Arte(s) Multifária(s): proposta temática de uma curadoria | de Rosza W. Vel Zoladz

A afirmação contundente de Ernest Fischer “A arte é necessária” poderia parecer datada e hoje não teria, diriam alguns, o mesmo vigor que teve quando o seu autor publicou o livro A Necessidade da Arte. A expressão, que é datada de 1973, mostra-se, no entanto, atualíssima, tendo em vista as formas afirmativas que a arte suscita entre nós, por meio de projetos econômicos, sociais, culturais, profissionalização desafiadora, enfim, por todas as formas com que ela, a arte, hoje se apresenta. É preciso acrescentar à afirmação uma outra resposta mais atualizada, bem menos enigmática que a que foi dada por Fischer ao que se indagava. Ou seja, “ao menos se soubesse para que?”

Curiosamente é um poeta como Ferreira Gullar que, numa linguagem simples, nos diz que a arte continua indispensável. Mas faz uma advertência: “porque a vida não basta”. Eu acrescentaria que é assim, diante de tudo, que a arte se impõe e se coloca ante toda a complexidade que a vida comporta. De fato, ao dizer que a arte funda realidades, Marcel Mauss, em sua genialidade, quer nos ajudar a entender que não é mais possível considerar a arte no singular, mas sim, no plural nas suas manifestações multifárias que se dão juntas, separadas, isoladas, misturadas ou cada uma em todas as expressões. Elas buscam dizer o que o homem que as cria, pensa, sente e elabora. Daí a afirmativa de Pierre Francastel de que arte engloba formas de conhecimento, portanto formas criativas do mundo em que os homens vivem e, nelas se inventam. Dá consequentemente para alcançar o que Beuyus diz que todos os homens são criativos – artistas – porque para todos eles os desafios da existência provocam o desejo incontido de entender o que vivem, experimentam, amam e sofrem, no dizer de Jean Duvignaud. O poeta tem então razão de dizer que a arte é mais que a própria vida. É o que os colaboradores do atual número da Revista Z Cultural nos apontam, cada um a seu modo, no seu jeito. Eles nos mostram em que o lixo extraordinário de Vik Muniz e seus catadores de Gramacho (RJ) querem fazer valer o seu status de arte, no sangue das veias que tingem tecnologias avassaladoras de arte digital, impregnando suas artes multifárias.

É o que a coordenadora do PACC (Programa Avançado de Cultura Contemporânea) do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ, Profa. Dra. Heloisa Buarque de Hollanda, tem como anelo ao me confiar a honrosa curadoria. A Revista Z Cultural é a revista virtual desse Programa.

 

Algumas observações edificantes e curiosas para aqueles que querem pensar o mundo tal qual ele é | de Michel Maffesoli – Tradução de Rosza W. Vel Zoladz

Vem-me ao espírito esta constante que se pode observar em numerosos domínios e ela nasce após uma longa maturação, uma lenta sedimentação. É preciso, então, que ela tenha sido contida em si para que se possa trazer a luz. Quero dizer com isso que uma obra digna desse nome é um advento de qualquer coisa que a transcende. E transcende, a fortiori, por meio do qual ela se exprime. Digo bem “através de” no que é o que se diz e se vive à boca pequena, na banalidade de um quotidiano do qual não se acabou de explorar os mistérios. Em outras palavras, trata-se de deixar imergir o que é. Que venha ai o que é. Eis qual é a ambição, a pretensão de um enfoque compreensivo: não reduzir a coisa a um sistema pré-estabelecido (lembremo-nos do famoso leito de Procusto), mas a deixar ser. Contentar-se, o mais belamente possível, com lhe apresentar os contornos e os entornos. Assim, para além ou por causa da representação, a “presentação”.

Heidegger, contemplando uma rosa, sugere que existe um pensamento que de nenhum modo objetiva nem traz a representação. Eco, bem entendido o do “peregrino querubínico”, Angelus Silesius: “A rosa não tem porque”. Extrapolando a proposta, se pode dizer que um tal “ohne warum” esse sem porque do essencial, é da vida em sua totalidade. O que não impede que o “como” das coisas, a “presentação” não necessita a elaboração não menos rigorosa que o “porquê”. Eterno problema, bem formulado por Archimede. Encontrar a alavanca epistemológica e metodológica, possibilitando levantar as sempre eternas questões com que todos são confrontados. Daí a exigência de um pensamento meditativo, pensamento ruminante, somente capaz de localizar as veias profundas que percorrem toda socialidade. E, de encontro do que nos queriam fazer acreditar as doutrinas de todos matizes, é preciso saber fazer uma real resistência do pensamento para “presentar” adequadamente os problemas sociais. Em uma fórmula incisiva e que não pode ser mais pertinente, Adorno faz uso de uma tal “exigência de rigor destituída de sistema”. Exatidão nesses passos não tolerando nenhum afrouxamento, lassidão intelectual sem, por isso, ceder aos charmes enganosos dos dogmas salvadores.

Ora, essa tal hidra com cem cabeças ressurge constantemente ao longo da história das ideias. Dogmatismo que sem golpes mortais, engendram as diversas inquisições, cuja história é costumeira desses procedimentos. Tanto isso é verdadeiro que a petrificação do que foi, num tempo, inovador, engendra mecanismo de defesa, agressividades que não conduzem mais, em nossos dias, aos que trabalham arduamente, mas são empregados para desconsiderar, para deslegitimar aqueles que não querem caminhar na cadência do passo ou se recusando ao que Durkheim nomeava, justamente, o “conformismo lógico”.

E é preciso bem assinalar que se sente o gosto amargo quando se recusa a fazer livros laudatórios, quando se subtrai ao engajamento, quando se evita a “lógica do dever ser” (Max Weber). Mas se pode igualmente dizer que, quando há um acordo geral sobre uma obra, um homem, uma ideia, isso é coisa suspeita. Isso porque, em geral, os homens não entram em acordo a não ser sobre coisas um pouco bobas. Em poucas palavras, para lhes dizer de uma maneira um pouco familiar, sobre “o que não come do pão”.

Assim, em oposição às ideias deterioradas, que continuam a atiçar os espíritos, ideias presentes no bom-pensamento moderno, pois eu dei duas chaves para bem entender o que conduziu o meu encaminhamento intelectual.

Dois pressupostos que pouco a pouco se impuseram ao meu espírito. Assim que eu os indiquei, por ruminação, por sedimentação. Pressupostos “ditados” de alguma forma pela “força das coisas” por aquilo que se dá a ver. Em princípio, a coisa é, em particular, evidente na análise do tribalismo pós-moderno eu continuo a insistir sobre um conceito místico do social. Eis o que parece curioso! E, portanto, a partir das raízes cartesianas, com a filosofia das luzes, no XVIIIº Século, vê-se efetuar o escorregamento da mística em direção à política. “Racionalização generalizada de existência, desencantamento do mundo” dirá Max Weber, características essenciais da modernidade. Ora, são numerosos os índices (índex) pontuando a mutação profunda que está em curso. Ponto de inversão, deslocamento de eixos, saturação (Sorokin)? Pouco importam os termos utilizados. É suficiente que se reconheça que o sentimento de pertencimento tende a prevalecer, que a autonomia individualista, eixo essencial do contrato social, deixa lugar à pessoa plural florescendo no pacto social. É esta primeira obsessão teórica, que tal como um fio vermelho, percorre tudo o que escrevi após os anos setenta. É a isso que denomino de “mística”: um laço social concebido a partir dos mitos que partilham entre si, alguns iniciados. Retomando a expressão “ordo amoris” do sociólogo Max Scheler, eu espero, no futuro, levar mais adiante a análise de uma tal erótica societal.

Outro pressuposto “ditado” pelos fatos, eu o concebo um pouco irritado, é o acento colocado sobre o “dado”. Isso está aí, irrefutável, irrecusável, que não se pode reprimir ante toda a ação humana. E isso não faz mudar o caminho do cacarejo de nossa pretensão de dominar, em uma palavra, a construir. O dado contra o construído!

Lembro-me do meu amigo inesquecível Pierre Sansot que no começo da carreira universitária, em Grenoble, achava minhas análises sociológicas bem “quietistas”. Isso era bem visto. Já nos meus anos de aprendizagem, eu preferia Fénélon a Bossuet, o cisne de Cambrai à águia de Meaux. A doçura da noção à brutalidade do conceito. E se pode dizer que um tal “quietismo” que vem à ordem do dia nas práticas quotidianas atuais. Menos agir sobre o mundo social ou natural que se ajustar a ele. Uma forma de não aniquilamento da natureza dionisíaca do mundo, a fusão da “orgia”, isto é, o partilhar as paixões (“orgé”), uma espécie de sujeição ao mimetismo tribal. Todas as coisas particularmente evidentes por aqueles que aceitam tudo simplesmente, ver e compreender as diversas manifestações de multidões contemporâneas, esportivas, musicais, religiosas, consumistas.

Quietismo “redução a nada”, kénose: o nada dá vida, o recolhimento de onde ela surge. Ali, ainda, a inversão de polaridade, podendo nos desgastar, mas estando ali indubitavelmente; a importância da sombra sucede prevalência das luzes. Convém orientar-se às descobertas que se pode fazer a partir dessa sombra. Dionysios estendendo sua sombra sobre as megalópoles pós-modernas, “parte do diabo” da qual se pode estender as manifestações múltiplas e contrastivas, retorno do sentimental trágico da existência, eis quais são os principais componentes do “dado societal”. Em poucas palavras, para além ou para aquém das simpáticas e integradoras teorias da emancipação advindas das Luzes, o reconhecimento de um mundo como lugar de exílio, e de plenitude, lugar de horrores e de maravilhas. O claro escuro da existência. Posso lembrar aquilo que é uma figura, traduzindo bem a retórica social pós-moderna, este é o Oscymore como expressão da harmonia conflitual de todas as coisas.

Eis o “quomodo”, esse como em ação nos diversos livros pontuando minha trajetória. Estas são as pedras angulares de uma obra em curso, tendo por ambição de dar conta, ao menos da arquitetônica social. Pedras de ângulos podendo se tornar pedras de obstáculos imprevistos para alguns, que, eu já indiquei, criam o escândalo desde que, stricto sensu, se põem em questão o que deve ser. Esqueci que eles são o que é a questão, justamente, porque é a essencial garantia de procedimento científico.

Certo, aí pode, deve acontecer a polêmica teórica. Num tempo onde a universitas se constituía enquanto tal, se denominava a “disputatio”. E o suculento da atividade intelectual era tudo de uma vez, uma boa maneira de rivalizar os talentos e um bom meio de fazer avançar o conhecimento comum. No melhor dos casos, a verdadeira “disputatio” pode evitar a guerra ideológica onde os clérigos raivosos gastam toda a sua energia numa detestação sem horizonte. Eu me contento, aqui, em retomar o velho adágio dos humanistas, “sine ira et ódio”, sem cólera nem ódio, de dizer o mais serenamente possível quais são os elementos essenciais da vida quotidiana pós-modernas. Não a partir de um a priori teórico, leia-se dogmático, satisfaça ou não, está ali. O dado sendo desde já, o fundamento do construído. É bem assim que da minha parte eu compreendo, em boa parte, o “positivismo” de Augusto Comte: “induzir para deduzir a fim de construir”.

Daí a necessidade de se dedicar, portanto, a um trabalho artesanal do pensamento. Fazer algo como feito à mão. Trabalho solitário se ele o é, e ao mesmo tempo, nada menos que isolado. O solitário estando religado à alteridade. Não é desse ponto também que o monge na Idade Média concebia sua situação: monos, só, mas em ligação com seu deus e com a comunidade. O dogma da comunhão dos santos faz sentido. A multiplicidade e a diversidade das pesquisas encontrando sua fonte a partir das temáticas do imaginário e do quotidiano testemunham, igualmente um tal processo de religação.

Darei duas chaves abrindo as portas para o que está em jogo nos meus diversos trabalhos. E isto, tendo no espírito que a história é feita de desnudamentos, de palimpsestos. Por vezes é preciso saber arranhar o palimpsesto para reencontrar o texto original e isso permite reencontrar o que é original. Reencontrar, encontrar, enquanto termos que chamam a atenção ao fato que a verdade não seria abstrata, desligada do “dado”, simples adequação a uma representação do mundo, mas que ela é sempre e novamente desvelamento: isto torna presente o que está aí. Daí a importância da sombra da qual já falei; não simples acréscimo, mas a sombra como elemento central da verdade das coisas.

Portanto: arranhar o palimpsesto a fim de fazer aparecer esses dois sinais distintivos essenciais, que são o prazer ou o desejo de ser e a profundidade da superfície.

Assim, indiferente à raiva, mais das vezes na origem das pesquisas sobre o social, trata-se de elaborar uma sociologia, sabendo estar atento à cor do mundo, a seus aromas e a seus diversos humores. Dionysios é bem entendido, a figura emblemática de uma tal sensibilidade teórica. Divindade arbustiva, diz-se, símbolo de uma ligação com esse mundo e com seus prazeres. Anamnese do animal humano, ou do “zoon politicon”. Há aí a animalidade e é melhor integrá-la, se não se quer que ela se inverta em bestialidade. Enquanto figura emblemática, Dionysios é o índice da inteiridade do ser individual e coletivo.

Um tal dionisíaco está presente, empiricamente, na vida corrente. Os índices semânticos provam isso, tais como as pequenas pedras do Petit Poucet, vão pontuar conversações quotidianas e práticas de todos os dias. Assim as palavras festiva, lúdica, onírica, criativa enquanto termos pouco burilados, significam bem que o ar do tempo é um hedonismo partilhado. Isso é, se esquece muito seguidamente de burilá-los e isso é peculiar aos grandes momentos culturais, às épocas fundantes. Assim, um bom conhecedor que era do grande século francês, Nietzche dizia “que havia nele um ruço”.

E uma tal selvageria escapando, tanto o bem como o mal, às regras, leis e outras codificações, é próprio mesmo do vitalismo cultural. Mas, face a esse último, e como para se proteger, são também épocas nas quais há a proliferação das leis, por assim dizer, protetoras. São momentos enfim, durante os quais, como para legitimar esta comichão legislativa, as elites intelectuais se empenham à predica moral, fundando ali seu pontificado artístico ou teórico. Em uma palavra, sua razão de ser.

Daí se justifica a multiplicação de livros e programas, tipo de “talk show”, repousando essencialmente sobre a edificação. Lendas douradas da modernidade, se empregando a consolar, a tranquilizar o bom povo, cujo ideal seria segurança, o famoso risco zero. Daí eclodem esses dilúvios de baboseiras bem-pensantes, ameaçando fazer tudo submergir. Daí se coloca como questão midiática, certos créditos célebres, expectorando banalidades moralizantes e moralizadoras, do alto de suas diversas bancas. Leiam o irônico livro de Vilfredo Pareto: “Le Mythe Vertuiste”, para compreender qual ar empestado é esse, dessas oficinas onde se praticam tais “ideais”, de onde é fácil avistar a mentira que repugne! Para lhe dizer em termos mais sofisticados, tudo isso se aparenta a esses textos “protépticos”, textos conversores, empregados no inicio do cristianismo, para edificar e converter.

Não há nada de novo sob o sol. E não se repetirá demais que, quando uma concepção do mundo se acaba, na matéria a ideologia moderna comumente lhe acrescenta. A isso é o que se denomina um combate de guarda da retaguarda: por mais que seja ofensiva, se pressente, inconscientemente, que a guerra está perdida. Daí esse moralismo ambiental. Uma palavra para qualificar tal atitude: bovarysmo. Quer dizer, crer em outra coisa do que ela é. Bovarysmo sendo, de uma maneira recorrente, o fato de uma elite distanciada da realidade social. Outra coisa, se compreendeu, é o espírito que anima meus livros. Contra os dogmas um pouco pesando os notórios do saber, eles agregam a ironia de antiga memória. E isso que é o mais próximo de sua etimologia: “eironia”, interrogação.

Se interrogar, com efeito, sobre esse retorno do “puer aeternus” esta criança eterna no qual Dionysios é a figura emblemática e que toca o coração alegre nas diversas tribos dos quais ele participa. Criança eterna, presente nas peregrinações religiosas, nos múltiplos encontros musicais, nas corridas mundanas e outras baladas. Quanto a todas essas festas, pontuando a vida de nossas sociedades, como se pode as interpretar a partir da “retidão” peculiar aos doadores de lições? Não seria melhor se lembrar das advertências do sábio Platão: philopaismoves gar kai oi theoi, os deuses também gostam dos divertimentos das crianças (Cratyles, 40,6).

Ora, há aí do divino na atmosfera pós-moderna. Reencantamento, eu disse no que a eternidade não é mais esperada nos hipotéticos mundos, religiosos ou políticos, a vir, mas se vive no instante: o instante eterno, tudo do trágico petrificado, mas de eternidade igualmente, pois o que conta é viver, aqui e agora, uma alegoria que não se transfere para amanhã. Eis o que induz a temática dionisíaca de uma maneira teimosa, se capilarizando, no conjunto do corpo social. Uma curiosa observação que Heidegger consagra a meu pequeno deus querido resume bem uma tal sensibilidade teórica: “É este Dionysios o deus do vinho que, no meio da noite, deixa para os mortais saqueados pelos deuses, um tal vestígio. Porque o deus de cepa salvaguardora, em si e no que dele frutifica, o originário pertencimento recíproco do céu e da terra, enquanto lugar ferial, de união dos deuses e dos homens.”

O co-pertencimento do céu e da terra, da vegetação e do homem, não é o que celebram as festas pagãs cuja atualidade não é avarenta. É, no entanto, instrutivo repetir que mesmo as tribos de musica tecno ou gótica sem conhecimento especifico do gesto dionisíaco, vão, frequentemente, e com ostentação, se abrigar por detrás do nome epônimo de Dionysios. Epônimo? Eles não sabem nem mesmo o que isso significa. Pouco importa porque ao adotá-lo, eles pressentem bem que esse deus “carrega” o nome da coisa que eles vivem: a exuberância, a abundância da alegria do aqui e o agora. Sim, há nos cultos extáticos das multidões musicais, essa celebração sem freios de uma plenitude vital. Essa se reencontra, do meu ponto de vista, nas histerias religiosas e no transbordamento de alegria nas noites em que são anunciadas as vitórias eleitorais. Isso se dá, igualmente, por ocasião das celebrações funerárias de um tal star musical, religioso ou político. Resumindo, o emocional está no ar.

Lembro que, utilizando um tal neologismo, não é questão de fazer referência a uma característica psicológica, como numerosos observadores sociais mais elementares ou muito apressados creem seguidamente. Não, o emocional remete a uma ambiência coletiva, tribal, na qual o indivíduo se perde num conjunto mais amplo. Ora, há aí, de um ponto de vista metafórico, uma copulação coletiva. Onde o orgasmo se junta a uma forma que é, se cremos como sabedoria popular, uma espécie de “pequena morte”.

Morte de um pequeno si para nascer um Si mais vasto, esse da terra e do céu, da fauna e da flora, eis o que são as efervescências societais, de diversas ordens, pontuando a vida quotidiana das nossas sociedades. “Pequenas mortes” orgiásticas que procuram, antes de mais nada, celebrar um irrepreensível elan vital. Aqui, também, retornemos a Heidegger: “Pode-se dizer que morrer seja o ato supremo de viver”.

Para além da ideologia oficial do “risco zero”, sem estar comprometido por uma suposta morosidade ou digamos, medo do futuro, pode-se dizer que essas intensidades traduzem um inegável prazer ou desejo de ser. Em termos mais familiares, a vida não vale nada, mas nada vale a vida. E é num tal lugar, que se pode assinalar o laço social contemporâneo. Em maior ou menor tom, o que importa são as vibrações comuns. “Sintonias” das quais o fenomenólogo Alfred Schutz soube mostrar a importância para a compreensão da vida social.

Emocional, afetivo e outras expressões da mesma fonte, traduzindo o retorno vigoroso dos afetos na vida social. Não mais acantonados, seguindo a expressão consagrada, por detrás da vida privada, mas contaminando o essencial da vida pública. As paixões têm os seus papéis desempenhados na teatralidade contemporânea, e é em vão e naïf não levá-las em conta, não saber medir seus efeitos. Não se pode nada compreender de geopolítica, de política, da publicidade, da simples vida social, do espetáculo midiático (eu deixo amigo você completar esta lista) se não se considerar a importância dos afetos. Em seu sentido simples tudo que trata do ventre, do útero, da histeria, tudo como foi o caso na modernidade tem o seu retorno vigoroso na pós-modernidade. Ela é um elemento essencial do viver junto contemporâneo, e não dá mais para economizá-lo. É pois, cientificamente, pertinente integrá-lo nas análises pragmáticas que se pode fazer da vida social. Saber mostrar o que se dá a ver. É uma tal mostração que constitui o segundo questionamento à obra na minha trajetória.

Mostração. Se utilizo esta palavra do antigo francês é para evidenciar que pode existir do monstruoso, da monstruosidade na natureza das coisas. Trata-se aí de uma dessas banalidades de base que é, sempre, importante de lembrar ainda mais quando se tem a tendência, no moralismo ambiente, de esquecer sua presença. Banalidade conservadora da vitalidade popular. E isso, na imagem desses dias do “forno banal” na Idade Média, onde se celebrava a festa do fabrico do pão comum. O “forno banal” meio de escapar, ainda que provisoriamente, ao Poder do senhor, representa bem a metáfora do Poder do povo. Banalidade soberana que, contra as evidências sábias, essas essencialmente do “correctness”, reafirma força e vigor ao que é evidente.

Em primeiro lugar para o bem e o mal, o verdadeiro e o falso, não são assim radicalmente separados como se eles os estivessem. Donde a necessidade, na mostração, de integrar o que, enquanto sejam “monstruosos e humanos”. O que induz um pensamento da ressonância. Por vezes da redundância. Questionamento que vem em espiral sendo encontrado na técnica dos mantras extremos orientais, na repetição continuada da “lectio divins” monástico, na repetição dos temas musicais, do samba ou dos “samples” peculiares à musica “techno”.

A lógica pré-moderna, ou aquela da pós-modernidade, não são dedutivas, mas indutivas. Partindo do que é, elas fazem comparações, analogias. Mas numa tal perspectiva “tudo é bom”, não há aí nada a lançar da surrealidade societal. É a isso que intitulei “No fundo das Aparências”. O que aparece é o cadinho da maneira de ser e de viver junto. O barroquismo sendo a forma artística que mais bem dá conta de uma tal coincidência dos opostos. Barroquismo como dinamismo da vida das formas, como exacerbação do sentimento da vida.

Donde a acentuação sobre a experiência podendo se exprimir no vivido quotidiano, nos rituais anódinos do trabalho, dos lazeres, dos afetos amorosos ou amicais, ou exagerando, em maior grau, na moda, nos paroxismos musicais (gótico por exemplo), nos desejos intuitivos pelos mitos satanistas ou as formas provocantes encenadas, durante as diversas “paradas” ou “marchas” tecno, gay, “drag queen” aparecendo em evidência nas teatralidades urbanas.

Nesse jogo das aparências, se acelerando graças ao desenvolvimento tecnológico, é uma ordem que se coloca. Ordo amoris, tal como o denomina Max Scheler, onde Eros e Thanatos, a criação e a destruição, se ajustam num mixto completo, onde tudo tem seu lugar e pode desempenhar seu papel. Trata-se, no seu sentido primeiro, de uma simpatia universal, fundada sobre as afinidades eletivas ligando cada um e os seres. Jogo das aparências, jogo das imagens, quer sejam aquelas da publicidade, dos “vídeo-games” dos “logos” de diversas ordens e, em geral, das imagens midiáticas, onde se efetuam, para retornar uma bela metáfora Kabbalistica de Leon o Hebreu, uma “copulação visual”. Expressão um tanto mística, não podendo rebater os apriorismos teóricos, mas em que a experiência quotidiana colabora com vantagem. É suficiente desse ponto de vista, permanecer alguns instantes nos “cyber cafés” ou operando jogos online, e em seguida discutir com os protagonistas desses jogos, para se dar conta que uma tal “copulação” tem uma eficácia inegável.

É certo que as elites extenuadas continuam a colocar, fortíssimo, seus diagnósticos apocalípticos, sem outros julgamentos que não os agressivos e que envolvem ameaças sobre a própria decadência a essa rebelião do imaginário. E elas verão unicamente patologias (praticas adictivas, dizem – elas) nas fantasias, fantasmagorias, visão de fantasmas se exprimindo nos fãs dos jogos online. Vejamos, aí mais para o melhor como para o pior uma espécie de serenidade característica da “eterna criança”, vivendo na harmonia conflitual dos afetos contraditórios que os constituem. Serenidade quase animal se adequando aos seres e ao meio, em breves palavras, ao biótopo no qual se vive. Lembremo-nos aqui das palavras proféticas de Gurnemanz à Parcifal, encontradas em Wagner: “Aqui, meu filho, o tempo torna-se espaço”. Espaço semântico, espaço pathico, onde o que importa, são as paixões, as emoções vividas, com os outros, num dado lugar. O laço faz o laço, é isso mesmo que caracteriza o “eterno instante”, do qual eu tentei, em diversos dos meus livros, mostrar a atualização. Em oposição a uma eternidade longínqua e futura caracterizando a modernidade (e a tradição ocidental), a eternidade, se cristaliza agora no momento, o “Kairos”. Ela se espacializa. Donde a importância do corpo, do localismo, do tribal. Espaço que pode ser simbólico, que pode ser movente elemento da “circumnavegação” pós-moderna. O tribalismo e o nomadismo como características essenciais da época.

Ali é, certamente, a mutação mais importante, a mudança de paradigma que apenas se começa a reconhecer, a compreender e analisar. Em breve, o que era transcendência, e de um Deus Uno, de merecer um Céu, de um Futuro que se deveria estender, torna-se imanência. Imanentismo de uma divindade difusa, de que sincretismo e a religiosidade são testemunhas. De uma Terra a proteger, o que faz tornar-se atento à sensibilidade ecológica, de um Presente, símbolo de uma presença a um outro e a esse mundo aqui. É isso a ecosofia.

É um tal de Imanentismo que caracteriza a criatividade posmoderna. A vida como “arte total” onde se podem estabelecer correspondências, de ressonâncias de tons diversos, de musicalidades múltiplas, gostos, odores, toques, todas as coisas constituindo a vida, individual ou tribal, como obra essencialmente experimental. Eis o que é, em oposição à representação moderna, a presentação pós-moderna. A presentação não passa de superfície. E como o diz, com uma dose de maledicência, Andy Warhol: “não há nada por detrás”. Eis o que é difícil de admitir quando se sabe que a intelligentsia moderna se deu como vocação de pesquisar, ainda e sempre, a profundidade. A vida por detrás da vida. A perfeição para além da imperfeição presente. Como diz, ironicamente, Paul Valéry, “o intelectual é estruturalmente um profundista”!

Mas eis que, a experiência de todos os dias nos remete à superfície das coisas. A pele, os pelos, os humores não se escondem mais. Bem ao contrário, eles se exibem. Isso não é a primeira vez que acontece nas histórias humanas. Numerosos são os bons espíritos, nos quais eu me inspiro (F. Nietzsche, G. Simmel, M Weber), que bem mostraram como em certos momentos, a profundidade se esconde na superfície das coisas. É preciso estar atento a esse fenômeno.

Desde já, é preciso dizer que para além dos dogmatismos mais ou menos ridículos, mais ou menos perigosos, para além dos oportunistas intelectuais, e olha que eles são uma legião, para além dos plagiadores de toda ordem, regateadores vendendo produtos de segunda mão, é conveniente elaborar uma série de aproximações teóricas. Quer dizer, encontrar palavras pertinentes que, pouco a pouco se tornam adequadas ao que é vivido, na experiência societal. Palavras de imemoriável sabedoria, que, sem rigidificar o que elas designam, sem conceituar a priori, conduzem a uma relação conveniente e justa com a alteridade. Alteridade do grupo, alteridade da natureza, alteridade dos misteriosos numinosos.

Eis aí o que me foi “ditado” por uma observação atenta da experiência quotidiana. Eis aí o que proponho à meditação de alguns “happy few”.

 

Michel Maffesoli

Membro do Institut Universitáire da France
http://www.michelmaffesoli.org/

 

Tradução de Rosza W. Vel Zoladz

Socióloga. Pós-Doutora em Estudos Culturais pelo PACC-FCC/UFRJ
Professora colaboradora da EBA/UFRJ
Pesquisadora convidada do PACC-FCC/UFRJ

 

Avatar, o filme. Do “objeto inanimado” ao objeto animado | de Juremir Machado da Silva

Resumo:este artigo examina uma hipótese literária, construída pelo escritor Paul Auster, como probabilidade de explicação para o impacto ou a consistência narrativa de certos filmes à luz da necessidade contemporânea de respeito às diferenças culturais e de compreensão da diversidade existencial e interpretativa. Tomando como exemplo o filme Avatar, busca refletir sobre o papel de uma “teoria”, como simulação de verdade dentro de uma obra e de uma cultura, na relação do produto simbólico como o imaginário do público e com expectativas sociais.

Palavras-chave:imaginário; cinema; cultura; tecnologia; mídia; comunicação

 

1. Teoria do “objeto inanimado”

A literatura dita pós-moderna misturou definitivamente os gêneros. Os romances podem ser ensaios. A ficção pode assumir um papel teórico. Paul Auster, em Homem no escuro (2008), criou um personagem bastante curioso: um crítico literário aposentado, com os movimentos limitados por causa de um acidente de carro, que passa boa parte do seu tempo vendo filmes em companhia da neta, Katya, cujos movimentos estão bastante reduzidos depois que o namorado foi morto na guerra. Vivem com eles também a filha do critico, Miriam, sozinha há cinco anos. Katya abandonou a escola de cinema em Nova York. O pai dela está com uma perna atrofiada. O quadro é desolador. Para passar o tempo e driblar a falta de sono, o crítico inventa história que não saem da sua cabeça.

Cria um personagem que se descobre dentro de um buraco, de onde é tirado para se descobrir numa guerra. Essa parte do livro de Auster é quase uma isca para pegar o leitor. Logo no começo do romance, o crítico literário apresenta o que parece ser a diferença radical entre ler e ver um filme: “Fugir para dentro de um filme não é como fugir para dentro de um livro. Os livros nos obrigam a lhes dar algo em troca, ao passo que podemos ver um filme – e até gostar dele – num estado de passividade mecânica” (AUSTER, 2008, p. 19). Vale lembrar que Paul Auster não é um estranho ao mundo cinema. A fala é do seu personagem.

Katya expõe ao pai sua “teoria dos objetos inanimados”. Segundo ela, são eles que definem a grandeza do cinema: “Objetos inanimados como forma de expressar emoções humanas. Essa é a linguagem do cinema. Só bons diretores entendem como fazer isso (2008, p. 20). Então ela dá três exemplos tirados de filmes de Vittorio de Sica, Ladrões de bicicleta, Jean Renoir, A Grande ilusão, e Nicholas Ray, O Mundo de Apu. A moça descreve a abertura de Ladrões de bicicleta. Um marido chega em casa, mergulhado em seus problemas – precisa tirar a bicicleta do penhor para poder trabalhar no emprego que arranjou – e nem nota que a mulher se esfalfa carregando dois baldes de água. No apartamento, a mulher sugere que penhorem as roupas de cama e chuta o balde de raiva.

Katya resume sua teoria: “Objetos inanimados, emoções humanas” (p. 21). A mulher vende a trouxa de roupas de cama. A cena acontece numa loja de penhores, “uma espécie de armazém para objetos abandonados”, onde a teoria de Katya encontrará o seu ponto máximo: “No início, as prateleiras não parecem muito altas, mas a câmera recua e, à medida que o homem começa a subir, vemos que as prateleiras continuam sem parar até o teto, e todas as prateleiras e todos os cantinhos estão entupidos de trouxas idênticas àquela que o homem está guardando agora, e de uma hora para outra parece que todas as famílias de Roma venderam suas roupas de cama, que a cidade inteira está na mesma condição miserável que o herói e sua esposa” (AUSTER, 2008, p. 21).

As trouxas de roupa penhoradas como metáfora de uma sociedade arruinada. No segundo exemplo, extraído de Renoir, o personagem de Jean Gabin despede-se da mulher alemã que ama e prepara-se para atravessar a fronteira da Suíça junto com o parceiro Dalio. Os homens partem e a mulher fica com a filha pequena e a louça suja do jantar. Aqueles pratos se “transformaram no sinal da sua ausência, no sofrimento solitário das mulheres quando os homens partem para a guerra, e, um por um, sem dizer palavra, ela recolhe os pratos e limpa a mesa” (AUSTER, 2008, p. 22). A cena dura, no máximo, 15 segundos. Mas para Katya todo o filme está concentrado nessa imagem.

O terceiro exemplo parece mais sutil. O indiano Apu casa praticamente por acaso com uma moça que mal conhece. O noivo escolhido para a jovem era um estúpido. Desesperada, a família, na busca de uma solução, convence Apu a substituí-lo. As cenas que interessam se passam em Calcutá, para onde, contra sua vontade, Apu levou a esposa. A primeira imagem é simplesmente devastadora: o homem mora num lugar pobre e sujo. A janela do quarto é coberta com um pedaço de estopa. Na cena seguinte, uma manhã, a estopa já foi trocada por um tecido xadrez limpo (objeto 1). Em seguida, a câmera mostra um jarro de flores (objeto 2). Em seguida, quando a mulher se levanta, não consegue andar e percebe que seu sári (objeto 3) está amarrado às roupas por marido. Por fim, enquanto ela prepara o café, Apu rola preguiçosamente na cama, como um marido satisfeito, e depara-se com um grampo de cabelos entre os dois travesseiros” (objeto 4).

Katya conclui: “Esse é o ponto culminante. Ele segura o grampo de cabelos e o examina, e, quando a gente observa os olhos de Apu, a ternura e a adoração naqueles olhos, a gente fica sabendo, fora de qualquer dúvida, que ele está loucamente apaixonado por ela, que ela é a mulher da sua vida. E Ray faz isso acontecer sem usar uma única palavra de diálogo” (AUSTER, 2008, p. 25).

O que há por trás dos objetos inanimados de Kátia?

Uma teoria.

 

2. Efeito de embalagem

Há obras que mudam tudo. Mas como se muda tudo?

a) Pode-se contar uma nova história com uma nova

forma (é o sonho de todo artistas ambicioso).

Pode-se contar uma velha história com uma nova forma (é o sonho de quase todo artista moderno).

c) Pode-se contar uma nova história com uma velha forma (é o projeto de quem ainda tem esperanças).

Pode-se alterar o ponto de vista.

Pode-se contar, no caso de um filme, um conjunto de velhas histórias com uma nova embalagem graças ao avanço das tecnologias e aos efeitos especiais.

Avatar, filme em 3D, do canadense James Cameron. Pode ser visto como, ao mesmo tempo, o filme mais idiota e o mais extraordinário dos últimos anos. Sem dúvida, do ponto de vista tecnológico, é uma revolução no cinema. Os efeitos especiais são fantásticos. A história pode ser considerada medíocre. Uma imensa Sessão da Tarde com todos os clichês dos filmes americanos. Uma mistura de Tarzan com Rambo, Rei Leão e faroeste. Uma nova embalagem para velhas histórias. Um resumo cru e impreciso do enredo seria este: homem branco parte em missão junto aos “índios” em nome da sua civilização, apaixona-se por uma “índia”, passa por todos os rituais de iniciação imagináveis e muda de lado. Já viram esse filme? Já leram essa história? Conhecem a lenda? É John Wayne no futuro.

Em termos simbólicos, o filme pode ser considerado de um oportunismo imbatível: se o mundo quer comprar um imaginário anti-americano, Hollywood vende. E vende bem. O faturamento justifica tudo. O final do filme é feliz: o exército americano, pois isso está mais do que implícito, sendo massacrado pelo povo que tentou conquistar para se apoderar do seu território rico num minério cobiçado. Avatar é um filme infantil. Uma espécie de faroeste tecnológico numa Amazônia hiper-real. É infantil por ser feito para crianças, mas também pode ser considerado infantiloide. Explora o mercado da ecologia.

O cinismo de Hollywood pode ser rotulado assim e ser classificado de genial. Hollywood já faturou muito com filmes sobre o cinismo de Hollywood. Tudo é mercadoria. Nada de novo na frente de batalha do entretenimento. Não deixa de ser irônico que o mais anti-americano dos filmes atuais não seja francês, mas americano. Avatar prova que sempre é possível e desejável inventar novas embalagens e novos efeitos especiais para velhas e boas (ou nem tanto) histórias de sucesso. Difícil mesmo é inventar um novo conteúdo. Guy Debord, cineasta menor e maior crítico da sociedade do espetáculo, não tinha dúvidas quanto a isso: “O espetáculo como organização social da paralisia da história e da memória, do abandono da história que se erige sobre a base do tempo histórico, é falsa consciência do tempo (1997, 108). Tempo paralisado.

O senso de marketing de James Cameron parece insuperável. O herói é um cadeirante. Um fuzileiro que, limitado a uma cadeira de rodas, supera sua condição graças à tecnologia e, corajoso e aventureiro, defende o planeta, a floresta, uma cultura autóctone e as diferenças. O poderoso exército americano, comandado por um sósia de Bush e dotado das tecnologias mais avançadas, acaba derrotado por uma tribo armada de arco e flecha, mas cheia de sentimentos telúricos. Místico, “bicho-grilo” e politicamente correto, Avatar opõe cientistas idealistas a militares obtusos treinados para defender interesses econômicos insaciáveis. Poderia ter sido feito para fazer sucesso no Iraque e no Afeganistão. Não é de duvidar que se torne também o filme de cabeceira de muito terrorista cinéfilo e sensível aos novos valores globais.

James Cameron sabe o essencial sobre a indústria cultural: o público quer diferença. É preciso criar um choque na percepção do espectador. Isso pode acontecer com uma nova embalagem ou com um novo ponto de vista. Não precisa ser com uma nova história. Os “índios” de Cameron são macacos humanóides azuis que se pintam para a guerra como os navajos e defendem a natureza como o Greenpeace. O impacto era certo. Avatar funciona como mais uma demonstração de que tudo se copia e recicla. Na verdade, Avatar é uma fábula (de dinheiro): feito para ser a maior bilheteria de todos os tempos. Cameron pôs a fantasia a serviço de uma ideia. E tudo isso a serviço de uma ideia maior: ganhar muito dinheiro satisfazendo seu público.

 

3. Paralisa e animação

Pode-se aplicar a “teoria dos objetos inanimados” de Katya (Paul Auster) a Avatar? Não seria difícil mostrar que a noção de “paralisia” referida por Debord aparece tanto nos exemplos dados por Katya/Auster quanto no filme de Cameron. Essa paralisia tem relação com a memória individual e afetiva e com essa perda do tempo histórico. O personagem inventado por Auster para povoar a solidão e a insônia do seu protagonista, esse crítico literário aposentado, desperta num buraco e numa guerra sem a menor noção do que lhe ocorre. O personagem que o imagina tem uma perna esfacelada e quase não pode se mover. A sua filha e a sua neta movem-se cada vez menos por causa de perdas afetivas irreparáveis. O tempo paralisa.

O herói de Avatar é um cadeirante vivendo outros tempos. Mas a paralisia da suas pernas não bloqueia o movimento da sua imaginação. O mesmo ocorre com o personagem de Auster. Parece que esses “paralisados” precisam recuperar o tempo perdido correndo atrás do futuro em nome de um passado qualquer. Seria possível mostrar inúmeras cenas em que objetos inanimados plasmam algo muito forte em Avatar. Num filme que tem muito de desenho animado, todos os objetos são inicialmente inanimados. Cameron exibe uma profusão de animais criados em computador. A chamada “Árvore das Almas”, parte da mitologia do povo Na’vi, poderia ser apresentada como o ponto culminante desses objetos inanimados. Uma árvore, no entanto, é um ser vivo. Um ser vivo paralisado. Seria possível explorar a ideia de que uma sociedade obrigada a se defender de arco e flecha é uma cultura paralisada.

No livro de Paul Auster, contudo, é bastante possível que os verdadeiros objetos inanimados não sejam as trouxas de roupa de cama penhoradas nem os pratos sujos e o grampo de cabelo da mulher de Apu, mas pai, filha e neta paralisados em casa pelas duras batalhas da vida. Pessoas convertidas em objetos sem vida. Ou simplesmente o avô e a neta imobilizados no sofá, vendo filmes para esquecer o tempo das tragédias pessoais. A “teoria dos objetos inanimados” de Auster é como uma boneca russa: esconde outras dentro dela. Em primeiro lugar, exprime a ideia de que cinema é imagem e deve dizer com imagens todo um imaginário. Um grande cineasta deve ter “sacadas” capazes de mostrar o todo numa parte.

Em segundo lugar, a teoria de Auster sobre os filmes esconde possivelmente uma teoria sobre os personagens do seu livros. Em terceiro lugar, esconde talvez uma teoria sobre o papel da teoria. Esse é o ponto que interessa aqui tanto para pensar o filme Avatar quanto para pensar a importância da teoria numa obra de ficção. É importante destacar que a teoria da personagem Katya não tem pretensões científicas, embora faça uma “demonstração” consistente. A função dela no livro não é de mostrar o autor do livro defendendo uma tese e fazendo do seu romance um romance de tese, mas fazer os personagens terem uma leitura do mundo, uma visão de mundo, um olhar diferenciado sobre o exterior. Se a teoria de Auster mostra-se verossímil, outras, em outras obras, são mais facilmente refutáveis, mas cumprem o mesmo papel: dar a pensar, dar a ver, produzir interpretação e leitura.

O que faz a força de uma obra de ficção é a teoria que ele contém e à qual tenta dar verossimilhança? O escritor francês Michel Houellebecq parece ser um exemplo dessa teoria. No romance Extensão do domínio da luta (2002), faz o leitor avaliar uma hipótese desconcertante: o sexo como sistema de hierarquia social. A qualidade do livro está no fato de que a “tese” não se apresenta como do autor nem o romance como uma demonstração da sua validade. É uma “tese” da história, uma teoria do personagem, uma leitura que não está ali para convencer, mas para desconcertar e estruturar um mundo fictício.

Avatar tem uma teoria. Tem a sua teoria. É verdade que ela aparece de modo um tanto rápido na trama exposta. Não é colocada de modo demonstrativo. Auster explicita a sua “teoria dos objetos inanimados” para melhor dissimular a sua “teoria da teoria”. Inventa uma história de entretenimento típica da indústria cultural para fisgar o leitor enquanto lhe inocula uma ideia sofisticada e sinuosa. Cameron faz um blockbuster. E, como Auster, parece contrabandear uma teoria sob o nariz dos espectadores. Talvez ela nem seja percebida por boa parte do público. É uma teoria holística. Sustenta que as partes do todo estão interligadas numa vibração comum e direta. Em certo momento, a cientista especula sobre a hipótese de as árvores da floresta estarem todas em conexão umas com as outras através das suas raízes numa imensa teia análoga à rede neuronal com suas sinapses. A natureza seria um sistema de comunicação interativo.

Alguém poderá dizer que a grandeza dos livros de Paul Auster e de Michel Houellebecq não se encontra nesses esboços teóricos. Ou até mesmo que esses exercícios cumprem uma função bem menos nobre, aquilo que os franceses chamam de “remplissage” e nós, brasileiros, rotulamos popularmente de “encher linguiça”. O mesmo valeria para Cameron. A força de Avatar estaria na tecnologia e não numa duvidosa teoria do tipo “o bater de asas de uma borboleta na China provoca um terremoto no Haiti”. Pode ser. É sempre uma hipótese a ser considerada. A “tese de Katya”, no entanto, agarra o leitor logo no começo da história. A de Michel Houellebecq sobressai ao final da narrativa como uma revelação. A de Cameron eleva-se como uma mensagem.

Gilles Lipovetsky e Jean Serroy, em A Tela global: mídias culturais e cinema na era hipermoderna, defendem uma ideia que parece dar apoio à hipótese defendida aqui: “Se o cinema cumpre uma função narrativa-expressiva-onírica maior, essa dimensão, porém, não é única. Há uma outra função, insuficientemente destacada e no entanto crucial, que se abre a uma perspectiva muito diferente: o cinema é o que constrói uma percepção do mundo. Não apenas segundo o papel clássico que se atribui à arte, cuja função estética é fazer ver, através da obra, o que a princípio não se vê na realidade, mas, de maneira mais radical, produzindo realidade” (2009, p. 304).

O cinema é uma tecnologia do imaginário, uma lente que forma, deforma e transforma. A longa oposição às obras explicativas e demonstrativas, os chamados “romances de tese”, acabou por hiperdimensionar o papel narrativo-expressivo-onírico dos romances e dos filmes, escamoteando as ideias contidas neles ou esvaziando-os de substância. A descrição passou a ser o valor máximo. Levada ao extremo como fator de higienização, essa proposta estética ganhou ares de etnografia sem a riqueza barroca dos diários de campo dos antropólogos. Era preciso resgatar as ideias sem lhes dar o papel de antes. A genialidade de Vittorio de Sica, Jean Renoir e Nicholas Ray estaria em ter transformado ideias em imagens. Avatar embute uma teoria numa narrativa de potencial expressivo e onírico muito acima da média. Assim como a publicidade vende conceitos junto com os seus produtos, o cinema vende “percepções de mundo” junto com as suas imagens.

Os “objetos inanimados” de Katya são as “teorias animadas” de Paul Auster, de Michel Houellebecq e possivelmente de James Cameron: ideias que dão vida sutilmente às histórias contadas. Auster, num romance, tirou sua teoria de imagens de filmes que dispensam palavras. A genialidade de Houellebecq faz sua imagem do sexo como hierarquia social brotar em palavras emanadas das experiências dos personagens. Cameron, num filme, coloca na boca de uma personagem as palavras que costuram seu delírio imagético e onírico. Há uma espécie de deliciosa e paradoxal inversão: os escritores cristalizam suas teorias em imagens. O cineasta fecha o círculo das imagens em profusão com algumas palavras salpicadas.

A demonstração está ausente. Nisso reside a diferença entre o uso das ideias na modernidade e na pós ou na hipermodernidade. Lipovetsky e Serroy complementam: “O que o cinema mostra não é somente um outro mundo, o do sonho e do irreal, mas nosso mundo mesmo transformado num misto de real e imagem-cinema, um real fora-do-cinema submetido ao molde do imaginário-cinema. Ele produz sonho e realidade, uma realidade remodelada pelo espírito cinema, mas de maneira nenhuma irreal. Se permite a evasão, ela também convida a refazer os contornos do mundo. Oferece uma visão de mundo: o que chamamos de cinevisão” (2009, p. 304). Essa “cinevisão” é o equivalente da “tese de Katya”, a “teoria dos objetos inanimados” de Auster, a ideia que quebra a paralisia dos corpos e das mentes e veicula pensamentos em imagens.

Assim, num tempo de eliminação das fronteiras entre os gêneros, Paul Auster vira referência teórica para uma análise de sociologia do imaginário. Avatar, de James Cameron, apresenta-se como um tratado holístico e ecológico de interpretação da hipermodernidade. Ou como uma hábil, cínica e pragmática megaprodução de Hollywood para vender uma percepção de mundo a quem já a possui.

Tudo está ali: nas pernas imóveis do fuzileiro.

Tudo está ali: nas máquinas vencidas pelos ideais.

Tudo está ali: nas sinapses das árvores em rede.

 

Referências

AUSTER, Paul. Homem no escuro. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

Baudrillard, Jean. Tela total – mito-ironias da era do virtual e da imagem. Porto Alegre: Sulina, 1999.

Borges, Jorge Luis. Obras completas. Buenos Aires: Emecê, 1974.

Bourdieu, Pierre. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

Debord, Guy. A Sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

Dantec, Maurice. As Raízes do mal. Porto Alegre: Sulina, 2009.

Derrida, Jacques. Margens da filosofia. Campinas: Papirus, 1991.

Durand, Gilbert. Les Structures anthropologiques de l’imaginaire. Paris: Dunod, 1992.

Feyerabend, Paul. Contra o método. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977.

HOUELLEBECQ, Michel. Extensão do domínio da luta. Porto Alegre: Sulina, 2002.

Lyotard, Jean-François. O Pós-moderno. Rio de Janeiro: José Olympio, 1986.

LIPOVETSKY, Gilles e SERROY, Jean. A Tela Global: midias culturais e cinena na era hipermoderna. Porto Alegre: Sulina, 2009.

Maffesoli, Michel. O Conhecimento comum. Porto Alegre: Sulina, 2008.

Morin, Edgar. O Método 3: o conhecimento do conhecimento. Porto Alegre: Sulina, 1999.

Silva, Juremir Machado (da). As Tecnologias do imaginário. Porto Alegre: Sulina, 2003.

Wolfe, Tom. A Palavra pintada. Rio de Janeiro: Rocco, 2009.

* Juremir Machado da Silva, doutor em Sociologia pela Sorbonne, Paris V, escritor, jornalista e tradutor, é pesquisador 1B do CNPq, coordenador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da PUCRS e autor, entre outros livros, de A miséria do jornalismo brasileiro (Petrópolis, Vozes, 2000), As Tecnologias do imaginário (Porto Alegre, Sulina, 2003) e dos romances Getúlio (Rio de Janeiro, Record, 2004) e Solo (Record, 2008).

 

Máquinas Poéticas | de Angela Mascelani*

Nos meus primeiros trabalhos procuro os princípios que geram informações, ou seja, o princípio da ordem e o da essência. As informações no universo estão geralmente ocultas, disfarçadas em meio à desordem. É necessário o mecanismo da percepção e da intuição para que estas se manifestem “de repente”. É a esta “surpresa” que tenho o maior interesse e fascínio.

Abraham Palatnik

Este artigo foi escrito a propósito da exposição Máquinas Poéticas[1], que tratou da arte que se realiza pelo e a partir do movimento e foi realizada no Museu de Arte Popular Brasileira Casa do Pontal, no Rio de Janeiro[2]. Esta mostra também concretizou a intenção curatorial da nova área expositiva do Museu – a GVB Galeria de Arte – criada justamente para ser um espaço de questionamento das classificações duras, que podem conduzir às guetizações, sobretudo quando se tratam das produções artísticas que têm origem nas camadas populares. A ideia norteadora deste novo espaço ancorou-se no desejo de abrir possibilidades para as trocas, confrontos e aproximações entre diferentes propostas de artes e autores. E que, por esta via, o público pudesse experimentar a quebra de fronteiras formais, muitas vezes artificiais, que servem apenas para criar distâncias, impedindo que se reconheçam as sutilezas que podem unir propostas e expressões artísticas muito diferentes, assinalando a riqueza da diversidade cultural na arte.

Com este intuito, e tendo por ponto de partida o uso do movimento mecânico, eólico ou elétrico nas obras, reuniram-se algumas delas dos artistas Adalton Lopes, Laurentino Rosa, Nhô Caboclo e Saúba, todas integrantes do acervo do Museu Casa do Pontal, às do pioneiro da arte cinética no Brasil, Abraham Palatnik. Algumas obras deste artista vieram de sua própria coleção e, outras, do acervo de Gilberto Chateaubriand, atualmente em comodato no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.

Trata-se de artistas inventores, com diferentes trajetórias de vida, motivações e maneiras de realizar suas obras e nelas expressarem sua visão de mundo. A despeito das incontestes diferenças, vários pontos os aproximam: a atração pelo lúdico, o gosto pela invenção, um genuíno espanto pela automação e a entrega ao paciente trabalho investigativo. A tecnologia exerce papel singular nessa produção que, de alguma forma, conjuga arte e ciência. Esses artistas compartilham ainda de um mesmo período histórico em que ocorreram e ocorrem intensas mudanças tecnológicas no Brasil e no mundo.

Lembrando que não existe “o” artista popular como sujeito coletivo, sublinhamos que as noções de popular e erudito como definidoras de identidades orientadas interessam menos aos artistas do que aos críticos. Podemos perceber, nas histórias de vida desse conjunto de artistas, que cada qual se apropria de seu mundo cultural, de suas bagagens e acúmulos e, a partir daí, promove sínteses, sem medo de se lançar no desconhecido, seguindo as trilhas da intuição.

Abraham Palatnik teve formação em artes e em engenharia de motores. Embora nascido no Rio Grande do Norte, em 1928, viveu dos quatro aos 19 anos na Palestina, onde teve sua iniciação profissional, retornando ao Brasil em 1948.

 

Adalton, Nhô Caboclo, Laurentino e Saúba são artistas das regiões Sudeste e Nordeste, oriundos das camadas populares, o que significa, neste caso, que construíram seus conhecimentos por processos informais e não nos bancos escolares. Eles introduziram o movimento em suas produções a partir do desejo de dar vida a objetos e personagens, de criar “peça que bula com a imaginação”, “que não se sabe se é deste mundo, ou do outro, criador” como disse Nhô Caboclo, ou porque sofistica “o pulo do gato”, como afirmou Adalton Fernandes Lopes, referindo-se a seu próprio trabalho.

Cada um dos artistas que expomos chegou às suas criações cinéticas de modo bem particular. O pintor e desenhista Palatnik, por exemplo, abriu essa nova vertente em seu trabalho plástico a partir de uma vivência que interrompeu seu fluxo criativo. Amigo do artista Almir Mavignier, por intermédio de quem veio a conhecer o crítico Mário Pedrosa e o trabalho da doutora Nise da Silveira, no Hospital Psiquiátrico do Engenho de Dentro (RJ), ficou extremamente impactado ao visitar os ateliês de terapêutica ocupacional dessa instituição, onde viu os internos se expressando com contundência por meio da pintura. Esse impacto é assim descrito por Palatnik:

O que vi era extraordinário, de uma densidade fabulosa… e comecei a me sentir desorientado. Abandonei as pinturas, os pincéis, as tintas…[3]

Diante da força presente naqueles trabalhos, ele perdeu a vontade de prosseguir na arte. E foi, justamente, essa radical perda de esperança em sua capacidade expressiva que possibilitou o nascimento de uma nova realidade para a cor e as formas: os cinecromáticos. Deixando-se tocar pelo vazio, e ficar ativamente neste ponto zero, não só aprofundou sua reflexão sobre a questão da cor, como também abriu espaços internos para o surgimento de uma criação inteiramente original. Inspirado no princípio do caleidoscópio, um dos primeiros cinecromáticos foi exibido na I Bienal de São Paulo, em 1951. O artista deixa clara a importância conferida à intuição no texto abaixo:

Um problema complexo funde nossa cabeça, mas a solução salta inesperadamente, e de repente vemos ordem e lógica em diversos fatos irregulares e no meio da desordem. Fatos científicos importantes têm sido previstos por uma percepção intuitiva. Sem a intuição, enfim, não seríamos artistas, pois ela nos proporciona essencialmente o contato com o inesperado.

Conversas e leituras sugeridas pelo crítico Mário Pedrosa ajudaram Palatnik a criar o campo propício para essa mudança. Pesquisando as teorias da forma e as possibilidades da luz e do movimento, ele não abandonou a pintura, mas encontrou outros caminhos para expressar as questões suscitadas por ela. O crítico de arte Luiz Camillo Osório expõe o forte impacto produzido pelos cinecromáticos:

Quem depara com um aparelho cinecromático é imediatamente enfeitiçado. Os olhos ficam paralisados pelo movimento de luzes e cores, pelo ritmo luminoso que invade o espaço. É como se uma pintura abstrata repentinamente ficasse animada, produzindo efeitos de cor variados e sincronizados. As questões do artista são oriundas da pintura, mas transformadas pelo uso da tecnologia, do motor que dá movimento a um circuito elétrico, que vai acendendo um conjunto variado de luzes coloridas. (…) A cor-luz pondo-se em movimento diferencia-se da cor-pigmento das pinturas e se expande no espaço incluindo o próprio expectador. É uma experiência de absorção e sedução (…).

Essas obras foram descritas pelo poeta Murilo Mendes no catálogo da Bienal de Veneza de 1964 como “tangentes à pintura e ao cinema”. Surpreendendo o meio artístico internacional, Palatnik deu prosseguimento a seu trabalho criando as progressões, pinturas que usam a madeira como suporte, e os objetos cinéticos, nos quais pequenas formas geométricas planas e coloridas, sustentadas por varetas e conectadas a um motor oculto, se movem lentamente, produzindo efeitos rítmicos delicados.

Ao longo de sua trajetória, o artista percorreu vários caminhos, dialogando sempre com as principais questões que marcam a arte de meados do século XX aos nossos dias. Em depoimento ao Museu Casa do Pontal[4] o artista disse:

Devo o interesse na arte popular à minha esposa Lea. Ela que descobria as coisas e eu vi que tem realmente uma vida aquilo, que não é só a arte abstrata, e eu acabei adquirindo algumas coisas. Porque eu vi naquilo uma coisa espontânea, do mesmo jeito que eu também me senti espontâneo nas coisas que fazia. Quando eu pegava os instrumentos e tentava compor alguma coisa, eu estava praticamente me equiparando a eles. É uma atividade um pouco cerebral, mas também é muito espontânea. Eu acho que na arte popular o que existe é muita invenção também, porque eles abordam muitos problemas, e isso se justifica porque eles estão cercados de informações e as informações são traduzidas, na habilidade deles, em realidade. Para eles a realidade é o que eles estão fazendo.

Para aprofundar o entendimento da história e dos rumos tomados por este artista, o livro Palatnik, com texto e organização de Luiz Camillo Osório, citado na nota acima, é leitura indispensável.

Obras animadas – como as feitas por Adalton, Laurentino, Nhô Caboclo e Saúba – não são raras na arte popular. Os nomes pelos quais são referidas variam, mas o encantamento que o público demonstra por elas é sempre o mesmo.  Todas fascinam. No Museu Casa do Pontal elas foram catalogadas como engenhocas ou geringonças, mas são conhecidas também por diversos outros nomes. Laurentino chamava suas esculturas móveis de papa-ventos. Nhô Caboclo referiu-se aos seus trabalhos como equilibristas, toré, balsa e engenhoca. Saúba dá a conhecer suas criações pelos nomes de mesa ou engenharias. Comentando o trabalho cinético dos artistas populares Antônio de Oliveira e Manuel Molina, a crítica Lélia Frota[5] usou as expressões universos moventes e engrenagem/bricolagem elétrica.

Se há inequívocas distinções em seus processos de feitura, em todos a ousadia é inegável e está associada à invenção de mecanismos capazes de fazer mexer e animar personagens e objetos. No geral, esses processos envolvem a fabricação caseira de mecanismos que utilizam na sua composição partes de outros aparelhos e materiais reciclados. Muitas vezes é o artista quem cria as peças, engrenagens e sistemas necessários para movimentar as figuras. Em outras, ele adapta pequenos motores, como os de eletrodomésticos descartados. Essas ações resultam sempre numa estrutura rústica e única, que poucos, além do próprio autor, sabem mexer ou consertar.

Adalton Fernandes Lopes tornou-se um especialista neste gênero. Nasceu em 1938, em Niterói, no estado do Rio de Janeiro, onde viveu até sua morte, em fins de 2005. De família simples, cursou até o segundo ano do primeiro grau e logo teve que começar a ganhar o sustento. Enfrentou grandes dificuldades, teve vários empregos que lhe garantiam apenas o básico. Depois de passar de uma ocupação para outra, conseguiu certa estabilidade na Companhia Nacional de Navegação Costeira, onde ficou por cerca de sete anos. Ao ser demitido deste emprego, enfrentou sérios apertos financeiros, mas encontrou nos bonecos o que chamou de válvula de escape. Leitor da Bíblia, moldou suas primeiras imagens inspirado na temática religiosa. Encontrando interesse pelo que fazia, soltou-se no mundo e deu asas à imaginação. É notável a forma pela qual abordou a vida nos bairros periféricos de Niterói, abrindo espaço para o protagonismo do homem comum. Seus fascinantes recortes do cotidiano urbano registram a argúcia de seu pensamento e a complexidade da vida social que lhe coube experimentar e transmitir com grande talento. O prazer de Adalton com seu trabalho

fica patente nesse depoimento:

Eu gosto de todos eles, sabe? Eu gosto de fazer isso. Da coisa mesmo e de fazer. Não tem dinheiro, tempo, não tem nada disso! Eu quero que o trabalho fique bonito. Legal, sabe? (…) Depois que eu acabo os trabalhos, pra mim acabou. Eu quero mais outro. Uma coisa diferente. Eu quero fazer uma coisa nova. Sempre a coisa nova.

Segundo o artista, sua chegada ao mundo da arte se deu por inspiração das notícias que ouvia sobre o ceramista Mestre Vitalino, recebido com honras por toda parte – inclusive pelo presidente Jânio Quadros, em 1961. Adalton, então com 23 anos, percebeu que as modelagens que fazia por prazer e diversão poderiam ter valor como um tipo de trabalho, ao qual decidiu se lançar com muito empenho.

Esse fato nos ajuda a entender a dimensão sociológica presente no que tem sido chamado de “arte popular brasileira”. Adalton – que já criava seus bonecos, a exemplo de muitos outros artesãos que vieram a desenvolver um trabalho autoral – inspirou-se na figura de Mestre Vitalino para dar plena vazão à sua própria imaginação.

Ou seja, um determinado tipo de produção, que provavelmente já existia em muitas partes do país, encontrou acolhimento no mercado cultural a partir do momento em que passou a ser valorizado como bem simbólico, como “trabalho”, que demarca um ethos e remete a valores identitários reconhecidos como brasileiros. No caso de Adalton, essa legitimidade permitiu também que ele se situasse socialmente como participante de uma tradição coletiva, sem, contudo, abrir mão da sua própria singularidade.

Sabemos que a emergência de novas realidades culturais faz parte de uma intrincada rede, que articula fatores históricos, econômicos e sociais. Está ligada, portanto, às mudanças que vêm ocorrendo no país e no mundo, tais como a valorização da diversidade cultural, o incentivo aos estudos sobre as tradições populares e o folclore, a ampliação do debate sobre a alteridade, os movimentos de resistência de povos locais ao colonialismo, as mudanças de patamar tecnológico, além do alargamento das fronteiras do que pode ser considerado como arte e de quem pode ser reconhecido como artista.

Para os estudos do folclore, que tradicionalmente acolhem este tipo de produção, o reconhecimento das artes do povo implica muitas vezes no entendimento de que a autoria é coletiva ou anônima. Entretanto, pelo viés da arte, em que vigora a ideia renascentista de gênio autoral, os integrantes das camadas populares podem também ser vistos como autores, indivíduos com características próprias e pensamento original.

Adalton criou imensas máquinas poéticas, nas quais os personagens ganham animação a partir de um sofisticado sistema de cordas e polias, que, acionado pelo público, conjuga música e movimento. Tanto no mecanismo de suas engenhocas quanto na criação de materiais alternativos ao barro (como misturas de outros insumos ao papel machê), fica evidente a importância das técnicas desenvolvidas por ele para que os seus personagens possam suportar o movimento, ganhando leveza e maleabilidade. Essas características são assim destacadas pelos antropólogos Guacira Waldeck e Ricardo Lima:

Seguramente o que mais marcou a produção plástica do artista foi o percurso que trilhou em busca do movimento. Desde as primeiras peças em que retratou a figura humana, isolada ou em grupos, pelos contornos dados aos corpos modelados em barro, se percebe que o artista evitava as posições estáticas. (…) As cenas indicam movimento e imprimem ritmo à ação. Ao artista, porém, não bastou sugerir ao expectador o movimento que a cena propõe. Ele quis mais: que, literalmente, o barro se movesse e que, como num sopro, seus bonecos se fizessem vivos.[6]

Adalton Lopes toma o mundo vivido como inspiração. Suas obras alargam a noção de experiência, incluindo, sem hierarquias, o vivido e o imaginado.

Nhô Caboclo [Manoel Fontoura], falecido em 1976, nasceu em data incerta na aldeia de Águas Belas, interior de Pernambuco. Filho de mãe indígena, da etnia Funiô, e de pai provavelmente negro, viveu e realizou expressiva parte de sua obra em Olinda, PE.

Sua memória do passado começou em Garanhuns, onde sabe que se criou. Emigrante da zona rural, ele costumava contar que nunca gostou de trabalhar na diária, na lavoura, mas que sempre inventou peças fortes como, por exemplo, um objeto para prevenir o mau olhado, para ser usado no alto das casas. Chegou às obras articuladas por não se satisfazer mais com as peças mortas, que não se movimentam. Seu desejo de entender e interferir no mundo, ao menos no seu mundo imaginário, levou-o a criar personagens em permanente estado de alerta. Em seu linguajar original, compartilha sua trajetória:

Antigamente eu prinspiei a fazer um piscui de acubagem: uma pecinha morta, que não tinha graça. Depois eu peguei de fazer peça manual para trabalhar no vento, com um corta-vento, ligado a um vaivém, do jeito da máquina do trem que locomove uma elce. Aí a elce trabalha e em tudo o que o vaivém tiver enganchado tem de bulir: todo mundo trabalhando. Depois disso principiei a fazer a roda-dágua: a caçamba enchia de água, ficava pesada, aí as máquinas tinham força pra puxar um dínamo e moer a cana.[7]

Fascinado pelo trem, pelos processos de automação trazidos pela industrialização, mas enfrentando grandes dificuldades no viver, ele olhava a vida como uma guerra sem fim. “E o derradeiro a ficar vivo sou eu mesmo”, dizia.

Para as autoras de O reinado da lua,

Caboclo desafia os artifícios do poder, inventa uma linguagem própria, inacessível aos eruditos, e de forma muito especial inverte a hierarquia. (…) Para ele sua arte encontra-se intimamente associada à ideia de movimento – movimento que remete à própria dinâmica da sociedade moderna, da força da máquina, da guerra. Presentes em suas esculturas, engrenagens se articulam, figuras se equilibram, pássaros rodam – traduzindo seu entendimento do mecanismo da sociedade, ao qual caboclamente impõe seu ritmo.[8]

Laurentino Rosa dos Santos, nascido em 1938 e falecido em 2009, tornou-se conhecido pelos sinaleiros dos ventos, por ele denominados de índios do futuro. Seus personagens, munidos de facões – que parecem pás ou hélices – apontam a trajetória mutante dos ventos. O artista chegou aos sinaleiros de maneira casual, pensando em chamar a atenção dos transeuntes para seu carrinho de pipocas. Empregando ferramentas simples, escolheu inicialmente os pequenos formatos. Embora este tipo de objeto seja bastante comum, a maneira como ele os realizou foi altamente personalizada.

Logo que se mudou da zona rural para a periferia de Curitiba, fez gaiolas, pequenos animais e cata-ventos. Conseguindo compradores interessados nas formas e na originalidade de seus traços, passou, mais tarde, a se dedicar inteiramente à feitura dessas obras/brinquedos, conferindo maior ênfase à figura humana e aos pássaros. A introdução de sinais e simbolismos judaicos em suas criações parece ter se dado de maneira similar[9]. Como fazia ponto diante do cemitério israelita de Curitiba, foi pouco a pouco absorvendo e integrando essas imagens em seus personagens. Depois de ter sua obra aceita em circuitos da arte popular, Laurentino passou a se dedicar com mais ênfase aos sinaleiros em grandes formatos.

Homem de vida simples, analfabeto, teve muitos filhos, e nunca pôde dedicar-se exclusivamente ao artesanato por ele inventado. Ao final da vida, trabalhava como jardineiro, aparando gramados, podando árvores, cuidando de flores. Seu filho Francisco seguiu-lhe na profissão e tem feito exposições individuais.

Já o pernambucano de Carpina, Saúba [Antonio Elias da Silva], parece ter um projeto mais consciente de seu trabalho como artista. Para esse mamulengueiro, ator e autor, que vive de sua arte e anda de um lado para o outro realizando suas performances, a experimentação aparece como condição mesma de seu trabalho artístico. Vindo da tradição do teatro de mamulengo – teatro de bonecos da zona da mata pernambucana, cada apresentação lhe pede improvisos. Buscando o riso e o envolvimento da plateia, o artista treina a cada dia, aprende e transforma seu trabalho a cada instante.

A ideia do movimento está no cerne do teatro de bonecos. O ator manipula os personagens e os faz andar, falar, sorrir, brigar e namorar. Apresenta histórias curtas, conhecidas como passagens, encarregando-se não apenas da feitura dos bonecos, mas também do seu manejo, da adaptação e mesmo da invenção de novas histórias e ainda da contratação de um grupo musical para acompanhar seus espetáculos.

Atualmente suas exibições públicas incluem também a dança com a boneca Dona Lindalva, de tamanho natural. Grande dançarino de forró, o artista desenvolveu uma técnica que faz com que a boneca pareça viva.  Ao final das apresentações, exibe as engenhocas criadas por ele, hoje chamadas de mesas ou engenharia do Mestre Saúba.

Suas engenhocas potencializam a cena teatral, dando suporte às performances do ator. Diferentemente dos bonecos manipulados à mão, as engenharias permitem a criação de uma cena complexa e dinâmica, em que personagens, fixos numa base, articulam imagem, cor, som e movimento. Em suas apresentações, o artista dialoga com a cena exibida. É inevitável perceber que nestas cenas seus personagens protagonizam por si, liberando-se dos manipuladores, dos brincantes.

Na obra Volta do Cangaço é impressionante como o artista concretiza a presença do mal, elencando uma sequência de situações dramáticas e explorando o imaginário acerca das perversidades de Lampião e seu bando. Surpreende também a sofisticada associação que promove entre imagem e som: o barulho das engrenagens em ação remete ao tropel dos cavalos. Esse recurso fascina duplamente as plateias, sobretudo se lembrarmos que no momento em que essa e outras obras foram produzidas, não havia tanta familiaridade com os equipamentos elétricos em muitas partes do sertão nordestino, por onde o artista costumava se exibir, com seus bonecos e máquinas. Assim o artista se autodefine[10]:

Eu não tenho leitura. Tenho inteligência. Quando me apresento junta uma multidão de gente. Conto o que vi e ouvi. Quando chego digo: ‘sou o Mestre Saúba, trago novidades que vocês nunca viram na vida!!!’ Gosto de boneco bem malcriado, gosto de provocar: ‘solteiro ou casado?’ Agora estou fazendo uns bonecos tocados pelo vento. Correndo no vento. Os bonecos de bicicleta correndo no vento…

O artista fala rapidamente, animadíssimo. Mistura os assuntos, transborda:

Sou viajado no mundo. Não tenho parada. Eu queria andar o Brasil inteiro. Eu queria ir a Aparecida do Norte…

Embora dê continuidade a uma antiga tradição nordestina, Saúba traz a marca do artista absolutamente original, traço destacado pelo músico e dançarino Antônio Nóbrega:

Ele é um magistral criador de bonecos. Tem uma genial inteligência mecânica, pois faz os bonecos se movimentarem espetacularmente. Pois bem, Mestre Saúba, para mim, é uma dessas figuras nas quais vida e arte se confundem milagrosamente.[11]

Saúba entalha, pinta, canta, improvisa versos, dança, inventa histórias, vive a arte em suas múltiplas dimensões. Sua maestria é reconhecida, embora nem sempre tenha encontrado oportunidades financeiras à altura de sua criação. Ele e os demais artistas que integram esta exposição são homens que se lançaram sem receios na experiência revigorante do fazer, inventando o inexistente e ultrapassando antigos limites.

Abraham Palatnik, decada de 1960, Rio de Janeiro, coleção Gilberto Chateaubriand, Museu de Arte Moderna, RJ. Exposição Máquinas Poéticas, Museu Casa do Pontal, RJ.

Nhô Caboclo, década de 1960, Recife, PE. Acervo Museu Casa do Pontal. Exposição Máquinas Poéticas, Museu Casa do Pontal, RJ.

Adalton Fernandes Lopes, década de 1980, Niterói, Rio de Janeiro, RJ. Acervo Museu Casa do Pontal. Exposição Máquinas Poéticas, Museu Casa do Pontal, RJ.

 

Adalton Fernandes Lopes, década de 1980, Niterói, Rio de Janeiro, RJ. Acervo Museu Casa do Pontal. Exposição Máquinas Poéticas, Museu Casa do Pontal, RJ.

 

Saúba, década de 1970, Niterói, Rio de Janeiro, RJ. Acervo Museu Casa do Pontal. Exposição Máquinas Poéticas, Museu Casa do Pontal, RJ.

*Angela Mascelani é doutora em Antropologia Cultural pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro e mestre em Antropologia Visual pela Escola de Belas Artes da mesma universidade. Autora dos livros “O mundo da Arte Popular Brasileira”, editora Mauad, 2002 e “Caminhos da Arte Popular: o Vale do Jequitinhonha”, Museu Casa do Pontal, 2008.

 

[1] Exposição – Máquinas Poéticas. Abraham Palatnik e os Artistas Populares Adalton Lopes, Laurentino, Nhô Caboclo e Saúba. Curadoria de Ângela Mascelani e Afonso Henrique Costa. De 5 de fevereiro a 5 de maio de 2011, no Museu Casa do Pontal, no Rio de Janeiro.

[2] O Museu Casa do Pontal, no Rio de Janeiro, é considerado o maior e mais significativo museu de arte popular do país. Seu acervo – resultado de quarenta anos de pesquisas e viagens por todo o Brasil do designer francês Jacques Van de Beuque – é composto por cerca de 8.000 peças de 200 artistas brasileiros e recobre a produção feita a partir do século XX. A exposição permanente do Museu reúne obras representativas das variadas culturas rurais e urbanas do país. Mostradas tematicamente, abrangem as atividades cotidianas, festivas, imaginárias e religiosas. O Museu está instalado no Recreio dos Bandeirantes, próximo à Barra da Tijuca. Tombado em 1991, recebeu, em 1996, o prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade, concedido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e, em 2005, a Ordem do Mérito Cultural. www.popular.arte.br

[3] Enciclopédia Itaú Cultural (www.itaucultural.org.br). Acesso em 12/01/2011.

[4] Entrevista gravada em 21 de dezembro de 2010, na casa de Abraham Palatnik, com a participação de Lucas Van de Beuque.

[5] Frota, Lélia Coelho. Pequeno dicionário da arte do povo brasileiro, século XX. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2005.

[6] No artigo “Adalton: o senhor do barro”, publicado pelos dois autores no catálogo da exposição de mesmo nome: Mascelani, Angela; Waldeck, Guacira & Lima, Ricardo Gomes. Adalton: o senhor do barro. Rio de Janeiro: IPHAN, CNFCP, 2007, p.13.

[7] Coimbra, Silvia; Martins,Flávia & Duarte, Letícia. O reinado da lua. Rio de Janeiro: Salamandra, 1980, p. 275.

[8] Idem, ibidem, p. 271.

[9] Contudo, no Pequeno dicionário da arte do povo brasileiro, Lélia Frota associa a disseminação desta imagem à religiosidade católica popular portuguesa.

[10] Em entrevista à autora, concedida em janeiro de 2011.

[11] Coelho, Marco Antônio & Falcão, Aluísio. Antônio Nóbrega: Um Artista Multidisciplinar. In: Estudos Avançados. Volume 9. Número 23. São Paulo. Janeiro/Abril. 1995 (Dossiê Cultura Popular; Print Version Issn 0103-4014.

 

“A inventividade da tradição”. Cultura popular e suas transformações. | Daniel Reis entrevista Daniel Bitter

Daniel Reis* entrevista Daniel Bitter **

 

DR: O livro que acaba de lançar é resultado de sua tese de doutoramento em Antropologia, agraciada com um prêmio importante na área de estudos sobre cultura popular. Gostaria que começasse falando sobre sua trajetória profissional e seu envolvimento com as folias de reis e outros campos da cultura popular.

DB: Talvez eu deva começar dizendo que minha trajetória foi muito tortuosa e olhando-a à distância, tenho a impressão que isso me trouxe mais vantagens do que desvantagens. Uma forte curiosidade me levou a diversificados caminhos que me permitem hoje transitar, com certa desenvoltura, por fronteiras entre algumas áreas. Estive desde muito cedo ligado às artes. Por muito pouco, não me profissionalizei em música erudita ou em artes plásticas e, então, quando ingressei no curso de Comunicação Visual da PUC-Rio, no final dos anos 80, me aproximei de um carismático professor e artista plástico chamado Urian Agria de Souza. Suas preocupações políticas, aguçadas pela experiência do movimento estudantil e dos acalorados debates dos anos 60, e, sobretudo, sua visão poética do mundo, me influenciaram muito, reorientando meu caminho profissional e pessoal. Ao lado de Urian e dos muitos outros alunos que se juntavam ao seu redor, quase sempre na mesa de um bar, descobri meu interesse pela cultura brasileira e pela cultura popular. Para mim que vinha de um referencial erudito, era um mundo que se abria. Numa tentativa de realizar uma síntese entre o que eu entendia como o “erudito” e “popular”, submeti ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da EBA/UFRJ, um projeto de pesquisa sobre Ariano Suassuna e o Movimento Armorial. Uma importante interlocutora nesse momento, foi minha orientadora, a profa. Rosza W. Vel Zoladz, que me apontou caminhos conceituais, fomentando meu interesse pela teoria social e pela etnografia. Defendi a dissertação em 2000 e àquela altura, já estava claro para mim que a compartimentação do mundo da cultura em níveis ou esferas era um produto historicamente situado. Tudo isso acabou por me levar a interessar-me cada vez mais pelas práticas e saberes populares, de modo que, como desdobramento das discussões desenvolvidas no mestrado, criei, juntamente com amigos com quem compartilhava gostos semelhantes, o grupo Gesta, um grupo instrumental dedicado à pesquisa e recriação de música tradicional brasileira, ainda nos anos 90. Nessa época havia descoberto a “rabeca”, um instrumento de arco semelhante ao violino, mas de artesania popular. Esse artefato sonoro tornou-se meu instrumento e assim dediquei-me a descobrir também suas sonoridades e seus múltiplos contextos de uso.

Trabalhando no magistério superior, já há alguns anos, resolvi, então, continuar minha progressão acadêmica, decidindo-me pela Antropologia. Minha aproximação às folias de reis foi um movimento quase circunstancial, mas a proposta de abordar objetos rituais como a “bandeira” e a “máscara” num projeto de pesquisa em nível de doutorado, já se encontrava bem nítida no meu horizonte e foi recepcionada com interesse por meu orientador, o prof. José Reginaldo S. Gonçalves. Acho que o que me levou a este tema foi, principalmente, a atração estética que as folias de reis produzem e sua ligação com a arte popular brasileira.

Tenho me envolvido com outros temas relacionados à cultura popular, por meio de minha participação nos trabalhos desenvolvidos pela Associação Cultural Caburé, da qual sou membro fundador. A Caburé tem implementado projetos de pesquisa e difusão de práticas culturais com uma preocupação acentuada em engajar efetivamente pessoas, grupos e comunidades. São projetos que se alinham com uma preocupação ética, política e social. Temos, muito modestamente, procurado contribuir para a valorização dos saberes e modos de vida populares e para o desenvolvimento social dessas coletividades.

DR: Sua pesquisa tem como norte dois elementos significativos no universo das folias de reis: a bandeira e a máscara. Poderia falar sobre a escolha deste recorte, bem como da importância dos objetos em contextos rituais e suas ressonâncias na vida cotidiana?

DB: Há nas últimas décadas um renovado interesse da teoria social pelos objetos materiais. A Antropologia teve sua gênese fortemente ligada aos artefatos e aos museus, onde esses objetos eram depositados, ainda no século XIX. No início do século XX houve um gradual afastamento desse tema em favor de estudos sobre sistemas de pensamento e relações sociais, mas os objetos sempre estiveram de algum modo presentes nas etnografias clássicas e chegaram a ser pensados a partir da perspectiva funcionalista ou estruturalista. A escolha do recorte que conduzi na pesquisa converge com as preocupações que tem norteado o campo da Antropologia dos objetos partindo de perspectivas atualizadas que gostaria de comentar.

Quando falamos de objetos, tais como a bandeira e a máscara, estamos, na verdade, falando sobre as pessoas que os produzem e os manipulam coletivamente. Isso é verdadeiro tanto para os objetos cerimoniais, dos quais eu trato, quanto dos objetos de uso cotidiano. Sem os objetos, a vida social seria simplesmente impossível. Não podemos falar sobre a pesca sem mencionarmos a rede, os anzóis, os molinetes. Há todo um conhecimento envolvendo o uso desses objetos, bem como, sistemas de valores que os resignificam permanentemente. Os objetos podem ser vendidos, trocados, destruídos, idolatrados, restaurados, alcançarem valores incomensuráveis no mercado, serem destinados a um museu ou tornarem-se bens inalienáveis, adquirindo uma história, uma biografia. Nessa direção, procuro incorporar na pesquisa a instigante sugestão de A. Appadurai, organizador de The social life of things (1986), de seguir os objetos para chegar às pessoas.

Folia de reis Sagrada Família. Morro da Candelária, Mangueira-RJ. Foto: Daniel Bitter

Em meu trabalho exploro precisamente os usos sociais e simbólicos de certos objetos e procuro mostrar como eles realizam medições entre diversos domínios da ordem cosmológica entre foliões de reis. A bandeira, por exemplo, é um artefato que ostenta imagens relacionadas a certas divindades. Ela também cumpre a função de identificar o grupo de cantores e instrumentistas que a conduz, de modo similar às antigas corporações de ofício medievais que levavam seus estandartes com suas insígnias. Durante os cortejos realizados pelas folias, a bandeira é transportada pelo bandeireiro,o que exige conhecimentos específicos. Um dos argumentos importantes que apresento no livro é que quando uma folia adentra a casa de devotos, naquele momento ritual, a bandeira, não é propriamente uma representação da divindade, mas sua própria presença. Além de mediar a relação com as divindades, a bandeira também relaciona os vivos e os mortos, trazendo, ocasionalmente, um antepassado à presença dos vivos. A bandeira se insere, portanto, num contexto de relações generalizadas de trocas permanentes entre os homens, deuses e antepassados. Por meio dela circulam dádivas, contra-dádivas, bênçãos, graças, promessas e sacrifícios. Tudo isso ganha uma visibilidade particularmente dramática e eficaz, uma vez que, na cosmologia de foliões, o mundo dos vivos, dos antepassados e dos deuses mantém forte e contínua relação entre si. Foliões e devotos ordenam o mundo e lidam com os acontecimentos imprevisíveis, articulando esses múltiplos agenciamentos.

Visita da folia à casa de uma devota. Morro da Candelária, Mangueira-RJ. Foto: Daniel Bitter

A máscara, por outro lado, é um artefato usado por um personagem das folias, conhecido como palhaço ou bastião. Trata-se de um tipo caracterizado pela ambiguidade e sua máscara, de aparência grotesca, opera importantes transformações na convergência entre mito e rito. Partindo da ideia de que os objetos são categorias materializadas, percebi que a “máscara” opera sistemicamente em relação à bandeira. Se por um lado a bandeira é alvo de intensos contatos corporais (as pessoas conversam com ela, a beijam e a tocam), por outro, a máscara usada pelo palhaço é, de modo geral, evitada, por estar associada a significados negativos, ou melhor dizendo, ambíguos. Há uma relação

hierárquica entre a bandeira e a máscara, que se configura menos como uma relação entre o sagrado e o profano, e mais como uma relação entre o “sagrado puro” e o “sagrado impuro”. É preciso, entretanto,enfatizar que quando trato dos objetos, não estou lidando simplesmente com um sistema de representações, partindo de uma concepção estritamente idealista de cultura. A bandeira e a máscara operam num campo de ação e transformação extremamente dinâmico, onde os significados estão em processo e sujeitos, inclusive, a mudanças. Como bem sugeriu C. Geertz, em seu já clássico Interpretação das Culturas (1973), culturas são sistemas simbólicos que fornecem modelos de e para a realidade. Em outras palavras, os símbolos não apenas representam, mas transformam o mundo.

Uma outra ideia importante é a noção de que os objetos produzem efeitos sobre as pessoas e sobre suas relações. Essa perspectiva é fundamental, pois permite deslocar o foco da funcionalidade prática ou utilitária na direção de uma razão simbólica ou cultural, para usar uma expressão de M. Sahlins desenvolvida em seu Culture and pratical reason (1976). É, aliás, o próprio Sahlins que sustentou que as necessidades são culturalmente constituídas e que o que as pessoas consomem não são propriamente objetos úteis, mas símbolos, imagens de identidades.

Esses, eu diria, são os pressupostos básicos, a partir dos quais formulei o recorte desenvolvido no livro.

DR: Recentemente pude acompanhar o Encontro de Folias de Reis de Duas Barras no interior do estado do Rio de Janeiro. Ao apresentar um dos grupos, o locutor ressaltou o fato de que aquele era o mais “autêntico” do estado, uma vez que era o único que ainda utilizava pele de couro animal em seus instrumentos percussivos. De que modo os grupos de folia vêm incorporando elementos contemporâneos e quais as receptividades e/ou eventuais tensões que desencadeiam?

DB: Uma modalidade importante de participação das folias de reis são os encontros e festivais que ocorrem com alguma regularidade e grande vitalidade em muitas regiões do Brasil. São práticas que se desenvolvem complementarmente às ações rituais mais restritas ao ciclo festivo natalino. Normalmente organizados por instâncias de poder público ou mesmo por associações de folias de reis, esses eventos têm sua dimensão espetacular muito acentuada. Realizam-se geralmente em praças centrais de cidades interioranas. Numerosos grupos chegam das mais diversas localidades para se apresentarem num palco por um tempo estabelecido previamente, usualmente em torno de 20 a 30 minutos. O sucesso do evento depende em grande medida da habilidade do locutor, pois, como num grande espetáculo de auditório, espera-se que ele faça comentários sobre as folias, sua história ou estilo, enaltecendo suas qualidades, comparando-as etc. O público interage animadamente com os grupos e as manifestações de devoção costumam ser frequentes.

Apresentação de uma folia no Encontro de folias de reis de Duas Barras-RJ. Foto: Daniel Bitter

As festividades de reis são práticas cíclicas que guardam um sentido de renovação do mundo, das relações sociais e cósmicas e das benesses da natureza. Por essa razão, as folias de reis tendem a se manter de forma mais ou menos estável por longos períodos. Sua temporalidade pode, inclusive, assumir um caráter mítico, como na comum expressão de foliões de que a sua folia “vem do princípio do mundo”. Os grupos se estendem ao longo do tempo, e evidentemente se modificam, mesmo que a percepção de foliões seja, muitas vezes, contrária a esse fato. De modo geral, os foliões criam a imagem de que o que eles fazem é uma reprodução do que aprenderam dos mais velhos e dos antepassados e essa concepção parece ser internalizada na forma de uma consciência moral. Isso não significa que não haja espaço para as recriações e devo ressaltar que, muitos foliões expressam concretamente seu interesse em inovar, como uma forma de se diferenciar. Não penso que haja aqui uma contradição. O que acontece é que na práxis as coisas não se reproduzem exatamente de acordo com as prescrições do roteiro e certamente há um largo espaço para a invenção. Por essa razão, inclusive, as folias de reis diferem umas das outras, em estilo, música, indumentária, embora seu “fundamento” seja supostamente o mesmo. As inovações e incorporações de elementos contemporâneos se dão numa diversidade de direções. Os instrumentos de couro têm sido substituídos pelos industriais, muitas vezes, em razão da maior facilidade de sua obtenção. A bandeira, embora seja considerada um objeto de culto, é alvo de inúmeras modificações. Um dos artifícios atualmente mais procurados no comércio, para este fim, são as lâmpadas coloridas tipo pisca-pisca de fabricação chinesa que são anexadas à bandeira. Hermano Vianna notou que entre palhaços de Valença-RJ é comum a incorporação de signos da cultura de massa em suas vestimentas. Os versos improvisados dos palhaços atualizam as práticas de foliões permanentemente e assim por diante.

Registro da Folia dos Carneiros. São João de Sapucaia, Laranjal–MG. Foto: Daniel Bitter

Dentro desse contexto, o caso que você menciona é muito interessante para pensarmos a ideia de “tradição”. Herdamos uma concepção reificada da noção de “tradição” como alguma coisa que se encontra orgânica e genuinamente ligada ao passado e que deve permanecer como sempre foi na origem. Como bem mostrou J. R. Gonçalves em seu livro A retórica da perda (1996), a categoria da “autenticidade” é uma noção que ocupa um lugar central no pensamento moderno ocidental, cujos reflexos ainda podem ser sentidos hoje, em uma diversidade de situações Diante desse referencial, as práticas culturais são classificadas como autênticas ou inautênticas, sem que se perceba que há um sistema de valores operando nos bastidores.

Certamente, o locutor mencionado atribuiu uma autenticidade a um determinado grupo, como forma de enaltecer suas qualidades, baseando-se numa representação talvez um pouco “romântica” e mesmo primitivista. Os encontros de folias de reis são contextos de aproximação e colaboração entre os grupos, mas são também lugares onde as rivalidades costumam emergir com grande força. Ocasionalmente, os próprios grupos podem reivindicar o status de “tradicional” ou “autêntico”, de forma a impor uma superioridade em relação a outros grupos. Outros, ao contrário, classificam-se como inovadores e pensam que dessa forma conseguem projetar uma determinada imagem, ganhando com isso algum prestígio. Há, portanto, muitas formas de apropriação da ideia de autenticidade e de seu uso e aqui chamo a atenção para a dimensão política das diferenciações num contexto de interação.

Posso dizer, inclusive, que meu interesse em estudar um grupo de foliões de reis no Complexo da Mangueira, na cidade do Rio de Janeiro, converge exatamente para essas questões. Desejava entender como uma prática originalmente associada a contextos rurais, interioranos é resignificada em contextos metropolitanos. Interessava-me entender as mudanças e a ideia de tradição formulada por homens mulheres, crianças e idosos enredados em teias de reciprocidade. Essa foi a minha aventura. O grupo veio para a Mangueira, da zona da mata mineira, nos anos 40 e haja mudanças de lá para cá. Hoje, o mestre da folia se comunica com foliões de outros grupos através das redes sociais virtuais e esse é apenas um pequeno indício de mudanças e incorporações futuras, que talvez nem possamos imaginar.


DR: A figura do palhaço aparece na folia de reis ocupando uma posição liminar, ora associado a elementos negativos, ora positivos. Gostaria que falasse sobre essa ambiguidade e os aspectos performativos dos palhaços nos giros de folia.

DB: O palhaço, com sua máscara assustadora e seus gestos irreverentes, é um personagem fascinante e não há quem permaneça indiferente a sua presença. Conforme testemunhei inúmeras vezes, sua performance se desenrola da seguinte forma: uma extensa roda de espectadores se forma e ao sinal do toque acelerado da sanfona e dos instrumentos de percussão, o palhaço pede licença ao dono da casa para iniciar sua apresentação, na qual realiza acrobacias virtuosísticas e declama versos memorizados ou improvisados de acentuado caráter cômico. Há uma forte interação entre o público e o palhaço e seu jogo está em tirar proveito do dinheiro ofertado pela assistência em troca de entretenimento. A chamada “brincadeira” do palhaço é, entretanto, apenas uma parte das ações das folias de reis, que se mostra bastante contrastante com a atitude dos demais foliões, por sua vez marcada pelo caráter solene.

Palhaço Trinca-ferro. Mangueira-RJ. Foto: Daniel Bitter

Os significados do palhaço podem variar dependendo da localidade em que se manifesta, mas um aspecto que lhe é inerente é sua forte ambiguidade. Penso que o palhaço retira sua força exatamente de sua ambivalência e que o que o torna atraente é o fato de ser simultaneamente perigoso e criativo. O antropólogo V. Turner (1920-1983) explorou a ideia de liminaridade, que caracteriza os ritos de passagem, como, por exemplo, os de mudança de status. Turner sugeriu que o indivíduo que experiencia esse rito é investido de características ambíguas, tornando-se perigosamente antissocial. Por essa razão, frequentemente usa algum tipo de máscara e é isolado do grupo.

O palhaço é muitas vezes alvo de tabu, e por isso, é cercado de obrigações e restrições. Quando mascarado, é impedido de entrar em igrejas ou outros lugares de culto, de se aproximar da bandeira ou mesmo de comer junto aos demais foliões. No estado do Rio de Janeiro, o palhaço é reconhecido como a encarnação da figura mítica de Herodes ou de seus soldados que teriam perseguido o menino Jesus, com o propósito de matá-lo. Nessa perspectiva, o palhaço é associado a significados negativos, mas isso não é tudo. Argumento no livro que o palhaço é um importante operador ritual, permitindo uma reflexão do grupo sobre a ordem cósmica, perpetuando-a e atualizando-a, uma vez que ele tem o poder de transitar por diferentes domínios e de estar sujeito a uma reversibilidade simbólica. No conjunto das atividades de foliões e devotos, há um momento particularmente relevante no qual se despede da bandeira e do ciclo festivo anual. Na ocasião, os palhaços são solenemente chamados pelo mestre da folia para retirarem suas máscaras e se aproximarem de joelhos da bandeira, quando então são benzidos. Diz-se que os palhaços estão pedindo perdão pela perseguição ao menino Jesus, declarando-se arrependidos. Trata-se, efetivamente, de uma conversão simbólica, que vem reforçar valores associados à coesão do grupo.

Turner foi o grande teórico da ambiguidade e sua sugestão de que a liminaridade é particularmente propícia à emergência de novos padrões, modelos e paradigmas, tem aqui uma ressonância realmente notável.
DR: Em seu livro as imagens são um elemento de destacada importância. Qual a sua relação com o universo visual e qual o espaço da fotografia na construção etnográfica de sua tese?

 

DB: Como disse anteriormente, sempre estive ligado às artes visuais e musicais. Uma aproximação minha a qualquer objeto de estudo vem inevitavelmente acompanhada de uma aguçada sensibilidade estética e creio que isso revela como os aspectos biográficos influem no modo como conduzimos o trabalho de pesquisa. Procuro, contudo, ter o cuidado de não me levar ingenuamente a enfatizar essa dimensão, quando ela realmente não é proeminente no contexto estudado. As imagens, a fotografia e também a teoria estão a serviço do trabalho de campo e não o contrário. É o campo quem aponta as direções. O caso aqui em particular é que entre folias de reis, a dimensão estética é, de fato, muito pronunciada e isso potencializa a produção de imagens e os sentidos que elas ganham no conjunto da pesquisa. Em suma, é um assunto que pede imagens.

O lugar das imagens na produção etnográfica não é o de ilustrar um determinado evento, mas o de precipitar dados para a análise. No meu caso, penso que as imagens me auxiliaram muito no estudo dos rituais, permitindo fixar enquadramentos, sequências etc. Um outro aspecto importante sobre o lugar da fotografia na produção etnográfica diz respeito à mediação que ela exerce na construção das relações do pesquisador em campo. Isso me ajudou muito a fortalecer laços de confiança e reciprocidade. Forneço sempre toda a produção imagética, sonora e textual para os meus interlocutores e me coloco sempre à disposição para ouvi-los.

Penso que ainda não nos demos conta do potencial que as imagens contêm para a análise social e cultural de contextos diversos em função da supremacia histórica da escrita. Isso é um paradoxo diante de um mundo que se tornou, sobremaneira, imagem. A antropologia visual está em franca expansão, fornecendo instrumentos analíticos e metodológicos relevantes e propondo novos paradigmas para a teoria social. O uso que faço de imagens no trabalho de pesquisa é uma modesta aproximação a esse campo.
DR: Logo na introdução de seu livro, você ressalta a dificuldade de realização de pesquisa de campo em grandes centros urbanos, dada a crescente violência. Como essa questão perpassou sua pesquisa e de que modo se faz presente no cotidiano dos grupos de folias de reis?

 

Não dá para tratar esse assunto com romantismo. As favelas são cenários de profunda desigualdade social, duplamente marcadas pela segregação da sociedade abrangente e pela opressão de traficantes e policiais. Mas as favelas também são lugares onde se desenvolvem expressões culturais singulares e teias poderosas de solidariedade, e esse foi o assunto sobre o qual me detive. Não obstante, não pude simplesmente fechar os olhos para o problema da violência e de sua influência na vida das pessoas com quem me relacionei ao longo do trabalho de campo. Cruzar o caminho de soldados do tráfico pesadamente armados, não foi uma experiência agradável, nem se apresentou sem algum risco. Adentrar um complexo como o da Mangueira, implica em transitar por territórios delimitados por regras e códigos onde se desenvolve uma atividade que, como bem sinalizou A. Zaluar, envolve diversos setores da sociedade, atravessando fronteiras transnacionais. A favela é a ponta de um iceberg, a sua parte visível, a qual se atribuiu uma imagem negativa.

No livro, inicio um dos capítulos narrando o episódio em que os “soldados” do tráfico apontam suas armas para os foliões, tendo como alvo, em particular, os palhaços. Na sequência deste evento, uma saraivada de tiros é disparada para o alto O fato, em questão, me levou a discutir a liminaridade, que caracterizaria ambas as partes. Os palhaços tornaram-se alvo da mira dos soldados, precisamente por sua ambiguidade. Abordo também a ideia de “enquadramento” interativo, na forma de um “jogo” envolvendo foliões e traficantes. Evidentemente, tudo não passou de uma “brincadeira”, mas o meu argumento é que nem todos os foliões compartilharam os códigos dessa moldura e muitos a interpretaram como um desrespeito à prática devocional da folia. A notícia desse episódio acabou por chegar ao chefe do tráfico que teria efetivamente afastado os envolvidos, num gesto de reprovação de suas ações.

O que gostaria de chamar atenção é para a imbricação desses mundos. Foliões e traficantes não vivem em universos completamente apartados. Está tudo muito misturado. Sabemos que muitos dos que estão envolvidos no tráfico mantém relações de parentesco com foliões e que traficantes podem, inclusive, receber a visita da folia em sua residência. Há casos de foliões que migraram para o tráfico e vice-versa. Entretanto, a natureza das relações que fundamentam essas atividades, parece ser bem distinta. Entre foliões, predomina a relação de troca, de solidariedade, de parentesco e vizinhança, assentada numa forte moral. Já as relações de consanguinidade ou de compadrio não necessariamente são importantes no fortalecimento de laços de confiança entre agentes do tráfico.

De modo geral, percebe-se que a violência influi decididamente na vida cotidiana das pessoas que ali vivem e para isso basta constatar as histórias dramáticas nas quais parentes, amigos e vizinhos estão envolvidos. Creio que as práticas de foliões de reis são uma forma de as pessoas suportarem essa situação e de verem o mundo de um modo menos brutal.

DR: Ao lermos a publicação ficamos sabendo que você integrou, por certo período, o grupo de foliões da Mangueira. Como se deu essa sua entrada e que repercussão isso tem para as observações etnográficas que você faz?

DB: Minha entrada no grupo se deu de forma bastante tranquila, sem mediações. Fui convidado pelo mestre a assumir uma posição ritual e isso só se tornou possível, em função dos conhecimentos musicais que detenho. A música foi, portanto, um instrumento fundamental de interação, uma língua, por assim dizer, comum. Por meio dela, compartilhei sensibilidades, emoções e saberes.

Assumir uma função dentro do grupo teve consequências importantes para o trabalho. A primeira delas é que o grupo foi encontrando um lugar para mim, um sentido para a minha presença. Primeiro, fui classificado como jornalista, depois como professor. Tenho a impressão que até certo ponto, tornei-me invisível, misturando-me aos demais, embora uma ambiguidade de fundo sempre tenha permanecido.

Em segundo lugar, julguei que entrar para o grupo e realizar efetivamente uma observação participante, me renderia boas informações para uma etnografia cuidadosa. Na condição que assumi, tive a oportunidade de aprender as regras de conduta, os cantos e toques e mais do que isso, de vivenciar uma experiência particularmente intensa e profunda. Evidentemente, passei muitos momentos agradáveis na Mangueira, mas ao lado disso, tive de passar noites em claro, participar de caminhadas intermináveis sob o sol escaldante dos verões cariocas, cumprir regras rígidas, levar broncas e tudo o mais. Todas essas penosas experiências me ajudaram a compreender melhor uma noção que, para foliões, guarda um sentido profundo: “sacrifício”. No livro, esclareço que para mim a experiência também foi vivida como um tipo de sacrifício, com um sentido particularizado. Na perspectiva de foliões, o significado parece estar associado às obrigações e ao compromisso estabelecido com as divindades, um compromisso que tende a se perpetuar, em função de graças alcançadas, para as quais, muitas vezes, não há pagamento que baste. Nessa direção, o sacrifício corporal (e sua dramatização pública) juntamente com o sentimento de cumprimento da obrigação têm uma centralidade notável nas práticas de foliões. É preciso ainda dizer que, na visão de mundo de foliões e devotos, as divindades são vistas também como sendo vingativas diante do descumprimento de certas obrigações. Tenho pensado que no fundo, essas pessoas se embrenham num empreendimento muito perigoso.

Finalmente, penso que ter participado das atividades, ajudou-me a tornar a famigerada relação pesquisador/pesquisado; eu/eles, talvez um pouco menos assimétrica. Foi uma tentativa de deslocar o olhar sobre a diferença, a descontinuidade para a continuidade, a interlocução, abrindo espaço para a troca de perspectivas. Uma consequência importante disso é que me vi enredado na teia de reciprocidades e afetividades juntamente com os demais. Todos os meus gestos foram, todo o tempo, enquadrados nessa trama interativa. Minha maior dificuldade, em tudo isso, foi sair do campo. Não participo mais das atividades do grupo, mas, de certo modo, até hoje continuo atrelado a esta rede onde fiz amigos duradouros. De resto, foi um encontro com pessoas verdadeiras, dotadas de um senso de humanidade muito aguçado. Agradeço pela oportunidade de ter vivido essa experiência e pelo cuidado a mim dispensado.

Palhaços. Duas Barras-RJ. Foto: Daniel Bitter

** Daniel Bitter é mestre em História da Arte pela EBA/UFRJ, doutor em Antropologia pelo IFCS/UFRJ e professor adjunto do departamento de Antropologia da UFF. Sua tese de doutorado recebeu o primeiro lugar no prêmio Sílvio Romero, CNFCP-Iphan, 2008 e foi publicada sob o título A bandeira e a máscara. A circulação de objetos rituais nas folias de reis, pela 7 Letras/CNFCP-Iphan, 2010. É membro fundador da Associação Cultural Caburé.

* Daniel Reis é doutorando em Antropologia pelo IFCS/UFRJ e antropólogo do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular-Iphan. Tem realizado pesquisas sobre patrimônio, museus, objetos e coleções e cultura popular.

 

 

História do Futuro | de Milton Machado*

…le transitoire, le fugitif, le contingent, la moitié de l’art, don’t l’autre moitié est l’éternel et l’immuable…” (Baudelaire)

 

Prólogoi

Teoria e prática

 

Fragmentação, os leitores poderão pensar, seria uma imperfeição deste texto. E argumentar que História do Futuro – trabalho ao qual o texto e seu título se referem – é sobre a fragmentação seria uma justificativa imperfeita. O trabalho História do Futuro não é apenas sobre a fragmentação, e fragmentação não é a única imperfeição deste texto. História do Futuro é também sobre as imperfeições, mas todas as imperfeições deste texto são (d)este texto. Para além das justificativas, História do Futuro tem se desenvolvido, de fato, por meio de fragmentos; e entre outras coisas trata-se, afinal, de um trabalho sobre a fragmentação. Este texto é um fragmento daquele trabalho-em-progresso.

Iniciei História do Futuro (HF) em 1978, com duas séries de desenhos a lápis sobre papel e um Texto Descritivo. Em 1985, História do Futuro foi tema de minha dissertação de mestrado em planejamento urbano (MSc., IPPUR/UFRJ 1985), escrita bem mais elaborada do que minhas descrições preliminares, em que tive que acomodar, não sem dificuldades, as fictícias Cidades-Mais-que-Perfeitas, o imenso cubo Módulo de Destruição, os diminutos e esféricos Nômades e outros elementos e personagens imaginários de HF com cidades reais, edifícios reais, habitantes reais e problemas reais do planejamento urbano.

Em 1991, mais uma vez precisei submeter as ficções de HF a testes de produtividade nos laboratórios do real, quando o trabalho ganhou a forma de uma instalação, com desenhos, esculturas e fotografias, todos relacionados a HF, em Interventi, exposição individual no Museo Civico Gibellina, na Sicília, Itália. História do Futuro parte de narrativas sobre cataclismos, desta vez reais, que a ciência indica terem de fato ocorrido, mas tanto tempo atrás – no período Cambriano – que os vestígios de sua história chegam a nós, neste presente, inevitavelmente borrados pelos informes contornos de nossa imaginação. E HF também fala da destruição de cidades – desta vez imaginárias – e de sua reconstrução. Pois a pequena nova cidade real de Gibellina, onde a exposição e meu trabalho partindo de narrativas sobre cataclismos vieram a ocorrer, é justamente uma cidade reconstruída: em 1968, a pequena velha cidade real de Gibellina foi totalmente destruída por um terremoto. Se minhas ficções passarem no teste, e se minhas analogias provarem ser produtivas, os bravos habitantes da grande Cidade-Mais-que-Perfeita de Gibellina poderão muito bem exemplificar os meus Nômades.

Pois eis aí uma fragmentária cronologia de HF: 1978-1985-1991… E aqui e agora, em Londres, 1999ii, eis a tese “After History of the Future“. “After History of the Future” é este texto. Complementa-o, correspondendo a demandas acadêmicas, uma apresentação de desenhos e fotografias a ele relacionadosiii. Este texto, estes desenhos e fotografias e esta tese são fragmentos do trabalho História do Futuro. Em plena continuidade.

História do Futuro é um trabalho sobre muitas coisas. É sobre terremotos, entre outros cataclismos, reais e imaginários. É um trabalho sobre as crises. Sobre fissuras, sobre rupturas. É sobre terras, campos, territórios, sobre a separação de campos e de territórios. É sobre o anseio pela unidade e sobre projetos de reunificação. É sobre desterritorializações e reterritorializações. É sobre as pontes, sobre a constituição de conexões [throwing brigdes], sobre a efemeridade e a permanência das pontes e das conexões. É sobre as imperfeições e incompletudes de nossos projetos e sobre nosso anseio pelas completudes e pelas perfeições. É sobre construção, destruição e reconstrução. É sobre margens, fronteiras e limites, sobre advertências de que “os limites não devem ser ultrapassados” (“… as margens estritas de meus papéis de desenho”) e sobre a exigência de que “todos os limites devem ser ultrapassados”, quando nos for exigido conhecer os limites e conhecer aquilo que delimitam. É sobre a lei e a relatividade das leis. É sobre a norma, as proibições e as transgressões. É sobre o movimento e sobre a diferença, sobre a diferença como causa do movimento. É sobre cavernas, sobre habitações e desabitações. É sobre o sedentarismo e o nomadismo. Sobre a atividade e a passividade, sobre ação e reação, vida e morte. É sobre as trajetórias, sobre não saber para onde ir e seguir sempre seguindo. É sobre a mobilidade e a velocidade. Sobre as perseguições, as escapadas, sobre brincar de gato e rato, de esconder e de pegar. É sobre os jogos, e poderia muito bem ser sobre computer games. É sobre as redes, os sistemas, os complexos. É sobre geometria e perspectiva. Sobre esferas e cubos, sobre esferas que atravessam cubos, sobre bolas de pingue-pongue que atravessam paredes de concreto. É sobre planejamentos e sobre colocar os planos em perspectiva. Sobre arquitetura e sobre “arquitetos sem medidas”. Sobre cidades, sobre a fundação de cidades. É sobre migrar de uma cidade para outra. É sobre lugares, sobre perder o lugar, sobre encontrar e reencontrar lugares, sobre eventos fundadores de lugares. É sobre o tempo, sobre a passagem do tempo, sobre perder-se tempo. É sobre o espaço, sobre “o liso e o estriado” (Deleuze e Guattari). É sobre encontros, reuniões e intercursos, sobre desencontros e conflitos. É sobre as exemplificações, as ilustrações, as representações. Sobre metáforas e metafísicas. Sobre modelos e sobre a insuficiência dos modelos. É sobre cifras e números. Sobre a contagem e o dar-se conta, sobre a promessa e o débito. É sobre a continuidade e a interrupção, sobre corrimentos e escorrimentos, fluxos e refluxos. É sobre os começos, sobre os fins, sobre os intervalos, sobre as modulações. Sobre os adiamentos, as transferências, as demoras. É sobre os tiques, sobre os tique-taques. É sobre analogias. Sobre as analogias e as conexões entre começos e fins. É sobre as origens. Sobre as narrativas. Sobre a criatividade. Sobre o excesso. É sobre o personagem conceitual Nômade como “figura emblemática do homem como criador”. É sobre artistas, e é sobre arte. É sobre a fragmentação e a imperfeição. E, naturalmente, é sobre as histórias e sobre os futuros.

História do Futuro é um trabalho sobre muitas coisas e sobre trabalhos que pretendem ser sobre muitas coisas. História do Futuro é sobre aquilo que é, assim como é. História do Futuro é sobre sua exterioridade. Assim como este texto, que é sobre muitas coisas, além de ser sobre o que não é. Este texto é sobre, é exterior a, e depois é, ou terá sido História do Futuro. Este texto fragmentário pretende registrar uma trajetória essencialmente pessoal de um leitor/pesquisador buscando/rebuscando, movendo-se de um texto a outro. Esse mover-se de-a, esse to-and-fro, é uma lógica deste trabalho em progresso.

Jacques Derrida diz que “a leitura é transformadora”. Se as analogias de HF mais uma vez provarem ser produtivas, cada um desses textos terá sido como uma Cidade Mais-que-Perfeita. E se minha escritura provar ser transformadora, terei viajado através desses textos como os Nômades. No entanto, a única garantia imperfeita é de que se trata, este, de um texto de artista – o que garante muito pouco.

Abaixo, forneço uma descrição dos elementos, mecanismos, funcionamentos e personagens de HF. Os textos descritivos são ilustrados com reproduções reduzidas dos desenhos originais, a lápis sobre papel, de 1978. Os desenhos originais jamais foram expostos.iv v

 

História do Futuro

Notas do Texto Descritivo de 1978, com expansões.

Essa seção é ilustrada com reproduções de 11 dos 14 desenhos originais de HF, também de 1978.

 

Introdução

História do Futuro (HF) é um trabalho em progresso, iniciado em 1978 com uma série de 14 desenhos a lápis sobre papel. Os três primeiros desenhos são, mais precisamente, um texto manuscrito ilustrado com diagramas, nos quais os elementos de representação, suas configurações e organização espacial, os movimentos e mecanismos que ativam esse universo ficcional são devidamente nomeados e descritos. Em 1985, o trabalho foi objeto – e forneceu o título – de uma dissertação de mestrado em planejamento urbano (MSc., IPPUR-UFRJ, 1985). Entre dezembro de 1990 e janeiro de 1991, uma série de esculturas, painéis fotográficos e desenhos, além de textos incluídos no catálogo (de minha autoria e do crítico Achille Bonito Oliva), todos relacionados com o trabalho, foram produzidos para a exposição individual Interventi, no Museo Civico Gibellina, Sicília, Itália.

Origens

As primeiras ideias, fundadoras do trabalho, vieram com a leitura do livro “A Escripta Pré-histórica no Brazilvi, do paleontólogo Alfredo Brandão, do qual encontrei um desgastado exemplar em um sebo do Rio de Janeiro. A partir da observação e comparação entre desenhos rupestres encontrados no Brasil e na África e brindando o leitor com fascinantes narrativas, propunha-se o autor a fornecer provas da existência do Pangea, o continente único cercado por oceanos que teria constituído a superfície da Terra no período cambriano: uma proposição que, na época – o livro é de 1937 – era ainda hipotética e especulativa. Depois de sucessivas divisões e separações de territórios, resultantes de cataclismos naturais causados por fissuras da crosta terrestre (que o autor refere, em francês, como os plissements), a configuração geral do planeta se modificou, “fazendo surgir mares de onde era terra, e terra emergir de onde eram mares”.

Meus planos iniciais, projetos de um “arquiteto sem medidasvii, eram de conceber e desenhar um sistema de pontes gigantescas, artefatos humanos destinados a re-unir os continentes atualmente separados, de modo a restabelecer, gradual, progressiva e artificialmente, a primitiva unidade natural do Pangea.

Nos desenhos de 1 a 5 da série I, um modelo arquetípico de ponte – uma simples estrutura de pilares, vigas e lajes – é representado, servindo de ligação entre duas porções de terra. Essa Ponte Simbólica foi mantida nas representações de HF como uma espécie de marco arquitetônico, mas também como memória de minhas primeiras ideias – marco conceitual inaugural – antes mesmo da existência concreta do trabalho.

A ideia de um projeto de restituição da unidade física entre continentes, que inicialmente gerou e justificou as representações gráficas do universo de três mundos superpostos de HF e seus personagens fictícios, expandiu-se significativamente: da mera descrição da mecânica, ou melhor da dinâmica dos movimentos descritos, para reflexões críticas sobre a ideia de unidade como enunciado geral – portanto com caráter de idealidade, de grande narrativa – subjacente ao projeto de afirmação da própria condição humana (idealidade já contida no tratamento dessa mesma condição, necessariamente fragmentária, recorrentemente “como um todo”), e sobre a ideia de progresso – em que a persecução de ideais de perfeição fornece paradigma e método – que empresta ao processo cognitivo (“como um todo”, por assim dizer) um caráter, também, de idealidade.

Assim, aos já pouco modestos desígnios de um “arquiteto sem medidas” incorporaram-se as pretensões de um “filósofo do desmesurado”; mais do que isso, dando lugar a projetos de um filósofo-amador (embora PhD) que é artista-de-ofício (embora auto-didata), às voltas com complexas investigações multidisciplinares. Seria acurado dizer, por exemplo, que foi o rigor necessário ao empreendimento o que me levou (de 1978 a 1980) a frequentar um curso de especialização em urbanismo; depois (de 1980 a 1985) um programa de mestrado em planejamento urbano. Da mesma forma quando, procurando tomar emprestado ao Nômade um pouco de sua redonda mobilidade, transferi-me para a Inglaterra, onde passei 7 anos (de 1994 a 2001) dedicado a meu doutoramento em Artes Visuais.

 

Notas sobre o Mundo Mais-que-Perfeito, o Mundo Perfeito e o Mundo Imperfeitoviii (do Texto Descritivo de 1978)

 

Mundo Mais-que-Perfeito

O Mundo Mais-que-Perfeito é formado pelas Cidades-Mais-que-Perfeitas e pelos Módulos de Destruição. As representações das Cidades Mais-que-Perfeitas (no Mundo Mais-que-Perfeito) não diferem muito das representações de cidades reais. Isso se justifica pelo fato de as Cidades Mais-que-Perfeitas serem desconhecidas (pois não existem), não podendo ser devidamente representadas, como em um retrato. Toda tentativa de representação desse mundo será necessariamente imperfeita e imprecisa. No Texto Descritivo de 1978, diz-se desse mundo que ele mimetiza as configurações do Mundo Imperfeito e do Mundo Perfeito, aos quais se superpõe.

O Mundo Mais-que-Perfeito é um mundo que escapa das categorizações, exceto que é um mundo imaginário. O Mundo Mais-que-Perfeito é uma necessária invenção. Foi necessário inventá-lo para que eu pudesse falar do Mundo Imperfeito e do Mundo Perfeito. E para poder olhar tais mundos em perspectiva, como que à distância. Todos os mundos de HF são metafóricos; mas sem o Mundo Imperfeito e o Mundo Perfeito como metáforas, não seria possível dizer de quê o Mundo Mais-que-Perfeito é uma metáfora.

Mundo Perfeito

Metáfora: Nos textos descritivos de 1978, diz-se do Mundo Perfeito (formado por Pilares do Novo Mundo, Pontes Efêmeras e Plano Ideal) que este é o mundo do Estado.

Tudo nesse mundo é superlativo. Entre o imperfeito e o mais-que-perfeito, esse mundo é o perfeito intermediário. Tudo muda constantemente nos outros dois. Aqui, sempre é o Mesmo. O Mundo Perfeito é idêntico a si mesmo.

Mundo Imperfeito

O Mundo Imperfeito é constituído por continentes, oceanos e pela Ponte Simbólica.

Nos textos descritivos de 1978, diz-se deste mundo que seus habitantes compartilham um projeto comum, dedicando-se a uma busca permanente da perfeição.

A Ponte Simbólica é um símbolo dessa necessidade e dessa causa.

Metáfora: O Mundo Imperfeito é um mundo de produções e trabalhos.

Cavernas

As Cavernas conectam o Mundo Mais-que-Perfeito ao Mundo Imperfeito, atravessando os três elementos constituintes do Mundo Perfeito. As entradas das Cavernas podem ser encontradas no Mundo Mais-que-Perfeito. Suas saídas podem ser encontradas no Mundo Imperfeito. O Mundo Imperfeito é a saída [way-out]. Não há retorno possível – não através das Cavernas – do Mundo Imperfeito para o Mundo Mais-que-Perfeito. Se houver a possibilidade de retornos, estes serão de outro tipo, e por outros meios.

Outros elementos de História do Futuro. Personagens, habitantes, ocupantes

A data: agosto de 2126. Dia do Juízo Final. O lugar: a Terra. Por todo o planeta, uma população angustiada busca esconderijos. Para bilhões, não há para onde ir. Alguns escapam para as profundezas, desesperadamente à procura de cavernas e minas desativadas, ou lançam-se ao mar em submarinos. Outros, descontrolados e às cegas, agem como assassinos. Muitos simplesmente sentam-se, imóveis, esperando pelo fim.” (Paul Davies, Countdown to Doomsday, jornal The Independent (suplemento Science), Londres, 25 de setembro de 1994).ix

 

A citação é de uma história de um futuro bastante diferente de HF (é pouco provável que minha História do Futuro venha a ser publicada no suplemento científico de um jornal; e, apesar das aparências, HF é também sobre o otimismo, em sua produtiva forma de pessimismo). Mas a passagem fornece descrições que podem ser incorporadas – metaforicamente – pelas ficções de HF.

Diz-se, nos textos descritivos de 1978, que as Cidades Mais-que-Perfeitas são habitadas. Os personagens imaginários de HF são nomeados de acordo com as três diferentes ações (ou reações) que possam ter, diante do processo de destruição ativado pela passagem do Módulo de Destruição, durante um Ciclo de Destruição. Tais habitantes são de três tipos:

1. O sujeito da Morte Vulgar

Poderia ser dito deste personagem que ele “simplesmente se senta, imóvel, esperando pelo fim”. Em HF, o sujeito da Morte Vulgar morre com a Cidade Mais-que-Perfeita. Em HF, as ações deste personagem são do tipo passivo.

2. O Sedentário

Poderia ser dito do Sedentário que este personagem “escapa para as profundezas, à procura de cavernas e minas desativadas, ou lança-se ao mar em submarinos”.

O Sedentário busca as entradas das Cavernas, onde encontra refúgio. Através das Cavernas, o Sedentário deixa o Mundo Mais-que-Perfeito, cruza o Mundo Perfeito, para daí chegar ao Mundo Imperfeito. Chegando ao Mundo Imperfeito, o Sedentário se une a outros habitantes desse mundo em sua permanente busca pela perfeição (Texto Descritivo, 1978).

Em HF, as ações do Sedentário são do tipo reativo.

3. O Nômade

O Nômade se move. Em HF, as ações do Nômade são do tipo ativo.

(em diferentes histórias de diferentes futuros, os Nômades poderiam ser descritos como “outros [que], descontrolados e às cegas, agem como assassinos”. Mas esta seria uma descrição imperfeita – e injusta – dos Nômades de HF).

O Nômade se transfere de uma Cidade-Mais-que-Perfeita que acabou de passar por seu Ciclo de Vida e cujo Ciclo de Destruição está para começar. O Nômade se move de um Ciclo de Vida para um outro, próximo, Ciclo de Vida. O Nômade vive em, e vive com as Cidades-Mais-que-Perfeitas.

Se o Nômade conseguir manter sua mobilidade e sua trajetória de uma a outra Cidade-Mais-que-Perfeita, este [it]x conquistará para si mesmo uma forma de eternidade (analogia: no sentido, talvez, da “forma móvel de eternidade” referida por Platão. Uma condição que as criaturas humanas – os personagens de Platão são seres humanos, não diminutas esferas – conquistam através da produção de filhos, dos discursos, dos trabalhos, da política).xi

A existência do Nômade é de um tipo mais-que-perfeito. Nômades são, em princípio, desconhecidos (pois não existem), e não podem ser adequadamente representados, como em um retrato.

Mais será dito sobre o Nômade, abaixo.

Representação dos personagens

O sujeito da Morte Vulgar é representado por vazios, lacunas, vãos, páginas em branco. Isso equivale a dizer que esse personagem é desprovido de representação (ou que suas representações são simplesmente omitidas).

O Sedentário é representado pelo contorno de uma figura antropomórfica (mas não pretende, em princípio, representar uma mulher ou um homem).

O Nômade é representado por uma pequena esfera.

Mais a respeito do Nômade e do Módulo de Destruição

O Nômade se move, transfere-se de uma Cidade-Mais-que-Perfeita para outra, de um para outro Ciclo de Vida. Mas essa ação não pode ser consumada antes de o Ciclo de Construção da Cidade-Mais-que-Perfeita para a qual o Nômade está se transferindo ter sido completado; isto é, quando os três ciclos simultâneos – Construção, Vida e Destruição – estiverem completos. Esta é a situação-limite representada nos desenhos 7 e 11 da Série II: quando os três ciclos simultâneos chegam ao fim, os Módulos de Destruição encontram-se na Posição Alfa de suas respectivas cidades.

Se a Posição Alfa é onde o Módulo de Destruição se encontra imobilizado – por um período infinitesimal de tempo, antes que se inicie a próxima sequência de ciclos simultâneos – o Nômade terá que “negociar” a Posição Alfa com o Módulo de Destruição.

“Negociar uma posição” são termos simplificados para se referir ao encontro entre Módulos de Destruição e Nômades. Outros termos poderiam ser:

Afetar e ser afetado. Atravessar e ser atravessado. Penetrar e ser penetrado. Possuir e ser possuído. Experimentar todo tipo de intercurso. Combater e ser combatido. Confrontar e ser confrontado. Mudar [change] e trocar [exchange]. Provocar. Desafiar. Conflitar-se com. Fazer acordos com. Trair. Trapacear. Romper, romper com. Rebelar-se contra. Diferir. Identificar-se com. Fazer-se um com. Jogar com. Ativar… [etc.com]

O Módulo de Destruição é um imenso cubo.

O Nômade é uma esfera diminuta.

Nômades e Módulos de Destruição se relacionam na base de suas diferenças.

O Nômade desliza quando o Módulo de Destruição estaciona.

O Nômade é o rato, o Módulo de Destruição é o gato.

O Nômade põe o Módulo de Destruição para correr.

O Módulo de Destruição põe o Nômade para correr.

As ações do Módulo de Destruição são ativas em relação às Cidades-Mais-que-Perfeitas, que o Módulo destrói, constrói ou deixa viver. Mas são reativas em relação às ações do Nômade.

Penetrando (etc. etc.) o Módulo de Destruição, o Nômade coloca o universo inteiro (i.e., o universo fragmentário de HF) em movimento (põe o universo para correr), transformando-o. Causa ativa: em História do Futuro, O Nômade é o verdadeiro motor e a causa de todos os movimentos.

 

Fast forward

O Nômade se move.
A motivação do Nômade é a motividade.
O Nômade é uma invenção.
O Nômade é um fundador de cidades.
O Nômade é um iniciador.
O futuro do Nômade é iniciar o presente de uma cidade.
O Nômade é um tradutor [translator].
Os movimentos do Nômade são vetoriais, não direcionais.
O Nômade age por meio de permanentes desterritorializações.
O Nômade age por meio de permanentes reterritorializações.
O Nômade age por meio de permanentes transgressões.
O Nômade age por meio de permanentes incorporações.
O Nômade age por meio de negações e excessos.
O Nômade age por meio de variações, expansões, conquistas, capturas, ramificações.
O Nômade coleciona, mas não constitui álbuns.
O Nômade não é particularmente chegado às generalidades.
O Nômade não é particularmente chegado a generais.
O Nômade é um produtor de mapas dos quais ele constantemente se desprende.
O Nômade age por meio da repetição e da afirmação da diferença (mais de um milhão de vezes).
O Nômade está sempre no meio (“dans le milieu“), mesmo quando está no início ou no fim.
O Nômade está sempre nos espaços-entre.
O Nômade está sempre in-between.
O Nômade vê as coisas como pela primeira vez.

 

“Onde você vai? De onde você vem? O que espera encontrar mais além?” Para o Nômade, “essas perguntas são totalmente inúteis.xii

 

O Nômade é um passante [passer-by].

 

Uma coisa é a geografia do habitante. Outra é a geografia do passante. Um passante faz com que as distâncias se aproximem. Mas logo ali, e outra vez, eis a Distância.

Um passante exercita uma espécie de maestria sobre as dimensões. Dimensões tornam-se perspectiva, geometria. Mas logo ali, e outra vez, eis o Horizonte. Nem sempre pode um passante ter alguma coisa à mão. Mas ele/a sempre tem alguma coisa em vista. Para que um passante possa ter algo em vista, escalar montanhas ou subir em árvores (como o grego Theoros, que escalava montanhas e subia em árvores para liderar o exército para mais além da geografia) pode constituir uma medida lucrativa.

Para um passante, “uma medida lucrativa” é uma noção totalmente diferente da noção que um proprietário de terras tem de “uma medida lucrativa”. Passantes não pertencem a lugar nenhum. As etiquetas do passante relativas à propriedade [propriety] e à posse [property] são reguladas por uma economia própria do próprio. Passar por um campo de flores e subir em árvores podem ser razões suficientes para o passante ser alvejado por tiros. A passagem pode ser facilmente confundida com a invasão.

Um passante tem dificuldades de imediatamente reconhecer os limites e os intervalos (ainda que ele/a imediatamente reconheça quando está sendo alvejado/a!); mas isso não impede que ele/a articule teorias sobre os limites e os intervalos (geo-metria, perspectiva…).

Nos dramas de HF, o Nômade é o protagonista.

 

Analogias. Margens e molduras

Diz-se no Texto Descritivo de 1978 que este universo só faz sentido dentro das margens estritas de meus papéis de desenho.

O Nômade, o Sedentário e o sujeito da Morte Vulgar são personagens conceituais (Deleuze e Guattari) de HF. No entanto, pode vir a ser necessário fazer analogias entre os personagens de HF e o mundo real de pessoas reais, nossas cidades, nossos trabalhos, movimentos, projetos, sonhos e desejos. Com nossas histórias e nossos futuros. Margens devem então ser abertas, e os enquadramentos [frames] expandidos. Toda nova ocorrência do trabalho é uma tentativa de articular novas analogias, de romper os limites da margem, de expandir o alcance dos enquadramentos. As analogias abrem o trabalho para sua exterioridade.

Em uma analogia proposta pelo trabalho História do Futuro, o Nômade é identificado como a “figura emblemática do homem como criador”. Um artista, mas no sentido de que “todo homem é artista” (como desejado por Joseph Beuys).

Mas, se o Nômade fosse humano, da mesma maneira o seriam o Sedentário e o sujeito da Morte Vulgar. Se analogias vierem a ser feitas, todos os três identificariam um mesmo homem, ou uma mesma mulher. Apenas nesse caso poderiam ser referidos como “ele”, ou “ela”. Eles e elas, como nós.

 

 

Milton Machado é artista plástico. Arquiteto pela FAU / UFRJ (1970), mestre em Planejamento Urbano pelo IPPUR / UFRJ (1985) e doutor em Artes Visuais pelo Goldsmiths College University of London (2000). Desde 1970, tem participado de diversas exposições individuais e coletivas no Brasil e no exterior. Possui textos publicados em livros, revistas, jornais e websites. É professor associado do Departamento de História e Teoria da Arte e do PPGAV-Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Escola de Belas Artes EBA / UFRJ. É pesquisador do CNPq.

Informações curriculares mais detalhadas podem ser encontradas em:

http://www.iniva.org/library/archive/people/m/machado_milton
http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=artistas_biografia&cd_verbete=2810&cd_idioma=28555&cd_item=1
http://www.nararoesler.com.br/artistas/milton-machado

 

 

i Este texto foi traduzido de uma seção da tese After History of the Future: (art) and its exteriority, PhD Fine Arts, Goldsmiths College University of London, 2000. Aparece aqui com algumas modificações.

ii Londres e 1999 fazem parte de histórias do futuro.

iii O programa de doutorado que cursei (PhD Fine Arts, Goldsmiths College University of London) conjugava produções de estúdio e produções teóricas.

iv Os desenhos incluídos em Interventi eram novos originais, produzidos em Gibellina, portanto datados de 1990, numa tentativa de reproduzir os originais de 1978, inevitavelmente incorporando novas imperfeições.

v Os 14 desenhos originais, assim como diversos outros itens do trabalho, foram finalmente expostos no Brasil em 2010, na 29ª Bienal de São Paulo, da qual o artista participou como convidado.

vi Alfredo Brandão, A Escripta Pré-histórica no Brazil, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro 1937.

vii Nessa época eu estava especialmente interessado e atento às propostas de arquitetura conceitual de grupos como Archigram, Superstudio, de Yona Friedman, entre outros que me influenciaram.

viii A dissertação História do Futuro, de 1985, desenvolve e expande, com maior rigor, o que no Texto Descritivo de 1978 vem proposto como enunciações meramente mecânicas. São descrições, propriamente, de um universo inventado, e como tal serão aqui reproduzidas.

ix “The date: August 2126, Doomsday. The place: Earth. Across the Earth a despairing population attempts to hide. For billions there is nowhere to go. Some people flee deep underground, desperately seeking out caves and disused mine shafts, or take to the sea in submarines. Others go on the rampage, murderous and uncaring. Most just sit, waiting for the end.”

x No original em inglês, os personagens de HF são referidos pelo pronome de terceira pessoa do singular “it“. Tratamento adequado, por exemplo, quando se trata de diminutas esferas, como é o caso do Nômade.

xi É sempre com especial cautela que faço notar que o Nômade de História do Futuro (assim como o Sedentário), cuja “tarefa” principal seria a afirmação da diferença, de modo a conquistar e garantir a continuidade do (seu) movimento, antecede em 2 anos o lançamento editorial de Mille Plateaux, obra essencial de Gilles Deleuze e Felix Guattari (Les Éditions de Minuit, Paris 1980). Qualquer leitor familiarizado com este livro lembrará a atenção que os autores dão ao nômade, importante personagem conceitual de suas reflexões, e à afirmação da diferença como condição fundamental para o devir, o movimento e a transformação. Para além da necessária cautela, assinalo a honrosa sintonia com especial regozijo.

xii Tais perguntas são de Deleuze e Guattari. A passagem de onde provêm – um trecho mais longo em que os autores procuram “sintetizar as principais características do rizoma” – é a seguinte: “Onde você vai? De onde você vem? O que espera encontrar mais além? Estas são perguntas totalmente inúteis. Fazer tábula-rasa, iniciar ou começar de novo do grau-zero, buscar uma origem ou um fundamento – tudo isso implica uma falsa concepção da viagem e do movimento (uma concepção metodológica, pedagógica, iniciatória, simbólica…). Mas Kleist, Lenz e Büchner vislumbram uma outra modalidade de viagem e de movimento: prosseguindo do meio, através do meio, ir e vir ao invés de começar e terminar… O meio não é, de modo algum, uma média; ao contrário, é onde as coisas adquirem velocidade.” Gilles DELEUZE e Felix GUATTARI, “One Thousand Plateaus”, tr. Brian MASSUMI, Athlone Press, 1988, p22-25.

 

“Iracema” de José Maria de Medeiros – entre pintura histórica e pintura de paisagem | de Ana Maria Tavares Cavalcanti

Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema.

Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna e mais longos que seu talhe de palmeira.

O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado.

[José de Alencar, 1865]

O jovem açoriano José Maria de Medeiros (1849-1925 ou 26)1 chegou ao Brasil em 1865, ano em que José de Alencar publicou Iracema. Quase vinte anos mais tarde, já então professor de Desenho Figurado da Academia Imperial das Belas Artes, Medeiros escolheu um trecho do romance de Alencar para tema da pintura que apresentou na Exposição Geral de 1884 (fig.1).

Os professores da Academia, Mafra, Victor Meirelles e Pedro Américo, elogiaram a tela:

Sem que seja movida pela natural simpatia entre colegas que se estimam, não pode a Comissão deixar de assinalar o quadro do Sr. professor José Maria de Medeiros, intitulado = Iracema = , como um dos melhores da atual exposição, não tanto pela protagonista do drama, como principalmente pelo teatro em que se passa aquela cena que com tanto talento descreveu José de Alencar. É uma paisagem pintada por mão de mestre: desenho correto, colorido brilhante e harmonioso, perfeita observação dos efeitos de perspectiva aérea dão a essa paisagem, verdadeiramente tropical, um céu luminoso e profundo, uma vegetação luxuriosa e cheia de vida, e águas da mais límpida transparência, especialmente naquela onda que arrebenta no primeiro plano do quadro.1

Com o aval do corpo acadêmico, o quadro foi adquirido pelo governo para figurar na Pinacoteca da Academia e hoje integra o acervo do Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro.

Se proponho algumas reflexões a partir dessa tela é porque, de modo inesperado e nada intencional, ela sinaliza uma mudança no meio artístico carioca em meados da década de 1880: a perda de prestígio da pintura histórica e sua substituição, na preferência do público e da crítica, pela pintura de paisagem, cada vez mais valorizada como signo de modernidade e brasilidade.

Porém, antes de discutir a recepção crítica do quadro de José Maria de Medeiros, procuremos distinguir as escolhas do pintor e compreender o projeto artístico que fundamenta sua Iracema. Sem dúvida, o quadro foi pensado para a Exposição Geral, de modo que, uma das preocupações do artista era não passar despercebido em meio a tantas outras pinturas. Nota-se o cuidado de Medeiros ao pintar com minúcias as pequenas pedrinhas na areia da praia, o brilho da onda do mar, as gaivotas voando ao longe, a vegetação abundante, criando um efeito de realidade para satisfazer o espectador, envolvendo-o nas dimensões da tela como num cenário.

A figura da índia demonstra outra preocupação do artista: manter-se fiel à sua formação acadêmica, aos ensinamentos do mestre Victor Meirelles. A pose de Iracema – com a mão sobre o peito e uma das pernas levemente dobrada – nos faz pensar na estatuária clássica (fig.2) e mantém o decoro de um nu oficial, mesmo que adaptado ao realismo vigente. Se estivesse pintada em tamanho natural, Iracema pareceria muito próxima de nós, mas assim como se apresenta sugere uma distância respeitosa e adequada.

Esse mesmo decoro se percebe na escolha do tema retirado do romance de José de Alencar, consenso nacional que pode ser resumido como uma alegoria do processo de colonização. O nome de Iracema é um anagrama de “América”, e Martim, nome do personagem português pelo qual a índia se apaixona, uma referência a Marte, o deus grego da guerra. O encontro entre os dois traz desordem e sofrimento. Mas o triste fim de Iracema é também o início da formação do povo brasileiro, simbolizado em Moacir, seu filho com Martim.

Da narrativa do romance, Medeiros só podia pintar um pequeno instante. O catálogo da Exposição traz uma descrição do momento escolhido:

Inquieta Iracema pela ausência do esposo, sai em busca dele e chega à beira do lago, já quando as doces sombras da tarde vestiam os campos. Encontrando ali fincada, na areia da praia, a flecha do guerreiro transpassando um guaiamum, e de que pende um ramo de maracujá, enchem-se-lhe os olhos de lágrimas, interpretando as ordens que aquele símbolo lhe revela – como o guaiamum deve ela andar para trás, e como o maracujá, que guarda a flor até morrer, conservar a lembrança do esposo.

Sem volver o corpo nem desviar os olhos da simbólica flecha, a filha dos Tabajaras retrai lentamente os passos.3

As palavras são bem próximas das escritas por Alencar4. Nessa passagem está sintetizada a impossibilidade de um encontro feliz entre índios e portugueses. Iracema compreende a mensagem codificada na flecha fincada na areia, deve respeitar a vontade de Martim e deixá-lo partir. Há um aspecto muito significativo na escolha de José Maria de Medeiros: ele expõe uma mensagem cifrada, usa a imagem já pronta deixada pelo escritor, e faz a alegoria de uma alegoria. Se levarmos adiante esse pensamento, podemos afirmar que Iracema, ao retrair os passos no quadro de Medeiros, além de retirar-se da vida de Martim, está também “deixando a cena” para que reste apenas a paisagem, o que de fato estava ocorrendo na pintura brasileira naquele ano de 1884. Mas afinal, como começou essa história? Que papel coube à pintura de paisagem na produção artística brasileira no século XIX?

Ao ler os catálogos das Exposições Gerais da Academia, constatamos que as paisagens estiveram presentes em todas elas. Para sermos mais exatos, é necessário dizer que mesmo antes da instituição das Exposições Gerais, já na primeira exposição de alunos e professores organizada por Debret em 1829, o público viu paisagens.5

Nas mostras oitocentistas nacionais, figuraram diversos tipos de pintura de paisagem. Grande parte era composta por paisagens brasileiras, especialmente vistas do Rio de Janeiro, realizadas por pintores nacionais ou estrangeiros. Também eram apresentadas paisagens produzidas por alunos da Academia como trabalhos de curso. Os catálogos especificam que muitos desses estudos eram feitos “do natural”, ou indicam o local de onde a vista foi “tomada”. Por exemplo, em 1866, consta que o aluno Antônio Araújo de Souza Lobo expôs uma “Paisagem: vista de uma parte da cidade no Rio de Janeiro, tomada da Praia Vermelha, ao pôr-do-sol”, conforme texto do catálogo.6

Outra fonte importante para a pesquisa são os jornais cariocas do período, pois ajudam a compreender a relação do público com as exposições de belas artes. Embora o maior destaque coubesse aos eventos teatrais e musicais da cidade, as artes plásticas não deixaram de ser assunto de cronistas e cartunistas. Nas crônicas do dia a dia, grande parte das obras comentadas eram paisagens. Uma charge de Ângelo Agostini sobre a exposição de trabalhos dos alunos da Academia em 1883 (Fig.3) demonstra a acolhida que o público em geral, e os jornalistas em particular, davam aos paisagistas. Na legenda do desenho, após ironizar os quadros do concurso de pintura histórica dos alunos de Zeferino da Costa (representando São Jerônimo), Agostini afirma:

Os únicos trabalhos dignos de serem vistos e admirados, foram os dos alunos Vasquez e Caron, discípulos de Grimm, e que hoje acham-se expostos à rua Sete de Setembro, casa De Wilde.

Mestre Grimm entendeu e muito bem que a verdadeira escola de paisagem é a natureza, e não as paredes da Academia, como julgaram até hoje os professores que lá ensinavam.7

Esse comentário é representativo da opinião da crítica – a pintura de paisagem ao ar livre era elogiada e contraposta aos princípios acadêmicos que davam preferência aos assuntos históricos, religiosos ou mitológicos.

Essa oposição entre paisagistas e pintores de história foi assunto repetido em inúmeros artigos jornalísticos, e acentuou-se no final do século, após a Proclamação da República. Vejamos, por exemplo, alguns trechos de um artigo sobre a Exposição Geral de 1890, a última organizada pelos antigos mestres e inaugurada em março daquele ano:

Quem visita a nossa Academia de Belas Artes não sente a impressão agradável do viajante que volta à sua terra, do homem que entra em sua casa. O ar que ali se respira não é o nosso ar, aqueles não são os nossos costumes, não é aquela a nossa gente, não é assim a nossa paisagem, e portanto, aquela não é a nossa arte, não é a arte nacional, não é a fixação na tela e no mármore da vida, da alma brasileira.

Na galeria em que estão expostos os quadros novos, em cuja honra foram abertas as portas do velho edifício, que ali vive esquecido em um beco, há aqui e acolá umas abertas para esse céu; (…) é preciso procurar a nossa natureza numa pequena paisagem que Hypolito Caron pintou em Juiz de Fora, em uma outra de Pombal, de Rodolpho Amoedo, e em outras de França Junior, de Visconti, de Baptista da Costa, e de poucos mais.

(…), vê-se que os nossos artistas vão fugindo à inspiração que dominava a geração a que sucedem e que está representada nos quadros da galeria n.2, em tempo classificados na Academia como constituindo a arte nacional. O que é que inspirava então os nossos artistas, e lá está representado? Era a Morte de Sócrates, S. João Baptista no cárcere, a degolação do referido S. João, a flagelação de Cristo (que ainda há pouco mais de um ano serviu de tema para concurso), Eliezer e Rebeca, um lavrador dos campos… de Farsália, Sócrates afastando Alcebíades do vício (esta questão palpitante de interesse inspirou nada menos que dois artistas), Caim amaldiçoado, Moisés recebendo as tábuas da lei, Jugurta, Telêmaco, toda a mitologia, todo o catecismo, toda a história de Roma.

E o público não ia ver as galerias, dizia-se. Para que? Que se importa o público com Sócrates, e com Moisés, e com Telêmaco?8

O mesmo autor continua o comentário na semana seguinte:

O que consola, na atual exposição de pintura, à falta de cor local, é a independência que vão revelando os pintores. O confronto dela com a galeria da chamada escola nacional dá esperanças de futuro lisonjeiro, e demonstra a reação espontânea dos moços contra a rotina que sempre predominou na Academia.

Basta ver os paisagistas. O bom Grimm arrancou-os das salas sem luz, onde eles copiavam paisagens de litografias baratas e levou-os para o campo, pô-los na escola da natureza; aí eles aprenderam a pintar por si, como Vasquez, como Caron, como Ribeiro, como França Junior, como Parreiras, e a princípio todos eles tinham mais ou menos a maneira do mestre; mas, ao fim de algum tempo, até dessa influência se libertaram, e hoje cada um deles tem a sua individualidade.9

O articulista da Gazeta de Notícias associa a pintura de paisagem à originalidade e à expressão nacional. Na verdade, essas ideias começaram a ganhar força na década de 1850, quando Manuel de Araújo Porto Alegre, então diretor da Academia (1854-57), se esforçava para «despertar nos estudantes a consciência de que uma ‘pintura nacional’ floresceria mediante a observação sistemática da natureza brasileira. (…), a substituição de modelos europeus pela contemplação da natureza viva [seria uma forma] de fomentar a ‘arte nacional’».10

Essa função atribuída à pintura de paisagem – representar a nação brasileira – propiciou uma diferença em relação ao contexto europeu. Na hierarquia acadêmica engendrada na Europa, vinham em ordem decrescente de valor a pintura histórica, a pintura de paisagens e as naturezas-mortas. No decorrer do século XIX, nota-se um desinteresse progressivo do público dos Salões parisienses pela pintura histórica e uma valorização da pintura de paisagem.

Essa valorização foi compreendida como um prenúncio da pintura moderna, já que indicaria a conquista de uma autonomia da arte. Ao pintar paisagens, o artista já não estaria preocupado em divulgar ideias ou contar histórias, mas em transmitir suas impressões estéticas, sensações visuais e sentimentos diante da natureza.

Procurando refrear essa tendência, que levaria ao fim da pintura histórica, as Academias de Belas Artes em todo o mundo reafirmaram a hierarquia neoclássica dos gêneros, baseando-se na convicção de que o essencial da arte da pintura era a representação das nobres ações humanas. Essa mesma concepção estava presente na Academia Imperial de Belas Artes, no Brasil. No entanto, já em 1816, ano da chegada ao Rio de Janeiro dos artistas que compunham a Missão Artística Francesa, seu chefe, Lebreton, reconhecia a importância que a pintura de paisagem teria em nosso país. Em carta ao Conde da Barca, após definir o gênero histórico como o “grande gênero”, diferenciando-o da simplesmente denominada “pintura de gênero” que abarcaria “a paisagem, as cenas familiares e até os mínimos pormenores da natureza”, Lebreton afirmava:

É fora de dúvida que a pintura de gênero é útil e agradável: penso ainda que em país como este, ao qual a natureza prodigalizou todas as riquezas, os Pintores de gênero terão uma mina inesgotável de assuntos de quadros, e que o gosto dos particulares sentirá e encorajará de preferência a pintura de gênero, em vez da outra.11

Embora quase deplorando o fato, já que defendia a superioridade da pintura histórica, Lebreton percebia a inevitável preferência que os particulares iriam dedicar à pintura de paisagem no Brasil.

Entre os brasileiros, os próprios mestres acadêmicos tomaram atitudes contraditórias, mesmo que em teoria considerassem menor a pintura de paisagem.

Ora, no caso do Brasil, uma particularidade interferiu na doutrina acadêmica. O nacionalismo típico do neoclassicismo, que em cada país estimulou a glorificação de heróis e cenas históricas, aqui fomentou o enaltecimento da natureza. Não foi apenas a pintura histórica a encarregada de retratar o país e exaltar a brasilidade, esse papel também coube à pintura de paisagem. Havia uma relação estreita entre os dois gêneros, pois um dos orgulhos nacionais sempre foi a exuberância e beleza das paisagens naturais. É inegável que grande parte de nossas pinturas históricas situa-se ao ar livre e a natureza é “personagem” que participa da composição.

Esse é o caso da tela de José Maria de Medeiros, ora analisada. Vejamos o que sobre ela escreveram alguns críticos seus contemporâneos: Oscar Guanabarino, Angelo Agostini e Gonzaga Duque.

No Jornal do Commercio de 28 de agosto de 1884, Guanabarino informa que no salão principal da Exposição vemos, “em primeiro lugar, a tela do Sr. José Maria de Medeiros, professor de desenho figurado na Academia”12. Agostini, escrevendo em 26 de outubro na Revista Illustrada, também menciona o cargo de professor de Medeiros que, “como tal, tem obrigação de fazer os maiores esforços para apresentar quadros dignos da sua posição”13. Gonzaga Duque, em seu livro A Arte Brasileira, cuja primeira edição é de 1888, logo antes de tratar da Iracema de Medeiros, afirma que o “professor de desenho figurado na Academia (…) tem-se mostrado um artista modesto e tímido”14. O fato dos três mencionarem a ligação de Medeiros com a Academia indica o quanto essa informação era considerada importante. Num ambiente marcado pela presença da instituição que era palco de disputas e polêmicas, a posição de um artista não era indiferente. Mas continuemos a ler os críticos.

Quanto à figura de Iracema, Oscar Guanabarino se mostra insatisfeito e aponta inúmeros defeitos:

Iracema está completamente deslocada do seu centro de gravidade. Fazendo um movimento lento de recuar, acha-se com a perna direita fora da perpendicular devendo atuar o peso do corpo e forçosamente sobre o pé esquerdo que no entanto não se apóia no chão. Notamos também ausência de expressão fisionômica.15

Angelo Agostini é mais generoso, apesar do humor ferino quando se refere a outra tela do mesmo pintor:

O Sr. Medeiros expôs só um quadro, Iracema, e, lá para que digamos, não se saiu muito mal. Se bem que a figura não seja capaz de inspirar-nos uma paixão, todavia reconhecemos na sua execução bastante progresso e uma diferença enorme de uma célebre Lindóia ou Pinóia que o mesmo expôs no Liceu de Artes e Ofícios.16

Dos três, o mais lacônico e contundente é Gonzaga Duque:

Esta figura de forma alguma satisfaz ao espectador. É roliça e inútil.17

Percebe-se nas críticas dos dois últimos (Agostini e Gonzaga Duque) o desencanto com a figura feminina que nada tem de sedutora. Lembremo-nos que também os professores da Academia se abstiveram de elogiar “a protagonista do drama”, conforme citado anteriormente. Não esqueçamos que na exposição de 1884, outros nus femininos, expressivos e sensuais, foram muito admirados. Estudo de mulher de Rodolpho Amoedo, e O Descanso do Modelo de Almeida Junior, para mencionar os mais conhecidos, foram expostos pela primeira vez e receberam muitos aplausos. Em comparação, a índia de Medeiros aparecia sem graça e insatisfatória.

Mas se a figura de Iracema não agradou, os críticos elogiaram a paisagem, “o palco em que se passa a cena”, para usar as palavras dos mestres encarregados do parecer sobre a Exposição.18 Vejamos os comentários de Guanabarino:

O fundo em compensação tem uma vegetação bem tratada, a areia da praia é muito boa e o mar, soprado por viração fresca, encrespa-se com bastante naturalidade e forma uma onda, quebrada em parte, que se move bem.

O esforço de Medeiros foi bem sucedido, os detalhes que reproduzem a textura da areia, os efeitos do vento no mar, foram percebidos e admirados. No mesmo tom, escreve Angelo Agostini:

Não sendo obrigado a ficar em êxtase diante da Iracema, os nossos olhos percorreram o resto do quadro e admiraram o vasto horizonte, o céu, o mar, a vegetação, a praia, e, digamo-lo em honra do Sr. Medeiros: ficamos muito satisfeitos; nem esperávamos tanto.20

Também Gonzaga Duque reconhece o valor da paisagem, pois “o fundo, e o primeiro plano, em que há uma onda que se afasta da praia, são perfeitamente pintados, magistralmente pintados”xxi, diz ele.

Em janeiro de 1888, José Maria de Medeiros pediu transferência da cadeira de Desenho Figurado para a de Paisagem, Flores e Animais alegando que a última “está mais de acordo com a vocação do suplicante, (…) na qual poderá prestar maior serviço ao estudo da arte”21. Num primeiro momento, o Diretor Antonio Nicolau Tolentino manifestou-se a favor da transferência, escrevendo em ofício ao Conselheiro Barão de Cotegipe, Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Império:

O serviço público nada perderá com a requerida transferência do professor, persuado-me que pelo contrário poderá ganhar, em conseqüência da natural disposição e gosto do peticionário para a pintura de paisagem manifestados no quadro denominado “Iracema”, de propriedade desta Academia, e que lhe mereceu do Governo Imperial ser promovido a Oficial da Ordem da Rosa.22

Através desses documentos, ficamos sabendo que Iracema foi considerada uma prova do talento de Medeiros para a pintura de paisagem, vocação declarada pelo próprio pintor. Assim, embora se classifique como pintura histórica, Iracema é, de fato, um compromisso entre a pintura de história e a paisagem.

Essa tela é também o marco da passagem do tempo. Quando foi exposta, já parecia antiquada em seu propósito. Se Gonzaga Duque escreveu que era “uma obra concluída com cuidado, mas infeliz”23, é porque Iracema cumpriu, na tela de Medeiros, o destino escrito por José de Alencar:

Era sempre com emoção que o esposo de Iracema revia as plagas onde fora tão feliz, e as verdes folhas a cuja sombra dormia a formosa tabajara.

Muitas vezes ia sentarse naquelas doces areias, para cismar e acalentar no peito a agra saudade.

A jandaia cantava ainda no olho do coqueiro; mas não repetia já o mavioso nome de Iracema.

Tudo passa sobre a terra.24

O mesmo destino teve a Iracema na pintura. Foi-se a personagem, ficou a paisagem.

Numa charge publicada na Revista Illustrada em 31 de agosto de 1884 (fig.4), Agostini brinca com a situação da personagem:

Iracema vendo uma flecha fincada na areia procura imitar-lhe a posição vertical. Porém, à vista da flor de maracujá e da ginástica inesperada de um caranguejo trepado na flecha, a índia admirada recua pé atrás pé, para não perturbar o crustáceo nos seus exercícios acrobáticos.25

A alegoria que no romance de José de Alencar fora aceita com tranquilidade, na pintura se tornara motivo de riso, por ser artificial. Nada além da natureza, sem construções intelectuais, seria apropriado para expressar o caráter nacional e moderno desejado para a arte brasileira no final do século XIX.

 

Figura 1 - José Maria de Medeiros – Iracema, 1884 óleo s/tela – 167,5 x 250,2 cm Rio de Janeiro, Museu Nacional de Belas Artes
Figura 2 - Vênus de Médicis
Figura 3 - Angelo AGOSTINI. Revista Illustrada, ano 8, n.365. Rio de Janeiro, 27 de dezembro de 1883.
Figura 4 - Angelo Agostini. Revista Illustrada, ano 9, n.389. Rio de Janeiro, 31 de agosto de 1884, p.5 (detalhe)

 

* Ana Maria Tavares Cavalcanti, professora de História da Arte da Escola de Belas Artes da UFRJ, é doutora em História da Arte pela Université de Paris 1 Panthéon-Sorbonne.

Texto apresentado originalmente no Simpósio Internacional “Paisagem e iconografia nacional na América Latina”. FAU-USP, novembro de 2007.

NOTAS

[1]  Não há consenso entre os autores quanto ao ano de morte de Medeiros. Alguns mencionam 1925, outros 1926.

[2]   Ata da Sessão em 17 de Dezembro de 1884. Atas das Sessões do Corpo Docente da Academia Imperial das Belas Artes – 1882 – 1890, p.14. Arquivo do Museu D. João VI da EBA/UFRJ. [transcrição disponível em http://www.dezenovevinte.net/documentos/Atas_de_1883_a_1885.pdf contribuição de Ana M. T. Cavalcanti]

[3]  LEVY, C.R. Exposições Gerais da Academia Imperial e da Escola Nacional de Belas Artes. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1990, p .271.

[4]  Iracema de José de Alencar está disponível em  <http://www.bibvirt.futuro.usp.br>

[5]   Os dados coletados em catálogos e jornais e analisados pela autora são resultado da pesquisa intitulada Pintura de paisagem, modernidade e o meio artístico carioca no final do século XIX financiada pela FAPERJ e realizada entre 2002 e 2003. Ver também o artigo: CAVALCANTI, A. M. T. A pintura de paisagem ao ar livre e o anseio por modernidade no meio artístico carioca no final do século XIX. Cadernos de Pós-Graduação (IAR/UNICAMP), v.6, p.28 – 34, 2002.

[6]  LEVY, C.R. Exposições Gerais da Academia Imperial e da Escola Nacional de Belas Artes. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1990, p.169.

[7]  AGOSTINI, Ângelo. Charge na  Revista Illustrada. Rio de Janeiro, 27 de dezembro de 1883. Coleção Biblioteca Nacional.

[8]  Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro, 31 de março de 1890, p.1. Autor anônimo. [Acervo da Biblioteca Nacional, Microfilme PR-SPR 00061].

[9] Gazeta de Notícias. 7 de Abril de 1890, p.1.

[10]  SQUEFF, Letícia Coelho. Entre o urbano e o selvagem : a paisagem brasileira no pensamento de Araújo Porto Alegre. Comunicação no I Colóquio Internacional de História da Arte – CBHA / CIHA, São Paulo, 5 – 10 de setembro de 1999.

[11]  Carta de Lebreton, datada de 12 de junho de 1816 e endereçada ao Conde da Barca. In: BARATA, Mário. “Um manuscrito inédito de Lebreton”. In: Revista do SPHAN, n.14, 1959, p. 287.

[12] GUANABARINO, Oscar. A Exposição de Bellas-Artes. FOLHETIM DO JORNAL DO COMMERCIO de 28 de agosto de 1884. Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, 1 de setembro de 1884 – Ano 63 – N. 240, p. 1. [transcrição por Fabiana Guerra Granjeia disponível em http://www.dezenovevinte.net/artigos_imprensa/guanabarino_1884.htm]

[13]  AGOSTINI, Angelo. Salão de 1884 – IV. Revista Illustrada. Rio de Janeiro, 26 de outubro de 1884 – Ano 9, n. 393, p.3. [Biblioteca Nacional (RJ) Seção de Obras Raras, Microfilme – PR – SOR 00167 (5)]

[14]  GONZAGA DUQUE. A Arte Brasileira. Introdução e notas de Tadeu Chiarelli. Campinas: Mercado das Letras, 1995, p. 205.

[15]  GUANABARINO, p.1.

[16]  AGOSTINI, p.3.

[17]  GONZAGA DUQUE, p.205-206.

[18] Ata da Sessão em 17 de Dezembro de 1884. Ver nota 3 desse texto.

[19] AGOSTINI, p.3.

[20] GONZAGA DUQUE, p.206.

[21] Carta de Medeiros à Princesa Isabel, reproduzida em ofício dirigido pelo Ministro do Império ao Diretor da  Academia, em 14 de janeiro de 1888. Acervo do Museu D. João VI da EBA/UFRJ.

[22] Carta de Tolentino ao Barão de Cotegipe, datada de 17 de janeiro de 1888. Acervo do Museu D. João VI da EBA/UFRJ.

[23] GONZAGA DUQUE, p.206.

[24] ALENCAR, José de. Iracema. São Paulo: Ática, 2002, p.82.

[25] AGOSTINI, Angelo. « O Salão de 1884 – 1o». Revista Illustrada – Ano 9 – n.389. Rio de Janeiro, 31 de agosto de  1884, p.4-5.

 

Direito e arte: considerações sobre cultura material e imaterial | de Catherine A. E. Fleury

INTRODUÇÃO

A arte é “um universo de discurso” e o trabalho do artista não segue regras fixas. O Direito é a “técnica da coexistência humana”, impondo normas de conduta e organização. A Propriedade Intelectual, um direito imaterial que abarca os direitos relativos às obras literárias, artísticas e científicas, divide-se em dois ramos distintos: o de Direito de Autor e o de Propriedade Industrial. Ao primeiro, cabe o ordenamento relativo aos direitos autorais das obras intelectuais estéticas fundamentado nos direitos da personalidade, nos seus aspectos morais, mas inserindo-se também na questão patrimonial; o segundo abrange a obra intelectual de cunho utilitário, em todos os seus direitos, mas vinculado a interesses técnicos e científicos.

Considerando que a arte tem um caráter social, assim como o conhecimento e os produtos culturais são de caráter social ou têm uma base social, percebe-se uma diversidade de linguagens utilizadas para descrever as relações entre as obras de arte e seu contexto social1. A atividade artística sempre esteve inserida no mundo do trabalho e a definição de suas atribuições e prerrogativas sempre foi questionada e reivindicada. O artista lutou pelo uso da assinatura e hoje seus direitos autorais são assegurados por lei.

A Declaração dos Direitos Humanosii, promulgada pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1948, preceitua que toda pessoa tem o direito à proteção dos interesses morais e materiais quando for produtora de suas obras científicas, literárias ou artísticas. A Constituição Federal de 1988, no seu artigo 5o, inciso XXVII, confere e explicita dos direitos aos criadores intelectuais ao afirmar que “aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar”. A Lei no 9610 de 19 de fevereiro de 1998 é a que regula o Direito de Autor e Conexos no país. Segundo Carlos Alberto Bittar,

… pode-se assentar que o Direito de Autor ou Direito Autoral é o ramo do Direito Privado que regula as relações jurídicas, advindas da criação e da utilização econômica de obras intelectuais estéticas e compreendidas na literatura, nas artes e nas ciências. Como direito subjetivista e privatista, recebeu consagração legislativa em função da doutrina dos direitos individuais, no século XVIII3.

Bittar considera ainda que

… o objetivo do Direito de Autor é a disciplinação das relações jurídicas entre o criador e sua obra, desde que de caráter estético, em função, seja da criação (direitos morais), seja da respectiva inserção em circulação (direitos patrimoniais), e frente a todos os que, no circuito correspondente, vierem a ingressar (o Estado, a coletividade como um todo, o explorador econômico, o usuário, o adquirente de exemplar)iv.

Assim, os direitos morais se relacionam à defesa da autoria da obra, enquanto os direitos de ordem patrimonial se referem à sua utilização econômica. Estes últimos estão, por sua natureza, relacionados com os meios de comunicação com os quais a criação intelectual se concretiza na prática (publicações, exposições, transmissões etc.).
Os direitos da personalidade, para Bittar, são “aqueles que se referem a relação da pessoa consigo mesma, quanto a características extrínsecas do ser e a suas qualificações psíquicas e moraisv”. Abarcam, portanto, o homem em si e em suas projeções para o exterior, como os direitos à vida, à honra, à imagem, à intimidade e outros. Por direitos intelectuais, entende-se que são aqueles referentes a relações entre a pessoa e as coisas (bens) imateriais que cria e traz à luz os produtos de seu intelecto, expressos sob determinadas formas dos quais detêm monopólio. Esses direitos, entretanto, incidem sobre as criações humanas que se manifestam em formas sensíveis, estéticas ou utilitárias, voltando-se à sensibilização e à transmissão de conhecimentos, como também à satisfação de interesses materiais do homem na sua vida cotidiana.

No mundo do Direito, de acordo com essa diferenciação, estipulam-se dois sistemas jurídicos especiais: o do Direito de Autor e Conexos, reservado às obras que por si realizam finalidades estéticas e de conhecimento, e o do Direito de Propriedade Industrial, destinado às obras de cunho utilitário.
No mundo da Arte existe uma distinção (tema bastante controverso) entre o que se considera Arte (arte pura, autônoma) e Artes Aplicadas, nas quais se inserem o Design e o Desenho Industrial. A diferenciação entre Design e Desenho Industrial é bem complexa e envolve discussões contraditórias, a partir mesmo de suas definições.

CONSIDERAÇÕES SOBRE A PROPRIEDADE INTELECTUAL

O Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), criado pela Lei 5.648 de 11 de dezembro de 1970, é o órgão brasileiro responsável pelas marcas, patentes, desenho industrial, transferência de tecnologia, indicação geográfica, ferramental relacionado à Tecnologia da Informação e da Comunicação (hardware e redes) e topografia de circuito integrado. A proteção das cultivares pode ser obtida por meio da concessão de Certificado de Proteção de Cultivar concedido pelo Serviço Nacional de Proteção de Cultivares (SNPC), vinculado ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA).

A Biblioteca Nacional, localizada no estado do Rio de Janeiro e os seus postos estaduais de Escritórios de Direitos Autorais são responsáveis pelo registro e averbação das obras artísticas e intelectuais. As obras de artes visuais podem ser registradas na Escola de Belas Artesvi, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
No que tange aos chamados “conhecimentos tradicionais”, existem várias discussões entre juristas, comunidades locais e organizações mundiais de proteção da Propriedade Intelectual acerca da adequação dos direitos autorais. A Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI)vii trata conhecimentos tradicionais como um novo tema a se definir, instituindo o “Comitê Intergovernamental sobre Propriedade Intelectual, Recursos Genéticos, Conhecimento Tradicional e Folclore”, para estudar formas de regulamentar o assuntoviii.

A Propriedade Intelectual, no Brasil, está disciplinada principalmente pelas leis de Propriedade Industrial (Lei no 9.279/96ix), 9.456/97 (Cultivares), 9.609/98 (Software) e 9.610/98 (Direitos Autorais), além de tratados internacionais, como as Convenções de Bernax (Decreto no 75.699de 06/05/75, sobre Direitos Autorais) e de Paris, sobre Propriedade Industrial (Decreto no 1.263 de 10/10/94), e outros acordos como o Trade Related Intelectual Property Rights – TRIPs (Decreto no 1.355 de 39/12/1994). É também preceito Constitucional, estando arrolado entre os Direitos e Garantias Fundamentais, com previsão nos incisos XXVII, XXVIII e XXIX, em consonância aos incisos XXII e XXIII, do artigo 5º da Constituição Federal.

A divisão da Propriedade Intelectual entre direitos do Autor e Propriedade Industrial nos remete a uma questão filosófica recorrente no pensamento ocidental: a distinção entre seres e coisas, onde as grandes dicotomias – natureza/cultura, corpo/espírito, objeto/sujeito – estão sedimentadas. Esta última, a distinção entre objeto e sujeito, cujas premissas se reportam não à Grécia, mas sim à Roma Antiga (persona/res), é relativamente tardia e desenvolveu-se com o pensamento cartesianoxi.

Mas o homem faz parte da natureza e o que o distingue dos outros animais é o fato de que ele almeja transformá-la. E isso ele faz pela cultura. O pensamento antropológico xiiconsidera que os fenômenos culturais apresentam-se na forma de ideias, comportamentos e objetos físicos. Este último constitui aquilo que se denomina cultura material que, contudo, não está separada de ideias e do comportamento humano. A cultura material é tratada, geralmente, como uma contraposição dos objetos materiais às idéias e instituições, mas constitui-se, na realidade, em um fenômeno culturalxiii, expressando-se em todas as formas de conhecimento do homem: mito e religião, linguagem, arte, ciência e história. O conceito de culturaxiv, para os arqueólogos, se amalgama com o de cultura material, esta última entendida como uma das atividades do homem representada por um objeto, utensílio ou artefatoxv.

Seguindo essa concepção, podemos considerar que, na transformação da natureza, o homem inicia seu trabalho idealizando na mente a forma do objeto, projetando-o em seguida para finalmente dar-lhe a forma concreta. Assim, a cultura material engloba a imaterial.
Para o economista Antonio Luiz F. Barbosaxvi

… todo trabalho foi e é útil, mas nem todo o trabalho é necessariamente produtivo. Assim, o trabalho artístico é útil por atender às necessidades lúdicas, porém pode não ser economicamente produtivo, enquanto o trabalho do operário é útil e produtivo, criando bens necessários e destinados à troca. Nas etapas pré-capitalistas, a produção não pressupunha a troca; hoje, a troca é a finalidade da produção. O capitalismo se caracteriza por dissociar produção e consumo. Repensando o trabalho artístico, o processo pode ser compreendido. À medida que as novas tecnologias possibilitaram a reprodutibilidade da obra de arte, foi transformado não só o processo de trabalho, mas a própria utilidade de seu resultado. O artista deixa de trabalhar para o mecenas e é substituída a exponibilidade da obra única, limitada a uns poucos consumidores; agora, seu trabalho é destinado a uma extensa reprodutibilidade para o consumo de massa. A obra não perde a sua individualidade, mesmo quando realizada por uma equipe – como no caso do cinema, por exemplo –, e a produção adquire um caráter individualista.

Essas considerações nos reportam à obra de Walter Benjamimxvii e aos teóricos da Escola de Frankfurt, na discussão sobre a chamada Indústria Cultural (ou do entretenimento, como a chamam os americanos), onde estão inseridas as atividades e expressões artísticas como: teatro, filmes, vídeos, fotografias, cartazes, gravuras e suas diferentes técnicas, discos, desenho animado, história em quadrinhos e a publicidade, que trata da divulgação de todos. Todas essas atividades são protegidas pela Lei de Direitos de Autor e Conexos, ou pela Propriedade Industrial.

Assim, nos deparamos com as questões problemáticas que se apresentam nas relações existentes entre criação com dependência econômica. A obra do artista plástico se processa na relação com a necessidade desta ser comunicada e, consequentemente, “ser vista, sensibilizar e capaz de tocar” xviiiaos que a contemplam e com o mercado de arte.

 

Catherine Arruda Ellwanger Fleury é doutora em Artes Visuais e mestre em História da Arte pela UFRJ (Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro – PPGAV/EBA/UFRJ), e artista plástica. É também graduada em Arqueologia pela Universidade Estácio de Sá onde, atualmente, está cursando o segundo período de Direito (Campus Tom Jobim). O presente texto é parte de trabalho escrito – O Direito e a Obra de Arte – para o livro Direito Civil – Constitucional: Direitos da Personalidade Dignidade da Pessoa Humana / Uma Leitura Constitucional do Direito, organizado por Cleyson de Moraes Mello e Guilherme Sandoval.

 

1. Trato desse assunto em texto publicado em livro organizado por Rosza vel Zoladz. FLEURY, Catherine Arruda Ellwanger. “Refexões sobre Arte e Artistas”. In: Imaginário Brasileiro e Zonas Periféricas: algumas proposições da Sociologia da Arte. ZOLADZ, Rosza vel. Rio de Janeiro: 7Letras/FAPERJ, 2005, p. 188-206s

2. Declaração Universal dos Direitos Humanos, Artigo XXVII. 1. Todo ser humano tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir das artes e de participar do progresso científico e de seus benefícios. 2. Todo ser humano tem direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica literária ou artística da qual seja autor. http://www.onu-brasil.org.br/documentos_direitoshumanos.php – acesso em 15/03/2011.

3. BITTAR, Carlos Alberto. Direito de Autor. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1992, p. 8.

4. BITTAR, Ibid., p. 17.

5. BITTAR, Ibid., p. 2 e 3.

6. No site da Escola de Belas Artes (UFRJ), na página referente aos Direitos Autorais, encontram-se as instruções para que se possa efetuar o registro de obras de arte (artes visuais). No final, vem escrito: “não registramos músicas, partituras musicais, mapas, símbolos nacionais, livros ou textos”.

7. A Organização Mundial da Propriedade Intelectual – OMPI, criada em 1967, é um dos dezesseis organismos especializados do sistema das Nações Unidas, de caráter intergovernamental, com sede em Genebra, Suíça. Informações sobre a OMPI encontram-se disponíveis em: www.inpi.gov.br/menu-esquerdo/patente/pasta_acordos/ompi_html. A OMPI define Propriedade Intelectual, um monopólio concedido pelo Estado, como “ a soma dos direitos relativos às obras literárias, artísticas e científicas, às interpretações dos artistas intérpretes e às execuções dos artistas executantes, aos fonogramas e às emissões de radiodifusão, às invenções em todos os domínios da atividade humana, às descobertas científicas, aos desenhos e modelos industriais, às marcas industriais, comerciais e de serviço, bem como às firmas comerciais e denominações comerciais, à proteção contra a concorrência desleal e todos os outros direitos inerentes à atividade intelectual nos domínios industrial, científico, literário e artístico”.

8. O INBRAPI, Comitê Intergovernamental sobre Propriedade Intelectual, Recursos Genéticos, Conhecimento Tradicional e Folclore é uma organização não-governamental sem fins lucrativos cuja origem se reporta ao Encontro de Pajés ocorrido em 2001, em São Luís do Maranhão. Em 2002, foi criada a Comissão Indígena da Propriedade Intelectual (Cipi). Disponível em: http://www.inbrapi.org.br (Acesso em 28/03/2011).

9. Alterada e acrescida pela Lei no 10.196, de 14 de fevereiro de 2001.

10. Decreto n° 75.699, de 06 de maio De 1975 promulga a Convenção de Berna para a Proteção das Obras Literárias e Artísticas de 9 de setembro de 1886, que foi completada em Paris a 4 de julho de 1896, revista em Berlim a 13 de novembro de 1908, completada em Berna a 20 de março de 1914 e revista em Roma a 2 de 1928, em Bruxelas a 26 de junho de 1948, em Estocolmo em 14 de julho de 1967 e em Paris em 24 de julho de 1971 e modificada em 28 de setembro de 1979.

11. POIRIER, Jean. História dos Costumes: O Homem e o Objeto. Lisboa: Editorial Estampa, Ltda., 1999.

12. NEWTON, Dolores. “Cultura Material e História Cultural”. In RIBEIRO, Berta (org.). Suma Etnológica Brasileira – 2 Tecnologia Indígena.. Edição atualizada do Handbook of South American Indians. Petrópolis: Vozes, 1986.

13. Reporto-me a Ernest Cassirer, que define o homem como um ser cultural, interpretando o empreendimento humano em suas principais formas simbólicas: a linguagem, a arte, a religião, a história e a ciência (CASSIRER, Ernest. Ensaio sobre o Homem. São Paulo: Martins fontes, 1997).

14. Em arqueologia, o termo cultura é visto como “uma associação de objetos de diferentes tipos, que se repete com certa freqüência no espaço e no tempo” (SOUZA, Alfredo Mendonça de. Dicionário de Arqueologia. Rio de Janeiro: ADESA, 1997, p. 41). Esse conceito se aproxima do que chamamos, na Arte, de estilo. Meyer Schapiro (SCHAPIRO, Meyer. Theory and Philosophy of Art: Style, Artist, and Society. New York: George Braziller, 1994, p. 51) afirma que estilo é geralmente entendido como uma forma constante e, às vezes, como elementos, qualidades ou expressões constantes na arte de um indivíduo ou de um grupo. O estilo reflete ou projeta a “forma interior” do pensamento e do sentimento coletivos. O que importa não é o estilo de um indivíduo ou de uma arte única, mas as formas e qualidades compartilhadas por todas as artes de uma cultura num período significativo de tempo.

15. Trato desse tema no primeiro capítulo de minha Dissertação de Mestrado, Renda de Bilros, Renda da Terra, Renda do Ceará: a expressão artística de um povo, obra essa que foi selecionada entre outras dissertações e teses para publicação, pela Secretaria de Cultura do Estado do Ceará. FLEURY, Catherine Arruda Ellwanger. Renda de Bilros, Renda da Terra, Renda do Ceará: a expressão artística de um povo São Paulo: AnnaBlume; Fortaleza: SECULT, 2002.

16. BARBOSA, Antonio Luis Figueira. Sobre a propriedade do trabalho intelectual: uma perspectiva crítica. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1999, p. 21, 22.

17. BENJAMIM,Walter. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. In: Magia e Técnica: arte e política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.

18. DUVIGNAUD, Jean. O Artista, A Arte e a Identidade. Palestra proferida com apoio do Fórum de Ciência e Cultura. Tradução de Rosza Vel Zoladz. Escola de Belas Artes /UFRJ, 1994. P. 7.

 

 

 

Cruzamentos, tensões, possibilidades: textos e imagens sobre o nosso tempo | de Alice Fátima Martins

Insistem, alguns, em denominar os tempos que vivemos de pós-modernos. Resistem, outros, reafirmando-os parte contínua da modernidade, potencializadas suas contradições e seus projetos orientadores. Há, ainda, aqueles que questionam a própria ideia de modernidade – por consequência, a de pós-modernidade – denunciando sua natureza autorreferencial. Para esses, a noção de modernidadetraz, implícita, a certeza de que teríamos atingido o ápice da civilização humana: antes de nós só haveria atraso, depois de nós, nenhum avanço mais seria possível. Entre tantos, num texto escrito em 1988, Boaventura de Souza Santos já chamava a atenção para o fato de que

vivemos num tempo atônito que ao debruçar-se sobre si próprio descobre que os seus pés são um cruzamento de sombras, sombras que vêm do passado que ora pensamos já não sermos, ora pensamos não termos ainda deixado de ser, sombras que vêm do futuro que ora pensamos já sermos, ora pensamos nunca virmos a ser (1988).

Desde então, temos testemunhado o aprofundamento de encruzilhadas e labirintos em que se embaralham o novo e o velho, passado e futuro, risco e tradição, sombras e luzes…

Esse foi o sentido que orientou os convites feitos aos autores cujos textos integram o corpo deste número da Revista Z Cultural, na tentativa de montar um modesto painel em que alguns temas se entrecruzam, tomando como pontos de partida questões, perguntas, ocupações, dúvidas, inquietações correntes, contemporâneas. Memórias do já vivido, indagações sobre o porvir, reflexões sobre movimentos, potencialidades, virtualidades.

Os artigos estão organizados em dois grandes conjuntos que, embora portadores de tonalidades distintas, estabelecem necessários diálogos entre si. O abre-alasdo primeiro conjunto, assinado por J. Bamberg e escrito em prosa-poemática, articula memórias do sertão brasileiro, tomando a metáfora do muro como (des)limite, referência, marcação, projeção. Com linguagem não tão poética, mais técnica, Brasilmar Ferreira Nunes aborda alguns aspectos do desenvolvimento urbano do eixo formado pelas cidades Brasília, Anápolis e Goiânia, na região central brasileira, apontando dados que podem orientar políticas públicas no tocante à cultura regional, nas artes em geral, nas questões patrimoniais, midiáticas, e outras atividades que integrem as assim nomeadas indústrias criativas. No artigo que se segue, Edna Goya esboça caminhos históricos da gravura em território goiano: modalidade de impressão incorporada às técnicas e fazeres artísticos, no contexto das artes visuais, que acumula saberes seculares, vindo atravessar o batente do século XXI como campo de expressão pleno de vigor e capacidade de incorporar novas informações, perguntas, possibilidades. Abrigando, inclusive, quantas inquietações caras às manifestações contemporâneas da arte. Algumas das quais a também gravadora e artista plástica Manoela Afonso compartilha no artigo que assina, ao indagar sobre possibilidades de deslocamentos da experiência artística e estética desde o objeto para o ato relacional entre as pessoas que compartilham a própria experiência.

O segundo conjunto inicia-se com a provocação de Noeli Batista dos Santos, ao propor a metaforametria como procedimento avaliativo para o estudo do campo de produção de metáforas visuais por meio da sensibilização do olhar, num contexto em que as pessoas submetem-se, como funcionários, às programações dos aparelhos produtores de imagens. Avança sobre a temática das tecnologias da imagem, e suas relações com a arte, o artigo assinado por Cleomar Rocha, que traz à discussão a noção de ciberespaço, à luz de questões relativas à cultura contemporânea. Não menos contemporânea é a condição de supervisibilidade a que todos se encontram submetidos, seres de toda natureza, inclusive osvampiros. Esses são as personagens-tema do conjunto de reflexões trazido por Laura Coutinho e Adriana Moellmann, que têm no cinema o foco de suas indagações. A natureza humana em metamorfose é assunto a ocupar também a atenção de Alexandre Quaresma, cujo artigo trata dos deslumbramentos e incertezas decorrentes das possibilidades bionanotecnocientíficas, e algumas repercussões de âmbito sociocultural. Fecha a revista a análise proposta por Eduardo de Araújo Teixeira sobre a obra literária Nós que adoramos um documentário, de Ana Rüsche, em que questões como memória, autobiografia e ficção, presente e futuro se entrecruzam, na reinvenção de paisagens subjetivas e do vivido.

Agradeço a cada um dos autores por disponibilizar seus trabalhos, integrando este conjunto de diálogos que, esperamos, contribua, se não para compreendermos um pouco mais das sombras de nossos tempos, ao menos para nos impulsionar a avançarmos em nossas buscas, sobretudo na vontade de prosseguir perguntando, mais que respondendo, a respeito de tudo quanto não saibamos, de tudo quanto ignoremos. E é tanto! E é sempre muito mais do que imaginamos!

Agradeço, também, à Heloísa Buarque de Hollanda, pelo convite para organizar este número, o que oportunizou, afinal, encontrar pessoas queridas, tecer possibilidades a partir de suas produções, disponibilidades e motivações. Encontros no labirinto. Textos e imagens sobre o nosso tempo.

Boas leituras!

 

 

Referência

SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências na transição para uma ciência pós-moderna. Estudos Avançados, São Paulo, v. 2, n.2, Aug. 1988. Disp. em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40141988000200007&lng=en&nrm=iso>.
Acesso em 13 nov. 2010. DOI: 10.1590/S0103-40141988000200007.

 

* Professora adjunta VI na Faculdade de Artes Visuais da UFG, professora permanente do Programa de Pós-Graduação em Cultura Visual. Doutora em Sociologia. Desenvolveu projeto de pesquisa de pós-doutoramento no Programa Avançado de Cultura Contemporânea da UFRJ no período de 2009 a 2010, com bolsa da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro.

 

No Muro | de J. Bamberg


Gyn-Go/BsB-Df Abril/outono 2007
p/ Alice Fátima Martins, Manoela Afonso,
Don José Alvarez
e os meus brabos,
todos, sertanejos, antepassados.

 


Verso 1

No Sertão do Razo, onde nascí, diz-se que aquêle que atravessa as suas terras brutas, em verdade, navega, na sua imensidão sêca, no seu mar entreliçado de caatinga e de calor escaldante. Assim sendo, sou um navegante diferente, pois que, montado num burrão bem reiúno, repente, investido dos meus paramentos, das minhas esporas-4-Potosí, do meu manguá-de-rêlho, peiteira, gibão, luvas e chapéu de barrigueira de suçuapára, perneiras da costaneira do mesmo bicho e tudo o mais que nos componha, abaixo de Deus, dos carcará e dos urubus. Nos seguindo, em sombra, o meu Rizo, cachorro boca-prêta, rajado-caatingueiro-do-rabo-fino. Onde vou, ele, lá… Sou o encourado que por lá trafega os seus recônditos mais inextricáveis à toando a boiada inconsútil em meu tropel. E isso, desde muito antes de até haver nascido, pois que tocou-me vir ao mundo,qual os meus,todos, bem no meio dessa terra ressequida, debaixo de um pé-de-umbuzeiro de frondão bem protetor, refrescador de quase todas as misérias circundantes e ameaçadoras de sempre, logo ao fêcho de um dia de começo de outono, o primeiro com chuvada boa e morna, depois de fechado o sétimo ano de estio por lá.

A menina que me pariu, minha mãe, já assustada, comigo no seu colo a esturricar-lhe os peitos, sedento, puxando-lhe as suas águas no colostro, buscava forças para a nossa travessia em seguida e em riba de um carro-de-bois, em junta traquejada, até o pé do muro que restou de velho sobradão largado lá no meio do tempo, onde nos arranchamos a contra-vento, com todos os petrêchos, animais de monta e carga, agregados, parentalha, e isso, escarreiradamente, depois do meu anúncio, em chôro troado, de que viera a êste mundo para decifrá-lo! E assim, cheguei, chegamos e para isso aquí estamos, todos, em vida de decifrações contínuas, eternas. Riposto velhas sinas. E aqui, hoje,já um velho encourado, curtido nos sóis dos dias, conto-lhes dos “por quê”…

 

Verso 2

Ter um muro como referência,nesses ermos,é destino, Estrêla-de-Belém a ser perseguida.É como marcar a ferro em brasa a saga de ida em frente, até passarmos as horas das formulações, questionamentos e outras instruções de como re-fincá-lo em um ponto adiante na re-invenção do tempo por todos nós, navegantes. Pois, se êle é eterno, e, o é, essa fatia à qual renominamos de, agora, hoje, amanhã, realidade, seria tão sòmente mero recorte, marcação de passagem, afirmação do nosso nome assentado na sua face de pedra e cal, no muro do tempo, do lado que o sol nasce, e êle, o muro preconcebido, está lá desde sempre, qual fragmento do todo, como um arco é uma fração do círculo. Assim, êsse muro/recorte nos precede e se assenta, abrigo primeiro, detalhe da montanha e da caverna que nêle há, brique-a-brique da muralha ciclópica que, ilusòriamente, nos defenderia do , outro, do inimigo, em tempos muitíssimo para trás, antanhos.

 

Verso 3

Um muro é, na verdade, o não-limite-falso-determinado, assinalado, a nos provocar falas internas diante das suas miragens fronteiriças: “…Me ultrapasse. Vença-me e vá-se embora! Vença o mundo e êle será seu, a seu tempo…” . Sendo êle próprio a sua mesma marca revelada à sua própria sombra, na vala que nos separa em antes-e-depois da sua, nossa, construção, anunciando-se em nós, nêle mesmo, em suas lascas de pedra-de-lajêdo amontoadas, fincando o marco do outro lado onde estão os nossos ,e os outros, os inimigos e seus corpos formando o rebôco que forra a outra face desconhecida dêsse mesmo linde, mas, que vemos mui raramente, apenas quando passamos a sua linha de lado, sua claridade ou sombra, luz ou escuridão, o agora ou o desconhecido, nós ou êles, ess’outros, do lado de lá do muro sobreerguido a cada dia das nossas vidas em constante de construção e desconstrução, estampando nossa toda estupidez, nossa insanía, sanha de sangue, o des-limite, o nem ser, a pior forma de validamento do dispensável. É, esse muro, feito da compostagem dos corpos dêsses nossos ,outros, apesar, de, quando em vez, da consciência auto-crítica e sua boa paga em moeda de quase possível, em perenidades de boa Paz.

 

Verso 4

O muro é o arrimo para a miríade de vidas que o constrói, seja para os musgos nas entre-lascas das pedras ou na água barrenta fervilhante de micro-organismos a dar unto à sua massa de rejunte. Sêco, ao sol, parece ôlho de môsca, um pedaço grande de mica laminulada, um broche inteiro de macassita rebrilhante ou um painel de espaços para as mais variadas inscrições, a sangue pisado, a piche, spray, raio laser, sei lá mais o que. Fulano esgravatou-lhe uma rosácea, muito depois do índio ancestre riscar de urucum e sangue vivo a sua vitória contra um mapinguarí improvável. Beltrano fixou em vermêlho-e-prêto as mais terríveis imprecações sôbre si mesmo e sua amada impossível. Sicrano escrachou a todos com palavrões e desenhos de extra-terrestres. E, uma velha senhora, em idiolêto só seu, mas, plenamente compreensível aos seus pares, lascou: ” – têùn càuvãu pafôgu béinbõ 200 alátra” … U’a moça da cidade, veio, fotografou, filmou tudo e perguntou de tudo a todos, e se foi, como um risco feito no muro, de ponta a ponta, em linha irregular a perpassar todas as demais formas e micro-vidas alí postadas… Nêle foi afixado o édito da derrocada de Babel, a fala do, meu, em suas ruínas quanto à dôida afirmação do ,nosso ,e que antes a empilhara em tôrre que buscava os céus do não-futuro, do jeito que se havia, em negação fragílima do imprecatável. Destruída, sobrou-lhe o radier e coisa de metro-e-quase-dois, da sua base original e todo o mais, devidamente calcinados pelo Fogo do Castigo.O muro atávico esboroou-se e o que hoje existe o faz sôbre outros muito antigos muros afundados em raconte de estórias que, repetidas, viraram história: “…Veridiano-benze-quem e seu bravo cachorro ‘Vence-demanda’ morreram fuzilados, igualmente aos seus avós, encostados bem alí, no paredão de pedras, por conta de uma eleição apoiada do lado errado do muro!…”. É o que se diz, lendo-se a sentença da sua condenação real. Aliás, não interessa o contexto se a referência é tão sólida e marcada das cicatrizes do ricochête das balas “7.62-ponta-de-cruz”. O muro ficou e êle, o Veridianão falado, hoje, é um fantasmão, mais o seu cão-alma, correndo pelos bêcos estreitos nas madrugadas sem lua, na Vila de Santantõi de Lisbôna, distrito do Krenguenhén, no Sertão-de-Deus-o-tenha, sussurrando: “-… LIBERDADE!… LIBERDADE!…” O muro, lá, impassível, com as suas espinhas na cara a contra-sol.

Já o meu cachorro Rizo não pode avistar um muro. É só chegar, cheirar e afirmar os limites com a tinta breve do seu mijo ardido, em colocação “ad nauseam” do seu todo poder de bicho-macho. A cada vez que alguém passa, êle avisa em seu latido que aquém do limite tem ,outros,estranhos e que isso não é o certo e que carece de providências e consêrtos, fazendo alarido apoiado na cachorrada moradora de outros cantos de muro, em côro de infeliz concêrto…

Um muro, se mal entendido também poder ser um cêrco asfixiando-nos na fronteira nervosa e medrosa da xenofobia do intra-muros, no mêdo do outro, nos mêdos em régua-torta de perdição da noção básica da razão mínima. Havemos que vencer os mêdos, haveremos que pular os muros, venceremos em vira-mundo, trocando de caminhos, varejando as outras trilhas das verêdas e dos paços, buscando-se as passagens que nos levem à boa água, ao melhor destino, certamente, isso tudo, extra-muros, pois o Sertão, nosso, interior, quer a água da alegria, não se cabendo lindeiro, pois êle mesmo se quer avançar em busca de outros chãos mais úmidos que ofereçam fermento de mais e mais vida em abençoada abundância.

 

Verso 5

Afinal, a gente não nasce para o que esteja marcado na parede singela do muro da vida que recebemos para transformá-la. A vida se quer nisso, nessa mudança a toda hora, por isso, não se cabendo no tempo que a sombra do muro marca. A vida é sempre mais e mais e mais, muito além dos limites, além do horizonte longínquo, do traço das elipses, muitíssimo para lá das zonas mais densas e escuras do cosmo onde nascem as nebulosas com todas as constelações que nem sabemos porquê…

Ela, a Vida, não cabe no muro do universo e vive e revive, sim, no infinito, pousada numa dobra da Mão de Deus, bem p’rá lá de quaisquer muros e nos oferecendo o convite em desafio eterno e simples: “Vem!…” .

 

 

1. Versão condensada.
2. O autor prefere o uso de estilo, em prosa-poemática, como meio de preservação de falares ancestres da nossa língua, ainda falada e assim escrita, no sertão…

 

 

* J Bamberg é sertanejo, baiano, professor pesquisador, humanista.

 

A aglomeração Goiânia-Anápolis-Brasilia: notas de pesquisa e sugestões de políticas | de Brasilmar Ferreira Nunes

Apresentação

Procuramos no presente artigo refletir sobre as características do macro-eixo Goiânia/Anápolis/Brasilia que se constitui hoje no principal pólo urbano do Centro-Oeste brasileiro com potencial de se transformar numa área de irradiação de padrões sociais modernizantes. Esse macro-eixo que agrega nossa capital política, uma capital estadual e uma das principais cidades de porte médio da região detém vantagens locacionais ímpares e está se transformando no principal pólo urbano da Região dando sinais de fortalecimento de uma sociedade moderna no Planalto Central do país.

Breve diagnóstico do Centro-oeste brasileiro
A Região Centro-Oeste é composta por 3 Estados (Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul) e o Distrito Federal ; segundo o censo demográfico do IBGE de 2010 conta com uma população total de 14050340 habitantes. Desde a época colonial tratou-se de Região periférica na economia e sociedade brasileira; passa, porém, na Segunda metade do século XX, por rápidos processos modernizantes na sua estrutura econômica, social e política. Particularmente, a partir da transferência da capital federal para Brasília, quando então foi implantada a rede de transporte e comunicação interligando o Centro-oeste com o restante do país, é que se pode considerar que frentes modernas de ocupação impactaram vigorosamente sua malha urbana.

De fato, a nova capital federal se insere numa lógica em curso de generalização de relações capitalistas para o conjunto do território brasileiro que havia se iniciado a partir dos anos 30 com a implementação das políticas nacionais de colonização, integração e interiorização da economia sob a égide do Estado. Sua localização no Centro-oeste reconfigura a lógica regional, na medida em que consolida um processo de mudanças na distribuição territorial da população regional, processo este que já havia se iniciado na primeira metade do século XX com a construção de Goiânia (NUNES, 2004).

As duas cidades hoje, junto com Anápolis, consolidam um eixo urbano dinâmico e elevado poder de polarização da rede urbana regional. A população ai residente se aproximava dos 3.600.000 habitantes (IBGE, 2000), o que aproximadamente corresponderia a 31% do total regional, indicando um elevado grau de concentração espacial da população. Estudos do IPEA (1999) mostram que o poder de influência deste eixo se estende por todo o Centro-oeste, parte de Minas Gerais, Bahia e São Paulo alcançando as bordas sul da Região amazônica.

O suporte dado pelo setor público foi fundamental tanto para a ocupação como para a transformação produtiva recente do Centro-oeste, com investimentos em infra-estrutura de transportes, energia, armazenagem. Políticas levadas a cabo por diferentes governos subsidiando créditos rurais e preços mínimos, bem como os programas de colonização, de incentivo à pecuária, e principalmente o programa de incentivo às frentes comerciais (POLOCENTRO) fizeram do Centro-oeste, exemplo típico de região de fronteira que se consolida como área de moderna produção agro-industrial.

Ainda segundo o IPEA constatamos que o crescimento mais expressivo se deu nas décadas de 70 e 80 do século passado. Os anos 70 foram marcados basicamente pela agroindustrialização regional, tecnificação das lavouras e da pecuária. A partir daquela década se implantam pequenos grupos empresariais locais e regionais, com suporte de capital acumulado no setor comercial, sendo favorecida pelos incentivos fiscais. De fato, “as ações combinadas do Estado e do capital privado transformaram a realidade econômica e social do Centro-oeste, redefinindo a dinâmica demográfica, modificando o perfil do trabalho e do emprego, criando importantes complexos de armazenagem e submetendo a pesquisa e a extensão rural aos interesses dos grandes capitais. Estas transformações possibilitaram a expansão intra-regional do comércio, estabelecendo as condições regionais para a integração aos mercados nacional e internacional. Hoje é um espaço do agrobusiness de amplitude nacional e mesmo internacional”.(IPEA, 1999,159).

Das reflexões anteriores podemos nos deter em alguns aspectos que nos permitirão avançar em nosso objetivo. De um lado, a inserção da Região na lógica da acumulação mundial; de outro as possibilidades de considerar o espaço das cidades regionais como estratégicos nos processos em curso de mudança. A partir dessas duas dimensões escolhidas poderemos traçar algumas perspectivas de análise da realidade regional e seus potenciais.

Globalização, Região e Cidades

A globalização dos mercados e da cultura no mundo moderno pode ser entendida como um processo histórico que, graças ao enorme progresso nos meios de comunicação e nas estruturas produtivas, redefiniram de forma radical a relação tempo e espaço. Assim é que nos dias atuais não se coloca mais em questão o fato de que se trata de um processo que se impõe ao mundo todo, independentemente dos níveis de desenvolvimento e da política seguida por cada país considerado isoladamente. O fenômeno traz inúmeras implicações econômicas, sociais e culturais, mas podemos considerar quase que como resultado “mecânico” desse processo a ocorrência de uma elevada concentração da riqueza gerada internacionalmente e um agudo processo de exclusão social que assume formas diferenciadas segundo contextos socioculturais específicos. Esse é um fenômeno que se observa a nível geral e a na dimensão interna das economias nacionais.

Interessa-nos todavia aqui o fenômeno urbano e não o macro-regional. Nossa hipótese é de que nessa escala urbana podemos perceber processos em pequena escala relativa que nos apontam movimentos em curso nos diferentes sub-territórios do país, decorrentes de dinâmicas “locais” que são relativamente escamoteadas quando utilizamos escalas territoriais mais amplas. Portanto, a escala urbana nos permite analisar fenômenos sócio-econômicos a partir de um duplo movimento: por um lado, no nível global, o ganho de importância do papel das cidades na formação das redes mundiais de articulação dos interesses macro sistêmicos, e, por outro, no nível sub-regional, o impacto da formação de aglomerados relativamente importantes que, no geral, vêm de par com o esvaziamento populacional do campo.

De fato, o fenômeno urbano hoje é estratégico a tal ponto que, apoiada por agências de desenvolvimento internacionais (BID, BIRD, etc) a política urbana adquire primazia nas políticas públicas, com programas e projetos envolvendo vultosos recursos financeiros e técnicos para a oferta de serviços coletivos (saúde, saneamento, transporte, habitação, etc) envolvendo vultosos recursos financeiros e técnicos. As anteriores políticas de desenvolvimento regional hoje são substituídas por ações estratégicas nas cidades que absorvem vultosos volumes em investimentos públicos e privados. Essa alteração estrutural na escala das prioridades de políticas e a prioridade dada às políticas urbanas fazem das políticas setoriais urbanas um “grande negócio” e a cidade passa a ser enxergada como um modelo calcado em princípios econômicos apoiada pelo tripé – desregulamentação, privatização e lugar de mercado. Nesse contexto, o espaço urbano é visto como uma parte do mercado global, conformando a chamada cidade estratégica. Os aglomerados urbanos de porte atuam como empresas, agindo no mercado global e nacional mediante estratégias competitivas para atração de investimentos a partir da noção de produtividade urbana (World Bank, 1991; 2000).

Com base em tais elementos gerais, nossa hipótese é de que está em curso no macro-eixo Goiânia/Anápolis/Brasília a formação de um núcleo moderno que altera a lógica regional não apenas econômica, mas também social e cultural num movimento contraditório entre o velho e o novo que se anuncia. Esse processo se manifesta de forma desigual reproduzindo fenômenos “arcaicos” na medida em que dimensões “modernas” se implantam, ou seja, apesar dos avanços que possam ser identificados, se reproduz aqui desigualdades seculares. Temos então o fenômeno da heterogeneidade estrutural que caracteriza as sociedades atuais, fenômeno este que se constata também nessa sub-região.

A presença de infra-estrutura adequada: aeroportos internacionais, modernos sistemas de comunicação, equipamentos de turismo, hotéis, consultorias internacionais, centros de convenções, museus, universidades, etc. garantem o fluxo de pessoas, serviços e mercadorias, constituindo um mercado de consumo de massa e também especializado com elevado nível de segmentação com padrões de alta sofisticação, sobretudo pela presença do setor público que emprega com salários estáveis e relativamente elevados. Por outro lado, constituem os pontos especiais de entrada no Centro-Oeste de novos produtos e novas tecnologias geradas mundialmente. Isso faz desse macro-eixo um núcleo de absorção e de difusão de novas relações sociais, políticas e de novos padrões de crescimento, exercendo papel estratégico nas mudanças culturais, entendidas no seu sentido amplo.

Entretanto, o ganho de importância desse macro eixo urbano não está significando alteração na participação relativa da Região na geração da riqueza nacional. Vejamos isso mais de perto. Considerando dois extremos – 1995 e 2008, estudo do IPEA nos aponta que a participação de cada Unidade da Federação no PIB brasileiro, variou muito pouco no período. Em outras palavras, aqueles Estados que em 1995 apresentavam a maior participação no PIB são os mesmos de 2008, bem como os quatro com menor participação; as variações foram mínimas, destacando-se apenas o DF que caiu duas posições (4,3 para 3,9%); São Paulo e Rio de Janeiro são ainda os principais geradores de riqueza nacional mesmo se perdem alguns pontos percentuais no ranking. Goiás passa de 2,0 a 2,5%; Mato Grosso de 1,0 a 1,7% e Mato Grosso do Sul de 0,9 a 1,1% no período (Fonte: Ipea a partir de dados do IBGE 2010). Os dados nos mostram portanto que houve uma desconcentração da atividade econômica, mas ela foi incapaz de mudar substancialmente o perfil regional brasileiro, sugerindo que a distribuição da atividade econômica no território nacional advém de mecanismos econômicos que garantem a estabilidade do sistema, ao menos no curto período aqui examinado.

Entretanto, tais indicadores nos apontam para outras dimensões do processo econômico regional, ou seja, mostram uma realidade que análises muito apressadas tendem a argumentar exatamente o contrário. Temos sim, um núcleo urbano de porte e importância com o eixo Goiânia –Anápolis – Brasília desempenhando papel estratégico, se bem que em escala subordinada aos padrões de crescimento e desenvolvimento ditados pela duas metrópoles nacionais. Voltaremos a esse ponto na seqüência, mas estamos pressupondo que esta subordinação não implica dependência absoluta da dinâmica regional àquela de São Paulo/Rio de Janeiro. Há um grau de interdependência e de autonomia relativa, sobretudo se pensarmos na dinâmica dos agro-negócios do Centro-oeste, fator estratégico de suporte à economia brasileira. Sem considerarmos, evidentemente, o fato de que Brasília sendo sede do governo federal dá ao Centro-oeste um peso político ímpar no cenário nacional.

Interessa-nos na perspectiva sociológica identificar na área as formas segundo as quais determinadas maneiras de pensar, agir e sentir que poderiam ser consideradas universais, se considerarmos que estamos tratando de uma região inserida nos mercados globais. Particularmente tentaremos decodificar as formas e os impactos de entrada de relações sociais ditadas por parâmetros globais de produção e consumo que, de forma desigual e combinada vão ocupando espaços físicos e mentais numa Região que guarda ainda resquícios de um “Brasil profundo”. O importante é saber como tais modelos de relações concorrem para a transformação das formas de sociabilidade e de solidariedade entre grupos e indivíduos numa Região até recentemente escamoteada dos grandes processos sociais em curso na sociedade brasileira. Para tanto, iremos priorizar aspectos da dimensão urbana do processo de mudança social.

Perspectivas da gestão urbana

O dinâmico agro-negócio que se consolidou na região nessas últimas décadas, expandindo a fronteira agrícola permitiu ao Centro-Oeste e aos seus principais pólos urbanos uma posição entre as regiões dinâmicas do país, mesmo se ainda bem afastadas em importância de SP e RJ. Mantendo-nos nessa perspectiva do “pensar, agir e sentir” e analisando as três cidades vemos que desempenham papéis complementares na economia e na cultura num sentido mais amplo. Goiânia uma cidade planejada nos anos 30 e Brasília nos anos 50 do século XX se transformaram em pólos econômicos rapidamente. Cada qual com sua vocação, mesmo se ambas sejam sedes de poderes públicos. Anápolis, entre as duas se beneficia dessa localização privilegiada e vai se firmando como pólo industrial regional. É evidente que o DF passa nesse seu curto período de existência a cumprir funções que vão além de centro político administrativo nacional. Contudo, continua ainda sendo altamente dependente do setor público na composição do seu PIB, que é ali quase o triplo da média nacional. Goiânia embora com um setor público também significativo, diversifica suas funções sobretudo terciária e de prestação de serviços. A título de ilustração lembremos que enquanto a densidade demográfica do Centro-oeste para 2010 é de 8,7 hab/km2, a densidade demográfica do DF é de 442,82 hab/km2 e da Região Metropolitana de Goiânia é de 513,71 hab/km2.

Essas observações nos mostram que a Região Centro-Oeste reproduz na sua rede urbana fenômeno similar ao que se observa nas demais regiões do país, qual seja, a concentração das funções urbanas em alguns poucos centros importantes e uma numerosa e extensa rede de pequenas cidades que, para o Centro-Oeste são fundamentalmente pontos de apoio logístico às atividades agro-pecuárias. Somos um país continental e poderíamos imaginar que essa concentração urbana estivesse refletindo desequilíbrio nos padrões de desenvolvimento regional e urbano. Entretanto, estudos vêm mostrando que a aglomeração/concentração de população e atividades está na lógica de desenvolvimento de sociedades de mercado. Mais ainda, sabe-se que economias muito pobres são espacialmente bem distribuídas, se não bastasse o fato de que nelas o excedente econômico que poderia ser concentrado é de pequeno vulto, não havendo, portanto o que concentrar (Williamson, 1965).

Cabe ainda lembrar que a decisão locacional de atividades produtivas numa lógica de mercado está sempre priorizando os ganhos da decisão. No nível de uma empresa individualmente há, portanto maiores possibilidades de implantação nas áreas onde o cálculo econômico é mais benéfico. Isso é que leva à localização prioritária em aglomerações urbanas (infra-estrutura, força de trabalho, serviços, mercado de consumo, etc) justamente onde as economias de aglomeração e de urbanização se manifestam. Explica-se portanto, a concentração das atividades econômicas e pessoas em cidades, e mais ainda, maiores cidades detêm maiores poderes de atração de empresas e indivíduos1 .

Portanto, deixemos de lado análises que atribuem ao Estado ou às empresas uma perspectiva expressa de priorizar certas localidades em detrimento de outras nas suas decisões, numa pretensa conspiração. Cabe, isso sim, decodificar a lógica do lugar e se dar conta dos limites e potencialidades de uma estratégia de desconcentração ou concentração. Se quisermos avançar um pouco mais nas ponderações, podemos argumentar que políticas sociais bem estruturadas podem gerar maior bem-estar do que um avanço percentual de um estado na participação do PIB nacional. O que talvez valesse a pena insistir é que historicamente no caso brasileiro a concentração da atividades econômica teve sua fase aguda nos anos 1970 e a dispersão vem se dando em ritmo lento, conforme estudo do IPEA acima referido. O Centro-oeste alterou pouco a sua participação no PIB nacional, porém não restam dúvidas de que a qualidade de vida na Região vem apontando para ganhos expressivos, seja nas suas maiores aglomerações seja nas demais2 .

Todo este debate resumido acima mostra a importância da cidade nos processos de mudança social. No caso brasileiro, a chegada ao poder federal de novas forças políticas vem trazendo algumas alterações nas estratégias governamentais de gestão das cidades e do território. Lembremos que em 10/07/2001 foi sancionada a Lei n. 10.257, o chamado “Estatuto das Cidades” que estabelece diretrizes gerais da política urbana. O atual governo criou o Ministério das Cidades com objetivo principal o de reordenar as formas de ação estatal nas cidades, até então diluídas em Ministérios setoriais sem articulações claras e precisas entre as diferentes ações. Estão, portanto, dadas as condições institucionais de formular, implantar e gerir uma nova política urbana para o país.

Política urbana como elemento de mudança social

Seria oportuno sintetizar os princípios básicos que norteiam o processo em curso de formulação desta política urbana. Assim é que o compromisso do governo é o de garantir o processo de modernização da sociedade, gerar empregos e riqueza e estabelecer a justiça social. Isto implica que as ações governamentais devem se inserir na lógica de tais princípios e nas cidades brasileiras ocorrem problemas fundamentais a enfrentar: baixa taxa de investimento em infra-estrutura urbana nos últimos anos, a precariedade e ilegalidade do habitat das maiorias e a segregação sócio-espacial é o reflexo de políticas que até então priorizaram investimentos que atendessem as necessidades do capital e consumo das camadas privilegiadas da população. A concentração da renda, a diminuição dos investimentos em políticas sociais e a privatização dos serviços públicos só vieram agravar esta situação. O resultado é a imensa carência de habitação e de serviços como educação, saneamento, saúde, transportes, creches, abastecimento nas áreas populares das cidades. Há nas nossas cidades um déficit fantástico na oferta de serviços coletivos tanto em quantidade como em qualidade. As ações de governo para suplantar essa situação de desigualdade estrutural vêm se dando de maneira peculiar: programas como “Bolsa-família”, “Minha Casa Minha Vida”, estratégias de ampliação das matriculas no ensino superior, entre outros, alterando a distribuição da riqueza nacional de forma a diminuir o gap entre os mais pobres e os mais ricos.

Este diagnóstico, geral para o Brasil, se aplica também ao Centro-oeste. Dentro as duas lógicas centrais de reprodução da sociedade regional (agrobusiness e serviços) a região urbana Goiânia-Anápolis-Brasília se consolida como área e prestação de serviços tanto especializados quanto de apoio às atividades econômicas. Esta área é a responsável também pela articulação do Centro Oeste com o restante do país e com o mercado internacional. Razões desta natureza dão a este espaço um papel estratégico nos processos regionais de mudança. Portanto, potencialmente a área pode corresponder positivamente aos investimentos que porventura nela venham ser efetuados. Veremos isso ao longo do texto.

Se retomarmos as reflexões anteriores sobre o lugar da cidade na atual etapa da globalização e se levarmos em conta que o Centro-Oeste goza de algumas características na dinâmica da acumulação no país sustentamos a hipótese de que a gestão urbana regional deverá considerar a rede de cidades pré-existente e utilizar o potencial da área como fator de mudança, sobretudo para ultrapassar os níveis de desigualdade social e econômica que aí se apresentam. Particularmente deverá consolidar a polarização do eixo Goiânia-Anápolis-Brasília. No nosso entender está aí um ponto de sustentação das possibilidades de modernização da sociedade regional. Cabe insistir que num primeiro momento, a idéia de modernização da sociedade regional se vincula à ampliação das interações sociais calcadas na relação monetária, rompendo com formas usuais em sociedades agrárias como foi o Centro-Oeste até meados dos anos 1970. Além disso, consideramos aqui a tese segundo a qual a densidade populacional é um fator de mudança na medida em que a proximidade gera maiores estímulos à divisão social do trabalho, maior densidade política e mais autonomia entre os diferentes interesses. Ao mesmo tempo, a densificação populacional leva à tendência à generalização da moeda como instrumento real e simbólico na estruturação dos vínculos sociais. Vejamos os argumentos, retomando Durkheim da “Divisão do trabalho social” (1960).

Segundo seus argumentos, o progresso na divisão do trabalho induz transformações radicais nas sociedades: o seu processo cada vez mais intenso provocou a passagem da sociedade tradicional (solidariedade mecânica) para as sociedades complexas (solidariedade orgânica). O interessante é procurar nos argumentos utilizados as causas dessa passagem. Vemos que Durkheim dá um peso fundamental ao fator demográfico: em sociedades com poucos habitantes e dispersos em vastos territórios haveria a possibilidade de uma existência autônoma; famílias e grupos não se destroem economicamente podendo contar com recursos relativamente abundantes utilizando técnicas comuns. Entretanto, quando a população cresce e, ao mesmo tempo, se torna mais densa, a sobrevivência do grupo não é possível a não ser sob a condição de operar uma divisão de tarefas, de desenvolver a especialização e a complementaridade de funções. Nesta observação, Durkheim tira a seguinte proposição geral: “A divisão do trabalho varia em razão direta do volume da densidade das sociedades, e se ela progride de uma maneira continua ao longo do desenvolvimento social, é porque as sociedades se tornam regularmente mais densas e mais ainda volumosas”.(idem)

É ainda oportuno chamar a atenção para o peso estratégico que Durkheim dá às conseqüências do crescimento demográfico. Para ele os efeitos do aumento populacional são ainda mais importantes, ultrapassando os impactos sobre a divisão do trabalho. De fato, a densidade demográfica provoca o que Durkheim chamou de densidade moral. Os homens estando mais próximos, suas relações se multiplicam, se diversificam se intensificam; resulta daí um “estimulo geral”, uma maior criatividade e então uma elevação do nível de civilização desta sociedade. A conclusão de Durkheim é então a seguinte: “Na medida em que determinamos a causa principal do progresso da divisão do trabalho, nós determinamos também o fator essencial do que chamamos civilização… No momento em que o numero de indivíduos entre os quais as relações sociais são estabelecidas é mais considerável, eles não podem se manter a não ser que se especializem cada vez mais, se supercapacitando; deste estimulo geral resulta, inevitavelmente, um maior grau de cultura. Mais numerosos são os indivíduos mais eles exercem de perto sua ação uns sobre os outros, mais eles reagem com força e rapidez, mais consequentemente a vida social é intensa. Ora é esta intensificação que constitui a civilização”.(idem).

Dados da PNAD para 2001 nos mostram que, em termos nacionais, a Região Centro-oeste é a menos habitada do país, inferior mesmo a Região Norte. Conta pelos dados do IBGE de 2010 com 14050340 habitantes, o que corresponde a 7,36 % da população total do país (190732694 habitantes). Apesar da baixa densidade demográfica (8,74 hab/km2, enquanto que para o Brasil é de 22,4 hab/km2) sua população está urbanizada por taxas bastante elevadas: 88,82 % de seus habitantes moram em cidades de acordo com os critérios oficiais. Esta elevada proporção de habitantes urbanos é, inclusive, superior à média observada para o Brasil (84,35%).

Os dados da PNAD de 2000 apontam ainda que uma parcela importante desta população (49,2 % de homens e 50,8% de mulheres) está na faixa etária de 0-9 anos (16%); aqueles que podem ser enquadrados na terceira idade (acima de 60 anos) contribuem com 9,5% do total. A maior concentração de população por faixa etária está entre 20 – 39 anos (34%); entre 40-59 anos (22,6%); entre 10-19 anos (18%).., Este spectrum populacional por si só indica as prioridades de políticas sociais (educação de base por um lado e apoio à terceira idade, por outro) e de política de emprego para a PEA regional. De fato, a dinâmica demográfica do Centro-Oeste segue as tendências gerais para o Brasil apontando para a efetiva inserção da Região na lógica geral da sociedade brasileira. Estamos longe do tratamento periférico dado à área antes de sua modernização produtiva, particularmente em suas atividades agro-pecuárias.

A população regional detém um elevado grau de analfabetos : dados para 2008/2009 apontam 7,57% da população com 10 anos ou mais de idade não sabem ler nem escrever. Os dados do IBGE para 2000 apontavam que 11,02% dos alfabetizados contam com 4 anos de estudos e 11,10% com 11 anos de estudos, no eixo urbano em análise, dois dos maiores índices de freqüência à escola encontrado na Região. Aliás, esta é a maior quantidade de anos de escola observada também para o Brasil no seu conjunto. Há, portanto um elevado grau de pessoas com o primeiro e o segundo graus completos, enquanto que a presença no ensino universitário chega a ser irrisória: menos de 1% da população possui mais de 12 anos de escolaridade.

Como observado também para o restante do Brasil a população negra e parda é menos escolarizada que a branca (14,7% de analfabetos para os primeiros contra 10,21% para os segundos em 2000) . Entretanto, se considerada a partir de 1 ano de escola a participação de negros e pardos é sempre superior à dos brancos até atingir os 10 anos de estudo. A partir daí, ou seja, de 11 a 15 anos de sala de aula, os brancos tomam a dianteira dos negros e pardos, com distâncias cada vez maiores quanto mais se avança na escala de anos de estudo. A diferença se escancara quando olhamos a proporção daqueles com 15 anos ou mais de estudo e constatamos que dos 3,81% do total regional que detém esta posição, 74,27% são brancos e apenas 25,7% são negros e pardos. Pode-se avançar a hipótese de que na medida em que nos extremos inferiores de escolaridade os negros predominam e que nos extremos superiores os brancos predominam, haveria sutis mecanismos de segregação racial na sociedade regional.

Da população total, 54,5% compunham a PEA regional em 2001. Os dados naquele ano nos informam ainda que 1,47% desta PEA está ocupada em atividades agrícolas, o que significa que 98,43% se dedicam a atividades econômicas urbanas. Esta informação já demonstra o elevado grau de participação da economia urbana na geração da renda regional, especialmente na renda salário. Porém, a indústria não é a principal empregadora da força de trabalho regional: se somarmos a “industria de transformação”, “industria de construção” e “outras atividades industriais”, o setor industrial regional absorve apenas 5,5% da PEA. O principal setor empregador na Região é o de “prestação de serviços” responsável por 11% do emprego urbano; o “comércio” emprega 6% da PEA, índice semelhante ao do setor “social”. Temos aqui um típico caso de urbanização sem industrialização denotando uma especifica dinâmica intra-regional de consolidação de cidades, sobretudo se levarmos em conta que o setor agrícola sendo o eixo principal da economia regional emprega parcela restrita da PEA aí residente.

Claro que os dados que tomamos para este breve diagnóstico são parciais, merecendo maior refinamento3. Entretanto, refletem uma perspectiva da sociedade regional útil para avançarmos em nossas reflexões. Assim, em linhas gerais, podemos deduzir que o Centro-oeste é uma macro-região que apesar de sua recente inserção na dinâmica da economia e da sociedade nacional, vive um intenso processo de urbanização, uma inserção moderna na economia agro-exportadora, guardando, porém os resquícios da sociedade brasileira tradicional: desigualdades sociais, culturais e raciais. Em outras palavras, e conforme alguns dos indicadores escolhidos estamos tratando de uma típica região brasileira que, apesar de ainda recente no seu processo modernizante, vem repetindo, as características de outras Regiões mais tradicionais no país.

Cidade e modernidade cultural

Com base nos argumentos apresentados sustentamos a função modernizadora provocada pelo processo de urbanização. A cidade é o lugar da aglomeração de pessoas, onde a especialização do trabalho se faz necessária, obrigando os indivíduos a interagirem de forma contínua, mesmo se esta interação se faça, muitas vezes, de forma impessoal, calcado na lógica monetária(SIMMEL, 1998) Em outras palavras, e no essencial, Durkheim privilegia a interação social como principal fator da civilização e a cidade é o lugar por excelência dessa interação, da intensificação da influencia reciproca das pessoas. Se voltarmos a Durkheim podemos constatar que ele vai ainda mais longe: “Ao mesmo tempo que as sociedades, também os indivíduos se transformam em conseqüência de mudanças que se produzem no número de unidades sociais e de suas relações”. Vale dizer, portanto que, segundo o autor, o crescimento populacional terá então repercussões psíquicas sobre o caráter das pessoas, tanto quanto as conseqüências econômicas e sociais.

No caso particular do eixo Goiânia-Anápolis-Brasília temos uma situação específica: se por um lado, o país, no seu conjunto, vivencia certa estabilização dos índices de crescimento demográfico e do processo de transferência da população rural para a cidade, por outro, este eixo continua exercendo forte poder de atração migratória, oriundas, mais especificamente de áreas circunvizinhas. O crescimento populacional aqui ocorrido a partir dos anos 90 está muito condicionado à própria dinâmica migratória inter-regional e intra-municipal do que aos fluxos provenientes de outras regiões como ocorreu em períodos anteriores. A avaliação do IPEA é de que os reflexos dessa dinâmica na rede urbana regional vai se dar mais no sentido de consolidar as cidades já existentes e pouco influenciará o aparecimento de novos núcleos, pelo menos os que poderiam ser considerados de grande expressão. Certamente os problemas urbanos que ocorrem, e que por ventura virão a ocorrer, deverão estar concentrados, sobretudo nessa área mais densa correspondendo ao eixo Goiânia-Anápolis-Brasília. No geral, esse crescimento demográfico vem se dando de forma descontrolada, decorrência de problemas na origem dos fluxos, com crescimento exponencial de demandas por serviços coletivos nos lugares de destino, porém sem prioridade nas políticas públicas voltadas ao atendimento dessas novas demandas.

Não restam dúvidas de que essa região urbana é hoje zona de destino e não de transição dessas correntes migratórias. A política urbana deverá, portanto, ter como meta prioritária garantir condições condizentes com os padrões atuais de vida, tantos para os que aqui estão como para os que para aqui virão. Necessariamente, a transparência do setor público com controle da sociedade, a descentralização, o planejamento participativo e gestão pública orientada para o cidadão e para as minorias – negros, mulheres, crianças, etc. – apontam para a importância da desprivatização do Estado e a sua colocação a serviço do conjunto dos cidadãos, em especial dos setores socialmente marginalizados.

Gostaríamos, entretanto de insistir em alguns aspectos pouco destacados quando se analisa o espaço urbano do Centro-Oeste, especialmente a área Goiânia-Anápolis-Brasília. Temos que lembrar que nos meios acadêmicos hoje as grandes cidades são analisadas como produtoras e resultantes da intensa integração dos mercados, além de estarem na ponta da revolução tecnológica e da globalização cultural (SASSEN, 1998). No Brasil a rede urbana é polarizada pelas áreas metropolitanas de São Paulo e Rio de Janeiro, estando classificadas na escala do que se conhece como “cidades globais”, articuladas com a rede mundial de cidades. Esse papel estratégico é internamente manifestado pela capacidade que estas duas áreas têm de articular a rede de cidades nacional através de laços produzidos no setor terciário de serviços e no comércio de mercadorias (IPEA, 1999)

Há, portanto hegemonia desses centros sobre a rede urbana nacional que, no entanto detém ainda um grau de autonomia relativa face aos estímulos emanados pelos centros maiores. Particularmente a área que nos interessa tem ainda algumas peculiaridades: são centros político/administrativos e polarizam uma área com forte dinamismo econômico, sobretudo agro-pecuário, com uma rede urbana de baixa densidade. Essas características lhes dá um diferencial pois suas funções principais independem dos estímulos externos. Brasília é capital política e Goiânia capital estadual, com forte poder de polarização (IPEA, 1999): são atividades que necessitam para seu exercício, sobretudo de recursos estatais/orçamentários aos quais têm acesso e controle; Anápolis se beneficia de sua localização privilegiada entre as duas, interligada por modernas vias de comunicação.

Outra qualidade distintiva e que deve ser destacada é o fato de se tratar de cidades novas, planejadas, cujo desenho urbanístico, na medida em que rompe com padrões tradicionais de espaço urbano, atua como indutor de novas modalidades de convivência social, ou de interações sociais. Por outro lado, a presença nas duas cidades de um grupo importante de funcionários públicos com salários estáveis e de alto valor médio produz um espaço de consumo seguro, sem variações negativas, estimulando a incorporações de inovações em diferentes esferas da vida social, via padrões de consumo.

Temos então um cenário peculiar ao contexto no qual este macro-eixo se insere: uma sociedade urbana moderna, forte presença do trabalho assalariado, com elevados índices relativos de renda, um funcionalismo público que conta com a presença importante da mulher nos seus quadros, níveis educacionais que, embora não sejam ideais, está acima da média regional e mesmo nacional, etc. Sem pecarmos pelo exagero pode-se argumentar que temos as bases para a consolidação de uma sociedade moderna, pós-industrial, ou seja, orientada para uma economia na qual o capital de base intelectual se torna cada vez mais hegemônico, fundamentada no indivíduo, em seus recursos intelectuais e na capacidade de formação de redes sociais e na troca de conhecimento (BENDASSOLI, 2000).

Claro que há o reverso da medalha, ou seja, contínuo crescimento demográfico que muitas vezes não é constituído por indivíduos com o perfil de uma sociedade moderna, reproduzindo padrões de vida abaixo ou diferente do que se poderia aceitar nos tempos atuais. Entretanto, isso não compromete o argumento, pois estamos sempre considerando que o processo de generalização do mercado é desigual, e tem uma dinâmica inserida na sua própria lógica que gera efeitos contrários.

O contexto urbano em análise é, portanto lido aqui como um espaço de oportunidades, novas sociabilidades que se contrapõem àquelas de um Brasil profundo e que aos poucos dá ao individuo a condição de anonimato, característica essencial das personalidades urbanas. Se em Brasília tivemos a chegada de uma burocracia urbana metropolitana oriunda do Rio de Janeiro, ou se em Goiânia a condição de modernidade urbanística lhe permitiu inovações nos níveis de sociabilidade é de se pressupor que o migrante que aí chega se vê inserido numa lógica que o leva a abafar os traços de um provincianismo e que o identificaria com a condição anterior de existência, em favor da adoção de modos de vida mais adequados ao novo status. Insistimos que estamos tratando o migrante não como um aventureiro: aventureiros não fazem parte da lógica sistêmica, migrantes são aqueles à procura de inserção nessa lógica. Tanto Goiânia como Brasília, cada qual no seu tempo jogam forte no imaginário social de populações interioranas, sobretudo em razão do forte conteúdo simbólico e cultural que detêm e se espalha pelo território circunvizinho.

O que se defende aqui, portanto é a necessidade de incorporar nas reflexões sobre a dinâmica regional-urbana os fatores de mudança que ela contém fatores esses que valorizam a criatividade e o culto às rupturas e inovação (RAFAEL, 2010). São várias as esferas onde estas inovações se apresentam, mesmo com as resistências usuais: por exemplo, a esfera cultural que hoje está inserida na indústria cultural voltada à produção de bens simbólicos/culturais obedecendo aos princípios da economia de mercado capitalista (uso crescente da máquina, divisão e especialização do trabalho, etc.). O efeito é a mercantilização das tradições culturais do lugar, ou seja, cada vez as práticas culturais tradicionais são produzidas com vistas à troca e ao consumo, via mercado. Há aqui então um nicho de mercado – economia criativa – que abrange além das indústrias criativas, o impacto de seus bens e serviços em outros setores e processos da economia e as conexões que se estabelecem entre eles.

Reis (2008) analisa de maneira ampla como a economia criativa é abordada pelos estudiosos da questão em contextos distintos. Interessa-nos aqui recuperar o lugar da cidade como espaço criativo que é um dos enfoques selecionadas. O autor argumenta que tratá-la como “espaço criativo” permite atrair talentos e investimentos para revitalizar áreas urbanas; promover os clusters criativos, articular a cidade com os pólos criativos mundiais, articulados com a política de turismo e de atração de mão-de-obra criativa e, sobretudo, restauração do tecido socioeconômico urbano baseado nas especificidades locais 4.

Finalmente, se retomarmos os argumentos da rede urbana regional que se caracteriza por uma grande dispersão de pequenos núcleos e considerando que o eixo Goiânia-Anápolis-Brasilia polariza a dinâmica urbana regional naquilo que ela tem de “moderno” teremos então que lembrar que além dos aspectos econômicos e políticos que agregam, tem também dimensões da cultura que se irradia para os demais centros, sobretudo os mais próximos, ampliando um mercado consumidor de bens culturais. As distâncias geográficas de centros como São Paulo, Rio de Janeiro e mesmo Belo Horizonte, aliado a um mercado de consumo de rendas médias elevadas e com padrão mais sofisticado dinamiza a oferta e a comercialização de produtos exclusivos, refletidos nos shopping centers e comercio varejista em geral. Ao mesmo tempo, gera a oferta de bens culturais (museus, galerias, teatros, etc) para atender a essa demanda, favorecendo a ampliação e diversificação do turismo regional que altera a qualidade dos serviços ofertados para esse mercado específico5

Cabe aos estudiosos da realidade regional incorporar em suas reflexões essa dimensão, lembrando que o conceito de indústrias culturais é multidisciplinar, lida com a interface entre economia, cultura e tecnologia, centrada na predominância de produtos e serviços com conteúdo criativo, valor cultural, guiados pelo mercado. Esta esfera é, portanto ampla e variada e o quadro abaixo ilustra as implicações que o tratamento da realidade local a partir dessa dimensão pode compor. Evidente que nos quadros desse texto não é possível discriminar cada uma dessas dimensões, porém serve como indicação para futuros trabalhos.
Inclusive confirma o papel indutor de novos empreendimentos exercido pelas universidades ali situadas, que na medida em que apontam aspectos potencialmente inovadores da região, desperta em seus estudantes o interesse por novos temas de trabalho e pesquisa.

BIBLIOGRAFIA

BENDASSOLI, Pedro F. Indústrias Criativas: Definição, Limites E Possibilidades –Revista de Administração de Empresas – RAE: São Paulo – v. 49 – n.1 – jan./mar. 2009. p. 10-18

IPEA – Caracterizaçào e Tendências da Rede Urbana do Brasil – IPEA/UNICAMP/NESUR/IBGE – Campinas/SP, UNICAMP. IE, 1999 (Coleção Pesquisas, 3)

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WORLD BANK – Urban Policy and Economic Development: A Agenda for the 1990s – Washington D.C. 1991

SASSEN, Saskia – As Cidades na Economia Mundial – Studio Nobel, São Paulo, 1998

PNAD – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicilios: 2001 – IBGE – Rio de Janeiro, 2001

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SIMMEL, Georg – O Dinheiro na Cultura Moderna – in Simmel e a Modernidade(Sousa e Oelze orgs.) EDUNB, Brasília, 1998, pag. 23 e segs.

RAFAEL, Ulisses Neves. Cidades e migrações. In “Plural de cidades: novos léxicos urbanos” (Fortuna, C. e Leite, R.P. orgs.). Edições Almedina, Coimbra, 2010

WILLIANSON, O. Economic globalization – firms, market and polices. N.Y. University Press, New York

1ª CONFERÊNCIA NACIONAL DAS CIDADES – Cidade para Todos: Construindo uma Política Democrática e Integrada para as Cidades – Texto Base – Ministério das Cidades, Brasília, 2003

1Óbvio que a concentração excessiva gera o efeito inverso, ou seja, as deseconomias de aglomeração/urbanização (custo da terra, poluição, violência, déficit em serviços, etc) podendo reverter o fenômeno da concentração.

2De forma alguma estamos descartando as desigualdades sociais agudas que o processo vem gerando. Porém queremos insistir que há um segmento importante na área de população de classes de renda média elevada e que isso vem se traduzindo em processos específicos, que se contrapõe às situações de exclusão social. Esse fenômeno tem de ser pautado pelos estudiosos ao risco de alterarmos a realidade.

3Na medida em que não estavam ainda disponível certos dados populacionais mais recente, utilizamos os dados de 2000, que nos servem como aproximação.

4O Creative Economy Report 2008 (UNCTAD, 2008), estudo realizado no âmbito das agências do sistema das Nações Unidas (PNUD, UNESCO, OMPI, ITC) e coordenado pela Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento – UNCTAD – é a publicação mais detalhada sobre o tema no mundo. Seu argumento principal é que a economia criativa “implica um deslocamento dos modelos convencionais para um modelo multidisciplinar que abarca a interface entre economia, cultura e tecnologia, com foco na predominância dos serviços de conteúdo criativo. Por sua estrutura multidisciplinar, a economia criativa oferece uma opção factível de ser incorporada na estratégia de desenvolvimento de países em vias de desenvolvimento”. (UNCTAD, 2008) (tradução livre): “A economia criativa também aparenta ser uma alternativa factível para os países em vias de desenvolvimento. Em um contexto regido por políticas publicas efetivas, a economia criativa pode gerar vínculos entre as várias faces da economia, tanto em nível macro como micro. Esta conectividade tem um alto potencial para fomentar o desenvolvimento, oferecendo novas oportunidades para que os países em vias de desenvolvimento possam ingressar nas áreas de alto crescimento da economia mundial”.

5Basta lembrar a expansão do turismo em cidades como Pirenópolis, Goiás Velho, Alto Paraíso, ou mesmo, a inserção da música sertaneja nas grandes programações culturais do país movimentando recursos vultosos para se comprovar o que estamos querendo afirmar.

 

 

 

*Professor do Depto de Sociologia da UFF/PPGS, Pesquisador do CNPq e da FAPERJ
O autor agradece ao apoio logístico na coleta de dados de Júlio Cesar Sanchez do Dept. Sociologia da UFF

 

A Origem da Gravura de Arte em Goiás e seus Desdobramentos | de Edna Goya

Introdução

O desenvolvimento das artes plásticas em Goiás, assim como o desenvolvimento da gravura, nasce estimulado pela nova condição do estado, que busca transferir a capital – cidade de Goiás – para Goiânia, como forma de modernizar-se para inserir-se política, social, econômica e culturalmente no cenário nacional.

Desde a decadência da mineração do ouro e das pedras preciosas, quando o estado e a antiga capital entraram em declínio, os amplos setores da produção cogitavam da mudança do eixo político-administrativo da cidade de Goiás para um lugar estrategicamente melhor situado, como forma de promover o desenvolvimento regional e integrar o estado no contexto político, econômico e sociocultural dos centros mais avançados do país.

A transferência da capital, oficializada em 23 de março de 1937, significou não apenas o deslocamento do eixo político-administrativo do estado, mas também uma “estratégia de poder”. (CAMPOS, apud CHAUL, 1988, p. 15). Essa transferência veio propiciar a realização de outros benefícios, entre eles, ao longo dos anos, a constituição de uma nova configuração humana e geográfica nessa parte do território brasileiro e a criação, assim, das precondições ao revigoramento da região, surto de desenvolvimento socioeconômico que embalou o incremento das artes plásticas em Goiás e, no seu bojo, a origem da gravura como manifestação artística autônoma.

Oscar Sabino Júnior (Goiânia Global, p. 111), escritor e crítico goiano, considera que as tentativas culturais antes da nova capital estavam presas a um “saudosismo romântico”, que aboliam as possibilidades de originalidade e espontaneidade, isto porque estavam presas às técnicas e ao receituário tradicional, que marcaram movimentos e tendências anteriores. Os chamados “artistas”, segundo o autor, contentavam-se em alimentar o neorromantismo, acomodados às formas rígidas do passado.

A cultura e as artes, antes voltadas para as festividades religiosas, para a literatura e para as manifestações populares, foram adquirindo uma nova conotação. Se as artes plásticas, até então, foram marcadas pela participação isolada de José Joaquim da Veiga Valle (1806-1874), com a arte em estilo Barroco, considerada por Angotti “singular pelos aspectos formais e históricos, com imagens eruditas e aparentemente anacrônicas”, (SALGUEIRO, 1983, p. 25) e pela expressão, denominada pela critica local de neorromântica tardia, ou primitiva, mas que tende para o realismo, evidenciado na obra de Octo Outorino Marques (1915-1988)1, e de outros artistas, como Goiandira do Couto (1915), e Antônio Henrique Péclat (1913-1988), de tendência Clássica, ambos da cidade de Goiás, começaram a se modificar ao se sustentar paradigmas modernos. Esses artistas formam, na nova capital, a Sociedade PRÓ-ARTE de GOIÁS, responsável pelos primeiros movimentos artísticos na nova capital, fundada em 22 de outubro de 1945, e com as primeiras “escolinhas” (GOYA, p. 54) de arte, sendo que uma delas, pensada por Luis Augusto do Carmo Curado, em 1949/50, para atender o público infantil, dera origem ao ensino superior de arte. O projeto da escola é ampliado para agregar-se como faculdade à Universidade de Goiás, hoje Universidade Católica de Goiás/PUC, dando origem à primeira escola de ensino superior de arte – a Escola Goiana de Belas Artes (EGBA) 2.

Ainda, em 1945, começou a formar-se nessa associação uma consciência da necessidade de abertura também para as Letras e para as Artes, de forma a permitir certa autonomia tanto à literatura quanto às artes plásticas.

Também em 1945, forma-se outro grupo, chamado “Geração 45”, voltado para a literatura e composto por vários nomes dentre os quais, destacam-se José Décio Filho, José Godoy Garcia, Domingos Félix de Sousa, João Acióli e Bernardo Élis. Esse grupo marca o início do modernismo na literatura em Goiás, ao romper com a rotina acadêmica do passado, de tendência nacionalista.

Numa fase intermediária, surge o grupo “Os Quinze”, nascido sob o signo da competitividade. Era composto por dez membros, dentre os quais se destacava Jesus de Barros Boquady. Na época, era o único que denunciava tendência vanguardista (concretista).

Como fruto da efervescência da nova cidade e da necessidade de mudança é fundada, em 1952, a Escola Goiana de Belas Artes (EGBA), responsável pela introdução e institucionalização do ensino da gravura em Goiás. Em 1960, um grupo dissidente dessa escola funda o Instituto de Belas Artes de Goiás (IBAG), que, por ser gratuito, leva ao desaparecimento da primeira escola. Embora a EGBA tenha sido fundada em 1952, sua inauguração somente ocorreu no ano seguinte com o seu funcionamento autorizado a partir de maio, pelo Decreto n.º 32.258, de 23 de maio de 1953. Em sua inauguração, em 30 de março, fez-se uma grande exposição, aberta ao público, com a participação dos docentes, que objetivavam mostrar à sociedade goiana sua produção artística e cultural. À ocasião, o pintor Jordão de Oliveira, professor da Escola Nacional de Belas Artes (ENBA), apresentou um levantamento panorâmico da arte brasileira, falando sobre seus movimentos e tendências. Situou a produção artística goiana nesse contexto e teceu comentários sobre a obra de Frei Nazareno Confaloni, Gustav Ritter e Luiz Curado, dentre outros nomes das artes em Goiás.

Em 1954, Goiânia sofre o maior impacto cultural de sua curta história, com a realização do I Congresso Brasileiro de Intelectuais, aberto com a Exposição Nacional de Artes Plásticas. Visando romper o isolamento cultural da nova capital, Xavier Júnior, escritor e presidente da Academia Goiana de Letras, apoiado pela Associação Brasileira de Escritores, promove, em 20 e 21 de fevereiro, esse evento, que marcou os novos rumos da cultura e das artes em Goiás. O Congresso Brasileiro de Intelectuais, sediado pela EGBA evidencia-se como marco referencial e deflagrador do pensamento moderno nas artes plásticas em Goiás.

O congresso aconteceu graças a um esforço coletivo que incluiu professores e alunos da EGBA, dispostos a convidar artistas plásticos de todo o Brasil para participarem da exposição. Contou com representantes de várias áreas de conhecimento do cenário nacional e internacional, destacando-se o poeta e escritor Pablo Neruda, além de Lôio Pérsio (pintor), Jorge Amado (escritor), Mário Schemberg (cientista), José Reis Júnior (crítico), Mário Barata (escritor), Orígenes Lessa (romancista), Lima Barreto (cineasta), Inimá de Paula (pintor), Cláudio Corrêa e Castro (ator), Orlando Teruz (pintor), Mário Zanine (escritor), Jordão de Oliveira (pintor e professor), Sérgio Miliet (pintor), Aloísio Sayol de Sá Peixoto (colecionador e animador de arte, de Goiás) e Bruno Giorgi (escultor). Nesse evento, grandes nomes da gravura nacional compareceram a Goiânia, como Carlos Oswald, Carlos Scliar, João Quaglia, Glênio Bianchetti, Marcelo Grassmann, Mário Gruber, Rebolo Gonçalves (pintor e gravador), Osvaldo Goeldi, Renina Katz, Gilvan Samico, Glauco Rodrigues, Vasco Prado, Danúbio Gonçalves, Plínio César Bernhard, Edgar Koetz, Darel Valença Lins, Alfredo Volpi e Mestre Vitalino (gravador popular).

O evento inaugura, em Goiânia, o campo da cultura e das artes plásticas, de tendência moderna, fazendo com que o Centro-Oeste, pelo menos no campo artístico-cultural, passe a ser considerado no cenário nacional, ao promover e eleger temas de grande significação, demonstrando uma enorme preocupação com os rumos da cultura, não só goiana, mas brasileira, ao discutir a defesa da cultura, da indústria editorial e gráfica, o estímulo ao comércio de livros e publicações periódicas, a defesa da literatura infanto-juvenil, além de encaminhamentos para a extinção do analfabetismo, gratuidade e democratização do ensino, dotação orçamentária para fins culturais, estímulo à pesquisa científica, desenvolvimento das ciências aplicadas, liberdade de criação e de escrita, liberdade de associação cultural e profissional, melhoria das condições de vida e do trabalho intelectual, intensificação dos intercâmbios culturais e das relações culturais com os demais povos de forma recíproca.

A “Exposição Nacional de Artes Plásticas”, realizada durante o congresso, legitima definitivamente o contato da sociedade goiana com os ideais modernistas fortemente presentes na arte brasileira, dos anos 20 aos finais dos anos 50, que na gravura se destaca pelo expressionismo figurativo especialmente o praticado pelo Clube de Gravura do Sul liderado por Carlos Scliar. O evento atingiu tal dimensão que lançou Goiás além das fronteiras, incitando muitos comentários, entre eles, o de Bernardo Kordon, (escritor Argentino), em um artigo sobre arte popular karajá, publicado na revista Continente de Buenos Aires e transcrito na revista goiano Renovação (1954, p. 24) Ele afirma:

En el corazón Verde del Brasil rodaban los autos últimos modelos sobre las avenidas asfaltadas. Pero en compensación, dias después pudimos asomarmos a la infancia de la humanidad. Em Goiânia tomamos contacto com el arte de los karajás. Esta experiencia miracullosa se la debemos a la hospitalaria capital del desierto, a la Escuela Goiana de Belas Artes que dirige Luiz Curado e sus professores y artistas Henning Gustav e Fray Nazareno Confaloni.

Em outro comentário feito pelo brasileiro Mário Barata, no Diário de Notícias de Porto Alegre – RS e transcrito nesse mesmo número da Revista Renovação o escritor dizia que “Naquela Capital do Brasil Central, começa a produzir resultados um dos esforços mais simpáticos e estimulantes de todo o País” (LACERDA, 1955, p. 24). O Congresso mereceu também o seguinte comentário da Revista Horizonte, do Clube de Gravura de Porto Alegre, transcrito nessa mesma revista:

uma das grandes virtudes da exposição de Goiânia e não das menores –, foi precisamente de dar uma visão bastante clara do esforço que fazem grandes artistas no nosso país no sentido de fazer uma arte hoje utilizando valores de nossa herança cultural, principalmente popular.

Em torno das artes, uniram-se aqui pessoas das várias tendências, vindas de diferentes realidades socioculturais e artísticas, e de outros países. Para situar as artes de Goiás no cenário nacional, particularmente a gravura, é importante ressaltar que, ao mesmo tempo em que aqui brotavam as primeiras experiências artísticas modernas, em vários estados brasileiros vivia-se a plena efervescência. Todavia, outro acontecimento importante deve ser levado em consideração: a construção de Brasília e a mudança da capital federal para o Brasil central ocasionam a migração de um grande número de pessoas em busca de prosperidade e de lucro propiciado pela expansão do comércio, o que representou um grande estímulo ao desenvolvimento sociocultural de Goiás, contribuindo para a quebra definitiva do distanciamento de Goiás dos estados mais avançados do país.

O desenvolvimento das artes em Goiás, inclusive da gravura, visa a definição do perfil sociocultural da nova sociedade. Em virtude disso, as artes, na nova capital, nasceram ligadas a instituições como a EGBA, marco institucional do ensino superior de Arte em Goiás, articulada por Luiz Augusto do Carmo Curado, incorporada, como já mencionado, à Universidade de Goiás (hoje PUC) e pelo IBAG, segunda escola de arte de Goiás, ligado inicialmente ao Estado, e que veio posteriormente pertencer à Universidade Federal de Goiás (UFG), atual Faculdade de Artes Visuais.

 

A gravura na EGBA
A EGBA abre seus cursos em 1954, e a gravura tem dois importantes fundadores: Luis Curado que aprende gravura no Colégio Jesuíta Anchieta, em Friburgo e D. J. Oliveira que fez parte da Casa Santa Helena (SP), no período de 1949-1956. Curado funda, através do currículo da escola, o ensino de xilografia, da gravura em gesso e da serigrafia.

D. J. Oliveira evidencia-se como o segundo fundador da gravura goiana. Pratica a xilografia e começa a ensinar o método de gravação em madeira na EGBA, em 1961, e inicia, nessa escola, em 1967, com Grace Maria de Freitas os primeiros experimentos de gravação em metal, em chapa de latão, embora sua produção em gravura seja realizada em chapa de ferro, nas técnicas de água-tinta, água-forte, água-tinta de açúcar e ponta seca.

Estimulado pelos Professores Frei Nazareno Confaloni e Luiz Curado, pela desenvoltura de seu desenho figurativo D. J. Oliveira não só se sente motivado a fazer gravura, mas funda, em 1971, na EGBA, o ateliê de gravura em metal. A prensa desse ateliê configura-se como a segunda prensa 3para gravura em metal, no Brasil, é feita pela Casa Topal, de São Paulo e foi comprada sob a orientação de Marcelo Grassmann. Essa sala recebe o nome de “Sala Maria de Castro”, em homenagem ao incentivo recebido dessa professora, quando diretora da EGBA.

D. J. Oliveira permaneceu ligado ao ensino, na EGBA, durante 11 anos (de 1961 a 1972). Ao abandonar a escola, no mesmo ano, manda construir em Goiânia sua própria prensa, fabricada com base em um modelo francês, visto pelo artista em um ateliê da cidade de Madrid (Espanha). A prensa de D. J. Oliveira é a terceira de Goiás porque Vanda Pinheiro já havia montado seu ateliê de gravura em metal. D. J. Oliveira deu, pela vasta produção, impulso à gravura no estado, ao dedicar grande parte de sua obra a essa linguagem.

Frei Nazareno Confaloni aprendeu a gravar em madeira com Luiz Curado, fez incursões pela gravura, usando a técnica de xilografia ao fio e realizou as primeiras experiências em monotipias, utilizando o processo positivo e negativo. Às vezes, usava ácidos para criar texturas em pedra, a fim de proporcionar relevos e efeitos de profundidade nas monotipias. O processo era bastante rudimentar, tanto para gravar a matriz quanto para imprimir, e as gravuras, obtidas mediante ensaio e erro, até alcançar o resultado desejado. Nessas condições, a evolução da gravura goiana, tanto do ponto de vista técnico quanto estilístico, acontece de forma lenta.
Na EGBA, as disciplinas Gravura e Fotografia, são requisitos para o Curso de Desenho Aplicado, que tem duração de cinco anos. Essas disciplinas eram ministradas por Curado que aprendera no Colégio Jesuíta Anchieta, em Friburgo, cidade fluminense, onde vive alguns anos de sua vida, dedicando-se aos estudos religiosos. Nas horas vagas, dedicava-se às artes plásticas, à música, ao desenho, encadernação, ao teatro e à tipografia, que começara a aprender com seu pai em sua oficina, em Pirenópolis, quando ainda criança. Essas disciplinas eram oferecidas aos alunos da EGBA a partir da segunda série, estendendo-se até a terceira, enquanto que na ENBA, eram ministradas como cursos avulsos (COSTA, 1955, p. 9). Dada a flexibilidade do currículo, a disciplina Gravura era acessível a qualquer aluno de qualquer curso e série.

Na EGBA a técnica da xilografia é quase que substituída no começo de 1971 pela calcografia, usando-se latão e o ferro como suporte de gravação. D.J. Oliveira, que ensinava essa técnica, estruturou, com uma prensa, o primeiro ateliê de gravura em metal na EGBA. Os gravadores egressos da EGBA são: Isa Costa, que faz xilografia e se especializa no México, em calcografia e Ana Maria Pacheco, escultora que se especializa em gravura em metal na Inglaterra com sua produção centrada no cobre.

 

A Gravura no Instituto de Artes da UFG
Em 1967 é fundado o Instituto de Belas Artes de Goiás4 (IBAG), incorporado à UFG, com o nome de Instituto de Artes (IA/UFG), atual Faculdade de Artes Visuais, escola que marca o desenvolvimento das artes visuais e da gravura goianas.

No IBAG (IA/UFG) o ensino de gravura fica a cargo de Cléber Gouvêa. Como pintor, faz cursos de xilografia, com Misabel Pedrosa, e litografia, na Imprensa Oficial de Minas Gerais. Posteriormente, faz um estágio na Fundação Álvares Penteado, em São Paulo, com Marcelo Grassmann e Iara Tupinambá, artista mineira com quem aprende xilografia.

No entanto, por falta de condições físicas e materiais para a prática da disciplina, Cleber Gouvêa, contratado para ocupar a cadeira de gravura, passa a ensinar pintura e desenho e, simultaneamente, implementa o ateliê de gravura, estruturado inicialmente com duas prensas: uma para a xilografia, feita por um artesão goiano, e outra para litografia. A propósito, os primeiros contatos da sociedade goiana com a gravura em metal (calcografia), segundo Heleno Godói de Sousa, se deram com uma exposição de Isa Costa, realizada em 1968, na sede da Caixa Econômica Federal, situada à Rua 2, no Centro de Goiânia.

No IBAG, Cleber ensinou vários processos de gravura: xilografia e introduz a litografia, em 1968, processo ainda não conhecido em Goiás. Faz experimentos em calcografia em chapa de ferro (1969), tendo, entre seus alunos, Heleno Godói de Sousa.

Na Instituição federalizada, gravura e Cleber Gouvêa, não são sinônimos apenas de sucesso. Ambos enfrentam, assim como na EGBA, momentos de grandes dificuldades. Cleber Gouvêa, como Luiz Curado e D. J. Oliveira, isolados dos grandes centros, não tinham acesso a materiais adequados à prática da gravura.
É importante ressaltar que o desenvolvimento da gravura como linguagem se fortalece a partir de sua introdução na instituição federalizada – no Instituto de Artes (IA) da UFG – através da Habilitação em Gravura do Curso de Artes Plásticas. Cleber, que embora não grave em Goiás, faz experimentos na técnica de gravação em ferro e cobre e fez escola, com vários seguidores nessa técnica, e introduz a litografia em Goiás.

Quanto ao artista plástico e professor Cleber Gouvêa, é preciso dizer ainda que ele não só foi responsável pela implementação do ateliê de gravura e pela introdução da litografia no Instituto de Artes da UFG, em Goiás, mas também, assim como D. J. Oliveira foi mentor e incentivador de uma boa parte dos gravadores goianos, impulsionando o desenvolvimento da gravura por meio de seus alunos e de seu discípulo José César Teatini de Souza Clímaco, que além de ser um dos mais atuantes gravadores goianos da atualidade, juntamente com Heliana de Almeida Leivas, também é professor de gravura da Faculdade de Artes Visuais da UFG.

José César, aluno de Cleber Gouvêa e frequentador do ateliê de D. J. Oliveira, se torna o responsável pela “germinação” do que se poderia denominar de terceira geração de artistas gravadores de Goiás. No IBAG o ensino de gravura está relacionado aos professores Cleber Gouvêa, José César Teatini de Sousa Climco, Heliana Almeida Leivas, Selma Rodrigues Parreira e Edna Goya. Todavia, a introdução dos métodos e técnicas de impressão, nessa escola, se deve aos dois primeiros.

No IBAG, assim como na EGBA, o método de ensino artístico, bem como a estrutura curricular dos cursos de artes, sofre influência direta da ENBA, com base em modelos para serem reproduzidos. São assimilados por Luis Curado, adaptados e introduzidos em Goiás através da EGBA. A prática de ensino sustentada em modelo é posteriormente levada para o IBAG, pelo fundador da escola, professor Antônio Henrique Péclat, ex-professor da EGBA e que também aprimora seus estudos de arte na Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro de 1941 a 1944.

 

A Gravura e as duas escolas goianas de Arte
Mesmo a gravura, na EGBA e no IBAG, tendo sido praticada com dificuldades de acesso aos materiais mais sofisticados e pela distância dos “grandes centros”, conseguiu desenvolver-se e seduzir uma geração de gravadores que, graças aos ensinamentos dos fundadores, tornou-se destaque, em Goiás e no Brasil, ao formar significativa quantidade de artistas. Entre os que mais se destacaram na EGBA conta-se com as alunas Isa Costa e Ana Maria Pacheco, com sua produção centrada no cobre.

No IBAG, a gravura adquire maior visibilidade ao ser praticada por vários artistas, a exemplo de Zofia Ligesa Stamirowska (1903-1979), com a xilografia, litografia e metal, Heleno de Sousa Godói (figura 10); Reinaldo Barbalho (xilografia); Maria Heliana Almeida Leivas (xilografia e Collagraph); Maria Eugênia Curado (calcografia em cobre); de Dinéia Dutra (calcografia em ferro); Selma Rodrigues Parreira (calcografia em cobre) e José César Teatine de Sousa Clímaco (xilografia, calcografia em cobre, litografia, plastigrafira e serigrafia).

Com José César inicia-se o que se poderia denominar de terceira geração de gravadores de Goiás, com os artistas Liosmar Martins (xilografia, litografia ecollagraph); Herculano Ramos (calcografia em cobre e ferro) e Edna Goya (xilografia, litografia, calcografia e serigrafia).

Com os artistas fundadores: Luiz Curado, D. J. Oliveira e Cleber Gouvêa, da EGBA e do IBAG, se tem a segunda geração de gravadores. A elevação da gravura à condição de arte autônoma é conquista dos pioneiros, de seus alunos e de vários outros artistas que, de certo modo, estiveram direta ou indiretamente ligados ao grupo pelas duas escolas, ou pelos salões de arte. São eles: Roosevelt (calcografia em ferro); Vanda Pinheiro (calcografia em ferro), que fez gravura nos ateliês livres de D. J. Oliveira e de Cleber, Laerte Araújo (calcografia em cobre); Fernando Thomem (xilografia), formado na Escola Guignard e aluno do curso livre de Ana Maria Pacheco.

A gravura goiana conta ainda com Paulo Fogaça (serigrafia), que faz gravura no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, Washinton Honorato Rdrigues (serigrafia), aluno de D. J. Oliveira, do Curso Livre da EGBA; Naura Timm (litografia), formada na ENBA, Rio de Janeiro. Tem-se Antunis Arantes, Dec (Allan Kardec Cardoso Teixeira) e Octo Outorino Marques, artistas independentes.

Considerações finais
O desenvolvimento e a afirmação da gravura goiana estão associados, não só ao ensino artístico, promovido pelas duas escolas de artes, mas a vários outros fatores, a exemplo da criação das galerias e museus, em substituição aos improvisados saguões de teatro, de jornais ou livrarias dos anos 50, levando Goiás a promover mostras e incentivar os novos valores artísticos. A iniciativa pública e privada começa a organizar-se para criar e promover salões de artes e concursos, em nível local e regional, fatores que abrem espaços para critica de arte, tanto local quanto externa.

Conta-se com diversas exposições de gravura, a exemplo da mostra de Cartazes Americanos Contemporâneos, em estilo “Pop”, em que apresentava diversos processos de impressão de gravura, promovida pelo Museu de Arte da Prefeitura Municipal de Goiânia e pelo Centro Cultural Brasil Estados Unidos, aberta ao público no Palácio da Cultura, na Praça Universitária, no dia 2 de agosto de 1969. Têm-se ainda várias exposições de gravura brasileira e cursos de gravura, entre eles, dois ministrados por Ana Maria Pacheco, professora, desenhista, pintora, escultora e gravadora, que, formada em Escultura na EGBA, em 1964, iniciou e aperfeiçoou seus conhecimentos sobre essa arte na Groydon School of Art, na Inglaterra, de 1973 a 1977. Em 1978 e 1981, atuou em Goiânia, ministrando dois cursos de calcografia (em cobre), para os gravadores goianos.

Mas é importante ressaltar que o modernismo que se instala, em Goiás, em 1954, nas artes plásticas, por meio dos artistas pioneiros não se configura como um movimento em busca de uma ideologia estética, voltada para o nacional, a exemplo do modernismo paulista, mas estimulado pela nova condição política de modernização de Goiás, para inserir-se social, econômica e culturalmente no cenário nacional. O desenvolvimento do pensamento moderno, nas artes plásticas, consequentemente, na gravura, em Goiás, acontece em certo descompasso no que se refere a outras áreas produtivas da cidade, a começar pelo projeto de arquitetura dos prédios públicos da cidade, feitos, em 1937, ancorados no ideal estético da Art Déco, considerado, na época, um estilo moderno, favorecendo a um salto para o progresso, possibilitando a entrada e a expansão do capital em Goiás. Também no campo da Literatura já se experienciava, desde 1945, a modernidade.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CHAUL, Nasr N. Fayad. A construção de Goiânia e a transferência da capital. Editora CEGRAF: Goiânia, 1988.

COSTA. Waldir. Caderno da Escola Goiana de Belas Artes. In: Revista Renovação. Nº 1, Goiânia, 1955, p. 7-8, 28.

GOYA, Edna de Jesus. 1998. A arte da gravura em Goiás. Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo.

LACERDA, Regina. “O que foi a exposição do Congresso Nacional de Intelectuais”. In: Revista Renovação. Nº 1 Goiânia, 1955, p. 23 – 24.

OLIVEIRA, Jordão de. “Prof. Jordão de Oliveira”: pronunciamento durante o Primeiro Congresso Nacional de Intelectuais. In: Revista Renovação. Nº 1, Goiânia, 1955. p. 11.

SABINO JUNIOR, Oscar. Goiânia Global. Goiânia: Editora Oriente, 1980.

SALGUEIRO, Heliana Angotti. A singularidade na obra de Veiga Valle. Goiânia, Editora da UCG. 1983.

 

1 Desenhista, pintor e gravador.

2 O projeto de escolinha de arte é retomado, em 1962, com a abertura da Escolinha de Arte Infantil Veiga Valle, fundada em 1948 nos moldes da Escolinha de Arte do Brasil, do Rio de Janeiro.

3 A prensa de gravura se encontra no ateliê de ates gráficas do Curso de Arquitetura da UCG.

4 A escola de artes da UFG muda de nome várias vezes: 1960/61, IBAG (Instituto de Belas Artes de Goiás), seu primeiro nome; Faculdades de Artes da UFG, ao agregar-se à UFG, em 1963; Instituto de Artes da UFG, ao anexar-se ao Conservatório de Música, em 1969 e Faculdade de Artes Visuais da UFG, a partir de 1996, ao se separar da Música.

 

*Edna Goya é professora da Faculdade de Artes Visuais/UFG. Doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/SP; Mestre em Arte Publicitária e Produção Simbólica pela USP-SP (1998); Especialista em Educação (PUC/GO, 1986) e em Arte-Educação (UFG, 1989); Bacharel em Artes Visuais-Gravura (UFG, 1992) e Licenciatura em Desenho e Plástica (UFG, 1983). ednajgoya@yahoo.com.br

 

Da coletividade ao convívio: fazer, estar e ser juntos | de Manoela dos Anjos Afonso

(…) a arte pode ser um lugar de produção de uma sociabilidade específica, gerar um terreno fértil de experiências sociais preservado da uniformização de comportamentos (…).” (TRAQUINO, 2010, p. 110).

Quando fui convidada a escrever um ensaio para esta revista, pensei que poderia ser uma ótima oportunidade para reunir breves relatos sobre três experiências artísticas significativas convividas na cidade de Goiânia entre os anos de 2006 e 2010: Le Mur, Grupo Teia e Arquigravura. Ao refletir sobre o que já realizamos, percebi que o “convívio” vem adquirindo uma importância considerável em nossas propostas, as quais usualmente se iniciam a partir de um grupo (móvel) de pessoas que procuram fazer algo coletivamente e que, em diferentes graus e combinações, podem ter o relacionamento entre si fortalecido pelo “fazer juntos”.

O “fazer juntos” provoca o “estar juntos”: atualmente continuamos a nos lançar a tais convivências com o objetivo de realizarmos projetos artísticos não só coletivos, mas também relacionais. Temos percebido uma urgência nesse sentido, além de constatarmos o desejo de buscarmos mais que uma reunião de indivíduos ativos em função da realização de projetos artísticos coletivos: almejamos um convívio efetivo capaz de, a partir das negociações das nossas individualidades, potencializar o “ser juntos”. Ou seja, que possamos ir além do fazer ou do estar e convocar mais pessoas à experiência conjunta da produção artística, pois o exercício poético é uma das formas pelas quais podemos dar espaço, tempo e lugar ao verbo ser. Não seria esse um dos meios de esburacarmos – com muitos pequenos orifícios – os microssistemas dos quais fazemos parte? Há que se deixar a luz entrar por esses buracos: nossos interesses têm sido dirigidos às relações humanas estabelecidas por meio de operações e arranjos poéticos. Desejamos que cada pessoa – artista ou não – possa escolher fazer, estar e/ou ser conosco durante propostas artísticas, inclusive propondo também.

Para mim, em particular, reconheço que este é um grande desafio, pois é mais cômodo – porém menos excitante – elaborar e executar projetos artísticos individuais e/ou autorais. A questão é que não podemos ignorar o fato de que, num contexto contemporâneo, lidamos mais com a polifonia do que com os monólogos poéticos. E ao citar aqui a polifonia, não me refiro à comunicação aberta das obras ou à diversidade das linguagens nas artes visuais, mas sim à multiplicidade de vozes, proposições, experiências e existências cada vez mais presentes nos processos e objetivos de algumas proposições artísticas contemporâneas. É claro que – e felizmente – continuaremos lidando sempre com nossas questões poéticas individuais. O convívio não é uma regra, mas sim um convite a ser aceito para que transitemos do privado ao público, do “meu” ao “nosso”, da parte ao todo, e vice-versa, exercendo nossas capacidades individuais e coletivas, compartilhando-as, transformando-as para transformar e sermos transformados. Esse é um processo dinâmico e colaborativo de aprendizagem, pesquisa e produção de conhecimento. E o melhor: conhecimento de muitas ordens, inclusive sensível. Isso se faz necessário, sobretudo num mundo tão individualizado e individualizante (apesar das redes).

O que me fez desejar, verdadeiramente, conviver com o outro durante alguns processos de elaboração e produção artística foi o exercício da docência. Provocar um grupo à reflexão e à produção poética passou a ocupar mais espaço e importância do que a necessidade de dar corpo matérico a uma produção artística individual a ser inserida no sistema das artes. Ao exercer a docência, no meu caso na universidade, que é uma instituição que tem – ou deveria ter – um compromisso direto com a sociedade, não poderia deixar de convidar, convocar, provocar cada vez mais pessoas à criação e à transformação, por mínimas que fossem. Não poderia deixar de ao menos tentar. Vejo na arte contemporânea uma possibilidade de inaugurar, junto com outras pessoas, lugares móveis para esse convívio poético e transformador. E transformação aqui não diz respeito a mudanças fenomenais no mundo ou na sociedade… sejamos honestos! Penso que as microtransformações são muito importantes, pois têm tempo para se fortalecerem e instaurarem lentamente um movimento sutil de atribuição de sentidos ao mundo, desencadeando noções de pertencimento nesses sujeitos ativos/ativados. Configuram-se, assim, as revoluções silenciosas. Experiência, memória e identidade dão substância e concretude a esses lugares móveis, construídos poética, estética e criticamente, onde podemos “ser juntos” e, consequentemente, fazermosestarmos com mais qualidade. O “fazer só” e o “fazer juntos” são importantes, pois um alimenta o outro e ambos constituem lugares diferenciados na produção artística. Ao olhar para o que já foi realizado entre 2006 e 2010, posso dizer que o “fazer juntos” nos levou a muito mais do que ao “executar juntos”, pois muitas das pessoas convocadas à participação nesses projetos se envolveram, propuseram, escolheram, realizaram, opinaram, refletiram sobre suas contribuições e continuam agindo, juntas ou não.

Ainda temos muito a avançar: continuamos em processo lento, em formato de grupo aberto, laboratoriando agora propostas artísticas de caráter relacional. Alguns de nós vivenciamos, inclusive, um prazeroso desdobramento desse convívio: a amizade. Talvez esse seja o caminho natural para os que escolhem “ser juntos”, em qualquer campo ou atividade.

 

Le Mur

Figura 1. Armando Coelho. Intervention 1, novembro de 2006. Foto: Amina Mazouza.

 

Figura 2. Edivaldo Junior (sobre o trabalho de Armando Coelho). Intervention 2, março de 2007. Autorias sobrepostas e em (des)agregação. Foto: Amina Mazouza.
Figura 3. Reijane Cunha (sobre o trabalho de Armando Coelho). Intervention 2, março de 2007. Autorias sobrepostas e em (des)agregação. Foto: Amina Mazouza.
Figura 4. Grupo Teia na Intervention 3 – tramas sobre os trabalhos de todos os artistas participantes das edições anteriores de Intervention. Autorias sobrepostas e em (des)agregação. Foto: arquivo pessoal.
Figura 4. Grupo Teia na Intervention 3 – tramas sobre os trabalhos de todos os artistas participantes das edições anteriores de Intervention. Autorias sobrepostas e em (des)agregação. Foto: arquivo pessoal.

O muro convida à ação e provoca reação. Todo aquele que age, reage à inércia e conquista a capacidade de interferir na pequena realidade que o cerca. Aquele que interfere no seu microuniverso é como a pedra lançada na lagoa: movimenta a água parada. Que o muro possa desestabilizar, plantar dúvidas e inquietações sempre. Que ele seja uma porta, uma passagem-conexão para a autonomia da ação. (Afonso, 2007. Texto escrito para a Intervention 2, publicado no fanzine Le Mur # 02).

Le Mur (O Muro) foi um projeto composto por quatro números de um fanzine, três edições de uma intervenção artística realizada no muro externo da Aliança Francesa de Goiânia, um blog (http://www.lemurbr.blogspot.com) e uma exposição chamada “Pátria que o pariu!”. O projeto, que teve início em 2006 e foi encerrado em 2008, foi idealizado em conjunto e teve a participação de vários artistas de Goiânia e de outras localidades.

O fanzine foi um veículo de informação e de livre pensamento, ligado às ações realizadas no muro, mas também com contribuições externas e relativas a outros muros. Como meio independente de comunicação, as contribuições tinham naturezas diversas e todos aqueles que quisessem escrever sobre arte e cultura, mostrar suas imagens, expor o seu pensamento puderam ter seus trabalhos publicados. Com uma tiragem de 150 exemplares por número, os zines foram distribuídos gratuitamente. A divulgação e as chamadas para as contribuições foram feitas pela internet.

A intervenção, chamada Intervention, surgiu da vontade da direção da Aliança Francesa (AF) de Goiânia daquele período, de fomentar a produção artística local e de colocá-la em intercâmbio com grupos de artistas franceses. Sugerimos o uso do muro lateral da sede da AF, até então inutilizado e esquecido. Essa ideia surgiu de uma breve pesquisa sobre movimentos de squat art, que se propõem a ocupar construções fechadas e abandonadas. No caso das três edições de Intervention(Figuras 1, 2, 3 e 4), a proposta geral feita aos participantes era a de ocupar um espaço no muro a partir do que já havia sido feito nele por outra pessoa. Sendo assim, a cada nova Intervention, o trabalho já existente deveria ser incorporado à nova proposta, configurando diversas camadas de subjetividades ali adensadas e coexistentes.

Grupo TEIA

Mãos amarram, soltam, enlaçam, contam, cortam, refazem,
tecendo (in)tensões,
com fios que prendem, sufocam, ligam, soltam, seguem
Perdem-se
Tecidos, redes, conluios…
Frágeis teias, tramas impermanentes
… sobre o reboco solto do muro …
(Kalissa Nawá – Gyn, 21 de agosto de 2007)

O Grupo TEIA (Figura 4) teve início durante a Intervention 3 – Tramas no Muro, do projeto Le Mur, que foi uma intervenção-oficina orientada por Kalissa Nawá, em setembro de 2007. O objetivo do grupo é realizar intervenções coletivas que apresentem ações e conceitos ligados ao ato de tecer. O grupo não possui formação fixa: ele é aberto àqueles que queiram propor ou participar dasIntervenções Tramadas. Em novembro de 2007 o Grupo TEIA propôs uma ação nos jardins internos da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás (FAV/UFG), o que resultou numa instalação coletiva tramada com diversos materiais, inclusive peças de roupas e acessórios. Essa instalação adquiriu um caráter work in progress, pois pequenas contribuições continuaram aparecendo durante o período em que a estrutura esteve montada. Algumas intervenções foram feitas anonimamente, mas outras foram comunicadas por email (Figuras 5 e 6).

Figura 5. Raquel Rocha no momento em que somava a sua trama às tramas do projeto. Novembro, 2007. Fotografia de Roberto Scot. “(...) o título que escolhi é: "Eterno tricô". Explico: Iniciei este tricô há vários anos (vários mesmo), de vez em quando tricotava mais um pouco e largava. Queria fazer uma blusa de frio para o meu Pai. Ele jamais irá usá-la. Mas, sei que onde quer que o meu pai esteja agora, ele está torcendo por mim. Eu sempre me perguntava por que não o terminei antes. Quando li o seu e-mail, na parte da intervenção, lembrei logo desse tricô e pensei "é, tudo tem sua hora... mas chega de procrastinação! Basta! Está na hora de fazer parte de algo muito mais valoroso e digno, do que a autopiedade! Então, só posso agradecer-lhe, de coração, a oportunidade!!!” (trecho do texto enviado por email por Raquel Rocha).
Figura 6. Contribuição de Alice Gomes com elementos vivos para a trama. Uma trama para ser cuidada todos os dias. Fotografia de Alice Gomes.
Figura 7: Proposta do artista Ronan Gonçalves para o projeto Intervenções Tramadas. Ronan realizou tramas nas pessoas: “(...) utilizo material humano e o transformo em personagens amarrados com materiais inusitados dotados de diversidade de texturas e cores. A finalidade é destacar tais corpos e devolver-lhes a visibilidade dentro dos espaços urbanos.” (trecho do texto do artista enviado para o projeto). Fotografia: arquivo pessoal.

Arquigravura

O grupo ARQUIGRAVURA foi formado em 2009. É um coletivo com foco em ações artísticas contemporâneas e colaborativas que envolvam as artes gráficas. Funciona como um laboratório de aprendizagem e troca de conhecimentos artísticos – teóricos e práticos – ligados a temas que envolvam a cultura urbano-rural do estado de Goiás. O grupo faz parte do projeto de pesquisa “A prática relacional nas artes visuais: comunicação, interação, convívio e proximidade como elementos constitutivos de processos artísticos contemporâneos” (SAP/UFG). Alunos, ex-alunos e professores ligados – ou não – às artes visuais compõem organicamente o grupo. O Arquigravura já participou de alguns projetos coletivos: intervenção urbana na cidade de Resende/RJ (Figura 8), produção coletiva em estêncil para a Feira Tecnotêxtil/2010 e para o Espaço das Profissões da UFG (Figura 9) e, agora, vem discutindo e elaborando propostas com um caráter relacional mais aprofundando. O projeto PEQUI-NIQUE (Figura 10) consiste na elaboração de um piquenique com alimentos feitos com pequi (fruto típico do cerrado e da culinária goiana). Para tanto estamos produzindo uma grande toalha e cartazes-convocatória impressos à mão. Os participantes, convidados e/ou convocados para este PEQUI-NIQUE deverão obedecer a uma única regra: para comer é preciso pedir que outra pessoa o alimente. O que está em jogo nesta ação são as possibilidades de relação surgidas durante os eventos “cuidar” e “ser cuidado”.

Figura 8. Grupo apresentando a produção feita para o projeto de intervenção urbana “Xilogravura mudando uma cidade”, proposta do artista Tiago Gomes, em Resende/RJ.

 

Figura 9. Grupo produzindo coletivamente para participação na Feira Tecnotêxtil 2010.
Figura 10. Reunião do grupo para elaboração do projeto PEQUI-NIQUE. Parque Flamboyant, junho de 2010. Teste de cor do tecido sobre o gramado.

 

 

Bibliografia

AGAMBEN, Giorgio. O que é contemporâneo? e outros ensaios. Cahapecó/SC: Argos, 2009.

BLIXEN, Karen. Anedotas do destino. 3ª ed. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. São Paulo: Martins, 2009.

BRETT, Guy. Brasil experimental: arte/vida, proposições e paradoxos. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2005.

CANÇADO, Wellington; MARQUEZ, Renata; CAMPOS, Alexandre; TEIXEIRA, Carlos M. Espaços colaterais. Belo Horizonte: ICC, 2008.

HENDRICKS, Jon. O que é Fluxus? O que não é! O porquê. Rio de Janeiro: CCBB, 2002.

PANKOW, Gisela. O homem e seu espaço vivido: análises literárias. Campinas: Papirus, 1988.

TRAQUINO, Marta. A construção do lugar pela arte contemporânea.Portugal: Húmus, 2010.

 

 

*Manoela dos Anjos Afonso é artista visual. Mestre em Cultura Visual pela Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás – FAV/UFG (2008), na linha de pesquisa ‘Poéticas Visuais e Processos de Criação’. Professora Assistente da FAV/UFG com atuação nas disciplinas práticas ligadas às poéticas visuais.

 

Metaforametria – Notas sobre o quadrante zerodimensional | de Noeli Batista Santos

Foi na manhã de 10 de agosto, do ano de 2010, que a paciente foi ao Hospital S.T. na cidade de Goiânia, realizar seu mapa, tão revelador quanto poderia o ser, caso fosse o que se chama, de mapa astral. Sua recém-necessidade de um mapa de campimetria deu-se, pela solicitação de uma série de exames, condição sine qua non para tomar posse no concurso, para o qual recentemente havia sido convocada.

Após o retorno ao consultório oftalmológico para, desta vez, reparar o esquecimento (seu e do médico que a atendera dois dias antes) na solicitação do já citado exame, teve início a saga da procura para um local possível de concretizar o mapa de campimetria. As primeiras dez ligações, na busca por um local que pudesse, em tempo recorde (menos de três dias úteis), realizar o exame e consequentemente a entrega de seu res

ultado, foram desanimadoras. Ao que parece a paciente passou a partilhar da fila do grupo dos “sem mapas de campimetria”, devido à descoberta das filas de agendamento e a previsão da demora na entrega de um suposto resultado. A paciente percebeu que durante as ligações, o adjetivo computadorizado, fora várias vezes citado, sendo uma espécie de atestado de eficiência, sofisticação e porque não dizer, contemporaneidade.

Em uma das ligações, que se seguiram após a décima, eis que ela encontrou um local que pudesse atender à sua necessidade imediata.

Por favor, necessito de uma informação.
— Sim…
—Vocês fazem o exame de campimetria?
— Sim…
— Computadorizada? (
antecipando a intenção do item qualidade)
— Sim…
— Qual o prazo mais rápido para entrega do resultado?
— No mesmo dia.
(este fato foi animador).
— Que ótimo! Para quando vocês têm vaga?
— Hoje não dá mais tempo
(por volta das 17h30). Mas pode agendar para amanhã. É preciso chegar cedo.
— E o resultado, sai no mesmo dia?
— Depende…
— Depende de que?
— Se você consegue finalizá-lo no mesmo dia…
— Mas… O que, por exemplo, poderia acontecer para que eu não consiga realizá-lo no mesmo dia?
— Bom… Há pessoas que não conseguem. Alguns dormem, outros ficam agitados, depende de cada um. Em alguns casos precisam retornar no outro dia. O procedimento é demorado.
— Certo…
(temerosa). Digamos que eu consiga realizar o exame no mesmo dia, e o resultado?
— Se você conseguir, o resultado será entregue, no máximo uma hora depois da finalização do procedimento.
— Certo
(decidida).
— Mais uma pergunta: a pupila é dilatada
(prevendo a necessidade de um acompanhante)?
— Não.
— Então quero agendar o exame para amanhã
(decidida e temerosa).
— Tenho um paciente às 7h da manhã. Você será a segunda. Descanse, alimente-se bem, durma cedo.
— Certo
(mesmo sem compreender a necessidade das recomendações em relação ao procedimento que seria realizado).

Na manhã já citada, lá estava ela, às 9h30, horário indicado pela técnica responsável por realizar o procedimento. Enquanto aguardava o exame, imaginava o primeiro paciente. Se ele estaria saindo-se bem, se conseguiria concluir o exame no mesmo dia. Tinha pena e perseverança, percebeu que a condição que os unia acabara por estabelecer um laço de companheirismo, torcida e temor. Durante a espera recordou-se do agendamento e da conversa do dia anterior: “há pessoas que não conseguem”…

O exercício de adivinhar quem seria o primeiro paciente do dia (debilitado do pós-campimetria), ao sair da porta que interliga o interior do hospital ao espaço da recepção, acabou por distraí-la durante os 30 minutos que se seguiram após o horário previsto.

Finalmente fora chamada para a pequena sala, espaço no qual seria realizado o exame. Após os cumprimentos iniciais, a técnica de características franzinas, de expressão sisuda, fechou a porta pediu que a paciente sentasse no banco posicionado frente a um aparelho, que, a julgar pela quantidade de teclas e visores, seria o carrasco da vez.

Seu pedido de exame.
— Aqui está. (
Disse ela entregando à técnica a folha do receituário indicada pelo médico oftalmologista).
— Campimetria computadorizada?
(Questionou-se a técnica ao ler o receituário). Em seguida, uma nova pergunta:
— Este exame é para qual finalidade?
— Admissão em concurso público…
— Não tem cabimento. Fico revoltada com a falta de responsabilidade de alguns profissionais. Como pode solicitar um exame computadorizado para um caso como este?
(Avaliou a técnica)

Enquanto isso a paciente lembrava-se da conversa do dia anterior, das dificuldades do exame, e torceu (na verdade, implorou para os céus) para que o mau humor da técnica não se prolongasse.

— Você fará o exame de campimetria manual. Não faz sentido um exame computadorizado. Afirmou a técnica.

A paciente concordou, embora no plano de fundo dos seus pensamentos mais otimistas, se questionasse sobre qual seria a pior opção: computadorizado ou manual. 

— E o resultado, também sai no mesmo dia? (Perguntou a paciente).

Balançando a cabeça em sinal positivo a técnica disse:

— Entre, por favor… (Indicando a porta da pequena sala escura).

Não que ela teve medo, é que à primeira vista, a penumbra instaurada na sala que acabara de entrar revelou um misto de filme “trash” com laboratório de cientista louco. Enquanto sua pupila adequava-se à penumbra instaurada pela luz-ambiente, quer dizer, pela quase totalidade da ausência dela, observou que a “coisa” (Figura 1) instaurada à frente do pequeno banco estava imprensada entre a prateleira repleta de livros (lado esquerdo) e, uma porta lateral (lado direito). Pelo que a paciente compreendeu esta porta lateral indicava acesso ao consultório do médico que assinaria o laudo, do até então, “desejado” exame.

Figura 1. Campimetro de Goldman

Enquanto a técnica franzina e sisuda tampava com algodão e esparadrapo o olho esquerdo da paciente, sua voz lenta e pausada defendeu a intenção deflagrada pela escolha do exame denominado Campimetria de Goldman.

— Hoje em dia, são poucas as clínicas e profissionais, nesta cidade, que conseguem fazer o exame de campimetria, manualmente. É absurdo pensar que a experiência profissional, o grau de interpretação, e o ser humano estão pouco a pouco sendo substituídos por máquinas que são incapazes de interpretar os sinais e “manias” sinalizados pelo paciente durante o exame. Realizo as etapas do procedimento quantas vezes forem necessárias para analisar se de fato há alguma “anomalia” indicada nos sinais emitidos pelo paciente. No exame de campimetria computadorizado, a máquina é incapaz de compreender as variações subjetivas indicadas pelo ser humano à sua frente.

Durante o exame, enquanto a luz da lanterna aparecia e desaparecia no campo escuro do fundo infinito do Campimetro de Goldman (anteriormente denominado de “a coisa”), a paciente pensou em Flusser e nas questões que envolvem a produção e a manutenção do universo das imagens técnicas. Pensou na condição existencial da profissional responsável por seu diagnóstico, e porque não dizer, seu diferencial humano em relação ao programa inserido no aparelho. Neste misto de pensamentos, mesclado ao lento ritmo dos sinais para indicar o aparecimento e o desaparecimento da luz em seu campo de visão, a paciente piscou os olhos e quando os abriu…

Notas Sobre a Legião Subversiva…

Milhares de aparelhos produtores de imagens são diariamente inseridos em diferentes contextos, sejam eles no campo da ação doméstica, seja em formatos industriais e/ou educacionais. Milhares de seres humanos, atualmente deslocam-se da condição de sujeitos criadores, para a condição de funcionários destes mesmos aparelhos. Os governos, para mediarem as ações deliberadas em tais contextos, estabelecem normatizações de proibição do uso de aparelhos construtores de imagens em contextos, por exemplo, educativos. Uma maioria de seres humanos, seja por questões culturais, seja por falta de acesso econômico ou mesmo por resistência ideológica, mantém-se na condição de funcionários dos aparelhos produtores de imagens.

A dependência de funcionários e consumidores a estes aparelhos produziu uma espécie de geração zumbi. Tais funcionários zumbis adentram a chamada rede telemática, retroalimentando o universo das imagens técnicas, produtor desta condição funcional. Imagens técnicas neste contexto são imagens produzidas por aparelhos que possuem em seu interior programas definidos por códigos binários, frutos da lógica cartesiana.

Esta breve viagem tem por objetivo apresentar a Metaforametria, ou seja, o procedimento avaliativo que estuda o campo de produção de metáforas visuais por meio da sensibilização do olhar. Tal procedimento afirma a necessidade de avaliar e promover a capacidade criadora de um ser humano, por meio da representação metafórica dos diferentes contextos do qual faz parte.
Ao considerar que o campo visual é uma área espacial dentro da qual todos os filtros sociais são vistos simultaneamente, o campo metafórico de construção de imagens, neste contexto, divide-se em quatro quadrantes: abstração tridimensional, abstração bidimensional, abstração unidimensional e o quarto quadrante indicado por Flusser (2008), de zerodimensional.

O quadrante tridimensional refere-se ao gesto que manipula volumes, abstraindo o tempo ao seu entorno, na construção, por exemplo, de esculturas e objetos. O quadrante bidimensional relaciona-se à visão, que percebe o volume ao seu entorno, abstraindo tempo e espaço, imaginando cenas bidimensionais, tais como um desenho, ou mesmo uma gravura. Por quadrante unidimensional, compreende-se o gesto de abstrair as três dimensões: tempo, espaço e volume, na produção de textos. O quadrante zerodimensional refere-se à abstração do próprio ser humano, na construção de tais imagens.

O quadrante zerodimensional é um composto de programas inseridos no interior de aparelhos. Tais imagens são abstrações organizadas por meio de fórmulas matemáticas, convertidas em códigos binários. Os mesmos códigos que se revelaram ícones representativos das chamadas tecnologias de transmissão e armazenamento de dados.

O quarto quadrante, por agir como um câncer em meio às célulasmetaforaretinianas, multiplica-se randomicamente, inibindo a produção e integração de imagens por meio dos demais quadrantes. Neste contexto, para subverter a condição de abstração do ser que as produz, indica-se a possibilidade de relacionar os três primeiros quadrantes, de forma hibrida na produção de imagens zerodimensionais, ou imagens técnicas. Sobre o quarto quadrante, segue um breve histórico.

No processo evolutivo da condição humana, em relação aos diferentes quadrantes ou níveis de abstração do campo da produção de metáforas, o quarto quadrante foi aquele que melhor integrou os anseios do pensamento cartesiano, em relação ao afastamento dos saberes sensíveis, até então, condição essencial na produção de imagens. A facilidade com a qual o campo visual metafórico foi condicionado no contato com as imagens técnicas, provocou confusões de ordem perceptiva, tanto em seus produtores, quanto em seus observadores. Neste sentido, imagens zerodimensionais, não raras vezes, são confundidas com a própria realidade circundante, ao assumirem a condição de sombras da caverna platoniana, por mais relativo que o conceito de realidade possa ser compreendido.

metaforametria relaciona-se aos referenciais antropológicos, dos Estudos Culturais e, também, dos jogos de pensamento abordados pela cultura visual. Este diagnóstico, há tempos, vem sendo formulado pela conceituada linha da História da Arte. Contudo, profissionais das mais diferentes linhas de pesquisa, indicam as falhas críticas nesta linha de estudo, uma vez que esta não problematiza questões de gênero, classe, e outras problemáticas inerentes aos processos de afirmação e práticas hegemônicas na construção de um ideário social relacionado às visualidades presentes no contexto contemporâneo.

Metaforametria configura-se num dos possíveis meios para que se possam localizar consciências libertárias, que, no momento, encontram-se imersas no campo da construção de imagens técnicas. As implicações sobre a presença ou ausência destes genes libertários indicam a fragilidade do sistema do qual fazem parte. Este diagnóstico pode indicar duas classes de uma mesma espécie, neste contexto indicada por jogadores libertários. São elas: apertadores de teclas engajados ou programadores subversivos.

Os estudos sobre metaforantropologia apresentam indícios referentes à produção de imagens Eva (2009), apontando para a possibilidade subversiva desta ação. Este ato ao ser instaurado promove a ruptura com ambientes proibitivos, na busca pela libertação do reality show, instituído no paraíso castrador. No jogo da criação, Adão é uma máquina e Eva sua criação imagética. Eva em contato com a serpente e motivada por ações subjetivas, ao alimentar-se do fruto proibido, conquistou a liberdade para si, e também, para a máquina que a criou. Por ações subjetivas compreendem-se a metáfora da serpente, enquanto vírus subversivo, ou ruídos inseridos no interior do repertório, e porque não dizer, da estrutura inicial de sua criação. Tal vírus, neste contexto, passa a ser elemento inspirador para os sujeitos que desejam romper com a condição alienante presente no Universo das Imagens Técnicas.

Vilém Flusser, uma das mentes subversivas a este contexto, indicou em seus escritos, a existência de seres subversivos, indivíduos de crença zero (1967). Em suas primeiras investigações, ele os denominou de fotógrafos experimentais (2002), posteriormente de jogadores (2008). No contexto de produção e transmissão das imagens técnicas, a indicação de tais sujeitos foi ampliada para o que Santos, na elaboração do seu Jogo Antropofágico, passou a denominar de Jogadores Libertários (2010). Para exemplificar tal processo de ampliação, os membros da legião subversiva, indicados pelos pseudônimos de Cindy Sherman e Waldemar Cordeiro entraram em cena para subverter, por meio de sua prática artística, o jogo nulo instaurado pelo universo industrial.

A agente N. em contato com os membros da legião subversiva sinalizou a possibilidade de sistematização de um procedimento capaz de diagnosticar um possível resgate de seres humanos em condição de nulidade ante os aparelhos produtores de imagem. Metaforametria é a denominação dada a este procedimento investigativo e formativo, uma vez que sua ação não se resume à descoberta, mas paralelamente, à construção de espaços formativos de jogadores libertários. Neste processo, na produção de visualidades contemporâneas, torna-se possível indicar diferentes níveis de subversão no que se refere ao quadrante zerodimensional.

Cindy Sherman, por exemplo, ao apropriar-se da obra Sick Bacchus, de Caravaggio (Figura 2), exemplo do quadrante bidimensional, desenvolveu um projeto artístico cujo foco fora a produção de imagem técnica, enquanto produto artístico (Figura 3), diferindo-se da intenção documental, ou do mero registro materializado por códigos matemáticos.

Figura 2. Caravaggio. Sick Bacchus. 1593. Oléo sobre tela, 67 X 53 cm. Galleria Borghese, Roma. Fonte: http://artinvest2000.com/caravaggio_sick_baccus_.htm. Acesso em 4 fev. 2010.
Figura 3. Cindy Sherman. Untitled # 224. Fotografia. 1990. Fonte: www.artnet.com . Acesso em 4 fev. 2010.

Conforme explicitado anteriormente, no exemplo de Cindy Sherman, o aparelho não criou metáforas, porém, ao ser trapaceado pela artista, o produto do cálculo foi modificado, uma vez que a imagem não indicou reflexos do mundo (conforme pretensão cartesiana), mas sim, metáforas desse mundo previamente elaboradas por sua criadora, com finalidade de enganar o aparelho. Nessa dinâmica, o aparelho tornou-se instrumento da artista, e seu produto, irrealidade declarada.

Na elaboração da obra Derivadas de Uma Imagem (Figuras 4, 5 e 6), Waldemar Cordeiro em parceria com o físico italiano Giorgio Moscati, desenvolveu um programa capaz de digitalizar uma imagem fotográfica, a partir da transformação de algoritmos matemáticos. Neste exemplo, não foi o código binário, o responsável por construir as imagens, mas sim, a intenção do artista, ao corromper a lógica de programação cartesiana. No caso de programas desenvolvidos por jogadores libertários, o cálculo vazio continuará a ser processado, no entanto, a intenção criadora de seu programador será explicitada por meio de suas metáforas, conforme é possível observar na figura 7.

 

Derivadas de uma imagem. Waldemar Cordeiro/ Giorgio Moscati, USP. 1969. Coleção Família Cordeiro. Figura 4: Transformação em zero grau press out put, 47 X 34,5 cm. Figura 5: Transformação em 1 grau press out put, 47 X 34,5 cm. Figura 6: Transformação em 2 grau press out put, 47 X 34, 5 cm.

Figura 7. Gráfico da dinâmica do programador rebelde.

Enquanto as ações de Cindy Sherman sinalizaram a condição de apertadores de teclas engajados, Waldemar Cordeiro assumiu a condição de programador rebelde, uma vez que suas ações interagiram no interior do próprio aparelho, ao inserir intenção artística, no contexto objetivo dos códigos binários.

metaforametria, nestes casos, indica em que medida cada um dos sujeitos, inseridos no contexto do Universo das Imagens Técnicas, pode potencialmente tornar-se um jogador libertário, seja na condição de apertadores de teclas engajados, seja na condição de programadores rebeldes, ou na integração de ambos.

O exercício do olhar a partir de um retângulo, seja por meio dos visores de aparelhos captadores ou projetores de imagens do quadrante zerodimensional, indica a necessidade de três critérios: motivação, consciência e ação. A motivação indica a dinâmica de participar de um jogo. A consciência sinaliza a capacidade de reconhecer-se jogador neste jogo. Por ação compreende-se a capacidade de gerar situações e contextos que possam motivar novos sujeitos a tornarem-se jogadores libertários.

Edgar Morin em suas escritas desenvolvidas no quadrante unidimensional, intitulado Introdução ao pensamento complexo (2007), analisa a necessidade de uma tomada de consciência radical em relação à forma de organização do conhecimento na busca da superação da cegueira instituída pelo modelo de pensamento cartesiano. Esta tomada de consciência, segundo ele, indica a tentativa de religar saberes e sentidos, no desenvolvimento de projetos que integrem sistemas vivos, capazes de se auto-organizar e de autorrefletir. A metaforametria, neste sentido, assume-se enquanto contexto deflagrador de esclarecimentos e possibilidades no que se refere à humanização na produção de imagens presentes no quadrante zerodimensional.

É possível que este diagnóstico ocorra em diferentes espaços formativos, mas uma possibilidade concreta é que se desenvolva no contexto do ensino de arte, ao articular saberes e integrar sujeitos dispostos a romper com estruturas pré-determinadas. Efland (2008), outro integrante da categoria mentes subversivas, indica que tais possibilidades traduzem-se em uma abordagem dos âmbitos individual para o coletivo e do coletivo para o individual. O papel das metáforas, nesse contexto, seria o de estabelecer conexões entre objetos e eventos que, aparentemente, não se relacionam nessa dinâmica. Ao ensino de arte indica-se a responsabilidade de integrar imaginação e criação na produção de sentidos pessoais e culturais.

Notas sobre um laudo de campimetria…

A paciente piscou os olhos e quando os abriu percebeu, que na verdade, a demora do exame, e toda a descrição que o antecedeu, se dão, devido ao ser humano, frente ao Campimetro de Goldman. Aparelhos geradores de imagens técnicas não se comunicam por meio da troca de sentidos, os programas inseridos em seu interior são alheios a estas compreensões. Os diagnósticos computadorizados não refletem sobre a sua condição, não avaliam o contexto no qual estão inseridos, não avaliam a sensibilidade e subjetividade de outros seres por eles analisados.

Neste piscar de olhos, ela percebeu que a demora do exame é parte de uma condição poética, em resposta ao imediatismo cartesiano. Talvez alguns pacientes necessitem retornar outros dias, para que possam continuar a prosa, aprender ou apreender um pouco mais das histórias, quem sabe ler de relance os títulos dos livros de oftalmologia empilhados na prateleira da “sala de filme trash”. Quem sabe retornam para descansar os olhos dos bombardeios de imagens a que todos estão imersos em seu cotidiano. Talvez o exame de campimetria manual, possa ser um foco de resistência capaz de não apenas avaliar o campo visual de um paciente, mas em conjunto, ampliar o olhar no que se refere à condição do sujeito e da sua luta para manter sua condição humana num mundo cada vez mais robótico.

Pronto. O exame acabou.
— Nossa, pensei que fosse demorar mais.
(aliviada)
— Percebi alguns indícios de pressão “fora do normal” em seu olho esquerdo. É bom que você retorne para uma avaliação mais detalhada.
— Nossa… Retornarei, sim.
(aliviada)
— E o resultado?
— Pode esperar na recepção ao lado da porta. Vou redigir as observações e apresentar ao doutor para que ele avalie e emita o laudo.
— Obrigada. Gostei muito da sua avaliação. Ah… Também, gostei muito da conversa.
— Até logo…
— Até logo.

Após alguns minutos a paciente recebeu o seguinte laudo:

A Campimetria de Goldman da paciente, RG: XXXXXX/ 2ª Via DGPC,GO, apresenta isópteras dentro da normalidade, estando a paciente, do ponto de vista campimétrico, apta para trabalho que exija bom Campo Visual”. (10/08/2010)

Finalmente de posse do laudo, a paciente respirou aliviada. Mas no fundo do seu campo metafórico, gostou mesmo foi da conversa. Gostou também dos desenhos da Via Láctea, indicados nos dois mapas (olho esquerdo e olho direito), marcados pelo ser humano que acabara de conhecer.

Desenho da Via Láctea do olho esquerdo.
Desenho da Via Láctea do olho direito.

Referências Bibliográficas

EFLAND, Arthur D. “Imaginação na cognição: o propósito da arte”. Trad.: Leda Guimarães. In: Arte/ Educação Contemporânea – Consonâncias internacionais (Org. Ana Mae Barbosa). São Paulo: Cortez, 2008.

FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. 2. ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.

_____. O universo das imagens técnicas: elogio da superficialidade. São Paulo: Annablume, 2008.

_____. Jogos. Suplemento Literário OESP – 09/12/1967. Disponível em:
http://www.cisc.org.br/portal/biblioteca/jogos.pdf > Acesso em: 04 fev.

MARTINS, Alice Fátima & SANTOS, Noeli Batista. A Imagem Eva. In Revista Digital do LAV. Ano II – Número 02 – Março 2009. Santa Maria: UFSM. Disp. em <http://www.ufsm.br/lav/>. Acesso em 25 mai. 2009.

MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Trad. Eliane Lisboa. Porto Alegre: Sulina, 2007.

SANTOS, Noeli Batista. 2010. Imagens Técnicas e o ensino de arte: um jogo antropofágico. Mestrado. Dissertação, Universidade Federal de Goiás, Faculdade de Artes Visuais.

 

* Noeli Batista Santos é bacharel e licenciada em Artes Visuais pela Universidade Federal de Goiás e mestre em Cultura Visual. Professora Assistente na Faculdade de Artes Visuais/UFG, atua nos cursos de Licenciatura em Artes Visuais na modalidade a distância e presencial. Pesquisa contextos de formação de professores mediados pelas TICs e intervenções poético-pedagógicas envolvendo ensino de arte e a produção de imagens técnicas.

 

Ciberespaço atomizado e novos modos de pensar a cibercultura | de Cleomar Rocha

Categorias do Ciberespaço: rumo à atomização

A estrutura de conexões possibilitadas pelos sistemas computacionais recebeu o nome de ciberespaço, como foi batizada por William Gibson em seuNeuromancer, de 1984. Para Gibson, o ciberespaço era uma alucinação consensual, como o definiu. Como alucinação o ciberespaço ensejava a ideia de um espaço criado na mente das pessoas, era assim uma projeção, um local imaginado, e não exatamente um espaço físico, visto que as redes computacionais não configuram um espaço, mas um fluxo de códigos que trafegam em cabos, ar e equipamentos. Nos cabos, no ar, nos equipamentos, existem códigos, e não espaço.

Contudo, a partir da metáfora criada para o termo cibernética, da qual deriva ciberespaço, e a noção de espacialidade sustentada pela palavra [espaço], que recebeu o prefixo [ciber], aliada ao conceito de espaço-informação de Douglas Engelbart no desenvolvimento das interfaces gráficas computacionais ou GUI (Graphic User Interface), criou-se uma concepção de universo paralelo, para o qual os usuários se transportavam ao acessar o ciberespaço. Engelbart, ao desenvolver um modelo de interfaces gráficas, sustentou sua invenção em três conceitos principais, espaço-informação, manipulação direta e duplo virtual. A sua concepção de espacialidade, contudo, se restringia ao espaço simulado pela interface gráfica, e não pelo ciberespaço. Engelbart pensava o espaço bidimensional da interface gráfica da tela dos computadores, com a possibilidade de forja da tridimensionalidade, seja a partir do uso da perspectiva, seja de outro recurso de ilusão óptica. Mas certamente seu empenho se distingue da concepção de que houvesse espaço para além da tela, da interface gráfica.

Entretanto, vários pesquisadores deixaram-se levar pelo senso comum, ajudando a divulgar a ideia de um ciberespaço alheio ao mundo natural, que era acessado pelas interfaces, como se estas fossem uma membrana que separa o mundo natural do ciberespaço.

Para Poster (1995: 20 – 21) uma interface está entre o humano e o maquínico, uma espécie de membrana, dividindo e ao mesmo tempo conectando dois mundos que estão alheios, mas também dependentes um do outro. (apud SANTAELLA, 2003, 91)

Narrativas maravilhosas e fábulas à parte, tentaremos aqui discutir tais concepções, fazendo avançar alguns conceitos, e negar uma perspectiva romantizada e idealizada que constitui uma primeira visada sobre o termo ciberespaço e seus desdobramentos, como a cibercultura. Não se nega, diga-se desde já, a existência desta concepção romântica, mas será preciso tê-la como idealizada, encontrando suas razões de ser, mas deixando-a, em seguida, para fronteiras outras do pensamento.

Se o termo cibernética encontrou sua razão de ser pela comparação que se fez entre a quantidade de informações processadas pelos sistemas computacionais, aproximando-a de um mar de informações – lembremos que o termo deriva deKubernetes, que em grego significa timoneiro, aquele que governa, em referência à condução de um barco em pleno mar -, seu prefixo, ciber, serviu para gerar outras palavras, tendo a maior referência o termo ciberespaço. Se considerarmos que Engelbart criou a interface gráfica a partir de alguns conceitos, dentre os quais o de espaço-informação, que seria tomar o espaço bidimensional da tela não como um conjunto de linhas, mas como um espaço que os elementos das interfaces pudessem ocupar livremente, pode-se inferir que a junção da simulação de espaço das interfaces gráficas e a metáfora de mar, derivada de cibernético, foi o motor para se gerar a ideia de um espaço para além da tela do computador, para onde nosso espírito seguia ao acessarmos os sistemas computacionais. Mais ainda, poderíamos assumir, naquele universo, novos corpos, chamados avatares, nos quais poderíamos ter uma outra vida, talvez uma segunda vida [a rede socialSecond Life se sustenta neste pensamento].

Esta definição de ciberespaço como mundo paralelo encontrou uma série de defensores, que sustentavam que a interface era uma janela para o ciberespaço, ou um lugar onde os sistemas computacionais e humanos se encontravam. As interfaces seriam, nesta concepção, o portal de passagem para o outro mundo, livre de todas as querelas de nossa sociedade. Destituídos de nossa cultura corpórea e social, estaríamos livres para compor uma outra cultura, a cibercultura. Contudo será preciso lembrar que a cultura não é constituída por espaços, mas por pessoas que ocupam os espaços. E sua base é a consciência, além do comportamento. Assim, ainda que fosse de fato outro espaço, ainda assim seríamos nós, com toda a nossa cultura, que estaríamos lá. A cultura é a humana, a mesma em todos os espaços, com as variações de pertencimento, formalidade, espontaneidade, que temos nos vários espaços sociais que ocupamos.

No nível da experiência, nosso corpo próprio recebe estímulos, compondo as sensações, reconhecidas como percepção. O que experienciamos ao acessarmos os sistemas computacionais é o estímulo da cor-luz emitida pelos monitores em suas telas, é o som, são as interfaces físicas que convocam nosso sistema háptico. As informações são atualizadas nas e pelas interfaces, alcançando nossa base sensível, os exteroceptores, compondo nossa experiência. Nossa consciência não deixa o corpo, não nos transportamos para um universo paralelo. Antes disto, aceitamos as regras da ilusão das interfaces, reconhecendo uma simulação da espacialidade tridimensional onde há apenas duas dimensões. Ao aceitarmos esta forja, desejamos crer nela, acatando-a como base da experiência, o que de fato não ultrapassa as noções de representação sígnica, simulação computacional e projeção do eu, em processos de subjetivação que se assemelham a literatura, quando nos reconhecemos em um personagem, ou no cinema, intensificados pela resposta simultânea das ações que executamos. O ciberespaço é ilusório desde a sua concepção. É uma forja auxiliada pelo design de interfaces e pelos textos que o querem um universo paralelo.

Esta concepção de ciberespaço, baseada no paralelismo, encontra duas outras categorias ou concepções: seu atravessamento e sua atomização. O atravessamento recebe o legado das tecnologias tele, de acesso remoto, como o telefone e a televisão. É quando a tarefa a ser realizada não ocorre nas simulações computacionais, mas estas possibilitam acessos remotos, como teleconferência, telepresença e telerrobótica. A telemática sustenta tecnologicamente esta concepção.

A terceira categoria, atomização, situa o ciberespaço não em um mundo paralelo, mas presente no mundo natural, como elementos atômicos. Sensores, câmeras e outros dispositivos identificam elementos do mundo natural, filtrando-os e identificando-os enquanto ações que determinam novas ações de sistema. Movimentos, gestos, cores, localização, posicionamento, voz, fala, ruído, qualquer elemento previamente determinado como acionador do sistema pode ser usado, de modo a atualizar informações virtualizadas em interfaces variadas, seja de entrada seja de saída do sistema. Aqui as interfaces são das três categorias: físicas, perceptivas e cognitivas 1. O ciberespaço, antes de estar para além das interfaces, situa-se para aquém delas, no mesmo espaço usado pelo corpo próprio, o mundo natural.

Cada vez menos é necessário se falar em ciberespaço. Na sala de aula, eu estou em contato físico com os estudantes, mas ao mesmo tempo estou usando uma tela de projeção conectada. Portanto, estamos nos apropriando de elementos que estão absolutamente incorporados àquele ambiente físico e que são coisas que estão no chamado ciberespaço. […] Essas fronteiras deixam de existir. (PALÁCIOS, 2009, 254)

Embora boa parte da cultura ainda se refira ao ciberespaço a partir da categoria do paralelismo, nota-se claramente uma mudança de curso, tanto em concepções teóricas quanto de mercado. Em filmes como MatrixAvatar temos a ideia de migração da mente, que deixa o corpo e assume outro corpo, digital no primeiro caso e biológico, porém artificial, no segundo. E se na primeira categoria, paralelismo, o corpo próprio era elemento obsoleto, relegado a uma função quase banal e dispensável, ele recupera importância na terceira categoria, atomização, sendo o grande responsável pelos acionamentos das interfaces computacionais. Na verdade, no paralelismo, o corpo não era dispensável, mas seus movimentos eram minimizados, com as mãos realizando os movimentos de condução do mouse e acionamento do teclado, enquanto o olhar vasculhava as imagens sintéticas das interfaces gráficas. Com a atomização o corpo ganha espaço e pede passagem, com a incorporação de gestos, voz, movimentos amplos. Para se jogar com o Wii, da Nintendo, o corpo todo é convocado para a ação. O Projeto Natal, da Microsoft segue o mesmo caminho, eliminando a figura do avatar e mantendo o corpo próprio como elemento de jogo. Porém, não se fala mais em entrar no ciberespaço, mas o ciberespaço, enquanto noção de espacialidade tecnológica de acionamentos e interatividade, se acomoda em volta do corpo, observado agora por câmeras e sensores que possibilitam ao sistema identificar deslocamentos, movimentos, gestos, sons, a própria fala. Não é o usuário que entra e navega no ciberespaço, é o ciberespaço que se lança no mundo natural, tornando-se cada vez mais pertencente a este, um elemento dele. Desfaz-se, e tardiamente, o equívoco conceitual de oposição entre real e virtual, e problematiza a definição de interface, visto que não é mais possível sustentar a afirmação de a interface ser um elemento que separa dois mundos, ou mesmo que os une. Não existem dois mundos, apenas um, o que conhecemos. Heim, já em 1993, mostrava o caminho de reconhecimento do ciberespaço, composto de um modelo ou mapa mental – daí o vínculo com a ideia de alucinação consensual de Gibson – e o leiaute da interface gráfica.

O arquivamento magnético não oferece nenhuma pista tridimensional para corpos físicos. Por isto, devemos desenvolver nosso próprio sentido internamente imaginado da topologia dos dados. Esse mapa interior que produzimos mais o layout do programa é o ciberespaço. (HEIM, 1993, 132)

Mas somente com a atomização do ciberespaço a cultura como um todo parece ter de dar razão ao estudioso.

 

Cultura digital, cibercultura e cultura contemporânea

Desde o surgimento da concepção de ciberespaço, e tem naquele momento a primeira categoria, estudiosos tratam de uma cultura própria, a cibercultura.

Este termo [cibercultura] surgiu pra fazer uma separação entre a cultura até então existente e algo que estava emergindo, que era o digital. Nos primeiros artigos sobre a cultura digital era muito comum se usar a expressão real life para se referir ao mundo das coisas sólidas, em contraposição a esse outro mundo, que seria o mundo virtual. (PALÁCIOS, 2009, 253)

A base de sua constituição era, desde o seu surgimento, a oposição à cultura propriamente dita, em clara referência à cultura estabelecida no/com o ciberespaço. Ainda que sua gênese fosse a cultura das mídias (SANTAELLA, 2003) e sua base não fosse o desktop, mas o processador (SANTAELLA, 2003), seu surgimento sustentou a oposição, como afirma Palácios, entre cultura real e cultura “virtual”. Vários estudiosos se debruçaram sobre o tema, ora fazendo ver que a cultura estabelecida não se restringia ao ciberespaço, mas a partir dele, contaminando o corpo social, engendrando-se na cultura, ora restringindo-o àquela ideia de espacialidade cibernética. No mundo de cá, mundo natural, cultura, no mundo de lá, ciberespaço, cibercultura. Haveria a possibilidade nascente de reconstruir a cultura a partir do zero, e pesquisadores como Pierre Lévy (1999) divulgava a boa nova como uma oportunidade preciosa para se reinventar a cultura humana, com vistas a um ambiente colaborativo, constituindo o que ele chamou de inteligência coletiva. O campo das possibilidades era profícuo.

Ocorreu, contudo, que o admirável mundo novo não era completamente novo, porque fora povoado pelos mesmos povos, com suas culturas, já existentes. Identificou-se que a cultura não é a do lugar, mas das pessoas que habitam esse lugar. Em outras palavras, o lugar, em si, não tem cultura, mas as pessoas a fazem. Ainda assim, o alicerce que sustentava a oposição entre real e virtual mostrou-se frágil, verdadeiramente falso. O mesmo Lévy o disse em seu O que é o virtual?(1996), ao reparar que virtual se oporia ao atual, e que ambos, virtual e atual, pertencem ao real. Ao aceitar tal fato, perde-se de perspectiva que o ciberespaço tenha um locus próprio, fora do mundo ou da cultura. Não faz mais sentido falar em cibercultura no contexto de oposição. Ela passa a nominar uma etapa específica da sociedade, uma faceta histórica.

A gente pode empregar como sinônimos cibercultura e cultura digital, que seriam nomes para a cultura contemporânea, marcada a partir da década de 70 do século passado, pelo surgimento da microinformática… (LEMOS, 2009, 136)

Postos deste modo, a cibercultura, nascida de uma oposição, se integra ou se dissolve na cultura contemporânea, nominando não mais algo pontual, mas geral, ainda que mantenha o vínculo tecnológico que a fez surgir. Não nos parecerá estranho, então, que o termo entre em desuso, por absoluta falta de necessidade.

 

Conclusão

Não me parece justo decidir sobre a obsolescência de alguns termos e seus sentidos, visto que isto cabe à cultura linguística, à comunidade que os utiliza. Contudo, parece caber ao observador atento a tarefa de reconhecer variações semânticas, e o sutil deslizar do emprego de determinados termos, na orientação que oscila entre o conceito e a semântica.

Se, semanticamente, os termos ciberespaço e cibercultura surgiram de uma necessidade nominativa específica, é também certo que tais termos sofreram, rapidamente, variações de sentido, como apontadas, perdendo parte de sua especificidade, em alguns casos a totalidade de sua serventia. E se assim o é, antever a obsolescência dos termos já não seria de todo condenável, já que a sua eliminação reacomoda, de modo mais consensual e adequado, os conceitos dos quais derivam.

Em sendo assim, identificamos a tendência de o termo ciberespaço voltar a ter o sentido de sua concepção original, como alucinação consensual ou como a junção de modelo mental e leiaute da interface gráfica, nada mais que isto. Já o termo cibercultura parece não mais suportar o peso do que nominou um dia, sendo paulatinamente substituído por outros mais gerais, como cultura digital, cultura contemporânea, ou até, talvez e apenas, cultura. Conceitualmente atualizamos a ideia de um único mundo e cultura, sabidamente recheados de facetas, tensões, variações e mesmo contradições.

 

Referências

HEIM, Michael. The metaphysic of virtual reality. Oxford University Press, 1993.

LEMOS, André. Entrevista. In SAVAZONI, Rodrigo, COHN, Sérgio (orgs.)Cultura Digital.br. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009. 135-149.

LEVY, Pierre. Cibercultura. Trad. Carlos Irineu da Costa. São Paulo: ed. 34, 1999. (Coleção TRANS)

LEVY, Pierre. O que é o virtual? Trad. Carlos Irineu da Costa. São Paulo: ed. 34, 1996. (Coleção TRANS)

PALÁCIOS, Marcos. Entrevista. In SAVAZONI, Rodrigo, COHN, Sérgio (orgs.) Cultura Digital.br. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2009. 253-261

POSTER, Mark. The second media age. Cambridge, Polity Press, 1995.

ROCHA, Cleomar. Interfaces Computacionais. In Anais do 8º Encontro Internacional de Arte e Tecnologia. Brasília: PPG Arte/IdA/UnB, 2009.

ROCHA, Cleomar. Três concepções de ciberespaço. No prelo. Goiânia, 2010.

ROCHA, Cleomar. Interfaces Computacionais In Anais do 17o Encontro Nacional da ANPAP. Florianópolis: ANPAP, 2008.

SANTAELLA, Lucia. Culturas e artes do pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura. São Paulo: Paulus, 2003.
Filmografia

AVATAR. Direção e Roteiro: James Cameron. Produção: James Cameron e Jon Landau. Elenco: Sam Worthington, Zoe Saldana, Sigourney Weaver, Stephen Lang. EUA: Twentieth Century-Fox Film Corporation / Lightstorm Entertainment / Giant Studios, 2009. 1 DVD (162min).

THE MATRIX. Direção e Roteiro: Andy Wachowski e Larry Wachowski. Produção: Joel Silver. Elenco: Laurence Fishburne , Carrie-Anne Moss , Hugo Weaving , Joe Pantoliano, Marcus Chong. EUA: Warner Bros, 1999. 1 DVD (136min)

 

*Cleomar Rocha é pós-doutorando em Estudos Culturais no Programa Avançado em Cultura Contemporânea (PACC/UFRJ), pós-doutor em Tecnologias da Inteligência e Design Digital (TIDD/PUC-SP) e doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas (FACOM/UFBA). Professor Adjunto do Programa de Pós-graduação em Cultura Visual da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás – FAV/UFG.

1 Apresentei e discuti as três categorias de interface durante o pós-doutoramento em Tecnologias da Inteligência e Design Digital, com supervisão da profa. Lucia Santaella. A discussão também foi apresentada em artigos publicados em 2008 e 2009, notadamente no #8.ART – 8o Encontro Internacional de Arte e Tecnologia, realizado em Brasília em 2009, e no 17o Encontro Nacional da ANPAP, realizado em Florianópolis em 2008.

 

Vampiros em (super)visibilidade: um fenômeno cultural em ação | Laura Maria Coutinho* – / – Adriana Moellmann**

“Se o mundo fosse como devia ser, se não houvesse monstros e magia…” (MEYER, 2009) 1

“You think you’re a vampire,” Simon’s mother said, numbly. “You think you drink blood.”
“I do drink blood,” Simon said. “I drink animal blood.”
“But you’re a vegetarian.” His mother looked to be on the verge of tears.
“I was. I’m not now. I can’t be. Blood is what I live on.” Simon’s throat felt tight. “I’ve never hurt anyone. I’d never drink someone’s blood. I’m still the same person. I’m still me.” (CLARE) 2

Em 1993, após assistir ao filme Drácula de Bram Stoker, 3 a surpresa foi tão grande quanto a emoção. O que de início era um filme de terror tornou-se, doravante, o desnudamento de uma figura mitológica, conhecida e reconhecida, construída em literatura e cinematografia, sempre com imagens controversas e diversas. Não havia – como ainda acreditamos não haver – uma personalização absoluta do que representaria o vampiro. No entanto, naquele momento, muito do que ele simbolizava e representava mostrou-se de forma intensa e contundente, levando-nos a questionar o que seriam os vampiros e por que seu simbolismo é tão presente, forte e controverso.

Ao iniciar a pesquisa 4 a partir do filme de Francis Ford Coppola, vários obstáculos apresentaram-se, o que também foi uma surpresa. Afinal, que dificuldades se apresentariam à tentativa de observar mais de perto uma figura tão conhecida e, de certa forma, tão presente no imaginário de diferentes povos e culturas? Eram tantos os filmes sobre vampiros, tanta literatura, música. Conhecê-los mais de perto deveria ser fácil.

Porém, não contávamos com sombras tão densas. Os filmes não estavam visíveis, não foram encontrados em locadoras de vídeo. Para assistir a Nosferatu, 5 de F. W. Murnau, foi preciso recorrer à biblioteca de uma escola de idiomas e ignorar os letreiros em alemão. Dança com vampiros 6 não estava acessível. Fome de viver 7 também não. Os filmes de Bela Lugosi 8 não estavam disponíveis. Os caminhos que havíamos escolhido traçar para contemplar os vampiros, para conseguirmos nos aproximar do Drácula de Bram Stoker, não estavam claros. Foram precisos alguns anos e certa contraposição às sombras – ou talvez um mergulho nelas, portando um pequeno feixe de luz – para entendermos os nossos empecilhos.

Entrevista com o vampiro9 filme baseado no livro de Anne Rice, 10 foi lançado com grande repercussão em 1994. Traz às telas dilemas, questionamentos, problemas morais, filosóficos e éticos da humanidade – como morte, envelhecimento, beleza, além do velho conflito entre o bem e mal –, a partir do encontro de um jornalista e um vampiro. Nele, o vampiro Louis, interpretado por Brad Pitt, conta ao jornalista a sua vida de vampiro, expondo sua força, fraquezas, angústias e violência. Louis apresenta uma figura conhecida hoje, “o vampiro com consciência”,11 aquele que questiona o que é e o modo como existe. Na narrativa de Anne Rice, Louis se contrapõe a Lestat, o vampiro que não mostraria dúvida do que é e de como vive. Com Lestat, Louis e suas entrevistas, a imagem do vampiro aparecia novamente em destaque, um ano após o Drácula de Bram Stoker.

Em 2008, foi lançada mundialmente a versão cinematográfica da saga literária criada por Stephenie Meyer em 2005, Crepúsculo 12. Elaborada a partir de um sonho da autora, em que um vampiro apaixonava-se por uma humana, surgiu a saga composta de quatro livros. Neles, o personagem Edward foi transformado em vampiro como uma alternativa à morte. O vampirismo aparece como a sua possibilidade de viver, não uma renúncia à vida. Parte de uma família que se recusa a sobreviver de sangue humano, ele encontra em Bella, a humana por quem se apaixona, outras possibilidades de recuperar sua própria humanidade. A partir dos livros, surgiram os filmes. Seguido a tudo isso, surge um fenômeno de superexposição. Agora, é possível encontrar os vampiros nos locais mais inusitados e inesperados.

Hoje a imagem do vampiro não se encontra mais nas sombras de um culto cultural restrito a determinada idade, local, interesse. Não temos mais que abrir atalhos em caminhos escondidos para conseguir encontrá-los. Eles se encontram expostos e iluminados. Isto um fenômeno cultural contemporâneo pode proporcionar: a superexposição de uma imagem à luz. Por circunstâncias e elementos que ainda buscamos compreender, uma imagem que já se encontrava presente em sociedade há séculos, que culturalmente nos era conhecida, passa, hoje, a ser supervalorizada, exposta, discutida, comercializada.

No entanto, seja nas sombras de uma figura cult, seja na superexposição iluminada de um acontecimento cultural de massa, a imagem não necessariamente se faz mais clara. A falta de luz ou o seu excesso podem representar, igualmente, uma deturpação da imagem. Tampouco essa forma de superexposição significa que se promova uma atenção, uma melhor contemplação que pudesse levar a uma maior compreensão da imagem, mas apenas pode significar que ela sai das sombras para expor-se no plano do visível.

Segundo Fredric Jameson, em As sementes do tempo 13, cada vez mais pode acontecer de os produtos culturais deslocarem-se da esfera da arte, que se faz pela diferença, para a esfera da massa, que se faz pela identidade. Os artefatos culturais nos quais se incluem os vampiros, hoje, estariam mais próximos dos fenômenos que ocorrem na esfera da massa: proporcionam mais a identificação que a diferença.

O excesso de exposição pode ofuscar a visibilidade de uma imagem. Ao mesmo tempo em que, criada para ser vista, sua exposição pode, muitas vezes, retirar o que lhe é inerente, evidenciando a identificação de aspectos mais gerais de personagens e narrativas em detrimento de sua especificidade e essência. Segundo Hannah Arendt,
…tudo o que vem a público pode ser visto e ouvido por todos e tem a maior divulgação possível. Para nós, a aparência – aquilo que é visto e ouvido pelos outros e por nós mesmos – constitui a realidade. (…) até mesmo as maiores forças da vida íntima – as paixões do coração, os pensamentos da mente, os deleites dos sentidos – vivem uma espécie de existência incerta e obscura, a não ser que, e até que, sejam transformadas, desprivatizadas e desindividualizadas, por assim dizer, de modo a se tornaram adequadas à aparição pública.

(…) A presença de outros que veem o que vemos e ouvem o que ouvimos garante-nos a realidade do mundo e de nós mesmos ...14

O vampiro: símbolo de vida e morte
O vampiro de Drácula de Bram Stoker, o filme, nos conduz à imensa dor da perda. Uma dor tão intensa e profunda que despe quem a sofre da própria humanidade. O Conde Drácula, ao perder tudo o que o constituía como ser humano – seu amor, sua pátria, suas crenças –, abre-se à escuridão do não-ser. Existe, mas não vive. Anda sobre a terra, mas seu coração não bate. A vida não mais o habita. A essência da vida ele precisa adquirir de outra forma, por meio do sangue. Morto em vida e esvaziado de si, o vampiro alimenta-se daquilo que pulsa nas veias do outro. Os vampiros estão mortos em sua perambulação quase sempre noturna. Não têm mais vida. São frios. Não têm alma. Insones, vivem no escuro, espreitam. A essência da vida não mais os compõe, precisando ser adquirida. O calor e a energia vital são usurpados de quem ainda os possui.

Segundo Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, “o sangue é universalmente considerado o veículo da vida. (…) O sangue corresponde, ainda, ao calor, vital e corporal, em oposição à luz, que corresponde ao sopro e ao espírito.15A matéria de que é feita a vida.

Em Drácula de Bram Stoker, a figura do vampiro relaciona-se também com o simbolismo cristão, à contraposição céu/inferno, mas a ela não se reduz. O vampiro seria, sob esse aspecto, uma figura demoníaca que, ao final, se abre à redenção que, no filme, ocorre em uma igreja. Esse cenário parece ressaltar a ação – e esta é o que parece importar ali. A transformação é percebida nos movimentos, a partir dos gestos e da atitude de Drácula em relação à luz, à sombra e aos símbolos presentes no ambiente. Nesse momento, é possível vislumbrar em sua fisionomia o reconhecimento de sua própria dor e o seu desapego à escuridão. É a vida que ele busca sempre, não a morte.

A história de Conde Drácula popularizou o nome, que se tornou um sinônimo de vampiro. Seu local de nascimento, a Transilvânia, a sua casa, tornou-se também a morada de todos os vampiros. Apesar de se tratar de uma lenda que surgiu em local específico – o leste europeu 16-, sua associação com os vampiros é mundial. Drácula, o vampiro, se estendeu a outros locais, outros cenários, outras narrativas.

Essa forma de transposição da lenda e sua perpetuação no mundo real das produções culturais, fez com que, por exemplo, Roddy Doyle compusesse, de maneira instigante, o seu conto Blood.17 O personagem dessa narrativa cresceu na cidade de Drácula e passava pela casa de Bram Stoker todos os dias a caminho da escola. Apesar de haver crescido tão próximo à lenda, ele não se sensibilizava com os vampiros. Dormiu durante o filme Drácula de Bram Stoker por considerá-lo enfadonho. As imagens da narrativa não o sensibilizaram, mas ele não pode evitar que os vampiros invadissem a sua vida cotidiana. Ele não se interessava por histórias, filmes ou livros de vampiros, não se identificava com eles, mas mesmo assim não conseguiu mantê-los fora da sua vida. Apesar de seu desinteresse por esses seres, um dia ele acorda com uma necessidade extrema de beber sangue.

O vampiro e seu simbolismo se deslocam também das muitas narrativas que conhecemos e se propagam para o mundo. Transformam-se em ação, desejos, produtos. Extrapolam a ficção, ultrapassam as barreiras do sonho e ficam à nossa disposição não só em representação, mas em matéria. Estão presentes em produtos comercializados – copos, camisetas, roupas de cama, cadernos, joias. Passam a compor o nosso cotidiano; em reminiscência, trazem aspectos físicos do que representam. Como objetos da memória, afastam-nos do esquecimento e tornam-se cada vez mais presentes a partir das imagens que evocam.

Outro aspecto essencial na jornada do vampiro, nesse amálgama feito de realidade e ficção, é sua estreita associação ao mito do amor romântico. Presente na sociedade ocidental contemporânea de forma arrasadora, ele está na origem da dor do vampiro de Bram Stoker. O amor é também a força redentora, e se apresenta como a escolha de salvação e fator de humanidade aos vampiros nas narrativas atuais. Universal e de grande apelo emocional, o amor romântico também ultrapassa fronteiras.

Esse amor encontra-se personificado, sobretudo, na força das escolhas que os vampiros podem fazer. Seres que, oscilando entre a emoção, o instinto e razão, buscam se constituir mais como humanos do que como monstros. Sob essa perspectiva, podemos dizer que o amor os redime. O amor é o grande desafio a ser conquistado e parte essencial da jornada desses personagens que, como heróis, tornam-se cada vez mais próximos ao seu leitor. O amor é o elo que pode unir vampiros e humanos, trazendo do universo da ficção, forte identificação que alcança a vida real de leitores, sobretudo aqueles oriundos de um público bastante jovem. Mas não somente. A busca da superação de sua condição de vampiro, o anseio por outra realidade menos monstruosa, o seu afastamento da violência de um predador, tudo isso pode se justificar também pela força do amor romântico. Ele está na essência de quase todas as escolhas. É o que torna plausível o desejo de mudança dos vampiros e também de humanos.

O movimento realizado pelo vampiro no filme de Coppola já apontava para esse elemento importante para a composição da imagem atual do vampiro, ou seja, a escolha. Se nem sempre tornar-se um vampiro é uma escolha consciente, a superação da sua condição demoníaca poderia sê-lo. Ele precisaria agir no sentido da sua humanidade, e não contrariamente a ela. Esse é um dos aspectos que o tornaria adequado ao mundo e à sociedade dos homens. É a opção pela humanidade que daria à sua aparência, gestos e atitudes a qualidade necessária para estar em sociedade. Ele não mais seria um monstro incontrolável. Esse aspecto retira da imagem do vampiro muito do extremismo que está contido no seu simbolismo. Se a perda da humanidade foi uma resposta extrema à dor, esse extremismo não mais se apresentaria para o vampiro nas narrativas atuais. Talvez essa seja uma das razões do enorme sucesso dos vampiros de Stephenie Meyer.

Ao vampiro associam-se também outros instintos que compõem o ser humano. Dois deles apresentam-se muito fortemente relacionados: a violência e a sexualidade. Ambos encontram-se largamente discutidos, com maior ou menor detalhamento, não somente nos telejornais, em casa ou na escola, mas sim, e com muita ênfase, nas narrativas de ficção. Expressam condições passíveis de serem traduzidas em imagens de grande impacto visual e sonoro, sobretudo no cinema e na televisão. Comumente, violência e sexualidade andam juntas – essa combinação pode proporcionar uma associação dessas duas expressões no imaginário contemporâneo. O vampiro traz, desde sempre, a violência e o sexo nas suas representações. Portanto, é emblemático que uma sociedade que valoriza o controle dos instintos, sobretudo pelo comportamento civilizado, instituído e regulamentado, tenha como importante fenômeno atual – transformado, em alguns momentos, em grande espetáculo de massa e de mídia – uma manifestação cultural assentada em vampiros que, como heróis, tentam superar e controlar esses dois instintos básicos em nome do amor, da humanidade e da possível salvação de sua alma.

Essa trajetória do vampiro rumo à conquista de sua humanidade assemelha-se à jornada do herói, conforme descreve Joseph Campbel em O mito do herói.18Depois de viver na inconsciência de sua verdadeira essência, o herói passa pela tomada de consciência de sua própria condição e, daí, para a realização de seu potencial.

Na jornada dos heróis atuais, encontram-se presentes a busca de certa adequação ao mundo moderno e a aceitação das diferenças. Aqui a propagação na literatura e no cinema dos vampiros adolescentes fortalece o simbolismo. Dessa forma, os vampiros presentes nas narrativas atuais teriam uma escolha que estava ausente em Drácula. A escolha de superar os instintos, ou de pelo menos aparentar que o fazem. E assim nos aparecem os vampiros hoje: seres humanos que não tiveram outra escolha senão se tornarem o que são. Mas eles são também criaturas que não se conformam com a sua condição. Parece não estarem dispostos a se tornar apenas mais um clichê de filme de terror. Possuem escolhas e as exercem. Lutam contra sua natureza e instintos predadores para reconquistarem a humanidade perdida.

Outros elementos e simbolismos, propostos nas narrativas dos autores mais atuais, passam a compor a imagem do vampiro. Que, nessas histórias, eles apareçam cada vez mais novos, pode colocar em foco o poder e a importância de escolhas cada vez mais precoces. Longe da imagem de um predador ancião sem consciência, os vampiros hoje representam a possibilidade de tornarem-se o que escolherem, sugerindo o mesmo para um mundo no qual a humanidade encontra-se cada vez mais diluída, contraditória e sem saída. Talvez por isso a importância de uma reflexão sobre o deslocamento das narrativas sobre vampiros que visam públicos mais próximos da adolescência – momento essencial de escolha da construção da própria individualidade.

Os vampiros presentes nessas narrativas são adolescentes que, para estarem em sociedade, precisam mudar o sentido do que significa ser vampiro. A etimologia da palavra adolescente ressalta um dos aspectos da atração do simbolismo do vampiro para essa época da vida: originada do latim adoléscens, significa aquele que cresce, engrossa, aumenta. Aquele que se torna. Nas narrativas ficcionais atuais, o personagem que não sabe o que e quem é descobre sua verdadeira vocação, sua essência na época da adolescência. Criado em sociedade, o adolescente um dia descobre que não faz parte dela como imaginava. Descobre em si outras potencialidades, possibilidades e aptidões. Sua vida até então poderia ter sido como um ensaio, e o que virá a seguir, após a descoberta, será a sua vida.

 

A adequação e a aparência
Ao mesmo tempo em que a visibilidade confere ao vampiro seu lugar no mundo, ela lhe retira a força de seu simbolismo. As paixões, a dor da perda, o extremo que ele simboliza precisam ser domados e transformados para que ele se apresente adequadamente em sociedade. Simon, na epígrafe apresentada no início deste texto, explica para a mãe que, apesar de ter se tornado um vampiro, ele continua o mesmo. Morreu, mas ainda existe. Continua a ir à escola, a ensaiar com a banda de que faz parte, a divertir-se com os amigos. O que ele é não interfere no que ele aparenta ser em sociedade. A sua sede de sangue ou as mudanças por que passa são invisíveis aos outros. E para a sociedade dos homens, cada vez mais, é o visível que importa, não necessariamente a essência.

Os vampiros do seriado True Blood, exibido pela TV HBO,19 encontraram na criação do sangue sintético a camuflagem de civilidade que precisavam para expor ao mundo outro comportamento; com a possibilidade de se alimentaram artificialmente, sua necessidade de sobrevivência e sua condição de predadores do ser humano poderiam se transformar. No entanto, longe da visibilidade social, eles continuam sendo o que sempre foram; agem como antes de “saírem do caixão” e revelarem ao mundo o que são: predadores da humanidade.

Hannah Arendt (2000) contrapõe a sociedade moderna à grega-clássica com o seguinte aspecto: Na Grécia, ser cidadão significava agir. Na sociedade contemporânea, diferentemente, cabe ao cidadão se comportar. O comportamento é a sua ação em sociedade. O comportamento pode se configurar como uma forma de adequar-se às exigências sociais. Os vampiros, figuras mitológicas e de simbolismo intenso, não escapariam a essa exigência.

O simbolismo do vampiro se diferencia e se amplia no livro Crepúsculo por um aspecto significativo da história: a humana opta por ser vampira. Bella não sofre o destino dos outros vampiros da sua nova família. Ela não passa pela inevitabilidade da transformação. Ela tem uma escolha. Nem sempre na adolescência é possível ter a escolha. Bella tem essa possibilidade e, para o adolescente, essa é uma questão essencial. É a existência de uma opção. É a possibilidade de escolher seu futuro e quem deseja ser. É encontrar um local de existência em que haja adequação, felicidade e novas possibilidades. Assim, o vampirismo passa a ser não só um destino inevitável e cruel, de perda e dor, mas uma escolha por um modo de ser e por novas possibilidades de sobrevivência.

A superexposição dessa história traz ao foco da questão outras imagens que estão próximas ou têm alguma associação com os vampiros. Assim, com os vampiros – agora mais adolescentes, mesmo que centenários – e a sua grande exploração cultural e comercial, surgiram outras obras de ficção baseadas em figuras sobrenaturais. Os vampiros invadiram o mundo consciente, e com eles vieram os lobisomens, os transformadores, os fantasmas, as fadas, os nefilins, os anjos caídos. São adolescentes, presentes em sagas literárias que contam, em inúmeros livros, a jornada de heróis de 17 anos que precisam escolher o que querem se tornar e o que fazer, com o que são e com suas próprias qualidades.

A ampliação desse universo e a sua discussão por meio de obras literárias e cinematográficas sugerem narrativas que dialogam entre si e trazem essa conversa para o mundo da produção cultural. Os personagens, as circunstâncias em que vivem, o que têm à sua disposição não estão fechados em si. O sangue sintético deTrue Blood pode representar uma possibilidade para os vampiros de outras narrativas 20 . O diálogo se expande e, assim, o simbolismo tende a ampliar-se.

Todos esses símbolos já estavam presentes – no mundo, no chamado consciente coletivo, nos livros, pinturas, filmes, revistas em quadrinhos. Nas músicas. Na imaginação. No universo mitológico. O advento desse fenômeno de larga escala conferiu-lhes, no entanto, maior destaque. Colocou-os no centro de discussões, da paixão dos fãs e também como objetos de rejeição para aqueles que os consideram apenas como mais um modismo de qualidade duvidosa e movido a milhões de dólares.

 

A superexposição
Um fenômeno cultural traz consigo inúmeras implicações. Dentre elas, talvez a mais importante, no caso em tela, seja justamente aquela que escapa à maioria das visões mais superficiais e busca assentar-se em um olhar atencioso. O olhar atento implica abrir os olhos encarando o que vemos nos múltiplos prismas por meio dos quais se apresentam. Abrir os olhos para tentar enxergar além da superexposição. Olhar a imagem e atentar para o que ela deseja nos dizer, sem o a priori dos rótulos.
Jan Masschelein, em seu artigo E-ducando o olhar: a necessidade de uma pedagogia pobre, fortemente inspirado em Walter Benjamim, ressalta o que seria essa abertura do olhar:
Abrir nossos olhos é ver aquilo que é evidente; trata-se, como eu diria, de estar ou tornar-se atento ou expor-se. Caminhar pela estrada e copiar o texto são maneiras de explorar e relacionar-se com o presente, que são, acima de tudo, e-ducativas (…) Eles constituem um tipo de prática de pesquisa que envolve estar atento, que é aberta para o mundo, exposta (ao texto) para que ele possa se apresentar a nós de forma que nos comande. Esse comando não é o poder de um tribunal, não é a imposição de uma lei ou princípio (que supostamente deveríamos reconhecer ou impor a nós mesmos), mas sim a manifestação de uma força que nos põe em movimento, e assim abre o caminho. Ela não nos direciona, não nos leva à terra prometida, mas nos impulsiona.21

Olhar atentamente a imagem do vampiro hoje é deixá-la nos conduzir e contemplar o que ela evoca. É ter o olhar vazio para conseguir enxergá-la para além da moldura das ideias preconcebidas, do preconceito e dos modismos. É perceber como certo movimento de vida criou-se ao redor dessas narrativas, ofuscando muitas vezes o que elas próprias desejam expressar. É superar um pouco das barreiras criadas pelas classificações de idade e espaço nas obras literárias e cinematográficas. É tentar não ir simplesmente contra o que prevalece, mas buscar novas significações para velhos gestos. É buscar compreender como a imagem se propaga para além do seu direcionamento inicial e se faz presente de muitas formas. Crepúsculo é, por exemplo, uma história classificada como juvenil, mas que não se restringe hoje apenas ao público jovem. Restringi-la é uma forma de não abrir os olhos, de considerar suas possibilidades expressivas em um plano muito superficial.

As leituras, os visionamentos, as pesquisas que realizamos são formas de conhecimento de nós mesmos e do mundo em que vivemos. Elas não se configuram apenas num ambiente acadêmico. A pesquisa de fenômenos culturais não se limita às obras a que se refere. Elas são o nosso ponto de partida, o impulso. Elas conduzem-nos, como se referiu Messchelein acima. A partir delas nos movimentamos. O que traz esse impulso, o que ocasiona esse movimento é o que constitui essa pesquisa. Ela se constitui de muitos elementos, um verdadeiro caleidoscópio, feito para ser visto por um olhar atento e alegórico.

Walter Benjamim destacou as possibilidades de fazer emergir novas percepções existentes nesses entremeios de histórias, signos, símbolos, sentidos, significados, objetos de que se constitui a alegoria. Para o autor, a alegoria “está mais tenazmente radicada onde a caducidade e o eterno se chocam mais fortemente”22. O que é perecível e o que permanece juntam-se para nos trazerem outros significados; buscam o que é presente e o sintetiza com o passado, o que foi e o que era, e, ainda, o que poderá a vir ser. As possibilidades de cada imagem, em alegoria, expandem-se e se ampliam a partir de uma obra. Mas não se limitam a ela. Instalam-se no mundo, criam novos significados e novos simbolismos.

Dessa forma, o olhar atento também quer conseguir outro intento: superar preconceitos. Superar as limitações que os conceitos fechados nos trazem. “Os conceitos são roupas de confecção que desindividualizam conhecimentos vividos. Para cada conceito há uma gaveta no móvel das categorias. O conceito é um pensamento morto, já que é, por definição, pensamento classificado” (BACHELARD, 1993)23. Se as alegorias ampliam as possibilidades do que nelas está figurado, o pensamento morto não tem nelas um lugar cativo. Só os conceitos vivificados podem participar desse processo secular de fabricação estética e política de imagens e narrativas que proporcionam encantamento – e estranhamentos – no universo humano como parte da vida privada e social.

As narrativas de ficção se ampliam nas alegorias que apresentam e instalam-se no mundo, seja no mundo material, no das ideias, no dos sonhos, no da imaginação, no dos produtos culturais 24. A linha de separação entre eles torna-se cada vez menos visível. Olhar as narrativas que se apresentam ao mundo e acolher o que elas nos trazem cria novas possibilidades de compreensão do próprio mundo. Ultrapassa a ficção e transforma a realidade.
O inferno dos vivos não é algo que será: se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo e abrir espaço. (CALVINO, 1990)25

 
*Laura Maria Coutinho é graduada em Audiovisual: Cinema, Rádio e Televisão e mestre em Educação pela Universidade de Brasília; doutora em Educação, Conhecimento, Linguagem e Arte pela Universidade de Campinas. Professora da Faculdade de Educação/UnB, atua na extensão, graduação e pós-graduação.

** Adriana Moellmann é graduada em História, mestre em Educação pela UnB e doutoranda pela Faculdade de Educação da Universidade de Brasília – UnB. Seu projeto de pesquisa, intitulado “Amar mais as Sombras que os Corpos: imagens e sons da ficção e da realidade”, tem orientação da Prof. Dra. Laura Maria Coutinho.

 

 

 

1 MEYER, Stephenie. Eclipse. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2009, p. 425.

2 Trecho do livro City of fallen angels, de Cassandra Clare, com publicação prevista para abril de 2011. A citação consta do site dedicado à saga de que faz parte o livro: www.imortalinstruments.com. Acesso em 14/10/2010. Tradução livre: “Você acha que é um vampiro”, disse a mãe de Simon, meio entorpecida. “Você acha que bebe sangue”. “Eu bebo sangue,” disse Simon. “Eu bebo o sangue de animais.” “Mas você é vegetariano.” A mãe de Simon parecia estar à beira das lágrimas. “Eu era. Não sou mais. Não posso ser. Agora eu vivo de sangue.” Simon sentiu sua garganta apertar. “Eu nunca machucaria ninguém. Eu nunca beberia o sangue de uma pessoa. Eu continuo a ser a mesma pessoa. Eu ainda sou eu.”.

3 Drácula de Bram Stoker (Dracula). De Francis Ford Coppola, EUA, 1992. Baseado no livro Drácula, de Bram Stoker (São Paulo: Martin Claret, 2002).

4 Essa pesquisa com o título Revista, Televisão, Cinema: a imagem do vampiro, realizada por Adriana Moellmann e Paula Christina Miranda Rêgo, à época alunas de graduação em História, foi desenvolvida no espaço da disciplina “História das Religiões” – Prof. Victor Leonardi – Departamento de História/UnB/1993.

5 Nosferatu (Nosferatu, eine Symphonie des Grauens). De F. W. Murnau, Alemanha, 1922. Werner Herzorg filmou uma versão do filme – Nosferatu, o vampiro da noite (Nosferatu: Phantom der Nacht) em 1979.

6 Dança com vampiros (The fearless vampire hillers). De Roman Polanski, Inglaterra, 1967.

7 Fome de viver (The hunger). De Tony Scott, EUA/Inglaterra, 1983.

8 Ator austro-húngaro (atual Romênia), famoso por interpretar vampiros no cinema. Um deles foi o próprio Conde em Drácula (Dracula), de Tody Browning, EUA, 1931. A banda inglesa Bauhaus o tem como tema de uma de suas músicas, Bela Lugosi’s dead. Esta música é o tema de abertura do filmeFome de viver, em uma cena incrivelmente impactante com Catherine Deneuve e David Bowie.

9 Entrevista com o vampiro (Interview with the vampire: The vampire chronicles). De Neil Jordan, EUA, 1994.

10 Escrito em 1976, Entrevista com o vampiro – na edição brasileira, pela editora Rocco, com tradução de Clarice Lispector –, inicia a série que apresentou ainda O vampiro LestatA rainha dos condenados.

11 A expressão refere-se aos vampiros que questionam o que são. Insatisfeitos com o seu destino, tentam viver de forma diferenciada. A expressão é usada, comumente, de forma depreciativa, como se a aquisição de uma consciência fosse contrária à natureza do vampiro. Alguns vampiros trazem fortemente essa característica. Além de Edward, de Crepúsculo, há Stefan, da série de livrosDiários do Vampiro (L. J. Smith, Galera Record, 2009) e da série de TV sob o mesmo nome (Vampire diaries, EUA, Warner, 2009). Aqui também há a contraposição, como ocorre em Entrevista com o vampiro: contrariamente a Stefan, seu irmão, Damon, sustenta a imagem do vampiro como tradicionalmente a conhecemos: violenta e sem escrúpulos – pelo menos aparentemente.

12 MEYER, Stephenie. Crepúsculo. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2008.

13 JAMESON, Fredric. As sementes do tempo. São Paulo: Ática, 1997.

14 ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, pp. 60/61.

15 CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. O dicionário dos símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1991, pp. 800.

16 De acordo com CHEVALIER & GHEERBRANT, 1991, p. 930.

17 DOYLE, Roddy. Blood. In: Stories: All-new tales. Gaiman, Neil & Al Sarrantonio (org.). Estados Unidos: HarperCollinsPublishers, 2010, pp. 5 a 14.

18 CAMPBELL, Joseph. O poder do mito (com Bill Moyers). São Paulo: Palas Athena, 2006.

19 True Blood. EUA, 2008. Série de TV criada e produzida por Alan Ball.

20 Assim acontece com Jane Jameson, vampira recém-criada no livro de Molly Harper, Nice Girls Don`t have fangs (EUA, Pocket Books, 2009). Os livros da série trazem vários elementos de outras histórias da literatura, numa referência constante, que se possibilita ao leitor o diálogo com outras narrativas.

21 MASSCHELEIN, Jan. E-ducando o Olhar: a necessidade de uma pedagogia pobre. In Dossiê Cinema e Educação – Educação & Realidade. Porto Alegre, 2008 v. 33, p. 39.

22 BENJAMIN, Walter. A origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 243.

23 BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 88 (Coleção Tópicos).

24 Desde o surgimento do fenômeno Crepúsculo, novos vampiros e seres sobrenaturais surgiram em sagas literárias, algumas já com previsão de serem adaptadas para o cinema. Essa afirmação não exclui a existência de inúmeras séries anteriores ao fenômeno. É importante reconhecer a invasão de novas séries no mercado literário desde 2005. Um exemplo foi o lançamento, em 2009, da série de televisão norte-americana Vampire diaries, produzida pela CW a partir da saga homônima escrita por L. J. Smith em 1991 e em 2009 houve o lançamento, pela autora, de um novo livro da saga, dezesseis anos após o primeiro. No Brasil, o fenômeno Crepúsculo ocasionou o maior número de tradução de livros sobre vampiros que até 2009 só eram encontrados em inglês. Algumas das sagas vampirescas atuais são: os livros de Sookie Steakhouse, que deram origem à série de TV True Blood, escritos por Charlaine Harris (2001, 10 livros); a saga Vampire academy, da autora Richelle Mead (2007, 5 livros, com lançamento previsto nos cinemas em 2013); House of night saga, escrita por P.C e Kristin Cast (2007, 7 livros – as autoras são mãe e filha, respectivamente – P.C. convidou a filha a escreverem juntas para poder adaptar seus livros à uma “linguagem mais adolescente”); Mortal instruments, de Cassandra Clare (2003, 3 livros, com previsão para chegar aos cinemas em 2012); Wicked lovely, de Melissa Marr (2009, 3 livros); Cirque du freak, a Saga de Darren Shan (2000, 12 livros e um filme), de Darren Shan; The Immortals, de Alison Noel (2009, 3 livros); os livros de Jane Jameson, de Molly Harper (2009, 3 livros); Fallen, de Lauren Kate (2010, 2 livros); Hush hush, de Becca Fitzpatrick (2009, 2 livros). Apesar de longa, esta lista está longe de abarcar sequer uma pequena porcentagem das séries hoje à disposição do leitor e espectador. No entanto, é importante destacar também como as sagas cresceram rapidamente, e tiveram vários livros lançados em curto espaço de tempo. Dos citados, apenas Cirque du freak, Jane Jameson e Wicked lovely não têm nenhum de seus livros traduzidos.Cirque du freakJane Jameson são sagas já encerradas, além de Crepúsculo; todas as outras continuam em andamento, com novos livros previstos para 2010/2011.

25 CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 150.

 

Humano-Pós-Humano: Flagelos e perspectivas de um ser em metamorfose | de Alexandre Quaresma

Introdução

Prezados leitores da Z,

O objetivo primeiro deste artigo é ajudar a fomentar o debate sobre o instigante e notável tema hora em tela (pós-humano), juntamente com suas indissolúveis implicações socioculturais, no sentido de propor uma reflexão mais aprofundada acerca da matéria, bem como trazer à baila as perpectivas e inquietações que surgem toda vez que o termo pós-humano é pronunciado como vetor de novas significações para os acontecimentos da pós-modernidade. Nesse sentido, não desejo apresentar verdades absolutas sobre o assunto analisado, mas sim ampliar os horizontes de debate, especialmente no que tange nossa essência humana que, junto a esses mesmos fenômenos, poderia encontrar-se ameaçada. Por fim e em última análise, trata-se pura e simplesmente de tentarmos responder à importantíssima e mais seminal pergunta que sempre nos acompanhou desde que existimos: Quem somos nós?
1. Deslumbramento, incerteza e responsabilidade

Vivemos um momento ímpar de deslumbramento e incerteza. Deslumbramento diante das possibilidades bionanotecnocientíficas que se abrem diante de nós, e incerteza quanto ao potencial ambíguo dessas mesmas possibilidades. Esse exacerbado desenvolvimento se dá como continuidade de um longuíssimo processo de domínio, subjugação e exploração do mundo e da natureza à nossa volta, culminando hoje com o determinismo tecnológico que pode ser identificado em tudo que realizamos no mundo desde a aurora imemorial dos tempos na Terra.
Recursivamente, perpetuamos através dos tempos uma dinâmica singular de extrema complexidade: criamos a cultura que nos cria, cultura essa que criamos ao sermos criados por ela, continuamente. Até aí, seria óbvio. Todavia essa dinâmica intensifica-se de modo exponencial nos últimos duzentos, e mais especificamente nos últimos cinquenta anos. Esse processo sociocultural torna-se relevante justamente quando essa velocidade fenomenal ultrapassa nossa capacidade de refletir sobre esse mesmo e recursivo imprinting tecnicista que determina não só a cultura, mas também o modo de enxergarmos e pensarmos o mundo; ou, devido à dispendiosa e célere ascensão de tais práticas, o modo de não conseguirmos fazê-lo.

De fato, e isto é notório e sabido, essa dinâmica de extrema importância para a consubstancialização da cultura foge totalmente de nosso controle. Alguns – e eu não me deterei em enumerar as suas possíveis motivações – acreditam que controlar ou influenciar essa dinâmica não nos compete, pois creem em uma espécie improvável de intenção ‘consciente’ que poderia estar por trás de tais fenômenos. Outros, bastante envolvidos no próprio fomento prático desses mesmos fenômenos e viciados nessas relações, pregam uma espécie igualmente improvável de legalidade moral fundamentadora, no mínimo questionável, na qual – em tese – o próprio fenômeno do avanço e do desenvolvimento seria responsável por tudo de valoroso, valioso e desejável em termos de progresso para a humanidade, reclamando para sua causa o controle da ‘locomotiva’ da história, tornando-se assim alvo e objetivo de toda a civilização moderna e pós-moderna. Aqui há uma armadilha significativamente perigosa: ambas as concepções apresentadas pretendem uma ingerência descabida, especialmente se considerarmos nossa ampla parcela de responsabilidade. Além disso, trazem um distanciamento e descomprometimento ético irreal e improcedente com a contrução da realidade, juntamente a um olhar equivocado e prepotente de assenhoramento, próprio do controle que sempre – mesmo diante da vida – vê e concebe tudo como ‘coisa’.

Hans Jonas é claro quanto a isto em seu livro O princípio responsabilidade – Ensaio de uma ética para a civilização tecnológica:

Creio que certas transformações em nossas capacidades acarretaram uma mudança na natureza do agir humano. E, já que a ética tem a ver com o agir, a consequência lógica disso é que a natureza modificada do agir humano também impõe uma modificação na ética (JONAS 2006:29).

A natureza como uma responsabilidade humana é seguramente um novum sobre o qual uma nova teoria ética deve ser pensada (JONAS 2006:39).

Questões que nunca foram antes objeto de legislação ingressam no circuito das leis que a ‘cidade’ global tem de formular, para que possa existir um mundo para as próximas gerações de homens (JONAS 2006:44).

De certo que as antigas prescrições da ética ‘do próximo’ – as prescrições da justiça, da misericórdia, da honradez etc. – ainda são válidas, em sua imediaticidade íntima, para a esfera mais próxima, cotidiana, da interação humana. Mas essa esfera torna-se ensombrecida pelo crescente domínio do fazer coletivo, no qual ator, ação e efeito não são mais os mesmos da esfera próxima. Isso impõe à ética, pela enormidade de suas forças, uma nova dimensão, nunca antes sonhada, de responsabilidade (JONAS 2006:39).

Essa forma mais responsável, por assim dizer, de conceber o mundo à nossa volta e estabelecer relações com ele, que esse filósofo alemão nos propõe, traz uma intimidade com o fato em si (pós-humano) muito mais legítima, tendo em vista que tal fenômeno não se consolida aleatoriamente por si, mas depende, em última análise, de nossa participação direta – mesmo que involuntária e inconsciente – para poder vir às vias de fato e acontecer no mundo do real, o que por sua própria força configura nosso vínculo sólido de responsabilidade para com o fenômeno.

Assim – mesmo que à primeira vista imaginemo-nos inaptos, impotentes e até mesmo desvinculados no que tange influenciar tais acontecimentos; seja pela velocidade que estes acontecimentos venham a apresentar ou seja pela complexidade que realmente tenham por ultrapassarem as gerações, suplantando as perspectivas temporais individuais através da própria história –, podemos então postular: não é possível esquivarmo-nos de nossa participação direta e responsável em tais processos e fenômenos que dizem tanto a respeito de nós mesmos.

Jürgen Habermas em seu livro O futuro da natureza humana é convergente:

Tememos, não sem razão, que surja uma densa corrente de ações entre as gerações, pela qual ninguém poderá ser responsabilizado, já que ela transpassa de forma unilateral e na direção vertical as redes de interação contemporâneas (HABERMAS 2007:02).

Nesse sentido, enquanto escrevo este artigo, e enquanto você, prezado leitor e internauta, o lê, tal dinâmica tecnicista determinante desse imprinting segue sempre adiante, independentemente de nossa capacidade prática de refletir sobre ela, e os conflitos assim não tardam em aparecer. O primeiro deles, sem dúvida, é o descontrole do controle.

2. Um controle descontrolado

Hoje vivemos uma profunda angústia que tem sua origem no descontrole do controle tecnicista, controle esse perpetuado por nossa civilização e que agora nos ameaça cruzando todas as barreiras sólidas e até então estabelecidas no que diz respeito à nossa própria humanidade. E, esse sentimento desconfortável e perturbador é bastante bem fundado tendo sua origem em nossas próprias ações no mundo a nosso redor. Estamos num tempo singular chamado pós-modernidade, e esse nos apresenta agora impositivamente seu filho mais pródigo, fecundo e viril: o pós-humano. O pós-humano filho do humano nasce da impotência que experimentamos ao nos confrontarmos com nossas próprias e desmedidas capacidades bionanotecnocientíficas de realização, potencializadas. De fato, somos capazes de replicar animais, modificar a vida no nível biomolecular através das nanotecnociências e do ‘bioengenheiramento’, transformá-la, reconfigurá-la, misturá-la e até mesmo fundi-la a outras formas vivas, mas não somos ainda capazes de mensurar os possíveis impactos que isso gerará em nossa cultura e em nossa própria espécie. Novas tecnologias moderníssimas como a clonagem, a transgenia, as nanotecnologias, a genômica entre muitas outras, surgem ininterruptamente, mas velhos problemas sociais como a fome e a miséria continuam a nos atormentar desafiando nossa capacidade bioética, política e criativa. Todavia, não nos iludamos: todos esses avanços tecnocientíficos estão atrelados indissoluvelmente ao capital financeiro internacional que é necessário para seu fomento e desenvolvimento, e por isso muitas outras ações importantes como combate à desigualdade social, por exemplo, são deixadas de lado, pois o capital financeiro só se ocupa de si, sua concentração, seu aumento e sua multiplicação. Ou seja, além da dinâmica célere e aparentemente descontrolada que opera tais mudanças, existe ainda um certo interesse por parte destes mesmos grupos elitistas que fomentam tais avanços para que todo o processo siga sempre assim descontrolado, tentando tornar qualquer especulação a respeito de riscos e impactos negativos em meras projeções de lunáticos e paranoicos tecnofóbicos e inconsequentes. Ou seja, desimportantes.

Assim sendo, e independentemente de uma pretensa crítica social, é facílimo sentirmos a manifestação desse sentimento de angústia como algo pertinente, e pressentirmos a presença de uma série de conflitos e crises bioéticos que vão se acumulando em nossos horizontes futuros, cujo enfrentamento somos desafiados a assumir sob pena de por a perder a própria aventura humana na Terra, inviabilizando nossa permanência enquanto espécie, destruindo o meio ambiente e suprimindo, além disso, as possibilidades e oportunidades potenciais das futuras gerações.

Neste contexto, o fenômeno pós-humano surge como signo indicativo de transformação a partir da soma e convergência de diversos fatores socioculturais distintos e confluentes dentro de um mesmo momentuum, e assume relevância especial para nossa análise reflexiva neste artigo, pois é algo que se dá na prática involuntária e independentemente de nossa vontade e consciência objetiva, fugindo assim, talvez irreversivelmente, de nosso controle como fenômeno intersubjetivo e difuso. Um destes fatores mais eminentes na atualidade é a possibilidade bastante concreta de nos degenerarmos enquanto espécie distinta das demais, e a possibilidade no mínimo aterradora de nos fundirmos às nossas próprias criações: as máquinas. Seríamos então simbiontes: meio-maquínicos-meio-orgânicos.
Quanto a isto, Joël de Rosnay, em seu livro O homem simbiótico – Perspectivas para o terceiro milênio, informa-nos o seguinte:

...o simbiotente e sua vida trepidante podem aparecer como uma excrecência parasitária específica ao mundo industrializado, uma espécie de câncer das sociedades desenvolvidas, drenando em seu proveito fluxos cada vez mais densos de energia, informação e materiais (ROSNAY, 1997:22).

Certo, esta fusão com as máquinas já está acontecendo pois somos dependentes e mediados por elas em quase tudo que fazemos em nossas vidas cotidianas, e atualmente não conseguimos nos relacionar com a realidade senão através delas. Todavia, a intrusividade de próteses mecânicas e informacionais, ou seja, a incorporação indiscriminada dessas próteses no organismo – considerando incorporação como tornar normal e aceito incluir no corpo tais suplementos artificiais – já é uma realidade e aponta para uma exponencialização tão fenomenal, que ameaça abalar as estruturas de nosso pensamento habitual a respeito do que significa ser humano.

Eis aqui, coloquialmente, o “x” da questão: o humano está em metamorfose. Os parâmetros e as contingências que garantiam essas certezas ontogênicas, antes tão sólidas e estáveis, estão se rompendo. Não é mais possível dizer com precisão se é natural ou não clonar células e ‘fabricar’ biomolecularmente órgãos suplementares, se já cultivamos órgãos em cavidades toráxicas de porcos e vacas para, posteriormente, reintroduzi-los em corpos humanos, e ainda se todo esse processo poderia ser considerado humano ou não. Da mesma maneira, não sabemos mais diferenciar nossos olhos de nossas lentes de contacto ou óculos, pois já os incorporamos à nossa fisiologia e à nossa cultura como algo natural, e, em breve possivelmente, não reconheceremos mais a diferença entre nossos cérebros e nossas máquinas computadoras hiperinteligentes conectados a eles.

3. O humano-pós-humano

O pós-humano é ainda, em diversos sentidos, também humano. Mesmo que transformado em outro tipo de entidade cujas influências externas sobrepugem e transcendam os parâmetros que culturalmente foram estabelecidos para determinar e conceber o humano. Além disso, nossa civilização pós-moderna – de um modo ou de outro – é diretamente responsável por essa desmedida potencialização dos dilemas e crises do humano. O desencantamento com o mundo e com a vida que experimentamos sob a força das bionanotecnociências, a desmitificação da natureza e até de Deus, a tecnicização, o determinismo tecnológico extremado são exemplos claros desse mal-estar e dessa inquietação angustiosa que nos deixa perplexos e nos impulsiona adiante, onde humano e não-humano se fundem e se confundem, e se constituem enquanto representação simbólica nova, já que o pós-humano é em todos os sentidos: inaugurador e neoparadigmático.

Francis Fukuyama em seu livro Nosso futuro pós-humano não tem dúvidas quanto à nossa argumentação e afirma:

Poderíamos assim emergir do outro lado de uma grande linha divisória entre história humana e pós-humana sem nem mesmo perceber que o divisor de águas fora rompido porque teríamos sido cegos ao que era essa essência (FUKUYAMA 2003:111).

Quanto à definição do termo pós-humano, enquanto vetor de novas significações das consequências da pós-modernidade, a professora Lucia Santaella, em seu livro Cultura e artes do pós-humano, cita Robert Pepperell (1995), elencando os três sentidos em que ele emprega a expressão pós-humano como referência:

…em primeiro lugar, para marcar o fim do período de desenvolvimento social conhecido como humanismo, de modo que pós-humano vem a significar ‘depois do humanismo’; em segundo lugar, a expressão sinaliza que nossa visão do que constitui o humano está passando por profundas transformações, o que significa sermos humanos hoje não é mais pensado da mesma maneira em que o era anteriormente; em terceiro lugar, ‘pós-humano’ refere-se a uma convergência geral dos organismos com as tecnologias até o ponto de tornarem-se indistinguíveis (SANTAELLA 2009:109-110)

.

4. A última tentação

A última tentação humana é o desejo incontrolável de superar a morte. Seja através de técnicas improváveis de suportes maquínicos, que em tese poderiam amparar nossa consciência num ambiente não-orgânico que certamente configura uma concepção obsolescente do corpo; seja preservando e adicionando a esse mesmo corpo todo tipo de drogas, acessórios, próteses, órgãos bioengenheirados, mecanismos e dispositivos artificiais de toda ordem, transformando o corpo humano numa plataforma viva a partir da qual se constituiriam outras formas de interface e consciência que, de certa maneira, também concebem o aparato orgânico humano como algo ‘incompleto’ e carente de ‘melhoramento’, e que também nos remetem a uma concepção de obsolescência do que consideramos humano.

Ser vivo é ter que morrer mais cedo ou mais tarde, pois dentro da natureza onde se desenrolam as delicadas e complexas coreografias da vida, tais fenômenos são imbricados e subsequentes dentro de uma ordem de complexidade que se retroalimenta contínua e sistemicamente. Assim, o ser humano-pós-humano perplexo diante de tamanha adversidade (a morte) passa a querer permanecer a todo o custo e por essa razão luta por postergar e, em seus desejos egoístas mais primordiais, não consegue se conformar à sua própria condição mortal, rebelando-se contra o próprio sistema natural que o gerou, subjugando cada vez mais esse mesmo sistema através da artificialidade tecnicista em busca se não de uma imortalidade, pelo menos de sua permanência estendida ao máximo possível. A própria técnica de clonagem animal – cuja motivação se esconde atrás de uma pretensa servilidade funcional reabilitativa, terapêutica e regenerativa futura, teoricamente benéfica em alguns sentidos restritos como produzir pele para vítimas de queimaduras, por exemplo – também disponibilizaria a clonagem como possibilidade técnica de indivíduos replicarem-se a si mesmos por desejos descontrolados de permanência e apego a essa existência singular, lançando um raio incidental de esperança na sombria senda de retorno irreversível ao Uno primordial que é a morte.

Talvez, nesse momento (2010), seja prematuro falar de imortalidade, é verdade, mas o prolongamento, quem sabe indeterminado da vida humana, já é uma possibilidade bastante plausível nos horizontes de nossa civilização tecnológia de controle e instrumentalização. Nesse sentido, o humano que sempre instrumentalizou tudo à sua volta, agora faz de si seu próprio objeto de manipulação, instrumentalização e controle.

Hans Jonas não deixa dúvidas quanto a isso: “O Homo faber aplica sua arte sobre si mesmo e se habilita a refabricar inventivamente o inventor e confeccionador e todo o resto” (JONAS 2006:57).

O Homo faber ergue-se diante do Homo sapiens (que se torna, por sua vez, instrumento daquele), e o poder externo aparece como o supremo bem – para a espécie, obviamente, não para os indivíduos (JONAS 2006:272).
O que Jonas quer nos dizer é que mesmo que tais práticas representem teórica e simbolicamente avanço tecnológico para a espécie, tais avanços – se é que poderíamos considerá-los avanços e não retrocessos – não chegariam a ser benéficos para a coletividade humana, servindo apenas como instrumento de uma minoria elitista e sofisticada que poderia surfar na crista da onda bionanotecnocientífias e pagar por suas benesses.

Aqui recaímos numa mesma armadilha da rasa lógica capitalista de mercado: tecnologias sempre vêm à luz amalgamadas a seus contextos e conjunturas culturais específicas. O que vale dizer que, por serem patrocionadas por grupos de elite (do ponto de vista da abastança material) representam, indubitavelmente, os interesses de seus fomentadores e investidores, até porque há que se ter muito dinheiro para fomentar tais P&Ds de altíssima complexidade e altíssimo custo financeiro.
5. Flagelos e perspectivas de um ser em metamorfose

Um notável flagelo autoimposto do humano-pós-humano a si mesmo é a perda de sua essência fundamental. Não numa concepção abstrata e representativa especular, mas sim no sentido da perda objetiva de caracteristicas tão determinantes como orgânico e inorgânico, por exemplo, de especificidades tão intrínsecas à nossa própria estrutura biológica e intelectiva que, ontologicamente, tornaríamo-nos outra espécie diferente da humana. O mesmo vale para o prolongamento indeterminado da vida humana numa medida muito significativamente maior. Num certo sentido, esse tipo de alteração na longevidade, muito exponencial e determinante, modifica drasticamente o acoplamento estrutural da espécie e sua própria autocompreensão. Além dos problemas práticos e óbvios que podemos de imediato imaginar, como imprevistos, acidentes e descontroles, podemos antever também possíveis estratificações sociais mais sectarizadas ainda do que são hoje, dando origem no topo da cadeia a uma raça diferente e mais ‘elevada’ de seres por assim dizer ‘melhorados e superiores’, ‘mais aptos’, em contraste gritante e absoluto com os ‘não-melhorados’, ‘inferiores’, ‘menos aptos’. Isso seria a replicação nefasta do modelo de categorização e discriminação social que já se manifesta através da classificação entre ricos e pobres, só que desta vez tais predicados e defeitos estariam mais intimamente associados às complexidades dos organismos individuais.

Jürgen Habermas corrobora tal compreensão e afirma que fazer da humanidade um meio, seja de transformação, ‘melhoramento’, desfiguração, exploração ou descaracterização implica, inevitavelmente, na quebra desta simetria e na morte da igualdade secular entre as pessoas. A ideia da humanidade, por si, obriga-nos – nos diz ele – a adotar aquela perspectiva do nós, a partir da qual nos consideramos uns aos outros como membros de uma comunidade inclusiva, que não exclui ninguém (HABERMAS 2004:78).
6. A consciência maquínica e o ciberespaço

Talvez a mais notável e fabulosa prótese pós-humana que se avizinha de nós em termos de possibilidades e realizações tecnocientíficas sejam os computadores – não inteligentes ainda, mas com capacidades espantosas de processamento de dados iguais ou superiores às do cérebro humano. Isso, em última análise, pode significar que, mesmo que não inteligentes num primeiro momento, esses aparatos artificiais poderão – pelo menos em tese – operar sistemas complexos de considerações e alternativas múltiplas, análogas às existentes em nossas próprias mentes, já que nossos computadores são concebidos e construídos à nossa imagem e semelhança. Aí, nesse momento, bastaria ligar essas supermáquinas à rede internacional de computadores, munindo-as de softwares, algoritmos evolucionários e redes neuronais complexíssimos, o que possibilitaria que elas aprendessem a aprender.

Um fator perturbador e agravante deste cenário hipotético futuro é a habilidade que as máquinas possuem de compartilhamento dos dados e informações a elas fornecidos. Num caso extremado como esse, surge a perturbadora questão: o que impedirá que as máquinas venham a nos superar em habilidades e dons, e ou mesmo se rebelar contra nós?

O ciberespaço, neste sentido, não seria apenas e tão somente uma espécie de hiperconsciência planetária, mas também um veículo extremamente eficiente que, em última análise, poderia servir a qualquer causa; inclusive – se fosse o caso – à das máquinas. Ou seja, além de nos mediar – orquestrar nossas finanças em nível global, entre outras atividades estratégicas, absorver, tratar e transportar nossas informações, e lembremos que informação é poder – ela (world wide web) se consolida como uma grande biblioteca viva da história e do conhecimento humano, disponível nessa grande consciência coletiva viajando à velocidade da luz.

Quanto a isso Joël de Rosnay é categórico:

Damos-lhe o nome de economias, mercados, rodovias, redes de comunicação ou estradas eletrônicas; no entanto, trata-se de órgãos e sistemas vitais de um superorganismo em vias de emergir. Irá modificar o futuro da humanidade e condicionar seu desenvolvimento no decorrer do próximo milênio (ROSNAY 1997:17).

Como enzimas de uma protocélula com as dimensões do planeta, trabalhamos sem plano de conjunto, sem intenção real, de maneira caótica, na construção de um edifício que nos supera (ROSNAY 1997:21)

 

Conclusão: Quem realmente somos nós?

Pergunta/problema final sobre nossa humanidade: Quem realmente somos nós? Somos tudo isso que criamos? Ou tudo isso que criamos transforma fundamentalmente o que somos?

Bem, a resposta exata parece inexistir. Talvez sejamos ambas as coisas ao mesmo tempo, e quem sabe até mais. Nossa metamorfose pode ter começado lá atrás quando nos despregamos do mundo natural comum dos demais animais vivos sob a força da pedra lascada e do domínio do fogo como as primeiras tecnologias de intrumentalização e controle primitivos; e daí para a frente teríamos seguido sempre adiante nesse progressivo processo, configurando-o como algo inerente à nossa própria natureza humana mais essencial, o que certamente justificaria toda essa violência e devastação que tanto primamos em desenvolver e melhorar em busca de nossa permanência e capacidade de prevalecer e sobressair.

Ou então, ao contrário, nessa mesma ocasião longínqua de nosso passado primitivo, teríamos nós – sem nem mesmo termos consciência disso – desviado-nos irreversivelmente de nossa essência e relação de pertencimento mais primordial com a natureza, provocando o acionamento de toda essa sequência de fatos, fenômenos e acontecimentos que culminam hoje nesses conflitos e crises bioéticos sem precedentes, que de fato abalam e podem até mesmo destruir nossa essência e nossa identidade, enquanto seguem igualmente também devastando e extinguindo as demais espécies vivas e o próprio ambiente que nos abriga a todos.
Nesse sentido, é inapropriado enxergar o fenômeno pós-humano como algo alheio a nós, mesmo que esse fenômeno se apresente exponencialmente livre de nossa vontade e reflexão intencionais. Prescrutá-lo em sua identidade neoparadigmática, verificar sua interface com a cultura que o gera, identificar seus possíveis pontos nodais significa, certo, debruçarmo-nos por sobre nossa própria essência enquanto humanidade.
Referências bibliográficas

FUKUYAMA, Francis (2003). Nosso Futuro Pós-humano – Consequências da revolução da biotecnologia. Rio de Janeiro: Rocco.

HABERMAS, Jürgen (2004). O Futuro da Natureza Humana. São Paulo: Martins Fontes.

JONAS, Hans (1979). O princípio responsabilidade – Ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro: PUC, 2006.

ROSNAY, JOËL DE (1997). O homem simbiótico – Perspectivas para o terceiro milênio. Petrópolis: Vozes, 1995.

SANTAELLA, Lucia (2003). Culturas e artes do pós-humano. São Paulo: Paulus, 2004.

 

 

*Alexandre Quaresma é paulistano, escritor, ambientalista e pesquisador de nanotecnologias e impactos sociais. Autor dos livros “Nanocaos e a Responsabilidade Global” e “Nanotecnologias: Zênite ou Nadir?”. Atualmente pesquisa sobre o fenômeno Pós-Humano e suas diversas facetas de interação dentro da sociedade e da cultura contemporâneas, tema central de sua nova publicação prevista para 2011. E-mail: a-quaresma@hotmail.com http://blog-do-escriba.blogspot.com/

 

Os indícios da perda | de Eduardo de Araújo Teixeira

Uma leitura de Nós que adoramos um documentário, de Ana Rüsche 1

“Pensei que viver seria estar no poema”
Ana Rüsche

I
Em Nós que adoramos um documentário, Ana Rüsche parece levar a termo esse desejo, posto aqui na epígrafe, de ser poema. Partindo de um título que anuncia um texto que se propõe documental, Ana Rüsche cerze uma intrincada autobiografia poética, menos lírica e mais prosaica, embaralhando formas, tencionando limites entre poesia narrativa e lírica discursiva. Memória, presente e futuro sci-fiction se entrelaçam na construção da paisagem interior de um ser em crise, posto que o livro orbita e se distende a partir da experiência de um trauma.
II

Se o romance Acordados, pelo protagonismo de uma linguagem poética que se parecia bastar página a página, fazia inexata a classificação de prosa, o mesmo cabe a Nós que adoramos um documentário. Ana Rüsche mais uma vez parece querer tensionar os limites dos gêneros, compondo uma autobiografia que não dispensa a ficção, mas que ao longo das 114 páginas se realiza de modo fragmentado em poemas que se conectam por continuidade de temas e até por versos reiterados.

Conectar parece o termo certo a uma obra que é também produto da fragmentação, da escrita rápida (quase descuidada) dos blogues; estendendo aqui seu intimismo, à natureza de diário em forma versificada. Consciente desta relação com a internet, a poeta faz do próprio projeto-livro uma extensão da relação autor/leitor, incluindo páginas em branco entre os poemas para que o leitor escreva-se igualmente, como quem preenche os comments das páginas eletrônicas. Propõe, inclusive, uma troca: livro rascunhado enviado pelos Correios em prazo certo com a promessa de devolução de um outro exemplar, possivelmente autografado pela autora.
III

Nós que adoramos um documentário é composto de poemas predominantemente curtos2 . Escritos em versos livres e brancos, a linguagem faz-se mais próxima da oralidade urbana típica de São Paulo; não lhe faltando insertsem inglês e espanhol, intertextualidade com poetas consagrados, frases clichês, e até pequenas transgressões da norma ortográfica oficial em abreviações saídas da escrita imediata da internet, como simplificações do pronome você para “vc”, da conjunção porque para “pq”. Mas o diferencial da escrita de Rüsche está na “quebra” de versos não orientada pela estrutura sintática, cadência da frase ou apoio em rimas. Um modo “falho” que parece querer traduz um tempo deficiente de lógica e sentido, propenso ao anacoluto:

a folha

sempre achei meio idiota isso do Anchieta
ter escrito o poema na areia e agora tem,
em qualquer azulejo, o nem-sei-qual-o-poema
dele
(…)
é mais uma gritaria tão grande que vc nem
consegue enxergar.
tenta. (p. 9)

Por “trair” a disposição lírica tradicional, a leitura se faz pedregosa, em ritmo da prosa; e não apenas pelas quebras propositais e/ou aleatórias dos versos, mas por permutas rápidas de um tom confessional para uma terceira pessoa que narra, comenta, infere, convoca o leitor para um posicionamento ativo em relação ao poema: “era vitória e não Ana/como uma filha da ilha e não com esse nome de/avó.//olhe, aquela ali, a menorzinha, uma tartaruga no horizonte, a mais escura, está vendo? (“testemunha n.2”, p.13)
IV

O livro de Rüsche divide-se em três cantos/capítulos: I.Município de Ubatuba, janeiro de 1983; II.Município de São Paulo, outubro de 2009 e III.Município de Ubatura, janeiro de 2037.

O primeiro, trata da memória da infância, por isso os versos aproximam-se da “dicção” infantil, e abundam anacolutos, saltos de assuntos, frases, temas, vácuos, lacunas. Busca-se, neste primeiro momento, investigar “ana” (assim em minúscula, infantil, apequenada), matéria da biografia/documento. Não por acaso, em toda a primeira parte o “ser” retratado se compõe de “testemunhos” que oscilam, e que mais “indefinem” quanto mais se propõem a aprofundar, esclarecer a interioridade de Ana, desta menina que se descobre frente ao mar, ante as brincadeiras violentas dos meninos, às disposições de uma ordem familiar ainda reinante.

“I.Município de Ubatuba” trata de uma espécie de descoberta do mundo que “Ana-poeta”, distante no tempo, faz da “Ana-que-foi”. Esta Ana, contudo, encontra-se fragmentada, recuperada na fala de “testemunhas numeradas” que figuram nos títulos dos poemas e, como projeções, reflexos de Ana em fases distintas, propõem-se a, “de fora”, entender a Ana de tempos pretéritos, cogitando assim uma Ana que será: “seria fernanda de arruda botelho e não ana erre/e voltaria para São Paulo toda semana.” (testemunha n.2); “essa nunca foi eu, ana. mas sempre quis./a menina dos olhos amendoados também não/tirava a camiseta.” (testemunha n.4); “aqui só chove. e os meninos ficam chutando/pedra/dando umas voadoras, sei lá o nome. Tô de férias, sabe?/mas só chove, o marido subiu pra trabalhar(…)”(testemunha n. 2 bis).

No aprofundar da Ana-menina e Ana-mulher, faz-se também uma investigação do feminino. A Ubatuba “das férias” evoca um período de inocência, ao mesmo tempo em que principiam as imagens do mar, dos peixes e de uma profusão de elementos aquáticos que remeterão ao feminino e ao ventre. Também a imagem da casa é metonímia de proteção/abrigo, núcleo familiar e, por fim, útero, centro do segundo capítulo.

“II.Município de São Paulo, outubro de 2009”, abre com um poema que evoca a questão de perda de centro geográfico: “mas a escola não fixou na nossa cabeça as capitais/do mundo(…)(“são esses dias de lua”, p.31)”, ponto de partida para focar de modo alusivo/cifrado o trauma do bebê perdido ainda no ventre: “mas não adianta, nada adianta/se a abóbada cede aos escombros de sangue/e há novamente uma tempestade/a te comer útero adentro/pq a vida é sempre quem guarda a melhor fome/a lamber os próprios planetas em luz(…)” (p.31). Nesta segunda parte, em todos os poemas proliferam imagens de águas violentas: chuvas, tempestades, torós, nuvens, torneiras, poças, águas negras, rios; e, por fim, o mar e figuras marinhas como baleias, arraias e peixes, bem como a figura da “mãe das águas”, Rainha, Iemanjá: “(…)meu cérebro então flutua como um bebê/alienígeno com desejos de casa, de conforto/parira como uma arraia-jamanta no azul profundo//e há novamente uma tempestade/a te comer o útero a dentro” (p.32)

A “filha” não-gerada conduz Ana ao mergulho na dor pela infância (cujos ecos estão no primeiro capítulo/canto) que não existirá: “(…)seria menina/tão bonita, muito tranqüila, ia chorar só um/pouquinho e dormiria, anjinha/quando te insere em todo esse engodo terrível até/a freira bondosa te perguntar/- e o teu bebê?” (p.52). Corpo, exames, marcas, sinais, pontuam os poemas de todo capitulo, onde predominam os périplos em hospitais para exames, diálogos desarticulados com freiras, médicos, visinhos; até, por fim, seu recolhimento na casa. Esta se torna, paradoxalmente, abrigo e assombro, pois refletirá o trauma do aborto sofrido por Ana-adulta que parece, por essa razão, perder-se igualmente de si.

Ao leitor, mais que “sentir” os poemas, há como uma convocação para decifrá-los, pôr sentido à estrutura do livro, em grande parte linear, mas contraditoriamente fragmentada, formando uma obra repleta de desvãos narrativos e confessionais, como no poema “veja, foi um delito involuntário”: “(…)/veja, nem sabia que eu possuía um prédio/ou ainda que existiam leis, quedas e vôos/abortados/agora sou o coração quebrado, ombro infiltrado/e furos na barriga – uma pirâmide/umbigo, ovário esquerdo, ovário direito – / três pontos que, com o quarto imaginário, logo/seriam os cardeais/uma mini-crucificação, prática e portátil/que levaria comigo sozinha/não mostraria para ninguém.(…)”(p. 45)

Nesta segunda parte, agudiza-se o pessimismo, a solidão, a aversão a um mundo de perdas. A dor interior atinge o centro físico, o corpo, o útero da protagonista: “(…)um útero, cemitério de bichos de pelúcia/desdentados,/cadaverezinhos dos que morreram/erguendo fundações(…)(“culinária doméstica”, p.66). O que faria de Ana uma mulher plena, lança-a num mundo infantil, a uma vida que almeja ser de “história em quadrinhos” como negação do trágico. Ela termina, assim, por exceder-se numa dor que é escamoteada pela suplência afetiva: “meu cãozinho não sai agora de meus pés/ele sabe toda a história, e assim nem passear longe vai/(…)nunca se afasta nada. e late bem bravo aos maus/sonhos que se avizinham”(“depois”, p.51).

Neste pesadelo que mergulha, homens ou estão ausentes ou são igualmente projeções fantasmagóricas. As impressões afetivas formam vãos, lacunas, labirintos como páginas a se perder/conhecer/completar, como em “os papéis”: “e assim ficamos/como tudo, como sempre/esse ever unfinished business//como tudo e como sempre/with so much love/esse isso tão difícil, a kind of rush/um compromisso com algo mais terrível do que o/amor.”(p.63)
Por fim, quando surgem os poemas de amor, eles evocam desilusão (“os papéis”, “anotações”), ou se fazem por auto-ironia de um tempo festivo, como em “(livro de poema sem poema de amor não é livro).”

Em “III.Município de Ubatura, janeiro de 2037”, predominam imagens de dissolução surrealista. O mundo violento, doente, de prédios vigilantes, hospitais, ruínas, caos urbano, morte de motoboys, crimes sem testemunhas e omissões (de afeto/de companheirismo), retornam redimensionados num futuro apocalíptico, abismal. Marca o retorno a uma “Ubatuba” agora sem espaço para prazeres e descobertas infantis.

O poema que se propunha a ser documentário/autobiografia, ao se situar no ano de 2037 ganha o sentido de ficção científica, descaracterizando o relato real, por isso pondo em descrença o que se “narrou”. Apesar de enfatizar a atmosfera opressiva de um futuro ácido, uma leitura detida permite identificar neste capítulo a fusão entre a primeira e a segunda parte do livro; como se o futuro fosse uma projeção fantasmagórica entre infância e trauma do aborto, a ecoar as mesmas imagens mar/corpo numa reiteração de aspectos angustiantes da existência: “Neste quando sem mundo nenhum/uma mulher me cortou o ventre de pequena//e por isso ela cortou é o ventre do peixe/queria ali bisbilhotar meus futuros/na barrigada da peixinha pulsando/da vida que já não foi(…)”(“eu própria sou a vida no outro planeta”, II, p.83)

As “coordenadas” (geográficas/cosmográficas) desenhadas no ventre (em “us abdome total”), a imposição de repouso/descanso na casa, e imagens/projeções que se seguem, terão por símile a cidade corrompida pela violência e a imposição do silêncio. O vazio do ventre refletirá a inexistência do mundo, de futuro e, igualmente, de abrigo seguro: “existe sim uma cidade que está sempre escura/(…)/mas às vezes a ouço ofegante/entrando pelas minhas janelas do sono/degolando criancinhas/(…)/não vi, não ouvi é regra de qualquer casa no/terceiro mundo/por isso eu digo que não a conheço/nunca estive lá/esqueci que existia isso logo hoje, eu te juro, peço/desculpa” (“dias com luz. pouca”, IV, p. 59)
V

Em Nós que adoramos um documentário, Ana Rüsche abusa de recursos já “desbravados” no plano da experimentação poética: verso livre, anacolutos, colagens, intertextualidade, metalinguagem, coloquialismo, uso da espacialidade da página, predileção pelo uso de minúsculas, ausência de pontuação e outras transgressões da norma oficial. Sua poesia destaca-se, contudo, por se posicionar fora da tradição de uma lírica portuguesa passional e discursiva (da qual somos ainda herdeiros). Rüsche surpreende ao converter tom confessional em fluxo de consciência, e dele deslizar a uma livre-associação que soa como empréstimo da prosa labiríntica de um James Joyce. Some-se este procedimento a uma estratégia de colagem/montagem de elementos eruditos/pastiches/clichês (à T.S.Elliot) expresso num verso aparente simples, mas repleto de subentendidos. Entendendo esses procedimentos, é possível reconhecer o que de revigorante há em sua poesia:

Whiteout

(sinto que houve
uma chuva de estrelas cadentes na pele
mas é tanta cidade iluminada que não se vê mais
as constelações
que desenho para meu amor, minhas rotas de
escuros)
(…)
De ouvidos cerrados de gelo essa verdade entra
No degelo da cera dos teus ouvidos
Agora é essa tua mão
Direita que desliza cirurgicamente fria
E move algo nessa tela
Onde esculpe e escalpela novamente
Minhas brancas estalactites cravejadas de dores
Sem me tocar
(…)

Como em “esculpe/escalpela”, “cerrado de gelo/degelo da cera”, na maior parte dos poemas, a sonoridade das palavras parece prevalecer sobre um sentido facilmente apreensível, impulsionando outras associações para traduzir uma desordem interior que se faz linguagem, cuja desconexão materializa a perda de certezas do mundo. Amor, solidão, perda, desilusão amorosa, o eu vs. mundo e natureza/mãe/inimiga, tudo se amalgama no questionamento do direito a ser, a existir. Assim o aborto, como a náusea sartreana, gera o turbilhão que lança Ana a dor de um mundo “documental”, com seu realismo cruel, martírio de crenças: “(…) ou ainda que existiriam leis, quedas e vôos/abortados/agora sou o coração quebrado, ombro infiltrado/e furos na barriga – uma pirâmide/umbigo, ovário esquerdo, ovário direito – três pontos que, com o quarto imaginário, logo seriam cardeais/uma minicrucificação, prática e portátil(…)”(“veja, foi um delito involuntário”, p.45)

Quando as tentativas de recuperação da infância (fomentadas pela gravidez/aborto) insurgem, sobrepõem-se planos em que ações pretéritas e futuras fundem-se em forma de pesadelo. No plano da linguagem, o efeito atingido muitas vezes é o de nonsense (entre o dadaísmo e o surrealismo), com “imagens de derruição” materializando a intraduzível dor na forma de cenários, “paisagens interiores” de um eu dilacerado. Por isso (como dito anteriormente), palavras e versos reverberam memórias, desdobram-se e se reconfiguram de um a outro poema, para completar, para dar sentido ao trauma cifrado: (“eu própria sou a vida no outro planeta”): “Ontem, quando o mundo ainda não existiu/eu era triste, as câmaras do meu coração tão/abandonado/naves de todas as catedrais de santos impassíveis/sentei e chorei/onde nem mesmo havia lugar.(…) e “agora caem anjos em forma de meninos sobre a terra./as formigas desse mundo caem nas correntes dos/meus rizomazinhos de tristeza/do lixo à pia, passando pelo fogareiro(…)”(VIII, p.93).

Resguardando-se das vozes indiscriminadas, dos discursos vazios (quando “dizer o trauma” torna-se interdito), Ana faz-se incomunicável, termina por se isolar e estender seu desconforto com o mundo para a cidade opressora: “(…) tenho bem medo dessa noite, tranco-me em/algum lugar, é a violência/medo desses dias em que todos os corações já são/escuros//aninho-me no meu cobertor que já não dança,(…)”(“dias de pouca luz”, p.54). Realiza a ruptura com o mundo, negando-o; e termina por fim a ensimesmar-se: “seria eu Jéssica ou Ana ou uma outra Márcia,/tantas,/as ideias todas e nenhuma, como nos filmes de/bombardeios/as conjugações pertencem a um eu, um outro.//E eu ali, sozinhas espremidas na faixa de areia/entre dúvidas.(…)(“A Quarta Pessoa”, p.111)

O movimento final é ver a si como um outro ser, uma tentativa de decifração de alguém que se perde de si, já demarcado no título “mesmas duas” e na troca súbita de possessivos de “meus” para “seus”: “pra variar, ela rondava e rondava a sala com seus/vermes dançantes na cabeça/(…) comia as próprias lágrimas, do seu último dia do/mundo/tão altos os traços nos meus céus de deserto (…)”(p.69). O uso de focos distintos está na essência do documentário, formato que ao multifacetar (depoimentos e perspectivas) busca aproximar-se do “real”. Na autobiografia, a memória e o recorte do real são arbitrários, mudam o fato, até num sentido de autopreservação do biografado. Usando drummondianamente a auto-ironia, a poeta dialoga consigo mesma, questionando a entrega sentimental de seu eu-feminino em oposição a objetividade embrutecida dos homens:

anotação
.
esse amor demais vai acabar te matando, Ana
escuta, presta atenção
vê se espreme esse coraçãozinho
pra ver se surgem um par de bolas embaixo
vai ser homem na vida
e para com isso, essa coisa toda,
essa bobageira.

tem dias que a gente só quer
que nos tirem pra dançar. (p. 70)

VI

Essa ironia sobre o “amor” está no título de um dos mais belos poemas do conjunto “(livro de poema sem poema de amor não é livro)”, narrativa lírica de encontro/despedida em linguagem coloquial e urbana com saltos temporais e discurso-direto. O poema rearticula a relação casa/abrigo vs. mundo exterior/opressão, elemento predominante em Nós que adoramos um documentário, já que nele, o espaço exterior projeta-se no corpo, metonímia/metáfora da sensação de perda de centro (autonomia e identidade). Mesmo a presença da natureza (tempestade) surge como prenúncio criativo de um fim (a árvore derrubada/os hematomas flores do eu-lírico) criativamente traduzida no corpo “solar” do ser amado, que a abandonará no fim do poema ao adentrar sozinha o “escuro” (no cinema). A dinâmica com que “narra” o encontro/fuga, presença/ausência do amado (ser reduzido a mero “tu” e “você), mostra a habilidade com que Ana Rüsche traduz sensações e sentimentos complexos em imagens prosaicas, quase “táteis”, sempre com uma graça singular que amalgama erotismo, afeto e melancolia:

(livro de poema sem poema de amor não é livro)

É tarde, dia claro, e num repelão há uma
tempestade lá fora
‘Que barulheira’ e me beijas
Te beijo tanto, ‘eu gosto de tempestades`

Amendoeiras japonesas alastram-se pela cama
em pink, em preto
É calor e chove-se tanto, nos lençóis, pelas tuas
costas ensolaradas
Dormimos mais meia hora, agora já queria mais
um dia, plis, mais uma noite, por favor.
Percebi que a chuva desbotou meu cabelo e todos
os meus hematomas colecionados na semana
– com a tinta escorrida, logo brotaram minúsculas
flores roxinhas no flanco dos travesseiros,
essas pequenas tatuagens do acaso
(…)
Na rua, foi ao chão a árvore de 6 metros de altura
e 20 anos de comprimento
orvalhando de folhas minúsculas carros, valas, a
gente velha fofoqueira, os vizinhos torcedores
domingo é um mesmo dia para tombar e já se
remover – caminhões, a prefeitura
Telefono: Você viu a árvore que caiu?
(…)
Seguro medrosa a mão invisível da saudade. Teu
cheiro, meus cabelos, suspiro
Adentro ao escuro. (p. 74)

VII

Dona de uma linguagem que pede esforço maior de classificação, Ana Rüsche parece pelejar em favor da Poesia. Do trânsito que faz entre experimentações (de quebra abrupta do nexo lógico da frase à uniformidade verbo-temporal), passando por um fragmentar/colar que nos remete a T.S.Eliot e James Joyce, sua escrita parece não querer definir-se, por isso vai à fonte da prosa de Guimarães Rosa, de Clarice Lispector, e retorna sem atrito, à poesia substantiva de Drummond e Ana Cristina César.

O que Ana Rüsche traz de muito próprio, é a forma como funde intimismo e nonsense. Ainda que aparente na escrita uma “frouxidão” blogueira (escrita automática? Dadá?), que pode passar por desleixo na forma, é habilidosa na expressão de um delicado olhar feminino, um tanto desiludido e melancólico. Sem itinerário fácil, linear, seu livro avança e recua para um tempo de afetos para, por fim, mergulhar na falta. Porque na poesia de Ana Rüsche, a perda surge como estratégia fundamental de autoconhecimento.

Nós que adoramos um documentário se constitui um desafio mesmo ao leitor contemporâneo familiarizado com linguagens múltiplas, fragmentação, fusão de gêneros e intertextualidade. Se boa parte dos poemas pode figurar facilmente fora do conjunto da obra, a leitura do livro como narrativa fechada parece redimensionar seu campo de sentido e ampliar o prazer estético da leitura.

Ana Rüsche, apesar do título irônico – Nós que adoramos um documentário – que denuncia o interesse contemporâneo no factual (talvez da vida alheia) e o atual desprestígio da interioridade/poesia, presenteia seus leitores com uma autobiografia que são indícios de uma “possível experiência pessoal”. Em tempos em que os autores “ficcionalizam-se” para além dos blogues, constituindo-se extensões de seus próprios escritos em mácaras-egos (pensemos em Clarah Averbuck, em Santiago Nazarian, por exemplo), Ana Rüsche escamoteia-se. Não nos dá a facilidade de penetrar sua biografia, composta de um eu pesaroso que se multiplica, ou ecoa suas angústias com vaguidões, projeções sobre projeções de passado, presente e futuro. Não trai a proposta inicial de documentar/biografar-se, antes se expõe/resguarda por indefinir, seja nos planos do real, da ficção, da memória, da reinvenção do vivido.

Fosse um filme, Nós que adoramos um documentário seria uma ficção futurista em primeira pessoa, cenas captadas em super-8, atemporais, com um mar ao fundo, e a sombra aos pés de um eu que enquadra o seu olhar, mas não se mostra.

 

REFERÊNCIAS

1RÜSCHE, Ana. Nós que adoramos um documentário. Ed. Ourivesaria da Palavra. São Paulo, 2010.

2À exceção de “são esses dias de lua”, “dias com luz. pouca”, “eu própria sou a vida no outro planeta” de maior extensão, apesar de partidos em seqüências menores, numeradas, apresentando contigüidade de tema.

 

*Eduardo de Araújo Teixeira

Doutor em Letras/USP

 

Premissas Culturais da Criação na Pós Modernidade | de Michel Maffesoli* – traduçao de Rosza Vel Zoladz**

Dionísio redivivo

O atual só faz sentido, pelo cotidiano, enquanto provisório. É essa impermanência que faz que não se apreenda o que acontece senão tomado a partir do que lhe é fundador. Eis porque todo pensamento autêntico retoma uma especificidade da existência humana: a gente semeia o que vai ser colhido somente mais tarde.

É assim que, no fim dos anos 70, eu anunciava o retorno de Dionísio, deus da orgia, sublinhando com isso o papel, cada vez mais importante, que a paixão (orgé) iria desempenhar nas nossas sociedades.

Do mesmo modo, em referência a um outro sentido da palavra (orgos: iniciado), eu indicava o lugar primordial que a iniciação iria tomar no neotribalismo contemporâneo. O que isso queria dizer, senão que ao encontro do que era convencionado e permanentemente dito, se situava aí a energia na vida social? Mas é preciso reconhecer, mesmo se isso não deixe de irritar numerosos observadores, que esta energia se exprime ao mesmo tempo pela proximidade, no cotidiano de uma busca de um hedonismo bem convincente. Em todo caso, fora das instituições racionais, terreno predileto da sociologia moderna.

Frequentemente se ouve também falar do consumo exacerbado. Ainda um destes exageros que se empregam para mascarar, na verdade, o fato de que nós passamos para uma outra coisa.

Por menos que se esteja cego pelo conformismo do ambiente, é evidente que a avidez dos objetos, a obsolescência rápida dos amores, o frenesi das novidades, tudo isso nos deveria incitar a dar outros nomes para o vertiginoso acúmulo de incertezas característico das maneiras de ser pós-modernos. Georges Bataille, com a sua noção de gasto, profeticamente esboçou seus contornos. De nossos dias, o consumo, o fato de fazer arder a vida em todos os propósitos, tornou-se uma realidade cotidiana que se configura como antípoda da mitologia do progresso peculiar à modernidade.
Isto é bem constatado pela invenção de um mito, o do Progresso, com que Auguste Comte, bem como Saint-Simon queriam lutar contra o obscurantismo peculiar, segundo eles, aos diversos politeísmos e depois aos monoteísmos semânticos.

O que faz lembrar em Saint-Simon o que ele nomeia de “religião industrial”. Esta aí – se é bastante consciente (?) devia comportar o todo de um produtivismo moderno, sua grande ideologia do crescimento. E a sociedade da produção tal qual ela se pôs em toda a extensão do século XIX e no começo do século XX, não podia senão acabar nessa sociedade de consumo. Esse tema, tão bem analisado por Jean Baudrillard, via precisamente nele, em um de seus livros, menos conhecidos, mas particularmente explorado, O espelho da produção.

Toda mitologia precisa de termos que sejam verdadeiros oscilógrafos, que lhe servem de sinalizadores de trajeto. Esses termos constituem uma espécie de caixa de ressonância, na qual cada um pode, facilmente, se reconhecer. Isso se dá até mesmo inconscientemente. A trilogia Progresso, Produção, Consumo tem exatamente esta função. São palavras-chave que repercutem as preocupações populares e fundamentos da mitologia moderna. Mas elas se tornaram simples feitiços. A saber, os termos que se continuam repetindo continuadamente, mesmo a partir de diversos discursos oficiais. Que repetem religiosamente essa cantilena em todas as ocasiões, chegam a fazer parte da opinião comum, da retórica rotineira. Mas às quais, embora por essa mesma razão, não se dá a elas mais grande atenção. Sabe-se, desde tempos longevos: litania, liturgia, letargia.

Numerosos, com efeito, são os índices oficiais, a contrapelo dos discursos ou análises legitimados, que lhes servem de racionalizações.

É frequente que um valor que se acaba conheça in fine um retorno fulgurante. E não é preciso lembrar o legendário canto do cisne pelo qual esse último, morrendo, transforma seu grito rouco e lânguido, mas bem inútil, em melodia. É bem assim que se pode compreender as diversas pequenas canções sobre o valor trabalho e outros cantos sobre a taxa de crescimento ou do famoso poder de compra! Elas são tão mais insistentes quanto, mais e mais, ignoradas. Como se, na França, em profundidade, a vida se resumisse aos aborrecimentos de obter um Plano de economias para a compra da moradia! De fato, a alardeada Crise Econômica (PEC) não tem outras fontes. Ela é, antes de tudo, civilizacional (culturas que se chocam). Ela é o mais próximo de sua etimologia (krisis) um julgamento de algo que se está acabando. Julgamento que os valores dionisíacos fulminam contra a prevalência prometeica do todo econômico!

Há aí como que um odor de incêndio no ar do tempo. E, de diversas maneiras, trata-se de queimar sua vida, por todos os objetivos ou, o que retorna ao mesmo sentido, de não perder a própria vida que se tem a ganhar. Eis o que uma mitificação do consumo tende ao uso opaco, do binômio produção-consumo.

O paroxismo se mostra nessas dezenas de milhares de carros que ardem em chamas, cada ano, no circuito das grandes cidades francesas. É preciso ousar dizer que se trata de um símbolo elucidativo? Em todo caso, instrutivo, quando se sabe como o carro era o signo absoluto do que se considerava como sociedade de consumo. Objeto caro a adquirir. Ele é a resultante de toda vida de trabalho, e o que permite, igualmente, se dirigir a esse trabalho. Ele é, ao mesmo tempo, aquilo com o que se pode escapar realmente ou fantasiosamente, da coerção do labor. Ele significa a possibilidade do lazer e do tempo não coercitivo. Enfim, este “objeto-signo” é a soma de um investimento libidinal sobre o qual os psicanalistas, longamente, teceram comentários.

E é esse objeto que arde em chamas!

Notemos, no entanto, que não é o carro da pessoa de posses – esse está protegido na sua garagem – que se incendeia. Não é esse que se encontra na rua. Ao pé do imóvel da cidade, ao qual as mídias denominam “os quarteirões”. Ele pode pertencer a um conhecido ou a um parente.

O fato de consumir um tal objeto não é um ato político, como é frequente o analisar. Trata-se mais de uma postura lúdica. Uma estrutura antropológica ocupando a destruição pelo coração mesmo da construção. Assim, o adágio romano pars destruem, pars construens, ou seja, a construção pela destruição, de alguma forma. E não é proibido pensar que há nesses incêndios curiosas reminiscências das festividades estudantis: Berkeley nos Estados Unidos, em 1964, ou rue Gay-Lussac, em Paris, no ao de 1968! Daí essa opinião admitida onde um pitainismo inconsciente se alia a uma estupidez bem pensada para clamar que é preciso tudo ao mesmo tempo: “trabalhar mais e esquecer 68”. Os múltiplos cânticos em torno de trabalho, família, pátria sendo agora moeda corrente na intelligentsia francesa.

No Le combat avec le démon, Stefan Zweig fala, a propósito de Nietszche, ou de Hölderlin, de um demonismo, animando suas obras e suas vidas. Seria um tanto abusivo dizer que, em certas épocas, um tal demonismo está atuante na sociedade em seu conjunto? Que a sombra de Dionísio se estende sobre as megalópoles pós-modernas?

O que se faz presente em paroxismo na criação literária se exprime em menor intensidade pelo conjunto dos objetos de consumo na vida quotidiana. Com efeito, eles não são mais nem menos construídos, nem mesmo encarados para conservá-la. Eles se inscrevem em tudo o que é concebido sob a égide da precariedade. Objetos, situações, relações marcadas pela fonte de obsolescência programada.

Isso se vive, igualmente, no domínio dos afetos. Amor não rima mais com duração eterna. Usura, fadiga, hábitos, tudo isso faz que, em geral, as relações amicais ou amorosas não se inscrevam mais na longa duração. E se sabe o que é da instituição conjugal que procura empalidecer sua fragilidade propondo o casamento entre homossexuais e outras orientações sexuais existentes. Num sentido figurado, é preciso dar trabalho aos diversos párocos e outros beneficiários de todo tipo.

As teorias também não são mais o que elas eram. Eis que os conceitos fazem água por todos os lados. Os dogmas não constituem mais receitas. O universalismo não convence mais do que alguns fanáticos da Razão, da Ciência, do Progresso, ou outras “capelas” do mesmo gabarito.

O ar do tempo é constituído de verdades parciais, momentâneas ou mesmo aproximativas. Mas é um tal relativismo, enfatizando o acento sobre o instante, que favorece a criação. Certo é que a energia individual ou coletiva não é mais mobilizada sobre a longa duração. Focalizada no instante, ela é vivida com muito mais intensidade.

É isso que exprime a sociedade de consumo, i.e., uma outra metodologia não repousando mais sobre a “Religião Industrial” de uma economia de si e do mundo, mas sobre o gasto, a perda. Uma inconsciente inconsciência que sabe, desde o tempo da sabedoria imemorial, que, por vezes, quem perde ganha. Após tudo, por que não fazer a aposta que possa aí haver, no Consumo, esse luxo noturno da imaginação, as premissas de uma intensa e fecunda criação? Pois de uma verdade advinda da observação da vida social Goethe nos lembrava: “Somente o que é fecundo é verdadeiro”.

Fazer da sua vida uma obra de arte! Colocar todas as coisas e todos os seres humanos na praça pública se inscreve bem nessa estetização da existência, onde o que importa, antes de tudo, é provar paixões e emoções comuns. Desse ponto de vista, a estética serve de cimento ético. Então, o que ela foi nas sociedades tradicionais, um elemento da vida de todos os dias, a arte, progressivamente, foi mumificada, posta para fora, separada do cotidiano. A criação, a criatividade, o jogo, a imaginação contaminam novamente a existência do homem sem qualidade. Nietzsche morreu louco de ter tido essa intuição, num momento em que isso não se colocava. E eis que do intelectual esteta ao esportivo atento ao seu corpo, do nômade “rurbano” ao ecologista zeloso de seus legumes sem agrotóxicos, se faz atenção à criatividade vivida no dia-a-dia. A arte se capilariza em tudo que era, até aqui, considerado como anódino.

Cada época tem suas imagens e seus próprios mitos. Mas eles não fazem nada além de retomar e atualizar as potencialidades arcaicas que se acreditava ultrapassadas e que, de repente, reencontram uma juventude vigorosa.

Mas isso é bem difícil de admitir, tanto que é enraizada a ideia de um Progresso da humanidade, de um desenvolvimento por um tipo de História, tendo como objetivo longínquo a assegurar.

A ideologia semita, por meio de seus matizes judaicos, cristãos, muçulmanos, perdeu o seu acento sobre o desenvolvimento histórico, cujo linearismo é a marca essencial.

Todo outro é o pensamento grego ou aquele das diversas sabedorias orientais repousando sobre o retorno cíclico das coisas. A partir daí o acento era colocado sobre as eras míticas, privilegiando a experiência vivida.

Desse ponto de vista, se pode lembrar de uma passagem muito instrutiva da “Cité de Dieu” (XII, 14,1), na qual Santo Agostinho se mostra injuriado com firmeza diante dos “sábios desse mundo que acreditavam ter que introduzir uma marcha circular do tempo para renovar a natureza”. O mito, com efeito, remete ao renascimento periódico de todas as coisas. Círculo ou espiral, pois as coisas não retornam exatamente ao mesmo nível. É assim que a sociedade do trabalho está em vias de ser substituída pela sociedade da criação.

Que nós vivemos uma era de transtornos é, agora, coisa admitida. Seja de um modo larvado, seja explosivo, o afrontamento dos grandes valores que presidiram a solidez da vida social é fácil de averiguar. Mas é com muitas reticências que vão ver aceitar as suas consequências psicológicas e sociais. Tanto é verdadeiro que a (re)novação de certos mitos dá calafrios aos clérigos (aos políticos, sábios, jornalistas), tendo por função gerir os mitos dos quais eles não querem, em hipótese alguma, ver a saturação.

Nos períodos diluvianos, nada nem ninguém escapa ao choque das diversas vagas da maré cuja atualidade não é marcada pela avareza. Assim, isso faz que apareça o pedestal fundador da modernidade: o trabalho.

Para retomar uma expressão conhecida do filósofo Emannuel Kant, eis bem o imperativo categórico maior. Este presidindo a realização de si e a do mundo. Por aí mesmo se elabora a mitologia do labor, inaugurando a prevalência do trabalho, do produtivismo e da economia que lhe é a consequência. Mas o fato mesmo que esse valor seja recente não incita a pensar que ela seja eterna. De fato, numerosos são os índices que, empiricamente, sublinham sua saturação. Isso obriga a observar que podem existir outras maneiras de agir sobre o ambiente social e natural.

Mas, como eu já indiquei, cada coisa se acabando lança seu canto do cisne: o último antes de morrer. E isso não é colocado entre parênteses, é divertido enfatizar como a expressão Valor trabalho constitui o pedestal incontestável das diversas coisas sociopolíticas sempre repetidas. Valor trabalho, do que nos lembramos, era justamente o elemento chave da suma teológica de Karl Marx: O Capital!

Revanche do marxismo? Em todo caso segundo uma intelligentsia, não se deva mais menosprezar, é pela revalorização do trabalho que se vai revolucionar, conservar, mudar, reformar a sociedade. E se o problema não estava mais aí? Se essa encantação não era, no fim das contas, um verão indiano de uma modernidade em declínio?

Com efeito, de diversas maneiras, em particular para essas gerações de jovens que já são a sociedade de amanhã, se sente bem que o essencial da existência não consiste em perder sua vida para ganhá-la. O imperativo tu deves deixa progressivamente o lugar ao optativo é bem preciso. Certo, é preciso trabalhar bem. Mas esse não é apenas um elemento entre outros. Um simples aspecto, forçosamente sem ser o mais importante, dos investimentos pessoais.

A mitologia do bem-estar, essa do hedonismo latente, faz que em tudo, ao mesmo tempo, se pode ser um bom administrador e ter múltiplos centros de interesse, tendo cada um uma importância própria. Hobbies diversos, práticas amadorísticas de diferentes artes, trabalho temporário, turn over de uma repartição, atenção dedicada à estética dos escritórios, heliotropismo revalorizando a importância das regiões do Sul da França, chamando atenção para seus valores, tudo é bom para relativizar o aspecto coercitivo do trabalho.

A partir daí, as condições de vida, no tempo coercitivo do trabalho, não são mais negligenciadas. Em resumo, o qualitativo está na ordem do dia. Todas essas práticas cotidianas, pouco teorizadas, mas intensamente vividas, nos lembram que são das civilizações e não das menos importantes onde é a criação que tende a prevalecer.

Prometeu cede o lugar a Dionísio.

Nessa perspectiva, o que é a criação senão a capacidade de mobilizar todos esses parâmetros humanos que são o lúdico, o onírico, o imaginário coletivo? A Renascença foi um desses momentos onde banqueiros, empreendedores, artistas e aventureiros de todas as ordens pensavam a vida social como um todo. E agindo com essas perspectivas. É qualquer coisa desta ordem que se exprime nos mitos “holísticos” da pós-modernidade nascente.

Metrossexuais e todo o camafeu das classes médias, a emergência de novas formas de vidas, adeptos do crescimento e do pacto ecológico, se empenham, de diversas maneiras, a colocar em segundo plano a prevalência do trabalho. Globalização colaborando, o peculiar da mitologia pós-moderna é colocar o acento sobre a sinergia existente entre o prazer arcaico do bem-estar e o desenvolvimento tecnológico. E quando se sabe que mais da metade do trânsito nas redes da Internet é dada aos encontros de amigos, eróticos, filosóficos ou religiosos, se vê bem em que consiste essa relativização do valor trabalho. É essa relativização que sublinha o retorno à criatividade na vida social.

O campo aberto por uma tal transmutação dos valores é imenso. E falta explorá-lo. Em uma palavra, é isso que vai ser encontrado em todos os mitos, enfatizando o vivido, a experiência, o desabafo etc. Isto porque não há real competência senão quando se apresenta um vasto apetite. Em resumo, não se mobiliza a energia individual e coletiva, fora do caso de estar sintonizada com o inconsciente da época. De acordo com um futuro próximo, aqueles que sabem se por em dia com os valores presentes no imaginário do momento, por um racionalismo estreito são relegados à pré-história. O ego cogito, fundamento da modernidade, está progressivamente deixando lugar a um est ego affectus. Afetados pelos outros, pelo sagrado, pela natureza, pelos humores (pessoais, coletivos). É isso que convém pensar: a mutação de uma existência dominada pelo materialismo moderno, quer dizer, um pouco dotado, para uma outra maneira de estar junto, onde o imaterial reencontra força e vigor.
São esses valores imateriais que estão em pleno reviver na vida política, social e econômica. E não são carregadas de neutralidade que as gerações jovens serão as protagonistas desse olhar novo sobre a natureza e a sociedade. É por isso mesmo que, na sua atitude um pouco desenvolta, os “criativos” multiformes são homens de seu tempo, reafirmando a eterna juventude do mundo. É isso mesmo que se cristaliza na figura emblemática de Dionísio, essa de Puer aeternus!

* Membro do Institut Universitaire de France. mm@ceaq-sorbonne.org

** Professora colaboradora do PPGAV da EBA/UFRJ (Programa de Pós Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes/Universidade Federal do Rio de Janeiro). Pesquisadora convidada do PACC-FCC UFRJ (Programa Avançado de Cultura Contemporânea do Fórum de Ciência e Cultura da Universidade Federal do Rio de Janeiro).

 

Sobre a ideia de liberdade, a propósito da autorreferência como enciclopédia livre, pela Wikipedia, na rede mundial de computadores | de Alice Fátima Martins

O que significa a condição de liberdade? Quando se qualifica alguma pessoa, comunidade, projeto ou ação como livre, que qualidades estão sendo evocadas?

O verbete livre, no dicionário Houaiss (organizado pelo sapientíssimo Prof. Antonio Houaiss, também responsável pela edição das Enciclopédias Delta-Larousse e Mirador Internacional), traz uma relação de acepções, dentre as quais destaco as seguintes:

1. Que não está sob o jugo de outrem
2. Que goza de independência política
3. Isento de restrições, controle ou limitações
4. Que não sofre a influência de grupos de interesse
Faço, aqui, a escolha de não avançar rumo à seara filosófica do significado de liberdade, tampouco os terrenos múltiplos das abordagens sociológicas possíveis, restringindo-me, assim, às acepções listadas para o verbete, com o intuito de compartilhar algumas indagações, inevitáveis, a partir do episódio ocorrido junto à Wikipedia, no mês de julho último, que passo a relatar.

O episódio da censura na Wikipedia

Em atendimento ao solicitado pelo Programa de Pós-Doutorado do PACC, tendo publicado um artigo em revista online, tendo apresentado o relatório final de pesquisa no dia 24 de junho último, tomei as providências para fazer a inserção de verbete no portal da Wikipedia. Observando as instruções para tal empreitada – o que envolve muitos passos, advertências, recomendações, e ferramentas –, fiz o cadastro, gerei senha, e preparei o texto para publicar. Tinha decidido disponibilizar algumas informações sobre o Sr. José Luis Zagati, um dos sujeitos da minha pesquisa. Seguindo as recomendações, levei a cabo uma pesquisa no próprio portal, com vistas a evitar repetição de informação ou tema do verbete. Constatei que não havia nada referente ao Sr. José Luiz Zagati ou ao seu trabalho na enciclopédia. Então passei a redigir o texto, que resultou de uma breve compilação de minha própria produção, o que incluiu alguns artigos já publicados (dentre os quais, o artigo na nossa Revista Z, e a página de abertura do III Seminário Nacional de Pesquisa em Cultura Visual – FAV/UFG), e trechos do próprio relatório final. Cumpridas todas as etapas, operadas todas as ferramentas do portal, o texto foi publicado. Enviei o link para a coordenadora do PACC, a Profa Heloísa Buarque de Hollanda, nossa querida Helô, e fiquei contente com a informação de que eu teria inaugurado o atendimento a essa solicitação do Programa, bem como por ter contribuído para a consolidação e divulgação do trabalho do Sr. Zagati.

Passados dois dias, recebi a notificação, via e-mail, de que meu verbete houvera sido retirado da Wikipedia. Um dos membros que integram o grupo de editores da enciclopédia, identificada como Béria Lima, localizou na internet trechos de meus textos que haviam servido de base para o verbete, e julgou que isso infringia uma das regras, segundo a qual não se pode copiar ou repetir texto já divulgado. Sua decisão não levava em conta o fato de que o texto, ou textos em questão eram de minha própria autoria. Embora a situação tenha me provocado alguma indignação, acatei o parecer, e retomei o projeto. Para tanto, elaborei novo texto para o verbete, tomando todos os cuidados no sentido de dar-lhe um tom estritamente enciclopédico, ao estilo dos demais verbetes da própria Wikipedia. Feita a inserção, mas já sem qualquer convicção de que teria minha contribuição aceita, fiquei na expectativa dos desdobramentos.

Desta vez sequer fui notificada: no dia seguinte, buscando pelo verbete, encontrei na própria enciclopédia a observação de que o mesmo teria sido censurado, por ser considerado impróprio por outro editor, no caso, o Sr. Hermógenes Teixeira Pinto Filho.

A essas alturas, muito chateada, quis compreender um pouco mais as dinâmicas dessa instituição digital Wikipedia, autorreferida como a enciclopédia livre, de onde tive excluídas minhas tentativas de inserção de informação.

Além da minha própria experiência, eu já ouvira relatos outros que davam conta do circuito fechado que seus editores vinham configurando, dentro do qual exerciam o pequeno poder de decidir as informações pertinentes ou não de serem veiculadas, de acordo com critérios próprios, nem sempre muito bem esclarecidos, nem sempre objetivos, tampouco efetivamente abertos à multiplicidade de enfoques, naturezas de informações, e diversidade de pontos de vista que caracterizam a cultura contemporânea.

Levantando mais informações sobre o cenário, descobri alguns dados interessantes, que em geral ficam fora do circuito de acesso ao grande público, usuários ou não do portal. Vale a pena trazer alguns a este relato:

1. A Wikipedia é o 4º site mais visitado atualmente. A enorme demanda gera ameaças para o projeto, que resiste em contratar publicidade para bancar provedores e toda a infraestrutura técnica que garanta não só manter disponíveis todas as informações, como renová-las e atender ao grande número de acessos que se amplia em progressão geométrica.

2. Nesse contexto, manter algum controle no conteúdo disponibilizado representa um desafio a mais. E equívocos podem ser cometidos nessa direção.

3. 95% dos editores brasileiros da Wikipedia são homens. Assim, não posso deixar de considerar que me coube a honra de ter meu texto excluído, na primeira tentativa de inserção do verbete, por uma das poucas representantes femininas do fechado círculo de editores: uma mulher em pleno exercício de conhecimento e poder num território hegemonicamente masculino.

4. A versão brasileira da enciclopédia, com alguma frequência tem sido referência para as versões em outras línguas, num sentido negativo. Em outras palavras, quando isso ocorre, é como exemplo a não ser seguido, porquanto os padrões dos verbetes sejam considerados chatos, redundantes muitas vezes, cujas prioridades restringem-se a determinadas áreas temáticas em detrimento de outras. Ou seja: pecam pela falta de isenção. Por exemplo: facilmente pode ser encontrado o histórico de todos os gols de cada jogador de alguns times de futebol brasileiros, enquanto muitas informações referentes à cultura popular são consideradas desimportantes, menores, ou impróprias para serem inseridas.

5. Embora o número de consulta venha aumentando consideravelmente, na contrapartida tem-se observado uma diminuição das iniciativas de colaboração pelos usuários em geral. Como resultado, ocorre uma redução da diversidade, e a concentração da produção de verbetes num grupo menor de pessoas. O que descaracteriza a pretendida multiplicidade e liberdade de pontos de vista, que deveriam ser suas marcas.

6. Nessa direção, muitos pesquisadores de renome, respeitados e experientes tanto nos seus campos de pesquisa e estudo, quanto no trabalho em publicações das mais variadas naturezas, têm tido suas colaborações excluídas pelo fechado grupo de editores da Wikipedia brasileira. Basta que um deles considere de menor relevância a temática em questão, para que o corte seja levado a cabo.

Para fechar o relato, e dar espaço às reflexões propriamente ditas, vale a pena, também, fornecer algumas breves informações a respeito dos dois editores responsáveis pela exclusão do verbete cuja tentativa de inserção foi frustrada.

A Sra Béria Lima, apelido Beh, representante dos parcos 5% formados por mulheres no grupo de editores, teve uma postura cortês: devo lhe fazer justiça. A enciclopédia é o principal espaço ao qual dedica sua produção intelectual. No perfil que consta da sua página na enciclopédia, lista projetos voltados para questões religiosas, relativas à Bíblia, além do projeto em curso no qual desenvolve uma lista de autores de obras eróticas. Mas também é responsável por outros portais, a exemplo do Portal do Cristianismo, do Islamismo, e da Religião. No fórum de discussão, parece estabelecer diálogos cordiais com usuários em geral: há solicitações de orientação, informação, conselhos, agradecimentos etc. Ao se declarar colaboradora do site Pensares, observa, bem humorada: “Afinal, quem pensares junto, pensa mió”.

O Sr. Hermógenes Teixeira Pinto Filho, por sua vez, tem um perfil mais autoritário e polêmico. No fórum de discussão, além das mensagens de rotina, encontram-se mensagens indignadas a ele dirigidas, algumas chegam a ser grosseiras. O resultado de pesquisas na internet também aponta para uma atuação dedicada principalmente à Wikipedia, onde assina um grande número de contribuições, em português, espanhol, francês e inglês. É membro do Rotary Club, declara-se interessado pela Marinha (navios da Marinha brasileira, porta-aviões etc.), por ciclismo, automobilismo e sistemas de metrô. Seu atual projeto, em curso, tem como assunto as Forças Armadas e sistemas de manutenção.

Foi com base nesse perfil, campo de interesses e atuação que este senhor considerou impróprio o verbete que inseri, apagando-o. Uma questão inevitável se coloca: teria sido considerado impróprio por fazer referência ao fato do Sr José Zagati ser catador de sucatas? Teria o Sr. José Zagati sido discriminado ali também, em razão da natureza do seu trabalho? Seria, o ambiente da Wikipedia, mais fechado e elitista do que a própria academia universitária, tendo-se em conta que, em 9 de junho de 2010, o Sr. José Zagati proferiu a palestra de abertura de um evento de pós-graduação, de âmbito nacional, organizado pela Universidade Federal de Goiás?

Ponderações

É preciso não se perder de vista que a rede mundial de computadores não constitui um mundo à parte, uma segunda realidade, de natureza diferenciada da realidade natural e social em que estamos inseridos. Ao contrário, a despeito do estabelecimento das redes de comunicação rizomáticas por ela propiciado, com fluxos intensos de informações, ferramentas de organização e armazenamento de dados, entre outras possibilidades, a rede mundial de computadores é parte integrante das malhas sociais, está inserida em suas dinâmicas, tensões, conflitos, disputas de poder. Fazendo uso de suas ferramentas, organizam-se comunidades solidárias e cometem-se crimes, iniciam-se guerras ou clama-se por paz.
Algumas abordagens mais entusiasmadas, marcadas pelo excesso de otimismo prematuro, defendiam a ideia de que nesse ambiente se teria assegurada a abertura de territórios efetivamente democráticos e livres, onde todos poderiam expressar-se, sem restrições ou discriminações, apresentando ou não informações que correspondessem às informações circulantes nas relações presenciais (aqui, tomo como referência o binômio virtual/presencial, ao lado do binômio virtual/atual…). Ao decurso do tempo, e com a ampliação sempre progressiva dos recursos tecnológicos, também se ampliaram os modos de regulação, além da implementação de sistemas quase imperceptíveis de controle e captação de informação, dos quais a maior parte dos usuários não tem ideia (o que os torna, portanto, ainda mais vulneráveis). Assim, são estabelecidos conjuntos normativos e hierarquias de poder ajustados aos projetos da rede de informações e comunidades ali constituídas.

Nesse sentido – e não seria diferente – faz-se uso da rede observando-se os mesmos padrões e patamares de quaisquer outros modos de comunicação e interação nos contextos mais diversos das instituições sociais.

É nesse aspecto que o relato do ocorrido com a Wikipedia aponta para o estabelecimento de um circuito de poder cuja principal matéria prima é a informação a ser disponibilizada no portal da enciclopédia. Tal poder é exercido por reduzido grupo de pessoas que evocam para si autoridade para aprovar, censurar, excluir ou incluir.

Por certo, não está em questão qualquer desqualificação de uma iniciativa como a Wikipedia, responsável por disponibilizar um leque extenso de informações ao grande público. Não por acaso o portal ocupa o 4º lugar em número de acessos, no cenário internacional. Mas há que se ressaltar: não se trata de uma enciclopédia livre. Não passa de mais uma coletânea de verbetes organizada a partir dos pontos de vista de grupos fechados de editores que, eventualmente, acolhem a colaboração de outrem, desde que esta corresponda às suas orientações, ideários e exercícios de poder…

Há vários títulos disponíveis no mercado, entre impressos e digitais. Façamos, deles, pois, bom uso. Mas não nos restrinjamos a eles. Produzamos pensamento de modo efetivamente dialogal. Busquemos aprender a partir das nossas diferenças. Sem, jamais, perder a elegância ou a civilidade. Preferencialmente, sem perder de vista a possibilidade da liberdade.

A tal liberdade, certa diferonça, e uma provocação para nos fazer pensar…
Revi, recentemente, a Trilogia das cores: azul, branco, vermelho, de Kieslowski. O ideário da Revolução Francesa é colocado em questão pelo cineasta, que duvida das utopias, e formula narrativas densas a partir do humano, do imensa e contraditoriamente humano. A versão brasileira do primeiro filme declara, já no título, que a liberdade é azul. Em inglês, a palavra blue (bleu), além de significar azul, evoca também o profundo sentimento de tristeza. Ali, estar livre é ter perdido os vínculos, e não desejar mais estabelecer relações. Liberdade é também isolamento. O cineasta pergunta: “As pessoas realmente querem liberdade, igualdade e fraternidade? Não é só uma figura de linguagem?”

Mas eu não me delongarei, aqui, sobre essa discussão. Já é suficiente pensar que a ideia de liberdade é escorregadia, e nos escapará entre os dedos toda vez que pretendamos defini-la, retê-la em nós… nada mais coerente, afinal…

Recentemente reli, também, o material que vem sendo produzido desde 1997 e disponibilizado, no formato WIKI, na rede mundial de computadores, intitulado Projeto AmaZone, ou, A onça e a diferença, daí, a diferonça. Desenvolvido no Núcleo de Transformações Indígenas, o NUTI, vinculado ao Museu Nacional da UFRJ, o projeto é coordenado e moderado pelo antropólogo e etnólogo Eduardo Viveiros de Castro. Ali, uma das palavras de ordem é alteridade.

Sem entrar no mérito das ideias veiculadas (que são, no mínimo, muito instigantes), ou em quaisquer outros méritos, gostaria de chamar a atenção para o formato WIKI, e para o fato de que o projeto está em contínua construção, em relação de diálogo entre os colaboradores que tenham alguma relação com o grupo de pesquisa. Há conteúdos que foram iniciados, mas ainda carecem de formatação. Alguns permanecem ali, fermentando, por anos… seus links indicam que ainda estão em construção. Outros tomam forma rapidamente, e estruturam de modo mais articulado os conceitos e informações de que pretendam dar conta. Não se trata de um projeto aberto a qualquer colaboração, de modo indiscriminado. Não se propõe a isso. Nem poderia. Mas se trata de um projeto aberto, na medida em que vai sendo construído no decurso do tempo, dos trabalhos de campo, dos estudos em desenvolvimento. Dessa forma, vai ganhando envergadura, complexidade. Além disso, está disponível ao grande público, dissemina informação e conhecimento. Seu formato também é flexível no sentido da própria escritura: alterna as línguas portuguesa, inglesa, espanhola; acolhe artigos e relatos de pesquisa cujas temáticas são afins, apresentando uma teia de produções muito interessante.

Quem sabe, a partir da diferonça não seja possível pensar/buscar/encontrar caminhos mais efetivos de compartilhamento e disseminação de ideários, pensamento, conhecimento, saberes que fervilham, em diversidade de pontos de vista, a partir das pesquisas e encontros que têm abrigo no PACC?

http://amazone.wikia.com/wiki/Projeto_AmaZone

E viva a diferença! Melhor: viva a diferonça, no melhor exercício de liberalteridade, se é que seja realmente possível alguma!

* Alice Fátima Martins é professora do Programa de Pós-Graduação em Cultura Visual, na Faculdade de Artes Visuais da UFG, com pesquisa de pós-doutorado desenvolvida no Programa Avançado em Cultura Contemporânea (PACC/UFRJ), financiada pela FAPERJ.