”. Bom, descobrimos que o Gerald encontrou com esse cara, [o jornalista Luís Antônio] Giron, e falou sobre a proximidade com um trabalho do Bob Wilson. E daí fomos pesquisar: não tinha nada, nem que lembrasse esse trabalho. O que tinha era o seguinte, no Bob Wilson tinha um cenário com umas escadas, em que umas pessoas subiam como se fosse uma biblioteca. No meu era um paredão que as freiras escalavam, sem escada, elas subiam pelas paredes, não tinha nada a ver. Acho que é errado, é mesquinho – ninguém poderia dizer que alguém copia sem ter uma prova de que copia. Só de ouvir algum comentário na saída de um espetáculo.

FS: A própria ideia de cópia é complexa… Não há como trabalhar sem referências. Trata-se de ver como elas atuam. Trata-se de ver os deslocamentos que foram operados. Se houver alguma referência bruta, aparentemente sem grandes desdobramentos, trata-se de pensar por que se dá essa apropriação tal qual, por que esse ready made está lá.

BL: Exatamente. Mas uma hora você entende que uma certa imprensa funciona assim. Ela levanta sua bola para cortar depois. A gente não pode esquecer que o jornal é feito para ganhar dinheiro. Então, a relação deles é com o Ibope ou instituto semelhante.

LB: E alguns críticos estavam ali para isso.

BL: Era para isso. Tanto que, depois, eu respondi a ele. E o [Fernando] Zarif me deu o título mais lindo do mundo: “Original é o pecado”. Tive muitas brigas com jornalistas, porque tinha a ingenuidade de achar que o mercado não estava em primeiro lugar. Ao mesmo tempo criei relações profundas com outros, que até hoje são contribuições fundamentais.

BR: E como você passou para a ópera?

BL: Não passei, foi algo que se deu naturalmente. Foi o Emilio Kalil, diretor do Theatro Municipal de São Paulo na época, que viu meu espetáculo Orlando e achou que ele era de certa forma uma ópera, que a linguagem cênica conversava com a ópera. Daí ele me chamou para montar Suor Angelica, de Puccini – minha primeira parceria com Paulo Mendes da Rocha. A mesma coisa aconteceu com a primeira exposição, a Faap me convidou para fazer uma exposição da alta-costura do Christian Lacroix. E me chamaram, em seguida, para fazer uma exposição sobre o Brasil. Foi quando conheci a Maria Lúcia Montes, uma antropóloga e historiadora da USP, uma pessoa extraordinária que trabalhava com Emanoel Araújo e o ajudou a criar e inventar a Pinacoteca [do Estado de São Paulo; Araújo criou a Associação dos Amigos da Pinacoteca]. A Maria Lúcia foi uma pessoa que me ensinou muita coisa. Ela falava: “Isso não conversa com isso. Essa imagem não conversa. O que que conversa com o quê? O que colocar do lado de quê?” E eu resolvi fazer uma exposição, a Brasileiro que nem eu. Que nem quem?. Era um pouco sobre o que é o brasileiro, mas, ao mesmo tempo, já era uma coisa multi. Primeiro a gente pensou: historicamente, quem é o brasileiro? Então vieram o documento, o registro, mas olhávamos e falávamos: “o brasileiro não está aqui”. Pegávamos foto documental, mas o brasileiro também não estava lá. Então havia as artes plásticas, a poesia, a música. Tínhamos muitas linguagens para explicar o que era o brasileiro. Uma música do Cartola, por exemplo, pode falar mais do brasileiro do que mil documentos, mas os documentos dizem algo que o Cartola não diz – então a exposição precisava contar com essas múltiplas camadas, para tentar chegar ao “brasileiro”. Foi minha primeira exposição, a primeira em que fiz curadoria e expografia.

Nessa época, conheci o [José] Mindlin, porque eu precisava de um quadro do Franz Post. Foi a coisa mais linda do mundo. Eu nunca tinha feito curadoria e nem exposição, então ninguém me cedia nada. Eu ligava para a dona do quadro, pedia para ela me emprestar a obra, até que um dia ela não aguentou mais e disse: “Minha filha, eu só te entrego o meu quadro se o José Mindlin vier aqui”. Tudo bem, não tinha, e acho que continuo não tendo, nenhuma timidez para alcançar o que era imprescindível para que o discurso da exposição ficasse inteligível. Peguei o telefone do Mindlin, liguei: “José Mindlin, aqui é Bia Lessa, você não me conhece, etc.”. Ele disse: “Me dá cinco minutos”. Deu cinco minutos e ele me ligou: “Estou aqui na porta dela”. Ele foi até a casa da colecionadora e me trouxe um Franz Post naquele mesmo dia. Lembro que uma vez liguei para ele e falei: “Puxa, não estou conseguindo ir aí tantas vezes te ver”, e ele me disse: “Você tem que me garantir só uma coisa: você está lendo? Me visitar não precisa”. Eu tinha o maior preconceito do mundo com colecionador, porque acho essa coisa de coleção besta. Mas fui na coleção do Mindlin e, na hora em que ele me abriu o Grande Sertão: Veredas, fiquei tonta, quase caí. Me deu um grau de emoção, fiquei branca, e entendi o Mindlin e a importância daquilo. É incrível, o jeito como ele doou, o jeito como ele cuidava, como ele divulgava [a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin foi doada para a Universidade de São Paulo (USP) e é aberta ao público]. Era o oposto da coleção, no sentido do acúmulo.

BR: E você chegou ao Grande Sertão: Veredas.

BL: Me chamaram para o Museu da Língua Portuguesa e o projeto do museu era maravilhoso, mas tinha só a ver com a estrutura da palavra. De onde ela vinha, o que vinha do tupi, do latim… E pensei: um museu sobre a língua portuguesa que não fala da linguagem? O poder do idioma é a linguagem. Claro que é importante você saber a origem das palavras, mas me brotou de imediato o valor da linguagem, que é o que me fascina na vida – as mil formas de você falar com o outro.  Pensei no Grande Sertão: Veredas, em Guimarães Rosa, mas eu nunca tinha lido o livro. Eu conhecia da escola, mas nunca tinha lido. E, na hora em que eu peguei o livro, pensei: “Me fodi”. Porque não podia expor nada, se expusesse uma fotografia, estaria falando que o sertão era aquilo. Se eu fizesse o sertão da Bahia, se pusesse os óculos do Guimarães… Qualquer exposição enfraqueceria a obra.

Lembro que entrei no museu e ele estava em obra. Vi os entulhos e me veio aquela metáfora óbvia, que é a construção do museu, a construção da linguagem. Então decidi trabalhar com os tijolos, com os restos, os entulhos – os materiais da construção dariam suporte às palavras. Uma constrói prédio, a outra ideias.

BR: E isso foi decisivo para a própria instituição, para o museu ser o que ele quis ser.

BL: Acho que foi. Até foi bonito isso, porque a gente teve uma discussão muito grande e eu defendia que fosse museu e ninguém queria que fosse museu. Era o “Palácio da Palavra”. Eu falei: “Não, tem que ser museu, porque, sendo museu, vai nos obrigar a ter um outro tipo de relação”. Foi uma briga bonita.

BR: O que você está dizendo é que o museu não tem que ser o que o museu é?

BL: Acho que a função da gente é contribuir. É ampliar as regras ou mudar as regras. Quer dizer, na profissão de crítica não tem outra saída, você está no fogo cruzado. Se vai fazer o que já existe, não é essa a profissão. Então não adianta. Acho que a função é botar a cara a tapa, uma função de exposição absoluta. Mas foi muito difícil, eu sofri muito. Não sofri só para fazer, mas sofri para convencer as pessoas de fazer uma exposição só com palavras. Eles não queriam, receavam o uso exclusivo da palavra, diziam que palavra é a coisa mais chata de uma exposição – e de certa forma eles tinham razão, mas a palavra na exposição não era apenas texto, era também imagem. Acho que por isso tocava tanto as pessoas.

Exposição Grande Sertão: Veredas. Foto: Acervo Pessoal.
Exposição Grande Sertão: Veredas. Foto: Acervo Pessoal.

LB: Isso me lembra dos vídeos da preparação para a peça [Grande Sertão: Veredas]. Tem ali um trabalho duplo. Você primeiro faz a curadoria do próprio Guimarães, tanto na exposição quanto na peça, e a partir daquilo cria um espaço, primeiro no ensaio, depois na peça.

BL: E depois no filme.

LB: E depois no filme. De interação do ator com o texto em relação ao qual você fez a curadoria e depois do espectador em relação ao espaço. Eu queria que você falasse um pouquinho disso. Ser curadora de Guimarães Rosa e Mário de Andrade [na peça Macunaíma] e de vários outros.

BL: Nunca adaptei, porque sempre trabalhei com alguém com o domínio da palavra. No caso do Grande Sertão, também não adaptei. Eu curei, fui tirando trechos. Quando falam adaptação, não tem adaptação, tem o livro tal como é, esse pedaço, aquele pedaço, aquele outro pedaço. Então, não teve, como teve no Orlando, uma adaptação [de Sérgio Sant’Anna sobre o romance de Virginia Woolf].

LB: E é a curadoria como criação, não é? Você está criando sem intervir no texto diretamente.

BL: É, você intervém na relação dele com o outro. O que é que está do lado do quê? Você colocar um Kafka do lado de um Dostoiévski é diferente de você colocar um Kafka do lado de um Freud. Você faz algo a partir da relação que estabelece entre uma coisa e outra. É isso que acho lindo na curadoria: o que está do lado do quê? O que está conversando? Então você vai criando uma outra camada. Isso é muito lindo.

BR: Acho que na verdade é isso que dá um salto na curadoria. Por exemplo, o museu está em crise, então você arranja um tema, cata isso, cata aquilo, cata aquilo outro.

BL: A primeira vez que vi uma curadoria que me encantou profundamente, porque os museus eram assim, posso estar sendo ignorante, mas era assim. Duchamp. Van Gogh. Daí eu lembro que entrei um dia na Tate [em Londres] e era assim: amor, desejo. E daí tinha o Duchamp, conversando com o Monet, com o Picasso, com o Vermeer. Não era uma exposição cronológica ou uma retrospectiva de um dos artistas, era a obra de um em diálogo com a do outro – atravessando os tempos, sem cerimônia.

FS: Talvez você pudesse falar da disposição das peças naquela exposição da coleção do Itaú. De alguns quadros colocados no chão, tendo um suporte de vidro em cima. Como a “Painting to Be Stepped On”, da Yoko Ono. Lembro como a reação a essa exposição foi violenta. A reação a outro lugar para olhar, a outro modo de pensar a disposição, e o percurso pelas obras. E houve também a reação à mostra sobre o Barroco. A recepção a essas exposições foi marcada por um desconforto muito grande de curadores mais tradicionais e também de alguns artistas.

BL: O Emanoel Araújo tinha acabado de fazer uma exposição no Grand Palais, em Paris, sobre o barroco brasileiro, com muito sucesso. Uma exposição toda barroca, uma obra do lado da outra, linda, como ele sempre fez. E o meu barroco era uma exposição dos 450 anos do Brasil. Então na minha cabeça eu tinha que fazer uma exposição do Brasil, do povo brasileiro e do barroco. Por isso, criei aquelas flores todas e separei as obras. Então, eu punha um Aleijadinho e você andava dez, quinze metros para ver o outro. Havia ali dois protagonistas em diálogo: as obras e a história do Brasil a partir da colonização, que imprimiu uma religiosidade católica, cheia de pecados e culpa, onde o homem tem que ter temor a Deus, e o brasileiro transformou essa religiosidade num Deus que obedece aos desejos do homem: “Se Santo Antônio não me arruma um marido, ele fica de cabeça para baixo”. O barroco brasileiro traz essas questões, as obras barrocas que vieram da Europa e foram se transformando a partir da realidade encontrada aqui. Foi uma exposição que gerou uma série de questões, propunha uma outra forma de expor que não fosse mais o cubo branco, criando elementos que dialogavam com as obras.

Em Brasileiro que nem eu. Que nem quem?, foi a maior discussão com a Maria Lúcia Montes porque eu disse que ia colocar [as obras religiosas] no chão. Era uma briga imensa, porque como colocar o “sagrado” no chão? A Maria Lúcia falava que não podia botar no chão arte sacra, o ouro no chão. Eu retruquei: “As pessoas vão pisar em cima da igreja” e o que aconteceu foi o imprevisível: o chão ficou mais sagrado do que nunca, as pessoas pisavam com imenso cuidado, como se pisassem em ovos. E nessa sala, no teto, tinha uma foto da Nossa Senhora da Boa Morte, o que era bonito porque a morta refletia nesse vidro em cima do qual as pessoas passavam. Sagrado e profano juntos. Era uma exposição em que chão, teto e parede existiam.

Para fazer a cidade de São Paulo, para explicitar a selvageria da especulação imobiliária, optamos por colocar palitos de fósforos queimados pela parede inteira – era uma parede circular –, eram milhões de palitos de fósforo, colocados um a um. No centro da sala havia uma espécie de poço com óleo negro – petróleo –, no centro desse poço, exposto o osso do Anchieta, porque conseguimos o osso do Anchieta. Até hoje não sabemos como a Diocese nos emprestou esse osso. Então na sala tínhamos a floresta destruída através dos milhares de palitos de fósforo queimados, o poder e a sedução do dinheiro através da beleza do poço de petróleo, que produzia uma espécie de espelho onde tudo se refletia, e um pedaço do corpo do colonizador.

E tinha uma coisa que eu gostava. A exposição chamava Brasileiro que nem eu. Que nem quem?. Quando as pessoas entravam, eram fotografadas, e íamos colocando a foto de cada visitante [na parede] e fomos tendo que criar mais paredes, a exposição ia se ampliando diariamente. E tinha expostas as obras de artes plásticas, os documentos, a música, a poesia, a fotografia etc. Camadas!

Exposição Brasileiro Que Nem Eu. Que Nem Quem? Foto: Acervo Pessoal.
Exposição Brasileiro Que Nem Eu. Que Nem Quem? Foto: Acervo Pessoal.

BR: Voltando ao Grande Sertão, você primeiro chegou à exposição, e da exposição foi para a peça.

BL: Teve a exposição e eu não imaginava a possibilidade do teatro.

BR: E como é essa mudança de suporte?

BL: Ah, é de novo aquilo, conteúdo e forma. Se o espaço diz uma coisa, o que está dentro dele, o objeto ou a pessoa, também tem um significado, o diálogo que estabelece entre eles é o que me interessa. Então não me interessava fazer um filme da peça, um registro. Mas havia o desejo de levar para o cinema as questões que o teatro me colocava, porque na peça o cinema me ajudou demais. Por exemplo, o corte seco que tem no cinema foi uma linguagem que levei para o espetáculo. No cinema há uma cena no deserto, corta para dentro do apartamento. No Grande Sertão não tinha entrada e saída de ator. O tempo inteiro estavam todos lá, num espaço que não permitia saída. Os atores ora eram homens, em seguida bichos, plantas – corte seco. Aquilo veio de um pensamento de cinema. Também o som, do fone de ouvido, de ter os ruídos como linguagem, como quase uma cenografia sensorial, veio da ideia do foley [sonoplastia] do cinema. O cinema foi uma referência para o espetáculo.

Muito do que penso, desde o trabalho do ator e tudo na minha vida, é quase o oposto do Antunes, me apoio nele para fazer outra coisa. Mas no Antunes era assim, a gente ia montar o Nelson Rodrigues, a gente estudava todo o Nelson Rodrigues, a fala do Nelson Rodrigues, o que ele quis dizer naquele momento, e eu, com o tempo, fiquei achando isso quase ingênuo, porque a sensação que tenho é que você vai emburrecendo, primeiro você tem a pretensão de achar que sabe exatamente o que aquele autor quer dizer, e é impossível descobrir isso, porque o bom, quando você lê, é pensar sobre aquilo, não exatamente o que o autor quis exprimir, mas o que te interessa no que você leu.

BR: E esse foi o caminho por muito tempo da crítica. Querer entrar na cabeça do autor e explicar o que era a cabeça dele. Isso em literatura foi um desastre.

BL: Mas isso, na realidade, não é crítica. Isso é uma aula, uma tentativa de domínio total dos códigos e conteúdos – isso me parece pretensioso e ao mesmo tempo ingênuo. O ator virava o empregado do texto. Você era um empregado e acho que, em qualquer ato de criação, você não pode ser empregado, você tem que ter brio, tem que ter caráter, entendeu? Não posso ter medo do Guimarães. Eu o acho um gênio, mas, se vou fazer a obra dele, tenho que olhar para ele e me colocar.

As pessoas falavam muito: volta pro teatro. Mas, para voltar pro teatro, eu queria criar uma grande dificuldade. Essa era a máxima do Antunes, que também levo para o resto da minha vida. O bom da vida é você criar dificuldade, não criar facilidade. Ele falava que, quando você cria uma dificuldade, é só uma questão de trabalhar. Você pode trabalhar dez anos, mas, quando você resolver, deu um passo para a frente. O espetáculo Grande Sertão trazia muitas questões, entre elas a impossibilidade de criar uma cenografia que localizasse o romance em uma região – tínhamos que criar um espaço concreto e abstrato ao mesmo tempo, porque o sertão do Guimarães não é um espaço geográfico, mas um espaço metafísico: “O sertão está dentro da gente”.  Um dia, uma antropóloga, Marina Vanzoline, me deu uma definição linda. Ela viu o espetáculo e falou: “O sertão não está aí, mas você evoca o sertão.” Que palavra boa.

BR: E mais ainda no filme.

BL: É. Mais ainda no filme. Evoca, é bonito. Não afirma. Evoca, chama.

BR: Qual é o formato que te dá mais prazer, ou tanto faz?

BL: Tanto faz. Paulo Mendes dizia uma coisa. Ele falava que férias para ele é trabalhar em outra coisa. Então é assim, descanso do teatro fazendo cinema, do cinema fazendo exposição – o trabalho me cansa, mas me dá um prazer parecido com férias. Teatro é muito difícil, pela questão do grupo. Eu, por exemplo, não gosto de companhia. Implico com companhia, porque acho que você acaba criando um ambiente homogêneo. Eu gosto do diverso, de atores diferentes um do outro: um cheio de experiência, ao lado do outro que nunca pisou no palco, de pessoas oriundas de diferentes culturas, com origens e conhecimentos variados. Eu gosto de estar apaixonada pelas pessoas que estou dirigindo. Mas hoje em dia a questão do mercado me apavora, a relação forte com o dinheiro, a fama, a carreira, que está cada vez menos vinculada ao significado do ofício. O ofício pelo qual optamos é um ofício de risco, de precipícios e não de certezas.

BR: Mas você falou uma coisa fundamental, que você vai tendo ideias, mas ninguém vai. É isso que me impressionou muito no filme. Na situação em que a gente está, economia de mercado e tudo o mais, você peita isso e diz “ninguém vai”. Mas vai.

BL: Às vezes temos público, não é sempre. No Cartas ao mundo não foram. Mas não ter público também faz parte. O Grande Sertão foi um sucesso. Foi mais do que um sucesso. Ele foi, de fato, uma coisa que eu nunca tinha vivido. Já vivi sucessos. A terra dos meninos pelados, meu primeiro espetáculo, foi um sucesso imenso. Orlando foi um sucesso imenso. As óperas foram sucessos imensos. Não foi só fracasso, mas o Grande Sertão é diferente. É uma coisa diferente, mesmo para a gente. O sucesso tem – como vou dizer? – uma alegria.

IC: É como a Bia falou. Quando ninguém vai, a sensação é mesmo de uma humilhação diária. O ator está ali toda noite para fazer o espetáculo. As pessoas estão sentadas sem gostar. Ou as pessoas não estão nem lá sentadas. Ou as pessoas estão sentadas e vão embora. É uma humilhação física. Você está lá. Então o sucesso, no sentido da presença do público, de uma relação que se estabelece, é uma alegria sim. É muito forte, é uma explosão.

BL: Isso. Aplausos, pessoas vão ao camarim, todo mundo fala alto. E no Grande Sertão ninguém ia embora do teatro. As pessoas ficavam, choravam, ficavam paradas. Na fila no CCBB tinha gente desde as quatro horas da manhã. E aí tem umas coisas bonitas. A quantidade de gente que escrevia para mim. No dia seguinte tinha, sei lá, oitenta depoimentos que vão do Caetano a um professor do CEAT [Centro Educacional Anísio Teixeira, fundado por Therezinha Gonzaga Ferreira, mãe de Bia Lessa]. Outro dia a [atriz] Luisa Arraes me falou de um projeto novo, ótimo, mas ela me disse: “Bia, sem ilusão, não é?! O que a gente viveu no Grande Sertão a gente sabe que nunca mais”.

LB: Bia, tem o dispositivo no palco [a jaula da peça Grande Sertão: Veredas], não? É do Paulo Mendes [da Rocha]. Os atores não saem, tem aqueles bonecos. Como é que isso foi pensado?

BL: Sabe que esses dias eu estava pensando nisso e não sei como é que esses bonecos chegaram. Lembro de pedir para o Fernando Mello [da Costa] os bonecos. Fernando ainda estava vivo. Daí o Fernando fez a coisa mais linda: ele foi esculpindo. Mas não lembro exatamente, só lembro que queria que eles [os bonecos] virassem mochilas, para que as pessoas as carregassem. O homem carregando o homem nas costas, como peso e como bagagem. E também como rio, como muro, como vento até. O cenário é da Camila Toledo e meu, o Paulo foi um colaborador.

FS: Nos bonecos, você optou por um material semelhante ao que cobre as pessoas em situação de rua.

BL: Exatamente. Hoje, olhando para eles, penso em algumas obras do [Joseph] Beuys [artista alemão, autor de Terno de feltro, de 1970]. O piano coberto…

FS: Sim. O feltro. A gordura e o feltro, cruciais para o Beuys. Lembro que havia uma oficina de fabricação dos bonecos no local do ensaio do Grande Sertão. Eles habitaram o espaço de construção da peça o tempo todo.

BL: Eu não tinha onde ensaiar e resolvi ligar para o Roberto Irineu Marinho, um homem especial, que gosta do meu trabalho. Pensei: “Será que ele não tem um lugar para eu ensaiar?”. Eu queria um lugar bonitinho, que tivesse um jardim agradável. Porque, para mim, o espaço onde se cria um espetáculo ficará impresso na criação – não é apenas uma questão de conforto. No espetáculo As três irmãs, o cenário é quase a casa onde ensaiávamos – as entradas e saídas, as portas… Liguei e perguntei: “Será que você não consegue?” Ele me disse: “Olha, tem o antigo prédio da Infoglobo”. Habitamos aquele lugar, um edifício desocupado, com inúmeras salas. Tivemos a oportunidade de ensaiar, montar uma oficina de cenário, de figurinos, de adereços, num espaço ótimo e ao mesmo tempo em ruínas – o espetáculo tem nele essas ruínas e a generosidade encontradas ali. O espaço, de novo, fez o espetáculo.

Primeiro, o [arquiteto e urbanista] Paulo Mendes [da Rocha, colaborador da peça e morto em 2021, com quem ela trabalhou em seis espetáculos] e eu tivemos uma briga, porque ele falava assim: “Você sempre querendo muita coisa, faz uma única cena, que todo o Grande Sertão está contido em uma única cena”. É fato, no caso do Guimarães, em uma única cena, de certa forma, está toda a obra. Mas o desejo da dificuldade de fazer aquilo tudo era o meu negócio. Eu me encanto não apenas com a linguagem, mas com a história, gosto de como ela é, gosto de não ser cronológica, gosto de misturar as histórias, de valorizar o que está atrás da ação, gosto dos fragmentos um ao lado do outro. A primeira ideia cenográfica que apresentamos a ele era a gaiola, e ele, deslumbrante e radical, falou: “Vamos fazer só uma coisinha, que as pessoas fiquem apoiadas assim, fica todo mundo de pé, nada de fazer o povo sentar, o povo entra e volta, briga pra ver – criamos um corredor apertado em volta da cena”. E, como era dentro do CCBB, que era muito pequenininho, ainda não tinha ideia de fazer ali no meio [o espetáculo foi, por fim, montado na rotunda do Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro], fazemos o espaço cênico o maior possível e o espaço para a plateia mínimo, deixa os caras se espremendo e brigando para ver. Olha que beleza. Porque daí você ficava com alguns jagunços dentro e fora.

BR: Que é bem do teatro contemporâneo moderno, tirar a plateia daquela posição passiva e incomodar.

BL: O Paulo tem cada história. A primeira briga feia com o Paulo foi na primeira ópera que eu fiz, olha que briga linda. Era um espaço cênico com uma escadaria que ia do proscênio ao fundo do palco. A distância do chão para a vara de luz era imensa. Tinha que afinar a luz. Não havia escada possível que chegasse até os refletores. Como é que íamos afinar a luz? O Paulo fala: “Simples, desce a vara, a gente calcula o ângulo da luz, e pronto”. Eu falei: “Paulo, não dá. Isso decidimos vendo, experimentando, temos que ver”. A gente afinava a luz assim: sobe a escada, bota essa gelatina, tira, coloca outra, abre o foco etc. Eu lembro que ele olhava e dizia: “Você não acredita na matemática, você não acredita no cálculo”. Mas foi uma briga tão feia que eu falei: “Paulo, saia daqui”. Porque eram cinco dias de montagem, sempre aquela coisa de montagem desesperada. Foi a primeira briga que eu tive com ele, feroz, ele foi embora, furioso. Chamamos uns caras de rapel, pendurados de capacete, e afinamos a luz. Por essa razão acho que fomos tão cúmplices durante a vida, não tínhamos medo dos embates.

BR: Na montagem do Grande Sertão no Rio, o que mais me fascinou, por incrível que pareça, foi o debate. Não saíam duas pessoas com uma opinião igual. Vi duas vezes o espetáculo e foram duas recepções muito diferentes. Uma foi logo no início, tinha muito estranhamento, e a segunda tinha outra coisa interessante, porque as pessoas iam ver uma coisa que já estava elogiada, já era considerada de qualidade. Mas será que não é isso que cabe à crítica, que a crítica devia ser?

FS: Não sei se é assim. A crítica é muitas coisas, as possibilidades de intervenção são muitas. Também na relação com obras contemporâneas. Não vejo a crítica como intervenção posterior. A crítica problematiza campos expressivos. Inclusive o próprio campo de atuação da crítica. No caso da Bia, do Grande Sertão, e também do Macunaíma [baseado na obra de Mário de Andrade], que ela montou depois, havia uma interlocução crítica intensa com muitas pessoas, de áreas bastante diferentes, ao longo de todo o processo – e depois da estreia, ao longo da temporada. Como está havendo com vocês agora. Foi uma construção em debate. Como em tantos outros trabalhos da Bia, há essa atenção para perspectivas diversas. Claro que vai se operar uma síntese ligada ao projeto artístico, que é dela.

BL: O Antunes tinha uma máxima. “Ouça tudo, depois joga fora!” Isso é uma maravilha, é muito bonito. Mas a gente tem cada vez menos um interlocutor real no próprio trabalho, no elenco. Então isso também é um empobrecimento.

FS: Não só no âmbito do elenco, o espaço de discussão pública está muito restrito.

BL: É algo que vocês perguntaram sobre a crítica. Acho que é quase como se a crítica tivesse uma independência do objeto que está sendo criticado, como se fosse, de fato, um pensamento autônomo daquilo que está sendo analisado. Então é ali que acho que a coisa acontece. E é algo necessário, a conversa. Tem que ter, porque, se não tem, morrem os dois. Morre aqui e morre lá. A crítica é uma obra em si, que dialoga com uma outra obra, que também dialoga com infinitas outras coisas e obras.

FS: É a questão da autonomia intelectual. De como ela não tem encontrado lugares mais amplos, do ponto de vista do espaço público, para o seu exercício. Houve de fato esse estreitamento da discussão comum, pública. Pois, quando se discute, se conversa, se você de fato tem autonomia, você vai produzir diferença, vai ser uma diferença em relação a quem produziu aquele objeto, aquela obra, aquele campo artístico, e se produzirá dissenso com relação ao público potencial também. Você não bajula esse público. Não se tem mais esse lugar de dissenso, assim como de análise detida. O que se tem é o elogio fácil, que caiba no Instagram, na divulgação de tal ou qual trabalho. Ou que faculte a simples adequação dessa ou daquela obra a algum trending topic do momento.

BL: E não tem nada a ver com dizer que é bom ou ruim. Tanto que eu lembro que, quando apareceu a coisa da crítica dos bonequinhos do Globo, aplaudindo sentado, em pé, eu quase morri. Eu lembro que eu fui lá, fui brigar. Eu sou tão ingênua que fui ao jornal tentar reverter, porque aquilo induzia o espectador a ir ou não assistir o filme, ver a peça.

BR: No lançamento do filme [O Diabo na Rua, no Meio do Redemunho, baseado em Grande Sertão: Veredas], você comentou a questão de ser hors concours [no Festival do Rio de 2023]. Ou seja, não concorrer. Por que isso?

BL: Eu fiquei muito mal. Flora que me convenceu, com toda a razão, de a gente passar o filme, porque realmente é uma oportunidade, a gente não pode do jeito que estão as coisas se dar ao luxo de falar não. Mas eu acho uma loucura, porque já deixa o filme como uma exceção, ele está fora. Eu acho que é um filme para estar dentro.

FS: Mas que não cabe em gavetas pré-prontas. Como o filme do Bressane, lançado na mesma época.

BR: Mas como é que está agora a distribuição?

BL: A Adriana Rattes [cofundadora do Grupo Estação] fará a distribuição. Então a gente está nessa batalha de conseguir dinheiro para fazer o lançamento.

Sofro muito com isso, não por não ter dinheiro, mas por não poder fazer as coisas que eu gostaria de fazer. Por causa de dinheiro. E, ao mesmo tempo, acho que essa precariedade me dá uma liberdade muito extraordinária. Acho que eu sou resultado dessa precariedade que nos leva a inventar desde as formas de produção até os caminhos estéticos e ao mesmo tempo gera um cansaço infinito, que de alguma forma vai nos matando.

Você faz opções, as opções têm consequências.

* Beatriz Resende é professora titular da Faculdade de Letras da UFRJ e editora da Revista Z Cultural; Flora Süssekind trabalha como professora do curso de Estética e Teoria do Teatro da Unirio; Inês Cardoso é professora do curso de Estética e Teoria do Teatro da Unirio; Lucas Bandeira é professor adjunto do Instituto de Letras da Uerj e editor da Revista Z Cultural.