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Literatura com um projeto – Entrevista com Heloísa Buarque de Holanda

Em entrevista exclusiva a Heloisa Buarque de Hollanda e Ana Ligia Matos, Luiz Ruffato conta como um filho de pais semi-analfabetos se tornou um dos principais escritores contemporâneos e critica a falta de proletariado nos livros brasileiros.
10/03/2006
HBH: Quando penso em você, penso na cidade de São Paulo. Você nasceu lá?

Luiz Ruffato:
Não, eu sou da melhor cidade de Minas, Cataguases. Mas a minha mineiridade é muito relativa, porque, na verdade, os meus avós maternos vieram da Itália no final do século XIX, e os meus avós paternos de Portugal. Então minha mãe e meu pai nem brasileiros são. E eles saíram de Rodeiro e Guidoval, ou seja, da roça, e foram pra Cataguases porque não tinham nenhuma perspectiva de vida na cidade deles. E em Cataguases eles construíram a família.

HBH: Eles faziam o quê?

Ruffato: A minha mãe era lavadeira. Ela era analfabeta e meu pai semi-analfabeto. Com o tempo, ele virou protestante e começou a ler a Bíblia. Apesar de minha mãe ser muito católica, meu pai circulou por algumas igrejas pentecostais até optar pela presbiteriana. Tivemos então, além da experiência da leitura em casa, a convivência com culturas bem diferentes.

HBH: Vocês eram muitos irmãos?

Ruffato:
Não. Éramos três. O meu irmão mais velho formou-se no Senai e foi trabalhar na Conforja, uma das maiores metalúrgicas da América Latina em Diadema. Mas logo ele voltou para Cataguases, não agüentou ficar longe da família. Ocupou um importante lugar na fábrica de tecidos de lá, se casou, teve um filho e morreu eletrocutado por um fio de alta tensão. Dois anos depois, seu filho foi atropelado e morreu também. Minha irmã trabalhava como tecelã na mesma fábrica e depois de casada tornou-se manicure e cabeleireira. Recentemente, passou no concurso para funcionária pública municipal na cidade, onde trabalha agora como merendeira.

HBH: E sua história?

Ruffato:
Minha história era para ser exatamente esta. Meus pais queriam que me tornasse um operário especializado, o grande sonho da classe média baixa de Cataguases. Então eu fui fazer tornearia mecânica no Senai. Mas desde os seis anos eu trabalhava. Trabalhei como caixeiro em botequim, na fábrica Apolo, no setor de algodão hidrófilo, como balconista no Bazar Leitão. Até pipoqueiro, ajudante de meu pai, eu fui.

HBH: E quanto à sua educação formal?

Ruffato:
Tem uma passagem que acho importante porque mostra a fibra do meu pai. Os melhores colégios públicos de Cataguases eram destinados para classe média alta da cidade. E nós, os mais pobres, estudávamos num colégio da Campanha Nacional de Escolas da Comunidade, colégios mantidos pelo Senai, Sesc e Senac. Eram escolas muito ruins. Meu pai era pipoqueiro na principal praça de Cataguases e um senhor apareceu lá, me viu trabalhando com meu pai e perguntou: “Esse menino está estudando, seu Sebastião?” E meu pai disse que eu estava estudando no Antônio Amaro, que não é bom. E esse senhor prometeu arranjar uma vaga para mim no Colégio Cataguases. Provavelmente não passou pela cabeça dele que o meu pai ia levar aquilo a sério. Sei que isso era um sábado. Na segunda-feira meu pai estava lá, procurando o homem, que depois descobriu-se que era o diretor do colégio, que ficou constrangido, constrangidíssimo, com a conversa da vaga para mim. Mas, no ano seguinte, lá estava eu no Cataguases, onde comecei a ter contato efetivo com os livros. O primeiro livro que li foi de um autor ucraniano, Anatoly Kuznetsov, chamado Bábi Iar, um lugar perto de Kiev, onde foram massacrados cerca de duzentos mil judeus. O romance é um relato de umas das famílias, da tentativa de sobrevivência a esse horror.

HBH: Quantos anos você tinha?

Ruffato: Tinha doze. E me lembro de que fiquei com febre. Aquilo era tudo muito novo pra mim. O fato de ler era uma coisa nova, nunca imaginei que houvesse massacres como aquele, guerras, gelo, inverno, nomes estranhos. Comecei mesmo a passar mal. Foi naquele momento que descobri que existiam coisas maiores que o meu bairro, minha cidade, coisas maiores que o Brasil, sobre o qual eu também não tinha muita idéia do que fosse. Ali minha vida deu um salto. Me viciei em livros, passei a freqüentar a biblioteca, lia tudo que me caía nas mãos. Foi nessa época que vi uma novela na Globo, “O Feijão e o Sonho”, na qual o personagem é um poeta que luta contra a mesquinhez da cidade e do mundo. Me encantei e disse para minha mãe que eu queria ser escritor. E ela caiu em prantos porque queria que eu fosse operário.

HBH: Cuidado porque mãe tem sempre razão.

Ruffato: Pois é. Ela queria minha segurança. Foi quando me formei em Tornearia Mecânica. Formado, fui para Juiz de Fora, que não era o destino dos formandos do Senai. Esses iam direto para São Paulo ou para Belo Horizonte por causa da Fiat, que se instalou lá mais ou menos nessa época. Mas eu fui para Juiz de Fora, porque dois colegas meus tinham a idéia de ir para uma universidade e em Juiz de Fora havia a Federal. Lá eu não conhecia ninguém, mas logo arranjei emprego numa oficina mecânica onde arrumei também um quarto nos fundos. Eu não tive em Juiz de Fora um período de profundo aprendizado, porque em 1978 estavam começando de novo as greves nas universidades e as manifestações estudantis. Nessa época era totalmente alienado. Em Cataguases, a esfera política para nós chegava, no máximo, até o prefeito. Meu primeiro encontro com a política foi em Juiz de Fora. Estudava o tempo todo para o vestibular. Trabalhava o dia inteiro, mas fazia o cursinho à noite. Sábado eu ficava direto no cursinho e domingo ficava o dia inteiro estudando. Quando fui afinal me inscrever para a universidade, me perguntaram o que eu iria cursar, eu simplesmente não sabia. Como duas ou três pessoas na minha frente começaram a falar em Comunicação, eu achei que essa opção tinha tudo a ver com tornearia mecânica, puxar fio de comunicação, telefone, essas coisas. Não tinha idéia do que fosse, mas fiz o tal vestibular e passei em primeiro lugar. Só quando o curso começou é que descobri que Comunicação era Jornalismo.

HBH: E como você se manteve durante o período de faculdade?

Ruffato:
O que me restou foi procurar emprego num jornal de Juiz de Fora. Tive sorte e arrumei um emprego no Diário Mercantil logo no primeiro mês de faculdade. E aí, sim, comecei a escrever sistematicamente, comecei a fazer política estudantil, porque era um momento que a UEE em Minas estava sendo recriada – a UNE iria ser recriada logo em seguida. Fui muito usado por uma certa esquerda dentro da faculdade porque era o “representante do proletariado”.

HBH: A leitura parece ter sido muito importante na sua formação. Trabalhando e estudando você continuava lendo ou não dava mais tempo?

Ruffato:
A leitura sempre me acompanhou. A primeira vez que eu comemorei o aniversário, que deve ter sido aniversário de 15 anos, eu já lia tanto que duas colegas minhas me deram de presente um livro de contos da Ática, que tinha a cartomante na capa, era uma capa horrorosa, e o Inocência, do Visconde de Taunay. Quando fui para Juiz de Fora, passava todo o tempo livre freqüentando sebos. Eu achava nos sebos também revistas como FicçãoJosé que, mesmo lidas com dois, três anos de atraso, me trouxeram a literatura brasileira contemporânea. Li o Loyola Brandão, o Ivan Ângelo, os novos contistas, mas sempre de forma errática. Eu não tinha noção da tradição. Com o tempo eu fui tentando fazer uma leitura um pouco mais programática, digamos assim. Como que isso vai se relacionar com o meu desejo de escrever? Eu nunca deixei aquela idéia lá atrás, só que realmente a minha mãe tinha razão, fui cuidar do feijão, mas com esse sonho.

HBH: Como e quando você virou escritor de fato e de direito?

Ruffato: Comecei pela poesia. Neste primeiro momento tive bastante contato com o pessoal que começava a fazer poesia em Juiz de Fora e com os grupos de poesia marginal do Rio. Era um momento muito rico nesse sentido. Na época eu publiquei um pequeno livro de poesia, chamado O homem que tece, sobre um operário, e vendemos tudo, nem eu tenho esse livro.

HBH: Era impresso em mimeógrafo?

Ruffato: Era. E isso naquela época era uma entrada para a gente tentar se socializar vendendo na rua. Para mim, foi um momento em que pensei ser possível viver escrevendo. Mas logo percebi que não. Ainda estudante, me casei com uma menina que fazia Medicina e tivemos um filho. A coisa pesa. E o pior é que o Diário Mercantil, em 1981, começa a entrar numa crise muito séria e a gente faz uma greve. Eu era editor de Cidade e fui mandado embora por conta disso. Resultado: fiquei com família e desempregado. Assim que me formei, me mudei para Alfenas, no sul de Minas, para trabalhar. Lá, ajudei a implantar um jornal, Jornal dos Lagos, que existe até hoje. E dei aula de literatura e de redação num colégio. Fiquei em Alfenas um ano. Depois mais um ano em Juiz de Fora, trabalhando na Tribuna de Minas. No final de 1989, início de 90, já separado, vim para São Paulo e nunca mais saí. Eu me casei com Cecília, uma jornalista e tivemos uma filha que mora comigo, Helena. Em 2001, começaram as grandes perdas. Em outubro minha mãe morreu e, em dezembro, morreu Cecília. Em 2003, morreu meu pai. Portanto, não havia mais razão para eu pensar em sair de São Paulo. Desde essa época, trabalhei num único jornal, Jornal de Tarde.

HBH: Você não trabalha mais em jornal?

Ruffato:
Não. Eu saí há uns três anos, só estou com a literatura. Fiz carreira no jornal. Fui repórter, redator, subeditor, editor, secretário de redação. Acho que tem o momento certo de sair do jornal apesar dessa experiência ser extremante importante.

HBH: Mais do que tudo te dá disciplina.

Ruffato: Disciplina, é exatamente essa questão. Tem horário de fechamento e acabou. E você tem que produzir. Não tem lugar para crises. Você senta e escreve. Tanto que eu brinco quando me perguntam: “Como é o seu processo de criação?” Eu falo: “Meu processo de criação é o seguinte: eu sento e escrevo”.

HBH: E o medo de viver só de literatura?

Ruffato:
Há três anos estou vivendo de literatura. Evidentemente não estou falando de viver só de direitos autorais, existem as palestras, adaptações de sua obra, traduções, prêmios…

HBH: A adaptação para o teatro de Eles eram muitos cavalos foi um sucesso de bilheteria, não foi?

Ruffato: Foi. Com o nome de Mireveja, foi mostrada no teatro e também em nove ou dez dos Centros de Educação Unificada na periferia de São Paulo. Na periferia, havia a apresentação e depois um debate. Os depoimentos das pessoas eram impressionantes. Uma senhora que nunca tinha ido ao teatro disse uma frase magnífica: “É como se eu estivesse vendo São Paulo numa casa sem teto”. Essa foi uma experiência fantástica. Ela ficou dois anos em cartaz. Foi uma peça montada sem grandes expectativas, o teatro foi alugado só por quatro meses, ninguém sabia no que ia dar. Mas deu muito certo e ela ganhou o Prêmio Shell e o Prêmio APCA.

HBH: E o próprio livro ganhou muitos prêmios.

Ruffato
: Ganhou o APCA e o Machado de Assis, da Biblioteca Nacional. Ele está indo para a quarta edição e foi publicado na França, pela Métailié, e na Itália, pela Bevivino. As editoras estrangeiras pagam um adiantamento. Então, eu não diria que vivo especificamente de direitos autorais, mas do entorno. E não tenho queixas. Pago minhas contas, minha filha continua estudando no mesmo colégio em que estudava e hoje acho que tenho uma qualidade de vida bem melhor do que antes. Moro em Perdizes, acordo todos os dias às seis da manhã, caminho peeo bairro, às sete e meia tomo café e às nove começo trabalhar. Ao meio dia, paro, almoço e volto a trabalhar por mais umas três horas.

HBH: Digamos, um horário comercial folgado.

Ruffato: Isso mesmo. Por isso não trabalho nem sábado nem domingo. Nem de noite. Achei que para trabalhar em casa eu tinha que estabelecer um ritmo muito claro pra mim.

HBH: Ouvindo você falar, parece que você é um estrategista compulsivo.

Ruffato:
Olha, desde Juiz de Fora, eu me coloquei uma meta: “Daqui a quinze anos quero ser um escritor profissional”. E fui  programático. Como sentia muitas falhas na minha formação, comecei a tentar sanar essas falhas. Por minha conta, comecei a ler um pouco de filosofia, teoria da literatura, os autores que eu não conhecia, obedecendo mesmo a um programa e sem escrever absolutamente nada, nada, nada, nada…

HBH: Acho que acertei em cheio no diagnóstico.

Ruffato:
E tem mais. Fui programático também na descoberta do que escrever. E comecei a pensar o seguinte: “Bom, eu podia escrever sobre o que eu conheço”. E comecei a procurar a minha realidade na literatura brasileira. E levei um susto. A literatura brasileira não tem uma tradição classe média baixa ou da operária. Só encontramos, no máximo, o pequeno funcionário. Lima Barreto trata a classe média baixa de uma maneira fantástica, mas também não é a classe média baixa que tem que bater cartão, digamos assim, ainda é o pequeno jornalista, o pequeno funcionário público. E eu comecei a perceber que talvez esse fosse um filão rico que eu poderia explorar, porque era um universo que eu conhecia muito bem. E, como projeto político, eu poderia dar uma contribuição neste sentido.

HBH:Você acha que a literatura teria uma função explicitamente política?

Ruffato:
Talvez seja romântico da minha parte, mas acho que sim. Se a literatura foi capaz de me mudar, ela é capaz de mudar as pessoas, e, conseqüentemente, ela é capaz de mudar o mundo. Acredito piamente nisso. E para mim, naquele momento, essa contribuição política tinha a ver com o tema que eu ia tratar. Mas isso me trouxe um grande impasse. Como posso escrever sobre a classe média baixa, sobre o proletariado usando a forma do romance, que foi criado para dar uma visão de mundo da burguesia? Essa era uma contradição imensa e passei muito tempo tentando resolvê-la.

HBH: Resolver teoricamente?

Ruffato:
Teoricamente. Percebi então que na mesma época que nasce o “romanção”, o romance burguês, nasce também um anti-romance, que vai formar uma tradição paralela. Me afundei nesse tipo de literatura, para entender como é que ela funcionava. Quando me considerei mais ou menos pronto, escrevi um primeiro livro, Histórias de remorsos e rancores. O livro tratava do universo proletário, experimentando uma forma de histórias, o que não quer dizer contos. Eu queria ver se aquele tipo de forma poderia ser tomada como um romance. Mas não foi. Era tido como o um livro de contos, o que eu não queria. Mas mandei umas trinta cópias para trinta editoras e 90% delas nem responderam. Quem acabou publicando o livro foi a Boitempo. Então resolvi escrever o segundo livro como contos, mas já sabendo que não eram exatamente contos. Que eram parte um projeto a longo prazo. Esse livro, que se chamou Os sobreviventes, ganhou o Prêmio Casa de las Américas, de Cuba, o que lhe deu uma certa projeção. Já o terceiro resolvi escrever um romance, que não era propriamente um romance. Era o Eles eram muitos cavalos, que considero a radicalização da minha experiência anterior. Onde procurei colocar em xeque a própria forma do romance. Eu queria que a precariedade de São Paulo fosse a precariedade da forma do romance.

HBH: Explica melhor como expressar, na forma romance, a precariedade de São Paulo?

Ruffato:
Por exemplo, a insistência da construção de capítulos estanques, que significariam a precariedade, a falta de permeabilidade das relações sociais. A precariedade das falas das pessoas, que não conseguem se comunicar, porque a comunicação é efêmera em São Paulo. A precariedade da arquitetura da cidade, a precariedade da arquitetura do romance, a precariedade do próprio espaço urbano. Quando o livro saiu e foi entendido como romance, eu me senti à vontade para retomar o meu projeto. Foi um encontro meu com a recepção da obra. Então matei os dois primeiros livros, eles nunca mais vão ser publicados.

HBH: Eles eram muitos cavalos foi sucesso desde seu lançamento?

Ruffato:
Não. Ele chamou a atenção quando, no final do ano, foi a capa d’O Globo como melhor livro do ano e em seguida ganhou dois prêmios. Já em fevereiro saiu uma segunda edição. A partir daí foi muita rápida a aceitação dele.

HBH: Você foi surpreendido por isso?

Ruffato:
Muito. Porque como o que eu pretendi não foi percebido nos meus primeiros livros, resolvi radicalizar formalmente nesse último. Percebi que nos dois primeiros eu não tinha sido suficientemente explícito no que eu queria. Esperei quatro anos e em 2001 ele saiu.

HBH: Você não teria sido severo demais com os primeiros livros? Havia necessidade mesmo de tirá-los de catálogo?

Ruffato:
O que eu fiz foi pegar esses dois livros e reescrevê-los no Inferno provisório. Tanto que as histórias do segundo livro mais ou menos formam a do primeiro volume e as histórias do primeiro mais ou menos conformam o segundo volume e eu ainda tenho uma história de Os sobreviventes que só vai aparecer no quarto volume do Inferno provisório. Tem uma história que saiu num livro da Objetiva, chamado Tarja preta, que vai sair no quinto volume, eu tenho toda essa programação. Na verdade, eu tenho 50 ou 60 páginas de mapas dos personagens porque senão eu me perco.

HBH: Essa construção é uma construção que parece épica. A estrutura parece a de um poema muito longo.

Ruffato:
A idéia exatamente é essa. Pode parecer pretensioso, mas eu queria que o conjunto de minha obra fosse épico no sentido de que fosse a história do proletariado brasileiro.

Ana Lygia: Você não acha que isso é a grande discussão social, o grande nó nacional? Essa classe, esse detrito?

Ruffato:
Quando percebi, no início de minhas leituras sistematizadas, que não existe uma literatura que abarque esse personagem, me pergunto: Por quê? Se vários dos escritores brasileiros tiveram origem proletária ou de classe média baixa, por que eles não trataram dessa questão? Minha hipótese é a de que a sociedade brasileira é tão hierarquizada que tem que esquecer o seu passado.

Ana Lygia: Mas acho que essa ausência é também uma presença eloqüente.

Ruffato:
Sem dúvida nenhuma. Minha pretensão é trazer essa ausência para dentro da literatura, trazer à discussão exatamente o que acontece no Brasil. Talvez isso aconteça porque não reconhecemos o outro. Então eu posso matar o outro, porque o outro simplesmente não existe. Se não temos essa representação na literatura é porque realmente a sociedade não quer ver essas pessoas, não quer identificá-las. Não quero esquecer que nasci num país chamado Brasil, que escrevo português e que vivo numa sociedade extremamente injusta. Tenho um compromisso com a minha época, um compromisso com a formação de uma identidade nacional. Isso pode parecer um discurso ultrapassado, piegas, mas não tenho como não assumir isso. Evidentemente, sei que estou andando contra a corrente.

HBH: Você diz que as pessoas perceberam o seu projeto literário estrutural de Eles eram muitos cavalos, mas quero saber se você acha que entenderam também o projeto político do livro.

Ruffato:
Isso é pouco discutido, é muito pouco discutido. O impacto maior veio de uma discussão da experiência formal. Mas para mim elas são indissociáveis. Tenho insistido muito nessa questão política em Inferno provisório exatamente porque ela não foi percebida antes. Posso estar sendo novamente pretensioso, mas eu gostaria que meu trabalho no Inferno provisório iluminasse o projeto político do Eles eram muitos cavalos.  Porque o Eles eram muitos cavalos seria quase que o final do Inferno provisório.

HBH: Fala mais sobre os dois primeiros volumes do Inferno provisório.

Ruffato:
O primeiro é o Mamma, son tanto felice. Parti, desde o começo, de uma questão formal importantíssima que é a seguinte: escrever um romance não-burguês. Escolhi, como ferramenta um recurso atual, da internet, que é a hipertextualidade. Parti então para uma experiência de construção e reconstrução de histórias, como se o leitor tivesse em cada nome de personagem a possibilidade de clicar e abrir a história daquela personagem. Esse é o meu processo de construção do romance. Por isso que falei que tenho um mapa. Embora alguns fatos não estejam no livro, eu sei, pelo mapa, quando o personagem vai morrer. No Mamma, tentei aprender exatamente o começo do êxodo rural de uma pequena comunidade, e escolhi uma comunidade italiana, porque aí surge também a questão do não-pertencimento. Porque, por incrível que pareça, a identidade italiana na comunidade dos meus avós se perdeu completamente. Para mim, essa questão tornou-se muito importante. Eu queria entender a perda de identidade do imigrante, seja ele italiano ou nordestino, não importa. Então, essa pequena comunidade italiana, no interior de Minas, está num momento de crise entre o sair dos filhos da roça para as cidades. Estão ali entre a comunidade de Rodeiro, que é onde os meus avós estavam, e Cataguases. E o que Cataguases tem de chamativo? É a indústria. Então, no Mamma, embora de uma forma não cronológica, todos as personagens estão, de uma maneira ou de outra, ligados a essa pequena comunidade. E vão estar sempre voltando a essa comunidade, do ponto de vista das relações afetivas, das relações do imaginário. Usei nesse caso uma linguagem que se adequasse ao imaginário rural.

HBH: Você fez pesquisas neste sentido ou usou apenas sua memória?

Ruffato:
Trabalhei com minhas lembranças, essas coisas marcam a pele da gente. Eu passava a minha infância em Rodeiro e ouvia muitas histórias, e sempre tive um ouvido muito bom e o gosto pelas palavras. Mas, é evidente que quando tenho dúvidas eu consulto pessoas mais velhas para me orientar.

Ana Lygia: Mas no Mamma você não retoma essa primeira linguagem, que é impactante. Essa sua primeira tônica me remete a Guimarães Rosa.

Ruffato:
Eu gostaria de talvez estabelecer um diálogo, porque o Guimarães é esterilizante, se você tentar passar por ele, você não consegue chegar a lugar nenhum. Vou contar uma coisa que não está explícita e que é muito da minha cabeça: a primeira história do primeiro livro, “Uma fábula”, é uma tentativa de síntese de todos os cinco volumes, e fiz pensando na Gênesis ao Apocalipse. Ali, o começo, o pai, é um deus terrível, um deus vingativo e mata a filha. E no final do Gênesis, Jesus encontra Pedro e André, que são os irmãos em uma pescaria. Então montei uma pescaria numa quermesse em Rodeiro e, quando eles estão pescando, são encontrados pelo personagem cujo nome é Salvador. Eu precisava entender o que eu ia fazer, e para isso construí aquela primeira história, que, mesmo que não tenha muito a ver com o resto das histórias, pra mim era essencial.

Ana Lygia: E o fato de você reescrever algumas histórias e apontar isso no final do livro? Que efeito você procura tirar disso?

Ruffato: É o meu compromisso com minha obra. E quero deixar isso explícito porque não queria que alguém chegasse e falasse: “Ah, mas essa história aqui eu já li”. Eu mesmo falo: “Você já leu sim, mas é outra coisa agora”. Se fosse possível, o meu objetivo seria o de, ao final do quinto volume, publicar um volume só. Um volume que daria, mais ou menos, umas mil páginas e aí com as histórias reembaralhadas novamente, sem obedecer à seqüência inicial. E no final, haveria uma pequena biografia de todos os personagens.

HBH: Isso é um jogo de cartas…

Ruffato:
Eles eram muitos cavalos deve ser reeditado e dessa vez eu queria que também fosse feita uma edição, não-comercial, de uns 250 exemplares, na qual todos os capítulos estarão dentro de um envelope absolutamente soltos e o leitor constrói o seu próprio Eles eram muitos cavalos. Sei que editorialmente isso é quase inviável, mas na verdade, esse é o meu projeto original.

HBH: Depois dessa declaração, o melhor é voltar à “seqüência normal” de uma entrevista e comentar o segundo volume do Inferno provisórioO mundo inimigo.

Ruffato:
O mundo inimigo já pega esse filho de imigrante se instalando numa pequena cidade, já morando num cortiço. O livro é muito baseado num cortiço e aí faço um diálogo explícito com o Aluísio Azevedo, que é um autor que acho importantíssimo e muito mal estudado. Ele consegue, no universo de um cortiço, falar de um Brasil que ia ser ainda, das relações todas precárias que ele consegue perceber já naquela época. E inclui também o proletariado, que é o pessoal da pedreira e o embate terrível entre o imaginário rural, de onde eles tinham vindo, e o novo imaginário já estava começando a se formar. No primeiro volume do Inferno provisório ainda existem relações de família, inclusive porque são italianos e essas famílias têm núcleos, têm sobrenomes. Já em O mundo inimigo eles vão começar a já não ter mais sobrenome, eles vão começar a ter dificuldade de dialogar com os seus e não conseguirão ter diálogo com os outros. No próximo, que é o terceiro volume, as histórias saem desse cortiço e vão em direção à periferia de Cataguases, mostrando a perda do imaginário rural e o surgimento das relações complicadíssimas que se estabelecem entre o imaginário rural e o urbano. No quarto volume, aí sim, eu quero tratar desse personagem e suas relações com a cidade de São Paulo e do Rio de Janeiro. Aí já é década de 80, 90, e já entra muito a questão do esgarçamento das relações sociais. Acho que o título desse volume vai ser O livro das impossibilidades.

HBH: Este projeto é de uma extensão e ambição quase anacrônica com o nosso momento, não é não?

Ruffato:
É o jeito que eu arranjei para entender o que eu estou fazendo. Parto de um microcosmo para tentar entender o macro, parto de um buraco de Rodeiro e dali eu tento ir expandindo, expandindo, então passa para Rodeiro, depois passa para o beco de Cataguases, depois passa para a Cataguases da periferia, depois passa para Rio e São Paulo, para finalmente, no último volume, no quinto volume, eu pegar os personagens, mostrando assim que, a periferia do Rio e a periferia de São Paulo não são diferentes da periferia de Cataguases hoje. Mostrando que houve uma contaminação das relações sociais, que essa violência que se fala tanto de Rio e São Paulo está presente em Cataguases.

HBH: A questão da violência realmente tem uma presença marcante na sua obra e mesmo na sua linguagem.

Ruffato:
É. Eu tenho um problema sério com a questão de como representar a violência. Penso que a arte e a literatura têm que oferecer alguma coisa a mais do que uma cópia. Têm que oferecer um diálogo com o que você está vendo. Me incomoda muito quando a violência é tratada com certo neonaturalismo, que, nesse caso, é uma forma muito conservadora e reacionária. A possibilidade de pensar que a literatura proporciona é o que faz com que no meu trabalho a violência não seja naturalizada, mas seja uma coisa que está subjacente, que leve o leitor a sentir a violência. Por exemplo, a violência contra a mulher, que é um tema que eu tento retratar muito na minha literatura, não é uma violência em que as pessoas se pegam, mas é muito pior, é uma violência que está imanente, que está o tempo todo presente, onde não precisa acontecer nada, porque ela já está lá. O livro das impossibilidades, pra mim, seria exatamente o momento em que essa violência, provocada pela perda de identidade, pela absoluta falta de possibilidade de diálogo entre classes sociais, entre as pessoas, pela contaminação de um certo imaginário da não ética, valores que estão muito presentes nos primeiros livros, vai se esgarçando. E o quinto volume é isso – eu não sei o título ainda do quinto volume, eu tinha pensado em usar São São Paulo, mas ainda não é bem isso porque, na verdade, vou trabalhar com vários universos, São Paulo, Cataguases e um pouco do Rio.

HBH: Já que você é tão programático, o que você que pensa que vai estar fazendo daqui a 15 anos?

Ruffato:
Daqui a 15 anos vou estar com 59 anos, eu queria ter a felicidade de poder pensar sobre essas questões que me preocupam hoje e dizer: “Bom, estou vivendo num país melhor e, portanto, a minha literatura pode ser diferente da que eu faço hoje”