Ano XIII 0201
2º semestre de 2018
dossiê
Tempo de leitura estimado: 25 minutos

ESTÓRIAS DAS TRINCHEIRAS: A DIMENSÃO POLÍTICA DA MÚSICA DE SIBA

Resumo: Este artigo se propõe a analisar a dimensão política da música do cantor e compositor Siba através dos discos que o músico produziu com a Fuloresta do Samba (2002; 2007), o mestre Barachinha (2003), e os discos Avante (2012) e De baile solto (2015). A nossa análise exercerá uma espécie de metacrítica ao repensarmos no próprio (inter)texto modos distintos de nos aproximarmos do objeto artístico analisado e do próprio artista, exercendo com ele um diálogo crítico.

Palavras-chave: Música brasileira; estética e política; Siba.

Abstract: This article proposes to analyze the political dimension of the music of the singer and composer Siba through the discs that the musician produced with the Fuloresta do Samba (2002; 2007), mestre Barachinha (2003), and the albuns Avante (2012) and De baile solto (2015). Our analysis will exercise a kind of metacritical when we rethink in the (inter)text itself different ways of approaching the artistic object analyzed and the artist own, exercising with him a critical dialogue.

Keywords: Brazilian music; aesthetics and politics; Siba.

I – Olinda

A risada quase invisível do Mestre Nico repercute no salão repleto de ritmos e sons e corpos: o uivo de sua voz – quase gargalhada, quase manifesto – anuncia a chegada de uma Mini Desorquestra de Baile Solto e Rimas. A música se torna paisagem na guia de sua percussão. Os demais músicos se contagiam dessa energia, desdobrando-se com ele através de seus toques. O salão[1] localizado à margem do mar de Olinda agrupa essa música que é de muito longe, de um longe-norte, de um onde os homens e mulheres dançam sob a noite, entre batuques, adereços e poesia, até o amanhecer. Por essa estética reside uma resistência, uma linguagem que incorporada pela festa marca um território, estabelece sua trincheira, pois é preciso continuamente lutar por essa voz.

Sob a condução da Desorquestra, o músico Siba. Sem origem? Sem gênero? A música. O músico. Por que não? As alcunhas de poeta, mestre, cantor, compositor, guitarrista, rabequeiro, maracatuzeiro ou artista, que se incorporam à sua persona, são reveladoras dos estados de transe e transitoriedade com os quais o artista dialoga.A música percorre um caminho de inquietação e reverência à palavra e aos sons delirantes das ruas. No entanto, é preciso estar atento às relações de poder que podem contaminar os espaços com o desejo explícito de segregar o que não cabe no gesto, nas cercas ou nas noções de normalidade. A rua é viva e sem centro. Ainda assim, torná-la marginalizada com ares de política cultural é uma das maiores violências que se pode tentar cometer contra ela.

Os mais recentes discos “solo” Avante (2012) e De baile solto (2015) são criações ainda em movimento. É preciso ouvir o passado, distender o presente, investigar conexões, poéticas. O disco não pode ser lugar de origem nem de chegada, mas de passagem. As canções e sonoridades seguem em trânsito, políticas, em marcha, bailando, soltas, macias, cantando-dançando-delirando:

Sai!
A gente brinca, a gente dança
Corta e recorta, trança e retrança
A gente é pura­ponta­de­lança
Estrondo, Marcha Macia![2]  

Com essas conexões em vista, pretendo neste (inter)texto fronteiriço entre ensaio, artigo e crônica, escrever sobre a dimensão política da música de Siba através dos discos com a Fuloresta do Samba (2002; 2007), o mestre Barachinha (2003), e os já citados Avante (2012) e De baile solto (2015); nelas, a música de rua é desterriorializada estética e politicamente e se desfaz dos lugares estanques das categorias de “cultura popular”, “folclore” ou “manifestação popular”. Para produzir esta narrativa, outros textos de minha autoria sobre o artista, trechos de entrevistas com o músico, passagens e leituras de documentários, fotografias e canções serão incorporadas na reescrita sobre a obra, com o intuito de provocar uma fricção entre a trajetória do artista e a do crítico que o acompanha, como processo contínuo, de diálogo.

II – Poeta sambador

Foto de José de Holanda na I Festa da Alvorada com Siba, Maciel Salú e Mestre Barachinha, em Nazaré da Mata – PE, 2015.
Foto de José de Holanda na I Festa da Alvorada com Siba, Maciel Salú e Mestre Barachinha, em Nazaré da Mata – PE, 2015.

Primeiro corte

O maracatu é meu rock and roll. Biu Roque canta que se ouve a uma légua. Cosmo Antônio cortou cana por mais de cinquenta anos. Muitos caboclos morreram na frente da capela. Outros tempos. Somente voz, um eco que mantém a melodia, é Cosmo cantando histórias. Em Nazaré só tem músico e policial. É que aqui tem duas bandas de música e um quartel. Pela Fuloresta eu deixava até o meu trabalho. É um negócio de alegria mesmo. Mané Roque, a bicicleta, sua voz no canto, a paisagem, o cinema, a fotografia. Paris-Recife. É na rua, é no palco. Onde nasci vou morrer.[3]

Na entrecrítica[4] sobre o artista, escrita pelo pesquisador Bernardo Oliveira, do Rio de Janeiro, é possível vislumbrarmos uma espécie de síntese do modo como o músico Siba lida com a música da Zona da Mata de Pernambuco:

[…] um olhar descolonizado sobre o calor da rua, das manifestações populares do Nordeste, sobretudo o Maracatu e a Sambada que habitam a Zona da Mata de Pernambuco. Abolir as categorias generalizantes e os processos de petrificação operados pelos centros de produção intelectual, substituindo-os por uma imagem vibrante e afirmativa calcada sobre procedimentos de captação, síntese e invenção. Descolonizar também implica em atravessar fronteiras, oscilar entre diversos pontos de vista, desestabilizar visões categóricas do global e do local, promover interseções entre aspectos atuais e virtuais (Oliveira, p. 58-61, 2015).

A partir dessa síntese, percebemos como a imagem estática de uma representação cultural não se vincula ao gesto artístico de Siba, mais conectado ao deslocamento como estética, às “desestabilizações do global e local”, como aponta o pesquisador Oliveira.  

Depois de doze anos no grupo Mestre Ambrósio e após sete anos vivendo em São Paulo, o músico retorna a Pernambuco em 2002 para desenvolver a “Fuloresta do Samba” com artistas de Nazaré da Mata, cidade de aproximadamente 3 mil habitantes, na Mata Norte de Pernambuco. Os músicos Biu Roque e Mané Roque compõem o coro da Fuloresta no disco de 2002. Em 2007, o álbum Toda vez que eu dou um passo o mundo sai do lugar vinha à tona com a presença de Cosmo Antônio entre as vozes. Entre esses dois álbuns, Siba ainda lançaria No baque solto somente, com o mestre Barachinha, em 2003, com composições da dupla. Os três álbuns foram produzidos por Beto Villares e Siba. Ainda se dividiram entre as formações do grupo os músicos Biu Neguinho, Dyogenes Santos, Galego do Trombone, Manoel Martins, Maurício Muniz, Roberto Manoel, João Minuto e André Tubista, entre os metais e elementos percussivos.

“[…] eu digo sem medo/ Sou poeta sambador”, canta Siba em sua voz como “grito”[5], pois ao poeta sambador a palavra se desdobra em dança, música e resistência. A canção mimetiza uma paisagem, é repleta de silêncios que explodem no final de cada estrofe. O coro, o apito como condução impõe sua palavra sonora, em diálogo com os versos, marcam o território desse poeta que pode afirmar sem medo: “sou”. Com a Fuloresta, o músico construiu uma trajetória artística que se diferencia do que se costuma chamar de “influência”. Suas composições parecem ter sido escritas por outras vozes, outras paisagens, que não as personificadas em sua figura, mesmo que assinando como Siba, soam como se já existissem; era preciso “apenas” dar-lhes batismos. As narrativas, métricas, ritmos, temáticas e sonoridades se impõem como canções coletivas; a cana-de-açúcar deu verso, a rua, o cheiro do lugar, o vento, o traje, o azougue também deram verso.

O brincante deu canto, o estilhaço da noite, o adereço, os joelhos no chão, o corpo que se move, as cadeiras de balanço na calçada, os sons que se movem, os velhos e crianças, o alto falante, a multidão, o desafio, os feixes de luz dos postes que mal iluminam a rua e casas, o tempo que passa, a barra do dia, pitú, all star, chinelo, chão, mãos dadas, a camisa estampada, o berro que não ouço, essas fotografias[6], o sol que nasce erguendo a gente com as mãos, os homens que parecem lutar-dançar; entre eles, mulheres se descolam com suas armas e presenças-resistências-outras. 

O trabalhador de cana virou brincante. E o brincante buscou respostas às suas gritantes limitações econômicas e sociais através da arte. Parido no seio de um contexto de dificuldades extremas, o Maracatu Rural impressiona pela visceralidade que esbanja uma complexidade criativa incomum, num misto de beleza e violência intrínsecas, nascida no mesmo berço turbulento da zona canavieira. […] O Maracatu Rural que conhecemos hoje foi domesticado, apesar do cenário de violência social pouco ter se modificado na zona canavieira. É da força criativa e realizadora da arte que vem um grito violento que se quer se fazer ouvir, se fazer presente e ser reconhecido socialmente (Marcondes; Lima; Rocha, 2014).

As canções da Fuloresta do Samba se alimentam dessa “visceralidade” e “força criativa”, mas não se apresentam como mimetização da música que ocorre nas sambadas. A sonoridade reflete uma tentativa de expressar o gesto artístico do Maracatu Rural, mas no ambiente novo, esse refletido por um grupo musical criando arranjos para a gravação de um disco em conexão com qualquer outro projeto musical, que consequentemente o colocaria em palcos dos mais diversos, não só em Pernambuco, mas no mundo todo.

Desse modo, enquanto o disco Fuloresta do samba diz “sou”, No baque solto somente diz “nós somos”, e Toda vez que eu dou um passo o mundo sai do lugar diz “De manhã escuto o mundo/ Gritando pra me acordar”[7], e rediz como coro que o vento facilmente leva: “Toda vez que eu dou um passo/ O mundo sai do lugar”.

Segundo corte

A estrada que sempre volta. 12 anos com o Mestre Ambrósio. Guitarras. Rabeca. Cavalo marinho. Maracatus. Cortejos de carnaval. Eu não sou instrumentista. A poesia, a dança, a música. Agreste-Recife. A presença da pessoa no mundo. Os poetas da Mata Norte iluminam 5 horas de improviso sem a presença de palcos. Chão, onde só cabe a palavra. Eu tentei imitar o Mestre Barachinha na construção dos versos. Avante. Quem sou eu? O poeta, a pessoa. Romper barreiras. A guitarra e a ciranda têm lugares diferentes hierarquicamente. Um edifício de rima. A poesia tem um valor em si. Conquistar uma linguagem como poeta em Nazaré. Pôr-se pra fora nos versos, deslocar-se da Mata Norte em busca de uma coisa nova, o que não significaria uma coisa “moderna”. Trânsito. Linguagem. Paisagem. Rima-métrica-oração. De uma poesia do cotidiano para uma mais pessoal. Era preciso expor-se. Tocar viola de forma particular. Caminhos passam pelas guitarras da música congolesa. Explorar a linguagem (expandi-la) sem os limites da tradição. A força do maracatu não está na ancestralidade, mas na hora que acontece. Rememorações. Mestre Ambrósio-ruptura-Fuloresta. A poesia ficou dormente. Não me sinto completo em nenhum lugar. A casa está vazia[8].

Avante é um disco repleto de passagens/paisagens. As canções constroem narrativas tanto poéticas quanto musicais, visto que os arranjos e sonoridade do álbum dão à presença da guitarra um chão estável para que as letras de Siba possam percorrer. A voz do autor mantém essa estabilidade e revela em sua poesia uma capacidade maior para contar histórias. Por entre as frestas dessas histórias é possível eleger a memória e o tempo com temáticas primordiais das canções. Esteticamente, há um balanço e ironia presentes no diálogo entre arranjos e letras, na sua condução rítmica. A música “Canoa furada” revela esse momento de tensão, “A canoa furada/ Já tá perto de afundar”, mas com arranjo que revela na presença da flauta de Teco Cardoso um ar mais burlesco, que soa como irônico diante do “socorro”, do “me acuda”, do “tubarão”, “da dentada”; elementos que surgem na canção e são recortados pelo arranjo que contempla um diálogo mais próximo entre a tuba de Léo Gervázio e a voz (narrativa) de Siba.

Essa canção (a sexta de Avante) se revela como corte entre dois momentos do disco. O primeiro é preenchido por “escombros”, “pó”, “fumaça”, “brasas”, de “Preparando o salto”; por “tempestade”, “ventania”, por uma “brisa […] carinhosa”, mas que “tem castigado”, de “Brisa”; e pelas “dores”, “cansaços”, “pedaços” e outros “escombros” de “Ariana”. As músicas “A bagaceira” e “Cantando ciranda na beira do mar” se juntam a essas canções com sua verve mais festiva e contemplativa. Enquanto a primeira discorre de um tempo de agora, mais vertical, de um instante que precisa ser cantado até o fim, a segunda canção é de alguém que vê o tempo e a paisagem de modo mais amplo, horizontal. Essas canções compõem um conjunto, um retrato que abre a narrativa de Avante para outros falares e poéticas, como se se desenhasse uma passagem mais visível, mais fácil de penetrar, apesar das frestas, das “armadilhas” presentes nas letras das canções.

“Mute” é quase um suspiro, um quase silêncio. É esse segundo momento, onde o mapa já está disposto, os caminhos mais ou menos traçados, em que é possível abrir-se mais, ser menos o tempo e a memória como marcas de um traço coletivo e voltar-se mais para dentro, ser o poema e a canção como indivíduos, libertar-se desse quase silêncio. “Um verso preso” (a faixa seguinte) é essa poética que quer explodir, quer revelar-se diante de todos. A voz de Lirinha ecoada pela de Siba e pelo arranjo que rodeia a estética das violas do Nordeste brasileiro é uma camada importantíssima para a compressão do disco Avante, ou melhor, sobre a própria pujança da música de Siba, sua dimensão política, pois arrasta para dentro toda uma cultura (popular) muitas vezes marginalizada ou tratada como menor, e devolve esse outro grito, outro silêncio, como possibilidade inventiva do presente.

Um verso preso é um tiro
Que a arma não disparou
Pois o gatilho emperrou
E o tambor não deu o giro
Se escuta só o suspiro
De alguém que escapa assombrado
E o atirador, frustrado
Remói a raiva no dente
Sentindo o mesmo que sente
Alguém que foi baleado[9]

A faixa “Avante” é especialmente importante quando se manifesta após esses silêncios, com sua dicção acelerada “Desata o nó das entranhas” e berra: “avante!”. Nela, o vibrafone de Antônio Loureiro tem presença constante ao redor do canto de Siba. O solo final em diálogo com a guitarra constrói e desconstrói a rítmica da canção até a faixa seguinte, “Qasida”, como um outro corpo poético para a construção de Avante. Entre a cadência quebrada e a dança, a voz “canto abandonado”, como fala, declamação, lamento e memória, abre espaço amplo para o guitarrista e co-produtor do disco, Fernando Catatau, distender um solo pungente entre os arranjos da banda que fora os já citados nesse texto-corte, ainda conta com a bateria de Samuca Fraga. Se “Qasida” fala de um tempo passado, de suas ruínas, a faixa “Bravura e brilho” é luminosa e repleta de sonhos que se realizam na fantasia e na presença de um filho que cresce entre naves, dragões e ciclopes. Avante se comporta, portanto, como o movimento de uma catapulta, ergue o peso para trás e arremessa a sua energia para mais longe, provavelmente um outro longe-norte.

III – Nazaré da Mata[10]

Foto de José de Holanda na I Festa da Alvorada com Siba, Maciel Salú e Mestre Barachinha, em Nazaré da Mata – PE, 2015.
Foto de José de Holanda na I Festa da Alvorada com Siba, Maciel Salú e Mestre Barachinha, em Nazaré da Mata – PE, 2015.

O músico Siba conversa com policiais militares durante uma noite de ensaio do Maracatu Estrela Brilhante de Nazaré da Mata, do qual o artista faz parte, na tentativa de convencê-los a seguir com a festa até o amanhecer, como sempre fazem, tradicionalmente, as sambadas dos maracatus, já que a intenção da polícia era a de interromper os ensaios às 2h da madrugada. Apesar de conseguirem ir até o sol nascer nessa ocasião, outros grupos da região não estavam mais conseguindo seguir com a festa. Assim relatou o músico em fevereiro de 2014:

Estrela Dourada de Buenos Aires, Leão Misterioso, Cambinda Brasileira de Nazaré da Mata, e quase todos, tiveram seus ensaios interrompidos às duas da manhã. Curiosamente, noites de maracatu promovidas pelas prefeituras ou por projetos culturais com patrocínio estadual ou federal tem acontecido sem limite de tempo. Conversando com os mais velhos, cuja memória ‘alcança’ os anos 60, não consegui nenhuma lembrança de proibição similar no passado.[11]

Após a repercussão dos artistas e sociedade civil, posteriormente, em uma reunião convocada pelo Ministério Público, ficou decidido o fim da restrição de horário às sambadas na Mata Norte de Pernambuco. No entanto, as feridas que se impõem aos artistas e artes oriundas desta região sangram há muito tempo. O que este caso nos revela é o modo como essas expressões, não menos contemporâneas que outras, vivas, instigantes, criativas, continuam ainda restringidas a um segundo plano, sobretudo por uma política cultural engessante e folclorizada da música de rua.

O texto “Pernambuco, Maracatu de Baque Solto e a Cobertura da Lei”, de Siba, no qual essa denúncia foi feita, pode dialogar com outros textos críticos sobre o tratamento dado a determinados artistas e expressões culturais, como em “Quanto vale a música tradicional?”[12], do músico Rodrigo Caçapa, em que reflete: “Qual o valor simbólico que a música tradicional do Nordeste representa para grande parte da população de classe média e para a elite econômica das grandes cidades da região e do país?”, e em “Realidades do Maracatu Rural para além do marketing cultural”, do tarolzeiro de maracatu rural, artista plástico e arquiteto Lula Marcondes, sobre as condições precárias que passam os Maracatus durante o período do Carnaval Pernambucano. Assim denuncia em seu artigo: “[…] um maracatu com mais de 80 componentes, que viaja quilômetros com um elenco formado de brincantes das mais variadas idades entre crianças e idosos, chega a receber entre R$ 200,00 e R$ 300,00 por apresentação”[13].

Com De baile solto, Siba põe todas essas questões em evidência. No entanto, não o faz de modo panfletário, como “música de protesto”, datada, com prazo de validade. Suas canções são críticas e políticas porque carregam em suas poéticas e sonoridades a voz e os sons que ecoam dessas e de outras expressões artísticas. Ou como ele mesmo afirma:

[…] expressar a grandeza absoluta de uma ave de rapina ante a arrogância dos senhores que se arrastam pela terra, exaltar a potência criativa e social de formas de expressão forjadas coletivamente por pessoas marginalizadas e excluídas, reafirmar a crença tola na embriaguez do verso.[14]

É de modo poético que o compositor destrincha suas críticas. É curioso perceber que no texto-denúncia de Siba algumas das afirmações ali relatadas apareceram em suas canções. Com isso, intuímos o quanto o processo criativo do músico esteja imbuído dessa reflexão, em como essas novas canções jogam de volta aos seus interlocutores as falácias que no fundo querem manter estáveis as forças de poder já estabelecidas. Assim, nova ordem está na boca do policial militar e nos versos de “Marcha Macia”, canção que abre o disco. Já em Progresso com mais ordem?[15], na pergunta irônica do músico naquele texto, surge não menos irônica e contundente nos versos da mesma canção, que diz: “Progrediremos juntos, muito em paz”. Na condução da guitarra-narrativa em diálogo com a voz de Siba até a profusão de sons e ritmos que invadem a canção.

Muito mais do que essas relações entre crítica e criação, a música oriunda da invenção que é a Mini Desorquestra de Baile Solto e Rimas, formada por Siba, Mestre Nico, Lello Bezerra, Antônio Loureiro e Leandro Gervázio, delirando sob uma poesia imagética, é ela mesma uma desordem, nem nova nem velha, mas espacial, como a ave de rapina, o gavião, o balão que voa; uma música que experimenta o seu próprio vocabulário, sua própria corrente de invenção.

IV – Marchas macias[16]

Carlos Gomes: Em 2003 a música “Marcha macia” encerrava o disco No baque solto somente, lançado por você e pelo Mestre Barachinha. No mais recente De baile solto, uma outra “Marcha macia” surge transformada sonora, política e poeticamente na abertura do álbum. Na inclusão da letra, de uma poética crítica, que mantém em seu cerne a estética pela qual sua música é reconhecida, mesmo ainda no período do Mestre Ambrósio, ou seja, na desterritorialização da música de rua de seus lugares normalmente marginalizados ou folclorizados. O que essas “marchas” têm em comum para você, como poéticas, ou mesmo se é possível fazer um diálogo entre esses dois momentos de sua trajetória, entre essas duas “marchas macias”?

Siba: A autonomia estética do Maracatu de Baque Solto é assombrosa. Tudo nesta tradição me parece afirmar com muita intensidade uma noção de distinção, uma consciência de diferença. Falando, cantando, tocando, dançando e também no modo de vestir, o maracatuzeiro parece estar sempre dizendo “eu sou quem eu sou, e não outra coisa”. Eu não nasci na Mata Norte. Como um típico cidadão classe média, nem deveria gostar de Maracatu, mas fui abduzido pela força expressiva do Baque Solto no meu primeiro encontro mais profundo com a tradição. Desde então, sempre me vi numa situação intermediária, onde faço parte de uma cultura marginalizada e isolada pelo preconceito folclorizante e ao mesmo tempo tenho constantemente oportunidades de intermediar canais de comunicação e encontros, da Mata Norte para o mundo e vice-versa. Nesta posição, sempre nutri uma crença, talvez ingênua, na força da beleza. Sempre acreditei que qualquer pessoa que se aproximasse minimamente do Maracatu e dos Maracatuzeiros seria passível de algum tipo de iluminação similar a que eu mesmo tive vinte e tantos anos atrás. Assim, boa parte do que produzi como artista até antes do De baile solto está repleto deste sentimento. Porém, com o tempo fui aprendendo a enxergar de modo mais concreto as reais barreiras para um entendimento livre de preconceitos para as culturas orais no Brasil. Por aqui, qualquer traço de matriz africana e indígena, qualquer sombra de sobrevivência ibérica pré-industrial tem que se adaptar ao lugar de Folclore, suas formas de expressão se tornam “Manifestações” de um passado distante e seus representantes serão sempre prisioneiros deste tempo antigo, de onde é muito difícil levantar voz ativa no presente. Não é à toa que essa Babel que chamamos genericamente de “cultura popular” está sempre refém do Coronelismo e suas versões similares, raramente conseguindo elaborar um discurso mais afirmativo de enfrentamento. As estratégias da Cultura Popular são, quase sempre, adaptação e reformulação. As duas marchas macias são mesmo uma só e afirmam uma mesma coisa, que está contida no refrão da versão mais recente.

Carlos Gomes: De baile solto foi lido majoritariamente pela crítica como um disco político, pois nascido diante dos embates contra a política segregadora do Estado, sobretudo pelos episódios envolvendo a restrição de horário das Sambadas de Maracatu, em Pernambuco, mas que simbolicamente abrange para questões políticas e culturais discutidas e vivenciadas em muitas das capitais brasileiras, sob o prisma capitalista, vide as reflexões sobre as cidades levantadas pelo Ocupe Estelita, por exemplo. No entanto, uma canção como “Será”, dos versos “Será que ainda vai chegar o dia de se pagar até a respiração?/ Pela direção que o mundo está tomando eu vou viver pagando o ar de meu pulmão”, lançada anos antes, já continha essa mirada crítica. Você percebeu uma diferença de tratamento – ou de recepção – entre as canções dos discos anteriores e as do novo álbum?

Siba: Trocar a guitarra por uma rabeca em 1990, formar coletivamente o Mestre Ambrósio e inverter na música o jogo de forças entre a cultura popular e música pop, deixar São Paulo no auge da visibilidade e ir cantar Ciranda e Maracatu no interior de Pernambuco… Foram sempre posições políticas para mim. O De baile solto é apenas mais politicamente explícito e consciente, tem um tom mais duro e afirmativo, mas eu acho que tenho feito sempre a mesma coisa, a vida inteira…


* Carlos Gomes é pesquisador e crítico. Mestre em Comunicação pela UFPE, com estudo comparado do tropicalismo e manguebeat. É editor dos projetos de crítica cultural dos Outros Críticos, no Recife/PE, responsável pela produção de livros, revistas e debates. Lançou em 2018 os livros Canções iluminadas de sol: entre tropicalismos e manguebeats, e O outro é uma queda (Vários autores).

Referências

CAÇAPA, Rodrigo. “Quanto vale a música tradicional?” Outros Críticos. Disponível em <http://outroscriticos.com/quanto-vale-a-musica-tradicional/>. Acesso em 13 fev. 2017.

MARCONDES, Lula. “Realidades do maracatu rural para além do marketing cultural”. Outros Críticos. Disponível em <http://outroscriticos.com/realidades-do-maracatu-rural-para-alem-do-marketing-cultural/>. Acesso em 13 fev. 2017.

MARCONDES; LIMA; ROCHA. “Índios e caboclos: reencontros”. Recife: O norte – Oficina de criação, 2014.

OLIVEIRA, Bernardo. “Repetir, variar, alucinar: entrecrítica sobre De Baile Solto”. Outros Críticos, Recife, ed. 8, p.58-61, 2015.

SIBA. “Maracatu de baque solto e a cobertura da lei”. Outros Críticos. Disponível em <http://outroscriticos.com/pernambuco-maracatu-de-baque-solto-e-a-cobertura-da-lei/>. Acesso em 13 fev. 2017.

Referências discográficas

BARACHINHA; SIBA. Siba e Barachinha. Recife: Terreiro Discos, 2003.

FULORESTA DO SAMBA. Toda vez que eu dou um passo o mundo sai do lugar. Recife: Produção Independente, 2007.

FULORESTA DO SAMBA. Fuloresta do samba. Recife: Produção Independente, 2002.

SIBA. De baile solto. São Paulo/Recife: Yb Music/Fina Produção/Mata Norte ,2015.

SIBA. Avante. São Paulo/Recife: Fina Produção/Mata Norte, 2012.

Referências filmográficas

FRANCISCHELLI, Pablo; JOBIM, Caio. Siba – Nos Balés da Tormenta, DobleChapa Cinematografia/Fina Produção, Rio de Janeiro/Recife: 2012.

PINHEIRO, Marcelo. Fuloresta do samba. Luni Produções, Recife: 2004.

Notas

[1] A apresentação musical ocorreu no bar Manny Deck, no Carmo, em Olinda, no dia 27 de janeiro de 2017.

[2] In: SIBA. De baile solto. São Paulo/Recife: Yb Music/Fina Produção/Mata Norte, 2015.

[3] Narrativas do documentário Fuloresta do samba (2004), dirigido por Marcelo Pinheiro.

[4] Entrecrítica é uma crítica construída sobre uma conversa entre o crítico e o artista.

[5] “A voz, por não ser macia/ Prefiro chamar de grito/ Mas canto imitando o dia/ Por isso eu acho bonito”, na faixa “Poeta sambador”, de Siba, no álbum Fuloresta do samba (2002).

[6] Narrativas sobre as fotografias de José de Holanda na I Festa da Alvorada com Siba, Maciel Salú e Mestre Barachinha, em Nazaré da Mata – PE, 2015.

[7] Da faixa “Toda vez que eu dou um passo o mundo sai do lugar”, de Siba, do álbum homônimo de 2007.

[8] Narrativas do documentário Siba – Nos balés da tormenta (2012), dirigido por Caio Jobim e Pablo Francischelli.

[9] In: SIBA. Avante. São Paulo/Recife: Fina Produção/Mata Norte, 2012.

[10] Esse tópico foi publicado originalmente no site Outros Críticos, em 10 de dezembro de 2015, com o título “Siba: de baile solto, como ave de rapina”.

[11] Disponível em <http://outroscriticos.com/pernambuco-maracatu-de-baque-solto-e-a-cobertura-da-lei/>. Acesso em 13 fev. 2017.

[12] Disponível em <http://outroscriticos.com/quanto-vale-a-musica-tradicional/>. Acesso em 13 fev. 2017.

[13] Disponível em <http://outroscriticos.com/realidades-do-maracatu-rural-para-alem-do-marketing-cultural/>. Acesso em 13 fev. 2017.

[14] Disponível em <http://www.mundosiba.com.br/discos>. Acesso em 13 fev. 2017.

[15] “O que se quer com essa arbitrariedade? Maracatu no Maracatuzódromo? Carnaval no Shopping? Progresso com mais Ordem?”.

[16] Diálogo presente em entrevista realizada pelo autor com o músico na edição 10 da revista Outros Críticos, publicada em dezembro de 2015.