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Identidades urbanas na era do rádio | de Amara Rocha

Nos anos 1950 havia um objeto sagrado em praticamente todos os lares brasileiros: o rádio. Enquanto o país embarcava numa onda modernizadora definida pela política do Estado desenvolvimentista, pelas ondas do rádio a população experimentava a sensação de pertencer a uma grande comunidade, que tinha na lendária Rádio Nacional do Rio de Janeiro sua principal condutora. Através do rádio podia-se saber dos “acontecimentos”, manter-se “atualizado” e, ao mesmo tempo, “sonhar” dentro de um repertório coletivamente compartilhado. Os aparelhos de rádio e, anos depois, os de televisão tornaram-se itens de consumo imprescindíveis estabelecendo uma relação de cumplicidade e afeto com o público. Num país ainda predominantemente rural e com altos índices de analfabetismo estas mídias vão se tornando espaços fundamentais onde circulam sentidos contraditórios de nação, nacionalidade e modernização, que dão significado para toda uma época e ainda hoje estão presentes na cultura. Na década de 30 a música As cantoras do rádio fala da capacidade do rádio em “unir corações de norte a sul” do país.

As cantoras do rádio, de João de Barro com Cármen e Aurora Miranda  

As décadas de 1950 e 1960 foram significativas para a estruturação da mídia eletrônica no Brasil. Até meados dos anos 1950, o rádio exerce um papel central na produção cultural e artística do país, vivia-se o que ficou conhecido como a Era do Rádio.  Nesta fase a emissora mais popular, ouvida de norte a sul do país, era a Rádio Nacional do Rio de Janeiro, que durante anos ditou padrões no meio radiofônico e na cultura de maneira mais ampla. A partir de 1960 a expansão será mais significativa no setor televisivo que, ao se estruturar, passa a disputar a audiência e as verbas publicitárias do rádio e também da mídia escrita, ao mesmo tempo que absorve e recicla toda uma tradição radiofônica.

Como negócios bem sucedidos, a maioria das emissoras ia distanciando-se do improviso de seus primeiros anos de funcionamento. O setor radiofônico encontrava-se plenamente estruturado quando surgiu o setor televisivo. Uma parte considerável do capital necessário para a implantação das emissoras de TV provinha do setor radiofônico. Além do capital, a televisão vai beneficiar-se da tradição cultural e profissional do rádio e, em menor escala, do teatro e do cinema, personificada em profissionais que começam a atuar também na televisão. Ao mesmo tempo o setor publicitário passa por significativas mudanças com padrões de criação afinados com a expectativa crescente de urbanização e modernização. Esta proximidade com a publicidade, e, em menor escala, com o teatro e o cinema, e o mecanismo de constituição das emissoras como empresas, formam circuitos que configuram a produção radiofônica e televisiva, fundamentais na constituição de identidades urbanas no pós Segunda Guerra.

Nas décadas anteriores o meio radiofônico integrou-se ao cotidiano e estava consolidado em termos empresariais. Em torno dele, do teatro de revista e do cinema de chanchada, gravitava uma parte importante da produção cultural e artística do país. Esta conjunção vai se modificando na medida em que o rádio vive uma fase mais promissora, enquanto o teatro de revista e o cinema de chanchada passam por um processo de esgotamento de suas possibilidades comerciais, especialmente após 1946 quando o governo Dutra proibiu o funcionamento dos cassinos deixando muitos cantores e atores do teatro de revista desempregados. A maioria deles já participava esporadicamente de programas de rádio e passa a fazer dele seu principal meio de vida.

A implantação da televisão ocorre a partir desta experiência radiofônica. Como uma tecnologia ainda desconhecida, que incorpora o uso da imagem como elemento inovador, o meio televisivo vai constituir-se como espaço de experimentação e resignificação de padrões culturais. O rádio e a televisão trazem diferenças na relação mídia e cotidiano, anteriormente construída entre mídia impressa e o público. O caráter instantâneo das transmissões aumenta a sensação de interação e proximidade que os meios de comunicação proporcionam.

Rádio, televisão e vida doméstica

O momento em que o rádio já havia se consolidado, e a televisão começa a formar um público, corresponde a uma fase importante de crescimento urbano no Brasil. Em 1950, mais da metade da população, ou seja, 64% viviam na área rural. Em 1970 este percentual diminuiu para 44%, e inverte a relação com a maior parte da população passando a viver em área urbana. O nível de analfabetismo em 1950, era de 51% da população adulta. Em 1970 este índice cai para 34%.   Num país de vasta extensão territorial, diferenças regionais marcantes e alto índice de analfabetismo, a estrutura radiofônica desempenhou o papel de elo de ligação entre as áreas urbanas e rurais.

Com a urgência e as dificuldades em obter informações durante a Segunda Guerra, o rádio foi valorizado mundialmente, mostrando-se como alternativa para as contingências que sofria a imprensa escrita, com a restrição do uso de papel e maquinários, devido ao esforço de guerra e dificuldades na distribuição. Terminada a guerra, o hábito da escuta radiofônica havia aumentado, e o rádio foi se tornando um bem de consumo bastante disseminado. Em algumas cidades brasileiras, o número total de domicílios com rádio ultrapassava o dobro daqueles que possuíam enceradeira e refrigerador, dois bens de consumo bastante apreciados na época. Até mesmo nas camadas da população com menor poder aquisitivo, em que o consumo de eletrodomésticos é bastante inferior, a taxa de consumo de rádio chegava a 85,2%, conforme pesquisa nacional de consumidores de maio-junho de 1952 realizada pelo IBOPE.

A presença do rádio nos lares brasileiros, na década de 1950, é um tema recorrente nas biografias, como a de Paulo Cesar Ferreira que atuou nas Rádios Continental e Nacional, Rede Globo e que teve seu primeiro contato como radiouvinte, durante a infância pobre no bairro carioca de Pilares e que mantém viva na memória:

Enquanto seu Manoel [o pai] sonhava com um futuro melhor para o filho, minha mãe tratava de investir num presente mais confortável, ou melhor, mais divertido, para todos. Naquele ano, 1945, ela limpou o cofre para comprar, em seis prestações, no bazar do Isaac, o primeiro aparelho de rádio. Um Cacique valvulado. A geladeira elétrica, sonho de consumo do meu pai, ficou para depois. De repente, de um dia para o outro, estavam todos lá na sala: Radamés Gnatalli e sua Orquestra Carioca, Libertad Lamarque, Dorival Caymmi, Ataulfo Alves, João de Barro, Glenn Miller, Orquestra Tabajara, Emilinha Borba, Marlene, Adelaide Chiozzo, Carlos Galhardo, Francisco Alves…[1]

No início dos anos 1950 na cidade do Rio de Janeiro, aonde o rádio chegava a quase 95% das residências, havia uma média geral de três ouvintes por aparelho, de segunda a sábado, aumentando para quatro aos domingos.  À noite e aos domingos, a audiência masculina aumentava. Aos domingos, concentra-se a maior parte dos programas dedicados ao esporte. Durante o restante da semana, a maior parte do público ouvinte era composta por mulheres e crianças. A mulher converteu-se para a publicidade na “rainha do lar”, aquela que decidia quais os produtos a serem consumidos pela família. Para ela, era produzida uma parte importante da programação. Os produtos de higiene e beleza patrocinavam as novelas que faziam sucesso, tanto nos horários noturnos, considerados nobres, quanto nos diurnos, quando era maior a audiência das donas de casa.

As crianças também cultivavam o hábito de ouvir rádio. Numa pesquisa feita pelo IBOPE, sob encomenda dos produtos alimentícios Toddy, concluiu-se que, em 1956, cerca de 78% das crianças, entre  8 e 15 anos, tinham o hábito de ouvir programas de rádio. Para o público infantil não havia uma programação específica e as crianças assistiam, em geral, a mesma programação dos adultos. Conforme mencionado anteriormente, as referências à escuta radiofônica, como uma parte importante da experiência de vida, é uma constante nas biografias de toda uma geração. Mário Brassini,  aos doze anos de idade, ao sair de Ponta Grossa no Paraná para uma visita a uma tia em São Paulo, realizou o que era o seu grande desejo de menino, visitar a Rádio Cultura e o programa Nhô Totico

Para um menino que passava quase todas as horas de folga (além de algumas roubadas ao tempo destinado às lições de casa) grudado no Telefunken de ondas longas e curtas, ter a oportunidade de ouvir Nhô Totico e, ao mesmo tempo, vê-lo cara a cara, foi um acontecimento único. Pela primeira vez eu deixava de ser apenas um ouvinte solitário, podia rir e ouvir as risadas de outras pessoas, como se todo mundo estivesse numa festa, e, ainda mais, desvendar o mistério da transmissão radiofônica. (…) Minha admiração por Nhô Totico cresceu ainda mais a partir daquele dia, em que, desconfio, fui contagiado pelo “micróbio do rádio”: alguns anos depois, inconformado com o papel de simples ouvinte, só me dei por satisfeito quando consegui um lugar na emissora da minha cidade.[2]

Paulo Cesar Ferreira conta ainda sua experiência ao ouvir os programas de rádio ao lado da mãe:

Com o Cacique [marca de rádio] sobre a mesa, era como se Lamartine Babo puxasse uma cadeira na cozinha e pusesse na vitrola, só para a gente, valsas, divinas valsas. Em seguida, Almirante pedia licença para tomar um café e contar curiosidades musicais, sob o patrocínio da Philips. Eu enfrentava os inimigos e encarava qualquer desafio no embalo dos programas de aventura, enquanto minha mãe vivia as mais românticas e dramáticas histórias de amor, ao som de capítulos inebriantes das novelas O jardim das folhas mortas e O direito de nascer. (…) Juntos, ao pé do rádio, acompanhávamos com a mesma ansiedade as peripécias de Romário, o “homem-dicionário”. Multidões lotavam o auditório da Rádio Nacional só para desafiar, e testemunhar, a memória inabalável do sujeito.[3]

O mundo do rádio era sedutor e o público buscava um contato mais direto. O prédio da Rádio Nacional na Praça Mauá no Rio de Janeiro era ponto turístico não só para os cariocas, como para os que viam de longe. Visitar uma grande emissora de rádio nos anos 1950 significava descortinar um mundo mágico. Alguns programas, devido a grande freqüência do público, não cabiam mais nas dependências das emissoras e eram realizados em teatros. Participar de um deles era uma experiência inesquecível, como a descrita nas memórias de Paulo César Ferreira:

Numa manhã de sol, vesti minha melhor roupa, abri meu melhor sorriso e saltei para o primeiro bonde, ao lado de minha mãe. Iria viver uma das experiências mais eletrizantes da minha infância. Como por encanto, entrei no rádio, vi as válvulas por dentro, a máquina em marcha do Trem da alegria. Um dos programas de auditório mais concorridos do Brasil já nem cabia mais no salão de trezentos lugares da Rádio Tupi. E nós tomamos o rumo do imenso Teatro Carlos Gomes para acompanhar de perto (…) o festival de prêmios e jogos promovidos pelo Trio de Osso: os magricelas Heber de Bôscoli, “o maquinista”, Yara Sales, “a foguista”, e Lamartine Babo, o “guarda-freios”. No palco, uma maria-fumaça apitava a toda hora e, na platéia, a criançada saía dos trilhos. Eu mal conseguia respirar. Nem minha mãe. Saímos os dois do auditório, de olhos esbugalhados, agarrados aos brindes gentilmente oferecidos pelos patrocinadores: águas de colônia Regina e potes de farinha de banana Flacs. Naquele dia, eu me senti parte do rádio. [4]

Para o público ouvinte “sentir-se parte do rádio” como descreve Paulo César Ferreira era, acima de tudo, uma experiência marcante que tornava a relação com o rádio ainda mais intensa. A idéia de que as transmissões eram frutos das manifestações de grandes talentos num ambiente alegre e descontraído exercia um grande fascínio no público ouvinte. No entanto, as emissoras de rádio além de corporificarem-se como “fábrica de sonhos”, eram lugares de complexos sistemas de trabalho que envolvia um grande número de profissionais, que se dividia nas mais diversas funções. Uma aura de glamour envolvia os que trabalhavam naquele mundo, como se o simples fato de conviver naquele ambiente os tornassem pessoas especiais, usufruindo de pequenas doses da química dos grandes ídolos da época, esses sim, verdadeiros “deuses do Olimpo”.

As publicações especializadas, especialmente a Revista do RádioRadiolândia, freqüentemente estampavam em suas páginas matérias sobre o padrão de vida dos artistas com destaque para a vida doméstica, fartamente ilustrada com fotos onde se reforçava a imagem de famílias harmônicas desfrutando de apartamentos decorados com “elegância”, onde não faltavam os aparelhos eletrodomésticos. Típico quadro do que era o desejável estilo de vida moderno, urbano e bem sucedido. Os salários fabulosos e o estilo de vida apresentados nestas publicações, reproduziam um padrão de vida que era alcançado apenas por uma mínima parcela de privilegiados. O cotidiano da grande maioria dos profissionais do rádio era bem diferente do glamour que lhe era atribuído. Nos depoimentos daqueles que atuavam no rádio são recorrentes as referências, quanto à distância entre este tipo de imagem, e as condições em que vivia a a maior parte deles.

A cantora Emilinha Borba, em entrevista à Revista do Rádio, descreve a maneira como era abordada com pedido de presentes para aqueles que consideravam que para os artistas do rádio tudo era possível:

Pensam que ganhamos milhões… entre as cartas que recebo.. .meus fãs me pedem máquinas de costuras, aparelhos de rádio, vestidos para o aniversários das mãezinhas  queridas, um par de sapatos e até mesmo um vestido de baile.[5]

Em contrapartida aos salários pouco atrativos, o prestígio dado pelo rádio abria para os artistas possibilidades de outros campos de atuação. Através de excursões pelo Brasil e o exterior os artistas promoviam sua imagem, seus discos e filmes.  Nas cidades do interior eram recebidos com verdadeira comoção. As pessoas queriam ver e tocar aqueles que somente eram ouvidos de longe e que eram considerados autênticos embaixadores das “maravilhas urbanas”.

No setor musical os cantores e cantoras eram os mais conhecidos do público e muitos se tornavam celebridades nacionais, podendo chegar a ser conhecidos até internacionalmente. Os programas de auditório contribuíam ainda mais para promover os artistas e tornaram-se verdadeiros fenômenos. Aparecer num programa de auditório no rádio como cantor implicava numa mudança radical de hábitos de vida e de status. Ingressar no rádio significava ter o seu talento reconhecido e respeitado como diz a letra do samba Grã-fino respeitado, de autoria do compositor Metade e cantado em 1946 por Domores Soares, que se intitulava “O satanás do samba”:

Sou brasileiro
Sou do Rio de Janeiro
Sou grã-fino respeitado
Em altas malandragens
E com vantagem
De ser bem considerado
Meu nome vive em cena
Na boca das pequenas
O meu cartaz é conhecido até demais
Como artista competente
Todos sabem meu valor
Eu sou cantor de microfone
Sou feliz…
Quando acabo de cantar
O auditório pede bis…
[6]

No momento em que não havia um mercado fonográfico consolidado, os cantores e compositores dependiam muito mais das emissoras para divulgar suas músicas. Para aqueles que não conseguissem chegar a esta estrutura, a possibilidade de reconhecimento social ficaria remota, conforme descrito no samba Maestro caixa de fósforo, de Germano Augusto e Gabriel Meira, gravado por Araci de Almeida em 1943, e que sugestivamente traz como frase de abertura: “Sai pra lá, maestro caixa de fósforo!”:

Nunca ouvi seu nome
Lá no microfone
Seu samba
Nasce e morre no botequim
Quanto tempo perdido
Quanto café pequeno
Quanto papel rabiscado
Quantas noites de sereno
Sai pra lá, sai prá lá!
[7]

Além dos radioatores, cantores e animadores de auditório havia o grupo dos locutores que concorria com os outros três em popularidade. Alguns speakers, como eram chamados, eram assediados por fãs tanto quanto os artistas da música e do teatro. Era muito comum que alguns anunciantes exigissem que seus anúncios fossem lidos por um determinado speaker, que muitas vezes se tornava um profissional semi-exclusivo daquele produto.

A intimidade como mediadora do consumo

Essa busca de uma relação próxima, de intimidade, é freqüentemente reforçada na linguagem utilizada pelos artistas e locutores, que se dirigem ao público sempre de uma maneira bastante pessoal: “a você, que está me ouvindo”; “ouça agora, minha amiga”, “vou cantar para vocês”, entre outras.  O universo dos ouvintes é amplo e heterogêneo, mas uma parte expressiva busca uma participação ativa, através de telefonemas e envio de cartas.  As emissoras estimulam a atuação participativa dos ouvintes, beneficiando-se do sentido de criação coletiva, que imprimem ao rádio, elevando a audiência e, conseqüentemente, despertando maior interesse junto aos anunciantes. A contar pela participação do público, o mecanismo funciona. De 1945 a 1955, o Setor de Correspondência da Nacional recebeu quase 8 milhões de cartas. O slogan utilizado pela emissora era “Na Nacional o público é o juiz”.

Um outro elemento desta relação do rádio com os ouvintes é a forma como sua linguagem é incorporada ao cotidiano. Mário Brassini afirma que, em viagem pelo país, no início dos anos 1950, pode verificar que:

(…) na região norte já não se falava aquela linguagem tão purista e acadêmica em função, exatamente, dos animadores dos programas de rádio que não falavam uma linguagem invejável e que inventavam cada um suas gírias para se caracterizarem. Então eu cheguei a São Luiz do Maranhão (…) e não encontrei ninguém falando castiço, encontrei moças repetindo aquelas deformações de linguagem:… “Figura de fulano de tal”, quando queriam apresentar alguém. Não sei exatamente qual foi o animador de auditório que lançou essa expressão: ” figura de fulano, figura de Emilinha Borba, figura de Marlene”. Não existia na linguagem brasileira do tempo. Já era influência do rádio (…) unificando nacionalmente a linguagem.[8]

A certa “unificação da linguagem” promovida pelo rádio, soma-se sua capacidade de narrar a vida cotidiana, o que significa produzir sentidos para a própria vida. Uma série de charges de Walter Braga, publicadas na revista Radiolândia m 1950 capta este tipo de integração. Nelas vê-se a personagem Risoleta em suas atividades diárias, sempre acompanhada da “voz do rádio”. Enquanto enfrenta os incômodos do trem lotado, Risoleta houve pelo rádio “Estamos no Trem da Alegria, programa de Héber de Bôscoli”.

Na charge seguinte, ao cuidar das tarefas domésticas a personagem imagina uma coroa enquanto o rádio anuncia “a rainha canta”. Em seu passeio pela orla marítima escuta a letra que lhe diz “Copacabana princesinha do mar…” A identificação do público com esta narrativa é grande, pois, o meio radiofônico, além de espaço legitimador de referências culturais, é para o ouvinte, antes de tudo, um companheiro que  preenche de sentidos o dia-a-dia.


Algumas publicações reforçavam estes laços, funcionando como extensões do próprio meio. As duas principais, na década de 1950, foram a Revista do Rádio, cuja primeira edição é de 1948 e Radiolândia, iniciada em dezembro de 1953.  Estas publicações incentivavam e alimentavam continuamente a curiosidade pública, no que se refere à vida “por trás dos bastidores”. Todo um discurso acerca das personalidades artísticas como padrão de moral e sucesso econômico é reforçado. Além de dissecar a vida pessoal dos artistas, reservando espaço para rixas pessoais e problemas familiares, destaca-se sempre o lado “invejável” do padrão de vida que levavam.

Capa da Revista do Rádio - acervo particular
As matérias da Revista do Rádio associavam com freqüência a imagem do artista à família, como representações de “lar ajustado e feliz”, ilustradas com muitas fotografias em que se destacam os bens adquiridos como casas e reformas de apartamentos, fruto do “sucesso e de batalha pessoal”. Nas duas publicações havia espaço reservado para cartas dos leitores, onde o público se pronunciava acerca de suas preferências, mandava recados para os seus ídolos, tanto “queixosos” quanto “elogiosos”.  Este espaço colocava-se como um canal aberto entre o público e os artistas.

Todo o empenho em tornar público o “mundo do rádio” incentivava a emergência de um tipo especial de ouvinte – os fãs – que, organizados formalmente em fãs-clubes participavam da corte do artista escolhido, promovendo-o, sistematicamente, com homenagens públicas e demonstrações de carinho e afeto. Os fãs-clubes tinham um caráter disciplinador, organizando a formação da corte e permitindo a aproximação com os ídolos. Para os artistas, o fã-clube tinha um lado prático bastante positivo, pois por trás do relacionamento despretensiosamente carinhoso, funcionava um mecanismo valioso de publicidade e termômetro do sucesso alcançado.

Os fãs-clubes marcavam diferenças entre si. A partir do perfil público do artista, seus admiradores se organizavam de modo a confirmar esse perfil, conformando-o por determinados sinais de identificação sociocultural. Em torno dessas diferenças, alimentavam-se rivalidades que promoviam os envolvidos. Neste tipo de disputa, tornou-se marcante a atuação dos fãs-clubes de duas das cantoras mais famosas da época, Marlene e Emilinha Borba. Marlene se dizia existencialista, gostava de viagens e de experimentar a vida. Emilinha fazia o estilo mais tradicional, gostava de cozinhar e de cuidar da casa. Numa seqüência de reportagens da Revista do Rádio em 1956, dedicada às trajetórias das duas cantoras, afirma-se que elas se conheceram no início das carreiras e a rivalidade entre as duas não existia de fato, pois Emilinha era madrinha do casamento de Marlene.  No entanto, estimulava-se a rivalidade entre as respectivas fãs. Os fãs-clubes procuravam superar-se um ao outro na homenagem às suas estrelas.

O relacionamento bem sucedido das estrelas com seus fãs dependia de um sistema de cumplicidade. Emilinha afirma que, num episódio em que quis preservar-se do assédio de seu fã- clube, foi vítima de um protesto que jamais esqueceu. A cantora sentindo-se indisposta ao sair de uma apresentação, driblou as fãs que queriam acompanhá-la e, na apresentação seguinte, as fãs revidaram:

Quando entrei no auditório da Nacional, elas estavam todas sentadas. Cantei o primeiro número e a fanzocada, braços cruzados, nem me aplaudia. (…) Na segunda-feira seguinte lá estavam elas gritando: ‘Minha estrela, minha rainha, minha querida’. Cruzei os braços e pedi a direção da Rádio que colocasse um disco de palmas, porque estava muito magoada com as minhas fãs. Mas tudo isso não passou de um breve desentendimento e logo ficamos de bem.[9]

Quando o objeto de adoração evita a corte, o pacto é abalado, mas o equilíbrio é recuperado, assim que ambas as partes manifestam sua insatisfação, e tudo fica “bem”. Além dos fãs-clubes, havia outras formas de organizar o contato com os artistas, como a escolha de Reis e Rainhas do Rádio. A escolha era feita pelo público através do envio de cupons organizados pela Revista do Rádio. As vencedoras, além do título de Rainha do Rádio e de toda promoção decorrente, recebiam prêmios como jóias, viagens, automóveis e apartamentos. No concurso de 1949 a vencedora foi Marlene, que fazia parte de uma campanha da Companhia Antarctica Paulista, de um de seus produtos – o Guaraná Caçula. A Antarctica deu um cheque em branco para cobrir qualquer quantia e financiou o envio de cupons fazendo com que  Marlene superasse suas adversárias. A cantora foi eleita e manteve o título até 1951.[10] A foto de Marlene com a faixa de Rainha do Rádio, trazendo às mãos o Guaraná Caçula, foi amplamente divulgada na imprensa. A Revista do Rádio e outras publicações faziam a cobertura completa de todo o concurso que prosseguiu até os anos 1960 chegando a editar concursos regionais.

A proximidade entre os artistas e o público criada pelo rádio, e reforçada pelas revistas, transformavam os primeiros, em intérpretes “da alma emotiva” e, ao mesmo tempo, em padrões de consumo que chegavam aos pontos mais distantes do país pelas ondas sonoras. Junto à imagem dos artistas de rádio eram divulgados produtos de beleza, higiene, roupas, farmacêuticos etc. Na campanha do sabonete Eucalol, a cantora Emilinha estampava um sorriso por ter escolhido o produto, depois de selecionar e comparar, pois ela “precisa conservar-se linda… ela usa o sabonete Eucalol”, pois, “no palco, na tela ou no microfone, Emilinha Borba conquista sempre novos trunfos e maiores admiradores”. No mesmo anúncio são publicados os depoimentos de atrizes do teatro e da televisão, que afirmam a mesma escolha. Um espaço em branco é reservado ao retrato da consumidora que, ao fazer a opção pelo sabonete Eucalol, passa a ocupar um lugar bem próximo das estrelas que admira.

Os locutores, que também eram adorados pelo público, com suas vozes aveludadas num timbre macio e até mesmo sensual, tornavam-se tão conhecidos como os artistas, transformando-se em objetos de paixões platônicas, ao mesmo tempo em que anunciavam para todo o Brasil, removedores de calos, laxantes, lojas de roupas e vários outros produtos.

Com a implantação da televisão vai se configurando um novo canal de produção e circulação de produtos culturais e publicidade. Como bem de consumo, inicialmente restrito às camadas mais ricas da população, para a televisão converge a verba de publicidade do que seria o grande manancial do período pós-guerra – os eletrodomésticos. Em 1956, a TV inaugura seu horário diurno, entre onze e treze horas. Os canais ampliam paulatinamente sua capacidade de transmissão para regiões mais distantes dos grandes centros. Acompanhando o aumento do consumo de televisão, as Revista do Rádio, Radiolândiaabriram seções específicas para o meio televisivo, com matérias e reportagens. Surgem ainda, publicações específicas como a Revista da Televisão (1956), TV Programa (1955) Intervalo (1963). O Jornal, das Emissoras Associadas, a pioneira no ramo de televisão, passa a incluir, na década de 1960, nas edições de domingo, um encarte especialmente dedicado ao novo veículo.

O tratamento é bastante parecido àquele dedicado ao mundo do rádio. Entrevistas e reportagens sobre os programas e a vida íntima dos artistas, sucedem-se às seções dedicadas à opinião dos “teleouvintes”.  A TV Programa, abre uma seção especialmente dedicada à publicação de suas cartas. Nelas verifica-se, que o público age com a televisão como se fosse um especialista, opinando sobre aperformance dos atores e a produção dos programas. As críticas são mais severas que aquelas publicadas na Revista do Rádio. Trata-se de um momento em que há uma distinção entre estes públicos. Enquanto o rádio é um meio nacionalmente popular, a televisão é vista apenas pela camada mais rica da população. Os artistas comentam acerca do tratamento que recebem através de telefonemas para as emissoras ao final das apresentações para cumprimentar os artistas, numa atitude similar à ida aos camarins aos finais dos espetáculos realizados em teatro.

A publicidade investe na idéia, de que televisão é sinônimo de status. O apelo para compra do televisor é feito por sua associação à “qualidade” e afinidade com outros bens de consumo, com o mesmo tipo de denotação. Numa outra peça publicitária de divulgação da TV Coroados, das Emissoras Associadas, publicada pela revista Manchete, em fevereiro de 1967, é apresentada a imagem de uma família ideal, um casal de aparência jovem e feliz, acompanhado por dois filhos, cercado de eletrodomésticos. A emissora de TV Coroados é simbolizada como o “veículo ideal para anunciar qualquer produto: ela fala a um público que compra muito, e que a ‘escuta’ mais ainda”.


Os programas de rádio vão sendo adaptados para o formato da tela. Como, também, tem início uma série de experiências, com relação a uma produção especificamente voltada para a constituição de uma linguagem televisiva, o que vai ocorrer, especialmente, com o jornalismo, a produção de dramaturgia e a publicidade. O público já havia experimentado a imagem através do cinema, porém, a capacidade da televisão de trazer a imagem para dentro das casas, numa fase em que é ao vivo, potencializa a força da imagem como narrativa do cotidiano.

Esta credibilidade da televisão foi sendo construída juntamente com certa sedução tecnológica. O conceito de programação televisiva vai se formando em conjunto com a expansão do mercado de bens de consumo, valorizando o que seria o seu diferencial: o hábito de audiência. A programação passa a ser dividida em segmentos: infantil, feminino, masculino e jovem. No caso do público jovem a diferenciação, como parte da constituição de uma sociedade de consumo, é ainda mais marcante. Conforme afirma Beatriz Sarlo:

A juventude não é uma idade e sim uma estética da vida cotidiana. (…) O mercado ganha relevo e corteja a juventude, depois de instituí-la como protagonista da maioria de seus mitos. (…) A renovação incessante, necessária ao mercado capitalista, captura o mito da novidade permanente que também impulsiona a juventude. Nunca as necessidades do mercado estiveram afinada tão precisamente ao imaginário de seus consumidores.[11]

A experiência da modernização inclui, necessariamente, segmentações de gostos e públicos, através das quais vão sendo criadas novas formas de identidade, que passam pelo consumo de bens cada vez mais diferenciados. Os aparelhos portáteis de televisão vão se disseminando, incentivando a audiência individual em que cada um pode ver “o que quer”, “quando quiser”. No ano de 1968, em plena era do AI-5, o governo providencia a liberação de crédito ao consumidor e a compra de aparelhos de televisão aumenta cerca de 32%. O sonho da “televisão própria” torna-se mais exeqüível  para uma maior parcela da população brasileira. A intimidade que a televisão vai estabelecendo com o público, tal qual o rádio anteriormente, lhe assegura a posição de lugar privilegiado, onde se produzem e circulam narrativas fundamentais para experimentação da modernização e a ampliação do sentimento de incorporação social, numa sociedade em que, contraditoriamente, se acirram os contrastes sociais.

*Amara Silva de Souza Rocha é Doutora em História Social pela UFRJ, Historiadora e Pesquisadora Associada do Programa Avançado de Cultura Contemporânea da UFRJ e Coordenadora do projeto “Produção e consumo cultural nas periferias urbanas”, financiado pela FAPERJ. Autora de vários artigos sobre teorias da modernização e do consumo, história urbana e história da mídia e do livro Nas ondas da modernização. O rádio e a TV no Brasil de 1950 a 1970, Rio de Janeiro: Aeroplano/FAPERJ, 2007.


[1] FERREIRA, Paulo Cesar. Pilares via satélite: da Rádio Nacional à Rede Globo. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. p. 34

[2] Depoimento de Mário Brassini publicado na Revista USP,jan/2002/fev/2003, nº 56. “Dossiê Oitenta anos de rádio”. p. 27.

[3] FERREIRA, Paulo César. Op. cit. p.34. A citação ao Romário, o “homem-dicionário”, tem a ver com um programa de perguntas e respostas, da época em que notabilizou este indivíduo, que durante longo tempo respondia perguntas sobre os mais variados assuntos, ganhando vários prêmios e ficando nacionalmente conhecido por esta façanha.

[4] FERREIRA, Paulo César. Op. cit. p. 35.

[5] Revista do Rádio, 8/12/1956, “Como subiram duas estrelas: Marlene e Emilinha”.

[6] Letra conforme publicação em número do Jornal de Modinhas de 1946. In: TINHORÃO, José Ramos. Música popular: do gramofone ao rádio e à TV. São Paulo: Ática, 1981. p.130-1.

[7] GERMANO AUGUSTO e MEIRA, Gabriel. Maestro caixa de fósforo (samba). In: TINHORÃO, José Ramos. Op. Cit. p.131: “Gravado por Araci de Almeida, conforme indicação do jornal A Modinha, de dezembro de 1943, onde está transcrita a letra aqui reproduzida.”

[8] Depoimento de Mário Brassini dado ao NEP/Funarte em 1982.

[9] Jornal o Brasil, 29/01/1975, Caderno B.

[10] Depoimento de Marlene ao Museu da Imagem e do Som em 5/10/1971.

[11] SARLO, Beatriz. Cenas da vida pós-moderna. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2000. p. 40-1.