dossiê
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POEMAS DA INTIMIDADE DURANTE A PANDEMIA

Apropriando-se de uma agência de escrita que perpassa a intimidade e o confinamento, cada um dos poemas aqui apresentados versa sobre a contemporânea pandemia de 2020, redimensionando-a pela via inventiva de uma linguagem poética capaz de reconfigurar a temática proposta com as cores particulares de cada cartografia pessoal dos versos abrangidos.

 

A VIDA SEM OS CAFAJESTES DO LEBLON E DO PLANALTO
Mauro Santa Cecília

depois de cinco meses
pressão alta
subir e descer escada
problemas psicológicos
peixe de restaurante a quilo
feijão de aprendiz
horários improváveis
limpeza da casa no automático
o ser humano não foi feito
para não interagir
nem para enxugar gelo

****

O ANDARILHO

Navios navegando entre as estrelas
acontecimentos cósmicos
Você me disse que estava sonhando muito
a união com a mãe
a totalidade universal
Nos olhos do sol ou da lua
sobre a Terra ou no fundo do mar
a arqueologia do amor
pois o pior pecado
é não arriscar nada
como uma cirurgia
com um canivete suíço
no futuro imperfeito


* Mauro Santa Cecília é poeta e compositor.

 

 

A LUA VOLTOU
Avelino Romero

Para Aldir Blanc (in memoriam)

A lua voltou.
Só, envolta por um sopro de frio,
espia serena a noite espessa
desentranhada na solidão dos dejetos.

Motores raros quebram a sisudez do escuro.

Alguém se move, solitário.
Como ele, o brilho da lâmpada
sobre a água da chuva
que se deixou empoçar num canto qualquer.

No alto, nuvens brancas passeiam
vagarosas sob o claro da lua.
Um homem, barba branca, peito vermelho,
resume o contraste da espreita.

Rio de Janeiro, 03-04 de maio de 2020.


* Avelino Romero é pianista e historiador. Professor de História da Música da UNIRIO há 21 anos. Autor de Música, Sociedade e Política: Alberto Nepomuceno e a República Musical do Rio de Janeiro (2007) e de dois livros de poesia: Flor de Damasco (2014) e Eclipse (2019).

 

 

AQUI
Carolina Torres

sentada de olhos fechados
sinto a conturbação
a inquietação da mente expande e retrai,
cessa a cada respiro
o silêncio do cômodo passa por osmose
para a superfície de dentro

inspirando devagar e profundamente,
um ar fresco me renova,
ao longe sons incessantes
burburinhos de conversas, assobios de vento
gritos de vendedores
e quebrar de ondas

ao exalar, me levanto
e caminhando sinto a areia quente de meio-dia,
o primeiro contato com o gelado das águas
faz querer voltar, mas o vento empurra,
as ondas puxam
o corpo vai

cada imersão
abranda o sol,
a solidão, o medo,
o caos interior e exterior,
emergindo uma paz intensa
capaz de envolver todo o corpo,
o quarto, os vizinhos e o mundo num abraço
salgado e fresco

é muito breve
abro os olhos e me percebo enxuta
faz tempo que meus mergulhos
são apenas os solitários e quentes do banheiro

apesar de seco e estático
submergir no azul de meu tapete de yoga
tem causado calmaria, ainda que efêmera,
às agitadas marés da alma

a casa parece o mar


* Carolina Torres é graduanda em jornalismo na UFRJ e apaixonada por escrita criativa, artes e ciências humanas.

 

DISTOPIA
Daniel Mendes

Permanecemos
barros

mas agora com máscaras estilosas
protegendo nossos lábios mediados
com medo de sermos cancelados
nesta pandemia de falas raivosas.

Seguimos
burros

mas agora com telefones inteligentes
que nos fazem esquecer as mortalidades
dos vírus em nossas mentes
mas não da foto que não teve likes.

Continuamos
bárbaros

mas agora com perfis no Insta
gravando as lives que nos finda
lutando pela subida das visualizações
antes de descerem conosco nos caixões.


* Daniel Mendes é baiano, 35 anos, natural de Simões Filho. É jornalista e mestre em Cultura e Sociedade pela UFBA. Escreve desde os 19 anos. Em 2017 integrou com dois poemas a coletânea Liberdade: antologia poética (Cogito Editora) que reuniu textos de 100 poetas baianos contemporâneos.

 

 

20 ANOS ou APOCALIPSE
Thaiani R. Wagner

naquela noite eu lia poesia de uma
portuguesa
tão carioca quanto
sua tia-avó
enquanto você – silencioso, bocejador
e preocupado provavelmente
com o mesmo tipo de coisa que eu
batalhava sete ramos de alguma planta rara
para fazer poção.
nunca entendi muito bem
depois de adulta
o desligamento leve
dos videogames
eu só funcionei pulando em cogumelos
aos oito anos
na casa da vizinha rica.

minhas mãos são desajeitadas
quando se trata de coordenar muitos sentidos
nasci e fiquei bicho.
meu cérebro se exercita
como um adolescente no colegial:
há veias
suor
passadas em falso
um grito vigoroso
(que não é o meu)
e pra cada golpe na bola dura e pesada
uma vaia vem pronta
o adorno da sutileza não é para adolescentes
ou mãos sem cérebro.

umas semanas atrás
você me viu
separando 4gr de fermento
para assar o pão
e ficou desconcertado.
eu vi um leve calor cobrir o seu rosto já carregado
antes
pela dificuldade de terminar as frases ao chegar da rua
– sacolas meio cheias, máscara no rosto, vestimenta especial –
eram tempos estranhos.
em cada esquina
tinha um velho
sibilando palavras contidas
sobre o período de ouro.

eu quis te contar que
na sabatina das mãos
a preferência sempre foi pela varinha mais firme:
dizem que a terapia da água na farinha é milenar
– eu também digo.
se você aperta botões e deixa de pensar
por um átimo que seja
na propagação do vírus pelo ar
e
na avalanche da terra vermelha sobre o torso frio
eu meço pelo clac das articulações contra
a massa
(essa: quente)
cada suspiro longo
que vou poder desacanhar
no arremate
disso tudo
– brasil. mundo. muro. ou mato.


* Thaiani Wagner (Guarani das Missões, 1990) é pesquisadora, mestra e doutoranda em Filosofia pela UFRGS. Trabalha com filosofia antiga e ética e, paralelamente, com feminismo e as relações entre literatura e filosofia. Desde o ano passado vem organizando seu primeiro livro de poesia.

 

 

DOMINGO
Fernanda Marçolla

Pela janela entrava o barulho das carroças truculentas
rangendo sobre os velhos sulcos da América Latina
enquanto, em casa, inventávamos uma língua só nossa
Sob os uivos dos lobos ciosos, serenamente nós
cotejávamos os sinônimos, atentávamos aos acordos
e preferíamos os neologismos aos erros de tradução

Lá fora, pressentíamos, reprisavam aquela mesma película embolorada
aquele mesmo quadro remendado de estética vulgar
e nós aqui dentro, cultivando os punhados de terra
que caíam dos nossos pés recém-nascidos do jardim
juntando-os em vasos, replantando as mudas
para que se pusessem a falar nesses novos fonemas

O cheiro de pólvora se alastrou ainda por toda a madrugada,
mas a nós, só restava contar a história desse novo continente
que se formou entre as nossas coxas entrelaçadas.


* Fernanda Marçolla é professora e tradutora de francês. Em 2019, lançou a sua primeira tradução, Fominismo, de Nora Bouazzouni, pela Quintal Edições. Em um certo ponto do caminho, enveredou pelas tramas das palavras através de contos, crônicas, poesias e roteiros.

 

 

ÀS SEIS DA MANHÃ
Lorena Martins

Às seis da manhã eu tenho medo
é sempre neste horário
dos meus olhos entreabrirem
o sonho e a manhã que invade
o sono
que sinto um medo essencial
medo do vírus
medo de que meus filhos caiam
de uma escada
escapem da calçada
medo do mundo
terrível, uma cratera a engolir tudo
as florestas, os índios, as mães
quando o dia assenta
o medo se esvai
para que eu faça o café
para que eu tome o café
para que eu lamba a pele das minhas crias
leia poesia, compre ovos
olhe com alguma firmeza
as árvores que sobrevivem através da janela
o medo me liberta
para que eu veja a noite
afunde a noite entre os meus dedos, alimente
as camas de estrelas
durma meu sono preocupado
pesado
para que ele volte pontual
afiado como as trevas
para o meu corpo ainda quente e a madrugada
que me abandona


* Lorena Martins nasceu em Dom Pedrito-RS (1982) e cresceu em Porto Alegre, onde se graduou em Letras pela UFRGS. É autora dos livros de poemas Água para viagem (2011), finalista do Prêmio Açorianos de Literatura, e Corpo continente (2019), ambos editados pela 7Letras. É pós-graduada em Gestão e Políticas Culturais pela Universidade de Girona/Unesco. Atualmente vive na Estônia.

DE RISCO
Neire Lopes

Somos, fomos, seremos
Grupo de risco…
Nem sempre grupo
Isoladamente um grupo
Muitas e muitas vezes só.
Sol
A
Mente…
Solamente um grupo de  risco no risco.
Só.
Tantos riscos
Risco de viver
Risco de resistir
Risco de insistir
Risco de existir
Somos um risco.
No tempo…
Tempo de risco
Risco no tempo.

Ah, o tempo…

O tempo para ouvir,  tempo para falar, para olhar
O tempo…
A escuta
A fala.
O olhar
Tempo suspenso,
Olhar transbordante,
Falas abafadas,
Escutas silenciosas,
Silêncio ruidoso.


* Neire Lopes tem 53 anos e é residente em Vila dos Cabanos-Pará. Licenciada em Teatro pela UFPA, técnica em artes dramáticas pela Escola de tecnologia Estadual e professora no colégio Anísio Teixeira- PA.