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Heloisa Teixeira e o olhar para a cultura na ditadura

Uma foto da professora Heloisa Teixeira, de cabelos longos pretos, aos 27 anos, em 1967, abre o seu mais novo livro Rebeldes e marginais: cultura nos anos de chumbo (1960-1970), publicado pela Editora Bazar do Tempo, com um projeto gráfico de qualidade assinado pelo designer Thiago Lacaz. É a primeira obra que ela assina com o sobrenome materno Teixeira (antes Buarque de Hollanda), iniciativa anunciada próxima da sua eleição para a Academia Brasileira de Letras (ABL), em 2023.

Capa de Rebeldes de marginais (divulgação).
Capa de Rebeldes de marginais (divulgação).

Com uma foto da atriz Helena Ignez na capa, em trabalho realizado para o filme A família do barulho, do cineasta Julio Bressane, o livro reúne textos escritos pela professora durante o período da ditadura militar, abordando as produções da cultura, os sinais de turbulência, visões estéticas e as dinâmicas do cenário artístico brasileiro. No texto de apresentação do livro, dedicado aos seus três filhos, Heloisa disse que se sente como se estivesse dividindo também uma grande parte da sua vida, “que se mistura às experiências e pesquisas em torno desse tempo de medos e sonhos”.

Testemunha dos acontecimentos, ela acompanhou e escreveu, no calor do momento, sobre várias questões do cenário cultural, em panoramas que se interligaram com a conjuntura política e seus dilemas. O grande mérito do seu trabalho envolveu a capacidade de observação, mediação e escuta atenta dos diversos atores envolvidos no campo cultural, como cineastas, cantores e escritores. É importante contextualizar a trajetória da professora para a compreensão da sua produção, influências e redes de sociabilidade, embora a marca da observação dos fenômenos, no aqui e agora, tenha sido seu potencial de investigação.

Nos seus tempos de estudante de Letras na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), Heloisa fez amizade com a equipe que produzia o jornal Metropolitano e integrou o grupo universitário de teatro. Foi assistente do professor Afrânio Coutinho, seu orientador no mestrado e doutorado em Literatura, na antiga Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil (hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro). Os seus primeiros cursos e trabalhos acadêmicos mostram predileção por dois autores: José de Alencar e Lima Barreto. No final dos anos 1960, os textos de Roland Barthes começaram a aparecer como referência em suas aulas e estudos. Na UFRJ, construiu uma longa trajetória acadêmica em projetos variados, entre eles, a criação na Escola de Comunicação (ECO) do Centro de Documentação Cultural, que mais tarde daria origem ao Centro Interdisciplinar de Estudos Contemporâneos. Dirigiu documentários, assinou coluna em jornal e organizou exposições (Hollanda, 2009).

A avaliação da professora a respeito do cenário cultural instaurado com o golpe militar de 1964 tem forte afinidade com a visão do crítico literário Roberto Schwarz, autor do texto Cultura e política, 1964-1969, em que ele fez uma contextualização da produção cultural brasileira da década de 1960 levando em conta as limitações e contradições das iniciativas surgidas no período. Schwarz propõe o conceito de “hegemonia cultural de esquerda” para explicar as dinâmicas culturais nos primeiros anos da ditadura militar. Apesar do comando da direita no Brasil, que derrubou o governo de João Goulart, Schwarz argumentou que a esquerda conduzia grande parte dos processos culturais e, em suas próprias palavras, dará “o tom” nos “santuários da cultura burguesa”.

Foto: Chico Cerchiaro/Companhia das Letras.
Foto: Chico Cerchiaro/Companhia das Letras.

No texto “O que fazer?”, Heloisa afirmou que o golpe traz consigo a reordenação dos laços de dependência, a intensificação do processo de modernização, a racionalização institucional e a regulação autoritária das relações entre classes e grupos e, nesse cenário, a dinâmica da produção cultural dificilmente poderia ser avaliada senão em confronto com as questões de ordem política, colocadas pelos movimentos sociais. Na avaliação da professora, houve uma situação até certo ponto paradoxal: “o país, encaminhado pelos trilhos modernos da industrialização dependente, encontra suas elites cultas fortemente marcadas por uma disposição que, em sentido ampliado, poderíamos dizer de esquerda”.

De autoria de Armando Costa, Oduvaldo Vianna e Paulo Pontes, o musical Opinião, que estreou no Rio de Janeiro em dezembro de 1964, foi apontado como a primeira resposta ao golpe, trazendo uma novidade importante, diferentemente do teatro realizado pelo Centro Popular de Cultura (CPC) na fase Goulart: o contato com setores da classe média e estudantil. Segundo a autora, a mobilização desse novo público, formado em sua maioria por estudantes e intelectuais, “revelava os limites da nova conjuntura e deixava entrever a formação de uma massa política que conheceria seu momento de força e radicalização nas passeatas de 1967 e 1968”.

Para a professora, os movimentos do Cinema Novo e do Tropicalismo ganharam relevância diante do momento de readequação dos trabalhos intelectual e artístico, e de dificultada relação entre a produção cultural e a militância política. Com o Cinema Novo assumindo um papel de frente, no campo da reflexão política e estética, e expressando o conflito e as ambiguidades que dilaceravam as práticas políticas e culturais naquele momento, e o Tropicalismo, ao catalisar os impasses da situação pós-1964, iria explodir no movimento de renovação da canção popular. No teatro, a encenação da peça O Rei da Vela, dirigida por José Celso Martinez Corrêa no Teatro Oficina, aproximava-se do cinema de Glauber Rocha e da renovação conduzida na MPB pelo grupo tropicalista e do trabalho de vanguarda das artes plásticas. Heloisa considerou que se configurava uma vasta área de afinidades no campo da produção cultural que envolvia uma geração sensibilizada pelo “desejo de fazer da arte não mais o instrumento repetitivo e previsível de uma veiculação política direta, mas um espaço aberto à invenção, à provocação e à procura de novas possibilidades expressivas, culturais e existenciais”.

Em “O vazio cultural: ame-o ou deixe-o”, Heloisa fez considerações do cenário cultural que divergem das interpretações do jornalista e seu amigo, Zuenir Ventura. Em reportagem na revista Visão, com base em depoimentos de intelectuais, Zuenir cunhou a expressão “vazio cultural” para explicar os impasses e desafios da produção e criação cultural frente às pressões do mercado e aos entraves do governo militar na década de 1970. Para a autora, o cenário de interferência do Estado no processo cultural e do rigoroso controle político da veiculação das mensagens passa a exigir dos intelectuais e artistas uma série de redefinições, recolocando em novas bases o debate de suas funções e de seu lugar social, o estabelecimento de novas táticas, a composição de novas alianças e até mesmo a opção por experiências formais e de linguagem.

Em especial, como forma de demonstrar que o “vazio” não se sustentava, Heloisa esteve atenta às produções da poesia marginal e aos comportamentos e valores da contracultura de liberação sexual, experiência com drogas e busca da liberdade. Frequentou os eventos e reuniões da geração do mimeógrafo, lançando, em 1976, a antologia 26 poetas hoje, com textos de Ana Cristina César, Torquato Neto, Chacal, Waly Salomão, entre outros. A poesia marginal, de acordo com a autora, se afirma na segunda metade da década de 1970 de maneira independente, tanto do mercado cultural aquecido do momento quanto das novas políticas culturais “amigáveis” anunciadas pelo governo do presidente Ernesto Geisel.

As suas pesquisas sobre o período da ditadura militar, realizadas em parceria com Marcos Augusto Gonçalves, indicaram que, nos anos 1970, surgiram condições para a consolidação de um mercado para a produção cultural e outras características, como indícios da profissionalização do escritor, o “surto” da poesia, a promoção de concursos literários, a proliferação de revistas da área, o lançamento de obras por editoras do ponto de vista mercadológico e a abertura de espaço da imprensa para os suplementos literários.

Na avaliação de Heloisa, as características da poesia marginal, que passam pela quase identificação entre vida e arte, vão encontrar forte semelhança com o teatro alternativo do Asdrúbal Trouxe o Trombone, criado no Rio de Janeiro em maio de 1974, e com o grupo musical Novos Baianos. Em outra frente, diversa do ethos marginal, ela apontou também o papel da imprensa alternativa na resistência ao controle de informações e divulgações político-culturais do período de forte censura da grande imprensa.

A trajetória e a produção da professora envolveram os desafios de apontar e interpretar as dinâmicas culturais, em um diagnóstico que as ligassem com contextos políticos na abordagem de assuntos até mesmo pouco observados (ou renegados) pelo meio acadêmico. Os textos ajudaram a abrir a discussão nos espaços onde fluíram e deixaram, em grande medida, caminhos e sugestões que podem ser avaliados e interpretados por novos leitores e interessados nas relações entre cultura e política. Os textos representam uma visão (entre outras possíveis) ao se lembrar daquela época.

Com estudos que caminharam para outros temas (a cultura produzida nas periferias urbanas, as relações de gênero e o impacto das tecnologias digitais na produção e no consumo), Heloisa fez algo importante neste livro, pouco ainda notável no meio universitário: o compartilhamento das suas fontes de pesquisa, em uma abertura de gavetas e arquivos onde se encontram potenciais de novas pesquisas. Ao final do livro, com o título “O livro vivo: entrevistas e documentos audiovisuais”, o leitor encontrará QR codes para interação que levam a vídeos, entrevistas, depoimentos, áudios e imagens do acervo da autora, em uma iniciativa que demonstra a generosidade e a partilha de própria parte da sua vida, dedicada a compreender o campo cultural brasileiro.

* Felipe Quintino é professor do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP).
Referências bibliográficas
HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Escolhas: uma autobiografia intelectual. Rio de Janeiro: Carpe Diem; Língua Geral, 2009.

SCHWARZ, Roberto. Cultura e política. São Paulo: Paz e Terra, 2009.

TEIXEIRA, Heloisa. Rebeldes e marginais: cultura nos anos de chumbo (1960-1970). Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2024.

VENTURA, Zuenir. O vazio cultural. In: GASPARI, Elio; HOLLANDA, Heloisa Buarque de; VENTURA, Zuenir. Cultura em trânsito: da repressão à abertura. Rio de Janeiro: Aeroplano Editora, 2000.
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Onde pastam os minotauros

Onde pastam os minotauros (Todavia, 2023), de Joca Reiners Terron, se insere no conjunto de romances brasileiros que, desde 2021, têm tentado dar conta da experiência coletiva da pandemia da Covid-19. Misturando um thriller bem construído com elementos de fábula, produz uma alegoria sobre os efeitos da exploração da natureza, como a desigualdade social e o surgimento de desastres “naturais”.

Joca Reiners Terron em foto de Renato Parada
Joca Reiners Terron em foto de Renato Parada

O romance conta a história de três trabalhadores de um matadouro em Mato Grosso (“um Mato Grosso a um só tempo imaginário e perturbadoramente próximo da realidade”, conforme consta na orelha). A empresa domina a economia da cidade onde moram os protagonistas, Crente, Cão e Lucy. A narrativa acompanha os três desde as 5h26 da manhã até a meia-noite da última segunda-feira útil de 2021, dia em que planejam roubar o matadouro. O frigorífico tem se especializado em abate halal, e para isso os abatedores não muçulmanos foram despedidos ou rebaixados a cargos com salários menores. Interessados em vender também carne kosher, os proprietários vão receber naquele dia a visita de adidos da embaixada israelense e de um especialista nesse tipo de abate.

O enredo do thriller é entremeado pela história pregressa dos três personagens e pela história da região onde fica matadouro, que se afasta do realismo ao incluir a fábula de um Minotauro nascido no Centro-Oeste brasileiro. Além disso, cinco capítulos, os únicos narrados em primeira pessoa, assumem o ponto de vista de um touro que observa os trabalhadores.

Os capítulos narrados pelo touro reforçam a alegoria. Num recurso irônico ao naturalismo, o narrador-touro vê os trabalhadores do frigorífico como um sujeito coletivo, incapazes de transcender a condição de animais humanos, sujeitos ao determinismo do ambiente, da genética ou da história. Afinal, “desde o nascimento” esses humanos “estão acorrentados à paisagem invariável que se estende até o horizonte” e “seus dias são embrutecidos pela fadiga”. O touro-narrador, porém, sabe que a origem dessa tristeza e desse embrutecimento não está apenas na paisagem, mas no fato de que os donos da terra são também donos “do tempo que se esvai”, ou seja, do tempo dos trabalhadores.

A pandemia torna-se, assim, símbolo da autoimolação de uma sociedade que não sabe mais se alimentar sem produzir pobreza, como diz o touro-narrador. Há a tirania dos oprimidos pelos ricos e poderosos, no que se incluem as igrejas evangélicas, já que é numa delas que a mulher e a filha do Crente são contaminadas pelo vírus, o que causa a morte da primeira. Essa tirania produz um desastre civilizatório, assim como a crise da Covid-19. Como contraponto a essa tirania e a esse desastre, o romance nos oferece a revolta de alguns oprimidos.

Ao misturar convenções de gêneros literário como o thriller e a fábula, Joca Terron tenta dar conta das contradições que levaram a sociedade ao atual impasse que enfrentamos. Ao terminar a leitura, porém, o romance reforça o que o leitor já sabe: que não evitaremos o destino se não mudarmos nossa relação com o mundo que nos cerca.

* Lucas Bandeira é professor adjunto do Instituto de Letras da UERJ e editor da Revista Z Cultural;
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SUSAN, SIGRID E EU

Divulgação disponível em: https://editorainstante.com.br/produtos/sempre-susan-um-olhar-sobre-susan-sontag/
Que tipo de crítica, de comentário sobre arte, é desejável hoje? De fato não estou dizendo que as obras de arte são inexprimíveis, que não podem ser descritas ou interpretadas. Podem sê-lo. A questão é como. Como poderia ser uma crítica adequada à obra de arte, e que não usurpasse seu lugar?
Contra a Interpretação, Susan Sontag

Nesse famoso ensaio que faz parte do livro Contra a interpretação, de 1961, publicado no Brasil em 1987, a afirmação de Susan Sontag indica a relação importante da ensaísta e romancista com o tema deste número da Revista Z. Mais adiante, no mesmo ensaio, afirma que a função da crítica “deveria ser mostrar como é que é, até mesmo que é que é, e não mostrar o que significa”. Para terminar com a originalidade e a independência que marcavam suas reflexões: “Em vez de uma hermenêutica, precisamos de uma erótica da arte”.

O “olhar que quer mostrar o que é ou o que parece ser” surge como categoria de leitura válida na contemporaneidade. Falo sempre de um olhar feminista sobre a obra de arte, a literatura, o cinema, uma maneira de mostrar como a obra é vista pelo leitor interessado e forçosamente envolvido que é o crítico.

Foi a proposta de uma mulher lançar um olhar sobre outra mulher, a intelectual pública libertária que foi Susan Sontag (1933-2004) – decisiva para toda uma geração de estudiosos de literatura –, que me atraiu no livro de Sigrid Nunez, Sempre Susan. A expectativa foi amplamente satisfeita e, mais do que isso, ele me parece ser altamente sugestivo como exemplo de escrito próximo do biográfico.

Sigrid Nunez (1951) é uma ficcionista premiada que nasceu e vive em Nova York. Também professora e experiente no trabalho com editoras, publicou sobretudo romances. No Brasil encontramos seu livro de contos O que você está enfrentando, lançado aqui em 2021.

No meio dos anos 1970, a jovem Sigrid foi indicada para trabalhar com Susan Sontag pela prestigiosa The New York Review of Books, de que era colaboradora, e ajudar sobretudo com a correspondência acumulada enquanto a escritora operara um câncer de mama que continuava tratando.

Nova York e o mundo literário ofereciam muito em comum às duas, além do trabalho a ser feito juntas. Só que em pouco tempo, Sigrid se mudou para o famoso 340 Riverside Drive, apartamento que dava vista para o rio Hudson e por onde passavam escritores, como Joseph Brodsky, prêmio Nobel (namorado de Susan por certo tempo), críticos, jornalistas, professores, dentre os quais o charmoso amigo Edward Said e outros intelectuais críticos do status quo americano.

Pouco depois de começar a frequentar o apartamento, foi intrépida: passou a namorar David Rieff, filho único da escritora, que, é claro, morava com a mãe. É sobretudo sobre o período de um ano e meio em que conviveram e conversaram os três, geralmente em volta da mesa da cozinha, que o livro fala.

A mãe que dormia no quarto ao lado fora sempre determinada a não deixar que houvesse um gap geracional entre ela e David, tratando-o como adulto desde criança. Fica, porém, chocada quando um psicoterapeuta lhe pergunta certa vez: “Por que você tentou fazer de seu filho um pai?”. São confidências que vão da sessão de terapia aos encontros, amores e desilusões com homens e mulheres que a poderosa intelectual partilha com a aspirante a escritora.

Escrever sobre alguém é sempre mais do que falar do biografado, é sempre, de algum modo, falar sobre si mesmo. O período serviu a Sigrid como iniciação ao mundo literário, político, do gosto requintado, e o livro é, de certa forma, uma breve novela de formação.

A figura de Susan que nos é apresentada é cercada de admiração e afeto, mas também não é poupada na apresentação de suas idiossincrasias: generosa e exigente, forte mas com dificuldade de ficar sozinha, apaixonada ou furiosa. Cobrava da jovem dedicação à carreira de escritora, mas exigia sua companhia o tempo todo. Não tolerava qualquer vitimização, especialmente nas mulheres: “Cuidado com a guetização. Resista à pressão de pensar em si mesma como uma mulher escritora”.

Sigrid referenda que Susan era feminista, mas era também capaz de criticar as irmãs feministas, consideradas pouco intelectualizadas, ingênuas e sentimentais, e garantia que o cânone (ou a arte, ou o gênio, ou o talento, ou a literatura) “não era um empregador que oferece oportunidades iguais”. E não é mesmo.

A melhor definição de Susan Sontag forma todo um parágrafo que resume a biografada e evidencia o talento da romancista:

Ela era tão Nova York. E no entusiasmo, na energia e na ambição, no poder de tudo fazer, no espírito de superação de revezes, na natureza infantil – e na crença em seu excepcionalismo e no poder da própria vontade, na autocriação e na possibilidade de renascer, na possibilidade de novas chances infinitas e de tudo ter –, também era a pessoa mais estadunidense que conheci.

A identidade nacional apontada não deixa de parecer estranha ao falar da intelectual que em 1966 afirmava: “Os Estados Unidos foram fundados sobre um grande genocídio, sobre o pressuposto inquestionável do direito dos brancos europeus de exterminar uma população nativa”.

Conheci Susan Sontag pessoalmente em sua vinda ao Brasil em 1993 para lançamento do romance O amante do vulcão pela Companhia das Letras. Seus livros de ensaios arrebatavam a intelectualidade durante os anos 1980. Cansados do esquematismo estruturalista, já distantes da herança francesa, pensadores e formadores de opinião recebiam os escritos de uma mulher de pensamento independente que já estivera até no Vietnã do Norte como uma possibilidade nova de se olhar cultura e política.

Luiz Schwarcz, seu editor, preparou um lançamento nos moldes americanos, com a autora presente, lendo trecho do romance diante de uma plateia fascinada: a mecha branca, o sorriso largo, todo um corpo que expressava a coragem daquela mulher.

No entanto, o romance não foi o sucesso que as publicações anteriores, conjuntos de ensaios, pareciam anunciar.

Em Sempre Susan, a autora faz o tempo todo restrições à ficção em que a ensaísta se empenhava tanto e que ela lia com dificuldade: “assim como outros leitores de sua obra, considerei os ensaios fascinantes e os romances custosos de ler”.

Depois, em setembro de 2002, a Fundação Biblioteca Nacional sediou o seminário internacional “Caminhos do pensamento: Horizontes da memória”. Susan Sontag foi convidada a partilhar com Carlo Ginzburg, popular entre nós pela obra O queijo e os vermes, a mesa “Conceitos de memória contemporâneos”. Eduardo Portella, diretor da Biblioteca, que fora meu professor e orientador, me pediu que fosse ao aeroporto para recebê-la na véspera da palestra. E lá fui eu, tensa e insegura.

A figura da escritora não desmentia as hipnóticas fotos de estúdio que conhecíamos, e do aeroporto fomos para o Hotel Glória, onde ficaria hospedada.

Apesar da gentileza da convidada, tremi nas bases quando chegamos à recepção. Queria um quarto com cama de casal – mesmo sozinha só dormia em camas duplas, disse –, mesa para escrever com um abajur que realmente iluminasse – justíssimo – e, finalmente, um banheiro com banheira. Aí fiquei em pânico: banheira! Felizmente estávamos no velho Glória e havia um único quarto com todos os requisitos.

Era cedo, havia um dia todo pela frente e ela não conhecia ninguém na cidade. Propus então darmos um passeio e fomos ver a praia, Copacabana, no tempo adorável de setembro no Rio. No caminho falou que tivera câncer e logo se corrigiu: eu tenho câncer. Deu fome e fomos almoçar. Pensei na reles diária oferecida para os gastos, mas ponderei: euzinha, almoçando com Susan Sontag, tenho que caprichar. Estacionamos então num belo restaurante de frutos do mar em frente à praia para o mais inesquecível almoço que desfrutei. Era dia de sorte, tudo estava ótimo, inclusive o vinho que ela pediu. Enquanto conversávamos, a cada frase parecia que de algum modo me testava, enquanto falava sobre o mundo, os Estados Unidos e literatura. No carro me dera uns foras, a maneira como eu entrara no táxi e outra bobagem, mas fomos ficando quase amigas.

Sigrid fala várias vezes do horror que Sontag tinha de ficar sozinha, então era melhor aquela professora brasileira do que um almoço sem companhia no hotel meio triste.

Às páginas tantas falei alguma coisa sobre os anos em que morei na Europa e subitamente a crítica passou a prestar atenção ao que eu falava. Em resposta a suas muitas perguntas – alma de jornalista –, contei que morara em Paris, estudara na École de Hautes Études e assistira às aulas de Roland Barthes. Fora um ano especial para os estudantes, porque as aulas eram dadas num teatro e o crítico francês, vaidoso, aproveitava a iluminação da ribalta.

Daí em diante tudo mudou e tornou-se uma conversa quase entre pares. Poupava minhas observações para ouvi-la o máximo possível e tudo o que falava era da maior importância, sempre marcado pelo magnetismo de sua presença. Política ainda mais que literatura, cultura em todas as expressões possíveis, e pelo mundo afora.

Lembrei-me tanto dessa cena quando li o que Sempre Susan fala sobre a admiração que a ensaísta, ela mesma capaz de se utilizar da belle écriture, tinha por Barthes. No livro está o relato de uma conversa entre as duas a propósito de como David e sua mãe eram próximos e se pareciam:

Ela me mostrou uma fotografia que a encantava, o jovem Roland Barthes com sua mãe (…) Roland Barthes, um dos maiores heróis literários de Susan, a quem eu muito admirava também, viveu com a mãe até o dia em que ela morreu.

A experiência barthesiana nem foi tão importante para mim. Naquele momento o crítico seguia em análises que me pareciam um tanto áridas, no caminho do enjoado S/Z. Nada ainda dos arrebatadores escritos de A câmara clara, que serviu de estímulo para Sontag escrever Sobre a fotografia, ou o íntimo Incidentes, mas me garantiu minimamente o interesse daquela mulher poderosa durante o almoço.

Concluímos o passeio enquanto esperávamos o quarto ficar pronto, indo, por sugestão dela, ao Pão de Açúcar. Subimos até o morro da Urca e lá me dei conta de grave erro meu: não levara nenhuma máquina fotográfica (pré-história: não havia celular para fotos!). Um quiosque vendia aquelas pequenas máquinas descartáveis. Perguntei se poderia tirar uma foto dela com aquela vista, e é claro que ela aprovou, adorara fotos. Foi com a precária maquininha que pude garantir que não fora tudo um delírio.

Figura 1: Susan Sontag em visita ao Rio de Janeiro.

Antes de irmos, propôs uma foto juntas e essa é mais uma que resistiu ao tempo.

Figura 2: Susan Sontag posa ao lado da professora Beatriz Resende.

Voltamos para o hotel, deixei-a no quarto, onde abriu a mala e tirou uma série de livros seus e me disse que escolhesse um. Interessei-me por uma obra crítica que se ocupava de teatro e eu não conhecia. “Rubbish”, exclamou, e me estendeu um romance.

Sigrid diz: “insistia que era uma escritora de ficção que por acaso escrevia ensaios, e não o contrário”.

No dia seguinte era a conferência. Na programação não constava o título, porque a palestrante não mandara. Ainda em nossa breve biografia a autora fala da relação ambígua que Susan guardava com as palestras, conferências, aparições públicas de modo geral, necessárias para vender livros, e ela precisava vender. Sigrid fala da impressão que a ensaísta passava de que, se não fosse pelo dinheiro, estava perdendo seu tempo.

Ganhou fama de ser um monstro de arrogância e falta de consideração, mas conforme a vida seguia, os convites continuavam chegando, ela os aceitava, e a má reputação crescia cada vez mais.

E vai mais além:

“Não tenho uma palestra entalada”, dizia, insinuando que ter uma palestra pronta não era algo de que qualquer escritor deveria se orgulhar. Ela improvisava – com resultados variados.

De fato a palestra, com “tema a confirmar”, não foi o sucesso que poderia ter sido. Na verdade, não apresentou nada que os leitores mais aplicados já não conhecessem. Carlo Ginzburg fez uma bela fala sobre “Memória e Distância”, mas, por mais que o historiador italiano esbanjasse simpatia, ninguém poderia concorrer com o carisma de Susan.

Deixou-nos em dezembro de 2004, pouco depois de publicar o fundamental Diante da dor dos outros, dedicado a David, sobre guerra, dor, violência, imagens de atrocidades. O livro começa por citar Virginia Woolf escrevendo sobre a Segunda Grande Guerra, passa por conflitos e atentados, e, a cada imagem do horror de novas guerras telemonitoradas a que assistimos, o livro parece mais atual.

Falando de fotos que constroem nossa ideia do presente e do passado imediato, diz: “Essas ideias são chamadas de ‘memórias’ e isso, no fim das contas, é uma ficção”.

* Beatriz Resende é professora titular da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pesquisadora do CNPq e da FAPERJ e editora da Revista Z Cultural.
Referências bibliográficas
NUNEZ, Sigrid. Sempre Susan: Um olhar sobre Susan Sontag. São Paulo: Instante, 2023.
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NO VESTÍGIO, UMA LEITURA DO LIVRO DE CHRISTINA SHARPE

Christina Sharpe em foto de Rachel Eliza Griffiths (Divulgação)

O modo mais honesto de iniciar um comentário sobre o livro de Christina Sharpe (2023) – No vestígio: negridade e existência – é reconhecer o incômodo, certa perturbação, que como psicanalista prefiro nomear de mal-estar. Pode ser descrito, ainda, como espécie de desequilíbrio: ficamos zonzos, talvez, como em alto-mar, quando somos obrigados a buscar o horizonte, o ponto fixo, a referência que nos permita ficar de pé.

Sharpe nos deixa, então, deixou-me, ao menos, no vestígio. O que pode ter muitos significados. A dificuldade de tradução que acompanha o texto se refere à distância continental das línguas e aos impasses da travessia. Às vezes, são necessárias muitas palavras e a imprecisão deve ser explorada com vagar. Wake tem sentidos diversos que, em português, requerem outras palavras: vigília, velar, velório, vereda.

Há algo de específico nesse mal-estar, que talvez torne preciso recorrer a categorias como lugar de fala  (Ribeiro, 2019) ou saberes localizados (Haraway, 1995) para dizer da minha leitura e do quanto posso me implicar ou ser implicado pelo pensamento e afetos evocados por Sharpe. Afinal, ainda que não seja, nos termos de Charles Mills (2023), um signatário, sou certamente um beneficiário do contrato racial e da violência que engendra.

Não seria, contudo, justo falar, a partir do que li, em identidade. Melhor, necessário, dizer de experiências, experiências compartilhadas, aquelas capazes de se sobrepor à distância temporal de alguns séculos, fazendo passado e presente coexistirem no mesmo instante – afinal, para muitas pessoas Negras – grafado assim, em maiúscula, como quer a autora – não é necessário viajar no tempo, como a personagem de Octávia Butler (2019), em Kindred, para viver concretamente a violência da escravização, da transmutação de si mesmo em coisa.

Experiências, contudo, que não podem ser compartilhadas por um homem branco, por exemplo. O que não quer dizer que o livro não nos toque na carne. Tais experiências, como a do porão do navio, do tumbeiro, percorrem todo o livro.

A travessia proposta pela autora se faz em quatro momentos que se movimentam e se contaminam – vestígio, navio, porão, tempo –, capítulos que se encadeiam e se sobrepõem, como o passado e o presente na sensibilidade do vestígio. Navegando-os, descobrimos sentidos novos para palavras conhecidas, e conhecemos outras, como tumbeiro. Navio e sepultura, transporte para a não humanidade e depois a morte.

O destino do livro, porto (um pouco mais) seguro, é fazer do “vestígio” um problema para o pensamento. Há muito a elaborar.

Mas será preciso, antes, perguntar de que pensamento falamos quando buscamos, ao mesmo tempo, interrogar o tipo de racionalidade objetivante, que acaba por transformar pessoas em coisas para descartá-las em benefício de outras mais valiosas, ou simplesmente liquidá-las em troca do seguro comercial. Desdobrar o vestígio em vigília, implica em pensar de outro modo, uma forma de in-disciplina recusando a racionalidade que faz com que as pessoas pretas sejam “com frequência disciplinadas a pensar por meio de nossa própria aniquilação”. Só assim será possível formular “um método para encontrar um passado que não passou” (Sharpe, 2023, p. 33).

Quando afirma se distanciar de intelectuais que buscam respostas políticas, jurídicas ou filosóficas para aproximar-se da arte – da literatura à performance passando pela cultura visual –, Sharpe nos alerta para a incidência da sensibilidade na vigília que reconfigura o pensar. Trata-se de um novo regime de pensamento, de saber, novo regime estético, como quer Paul B. Preciado (2020), que fala a partir da resistência a outra operação colonial de corpos. Como em muitos outros momentos, o pensamento de Sharpe se aproxima de temas caros ao pensamento queer, sobretudo ao que nele se engendra de utopia, como o trabalho de subversão da cronologia que nos incita a falar de um “passado que não passou reaparece, sempre, para romper o presente” (Sharpe, 2023, p. 25). É assim que o vestígio se torna “uma forma de consciência” (Sharpe, 2023, p. 35).

Outras aproximações podem ser feitas com o pensamento queer, inclusive em relação à interrogação do modo como o pensamento (ocidental, branco, europeu, masculino, heterossexual) definiu as fronteiras da humanidade e nelas sentou guarda armado de regimes de verdade e de dispositivos de poder. Definindo, ainda, o modo como se transmite tal humanidade ou seu contrário.

Sharpe nos lembra que a genealogia, a filiação, que, para muitos, garante a ordem simbólica e o primado da civilização sobre a barbárie, no vestígio, opera a persistência da exclusão, pois o que se transmite, simbolicamente, é a não existência:

Viver (n)o vestígio da escravização é viver “a vida após a morte da propriedade” e viver a vida após a morte da ideia de partus sequitur ventrem (quem nasce segue o ventre), em que a criança Negra herda o (não) status, a (não) existência de sua mãe. Essa herança de um (não) status está aparente em toda parte agora na criminalização contínua de mulheres e crianças Negras. (Sharpe, 2023, p. 36)

Questões de gênero chegam a ser tratadas diretamente no livro e os corpos Negros são aproximados de corpos queer, tendo sua experiência marcada por um asterisco seguindo a palavra trans, como em Jack Halberstan (2023). Corpos que resistem à generificação, à epistemologia da diferença sexual, ao mesmo tempo que, como propõe Berenice Bento (2023), estão aquém dela, pois estão fora da humanidade. Nos termos de Sharpe, ejetados.

O asterisco após o prefixo “trans” mantém o espaço aberto para o pensamento (a partir dessa e nessa posição). O asterisco também se refere a uma gama de experiências incorporadas chamadas de gênero e ao desmantelamento do gênero euro-ocidental, sua incapacidade de se manter na/sobre a carne Negra. O asterisco diz sobre uma série de configurações da existência Negra que tomam a forma de tradução [translation], transatlântico, transgressão, transgênero, transformação, transfiguração, transcontinental, transfixado, transmediterrâneo, transubstanciação (processo pelo qual poderíamos entender a transformação de corpos em carne e depois em mercadorias fungíveis, mantendo a aparência de carne e sangue), transmigração e muito mais. (Sharpe, 2023, p. 66)

O pensamento em vigília, que vela, se faz afetivamente, por afetação, não havendo separação no vestígio, na turbulência, na vigília, entre razão e emoção. Recusa-se, nos termos de Saidiya Hartman, a “violência da abstração” (Sharpe, 2023, p. 24). O trabalho intelectual se dá com os nervos à flor da pele. Da mesma forma, o político contém o íntimo. A dor sofrida na intimidade é testemunho da subjugação política. Subjugação vivida em público e no privado, como na privação.

O livro se inicia com relatos de perdas, íntimas, pessoais, o que se articula à busca de uma narrativa singular e de suas condições e modos de produção. Mais uma das razões pelas quais a obra de Christina Sharpe interessa a um psicanalista branco e cisgênero que escuta pessoas negras e trans, desejando que essa escuta não se ancore no silenciamento do outro, de muitos outros: “incluo o que é pessoal aqui para conectar as forças sociais acerca do que é existir no vestígio para uma família específica ao que é existir no vestígio para todas as pessoas Negras” (Sharpe, 2023, p. 23).

Trata-se de falar de experiências subjetivas singulares a partir do que lhe seria, em princípio, exterior, evitando psicologização ou essencialização, privilegiando experiências e as estruturas que as produzem. Dessa forma, também é possível falar da negridade sem atribuição de marca identitária comum: este, se produz ao longo do tempo e é o interminável desse tempo, da redução dos corpos Negros a coisas, que define os limites possíveis da experiência. Por outro lado, essa escrita corporificada, questiona, ao mesmo tempo, o sujeito universal e o regime de produção de conhecimento instituído a partir do centro europeu.

A linguagem já está, aliás, desde sempre encarnada, como nos mostra o caso George Floyd, estrangulado por um policial na cidade de Minneapolis, lembrado pela autora, ou a morte por asfixia de Genivaldo num camburão da Polícia Rodoviária Federal, no estado em que moro, Sergipe. A falta de ar, a impossibilidade de respirar, o sufocamento intencional não são metáforas.

Essa passagem, travessia entre corpos e nomes, palavras, é algo central na escravização: “A primeira linguagem que os guardas do porão usam com as pessoas cativas é a linguagem da violência: a língua da sede e da fome e da dor e do calor, a língua da arma e da coronhada, o pé e o punho, a faca e o arremesso ao mar” (Sharpe, 2023, p. 128).

A morte está presente em quase todas as páginas e talvez o livro possa ser descrito como elegante e poético testemunho de um trabalho de luto. Mas como se esse luto fosse infinito, como se o preciso fosse sempre e para sempre continuar a velar mortes que não se esgotam, se desdobram, se repetem em outros corpos que de algum modo são um mesmo, um só. “Vidas após a morte da escravidão”, escreve Sharpe.

Sharpe faz mais do que nos recordar a escravização e o tráfico de pessoas. Não se trata apenas de um esforço de rememoração, ainda que este seja necessário e árduo. Trata-se de reconhecer no presente a repetição, a permanência do passado, permanência do desastre: “os meios e modos de sujeição infligidos às pessoas Negras podem ter mudado, mas o fato e a estrutura dessa sujeição permanecem” (Sharpe, 2023, p.31).

Vestígio pode ser o rastro deixado pelo navio que cruza o oceano carregando pessoas transformadas imaginariamente em coisas, mercadoria. Ou pessoas que morrerão no caminho e só então serão consideradas humanas, como os refugiados mortos nas costas europeias ontem. Talvez também hoje, provavelmente amanhã. Numa nota de rodapé, aprendemos que o desastre “é o desdobramento contínuo de séculos do comércio de pessoas africanas” (Sharpe, 2023, p. 18).

Examinando obras de arte, Sharpe encontra vestígios humanos: a personagem negra que aparece apenas para desaparecer; a criança com uma etiqueta em seu rosto onde se lê navio; Délia e Drana, fotografadas “para revelar como a negridade é e como olhar para ela” (Sharpe, 2023, p. 86). Destinos que se repetem, violência tão contínua quanto gratuita, imagens que não são verdadeiramente percebidas, seres espectrais, retratos de (não) existências. Como aqueles seres que foram lançados ao mar de uma embarcação chamada Zong, antes Zorgue, que significa cuidado. Seres espectrais, como a Amada de Toni Morisson (2007), personagem recorrente no argumento de Sharpe, ou como a senhora Jackson do filme The Forgotten Space:

A maneira como ela é incluída no filme e a incapacidade de este compreender seu sofrimento fazem parte da ortografia do vestígio. O espaço esquecido é a negridade, e quando a sra. Jackson é conjurada para preenchê-lo ela aparece como um espectro. (Sharpe, 2023, p. 61)

A semântica fantasmagórica é recorrente – espectros, assombrações – para descrever uma experiência que talvez possamos aproximar do Unheimilich freudiano (Freud, 2021), do que intimida, do estranho que surge no familiar, ou o contrário.

O que dá sentido maior à história de morte do Zong, assassinatos percebidos como lançamento de mercadoria ao mar, tem importância vital no trabalho de/na vigília de Sharpe.

O Zong foi levado ao conhecimento do grande público britânico pela primeira vez por jornais que noticiavam que os proprietários do navio estavam processando os seguradores pelo valor do seguro daquelas 132 (ou 140, ou 142) pessoas africanas assassinadas. Os pedidos de indenização são parte do que Katherine McKittrick chama de “matemática da vida negra”, o que inclui essa matabilidade [killability], esse lançamento ao mar. (Sharpe, 2023, p. 61)

Assim, Sharpe nos adverte que a redução do outro à vida nua, bem como a separação entre vidas dignas e indignas de serem vividas, elementos centrais da leitura da biopolítica proposta por Agamben (2010), é uma operação política de larga escala posta em movimento muito antes do nacional socialismo alemão e dos seus campos de concentração. Tudo começou muito antes, apenas não foi percebido. O mal, até então, se abatera apenas sobre seres que podiam ser coisas, podiam ser facilmente situados além das nossas possiblidades de identificação.

No Zong, o navio, há um porão no qual se transportam pessoas transmutadas em mercadorias que podem, em caso de necessidade, serem lançadas para a morte, no vestígio do navio, sem que isso seja visto, entendido, enunciado como assassinato. Aqui, a importância das palavras em seu múltiplo sentido, importa. O porão do tumbeiro, que se chamou cuidado, se escreve hold, e nada está mais longe do to hold, que no psicanalista Donald Winnicott (2022) deriva em holding, condição imprescindível para que o bebê se torne um ser.

Esse navio, que transporta vidas que serão assassinadas e de algum modo já tem seu destino traçado, não no momento em que embarcam ou são conduzidas ao porão, mas no momento em que nascem, partus sequitur ventrem, ainda navega nas águas do mediterrâneo e ancora em campos de refugiados. Não por acaso, o navio tem um ventre.

O Zong se repete; ele se repete e se repete por meio da lógica e do cálculo da desumanização iniciada há muito tempo e ainda operante. Os detalhes e as mortes se acumulam; os idem idem preenchem os arquivos de um passado que ainda não é passado. Os porões se multiplicam. (2023, p.133)

Verificação rotineira de documentos, baculejo, centros de detenção de famílias, centros de detenção, Lager [campos de refugiados], zonas de quarentena… são outros nomes pelos quais se pode reconhecer o porão como ele aparece em Calais, Toronto, Nova York, Haiti, Lampedusa, Trípoli, Serra Leoa, Bayeruth e assim por diante. (2023, p.153)

Importante dizer, enfim, que No vestígio nos dá respostas a certo discurso crítico dos movimentos ditos identitários, que procura desqualificar a retomada da categoria de raça pelos movimentos antirracistas, afirmando que esta categoria foi expulsa do campo da ciência e que tanto a escravização acabou quanto as antigas colônias se emanciparam[1]. O faz recordando, tecendo laços entre esse passado e o que vemos hoje na TV – os navios de refugiados no mediterrâneo, mas poderia ser o trabalho análogo à escravidão nos grandes latifúndios brasileiros –, o que vivem em seus corpos, pessoas marcadas pela cor negra da sua pele[2]. A cristalização da identidade é, por outro lado, uma das marcas do/no vestígio, não apenas uma imagem, estereótipo, que permite o reconhecimento imediato e a pronta ação das forças da ordem, mas a inscrição de um destino:

Uma professora do primeiro ano em Paterson, Nova Jersey, posta no Facebook que vê em seus alunos e alunas “futuros criminosos”. “Futuro criminoso” se junta a “ex-mãe” no anagramatical: não criança, não mãe, não ser. No vestígio, devemos conectar a indústria do nascimento à indústria prisional, a máquina que degrada, nega e eviscera a justiça reprodutiva à máquina que encarcera. (Sharpe, 2023, p. 160)

* Eduardo Leal Cunha é psicanalista. Doutor em Saúde Coletiva (IMS/UERJ), professor titular da Universidade Federal de Sergipe e pesquisador associado da Universidade de Paris. Publicou recentemente O que aprender com as transidentidades: psicanálise, gênero e política, pela Editora Criação Humana, e O político e o íntimo: subjetivação e política, do impeachment à pandemia, pela Editora Devires, onde dirige a coleção Impertinências.
Referências bibliográficas
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

ANDRADE, Érico. Negritude sem identidade. São Paulo: n-1, 2023.

BENTO, Berenice. Europa: Homonacionalismo e racismo, Revista Cult, 22 de setembro de 2023. Disponível em https://revistacult.uol.com.br/home/europa-homonacionalismo-e-racismo/. Acesso em 8 fev. 2024.

BUTLER, Octavia. Kindred: laços de sangue. São Paulo: Morro Branco, 2019.

FREUD, Sigmund. O incômodo. São Paulo: Blucher, 2021.

HALBERSTAN, Jack. Trans*: uma abordagem curta e curiosa sobre a variabilidade de gênero. Salvador: Devires, 2023.

HARAWAY, Donna. Saberes localizados, Cadernos Pagu (5), p. 7-41, 1995.

MILLS, Charles. O contrato racial. Rio de Janeiro: Zahar, 2023.

MORRISON, Toni. Amada. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Cia. das Letras, 2007.

PRECIADO, Paul B. Je suis um monstre qui vous parle. Paris: Grasset, 2020.

RIBEIRO, Djamila. Lugar de fala. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.

ROUDINESCO, Elizabeth. O eu soberano: ensaio sobre as derivas identitárias. Rio de Janeiro: Zahar, 2022.

SHARPE, Christina. No vestígio: negridade e existência. São Paulo: Ubu, 2023.

WINNICOTT, Donald. Processos de amadurecimento e ambiente facilitador. São Paulo: Ubu, 2022.
Notas
[1] Ver, por exemplo, Roudinesco, Elizabeth. O eu soberano: ensaio sobre as derivas identitárias. Rio de Janeiro: Zahar, 2022.

[2] Logo depois de encontrar Christina Sharpe, me deparei com Érico Andrade e seu Negritude sem identidade, de modo que, para mim, ambos acabam se encontrando frequentemente no que penso e sinto.