Ano XIX 0201
Artigo
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O POETA MATUTINO PALITA MOLARES E CANINOS EM COPACABANA

A marca de nosso tempo, seu umbral – a grave fronteira que cumpre atravessar, arrastando trapos, ruínas, culpas e esperanças –, o signo por excelência – a celebrar, inverter e esconjurar –, a referência paradigmática de nossos dilemas, pessoais e coletivos, o centro, o novo e arcaico centro gravitacional para as cosmologias em trânsito, o eixo que ordena o regime de afetos e afia o gume das horas, a marca, portanto, de nosso tempo é Fausto.

Fausto, embora meio caduco e banguela, jantou Édipo e o cuspiu, misturado às tripas do anjo da história – que mania de olhar pra trás –, jantou Édipo e o cuspiu no baú dos arquivos veneráveis – veneráveis mas destituídos de urgência. Édipo pulou fora de nossas retinas pra virar retrato na parede, figura itabirana melancólica, álbum de família, flagrante saudoso e remoto de papai & mamãe.

Foi mais ou menos, traduzido e traído por minha memória claudicante, o que Italo Moriconi me disse, em meados dos anos 1990, quando nossa comunicação era diária e frenética, graças à magia recém-descoberta do e-mail, serviço pago e discado: eu em Virginia, ele em Copacabana. Talvez ele não se lembre, provavelmente não se lembrará. Italo era uma usina de ideias, como é até hoje, sempre foi, turbilhão, trezentos, não heterônimos, mas flashes por segundo, intensamente presente na experiência que sorvia até a última gota (veneno-remédio – naturalmente).

Italo Moriconi em foto de Ana Branco
Italo Moriconi em foto de Ana Branco

Presente de corpo e alma em cada cena cotidiana, política até a raiz dos cabelos, cenas que ele agarrava pelos cabelos até extrair-lhes a confissão. Saibam vocês: as cenas tagarelas que Italo dissecava, em suas mensagens-crônicas deliciosamente minuciosas, etnográficas, literárias, personalíssimas, dissecava com a violência sutil de poeta aprendiz, aquelas cenas confessavam tudinho, rendiam-se inteirinhas, da cabeça aos pés.

Italo flertava com as mil e uma possibilidades de sentido e sabor, desdenhando nostalgias, clichês e madeleines – porque interessante mesmo era o mundo por vir. Ao mesmo tempo, quem diria?, flanava pelas frestas da cidade, de que ele tomava posse, completamente: glutão, glutão.

Em outras palavras: presente, corpo e alma, mas sempre também recuando para o lado sombrio de cada esquina, camaleônico, poeta camuflado, voyeur espectral, fazendo-se de morto, evocando mortes e distâncias irredutíveis, encenando a si mesmo como tábula rasa, aberto ao mundo – cabeça, tronco e membros abertos, oferendas à fertilidade, dádivas aos deuses e demônios das origens e das manhãs.

Italo vivia os anos 90, como os 80 e os 70, de Brasília ao Rio, com intensidade paradoxal (doce e amarga, cheia de carne nos dentes, volúpia e comedimento), intensidade paradoxal de quem mergulha na boca da noite, mas se dedica ao ofício de palitar molares e caninos ao amanhecer, fixando na página em branco o ato que põe o sujeito em pauta sem rasuras. Italo sempre foi matutino e carioquíssimo, estrangeiríssimo, abrindo os olhos (não-inteiramente, é claro, porque faz muito sol em Copacabana), semicerrando a vista para cuidar-se, para cuidar, entrever e refratar a florada extravagante de luzes e ambiguidades, a explosão irremediavelmente parnasiana a que remete a linha alta do mar de Copa, dia sim, dia não.

Onde mesmo é que estávamos quando esse texto começou, antes de escapar ao controle e refugiar-se no labirinto de vielas barrocas? Vocês hão de me perdoar, mas essa lua e esse conhaque botam a gente comovido como o diabo. Ah! Sim, o diabo: Mefistófeles, Fausto. Pois é, talvez Italo nem se lembre, mas seu diagnóstico de que Fausto substituíra Édipo na encruzilhada de nosso tempo produziu um grande impacto em mim, impacto que ainda não metabolizei inteiramente, e sob cujo efeito penso e escrevo, até hoje, três décadas depois daquela nossa conversa casual.

A troca de mitos corresponde a uma troca entre sistemas de trocas. Com Édipo, estava em jogo, do ponto de vista antropológico, a troca de um interdito radical por uma autorização vivificadora, da endogamia pela sociedade, da clausura pela expansão, do insulamento pela reciprocidade e a tessitura das redes estendidas de sociabilidade, do solipsismo pelo universo das trocas. Do ponto de vista psicanalítico, estava em questão a substituição de uma linguagem matricial (em certa medida estava em questão a própria psicanálise). Édipo equivalia à troca da plenitude imaginária ilimitada e, por isso mesmo, mortificante, pelo nascimento do sujeito, graças à castração – a intervenção do terceiro, a entrada em jogo do falo. O declínio de Édipo retrata o ocaso do Pai, indicia a fratura de um pilar do capital, expressa o colapso de um regime de poder e servidão, o Patriarcado, nome do banho de sangue contínuo que encharca nossos destinos coloniais. Mas a que preço abandonamos as paisagens mentais em chamas, a que custo migramos dessas paragens que nos formaram, que são a nossa casa, a nossa cara? O que significa o desterro, o exílio? O que implica deixar-se reger pela cosmologia fáustica? Por outro lado, resta alguma escolha?

Esquematicamente, Fausto remete ao pacto, à celebração de um acordo por meio do qual se troca o objeto do desejo pela danação eterna, o que equivale a dizer que se troca a cadeia dos objetos que se põem a circular como alvos do desejo pelo desejo mesmo, enquanto nome da falta irremediável. Trocamos a saciedade provisória pela insaciabilidade permanente. Capitalismo, consumo, gozo contingente no ímpeto consumista trocados pela rendição à dinâmica da insaciabilidade, trocados pela ansiedade irrefreável, a insatisfação crônica, o fracasso – e a terra devastada, literalmente. Ou então: verdade, beleza, prazer, a glória em troca da condenação, a alma arrebatada, a liberdade vendida. Nada disso basta. A sabedoria de Italo, o poder de sua intuição vai além do trivial, das leituras previsíveis, do senso comum ilustrado, do ceticismo cultivado.

Leio o que ele mesmo escreveu no poema Contrato, em seu livro Quase Sertão, publicado em 1996 pela editora Diadorim (RJ):

Eu tenho nojo do teu comportamento.
Você tem nojo do meu comportamento.
Vamos guardá-lo no baú ancestral de couro encardido.
E fabricar nosso tecido
De meias-palavras.

O contrato negocia um sistema de relações, um sistema de trocas, de interações, interlocuções, diálogos, uma sociabilidade à meia-luz, à meia-boca, um convívio feito de silêncios que tenha o mérito de não se degradar em conflito terminal, em guerra e destruição. Mas esse mérito traz consigo o infortúnio de outra degradação, de outra destruição. Guardando o nojo recíproco no baú, nos salvaremos do cataclismo, sobreviveremos ao apocalipse. O preço é a meia-palavra. Custo valiosíssimo para o poeta, que lapida em cada silêncio, pausa a pausa, palavra e meia. De certa forma, não há relação nem troca com o nojo metido no baú, porque não se trata da meia-palavra plena de sentido, aquela que basta para que a comunicação se cumpra. Aqui, o baú é arca, túmulo, ataúde, o recalque objetivado. Se criação poética é desrecalque, ela aqui está sepultada. A palavra pela metade é comunicação mutilada. O preço da paz centrífuga é a coexistência de solidões insuladas.

Nojo é mais que desprezo moral: adiciona um tom sensível, corpóreo, inflama os cinco sentidos com o sopro da repulsa, mobiliza todas as dimensões do sujeito para a abjeção. Por outro lado, o alvo do nojo não é raça ou nacionalidade, é comportamento, é ação dotada de sentido. O repúdio se desnaturaliza e, por assim dizer, se politiza.

O couro encardido do baú, gasto pelo tempo, é matéria animal ressecada, esterilizada, revestindo o esquife que evoca a ancestralidade: a seta da ascendência aponta para a origem, arché, matriz, sede de arquétipos, figuras imemoriais imunes à contingência e à temporalidade. Aí está, arqueologicamente depositado no poema, o que seria, na ilusória tradição do esclarecimento, confrontada pelo poema, o fulcro do comum, a raiz primitiva do universal, solo sob os solos em que as diferenciações babélicas se radicariam, unidas no paraíso metafísico das indistinções. Nesse baú, repousaria a alma essencial e unívoca da humanidade, a garantia última da transparência, da comunicação desobstruída e da palavra plena. Pois aí está a crueldade e a ousadia subversiva do poema: seus versos enterram no poço ancestral a matéria insepulta da mútua abjeção. Não se sai desse poema como quem lava as mãos. Ao contrário, as mãos, como o poema, estão sujas, as mãos e as unhas se melam no esterco: na merda chafurda o lavrador, garimpeiro de palavras. Nenhuma Antígona velará pelo corpo insepulto da repulsa recíproca.

O contrato, este, pode bem aludir ao pacto fáustico, desde que recalibremos o alcance da reflexão, desde que renunciemos à pompa grandiloquente do bronze, tanto à gravidade do bronze que eterniza, quanto à bela leveza da tessera hospitalis, que enlaça. Este contrato não se cumpre, firma-se para a traição, firma-se com a piscadela do diabo que, por sê-lo, mente e finge, feito poeta, meio carioca, meio transgressor. Pacto feito de semitons, claro-escuros, despiciendo, pacto que é desconversa, meias palavras, jogo sujo, harmonia falsa sobre fundo falso, simetria impossível entre meias metades (inversão da tessera hospitalis), meias metades com as quais se convive, a muito custo, antagonistas que jamais serão salvas pela síntese sebastianista da dialética, cujas forças incomensuráveis sempre postergarão a guerra no jogo arrastado, traído e distraído. O que são desmesuras pela metade? Nem ilusão pseudo-humanista, nem escatologia dialética messiânica: o reconhecimento do quadro agonístico é o que resulta no poema, trama e drama insolúveis.

Não se trata, portanto, de celebrar contrato com o diabo; diabólico é o contrato; a relação está envenenada. Tampouco se trata de uma relação qualquer, mas do convívio pusilânime que mutila a palavra para garantir a coexistência corroída e corrosiva. O reino das meias palavras mortifica e amortece, dilui arestas, dissolve paixões no ácido da desconversa, põe-se contra o enfrentamento desestabilizador e angustiante das relações agonísticas, embate perigoso mas vivo, onde há clima para a poesia, paisagem pesada mas imune ao enxofre. Imune à putrefação da palavra, ao domínio do clichê, à morte da criação, seja canônica, seja essencial.

No cosmos do capital, prevalece a lei das trocas, palavra-moeda, pátria da comensurabilidade (ou da simetria substitutiva, para evocar Paul de Man), prevalece a linguagem da mercadoria, o império do mercado e do fetiche, feira onde tudo tem seu preço e se presta a virar pastiche, tudo encontra equivalentes. Nesse cosmos, o que rebenta a casca do ovo e põe a cabeça pra fora, dando-se à luz, é a singularidade – pós-canônica, pós-essencial, especialíssima, irredutível aos sistemas de trocas, aos sistemas das equivalências. A singularidade, o poema, a criação literária, a obra estética em voz anticlichê exige leitores e leitoras, ouvintes, fruidores e fruidoras (e críticos e críticas) que ousem a invenção de suas próprias mordidas únicas, incomparáveis. As dentições são diferentes como as impressões digitais. Italo anunciou, por obra e graça de Fausto, evocando o pacto mefistofélico como sinal dos tempos, Italo anunciou, isto é, insinuou a era das impressões digitais emancipadas, das dentições inclassificáveis.

No tempo pós-edipiano, novos e novas poetas estariam livres da angústia da influência, prescindiriam da morte do pai, evocariam ascendências matrilineares ou conceberiam um céu livre de monoteísmos, ou povoados de monoteísmos extintos, puras recordações inofensivas, céus e terras e mares panteístas ou vazios e silentes. Mas é claro que a novas liberdades corresponderiam novos constrangimentos. Nesse caso, a celebração de pactos talvez remetesse a contratos horizontais, em que se empenhe a palavra plena, sem concessões, em que se troquem toques e trilhas de fecundação recíproca.

Linhagens de novo tipo. Pistas futuras.

Como talvez dissesse um Mário renascido: os males do Brasil já não são muita saúva, pouca saúde, mas muita, muita saliva, muita palavra gasta, muita palavra moeda de troca, muitas convicções vendidas nos templos do fascismo, à boca pequena, na mão grande, na festa monumental da pusilanimidade, todas as mãos sujas de sangue, cumplicidade e meias palavras. Italo nos propõe o contraponto, representado pela consciência crítica sobre o pacto fáustico, que aponta para um ambiente estético, ético e político sem acomodações. Contra a transigência untuosa e pusilânime, à meia luz, das meias-palavras, a pulsão solar de Copacabana.

Por tudo, Italo, as lições, os exemplos, a coragem, a lucidez, por tanto afeto e generosidade, por tudo, meu amigo, meu irmão, eis-me aqui, a teus pés.[1]

* Luiz Eduardo Soares é escritor, antropólogo, professor visitante da UFRJ e ex-professor da UERJ, do IUPERJ e da UNICAMP. Publicou mais de vinte livros, dos quais os mais recentes são Desmilitarizar: segurança pública e direitos humanos (Boitempo, 2019), O Brasil e seu Duplo (Todavia, 2019), Dentro da noite feroz: o fascismo no Brasil (Boitempo, 2020) e o romance Enquanto anoitece (Todavia, 2023).
Notas
[1] Intervenção no seminário em homenagem a Italo Moriconi, realizado em 8 de dezembro de 2023 na Casa Dirce, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e organizado pelas professoras doutoras Diana Klinger (UFF) e Ieda Magri (UERJ) e pelo doutor em Literatura Brasileira e crítico literário Ricardo Vieira Lima.