Vale a pena ler de novo
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Eztetyka da fome

“Eztetyka da Fome” talvez tenha sido o texto que oferece um retrato mais fiel da vibração dos anos 1960. Inovador, guerreiro, sonhador, utópico. Claramente anti-hollywoodiano, o manifesto foi o grande sucesso do Festival de Cannes de 1965. Desafiava a noção de cinema político e contrapropunha uma estética revolucionária que espelhasse a realidade brasileira. Legitimava a violência do oprimido e a resistência cultural terceiro mundista. Não há como ler esse texto e não voltar imediatamente ao sonho e ao ethos da idade de ouro da cultura brasileira. Experimente agora!

Heloisa Teixeira
curadora da seção Vale a Pena Ler de Novo

Dispensando a introdução informativa que se transformou na característica geral das discussões sobre a América Latina, prefiro situar as reações entre nossa cultura e a cultura civilizada em termos menos reduzidos do que aqueles que, também, caracterizam a análise do observador europeu. Assim, enquanto a América Latina lamenta suas misérias gerais, o interlocutor estrangeiro cultiva o sabor dessa miséria, não como sintoma trágico, mas apenas como dado formal em seu campo de interesse. Nem o latino comunica sua verdadeira miséria ao homem civilizado, nem o homem civilizado compreende verdadeiramente a miséria do latino.

Eis – fundamentalmente – a situação das Artes no Brasil diante do mundo: até hoje, somente mentiras elaboradas da verdade (os exotismos formais que vulgarizam problemas sociais) conseguiram se comunicar em termos quantitativos, provocando uma série de equívocos que não terminam nos limites da Arte mas contaminam sobretudo o terreno geral do político.

Para o observador europeu, os processos de criação artística do mundo subdesenvolvido só o interessam na medida que satisfazem sua nostalgia do primitivismo; e este primitivismo se apresenta híbrido, disfarçado sob tardias heranças do mundo civilizado, mal compreendidas porque impostas pelo condicionamento colonialista.

A América Latina permanece colônia, e o que diferencia o colonialismo de ontem do atual é apenas a forma mais aprimorada do colonizador: e além dos colonizadores de fato, as formas sutis daqueles que armam futuros botes.

O problema internacional da AL ainda é um caso de mudança de colonizadores, sendo que uma libertação possível estará ainda por muito tempo em função de uma nova dependência.

Esse condicionamento econômico e político nos levou ao raquitismo filosófico e à impotência, que, às vezes inconsciente, às vezes não, geram no primeiro caso a esterilidade e no segundo a histeria.

A esterilidade: aquelas obras fartamente encontradas em nossas artes, onde o autor se castra em exercícios formais que, todavia, não atingem a plena possessão de suas formas. O sonho frustrado da universalização: artistas que não despertaram do ideal estético adolescente. Assim, vemos centenas de quadros nas galerias, empoeirados e esquecidos; livros de contos e poemas; peças teatrais, filmes (que, sobretudo em São Paulo, provocaram inclusive falências)… O mundo oficial encarregado das artes gerou exposições carnavalescas em vários festivais e bienais, conferências fabricadas, fórmulas fáceis de sucesso, coquetéis em várias partes do mundo, além de alguns monstros oficiais da cultura, acadêmicos de Letras e Artes, júris de pintura e marchas culturais pelo país afora. Monstruosidades universitárias: as famosas revistas literárias, os concursos, os títulos.

A histeria: um capítulo mais complexo. A indignação social provoca discursos flamejantes. O primeiro sintoma é o anarquismo que marca a poesia jovem até hoje (e a pintura). O segundo é uma redução política da arte que faz má política por excesso de sectarismo. O terceiro, e mais eficaz, é a procura de uma sistematização para a arte popular. Mas o engano de tudo isso é que nosso possível equilíbrio não resulta de um corpo orgânico, mas de um titânico e autodevastador esforço de superar a impotência; e, no resultado desta operação a fórceps, nós nos vemos frustrados, apenas nos limites inferiores do colonizador; e se ele nos compreende, então, não é pela lucidez de nosso diálogo mas pelo humanitarismo que nossa informação lhe inspira. Mais uma vez, o paternalismo é o método de compreensão para uma linguagem de lágrimas ou de mudo sofrimento.

A fome latina, por isso, não é somente um sintoma alarmante: é o nervo de sua própria sociedade. Aí reside a trágica originalidade do Cinema Novo diante do cinema mundial: nossa originalidade é a nossa fome e nossa maior miséria é que essa fome, sendo sentida, não é compreendida.

De Aruanda a Vidas Secas, o Cinema Novo narrou, descreveu, poetizou, discursou, analisou, excitou os temas da fome: personagens comendo terra, personagens comendo raízes, personagens roubando para comer, personagens matando para comer, personagens fugindo para comer, personagens sujas, feias, descarnadas, morando em casas sujas, feias, escuras: foi esta galeria de famintos que identificou o Cinema Novo com o miserabilismo tão condenado pelo Governo, pela crítica a serviço dos interesses antinacionais, pelos produtores e pelo público – este último não suportando as imagens da própria miséria. Esse miserabilismo do Cinema Novo opõe-se à tendência do digestivo, preconizada pelo crítico-mor da Guanabara, Carlos Lacerda: filmes de gente rica, em casas bonitas, andando em automóveis de luxo; filmes alegres, cômicos, rápidos, sem mensagens, de objetivos puramente industriais. Esses são os filmes que se opõem à fome, como se, na estufa e nos apartamentos de luxo, os cineastas pudessem esconder a miséria moral de uma burguesia indefinida e frágil ou se mesmo os próprios materiais técnicos e cenográficos pudessem esconder a fome que está enraizada na própria incivilização. Como se, sobretudo, neste aparato de paisagens tropicais, pudesse ser disfarçada a indigência mental dos cineastas que fazem esse tipo de filme. O que fez do Cinema Novo um fenômeno de importância internacional foi justamente seu alto nível de compromisso com a verdade; foi seu próprio miserabilismo, que, antes escrito pela literatura de 30, foi agora fotografado pelo cinema de 60; e, se antes era escrito como denúncia social, hoje passou a ser discutido como problema político. Os próprios estágios do miserabilismo em nosso cinema são internamente evolutivos. Assim, como observa Gustavo Dahl, vai desde o fenomenológico (Porto das Caixas) ao social (Vidas Secas), ao político (Deus e o Diabo), ao poético (Ganga Zumba), ao demagógico (Cinco Vezes Favela), ao experimental (Sol sobre a Lama), ao documental (Garrincha, Alegria do Povo), à comédia (Os Mendigos), experiências em vários sentidos, frustradas umas, realizadas outras, mas todas compondo, no final de três anos, um quadro histórico que, não por acaso, vai caracterizar o período Jânio-Jango: o período das grandes crises de consciência e de rebeldia, de agitação e revolução que culminou no Golpe de Abril. E foi a partir de Abril que a tese do cinema digestivo ganhou peso no Brasil, ameaçando, sistematicamente, o Cinema Novo.

Nós compreendemos esta fome que o europeu e o brasileiro na maioria não entendem. Para o europeu é um estranho surrealismo tropical. Para o brasileiro é uma vergonha nacional. Ele não come mas tem vergonha de dizer isso; e, sobretudo, não sabe de onde vem essa fome. Sabemos nós – que fizemos estes filmes feios e tristes, estes filmes gritados e desesperados onde nem sempre a razão falou mais alto – que a fome não será curada pelos planejamentos de gabinete e que os remendos do tecnicolor não escondem mas agravam seus tumores. Assim, somente uma cultura da fome, minando suas próprias estruturas, pode superar-se qualitativamente: e a mais nobre manifestação cultural da fome é a violência.

A mendicância, tradição que se implantou com a redentora piedade colonialista, tem sido uma das causadoras de mistificação política e da ufanista mentira cultural: os relatórios oficiais da fome pedem dinheiro aos países colonialistas com o fito de construir escolas sem criar professores, de construir casas sem dar trabalho, de ensinar ofício sem ensinar o analfabeto. A diplomacia pede, os economistas pedem, a política pede: o Cinema Novo, no campo internacional, nada pediu: impôs-se a violência de suas imagens e sons em vinte e dois festivais internacionais.

Pelo Cinema Novo: o comportamento exato de um faminto é a violência, e a violência de um faminto não é primitivismo. Fabiano é primitivo? Antão é primitivo? Corisco é primitivo? A mulher de Porto das Caixas é primitiva?

Do Cinema Novo: uma estética da violência antes de ser primitiva e revolucionária, eis aí o ponto inicial para que o colonizador compreenda a existência do colonizado: somente conscientizando sua possibilidade única, a violência, o colonizador pode compreender, pelo horror, a força da cultura que ele explora. Enquanto não ergue as armas, o colonizado é um escravo: foi preciso um primeiro policial morto para o francês perceber um argelino.

De uma moral: essa violência, contudo, não está incorporada ao ódio, como também não diríamos que está ligada ao velho humanismo colonizador. O amor que essa violência encerra é tão brutal quanto a própria violência, porque não é um amor de complacência ou de contemplação mas um amor de ação e transformação.

O Cinema Novo, por isso, não fez melodramas: as mulheres do Cinema Novo sempre foram seres em busca de uma saída possível para o amor, dada a impossibilidade de amar com fome: a mulher protótipo, a de Porto das Caixas, mata o marido; a Dandara de Ganga Zumba foge de guerra para um amor romântico; Sinhá Vitória sonha com novos tempos para os filhos; Rosa vai ao crime para salvar Manuel e amá-lo em outras circunstâncias; a moça do padre precisa romper a batina para ganhar um novo homem; a mulher de O Desafio rompe com o amante porque prefere ficar fiel ao seu mundo burguês; a mulher em São Paulo S.A. quer a segurança do amor pequeno-burguês e para isto tentará reduzir a vida do marido a um sistema medíocre.

Já passou o tempo em que o Cinema Novo precisava explicar-se para existir: o Cinema Novo necessita processar-se para que se explique à medida que nossa realidade seja mais discernível à luz de pensamentos que não estejam debilitados ou delirantes pela fome. O Cinema Novo não pode desenvolver-se efetivamente enquanto permanecer marginal ao processo econômico e cultural do continente latino-americano; além do mais, porque o Cinema Novo é um fenômeno dos povos colonizados e não uma entidade privilegiada do Brasil: onde houver um cineasta disposto a filmar a verdade e a enfrentar os padrões hipócritas e policialescos da censura, aí haverá um germe vivo do Cinema Novo. Onde houver um cineasta disposto a enfrentar o comercialismo, a exploração, a pornografia, o tecnicismo, aí haverá um germe do Cinema Novo. Onde houver um cineasta, de qualquer idade ou de qualquer procedência, pronto a pôr seu cinema e sua profissão a serviço das causas importantes de seu tempo, aí haverá um germe do Cinema Novo. A definição é esta, e por esta definição o Cinema Novo se marginaliza da indústria porque o compromisso do Cinema Industrial é com a mentira e com a exploração. A integração econômica e industrial do Cinema Novo depende da liberdade da América Latina. Para esta liberdade, o Cinema Novo empenha-se, em nome de si próprio, de seus mais próximos e dispersos integrantes, dos mais burros aos mais talentosos, dos mais fracos aos mais fortes. É uma questão de moral que se refletirá nos filmes, no tempo de filmar um homem ou uma casa, no detalhe que observar, na Filosofia: não é um filme mas um conjunto de filmes em evolução que dará, por fim, ao público, a consciência de sua própria existência.

Não temos, por isso, maiores pontos de contato com o cinema mundial.

O Cinema Novo é um projeto que se realiza na política da fome, e sofre, por isto mesmo, todas as fraquezas consequentes da sua existência.

* Glauber Rocha (1939-1981) foi um cineasta brasileiro e um dos líderes do Cinema Novo. Dirigiu, entre outros filmes, Terra em Transe (1967) e Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964). O texto seguiu a versão publicada em Revolução do Cinema Novo (Rio de Janeiro, Alhambra/Embrafilme, 1981, pp. 28-33).
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REPENSANDO A HISTÓRIA LITERÁRIA

A década de 1980 foi um momento de euforia para os estudos feministas. Parecia que nossa perspectiva do mundo e das relações sociais tinham ganhado uma lente nova, novíssima, e o que não percebíamos antes voltasse com a nitidez de uma luz frontal. A percepção de um sistema de gênero que determinava as relações entre homens e mulheres era um admirável mundo novo. Tudo mudava em nossos discursos, pesquisas, afetos. Um certo binarismo ainda guiava os estudos que começavam a ganhar legitimidade acadêmica. A pergunta sobre como ler um texto com perspectiva crítica feminista revelava o estágio inicial desses estudos. Dessa primeira leva, o artigo “Repensando a história literária” de Ria Lemaire, publicado em Tendências e impasses, volume que organizei, surgiu como um salva-vidas indispensável. É interessante revisitá-lo hoje, quando as teorias queer sinalizam o final da saga da identidade binária e das relações de gênero fixas. É mais interessante ainda perceber sua utilidade metodológica mesmo em tempos de alterações paradigmáticas radicais.

Heloisa Teixeira
curadora da seção Vale a Pena Ler de Novo

A História Literária Tradicional

A história literária, da maneira como vem sendo escrita e ensinada até hoje na sociedade ocidental moderna, constitui um fenômeno estranho e anacrônico. Um fenômeno que pode ser comparado com aquele da genealogia nas sociedades patriarcais do passado: o primeiro, a sucessão cronológica de guerreiros heróicos; o outro, a sucessão de escritores brilhantes. Em ambos os casos, as mulheres, mesmo que tenham lutado com heroísmo ou escrito brilhantemente, foram eliminadas ou apresentadas como casos excepcionais, mostrando que, em assuntos de homem, não há espaço para mulheres “normais”. Tanto a genealogia quanto a história literária revelam a tendência masculina de justificar seu poder atual por meio do recuo às origens e do mapeamento de uma evolução, factual ou hipotética, até o presente. Desta forma, o poder político e cultural masculino passa a ser entendido como apenas um momento de uma tradição venerável e secular. Ou seja, é pela ideia de ancestralidade que são legitimadas situações atuais. Neste sentido, nos discursos das ciências humanas, as representações masculinas sobre a mulher, como o sexo “natural, essencial e universalmente” mais fraco, podem ser consideradas como uma das formas mais radicais deste tipo de legitimação de poder: não se trata apenas de representações ancestrais, uma vez que elas nunca foram diferentes.

Podemos observar ainda outra preocupação comum aos dois tipos de historiografia. Ambas apresentam suas genealogias como uma tradição única e ininterrupta e desqualificam, isolam ou excluem, como marginais ou inimigos, indivíduos que, por uma razão ou por outra (ideias, raça, sexo, nacionalidade) não se adequam ao sistema construído. A genealogia e a história literária criam a ilusão de uma só história, de uma única tradição. Este mito é reforçado continuamente em cada descrição genealógica e cada versão da história literária.

Os “heróis” destes dois tipos de historiografia também têm muito em comum:

* sua sucessão é definida em termos patrilineares; são pais e filhos no quadro de relações de um sistema social baseado na propriedade privada. Nos dois casos, os filhos são apresentados como herdeiros de um patrimônio político ou cultural.

* são vistos como seres humanos superiores, de maior valor e importância, que, distantes e acima da banalidade da vida cotidiana, criam seus sistemas políticos ou obras de arte sublimes.

Existe um caráter comum interessante por trás destas convicções. Elas implicam  negação, ou, no mínimo, depreciação das circunstâncias econômicas, sociais e políticas, dos jogos de poder e dos conflitos de interesse e respectivas ideologias, que possibilitaram a esses heróis – nas sociedades em que viveram – a oportunidade de expressão, propagação e realização de suas ideias. De um lado, os conceitos básicos da história literária, como o gênio, o autor, o herói, o personagem e o tema, e por outro, tradição, unidade, originalidade e criatividade (todos geralmente definidos em sua relação com o cânone das obras escritas) estão intimamente relacionados com a negação básica do impacto das estruturas sociais tanto em obras individuais como na tradição literária. Essa negação dissimula as complexas relações entre uma sociedade e sua literatura, impedindo assim a percepção do papel das ideologias nas obras literárias e na sociedade, bem como a inter-relação de suas funções. Estes conceitos básicos são também os pressupostos (geralmente) ocultos da crítica tradicional, que, na maior parte das vezes, reforça as perspectivas ideológicas das obras literárias em vez de promover instrumentos que possam detectá-las e criticá-las.

Examinadas do ponto de vista das mulheres, a crítica e a teoria literárias explicitam – como faz a genealogia em outro nível – uma das principais obsessões masculinas nas sociedades patriarcais: a incerteza acerca da paternidade biológica. Enquanto, na genealogia, esta insegurança é compensada pela descrição da linhagem em termos patrilineares, na história literária este sentimento desconfortável é reprimido pela ênfase excessiva na paternidade cultural, mecanismo que implica a exclusão ou negação de qualquer elemento que possa perturbar o monopólio masculino neste sentido.

Esta perspectiva nos permite distinguir duas preocupações básicas na crítica literária contemporânea. Em On deconstruction, Jonathan Culler as apresenta da seguinte maneira:

1. “Controlar o contato com os textos para prevenir a proliferação de sentidos ilegítimos” (Culler, 1983, p. 61). A interpretação, uma das atividades-chave da crítica literária, é uma prática diretamente ligada a esta ordem de preocupação.

2. “Desenvolver princípios que determinem quais são os sentidos verdadeiramente concebidos pelo autor” (Culler, 1983, p. 61). Neste caso estão as eternas discussões sobre os autores e suas vidas, sobre as origens, gêneros e períodos literários que vêm sendo fartamente utilizados, em favor da paternidade cultural, no reforço dos sistemas de classificação dos discursos das ciências humanas e de conceitos preestabelecidos, em lugar de servirem como base material para a criação destes sistemas de classificação. A política da edição de textos, concentrando-se no estabelecimento do texto único, verdadeiro e autêntico, é uma parte essencial dessa tendência de definição da paternidade cultural. Por este motivo ainda, muitos textos medíocres foram incluídos no cânone e usados na consolidação do mito da continuidade e unidade de uma tradição masculina que dataria dos tempos de Homero. Por esta mesma razão, as literaturas não-ocidentais, assim como a contribuição feminina, foram, até muito recentemente, excluídas do cânone e das discussões acadêmicas. A história literária tem sido – com pequenas exceções – fundamentalmente etnocêntrica e viricêntrica.

Da mesma forma, foram subestimadas as numerosas tradições orais das línguas vernaculares, outra parte importante da história cultural do mundo europeu. A reabilitação destas tradições só vem ocorrer durante o período romântico, depois de séculos de discriminação pelas elites, empenhadas em destruí-las ou em adequá-las as suas próprias visões de mundo (Burke, 1983; Lemaire, 1986).

Depois do romantismo, as tradições orais voltaram a ser marginalizadas, tornando-se, agora, alvo de uma reação ainda mais intolerante, de descaso ou negação, como pode-se observar na redefinição teórica do discurso das humanidades, no final do século XIX, situação que mantém-se quase inalterada desde então.

Uma característica desta redefinição foi a separação entre o estudo da literatura escrita, que na Europa ocidental concentrou-se nas universidades, e o estudo das tradições populares e orais, relegado aos folcloristas, geralmente não admitidos como professores nas universidades. Assim, as abordagens e as disciplinas tradicionais das humanidades ainda refletem a luta entre as tradições populares europeias nativas, com suas visões de mundo e sabedoria próprias, e a tradição escrita, de origem estrangeira, imposta pela elite (Ong, 1971; Lemaire, 1986). As técnicas da escrita desempenharam um papel-chave nesta luta (Ong, 1967-1982). Mais tarde, este papel é assumido pela imprensa e pelos meios de comunicação de massa.

Estas tecnologias, usadas pelas elites na propagação de suas visões de mundo e culturas, pelo próprio fato de serem escritas, eram apresentadas como civilizadas, superiores, e mais desenvolvidas. Os vieses ideológicos desta imposição tornaram-se os pressupostos atuais dos discursos das ciências humanas, que, por esta razão, podem ser caracterizadas como “scriptocêntricas” (Lemaire, 1984). Enquanto a história da literatura continuar sendo apresentada como uma história única e contínua, como um cânone de obras escritas cuja origem está numa cultura, ancestral e distante, transmitida por meio de uma elite intelectual, a existência das tradições orais e das culturas populares nativas vai permanecer excluída da historiografia cultural. No mesmo sentido, a perspectiva scriptocêntrica vai continuar dispensando os pesquisadores da tarefa de estudar o impacto inegável das culturas orais (onde as elites masculinas muito se inspiraram para criar sua tradição escrita) no próprio cânone literário.

Oralidade e escrita

Algumas descobertas fundamentais da historiografia literária feminista emergiram do debate sobre oralidade e escrita desenvolvido por pesquisadores como E. Havelock (1963), que estudou a transição da oralidade para a escrita na cultura grega, J. Goody (1968 e 1977), que trabalhou as relações entre oralidade e escrita nas sociedades africanas, e P. Zumthor (1983 e 1984), que estudou a mesma questão na cultura medieval europeia. Nos trabalhos de W. Ong (1967-1982), foi desenvolvida a síntese das pesquisas realizadas sobre esta questão em vários campos, culturas e períodos, e elaborada uma teoria geral da oralidade e da escrita.

A colocação central destes trabalhos é a crítica do scriptocentrismo na cultura ocidental, ou seja, a existência de um conceito da escrita unitário e monolítico e seu uso nas discussões acadêmicas. A própria escrita tem uma longa história. A épica de Homero ou a literatura medieval, por exemplo, não foram “escritas” no sentido moderno da palavra. A partir desta perspectiva, estes pesquisadores invertem o jogo: o ponto de partida para as discussões sobre a escrita e sua história deve ser a oralidade. A cultura escrita sempre parte das culturas orais preexistentes, como ocorreu no caso da Europa, onde se desenvolveu uma nova tecnologia, ou, mais tarde, no caso do desenvolvimento da imprensa e dos meios de comunicação de massa.

A história literária europeia deveria ser estudada como uma transição lenta, mas progressiva, da oralidade para as formas primitivas de escrita, para as formas mais elaboradas de escrita, e, finalmente, para a imprensa e meios de comunicação de massa. Em cada um destes momentos, as formas e funções destas tecnologias foram diferentes, assim como suas relações com as tradições orais mais próximas. Com base nestas observações teóricas, podemos afirmar que, nas comunidades europeias tradicionais da Idade Média, a escrita foi introduzida numa associação íntima com um tipo de cultura vinda de fora e em língua estrangeira: o latim.

Esta cultura não se enraizava na realidade cotidiana, mas numa tradição escrita, morta e predominantemente masculina, e foi imposta por uma elite – em coalizão com o cristianismo – como cultura superior e mais civilizada. Nas sociedades europeias, isto determinou uma defasagem entre a tradição e o saber oral local – que pertencia a todos os membros da comunidade, mulheres e homens – e uma elite masculina que se utilizou do latim e da tecnologia da escrita para impor suas visões de mundo e criar centros elitistas de cultura escrita. Nas sociedades medievais, as mulheres foram, progressivamente, sendo excluídas destes centros de cultura escrita. No discurso das ciências humanas, a introdução da escrita e a invenção da imprensa sempre foram representadas como um progresso para todos os seres humanos, apesar de suas consequências terem sido marcadamente diferentes para mulheres e homens. Na realidade, estas tecnologias foram usadas, por uma pequena elite, como instrumentos de poder para ampliar a distância entre o povo e a elite (Pattison, 1982), entre mulheres e homens (Ong, 1982).

Nas comunidades tradicionais europeias, havia duas culturas diferenciadas, que tinham por base a divisão econômica de trabalho entre os sexos: a cultura dos homens e a cultura das mulheres. Os universos culturais dos homens e das mulheres desenvolveram-se num patamar de igualdade, mas em duas linhas diversas, cada sexo possuindo seu próprio tipo de saber tradicional, suas próprias formas de lidar com o amor, a vida, a morte, a natureza e a religião, suas próprias canções e gêneros literários, seus próprios instrumentos musicais e até suas próprias formas de dançar e cantar. As tradições das mulheres eram geralmente mais ricas e diversificadas que as dos homens. Apesar das exceções, podemos afirmar que, no conjunto, as tradições masculinas desenvolveram-se na linha da narrativa épica. Suas danças eram frequentemente caracterizadas por um tipo de performance “heroica” e espetacular, enquanto as mulheres criavam seus gêneros na linha da narrativa lírica, adaptando as danças aos sentimentos que desejavam expressar.

Ambos os sexos revelavam estratégias variadas de exclusão do outro sexo de seus universos culturais. As mulheres, por exemplo, paravam de cantar quando surgia um homem ou, no século XIX, recusavam-se a cantar suas canções para folcloristas masculinos que tentavam coletá-las. Os homens reuniam-se em grupos fechados para contar ou cantar seus  gabs ou swanks, como ainda fazem hoje em dia, ainda que o tipo de performance e o batismo dos gêneros tenha mudado muito desde então. Entretanto, geralmente, esta exclusão não era completa: muitas vezes, os dois sexos imitavam ou apropriavam-se das canções um do outro. Nestes casos, a canção ou a estória não era simplesmente apropriada, mas também adaptada a seus gostos e estilos.

Estes fatos provam que mudanças estranhas e radicais devem ter ocorrido nas sociedades ocidentais nas quais os gêneros femininos não existem mais (excetuando-se, talvez, as cantigas de ninar) e nas quais, oficialmente, temos apenas uma cultura, monopolizada pelos homens e apresentada como a única e exclusiva tradição do mundo ocidental.

lsto nos induz a formular algumas questões de grande importância para a pesquisa feminista da história literária. O que aconteceu na história da cultura ocidental que provocou o desaparecimento das ricas tradições femininas? Como foi possível para os homens, cujas culturas orais tradicionais eram menos variadas que as das mulheres, estabelecer um monopólio que não possuíam nas culturas orais tradicionais da Europa? Como os homens puderam impor os mitos de sua paternidade cultural exclusiva, na qual, até muito recentemente, todos acreditávamos?

Reconsiderando um mito

Para a abertura do círculo hermenêutico que tem sido construído de forma tão cuidadosa no discurso das ciências humanas – no qual cada elemento confirma o sistema e vice-versa – , devemos promover uma alteração radical dos conceitos e pressupostos da história literária. Uma desconstrução que seguirá duas linhas centrais:

1. A desconstrução do próprio sujeito masculino: o homo sapiens da cultura ocidental, bem como o “herói” das obras literárias.

2. A desconstrução de sua genealogia literária, do mito de uma única literatura.

No que se refere à desconstrução do homo sapiens, o sujeito/gênio masculino que criou a cultura ocidental, é importante perceber que a noção de “autor” teve, no passado, sentidos extremamente diferenciados. Por exemplo, Homero foi a pessoa que compôs a Ilíada, ou o artista que recitava a épica, ou o copista que a transcreveu? Provavelmente nunca saberemos a resposta, mas pelo menos podemos garantir que ele não era, de forma alguma, um “autor” no sentido moderno da palavra. Na literatura medieval europeia, o “autor” cujo nome encontramos nos originais pode ser o copista de uma canção, um bom intérprete, o compositor ou simplesmente alguém que se apropria dos originais de outra pessoa.

Este exemplo mostra como uma história da literatura baseada numa definição monolítica de escrita e de autoria pode reforçar o mito de que a literatura ocidental foi criada por escritores homens.

Uma outra estratégia de desconstrução pode ser desenvolvida por meio da análise das relações do autor com as estruturas político-sociais de seu tempo. Em vez de criar a imagem de um gênio individual, autônomo e superior, este tipo de história literária poderá revelar a dependência do autor em relação aos discursos de seu tempo, e mostrar como seu desempenho é ligado às estruturas da sociedade.

De forma similar, a psicanálise pode ajudar a descobrir que as obras de um autor (ou parte delas) não são produtos de um gênio autônomo e autoconsciente, mas expressões de conflitos inconscientes, temores e desejos não admitidos abertamente. A crítica feminista trabalha frequentemente nesta direção, demonstrando que o que encontramos nas obras dos autores não são, necessariamente, verdades essenciais e universais, mas conflitos pessoais, sexuais, emocionais e de poder.

Os heróis (personagens, sujeitos) de obras literárias também devem ser reconsiderados. Os trabalhos de Mieke Bal são, neste sentido, uma contribuição fundamental. Desde a publicação de Narratologie (1977), a autora vem desenvolvendo uma nova teoria do sujeito com base no pressuposto de que a noção do sujeito humanístico unitário, autônomo e individual é uma ilusão. Mieke Bal decompõe este sujeito em três categorias: o narrador (que conta a história), o focalizador (cuja visão é apresentada) e o(s) ator(es).

Em seus estudos sobre o sujeito nas narrativas bíblicas, que se baseiam em três questões centrais – quem conta? quem vê/focaliza? e quem age? -, ela demonstra a ambiguidade dos heróis nas narrativas, sua falta de unidade, bem como a evolução, mudanças e contradições em suas posições e papéis de sujeito. O confronto das respostas que Mieke Bal propõe com as interpretações dos teólogos e intérpretes da Bíblia sobre essas mesmas narrativas revela o caráter ambíguo e falso das interpretações baseadas no conceito humanista unitário de sujeito/herói masculino bíblico. Por isso, estes intérpretes por um lado tentam ocultar ou resolver as ambiguidades e contradições dos personagens masculinos da Bíblia e, por outro, alterar, mutilar ou minimizar as personagens femininas (como Dalila, Deborah ou Ruth), que não se adequam às concepções de mulher, ou do lugar da mulher nas sociedades do século XX.

A decomposição do sujeito/herói bíblico nos elementos que o constituem (narrador, focalizador, ator) e a recomposição de sua ambiguidade original têm se revelado excelentes estratégias de leitura para a identificação da ideologia das obras literárias para o mapeamento das complexas manipulações do leitor, e para a análise da recepção tradicional das obras pela crítica e pela história literárias. Para a historiografia literária feminista, oferecem instrumentos para a crítica das imagens que os homens criaram sobre si mesmos e sobre as mulheres em suas obras, e para a identificação dos recortes ideológicos da crítica masculina e da história literária tradicional.

A desconstrução do mito de uma literatura única

Os princípios da desconstrução dos discursos da história literária foram formulados por Foucault em sua Leçon inaugurale no College de France (1970), a partir de quatro premissas metodológicas:

– o principe de discontinuité. Em vez da procura da continuidade, unidade e tradição, a observação de gaps, descontinuidades, quebras e contradições nos discursos.

– o principe de renversement. Elementos, ideias, conceitos, até hoje considerados positivos (como unidade de sentido, continuidade), devem ser analisados em seus aspectos negativos: a exclusão de sentidos, ideias e personagens que não se adequem a quadros preestabelecidos. A história literária não é apenas definida – como tem sido ensinado até hoje – a partir de uma seleção natural e positiva, nem apenas a partir da sobrevivência de obras realmente superiores do passado. Ao lado de uma seleção positiva, houve também uma seleção negativa por meio da qual obras/autores importantes foram excluídos. E o que Foucault chama de jeu négatif.

– o principe de spécificité. Que formas de violência foram impostas aos fatos, à realidade, aos seres humanos pela introdução de novos discursos, gêneros ou estilos? Em outras palavras: como uma ideologia específica foi propagada nas obras de um dado período? Como foram desenvolvidas ideologias novas ou parcialmente novas?

– o principe de l’extériorité. No lugar de simplesmente glorificar a autoria, o heroísmo individual, a originalidade, deve-se levar em consideração as condições e as circunstâncias externas, as estruturas sociais, culturais e ideológicas que permitiram que discursos específicos se impusessem e obscurecessem outros discursos.

A historiografia literária feminista traz uma contribuição nova para a desconstrução do discurso da história literária tradicional, porque junta, aos quatro princípios definidos por Foucault, uma nova premissa, que não é simplesmente um quinto princípio metodológico, apesar de intimamente relacionada aos princípios de Foucault, determinando consequências fundamentais para todos eles. Seu ponto de partida é a percepção de que a história literária é um dos discursos de uma sociedade que se baseia essencialmente na desigualdade entre os sexos. lsto resulta no fato de que mudanças nas estruturas sociais ou culturais terão consequências diversificadas para homens e mulheres. Por exemplo, certas mudanças culturais consideradas como progresso para todos os seres humanos frequentemente provam ser ganhos para os homens, mas perdas para as mulheres.

Pressupõe-se, portanto, que o discurso da história literária deve ser estudado prioritariamente como um sistema de relações de gênero, cujos códigos subjacentes dizem respeito às estruturas de poder na sociedade. A primeira questão será então: o que significam ou significaram os fenômenos que descobrimos (quando analisamos os discursos segundo as sugestões de Foucault) para as mulheres e o que significam para os homens?

Uma historiografia feminista da cultura ocidental

A reescrita da história da literatura ocidental demanda três atividades distintas:

1. A desconstrução da história literária tradicional como parte do discurso das ciências humanas.

2. A reconstrução das diversas tradições da cultura feminina marginalizadas e/ou silenciadas.

3. A construção de uma nova história literária, como produto de diversos sistemas socioculturais inter-relacionados, marcados pelas relações de gênero.

Isto implica a elaboração de uma história dialética com duas pistas inter-relacionadas, mas que, a partir da introdução da escrita nas culturas vernáculas europeias, começaram a se orientar em direções opostas. A cultura masculina inicia um processo contínuo de crescimento, reforço e monopolização da cultura escrita, contrabalançado pela exclusão das mulheres desta cultura e pela progressiva marginalização, deformação e obliteração das tradições orais femininas. A relação entre essas duas vertentes culturais tem sido dialética: os homens imitaram e se apropriaram dos gêneros femininos e, ao mesmo tempo, os transformaram. As mulheres reagiram, mas pelo menos uma parte desta reação não foi mais determinada pelos recursos de suas próprias tradições, mas pelos novos padrões criados pelos homens.

Foi por meio da introdução da escrita nas línguas vernáculas europeias que a primeira desproporção essencial entre homens e mulheres foi estabelecida. A partir deste momento, os homens tiveram duas culturas: uma, predominantemente oral e tradicional, e outra estrangeira, escrita, e apresentada como superior. A história da literatura medieval, examinada a partir desta perspectiva, mostra as formas de coalizão entre estes dois tipos de cultura e a progressiva exclusão das mulheres dos domínios masculinos. A invenção da imprensa alargou esta distância por ter permitido a propagação da visão de mundo masculina numa escala muito maior do que a feminina, além de se constituir numa arma extremamente eficiente na luta contra as culturas populares. A partir daí, as culturas populares foram sendo progressivamente substituídas por novos tipos de cultura “popular”, criados por artistas da sociedade burguesa, disseminando a visão de mundo de suas classes. Esse fenômeno é hoje considerado a origem da cultura de massa (Burke, 1987; Göttner-Abendroth, 1982). Mais uma vez, a cultura europeia havia criado duas tradições culturais distintas: a cultura erudita e a cultura de massa.

Formulando nossas próprias questões

Uma historiografia feminista deverá colocar, para cada período (oralidade, escrita, imprensa, comunicação de massa), as seguintes indagações relacionadas às questões de gênero:

– O que mulheres e homens criaram no período em questão? Que ideias e imagens tinham eles sobre si e sobre o outro sexo? Como homens e mulheres apresentaram temas como amor, natureza, experiência religiosa, morte e outros?

– Que estratégias foram usadas para a exclusão do sexo oposto de seus universos culturais?

– Como poderíamos relacionar as ideias expressas por mulheres e homens aos códigos que sublinham seus respectivos discursos frente às estruturas econômicas, sociais e políticas de seu tempo?

– Como estas ideias, imagens e relações têm sido interpretadas até hoje? Quais os recortes ideológicos destas interpretações? Como estes recortes foram apropriados pela crítica literária, história e ciências humanas?

Para cada período de transição, é necessário ainda que estas perguntas e respostas sejam especificadas com clareza:

– Quais as mudanças que ocorriam então na distribuição de gêneros entre os sexos? Qual a parte assumida pelos homens e quais os novos tipos de literatura que criaram? Qual pretendia ser a nova divisão de trabalho cultural entre os sexos?

– Existiam novas estratégias ou mecanismos de exclusão das mulheres em áreas tradicionalmente delas ou de bloqueio de sua fala ou escrita no novo contexto? Como reagiram as mulheres?

– Quais as mudanças ocorridas nos conceitos, ideias e imagens tradicionais sobre os homens, as mulheres, o amor, a natureza, a religião, o trabalho?

– Que tipos de violência os novos discursos impuseram a homens e mulheres?

– De que forma estes fenômenos vêm sendo interpretados pelos pesquisadores; como os representam em seus discursos; quais os pressupostos não explícitos de suas interpretações?

Finalmente, novas questões devem ser formuladas para cada período:

– Quais os elementos que reforçam o poder masculino nas novas estruturas sociais ou culturais?

– Como as mulheres conseguem manter suas tradições apesar do fato de se tornarem progressivamente mais invisíveis? Que mudanças introduzem? Como se adaptaram aos novos padrões criados pelos homens? Como resistem às ideias, imagens e conceitos, cada vez mais opressivos, propagados pelos homens?

– Como estas formas de cultura e de resistência femininas têm sido interpretadas, ou esquecidas, nos discursos das ciências humanas? (Spender, 1982)

Repensar e reescrever a história literária numa perspectiva feminista pressupõe, assim, em primeiro lugar, aprender a colocar novas questões que possibilitem a revisão de ideias estabelecidas, das interpretações acerca destas ideias e das teorias decorrentes destas interpretações. Isto implica uma alteração radical no paradigma das ciências humanas, cujo ponto de partida é a descoberta de que, mesmo nas ciências humanas, não há seres humanos, nem existência humana, a não ser como homem ou como mulher.

* Ria Lemaire é medievalista, professora de literatura na Universidade de Poitiers e autora de Passions et positions. “Rethinking literary history” foi publicado em Historiography of women’s cultural traditions, ed. Maaike Meijer e Jetty Schaap, Foris Publications Holland: USA, 1987, p. 180-93. Tradução de Heloisa Teixeira.
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