Ano XII 0201
2º semestre de 2017
artigo
Tempo de leitura estimado: 32 minutos

PERSONAGENS FEMININAS DO NARCOTRÁFICO EM RAQUEL DE OLIVEIRA E ALESSANDRO BUZO

Resumo: A partir da trajetória de duas personagens femininas da periferia, Bonitona do romance A número um, de Raquel de Oliveira e “Rose” do romance Guerreira, de Alessandro Buzo, foram traçados apontamentos sobre as relações entre as duas personagens e delas com seu meio, bem como discutimos aspectos dessas narrativas, de acordo com estudos da literatura contemporânea brasileira.

Palavras-chave: Centro versus periferia; ficção e realidade; mulheres e narcotráfico.

Abstract: From the trajectory of two female characters from the periphery, Bonitona from the novel A número um by Raquel de Oliveira and Rose from the novel Guerreira by Alessandro Buzo, notes were drawn on the relations between the characters and between them and their environment. We also analyze these narratives according to studies of Brazilian contemporary literature.

Keywords: Center versus periphery; fiction and reality; women and drug trafficking.

 

Histórias do tráfico de drogas e de seus chefes nas favelas de grandes cidades são tema tanto das páginas de noticiários policiais quanto de obras literárias de ficção, em histórias que prendem a atenção por apresentarem personagens fascinantes e pelo tom espetacular de suas façanhas no mundo da contravenção e do crime. Neste artigo, a proposta é discutir as personagens de dois romances escritos por autores ditos escritores da periferia: Bonitona, a narradora do romance A número um, de Raquel de Oliveira, e Rose, a personagem do romance Guerreira, de Alessandro Buzo.

Ambos os romances fazem parte da chamada literatura marginal, já que são escritos por autores que viveram ou ainda vivem à margem, em favela ou no subúrbio, longe dos centros das cidades, enfatizando a característica que acaba por nomear o gênero. Por isso, configuram-se por apresentar questões de denúncia e testemunho, além de relatos de vida específicos do ambiente da periferia das grandes cidades brasileiras. O próprio tom confessional da narrativa como testemunho factual soa como crítica à realidade de um tecido social fragilizado, mas também orienta para um entendimento que pretende encontrar verdades relacionadas com o que se espera de uma obra com esse tom, consequentemente direcionando o olhar para leituras autobiográficas.

O estudo não pretendeu fazer análise literária das obras, mas sim levantar os aspectos que tangenciam algumas das questões urgentes dos estudos da literatura contemporânea, que remetem também aos problemas da sociedade, isto é, drogas, tráfico, preconceito, pobreza e outros que fazem da existência das pessoas que vivem na periferia uma aventura perigosa.

A número um: aspectos da obra e da personagem

O romance de Raquel de Oliveira (2015), logo no início da leitura, parece estar associado ao gênero escritas de si, pois é o caso em que uma mulher escreve suas memórias, recuperando lembranças da própria vida. Nesse sentido, o romance A número um inaugura a voz autoral de uma mulher que, diferente do que vinha predominando na literatura contemporânea, fala a partir do seu lugar, daquela parte periférica da cidade que ela conhece e vivencia, narra e dá a conhecer. Dali, ela aborda sua passada relação com o crime e com a sua sobrevivência nele e apesar dele. Trata-se de um gênero recente no que se refere à voz de uma mulher da favela e ex-traficante falando de dentro do seu território sem subterfúgios, sem meias palavras.

O romance é composto por sete capítulos. A narrativa está em primeira pessoa e em todo o romance a voz da narradora evidencia os fatos que a levaram a escrever o livro. Logo no primeiro capítulo, ela dialoga com uma personagem ausente (que depois o leitor fica sabendo se tratar do amor de sua vida). Pará, o protagonista do início da trama, é narrado no passado como lembrança, como ausência e com saudade. É a partir dele que Bonitona passa a existir como ele designou. Sem ele, ela não seria quem chegou a ser e nem seria o que ela é hoje.

Nos capítulos seguintes, a narradora alterna suas lembranças com descrições de situações do passado nos diálogos encetados com as personagens secundárias do romance, que vivenciaram tais situações na história narrada, conformando a trama e dando sentido ao narrado. No entanto, dentre todos os aspectos dessa trama, a favela da Rocinha é um dos mais importantes, pois ela se configura como ambiente e local geográfico da narrativa. A Rocinha é o lugar emblemático, o palco das guerras às quais o romance se refere e é também o ambiente cultural, político e psicológico do enredo. Pode-se afirmar que a Rocinha é também uma personagem do romance.

A protagonista do romance é a própria narradora. É uma narradora-personagem, portanto, não é onisciente em relação às demais personagens. Ela narra a si mesma e aos fatos que lhe concernem. Não é neutra: analisa o ambiente e faz suposições com base no conhecimento factual do lugar e das situações daquele ambiente e daquela atividade.

A linguagem da narrativa usa moderadamente o jargão da favela e do pessoal do morro, do crime. Alguns palavrões e gírias que a narradora conhece aparecem no texto de modo bastante integrado ao contexto. As personagens secundárias da trama são bem delineadas por ela e todos acabam sendo complementos dramáticos que compõem o seu próprio perfil. Ela também dá notícia dos próprios fatos narrados quando veiculados na mídia, reverberando as reportagens jornalísticas.

Bonitona não oferece mistérios a serem resolvidos no final da trama, nem tem um grande conflito ideológico. Durante todo o trajeto da fabulação o que se depreende é uma forte oscilação. No início, ela só queria morrer para poder encontrar seu amor. No meio da trama, ela luta para sobreviver, mesmo passando por situações de alto risco. No final do romance, ela aponta para a saída da vida no tráfico e relata sua salvação quando fica sabendo pelos jornais que seu último inimigo foi encontrado morto. Assim, a partir do momento em que ela se torna a personagem da trama de seu romance, Bonitona é uma personagem circular.

Guerreira: a obra e a personagem

 O romance Guerreira, de Alessandro Buzo, retrata as carências, a pobreza, a violência e as práticas relacionadas aos espaços e aos sujeitos marginais da cidade de São Paulo. Buzo apresenta uma personagem comum, sem conflitos ideológicos nem questionamentos morais, que age de modo condizente com o ambiente narrado. Ainda que tenha sido criada a partir de um quadro da realidade que o autor conhece de perto, e embora contendo quadros ficcionais novelescos, todo o conjunto – trama e personagens – são pouco verossímeis. O livro está organizado em 14 capítulos.

O narrador é onisciente e conhece bem suas personagens. Rose é o centro de toda história e todas as demais personagens são acessórios. A falta de complexidade das personagens se reflete na pobreza dos diálogos. O narrador por diversas vezes associa à sua narrativa citações de dramaturgia popular das novelas, interferindo na narração e até colocando textos descritivos entre parênteses no meio do texto narrativo. É possível deduzir que Buzo pretendeu um leitor X para seu romance, pois quando ele interfere na narrativa para explicar determinadas situações das personagens passa a impressão de que ele está se dirigindo a um leitor de outra classe social que não conhece o mundo marginal narrado por ele. Essa posição deixa duas questões para serem analisadas no livro: o autor como narrador se coloca em um lugar específico, isto é, de periférico, mas quer ser visto por leitores de outro lugar, diferente daquele que ele ocupa; ao agir assim, o autor desconsidera os leitores que realmente conhecem o lugar de onde ele fala.

Por conta dessas questões, o aspecto mais marcante da obra aparece no embate de classes, onde expressam-se as diferenças contidas na oposição do binômio centro-periferia, com os aspectos culturais e econômicos que caracterizam esses dois lugares. Pelo fato de ter escrito uma narrativa retratando um ambiente burguês que ele não conhece bem, o enredo do romance não está “amarrado” de modo a convencer o leitor da verossimilhança da trama. No entanto, a lógica da transferência de capital do rico para o pobre, do centro para a periferia, deslocando a personagem da periferia para o centro é colocada em prática no romance, quando a personagem da garota pobre se torna uma empresária rica e passa a se comportar socialmente como uma mulher burguesa.

A leitura do livro deixa transparecer certa imaturidade literária do autor, já que ao analisarmos a personagem – que o autor coloca como a protagonista – encontramos uma caricatura de traços comuns. Os diálogos que representam a voz da protagonista são superficiais, sem conflitos, ideológico ou psicológico. Com essa personagem não ocorre uma travessia em que se vislumbre uma trajetória transformadora do ponto de vista do caráter. Apesar disso, por ela se transformar social e economicamente, pode ser vista como personagem circular. As duas personagens femininas, Bonitona e Rose, fazem parte de um lugar social, neste caso, a periferia, a margem. Vamos chamar esse lugar de território (Carril, 2006), lembrando que esse lugar não é estático, nem uniforme e que ele está em constante movimento.

“Nu cubista”, Anita Malfatti (1919)
“Nu cubista”, Anita Malfatti (1919)

Periferia: território da marginalização

A mulher da periferia é marginalizada em relação à lei e à sociedade. Ela sofre um múltiplo processo de marginalização: social, político e econômico. Essa dupla condição de marginalização coloca essa mulher em situação de constante deslocamento, onde a ascensão da marginalidade passa pela diáspora de sentido, conforme alude Hall (2005). Nesse processo, as mulheres da periferia respondem a demandas locais pelo viés disjuntivo da alteridade a partir de fissuras e deslizamentos identitários próprios e de injunções diferenciadas. Tais injunções remetem as mulheres da periferia à condição de seres em reciclagem identitária, no sentido que Bauman (2005) propõe, já que não se encontram acomodadas ao que ele chamou de “destino de mulher”, diante da aparente possibilidade de deixar de ser o que é para se transformar em alguém que ainda não é.

Para Sandra Maria do Sacramento (2011), a identidade feminina suburbana, através da transgressão, coloca-se como negadora de qualquer pretensão ao uso de uma racionalidade que não reflita suas existências periféricas. Assim, as personagens femininas colocam-se como “sujeitos-satélite” que buscam a construção de uma identificação a partir de referências próprias. Com isso, ocorre a inserção de vozes, até então silenciadas, em um processo de construção de sua própria historicidade. A representação feminina, sob essa ótica, resgata o universo cultural e altera o acontecer ficcional alicerçado na ideologia vivenciada.

No romance Guerreira, Alessandro Buzo não apenas retrata a violência e as práticas relacionadas a espaços e sujeitos marginais, mas também questiona e critica a situação da marginalidade em que vivem tais periferias. A trama expressa uma oposição entre centro e periferia, delineando espaços socialmente distintos. De um lado, Ferrugem, há três anos morando só, depois que os pais foram pra Austrália; do outro, Rose e Tonho, dois viciados, usuários de crack, que não têm outro objetivo na vida que não seja o de fazer sexo e se drogarem. Mas ao estabelecer limites “difusos” entre o eu e o outro, a literatura dita periférica acaba por redefinir ou mesmo reafirmar essas construções identitárias, recuperando ou até potencializando preconceitos.

Rose é a personagem reveladora das representações suburbanas. Dentro da respectiva construção de sua alteridade, inclusive com limitações e imposições, essa personagem, ao se tornar consciente, revela um sujeito de reconfiguração identitária. Ao surgirem de uma ordem cultural (que não a eurocêntrica), os relatos de sujeitos periféricos fazem emergir vozes silenciadas em espaços da imaginação e da reflexão, impensável no discurso do branco colonizador.

Segundo Bourdieu (2016), a dominação masculina é uma expressão de poder que comporta uma dimensão simbólica na qual o polo dominado da relação (a mulher) submete-se a uma forma de adesão que não é fruto de uma decisão deliberada ou de consciências esclarecidas sobre a própria dominação, mas sim a submissão de corpos socializados. Portanto, se a identidade feminina é uma construção que se dá a partir do outro com quem se relaciona – seja companheiro, marido, filhos – não se deve falar em identidade, e sim em múltiplas identidades, resultado de diversos referenciais. Nesta perspectiva, a matriz homogênea da feminilidade – com um caráter biológico determinante, que pautou o modelo de razão imposto pela cultura ocidental, presa a preceitos que submetiam os corpos para o trabalho doméstico – é ressignificada no contexto suburbano das periferias, mas não deixa de ser referencial nas condutas adotadas.

Em suma, essa sociedade sexista reforçou a extrema submissão das mulheres tanto no centro quanto na periferia. Com Butler (2017) pode-se reafirmar que a categoria “mulheres”, esse sujeito do feminismo, é tanto produzida quanto reprimida pelas mesmas estruturas de poder por intermédio das quais se busca a emancipação.

No mesmo patamar, encontra-se a Bonitona, narradora-personagem do romance de Raquel de Oliveira, essa mulher que vem buscando sua emancipação através da literatura. No capítulo “A origem: a afilhada do bicheiro”, um dos mais impactantes do romance, é narrada sua infância até o final da adolescência, quando conta que, ainda menina, para pagar dívida de jogo, sua avó a vendeu para um bicheiro. Mesmo tendo sido vendida para “servir” ao bicheiro, por um golpe de sorte, ela acaba se salvando do destino de ser prostituta. E é o próprio bicheiro, a quem ela chama de padrinho, que, mais tarde, arranja-lhe o primeiro namorado. O texto mostra a condição da mulher da periferia, da menina pobre, objeto de domínio do sujeito masculino. Até a escolha do namorado teve de ser mediada pelo padrinho, para mostrar quem era o verdadeiro “dono” da garota.

Feminino & periferia: representações e idealidades

Sandra Maria Pereira do Sacramento, sobre o romance Guerreira, comenta que a personagem Rose cria suas próprias condições de sobrevivência e opta pelo embrutecimento da sensibilidade para sobreviver. Para Rose, a condição de ser mulher não é nada confortável, sempre à espera dos favores sexuais. Nesse sentido, Rose mostra-se subversiva: inicialmente tímida, que vai aos poucos se tornando autônoma, lutando contra a hegemonia do discurso masculino. Neste romance, está mais uma instrutiva demonstração da natureza cultural da masculinidade, ou seja, para analisar a identidade feminina deve-se partir do contraponto com o legado opressor masculino.

Tanto Rose como Bonitona precisam agir de modo a preservar suas próprias vidas. Partindo da perspectiva das questões de gênero historicamente estabelecidas, questiona-se como a mulher traficante de drogas, neste caso a Bonitona, se posiciona enquanto sujeito e quais as implicações da compreensão de sua própria identidade dentro do universo representacional em que vive.

Em A número um, na sujeição do feminino ao masculino, a mulher traficante passa a conceber a sua própria identidade a partir do outro com o qual se relaciona afetivamente, de modo que as práticas ilícitas do companheiro passam a fazer parte de seu cotidiano. Mesmo enfrentando recusas por ser mulher, ela acabou por se fazer respeitar enquanto chefe do tráfico.

Simone de Beauvoir afirma: “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher” (Beauvoir, 2016, p. 90). Levando em conta a época em que a autora escreveu, e desse ponto de vista, a identidade feminina é algo construído socialmente a partir de parâmetros culturais, inclusive relacionados com uma determinada ideia de sexualidade feminina reduzida ao papel da reprodução. Portanto, a mulher passa a existir a partir do outro, que é o homem, o que por si só já enseja uma ideia de complemento. No entanto, numa visão atualizada, Butler diz que:

Se há algo de certo na afirmação de Beauvoir de que ninguém nasce e sim se torna mulher, decorre de que mulher é um termo em processo, um devir, um construir de que não se pode dizer com acerto que tenha uma origem ou um fim. Como uma prática discursiva contínua, o termo está aberto a intervenções e a significações (Butler, 2017, p. 58-9).

Por outro lado, a ideia de “uma história compartilhada” (como aparece nas entrelinhas de A número um) faz com que a mulher tente construir uma identidade sua para preencher um vazio. E esse vazio tem diretamente a ver com a própria alteridade, pois, em certo sentido, o indivíduo fragmentado quer tornar-se inteiro. No caso da relação afetiva entre Raquel de Oliveira e o traficante Naldo (contada por Bonitona, a protagonista do romance), nota-se como a mulher não tem uma identidade própria, mas a constrói a partir do outro, ainda que buscando um espelhamento que apareça como igualdade:

Sempre o olhava com uma admiração profunda. Ele sentia isso e me amava ainda mais. Éramos iguais. Nossas histórias de vidas eram iguais. Só se diferenciavam pela geografia. Ele vindo do sertão da Paraíba ainda criança. Eu, cria da favela da Rocinha (Oliveira, 2015, p. 176).

No contexto das relações sociais com o homem traficante e a partir das representações sociais que formulam acerca do papel feminino na relação afetiva é que as mulheres do tráfico justificam suas práticas relacionadas ao crime, mais precisamente as do tráfico de drogas, ainda que o envolvimento seja esporádico ou relacionado a uma situação que envolve o próprio uso da droga. Pergunta-se, então, de que modo a mulher traficante de drogas se posiciona enquanto sujeito e quais as implicações da compreensão da sua própria identidade dentro do universo representacional em que vive.

Lúcia Osana Zolin (2006, p. 159), em sua análise das personagens femininas dos romances de Patricia Melo, afirma que a representação dessa faceta, ou seja, da adesão e prática da violência, “vai ao encontro de uma realidade feminina pouco explorada nos estudos de gênero”. Zolin, citando Badinter (2005), explica que “mesmo sendo mais numerosa entre os homens, a prática da violência consiste em uma espécie de inadaptação ou maldade patológica, a qual homens e mulheres estão sujeitos” (2006, p. 159).  Hoje, pode-se perceber uma volta ao passado, se levamos em conta o aumento do número de mulheres infratoras encarceradas.

Nesse sentido, a narradora-personagem de A número um reflete que, mesmo com toda a afetividade e amor que sentia por Naldo, a vida no tráfico de drogas estava se tornando cansativa. Em meio a tanta violência, diante de um cotidiano sempre igual, foi quando ela percebeu que estava se tornando numa pessoa má, uma mulher sem escrúpulos:

Àquela altura eu já não me sentia mais motivada. Estava cansada e a vida me castigava. Administrar três pontos de uma favela como a Rocinha não era tarefa fácil. E eu estava cada vez mais desumana. Agora eu é que era o terror. (…). Nada me restituía a alegria de viver e nada conseguia preencher aquela maldita falta, aquele buraco dentro de mim (Oliveira, 2015, p. 109).

Agora que Naldo havia morrido, ela estava sozinha. Ela era a dona da favela, agindo como líder do tráfico na Rocinha. Mas, ao contrário, na vida pessoal ela continuava convivendo com um vazio interior que não era possível preencher. Nem com a violência nem com a droga.

Caracterização e gênero das obras

A trama de A número um contém elementos autobiográficos e ficcionais. Na trama de Guerreira, de acordo com palavras do autor, podemos encontrar traços autobiográficos em toda a trajetória dos protagonistas, tanto da personagem feminina quantos das duas personagens masculinas evidenciadas no enredo. A seguir, levantamos a conceituação de alguns estudiosos que tratam do tema – autobiografia e autoficção – para podermos apontar as características mais evidentes nas obras examinadas.

Conforme Tiago M. Velasco (2015), o conceito de autoficção parece-nos muito útil para pensar escritas contemporâneas por problematizar categorias como o eu, o real e a verdade, e por tematizar a dificuldade de distinção entre realidade e ficção, já que tudo seria parte real do “eu” porque se encontra na mente do autor e se concretiza no ato da escrita. Por outro lado, na autobiografia, o autor tem um compromisso com seu leitor que é o de contar a verdade. Assim, se o autor está contando a verdade está fazendo autobiografia. Mas também, devemos lembrar que a verdade narrada é aquela que o autor quis contar, ou seja, é uma mistura de fatos e também de ficção.

Para Diana Klinger (2012, p. 57), autoficção é “uma narrativa híbrida, ambivalente, na qual a ficção de si tem como referente o autor, mas não como pessoa biográfica, e sim o autor como personagem construída discursivamente”. Ou seja, o autor constrói uma “personagem que se exibe ao vivo no momento mesmo da construção do discurso, ao mesmo tempo indagando sobre a subjetividade e posicionando-se de forma crítica perante os seus modos de representação”, diz a autora.

No entanto, pelo fato de os conceitos de autobiografia e de autoficção serem ambíguos e suscitarem diversas discussões no âmbito da teoria, encontra-se na tese de Anna Martins Faedrich (2014) uma definição que parece mais satisfatória. Ela explica que a autobiografia se dá no vetor vida => texto, enquanto que a autoficção contraria essa direção e vai no sentido inverso, ou seja, segue o vetor texto => vida.

Ela afirma que na autobiografia, “o narrador-protagonista é, geralmente, alguém famoso, ‘digno de uma autobiografia’”. Por isso o vetor da narrativa é vida => texto. Primeiro ocorre a ascensão na vida do narrador para depois ele contar essa vida a quem interessar. Porém, afirma Faedrich, “o movimento da autoficção é outro. Um bom escritor pode chamar a atenção para a sua biografia através do texto ficcional, entretanto, é o texto literário que se destaca em primeiro plano” (Faedrich, 2014, p. 23, grifo meu). Assim, confirma-se o vetor texto => vida.

Com isso em mente, podemos dizer que o romance A número um, de Raquel de Oliveira, pode ser classificado como autoficção.

“Vendedora de cheiro”, Antonieta Santos Feio (1947)
“Vendedora de cheiro”, Antonieta Santos Feio (1947)

Bonitona e Rose: onde está o feminino?

 Na narrativa de Oliveira (2015), podemos encontrar ações que evidenciam traços de caráter feminista, como valores femininos de luta pela emancipação da mulher, luta por direitos iguais aos dos homens, representatividade social e política em seu meio, e outros.

Resende e Deyques (2016) consideram que a obra de Raquel de Oliveira é um romance ambíguo no que diz respeito a poder considerá-lo um romance feminista, ou de temática feminista. Sim, a história é de uma mulher, a voz é de uma mulher, mas Bonitona, a narradora-personagem, por sua criação e pelos códigos que ela deveria seguir para sua própria sobrevivência naquele lugar, por inúmeras vezes, teve que se masculinizar e seguir os preceitos adotados pela “lei” dos homens daquele lugar. No entanto, conforme dizem as autoras, isto não desqualifica a obra em relação à voz feminina, apenas fortalece a questão de um discurso que mostra o quanto as mulheres são oprimidas em relação ao seu gênero, montando um poder consentido e reconhecido, que é tão somente um substituto do lugar masculino, do lugar vago daquele homem que ela, a Bonitona, passou a ocupar.

Sob a ótica transgressora, vemos o desnudamento das regras de obediência e submissão ao macho dominador: se à mulher, categorizada universalmente numa “estrutura reificada” do binário disjuntivo e assimétrico masculino-feminino, conforme observa Butler (2017), estava destinado o lar burguês, em que os afazeres domésticos e a total submissão ao chefe da família se constituíam uma espécie de perpetuação hereditária, nos romances dos dois autores encontram-se os requisitos desse comportamento opressor do gênero, mas repensado pelos desregramentos do ser e pela subversão da identidade, segundo um padrão cultural e geográfico próprios. No romance de Oliveira (2015), encontramos uma mulher que rompe barreiras de gênero ao se tornar uma chefe do tráfico na Rocinha (RJ), e Buzo nos apresenta uma mulher que explora seus atributos físicos e usa o seu desejo de sair da pobreza para mudar o status social em uma São Paulo capitalista e rica, mas de certo modo também decadente.

Ficção versus realidade: vozes femininas em percurso

Edward Said, em Orientalismo (2007), afirma que os estudos feministas, do mesmo modo que os étnicos ou anti-imperialistas, contribuem para promover um deslocamento de visão sobre a realidade, ao assumirem como ponto de partida de suas pesquisas o direito de grupos marginalizados, excluídos dos domínios públicos e sem possibilidade de enunciação no discurso oficial. Pela intromissão da voz feminina, a subversão da ordem, dita falocêntrica, coincide com o direcionamento que tomam os estudos pós-estruturalistas e com muitas das preocupações da psicanálise lacaniana.

Um movimento totalmente oposto ao da tradição dos estudos literários – principalmente os estudos da primeira metade do século XX – é o que marca a preocupação da crítica feminista, isto é, a reafirmação da autoridade da experiência e a conquista de um espaço de expressão para as vozes silenciadas. Para alguns, então, a crítica feminista pode ser vista como um “ato de resistência”, por confrontar-se diretamente com os cânones e julgamentos existentes. Nesse sentido, Zolin esclarece, também, que:

Ao trazer a marca da especificidade feminina, tendencialmente libertária e emancipadora, o aporte teórico feminista, num certo sentido, opõe-se às concepções teórico-metodológicas da ciência contemporânea pautadas no ideal de conhecimento objetivo, neutro, visando atingir uma pressuposta verdade universal; ao invés disso, incorpora a dimensão subjetiva, emotiva e intuitiva no processo de conhecimento. Consequentemente, abandona a pretensão de ser a única possibilidade de interpretação do mundo, além de descartar a linha evolutiva inerente aos processos históricos, ao enfatizar a historicidade dos conceitos (Zolin, 2012, p. 100).

Judith Butler (2017, p. 18) afirma que

para a teoria feminista, o desenvolvimento de uma linguagem capaz de representá-las completa ou adequadamente pareceu necessário, a fim de promover a visibilidade política das mulheres. Isso parecia obviamente importante, considerando a condição cultural difusa na qual a vida das mulheres era mal representada ou simplesmente não representada (Butler, 2017, p. 18).

Por fim, a lucidez das palavras de Teresa de Lauretis resume a consciência sobre a importância e a tarefa dos estudos feministas:

Apesar das divergências, das diferenças políticas e pessoais, e da angústia que acompanha os debates feministas dentro e além das linhas raciais, étnicas e sexuais, devemos ser encorajadas pela esperança de que o feminismo continue a desenvolver uma teoria radical e uma prática de transformação sociocultural (1994, p. 216).

Como bem salienta Heloisa Buarque de Hollanda (2003, p. 15-16), o pensamento crítico feminista “revela certa especificidade em relação ao quadro teórico no qual se insere”, no qual coexiste com o novo historicismo, a história das mentalidades e os estudos pós-coloniais. “Passado o momento inicial da crítica do desgravo, da denúncia da lógica patriarcal nas relações de gênero”, as teorias críticas feministas começam a mover-se “em direção a uma perspectiva mais sutil e talvez mais radical”.

Patrocínio (2010, p. 28) considera a literatura feminina – ou feminista – como exemplo de estruturação discursiva que busca a valorização do sujeito da enunciação. Na realidade, o sujeito feminino ao longo da história foi considerado subalterno, sendo o objeto do discurso, jamais o sujeito. Ao apropriar-se da palavra, a mulher procurou transformar as representações que traduziam o ponto de vista masculino, constituindo-se em sujeito e elaborando representações próprias, de acordo com sua história e suas especificidades.

O autor afirma ainda que

a literatura feminina busca a formação de um espaço próprio […], em que a mulher seja o sujeito do discurso e possa, a partir de um ponto de vista e de um sujeito de representação próprios […], ir construindo sua própria representação” e que, “dessa maneira […], possa constituir-se enquanto sujeito discursivo, livrando-se da silenciosa posição de objeto (Patrocínio, 2010, p. 29).

Sandra Maria do Sacramento (2011, p.158) comenta que, quando investida na posição de líder, Bonitona adota uma postura que em nada deixa a desejar face ao mundo masculino de liderar no universo do narcotráfico. Bonitona era a dona do morro. A série de ações que vai marcando sua trajetória de líder do tráfico de drogas na Rocinha é marcada pelas variadas formas de violência: “Eu cuidava de tudo pessoalmente e era completamente inflexível com os vacilões e os ladrões que tentavam se aproveitar do desequilíbrio da favela. Conquistei de volta este equilíbrio com sangue” (Oliveira, 2015, p. 208-9).

Portanto, com o romance de Raquel de Oliveira, a figura da personagem mulher-criminosa-masculinizada fica evidenciada. Uma vez que a mulher, diante de seu alardeado “temperamento dócil”, não oferece perigo, aquela que escapa desse estereótipo é equiparada ao homem, principalmente em crimes violentos. Pode-se afirmar que começa a se delinear nessa literatura um “sujeito” feminino violento. Nesse sentido, Butler completa a crítica: “Assim, a unidade do sujeito já é potencialmente contestada pela distinção que abre espaço ao gênero como interpretação múltipla do sexo” (Butler, 2017, p. 24).

Lúcia Osana Zolin (2006, p. 17) comenta que no cenário no qual vem se constituindo a literatura de autoria feminina brasileira, já se desenham representações de mulheres que caminham na contramão da estética da vitimização de que fala Badinter (2005). Veja-se a ficção de Patrícia Melo. Em Inferno (2000), por exemplo, ao trazer à baila personagens femininas tão ousadas como Suzana e Marta, capazes de se igualarem aos chefões do narcotráfico das favelas cariocas, a escritora demonstra não estar preocupada em denunciar a tão propalada opressão feminina. Parece interessante, então, traçar um breve paralelo entre as personagens, ou seja, Bonitona, de Oliveira (2015) com a personagem Marta, de Melo (2000). Como Bonitona, Marta também, sem qualquer preocupação com barreiras de gênero, entra na liderança do tráfico de drogas da favela, inaugurando assim um novo estatuto da personagem feminina na literatura brasileira escrita por mulheres.

No entanto, comparando as trajetórias das personagens Bonitona e Rose, e o modo como ambas deixam para trás o mundo do crime e das drogas, pode-se perceber uma diferença entre ficção e realidade. A narradora-personagem Bonitona, que na vida real é a própria Raquel de Oliveira, segundo seus relatos de memórias, teve que passar por diversas casas de recuperação para viciados, largou as drogas e saiu do mundo do crime, passando o poder para outro traficante. Já a Rose, de acordo com a narrativa do romance, largou de vez a droga, “tendo só uma certeza: nunca mais iria se deixar ter uma recaída”, situação que, por comparação, nos parece pouco verossímil.

Nessa trajetória, ficção e realidade andam paralelas, mas deixam em evidência que a realidade é um pouco mais cruel e complicada do que a ficção. Esse “largar as drogas” não é uma experiência tão simples. E Raquel de Oliveira repete a frase que também foi dita por Esmeralda Ortiz (2000), falando sobre as dificuldades da vida depois do período do vício: “a gente tem que matar um leão a cada dia”.

Ambos os romances comentados não deixam de ser histórias de amor, mesmo que sua narrativa esteja centrada em uma atmosfera na qual convivem pedófilos, bicheiros, bandidos, traficantes, todos os tipos de droga, e a pobreza endêmica das favelas e das periferias. Trata-se, no entanto, de relatos que mostram erros e acertos de mulheres que tinham um (mau) caminho traçado, mas que, no final, ao descontinuarem no mundo do crime e ao tentarem uma nova vida, ainda tiveram forças para modificar esses caminhos, travando suas lutas contra a dependência química.

Bonitona e Rose são representações femininas, cujas identidades estão marcadas não apenas pelo eixo do gênero a que pertencem, como também por classe, nível de escolaridade, ambiente social, cultural e outros. As personagens transitam pelo universo masculino, deixando suas marcas, ora como líderes do tráfico ora como seres independentes, que questionam a ideologia patriarcal, sendo capazes de desempenhar os mesmos papéis, de edificar as mesmas obras e, também, de sofrerem as mesmas penalidades por seus crimes, que podem ser crimes tão graves quanto os cometidos pelos homens.

Assim, tanto a literatura produzida por autores da periferia quanto aquela escrita por mulheres, ambas constituem espaços nos quais é construída uma representação simbólica, cujo potencial subversivo pode possibilitar a fratura do silêncio dessas minorias e o seu reconhecimento pelas e nas instâncias de poder.


* Rachel Fátima dos Santos Nunes é professora do curso de Letras da Universidade Estácio de Sá. Atualmente está fazendo o pós-doutorado pelo PACC na UFRJ, com a linha de pesquisa “Estudo da personagem feminina na literatura das escritoras da periferia”, tendo como orientadora a professora doutora Heloísa Buarque de Holanda.

 

Referências

BADINTER, Elisabeth. Rumo equivocado. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

BAUMAN, Zigmunt. Identidade. Entrevista a Benedetto Vecchi. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Tradução de Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.

BOURDIEUR, Pierre. A dominação masculina: a condição feminina e a violência simbólica. Tradução de Maria Helena Kuhner. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.

BUTLER, Judith. Problemas do gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar. Revisão técnica de Joel Birman. 13.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.

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Recebido em: 28 de agosto de 2017
Aprovado em: 29 de outubro de 2017