Ano XI 0201
dossiê
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COREOGRAFIA DA ADORAÇÃO: O GESTO TEOPOÉTICO EM MALICK

Resumo: Percorrendo um caminho fenomenológico do devaneio sob a tutela de Bachelard, este artigo pretende tratar o sistema gestual encontrado nos filmes do diretor norte-americano Terrence Malick por um prisma teopoético. Embasados nos conceitos de gestus de Brecht e suas problematizações deleuzianas, notamos que a excêntrica metodologia de Malick para capturar imagens revela uma tentativa de ligar-se ao divino, criando um discurso próprio por meio de elementos fílmicos como o gesto.

Palavras-chave: gesto; teopoética; cinema; Terrence Malick.

Abstract: Throughout a phenomenological path of rêverie, under the blessing of Bachelard studies, this article intends to deal with the gestural system found on american filmmaker Terrence Malick’s films, through a theopoetic prism. Grounded on Becht’s concept of gestus and Deleuze’s problematizations, we notice that Malick’s eccentric methodology of image capturing reveals an attempt of connecting to the divine, creating a specific form of speech using film elements such as the gesture.

Keywords: gesture; theopoetics; film; Terrence Malick.

 

<em>Gestual de </em>O novo mundo<em> compreende toque, carinho e </em><em>romance entre Capitão Smith e Pocahontas</em>
Gestual de O novo mundo compreende toque, carinho e romance entre Capitão Smith e Pocahontas

A teatralidade é o teatro menos o texto, uma espessura de signos e de sensações que se edifica no palco a partir do argumento escrito, é aquela espécie de percepção ecumênica dos artifícios sensuais, gestos, tons, distâncias, substâncias, luzes, que submerge o texto sob a plenitude de sua linguagem exterior.
Roland Barthes

A experiência do cinema, em si, é transcendental. A tela metamorfoseia-se em um compêndio de sensações, emoções e sentidos com possibilidades infinitas de destacar seu espectador para um plano virtual, imaginário ou espiritual – uma outra dimensão. Naturalmente, este é um atributo da arte de maneira geral. Destacamos o cinema, pois é nosso interesse maior para fins de observação. O cinema peculiar de Terrence Malick, diretor norte-americano que assina obras como Além da linha vermelha (1998) e A árvore da vida (2011), não disfarça seu aspecto transcendental – aqui já utilizando o termo na sua ordem escolástica. Filósofo existencialista, tradutor de Heidegger, os filmes de Malick têm sido um grande campo de estudos que aproxima filosofia e cinema. De outro lado, eles também inspiram reflexões que passam pela ordem do espiritual, ao absorver temáticas que envolvem o sagrado, a devoção e a sacralidade. Esse segundo aspecto está imbuído de pistas que podemos encontrar com certa homogeneidade por todos os seis longas-metragens do diretor lançados comercialmente até 2014[1].

Dentre os recursos estilísticos do cineasta, encontramos o uso recorrente da voz over (ou em off), a música erudita sacra, a câmera flutuante, as paisagens naturais e, claro, a performance dos seus atores. Aqui, pretendemos nos deter em um sistema gestual do qual os personagens de Malick estão imbuídos. Mais do que a expressão de cada ator para viver cada personagem, o gesto nos filmes de Malick carrega uma elevação, um discurso que envolve a relação com o divino. Percebemos esta construção como teopoética.

Rapidamente, antes de chegarmos à teopoética, nos cabe visitar algumas questões ligadas a espiritualidade e religião. Criaturas vivas que somos, animadas (dotadas de alma), carregamos a tríade emoção-razão-linguagem em nós – se não, como prefere Carl Jung, somos por ela carregados.

A espiritualidade não é algo que possuímos, que está em nós, mas ao contrário, nós é que estamos nela, ela é que nos possui com seu poder, sua força (Jung, 2011, p. 48).

Bachelard, ao analisar os escritos de Balzac, nos inspira a realizar correspondências entre o céu e a terra, sendo este tema “elemento fundamental da cosmologia balzaquiana” (Bachelard, 1990, p. 104). Tomamos emprestadas as relações da filosofia bachelardiana acerca da verticalidade encontrada no lirismo de Balzac para compreender a união entre o natural e o espiritual nos filmes de Malick. Quanto à religião, diante dessa evidência do transcendente, ela cumpre um papel mediador.

Religare é a palavra latina que origina o termo religião. Se se consegue a instância dessa religação, talvez se atinja o patamar mais complexo da relação entre o homem e a transcendência. Atinge-se a potência mais radical, o universo dos “impossíveis”, alcançados até hoje somente pelos místicos ou pela fantasia (Castro, 2013, p. 22).

Assim, nos cabe encontrar uma cosmologia que não só revele seu weltanschauung[2], conferindo-lhe reflexão baseada nos símbolos recorrentes no cinema do elusivo cineasta Terrence Malick e em como seu peculiar processo de construção da imagem corrobora o processo de análise da poesia no cinema, mas também pressuponha um impasse ao colocar o discurso sob uma ótica teológica. Como anteviu São Tomás de Aquino, no relato do dominicano Pie Duployé em sua tese de doutoramento (Estraburgo, 1964), a imagem pode ter valor fundamental para a compreensão do poético:

As realidades poéticas não podem ser compreendidas pela razão por causa de uma deficiência de verdade que está nelas; as realidades divinas não podem ser compreendidas pela razão por causa de sua superabundante verdade. Realidades poéticas e realidades divinas, por razões opostas, são obrigadas a apelar para imagens. A relação que a teologia mantém com as imagens e a literatura de uma época define exatamente a relação que a teologia mantém com a cultura dessa época. Uma teologia sem imagens é uma teologia sem cultura.[3]

A teopoética permeia tanto as relações intersemióticas e interdisciplinares do campo científico, como fornece elementos problematizadores para o entendimento de uma teocentricidade na arte. O termo tem origem na academia americana. Mais precisamente, teria sido usado pela primeira vez em um discurso do poeta Stanley Romaine Hopper em 1971, na Society for the Arts, Religion and Contemporary Culture (Pennsylvania). Hopper também usaria o conceito de teomitologia, tendo principal interesse encontrar traços da religiosidade na literatura secular.[4] Algo que o teólogo alemão Karl-Josef Kuschel levaria ao limite, partindo da seguinte reflexão de Kurt Marti: “Talvez Deus mantenha alguns poetas à sua disposição”[5]. Em sua pesquisa, Kuschel investiga os aspectos do discurso sobre divino e moral religiosa na literatura alemã contemporânea, passando por obras de Thomas Mann, Hermann Hesse e Franz Kafka, com sua inescrutabilidade do mundo.

Introduzimos, portanto, Deus. Esse elemento será recorrentemente referido ao longo das próximas páginas. No entanto, buscamos tratar a este nome (Deus) e também ao Diabo com um cuidado especial. Não há intenção de se colocar o registro deste theos como forma de compreender uma verdade absoluta. Ao nos referirmos a Deus, buscamos um sentido poético (ou teopoético) partindo de uma lógica que não consegue compreender toda a complexidade da manifestação do ser transcendental nas diversas culturas e matrizes religiosas. Vamos nos ater à específica tradição judaico-cristã. E esta escolha se deve tanto a um interesse particular na poética bíblica (que envolve desde a Torah judaica às cartas paulinas cristocentradas), quanto às sugestivas temáticas do cinema de Malick. Eis uma forma sucinta de explicarmos essa ideia:

Deus está no vento: vem, vai, não pode ser colocado em jaulas de papel ou de palavras (…) Depois que vai, a única coisa que resta é a memória de seu toque sobre minha pele. Eu só posso falar sobre isto: reverberações no meu corpo, assim que é tocado pelo vento; às vezes um frio, outras uma sensação de calor, arrepios… Não teologia. Poesia. Se você preferir – teo-poética (Alves, 1991, p. 161).

Não estamos, portanto, buscando a Deus ou à sua natureza inspirada ou baseada nas concepções judaico-cristãs. Afinal, a ausência de uma teopoética engajada, defende Wilder, resvalaria em um encorajamento de pietismo evangélico ou de liberalismo inefetivo. Para Wilder, a teopoética surge como um termo discreto para se referir a um tipo de linguagem religiosa. E é isso que procuramos.

Teopoética é uma ativa e substancial perspectiva que gera uma linguagem capaz de revelar parte da natureza do divino neste mundo, facilitando enxergar as qualidades do divino no dia a dia. Não é prescritivo e não presume enjaular a totalidade da natureza de Deus (Keefe-Perry, 2009, p. 590, tradução nossa[6]).

De certa forma, no entanto, por um processo menos didático e mais onírico – para nos reaproximarmos de Bachelard –, propomos aqui fazer o mesmo com o conjunto fílmico de Malick, em conversas generalizantes com outras obras carregadas de elementos que permitem uma universalização da aplicação do conceito de teopoética no cinema.

Recorramos ao complexo de Jonas. Com a finalidade de propor um devaneio sobre a profundidade, trazemos esse conceito recorrente na psicologia contemporânea e nos manuais de autoajuda, mas a partir do pensamento de Bachelard. Embora haja um fator fortemente psicologizante – inclusive no ensaio de Bachelard –, aqui propomos partir da formulação das imagens reveladas pelo princípio de Jonas, o profeta bíblico engolido por um peixe. Com efeito, propõe Bachelard que “um complexo é sempre a articulação de uma ambivalência. Em torno de um complexo, a alegria e a dor estão sempre prontas a trocar seu ardor” (Bachelard, 1990, p. 174). O Jonas de dentro do ventre do grande peixe sintetiza a sensação do cós de uma caverna ou do subterrâneo do mar. Quando nesta posição de afundamento absoluto, escuridão total e de paredes opressoras (do ventre, da rocha, das águas), impõe-se uma morte inevitável. O ventre é como um sarcófago, de onde não há saída. É a “visão de um abismo antropófago” (Bachelard, 1990, p. 129). No entanto, o ventre propõe, em sua imagem, uma dialética fundamental: sintetiza o espaço de segurança, conforto, abrigo, energia e felicidade do feto. Há, portanto, dois ventres: aquele de onde saímos e o outro, para o qual voltamos. Infância e morte. “O ventre é para a humanidade um peso terrível; rompe a todo instante o equilíbrio entre a alma e o corpo” (Hugo apud Bachelard, 1990, p. 129). Buscamos aqui investigar esse movimento de alma e corpo gerado no ventre. Um retorno ao âmago, à profundidade. Do arquétipo de Jonas, não interessa aqui o devaneio sobre a gula – o processo de se engolir sem mastigar –, mas as imagens que nos permitem o vislumbre da expressão mais primitiva da natureza: o gesto.

Com o gesto, não conseguiremos avançar sem antes recorrer à noção de gestus, cunhada por Brecht. O dramaturgo alemão elevou o gestus à condição de essência do teatro. O gestus seria uma atitude, diferente da teatralidade, embora se dê diretamente por meio desse conteúdo de significações corporais às quais Barthes se refere na epígrafe deste capítulo. Embora para Brecht o gestus configure uma qualidade social e política, Deleuze observará que não lhe são negadas outras possibilidades, uma vez que pode ser bio-vital, metafísico, estético e, por que não, teopoético, como havemos de sugerir.

O que chamamos de gestus é o vínculo ou o enlace das atitudes entre si, a coordenação de umas com as outras, mas isso só na medida em que não depende de uma história prévia, de uma intriga preexistente ou de uma imagem-ação. Pelo contrário, o gestus é o desenvolvimento das atitudes nelas próprias (Deleuze, 2010, p. 230-231).

Esse enlace surgiria em consequência de uma teatralização, de um efeito dramático. É o que Deleuze aponta quando utiliza o exemplo de Cassavetes para mostrar que a relação dos personagens ou a construção deles próprios não deve surgir da intriga. Antes, a história nasceria por meio delas, em uma exigência de um “cinema de corpos” (p. 230-231). O resultado final seria o espetáculo, ou uma dramatização que abarca toda a intriga. Neste cinema de corpos, busca-se a cerimônia, o aspecto litúrgico e sensível da experiência fílmica. Trata de um escapismo à mera narratologia; não intenta encontrar-se, mas prioriza o ensaio. Terra de ninguém e Dias de paraíso, dentre os filmes de Terrence Malick, apresentam elementos que os levam a uma compreensão narrativa. Seus encontros apontam para um ritmo que, a partir de Além da linha vermelha, virá a se consolidar experimentando a linguagem corporal antes de enquadrá-lo em determinada estrutura dramática. Voltamos ao “impoder do pensamento”[7], à incomunicabilidade que confere ao corpo um novo sentido, uma “imagem-cristal” (Deleuze, 2010, p. 228), fenômeno que se referencia ao que se dá a ver e sobre o que se transforma diante da luz. Contudo, a cerimônia final à qual o espectador de Malick está submetido passa ainda pela teatralidade que, para Barthes, seria um estado de suspensão ou mesmo de divagação e contradição.

Barthes busca impor o modelo do distanciamento brechtiano. O “teatro múltiplo” de Brecht é aquele que mostra, que cita e repete, é o teatro que recorta os gestos, compõe as figuras, interrompe as narrativas, é o teatro que não visa a exprimir o sentido, mas a transformar o real. É o teatro do gestus (Bident, 2012, p. 64).

<em>Mrs. O'Brien (Jessica Chastain) em momento de brincadeira lúdica com os filhos em</em> A árvore da vida
Mrs. O’Brien (Jessica Chastain) em momento de brincadeira lúdica com os filhos em A árvore da vida

Do gestus ao gesto teopoético

Definir um gestus como teopoético requer que voltemos mais uma vez a alguns fundamentos da teopoética para, em seguida, relacioná-los às evidências que coletamos da experiência do cinema de Malick. Primeiramente, voltemos a confrontar a religião. No cinema de Malick, há evidências claras sobre a influência da cultura judaico-cristã (desde as figuras dos padres às citações bíblicas ou à construção dos personagens invariavelmente onustos de culpa e aspectos morais). Mas Malick não se posiciona ingenuamente diante dos preceitos eclesiásticos. Há uma dubiedade salutar: a longa sequência da formação do mundo em A árvore da vida recebeu leituras por parte da crítica como uma representação criacionista; teólogos, como Leithart (a quem recorremos algumas vezes), afirma se tratar de uma abordagem evolucionista. Os dinossauros representam o grande objeto de impasse para se definir a que matriz pertence a abordagem de Malick. Afinal, embora os gigantes pré-históricos representem um sinal de evolução na história biológica da Terra, as mais liberais correntes científicas que versam sobre a criação admitem haver um processo evolutivo – incluindo o entendimento de que, antes de sua extinção, os dinossauros deixaram um legado genético que perdura até hoje. “As diferenças são de ordem filosófica”, disse-nos Ruy Carlos de Camargo Vieira, presidente da Sociedade Criacionista de Brasília, durante visita realizada em junho de 2014 às dependências do instituto. Kuschel irá nos lembrar de que os escritores – tomamos a liberdade de abranger os diretores de cinema, devido à semelhança da finalidade do ofício desempenhado, de se contar histórias por meio de arte e linguagem – refletem a complexidade do mundo moderno em suas obras.

Escritores são habitantes de diversos mundos (…) Há muito tempo esse mundo deixou de estar estruturado de forma monolítica: ele é constituído pela concomitância de coisas contraditórias, pela simultaneidade do que antes parecia pertencer a campos diversos da realidade. Daí resultaram amálgamas espirituais novos e desenvolveram-se novas fusões culturais – especialmente no que diz respeito à religião (Kuschel, 1999, p. 215).

Encontramos com frequência nos filmes de Malick esse impulso original derivado das contradições em ambivalência e que, com efeito, envolvem a melancolia formadora e o assombro do porvir. A começar pela própria câmera flutuante da qual falamos; ela propõe um gestual próprio dinamizado por sua potências verticais de voo e de queda. A natureza também nunca está passiva. As águas que correm, os ventos que sacodem as folhas das árvores, o fogo que consome, a vida incidental de aves, cães, insetos recortando diálogos ou as imagens da dura narrativa. Assim vamos buscando imaginar como Terrence Malick cria seus isomorfismos. O mise-en-scène de Malick é construído pacientemente, por meio de uma artesania que respeita os caprichos da natureza e reflete toda essa harmonia e contradição de ordem espiritual, onde começamos a reconhecer os fenômenos dos instantes de Malick, os polos ambivalentes que quase se tocam (Bachelard, 1994, p. 187).

John Toll, diretor de fotografia de Além da linha vermelha, dirá na história oral biográfica do cineasta que “por ser um filme de Terrence Malick, muita gente simplesmente já supõe que todo mundo fica sentado esperando a hora mágica” (Maher Jr., 2014, p. 118, tradução nossa). São horas a fio nas locações, com toda a equipe técnica e atores submetidos a uma espera e a um ensaio natural do convívio dos atores-personagens entre si, como se a própria natureza ou estado de espírito devessem pautar a forma dos acontecimentos quando a câmera for ligada. Jonas está à deriva e espera-se o peixe que irá devorá-lo, para então seguir com a história. O que percebemos é que o interesse de Malick está na qualidade gestual que pretende extrair de seus atores (e de seus diretores de fotografia). O desafio é naturalizá-los. Em Além da linha vermelha, O novo mundo e A árvore da vida, ocasiões em que Malick filmou longas sequências protagonizadas por crianças, Maher Jr. contará que a ordem do diretor era de que a meninada atuasse em looping, interagindo com os adereços de cena, com o solo, com o espaço e entre si sem se importar com o “corte”, como relata Jack Fisk, seu designer de produção em todos esses filmes citados e nos dois seguintes (incluindo Cavaleiro de Copas, 2016).

Terry, como diretor, está sempre aberto e alerta às coisas que estão ao seu redor. Às vezes ele está filmando, um pássaro interessante voa e ele começa a subir em uma árvore e apontar as câmeras em sua direção. Ou então nós elencamos cachorros para o filme e ele os deixa brincando lá fora e os filma longamente, com as crianças interagindo. Algumas vezes são apenas brincadeiras sobre a grama. Para Terry, é um importante simbolismo da vida (Maher Jr., 2014, p. 163, tradução nossa[8]).

Conseguimos, por meio dos relatos e da observação dos filmes de Malick, identificar quatro categorias nas quais se adota um sistema gestual que tanto se repete de filme a filme, como teatraliza essa jornada transcendente que reconhecemos como teopoética. Típicos do cinema do diretor, os momentos de brincadeiras lúdicas. Em todos os filmes, Malick propõe uma infantilização do amor teatralizadada por meio de cenas que não servem a determinado propósito narrativo. São momentos de suavidade ou de distração que cumprem uma função estilística ao remeter à ideia apocalíptica da Nova Jerusalém. “Ele enxugará toda lágrima de seus olhos. Já não haverá morte. Não haverá mais luto, nem clamor, nem sofrimento, pois o mundo antigo desapareceu” (Bíblia, Apocalipse 21:4). Em Terra de ninguém, Kit (Sheen) e Holly (Spacek) se desligam do mundo opressor e da culpa irremediável em seus momentos de dança. No acampamento improvisado em meio à mata, eles colocam o rádio de pilha para dançarem (uma leitura também da urbanidade que carregam consigo); em meio à escapada para as terras más de Montana, a aflição da fuga não lhes cerceia uma valsa debaixo da noite que se impõe.

Mas é em Dias de paraíso que Malick inaugurará os momentos de brincadeira.  Linda (Linda Manz) faz uma amizade com outra garota em meio aos campos de trigo. Elas se divertem capturando gafanhotos. Logo Bill (Gere) entra no jogo, escapando de Linda, correndo e rindo. Linda e Abby (Adams) correm atrás do pavões. Mais uma vez Malick recorre aos encantos do gesto de dança. Em um momento na floresta, Abby imita as garotas de Baker Hall para o Fazendeiro (Shepard), que a observa sentado em um tronco. Sob uma casinha de madeira em meio ao campo, durante uma refeição, Bill lança pedaços de comida em Linda. Ela sai correndo e ele a persegue dando corda à brincadeira. Além da linha vermelha resumirá esses momentos lúdicos à relação de Private Witt (Caviezel) com as crianças nativas da ilha de Guadalcanal, embora ele muitas vezes apenas as observe, como se ele não pertencesse (ou merecesse) estar ali. Smith (Farrell), em O novo mundo, assume postura semelhante. Ele não brinca, também, de certa forma, lhe é negada a Nova Jerusalém. Ele observa Pocahontas (Kilcher). Acompanhamos por uma câmera gravitacional subjetiva a corrida saltitante da bela índia sobre a relva verde. Deitado sobre o chão, Smith tenta pegar os pés de Pocahontas. Ela se desvia. Anda sobre um tronco deitado e joga folhas sobre Smith. Ele sorri. Apenas John Rolde (Christian Bale), o outro homem branco a se apaixonar por Pocahontas, consegue compartilhar das brincadeiras de Pocahontas. Ao arar a terra para a plantação, ele a levanta e a carrega. Em seguida joga seus cabelos para trás, enquanto mastiga um talo da grama. Ao final, Pocahontas se reconecta com a natureza, embora paramentada com um pomposo vestido vitoriano, diverte-se ao se molhar com a água do lago, corre pela grama, rodopia.

Os gestos de inflexão como contração, como ato de estar fora de si mesmo se reproduzem eletrificados pelos jump cuts, que como curtos-circuitos, focam uma lógica intelectual com conexão emocional com uma aura que lembra a infância. A infância como proclamação de pura alegria, representada em gestos infantis, miríades, danças e fogos de artifício explodindo, cujo crepitar sugere uma relação mantida na memória a conflagração original do Big Bang (Chakali, 2014, p. 131, tradução nossa[9]).

A árvore da vida e Amor pleno terão seus momentos lúdicos esparramados ao longo de toda a projeção, o que também alimenta uma percepção mais clara da insuperável crise espiritual dos personagens. Logo em uma das primeiras cenas, Mrs. O’Brien (Chastain) senta-se no balanço de onde observa os filhos correndo com o cachorro e caindo no chão. Ela corre descendo a rua fugindo dos meninos. Mrs. O’Brien molha os filhos com água da mangueira. Eles revidam e a casa é só sorrisos. A rigor, a Nova Jerusalém está claramente definida como aquela casa dos O’Brien, porém, desde que o pai não esteja por lá. As brincadeiras de Mr. O’Brien (Pitt) tolhem todo o sentimento lúdico e espontâneo. Quando ele ensina os meninos a boxear, não há alegria no semblante deles.

Há muita dança em Amor pleno. Marina (Kurylencko) está sempre bailando, na rua, no supermercado, na mata, dentro do apartamento, na piscina. Neil (Affleck) adota uma postura mais indiferente – a exemplo da maioria das figuras masculinas de Malick, uma forma de desvelar o machismo presente na cultura judaico-cristã. Quando Jane (Rachel McAdams) laça a atenção de Neil, a liturgia do ritmo se repete. Sobre os trilhos, ela corre, desequilibra-se graciosamente, ri para ele. As mulheres provocam Neil. Marina mesmo, na ausência do aconchego do seu marido, dança com um galo no colo e o provoca. Marina, sobretudo, está filmada em panorâmica durante quase toda a projeção. A montagem caleidoscópica de Malick aqui ganha um aspecto ainda mais evidente. No momento em que a filha de Marina, Tatiana (Tatiana Chiline), observa o movimento dos brinquedos aéreos do parque de diversões temos ali um símbolo do epicentro das crises de Amor pleno: uma gangorra de sentimentos e de gestos – ora violentos, ora carinhosos.

Tais brincadeiras vão muitas vezes se confundir com um segundo elemento fundamental para a coreografia do cinema de Malick: as carícias. Ao seu modo rebelde à James Dean, Kit demonstra afeto a Holly em Terra de ninguém. Há uma masculinidade que não lhe permite uma expressão gestual mais delicada – afinal, quando Kit tira a virgindade de Holly, o que se vê é apenas ela a terminar de abotoar o vestido. Kit não dá bolas e ela mesma ainda não entende muito bem os códigos do pós-coito. Também demonstrando a força de homem, Kit coloca-se como protetor de sua amada. Ao serem ameaçados ele toma a dianteira, assume uma postura heróica. Em Dias de paraíso, os momentos de Bill e Abby ganham notas mais dissonantes. Deitados sobre o campo de trigo, ele pinça com os dedos alguns fiapos de sua roupa. Já desposada pelo Fazendeiro, ela encontra Bill no rio, o refúgio dos esposos agora amantes. Ele lava os pés dela. Em um riacho, Bill e Abby levantam a barra de suas vestimentas, chutam a água, beijam-se e abraçam-se. Logo ele tenta levantar sua saia, ao que ela, sorrindo, lhe retribui com tapas gentis. Com o coração de Abby mais inclinado para o Fazendeiro, ela permite ser tocada suavemente pelo novo marido e até se refugia, no seu novo ninho de amor, da fúria de Bill, que o levará de volta ao seu ciclo assassino – no começo do filme, Bill, Abby e Linda fogem de um trabalho na mina devido às consequências das atitudes violentas dele.

Essa tensão entre violência e delicadeza permeará toda a obra de Malick, ressaltando aspectos contraditórios que nos permitem a leitura da verticalidade das transações emocionais no cinema do diretor. A guerra de Além da linha vermelha tem vários momentos de respiro, que não deixam de ser pesarosos. Embora os gestos demonstrem certa paz, o espírito inquieto se revela pela voz over atribulada, ressentida ou desesperançosa. São assim os momentos de Private Bell (Ben Chaplin) com sua esposa Marty (Miranda Otto) nos flashbacks que nos transportam de Guadalcanal para a vida urbana e pacífica de casa. Ele a abraça por trás, toca seus seios. Ele deita em seu colo. Em seguida, toca de todas as formas possíveis seu rosto, como que para decorá-lo e carregá-lo como lembrança. Os movimentos que Bell e Marty protagonizam aqui são como se coreografados em uma quase-dança. Ela beija e a afasta, segurando seus braços, a aproxima de volta fugindo ao naturalismo. Os momentos de Smith e Pocahontas em O novo mundo também são peculiares. Eles se tocam para se conhecer no íntimo, conhecer a história de seus povos. O toque que se permite é das culturas. No entanto, Malick insiste em esperar. O toque torna-se sedutor e logo os lábios começam a se aproximar, ainda que não se toquem. Os dedos de Smith correm sobre o braço de Pocahontas até que as mãos se unam. Ele encosta o rosto em seu peito. Ela acaricia sua cabeça. “Tudo está perfeito. Deixa que eu me perca. Flua em mim como um rio”, diz Pocahontas, em off.

Por força temática, talvez, em Amor pleno Malick consegue explorar o sexo como celebração desse louvor proclamado pelo arcabouço gestual de seus personagens. As brincadeiras dos amantes culminam algumas vezes em atos de preliminar sexual. Em meio à briga do casal Marina (Olga Kurylencko) e Neil (Ben Affleck), no apartamento vazio, eles se inspiram a recuperar o primeiro amor. Ele a sufoca gentilmente com o tecido suave e transparente da cortina. Eles se jogam ao chão. Beijam-se. Neil desliza pelo corpo esguio de Marina coberto por uma camisola azul escuro. Sugere-se um ato de sexo oral. Mas o semblante de Marina não reflete mais prazer. A melancolia volta a dominá-la. Neil não está mais lá. As mãos de Marina esticam o curto vestido para baixo e suas pernas se fecham. O sexo não se consuma. Neil reencontra sua antiga paixão, Jane. Marina permite-se um encontro casual íntimo com um rapaz que encontrou na rua, como ato de vingança. Quando os corpos de Neil e de Marina se tocam novamente, ambos estão em uma piscina pública. Há mais gente ao redor. Neil aproxima-se sorrateiramente por trás de Marina. Sussurra em seu ouvido. A câmera de Malick mantém seu compromisso com a suavidade. Os gestos permanecem fluidos, segundo a coreografia do toque gentil, embora a abordagem de Neil seja violenta. Marina fica evidentemente apavorada. Mas em silêncio. Ela afunda-se, recobre-se das águas para tentar fugir do marido transformado em agressor. Logo ela o abraça por baixo do lençol líquido da piscina. Ele retribui. Recomeçam as brincadeiras quando Neil tenta tirar seu biquíni. Eles sobem à superfície. Corte seco para o bar. Ele a evita. Com rispidez, vira o queixo de Neil para que ele a olhe. Na voz over, ela pergunta: “Você me quer como sua esposa?” E voltam as brincadeiras lúdicas, as lembranças triviais superdimensionadas pela coreografia. Neil empurra Marina em um carrinho de supermercado. Entre as estantes, ela o seduz abrindo o casaco. E foge graciosamente dele, evidentemente constrangido, mas com um sorriso. Outro corte, e Marina sai às pressas de casa anunciando ao bairro: “Ele está me matando”. Neil a acompanha a seguir. A violência está sempre presente, mas os gestos mantêm a singeleza da coreografia. A violência emudece a música. Ela se humilha perante o macho. Beija seu pé. Começam juntos a limpar a casa. Logo voltam as brigas. Ele a segura com um dos braços. Com o outro arranca a cortina. A sinfonia suave acompanha a reconciliação. As mãos de Marina socorrem a mão ferida de Neil. Ela beija sua mão ensanguentada. Em seus últimos gestos, entre a cortina preta transparente, Marina evoca: “Meu Deus que guerra cruel. Vejo duas mulheres em mim. Uma cheia de amor por ti. A outra me puxa em direção à terra”.

No lugar onde as figuras gesticulam volatilmente como a inconsistência de areia recai uma impotência diante do compromisso de romper com o arsenal de indecisão dos personagens, nos quais ainda brilha um gesto simples e infantil (…) A espiritualização da Natureza compartilhada pelas esferas do profano e do sagrado se representa no amor (Chakali, 2014, p. 132, tradução nossa).

O amor deixa vestígios de três ordens: fileo (fraternal), eros (erótico-carnal) e ágape (divinal). Os dois primeiros transcorrem por um fluxo horizontal – entre iguais (família, amigos, amantes). Por convenção do imaginário coletivo e de uma tradição da religiosidade oriental, o amor-ágape trata de uma relação vertical: o homem, preso à força gravitacional do eixo terrestre, invoca o ser superior, no alto, no além. Quando Bachelard diz que “a meta é a verticalidade” (Bachelard, 1994, p. 184), conclui que o instante poético possui uma perspectiva metafísica. O gesto do consolo e da compaixão, nossa terceira categoria, seria essa expressão que se descola da horizontalidade humana para alcançar a verticalidade divina. “Na saudade risonha vivida pelo poeta, parece que realizamos a estranha síntese da saudade e do consolo” (Bachelard, 1990, p. 110). Afinal, a compaixão pressupõe uma alteridade. Malick costuma expressá-lo por meio de close-ups nas mãos, como em Além da linha vermelha. Vemos a mãe moribunda que estica a mão para a filha; a garota que toca o coração da mãe e abre um sorriso. O novo mundo exibe gestos de solidariedade, quando os indígenas enfim acolhem Capitão Smith o tocam no peito, o testam mas o dignificam. Em A árvore da vida temos o compêndio mais completo do uso das mãos. No início, diante da perda de R.L., seu filho, Mrs. O’Brien recebe o toque das mãos de uma idosa do convívio íntimo da família e também de uma mulher negra, que também não identificamos. O anonimato pode ser uma potência ao se fazer o bem. Ao final, são as mãos de R.L. em seu reencontro com o Jack (Sean Penn) que o aliviam da culpa do passado. Toca-lhe as mãos, os ombros, a cabeça. Jack retribui o toque a um garoto da vizinhança, que fora vítima de um incêndio. E ainda há o gesto muito significativo da vida primitiva na Terra. Um dinossauro com sua pata toca a cabeça do outro que estava prostrado sobre as pedras de um riacho e o liberta. “Quando a compaixão evolui, o mundo está pronto para o clímax da criação, uma criatura com mãos” (Leithart, 2013, p. 59, tradução nossa).

Em Amor pleno, Padre Quintana (Bardem) visita os enfermos, como parte de sua rotina clerical. Toca-os. A senhora moribunda estica a mão e Quintana a segura. De sua voz em off repete a Lórica de Proteção de São Patrício (“Cristo antes de mim, Cristo depois de mim, Cristo em mim, Cristo acima de mim, Cristo à minha direita, Cristo à minha esquerda, Cristo no coração”). Quintana se reconcilia com Deus: “Brilhe através de nós”. O pedido de perdão de Neil a Marina se dá também pelo gestual. Não há troca de olhares, embora os olhos de Marina pareçam surpresos com o gesto de Neil. Ele se ajoelha diante dela, coloca a cabeça em seu colo. Ela o afaga. “Esse amor que nos ama”, conclui ela.

<em>Neil (Ben Affleck) e Marina (Olga Kurylenko): danças ingênuas a céu aberto em</em> Amor pleno
Neil (Ben Affleck) e Marina (Olga Kurylenko): danças ingênuas a céu aberto em Amor pleno

Do gesto à coreografia

Para uma coreografia da adoração ser completa, resta-nos envolver a questão da musicalidade, o que dá liga a toda a coreografia. A Lacrimosa, do Réquiem for a friend, de Zbigniew Preisner, conduz o maior de todos os gestos de Malick: a criação evolutiva do universo. Sem recorrer a quase nenhum recurso tecnológico (à exceção da recriação dos dinossauros e das criaturas marinhas), Malick recria o início da existência terrena com suas mãos. Ou melhor, as mãos de Douglas Trumbull (reconhecido diretor de efeitos especiais de 2001: Uma odisséia no espaço). Utilizando-se de grandes tanques cheios de líquidos, tintas e demais fluidos e ingredientes químicos, Trumbull promoveu o espetáculo da Terra com ajuda da objetiva em alta velocidade de Emmanuel Lubezki em favor de se louvar a artesania proposta pelo Gênesis. “Tudo foi feito por meio dele; e sem ele nada se fez do que foi feito” (Bíblia, João 1:3).

A concepção musical de Malick se estrutura pela criação de árias e hinos de características de uma liturgia esclesiástica. O canto gregoriano Passion, de Carl Orff, sonoriza a sequência do incêndio da casa do pai de Holly em Terra de ninguém. Revela essa primeira potência poética, através do fogo consumidor, lastro inconsequente da paixão ardente dos jovens foragidos: o som sugere uma opulência, enquanto é vista a destruição material de objetos e memórias daquela casa. O fogo terá significado semelhante em Dias de paraíso no momento das queimadas dos campos de trigo para combater a praga de gafanhotos, quando há uma trilha sonora de suspense e ação dialogando com as imagens contemplativas de Malick. No momento em que ele adota uma câmera na mão e reproduz na montagem a correria e a luta dos trabalhadores para conter o fogo, a música cessa. Há apenas vento e chama. No mesmo filme, a trilha sonora também ocupa lugar de mediadora da ação humana com a natureza. Mais uma vez acompanha uma cerimônia. Neste caso a música de Ennio Moriconne imprime à montagem uma harmonia na trama e em sua aura. “A alegre trilha de Morricone acompanha a dissolução de uma série de imagens que casam Abby e o Fazendeiro não apenas entre eles mas com os próprios ritmos da natureza” (Rybin, 2013, p. 82, tradução nossa[10]). Power notará que a música de Dias de paraíso providencia “oportunidades metafóricas de expressão”. Ele cita especificamente o uso do tema The aquarium, de Camille Saint-Saëns. “Há vários instantes ao longo do filme em que a ideia de um aquário é usada simbolicamente, inclusive quando a música não está sendo executada” (Power apud Patterson, 2007, p. 105, tradução nossa[11]). Power se refere à ideia da fazenda como um paraíso artificial, um ambiente seguro, porém, visto de fora, uma jaula (neste caso, de sentimentos).

Além da linha vermelha incutirá o canto da tribo entoado em seu dialeto próprio (tok pisin) às sinfonias clássicas sacras, um dos marcos da postura devocional que a música exerce no cinema de Terrence Malick. A harmonia de louvor preenche os vazios da solidão de Private Witt na ilha. A música apresenta-se na forma de acúsmetro,[12] abordando a beleza natural do cenário e dos nativos até enxergarmos a formosura da dança e das vozes a capella. O uso da música aqui está intimamente ligada à diegese sonora do complexo fílmico. Como fizera em Dias de paraíso, seu trabalho sonoro mais complexo em significados, Além da linha vermelha apresentará um claro avanço tecnológico, dado o avanço do sistema Dolby, aliando a música a uma colagem de sons de elementos da natureza, criando uma atmosfera psicológica e metafísica ao redor das paisagens e dos personagens.

Não há coreografia sem música no cinema de Malick; até o silêncio na trilha ressoa. A musicalidade completa a coreografia. Nos sons mudos, os gestos ganham novos significados, novas potências e reforçam a envergadura poética de seu discurso imagético. Tarkovski diria que, para o universo poético do filme, a música deve cumprir um papel maior do que a de intensificadora do impacto da cena. Ela deve renovar a imagem, produzir uma inflexão lírica e até providenciar uma distorção do material visto. “Ao mergulharmos no elemento musical a que o refrão dá vida, retomamos inúmeras vezes as emoções que o filme nos despertou, e, a cada vez, a nossa experiência é aprofundada por novas impressões” (Tarkovski, 1990, p. 190).

O próprio cinema está dotado de uma particular natureza rítmica em sua teoria. Como a imagem, os diálogos e a montagem, a música enaltece a ritmicidade da trama, como irá notar Laurent Guido. Para ele, a forma como Malick se utiliza do imaginário da pastoral americana e dos traços culturais da sociedade judaico-cristã anglo-saxônica transforma seu arcabouço de referências sonoras em um sistema de representação cultural em todos os seus filmes – até O novo mundo, pelo menos.

Evocar seriamente a suposta musicalidade do cinema, mais precisamente a que diz respeito aos elementos visuais, retorna com o objetivo de abordar a noção de ritmo que regula a ordem de movimento. A esse parâmetro é atribuído um papel central no último filme de Malick [O novo mundo]. Em grande parte, a singularidade por si só se origina efetivamente na maneira particular de entoar o fluxo narrativo por um ritmo amplo e constante. Se a sucessão visual parece à primeira vista ter uma certa descontinuidade, se estabelece principalmente por viajar nos planos que delineiam o espaço de digressão (um parênteses na história que está sendo contada), a instalação é de fato governada por princípios estilísticos visando imprimir um movimento uniforme, homogêneo ao conjunto das imagens (Guido, 2007 p. 56, tradução nossa[13]).

O resultado, conforme Guido, é uma forma fluida, quase orgânica em que os métodos de corte convencionais com base nos planos de linearização espaço-temporais não são sistematicamente rejeitados (daí o uso frequente de reverse shot em blocos sequenciais facilmente identificáveis…), mas são integrados em uma composição audiovisual cuja lógica discursiva se revela complexa tanto pela multiplicidade de informações e pontos de vista quanto pela unidade subjacente constantemente sugerida pela sucessão harmoniosa dos planos. Guido irá se ater também à herança sempre presente da estética pós-romântica dentro do cinema hollywoodiano, por meio da influência de Wagner sobre os modos de construção do espetáculo de massa. “É necessário assinalar as linhas existentes entre o romantismo alemão e a tradição especificamente americana à qual Terrence Malick faz referência desde o início de sua carreira” (Guido, 2007, p. 58, tradução nossa[14]).

A música em Malick evoca, portanto, como que uma cerimônia religiosa, uma liturgia com aspectos de adoração. “Venha, espírito, cante a história do nosso povo”, clama Pocahontas à sua Terra-mãe em um plano contra-plongée no qual ela ergue os braços ao céu azul. Havemos de notar que a volta de Malick constantemente a esse tema, um lugar-comum da prece legada ao firmamento, não busca apenas uma representação, senão apontar uma direção de seu gesto de louvor – um cântico da história de seu próprio povo –, a expressão de uma teopoética, uma vez que assume suas vias de contradição e de elevação.

 <em>Detalhe do toque das mãos de Neil (Ben Affleck) e Marina (Olga Kurylenko) em</em> Amor pleno
Detalhe do toque das mãos de Neil (Ben Affleck) e Marina (Olga Kurylenko) em Amor pleno

* Guilherme Lobão é jornalista e mestre em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade de Brasília (UnB).

 

Referências

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WILDER, Amos Niven. Theopoetic: theology and the religious imagination. Philadelphia: Fortress Press, 1976.

 

Notas

[1] Ensaio adaptado da dissertação de mestrado Pegadas de dinossauros: uma expedição teopoética pelo cinema de Terrence Malick, defendida em dezembro de 2015, na UnB.

[2] O termo alemão foi cunhado pelo filósofo e etnolinguista alemão Wilhelm von Humboldt como definição de uma cosmovisão ou visão de mundo.

[3] São Tomás de AQUINO, Summa theologiae, g IIg, q. 102. a. 2, ad 2, cit. apud Pie DUPLOYÉ, La religion de Péguy, p. X-XII.

[4] Segundo Wilder (WILDER, Amos Niven, Theopoetic, Philadelphia: Fortress Press. 1976), Stanley R. Hopper teria cunhado o termo teopoética e suas demais derivações (teopoesia e teomitologia) pela primeira vez no discurso “The literary imagination and the doing of theology”, proferido na referida sociedade e posteriormente publicado no livro The way of transfiguration: religious imagination as theopoiesis. Eds. R. Melvin Keiser and Tony Stoneburner. Louisville: Westminster/John Knox, 1992. 207-29.

[5] Este é o titulo original do livro Os escritores e as escrituras: retratos teológicos-literários, de Karl-Josef Kuschel, que utilizamos ao longo da pesquisa.

[6] No original: “Theopoetics is an active, embodied perspective, generating language that reveals some of the nature of the divine in this world, making it easier to see the divine in the everyday. It is not prescriptive and does not presume to have encapsulated the full nature of God”.

[7] Termo criado pelo dramaturgo e poeta Antonin Artaud e utilizado por Deleuze para se referir às vibrações e choques, que eclodem dentro do sistema da imagem-movimento.

[8] No original: “Terry as a director is always open and aware of the stuff that’s around him. Sometimes we’ll be shooting a film anda n interesting bird will fly by and he’ll start crawling on a tree and directing the câmeras toward that bird. Or we cast dogs for this film and then He would let the dogs play outside and shoot a loto f footage of them interacting with the kids. Some of it it is just playing in the Grass. For Terry, it’s an important symbol of life”.

[9] No original: “L’inflexion gestuelle comme contraction de l’être hors de soi est définitivement passée dans le montage électrisé par des jump cuts qui, tels des courts-circuits privilégiant le raccord émotionnel sur la logique intellectuelle, font sautiller d’une strate à l’aure l’enfance rememorée. L’enfance comme ex-clamation et purê joie d’ek-sister se ventile alors en myriades enfantines de gestes, danses et jeux explosant en feux d’artifices dont le crêpitement aurait gardé en memoire l’embrasement originel du Big Bang”.

[10] No original: “Morricone’s joyous score acompanies the dissolve to a series of images that marry Abby and the Farmer not only to each other but to the very rhythms of nature”.

[11] No original: “There are several instances throughout the film when the Idea of an aquarium is used symbolically, even when the piece of music itself is not being played”.

[12] Chion utiliza o termo para referir-se à voz “sem corpo” no cinema. Uma ilustração bem didática que ele usa é o som de pisadas de bota ouvido em uma cena na qual não aparece ninguém andando de botas. A sugestão sonora é de que aproxima-se alguém caminhando, permitindo a formação de uma expectativa ou imagem mental do que ainda há de aparecer na tela. Cf. CHION, Michel. The voice in cinema. New York: Columbia University Press, 1999.

[13] No original: “voquer sérieusement la musicalité supposée du cinéma, plus précisément celle qui concernerait les éléments visuels, revient en fin de compte à aborder la notion de rythme qui règle l’ordonnance du mouvement. Ce paramètre se voit attribuer une fonction centrale dans les derniers films de Malick. Pour une large part, la singularité de ceux-ci s’origine effectivement dans leur manière particulière de scander le flux narratif par une rythmique ample et régulière. Si la succession visuelle affiche de prime abord une certaine discontinuité, établie le plus souvent par des plans en travelling qui esquissent l’espace diégétique, le montage y est en effet gouverné par des principes stylistiques visant à imprimer un mouvement homogène à la suite des images”.

[14] No original: “Il est nécessaire de signaler les liens existant entre le romantisme allemand et une tradition poétique spécifiquement américaine à laquelle Terrence Malick se réfère depuis ses débuts”.