Ano XI 0201
dossiê
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ALEJANDRO GONZÁLEZ IÑÁRRITU E A RENOVAÇÃO DO CINEMA

Resumo: Partindo do princípio de que a evolução da narrativa cinematográfica é decorrente de uma constante barganha entre tradição e novidade, o artigo propõe o exame do entrelaçamento de duas estratégias que se destacam na renovação do cinema ficcional contemporâneo: ordenamento temporal não-linear e multiplicidade de narrações. Para tanto, foram analisados os quatro primeiros filmes de Alejandro González Iñárritu – Amores brutos (Amores perros, 2000), 21 gramas (21 grams, 2003), Babel (2006) e Biutiful (2010) – utilizando método baseado em concepções cognitivistas neoformalistas propostas por David Bordwell, complementado por aportes do crítico da cultura Gilles Lipovetsky.

Palavras-chave: Narrativa fílmica; cinema contemporâneo; globalização.

Abstract: Assuming that the evolution of narrative film is the result of a continuous transaction between tradition and novelty, the article proposes the study of the combination of two strategies that stand out in the renewal of contemporary fiction cinema: non-linear temporal ordering and multiplicity of narrations. Therefore, the first films of Alejandro González Iñárritu were analyzed – Love’s a bitch (Amores perros, 2000), 21 grams (2003), Babel (2006) and Biutiful (2010) – using method based on neoformalist cognitive conceptions proposed by David Bordwell, complemented by contributions of the culture critic Gilles Lipovetsky.

Keywords: Film narrative; contemporary cinema; globalization.

 

<em>El Chivo é um ex-guerrilheiro que vive como matador de aluguel em </em>Amores brutos
El Chivo é um ex-guerrilheiro que vive como matador de aluguel em Amores brutos

O filme deve, cada vez mais, encontrar o seu público, e, acima de tudo, deve tentar, cada vez, uma síntese difícil do padrão e do original: o padrão se beneficia do sucesso passado e o original é a garantia do novo sucesso, mas o já conhecido corre o risco de fatigar enquanto o novo corre o risco de desagradar.
Edgar Morin

O cinema é primordialmente uma arte voltada para grandes audiências e também uma manifestação cultural complexa. As produções exigem que os filmes tragam alguma novidade, um mínimo de individualidade, que dialoguem com as questões estéticas e morais de seu tempo, mesmo seguindo preceitos de algum gênero ou fórmula mercadológica. Em boa parte de sua manifestação contemporânea, o cinema se mostra alinhado às transformações do capitalismo, do consumo e dos meios de comunicação. A narrativa fílmica está sendo renovada sob forte influência das complexas mudanças político-econômicas suscitadas pela globalização, aliadas ao impacto da tecnologia digital. Uma concentração inédita de alterações significativas em todos os elos da cadeia produtiva – da produção ao consumo – dinamiza o audiovisual, provocando mudanças estéticas, inclusive, no modo de se narrar.

O processo de globalização proporcionou o contato direto entre diferentes culturas e o indireto, por meio da difusão de informações com o desenvolvimento dos meios de comunicação. Esses contatos, por sua vez, provocaram uma interpenetração cada vez mais ampla do imaginário de diferentes países. Se, por um lado, a interpenetração levou à homogeneização e americanização de produtos e culturas, por outro, tornou-se um importante vetor de afirmação da identidade cultural dos países para com o resto do mundo, independentemente do tamanho de suas economias. O embate dessas forças contrárias produziu uma variedade de produtos culturais cada vez mais mestiçados, transculturais e multiformes.

A breve e mutante história da sétima arte é marcada pela intensa mescla de escolhas estéticas que seguem o padrão com outras mais originais. Acompanhando essa tendência da área, realizadores contemporâneos exploram os limites a que se pode chegar, ao se combinarem algumas estratégias articulatórias utilizadas pelo cinema de vanguarda da modernidade com formas tradicionais do cinema clássico, na busca por narrativas envolventes que expressem a complexidade dos dias atuais. O resultado dessa combinação gera narrativas fílmicas que tendem a misturar convenções de gêneros ao contar histórias simultaneamente embaralhadas no tempo, provocando diluição do encadeamento causal e falta de distinção entre ações principais e secundárias. Filmes com essas características valorizam o sensorial e o emocional na construção das tramas e acabam por engajar o espectador em um esforço de intelecção ainda mais intenso em sua compreensão. No território de experimentação dos limites, cânones da narrativa clássica são subvertidos lançando mão de repertório de desconstrução da narrativa do cinema moderno, sem renunciar à comunicabilidade com um público amplo. Dessa forma, o cinema contemporâneo promove um de seus laboratórios de inovação mais dinâmicos no qual se destaca a obra do mexicano radicado nos Estados Unidos Alejandro González Iñárritu, laureado em dois anos consecutivos com o Oscar de Melhor Diretor, em 2016, por O regresso (The revenant), e, em 2015, por Birdman ou a inesperada virtude da ignorância (Birdman or the unexpected virtue of ignorance).

Em parte expressiva da cinematografia recente, a clara diferenciação entre a ação principal e as complementares foi estilhaçada em uma narrativa marcada por dispersão, descontinuidade e fragmentação dos padrões de narração. Uma das principais tendências dessa renovação combina, em sua elaboração, aspectos de multiplicidade e complexidade visando incrementar sua imprevisibilidade e provocar um engajamento mais ativo do espectador na compreensão das histórias apresentadas. Filmes que apresentam essas características foram enquadrados por Gilles Lipovetsky e Jean Serroy (2009) em uma tipologia denominada multiplex. Essa vertente do cinema é marcada pela incorporação de aspectos característicos da hipermídia[1], tais como: fragmentação, hibridização, não-linearidade, excesso de informação e alta velocidade dos fluxos de trocas.

Duas das estratégias mais recorrentemente adotadas pelo cinema multiplex reduzem a previsibilidade da narrativa por meio da associação de multiplicidade de narrações com ordenações temporais não-lineares. A combinação dessas duas estratégias no processo de renovação da linguagem do cinema provoca o afrouxamento da relação de causalidade entre as cenas. O espectador, ao percorrer o trajeto fragmentado e errático da trama, é demandado a fazer um esforço muito mais intenso para acompanhar a narrativa do que o exigido pelo cinema clássico, tendo que investir mais energia para interpretar os fragmentos espaço-temporais recebidos e ordená-los no processo de inferir a história. A coerência da narrativa é restabelecida pela utilização de elementos estruturantes, fios condutores, que viabilizam a legibilidade e a fruição do discurso audiovisual.

A proposta desse estudo é analisar um conjunto restrito, porém expressivo, de filmes ficcionais contemporâneos da indústria cinematográfica hegemônica que apresentem multiplicidade de narrações e não-linearidade, e que abordem questões relacionadas à globalização. Com base nesse critério, a escolha do corpus recaiu sobre alguns dos títulos de Alejandro González Iñárritu, tanto por suas características estéticas, bem como pelas temáticas abordadas. Seus quatro primeiros filmes – Amores brutos (Amores perros, 2000), 21 gramas (21 grams, 2003), Babel (2006) e Biutiful (2010) – apresentam uma combinação singular das manipulações formais de instâncias da narrativa cinematográfica e tratam dos principais temas da globalização na sociedade contemporânea: movimentos populacionais, multiculturalismo, desterritorialização, presença da mídia e da tecnociência no cotidiano.

A reflexão proposta pretende examinar, na obra inicial de Iñárritu, variadas combinações entre estratégias de ordenação temporal não-linear e de multiplicidade de narrações, que são utilizadas pelo cinema ficcional contemporâneo para emular, em sua narrativa, aspectos de pluralidade e complexidade presentes na globalização. Os filmes do diretor apresentam multiplicidade em sua narração sob diversos aspectos – multiplot ou multitramas e multiprotagonismo. Esses filmes também apresentam formas distintas de organização temporal não-linear – episódica permeada; errática com ordenação emocional; cíclica com linearidade interna nos enredos e não-linearidade entre os múltiplos plots; e com flashforward estruturante.

A forma da organização discursiva da “trilogia da morte” de Iñárritu (Amores brutos, 21 gramas e Babel) enquadra-se em um modo narrativo fílmico definido por David Bordwell (2008) como “narrativa de rede” (network narrative), no qual encontros acidentais ao acaso engatilham conexões inesperadas entre personagens não relacionadas, enredando uma teia complexa. Esse modo narrativo é uma marca do cinema transnacional atual.[2]

A análise dos filmes de Iñárritu objetiva integrar forma e conteúdo, abordar a narrativa principalmente como processo sob a óptica neoformalista-cognitivista na acepção de David Bordwell (1985; 2005; 2006; 2008), complementada pela crítica da cultura aportada principalmente por Gilles Lipovetsky (2009). Em certos momentos, foi necessário investigar a narrativa como estrutura e destacar a função das partes na construção do todo. Paralelamente, a narrativa foi abordada como representação e a análise enfocou as conexões do mundo diegético da história com a realidade.

Entretanto, antes de um aprofundamento na análise dos filmes em foco, faz-se necessária uma reflexão sobre a utilização de estratégias de multiplicidade e não-linearidade na narrativa audiovisual contemporânea e seu impacto nos espectadores.

Multiplicidade de narrações, não-linearidade e engajamento do espectador

Um dos aspectos marcantes das transformações experimentadas pela narrativa contemporânea é o da multiplicidade que, segundo Italo Calvino (1997, p. 117-138), configura-se como um conjunto de “redes de conexões entre os fatos, entre as pessoas, entre as coisas do mundo” (Calvino, 1997, p. 121). Com muita propriedade, Arlindo Machado faz uma conexão sintética da acepção de Calvino com o universo audiovisual dos nossos tempos:

Se for possível reduzir a uma palavra o projeto estético e semiótico que está pressuposto em grande parte da produção audiovisual mais recente, podemos dizer que se trata de uma procura sem tréguas dessa multiplicidade que exprime o modo de conhecimento do homem contemporâneo. O mundo é visto e representado como uma trama de complexidade inextricável, em que cada instante está marcado pela presença simultânea de elementos os mais heterogêneos e tudo isso ocorre num movimento vertiginoso, que torna mutantes e escorregadios todos os eventos, todos os contextos, todas as operações (2008, p. 238).

A profusão de sons e imagens, acelerada em permanente fluxo de combinação e recombinação, dissolveu as fronteiras materiais e formais entre suportes e linguagens. Parte dessas figuras mutantes em movimento são, inclusive, reciclagens de material proveniente dos meios de comunicação de massa, cujas origens se perdem na composição desse tecido discursivo complexo. Trata-se de uma estética marcada pela saturação, pelo excesso, com máxima concentração de informação em um mínimo de espaço-tempo. Lipovetsky e Serroy (2009) defendem que a “imagem-movimento”[3] e a “imagem-tempo”,[4] propostas por Gilles Deleuze (1983; 2007), já não conseguem abarcar algumas das principais tendências do audiovisual contemporâneo e propõem acrescentar uma nova categoria: a “imagem-excesso”, que busca fazer o espectador balançar em um fluxo de imagens-sensação e que não enfatiza seu engajamento por meio de um encadeamento racional.

Se é possível falar de hipercinema é porque ele é o do nunca bastante e do nunca demais, do sempre mais de tudo: ritmo, sexo, violência, velocidade, busca de todos os extremos, e também na multiplicação dos planos, montagem-corte, prolongamento dos filmes e saturação da faixa sonora (Lipovetesky e Serroy, 2009, p. 67).

Os excessos estéticos do cinema contemporâneo relativizam um dos princípios fundantes da narrativa clássica que é o encadeamento de cenas em uma relação de causalidade. A justaposição das cenas de um filme orientada por princípio causal intervém na configuração das principais instâncias constitutivas da narrativa: o tempo, o espaço, as personagens e a narração. Em geral, o público está habituado com narrativas que têm uma construção linear e sente satisfação ao acompanhar o desenrolar progressivo das tramas. O espectador sente-se parte das histórias ao entender o que contam.

Quando um filme rompe a ordenação causal esperada e dificulta – ou mesmo impede – que a audiência usufrua da “hospitalidade” que essa experiência narrativa oferece, a tendência inicial é o estranhamento. Em uma parcela crescente de filmes recentes, a compreensão clara da história deixou de ser uma exigência e de significar eficiência narrativa. A disseminação em grande escala da cultura do divertimento do cinema de ação, com suas imagens-excesso e sua preponderância do sensorial-emocional sobre a intelecção, trouxe um estímulo involuntário às experimentações narrativas. Filmes com essas características cultivam no público uma sensibilidade receptiva a construções menos comprometidas em seguir o encadeamento causal. Abriram-se possibilidades de se testar outros padrões narrativos que procurassem levar o espectador a vibrar para além do que está sendo narrado, como assinalam Lipovetsky e Serroy, ao comentar o cenário atual do audiovisual: “Não mais a direção linear da narrativa, mas uma rede complexa e multicultural na qual as pessoas se perdem numa trama feita de flashes descontínuos e impressões sucessivas” (2009, p. 101).

Alguns realizadores contemporâneos exploram os limites a que se pode chegar, ao assimilarem estratégias narrativas avessas ao cinema clássico, tais como: minar o encadeamento causal, enevoar a distinção entre ações principais e secundárias, misturar as convenções dos gêneros, contar várias histórias simultaneamente embaralhadas no tempo e, mesmo assim, ser capaz de urdir uma narrativa envolvente e apta a expressar a complexidade da atualidade. Nessa exploração de possibilidades narrativas menos acomodadas às normas convencionais e mais ousadas na valorização de conexões sensoriais e emocionais, o cinema acaba por engajar o espectador em um esforço de intelecção ainda mais intenso em sua compreensão.

Duas das principais estratégias utilizadas para revigorar a narrativa cinematográfica estão associadas a duas instâncias: à narração, a maneira de contar a história com multiplicidade de enunciações; e ao tempo narrativo, a ordem dos acontecimentos da história apresentados pela trama. A multiplicidade faz-se presente nas narrativas contemporâneas por meio da narração de mais de uma história em um mesmo filme (multiplot) ou de histórias com vários personagens principais (multiprotagonistas), mas, também, por variações na ordenação temporal na trama. E chega-se a representações complexas da realidade por meio da combinação dessas pluralidades de narrações e multiplicidades temporais.

Vários diretores têm experimentado formas alternativas de combinar os tempos da trama e da história. Quentin Tarantino dinamizou bastante a relação entre o público e o filme quando concebeu uma noção de tempo não-linear em Pulp fiction – tempo de violência (Pulp fiction, 1994). Outros realizadores ousaram estruturar filmes na ordem cronológica inversa, em que a trama apresenta a fábula começando com seu último evento e segue na “contramão” da linha do tempo, até o encerramento com o seu primeiro acontecimento, como em Amnésia (Amnesia, Christopher Nolan, 2000) e Irreversível (Irreversible, Gaspar Noé, 2002). Iñárritu optou por exigir ainda mais do espectador quando montou 21 gramas (21 grams, 2003) com os eventos encadeados por um critério emocional de forma tão embaralhada no tempo que não se consegue detectar um padrão de ordenação das cenas.

Outra variação de ruptura da linearidade por meio de manipulação temporal é a utilização do flashforward, um salto repentino à frente. O flashforward também opera nas discrepâncias advindas da dupla temporalidade da narrativa. A antecipação tem caráter provocador ao “deixar-nos vislumbrar o desfecho antes de nós captarmos todas as cadeias causais que levam a ele” (Bordwell, 1985, p. 79, tradução nossa).[5] Dessa forma, suscita a curiosidade e engaja o público no esforço de relacionar o trecho antecipado com os outros eventos da trama e ordená-lo na busca do entendimento da fábula.

Recentemente, nota-se um aumento na utilização de flashforward logo na abertura dos filmes, apresentando, de início, uma cena marcante sem, contudo, explicá-la. Iñárritu abre Amores brutos com um flashforward da colisão de automóveis que é o entroncamento do filme, a única cena na qual os três protagonistas se encontram no mesmo tempo e espaço. Esse evento repete-se quatro vezes no filme, permitindo ao espectador elucidar as relações temporais das três tramas que compõem a narrativa.

A estratégia de ruptura da temporalidade e da causalidade linear por meio de uma antecipação (flashforward) possui efeito dinamizador da narrativa ao engajar o espectador no desafio de ordenar os acontecimentos para compreender a história. Na narrativa clássica do cinema, a aparição de um evento antes do seu lugar normal na cronologia, o flashforward, é bem menos comum do que o retorno ao passado, flashback.

Essencialmente, o flashback e o flashforward são igualmente constituídos por uma discrepância entre a ordem dos eventos na história e no enredo, mas desempenham funções diferentes, com impactos distintos na estrutura fílmica. O flashback, apesar de poder gerar suspense por meio do retardamento na realização de acontecimentos, tem basicamente a função de complementar informações sobre a intriga ou os personagens. Volta-se no tempo para oferecer uma nova leitura, explicar. Por sua vez, o flashforward desempenha a função de provocar a curiosidade do espectador. Projeta-se no futuro para suscitar questionamentos de como um personagem chegou àquela situação ou o que significam aquelas imagens que não fazem sentido. Portanto, o flashback e o flashforward têm funções quase opostas: enquanto um explica e responde, o outro questiona e provoca.

O flashback foi bem mais utilizado no cinema clássico e parte do moderno, por se tratar de uma estratégia narrativa que pode ser ancorada na subjetividade dos personagens. Dessa forma, conecta-se internamente na trama, mantendo o ilusionismo da onipresença e onisciência do espectador. Por outro lado, o flashforward é um recurso que explicita uma intervenção externa direta do autor na narração e, por isso mesmo, é mais utilizado no cinema de arte moderno e contemporâneo, os quais permitem, e até mesmo valorizam, a intrusão autoral para “esquentar” a interação do espectador com o filme em contraposição ao realismo buscado pelo cinema clássico.

Outras estratégias, bastante utilizadas nos últimos anos para incrementar a imprevisibilidade da narrativa, não atuam na instância temporal, mas na da narração. A que está mais em voga é a da multitrama, em que múltiplos enredos (multiplot) são abordados com o mesmo peso narrativo. Dessa forma, esses filmes contam duas, três ou mais histórias entrecruzando personagens com diferentes graus de ligação ou nenhuma conexão. O filme marco dessa tendência é Short cuts – Cenas da vida (Short Cuts, de Robert Altman, 1993), em que um grupo diversificado de moradores de Los Angeles se cruzam ao acaso. O mesmo diretor havia realizado um filme de estrutura similar quase 20 anos antes, Nashville (Nashville, Robert Altman, 1975). Entretanto, Nashville não teve o reconhecimento merecido na época do lançamento por ser um filme esteticamente à frente de seu tempo. Short cuts ganhou notoriedade por estar mais sincronizado com a percepção da sociedade no momento que surgiu.

A composição em mosaico dos filmes multiplot pode oferecer uma representação multifocal de uma rua, como em Magnólia (Magnolia, de Paul Anderson, 1999); de uma cidade,[6] a Cidade do México de Amores brutos de Iñárritu; ou de todo o planeta, como em Babel, também de Iñárritu. “São filmes que traduzem a fragmentação e as novas segmentações do mundo através da heterogeneização estrutural da narrativa” (Lipovetsky; Serroy, 2009, p. 98). Alguns cineastas apresentaram seus filmes com múltiplas tramas de uma forma mais ousada dividindo a tela e projetando histórias diferentes simultaneamente, como em Time code (Time Code, Mike Figgis, 2010) que repartiu a tela em quatro para exibir suas quatro tramas.

Outra variação bastante interessante da estratégia de imprimir multiplicidade à narração é, ao invés de mostrar várias histórias simultâneas, apresentar apenas um enredo, só que, por diferentes pontos de vista de várias personagens principais com o mesmo peso narrativo, constituindo o multiprotagonismo. Foi como fez, por exemplo, Ang Lee ao revelar as relações afetivas entre pais e filhos de duas famílias vizinhas convivendo com o adultério em Tempestade de gelo (The ice storm, 1997). Iñárritu, em 21 gramas, também contemplou com o mesmo peso narrativo as três personagens envolvidas em uma história de vingança relacionada com um transplante de coração – o receptor do órgão, a viúva do doador e o responsável pela morte do doador.

Se elementos que sustentam a legibilidade da narrativa – encadeamento causal e ordenação temporal linear – são alterados, relativizados, ou tornam-se muito complexos, como acontece com a narrativa multiplex, faz-se necessário compensar de alguma forma essas lacunas e excessos para que o espectador continue acompanhando o fluxo do discurso audiovisual. Se não há mais um único protagonista para se acompanhar da crise à resolução da trama e a relação de causa e efeito entre as cenas ficou nebulosa ou mesmo desapareceu, outros recursos precisam ser aplicados para manter a unidade da narrativa. O primeiro desafio é conseguir estabelecer coerência, apesar do afrouxamento ou rompimento da causalidade. A solução estruturante mais utilizada é estabelecer fios condutores – os “fios de Ariadne” do labirinto da narrativa cinematográfica multiplex – que permitam ao espectador fazer conexões e orientar-se no trajeto da narrativa.[7]

Os fios condutores podem ter naturezas bem diferentes e origens em todas as instâncias constitutivas da narrativa. Um fio condutor pode estar relacionado com uma ação, ser um evento; pode estar ancorado no espaço, ser um lugar; ou pode ser deflagrado no tempo, pelo compartilhamento de um momento. A amarração pode se dar também pela combinação de fios condutores de naturezas distintas, ou, mesmo, constituído por elementos mais sutis. Exemplo já citado, Iñárritu usa a repetição de um acidente de carro como um dos principais fios condutores para orientar a fruição da narrativa em Amores brutos, permitindo que o espectador relacione o tempo das três tramas do filme.

David Bordwell destaca a relevância da repetição como princípio geral para garantir a inteligibilidade na experimentação em Hollywood: “quão mais complexo são os dispositivos, mais redundante a narrativa precisa ser”[8] (2006, p. 77-78). A repetição coloca-se como recurso indispensável no preenchimento das lacunas abertas pela flexibilização do encadeamento causal e oferece informações para que o espectador seja capaz de estabelecer as conexões necessárias para a compreensão das histórias dos filmes. A recorrência mais comum verificada é a de ações que revelam novos aspectos e perspectivas em cada reapresentação, facilitando o entendimento da narrativa como um todo. Também é usual o emprego de repetição de materiais narrativos de outra natureza, como os temas – solidão, incomunicabilidade, conflito de classes etc. – na amarração dos vários enredos. Além da repetição, outra força aglutinadora da narrativa multiplex é o magnetismo do paralelo entre as múltiplas tramas que estimula o espectador a, constantemente, buscar associações entre personagens, objetos, situações e ideias.

A relevância do exame minucioso da obra de Iñárritu não reside apenas na consistência com que articula algumas das estratégias narrativas mais inovadoras adotadas no cinema ficcional, mas também no fato de criar representações sobre aspectos cruciais da complexidade da sociedade atual. Em sua filmografia, destacam-se as influências do sistema econômico sobre as interações pessoais, como, por exemplo, o impacto das relações de trabalho globalizadas na existência de indivíduos comuns. Nesse sentido, visando integrar a maneira de se narrar com seu teor, a seção seguinte versa sobre o relacionamento entre forma e conteúdo nos filmes de Iñárritu.

<strong>Figura 1 –</strong> <em>El Chivo é um ex-guerrilheiro que se afastou da família e vive isolado como matador de aluguel em</em> Amores brutos.
Figura 1 – El Chivo é um ex-guerrilheiro que se afastou da família e vive isolado como matador de aluguel em Amores brutos.
<strong>Figura 2 –</strong> <em>Amelia desespera-se perdida em deserto na fronteira entre Estados Unidos e México antes de ser deportada em</em> Babel.
Figura 2 – Amelia desespera-se perdida em deserto na fronteira entre Estados Unidos e México antes de ser deportada em Babel.
<strong>Figura 3 –</strong> <em>Chieko vaga sozinha pelas ruas de Tóquio, transtornada por questões afetivas, em episódio de</em> Babel.
Figura 3 – Chieko vaga sozinha pelas ruas de Tóquio, transtornada por questões afetivas, em episódio de Babel.
<strong>Figura 4 –</strong> <em>Uxbal intermedia mão de obra ilegal enquanto busca acomodação para seus filhos em Barcelona no filme</em> Biutiful.
Figura 4 – Uxbal intermedia mão de obra ilegal enquanto busca acomodação para seus filhos em Barcelona no filme Biutiful.
<strong>Figura 5 –</strong> <em>Octavio quer fugir com a cunhada</em> <em>e começar uma vida com dinheiro ganho em rinha de cães em</em> Amores brutos.
Figura 5 – Octavio quer fugir com a cunhada e começar uma vida com dinheiro ganho em rinha de cães em Amores brutos.
<strong>Figura 6 –</strong> <em>Paul larga a mulher para viver</em> <em>paixão pela viúva do doador de seu coração transplantado e é narrador intradiegético em</em> 21 gramas.
Figura 6 – Paul larga a mulher para viver paixão pela viúva do doador de seu coração transplantado e é narrador intradiegético em 21 gramas.

Forma e conteúdo na obra de Iñárritu

O exame da primeira narrativa de rede do diretor, o multiplot e multiprotagonista Amores brutos (2000), destaca a força aglutinadora suscitada pela expectativa de que situações, ações e personagens tendam ao paralelismo entre elas, o que estimula o espectador a estabelecer conexões e preencher algumas lacunas deixadas pelo afrouxamento da causalidade no encadeamento da trama. Conforme verificou-se na análise da estrutura do filme, dividida em capítulos permeados, a coesão do paralelismo é dinamizada pela combinação tanto de estratégias narrativas que conformam a macroestrutura da trama, como outras que operam na microcomposição das cenas, compondo um arranjo em que seus efeitos se potencializam.

A investigação mostrou que abrir uma cena em plano de detalhe, assim como começar o filme com um flashforward, são estratégias narrativas provocadoras, que levantam perguntas, em vez de prover informações explicativas, incitando uma postura mais ativa da audiência. Essas duas estratégias também operam em consonância com a de postergar a apresentação das personagens principais, já que estimulam o espectador a fazer inferências, elaborar e testar hipóteses no esforço de apreender quem são os protagonistas e como se relacionam com as personagens secundárias. Tais estratégias formais são mais do que meros artifícios para prender a atenção do espectador, pois urdem uma teia narrativa coesa que revela um cenário urbano multifacetado marcado pelas experiências de personagens contraditórios, complexos, pertencentes a diversos extratos sociais.

Por sua vez, a estratégia narrativa radical adotada por Iñárritu na tessitura de seu segundo filme, 21 gramas (2003) – também multiprotagonista, mas com apenas um enredo –, rompe o encadeamento causal e temporal de um jeito tal que o espectador tem dificuldades em decifrar seu padrão de ordenação e adota a emoção como principal fio condutor de sua organização aparentemente aleatória. A evolução da trama tende a apresentar as consequências antes das causas das ações, gerando choques a cada corte de uma cena para outra, subvertendo as expectativas de relação de causa e efeito e continuidade entre ações consecutivas. As emoções das personagens, destacadas pela predominância de planos fechados com pouca profundidade de campo, reverberam uns nos outros por meio da montagem.

Com o objetivo de viabilizar a absorção da complexidade da estrutura de 21 gramas, o diretor lançou mão de recurso articulatório inédito em sua obra, a adoção de um narrador intradiegético. As reflexões de Paul (Sean Penn, figura 1) no leito de morte estabelecem o ponto de vista do fluxo de consciência que elucubra a história do filme, sem comprometer a imprevisibilidade da trama. Gradualmente, o espectador vai identificando se os eventos acontecem antes, durante ou depois do atropelamento, ponto de encontro causal e temporal da trama, como se fossem os devaneios de Paul semiconsciente, tal qual ele surge no início do filme. Durante a projeção do filme, a audiência vai acumulando e processando informações, compensando a falta de sentido imediata de seu encadeamento, e, ao final, consegue conformar seu sentido integral e fechado, suscitando uma reflexão sobre solidão, acaso, questões morais e, mais uma vez, o cruzamento de destinos aparentemente desencontrados. Iñárritu justificou a adoção dos sentimentos como principal fio condutor da ordenação aparentemente aleatória do filme, para evitar a previsibilidade e destrinchar o teor melodramático intrínseco ao argumento original do filme.

Após a travessia real da fronteira entre México e Estados Unidos para realizar 21 gramas, Iñárritu alça um voo ainda mais amplo para fechar sua trilogia da morte com Babel (2006), filmado em três continentes. A análise revelou que a ordenação temporal não-linear engendrada entre as quatro linhas narrativas do filme é abrandada pelo predomínio do encadeamento lógico e cronológico entre as sequências da mesma história. As transições entre os blocos de sequências das histórias do filme operam como “fronteiras” entre seus universos diegéticos com potencial tanto de separá-los por contraste como aproximá-los por intelecção e emoção.

As passagens entre as diferentes histórias acumulam amarrações. Constituem um jogo incessante que estimula o espectador na compreensão de um todo interligado. Além das estratégias macroestruturantes aplicadas na urdidura de Babel, a trilha sonora desempenha um papel articulador proeminente no filme, pelo ecletismo e radicalismo na combinação de seus elementos. A sonoridade do filme chama a atenção tanto pelo virtuosismo com que realiza pontes musicais adicionando novas camadas de sentido nas transições entre os blocos das histórias, como também pelo arrojo com que a edição de som estabelece trechos em silêncio absoluto, associados à percepção de uma personagem surda-muda, Chieko (Rinko Kikuche, figura 3).

Mesmo com sua narrativa puxando os limites convencionais do padrão mainstream, Babel estabelece seu diferencial como produto cultural e consagrou-se com uma grande bilheteria mundo afora. Apesar da abordagem de temas pouco usuais para filmes de grande circulação, como as assimetrias e tensões nas relações entre países ricos e pobres, o filme combina habilmente estratégias narrativas do cinema de arte com outras mais clássicas, que garantem a compreensão e o prazer de uma ampla audiência. Um exemplo claro dessa combinação entre o convencional e o alternativo está na configuração do elenco do filme, que escala as estrelas hollywoodianas Brad Pitt e Cate Blanchett, facilitando a receptividade do grande público, e compensando o estranhamento causado pela atribuição de papéis de destaque a atores não profissionais, principalmente no enredo marroquino.

Apesar da ruptura com o padrão de narrativas de rede anteriores, foi possível identificar na análise de Biutiful, único enredo com apenas um protagonista, o prosseguimento coerente do estilo autoral característico do diretor, tanto na utilização de estratégias formais, como em suas escolhas temáticas. No filme, a antecipação da derradeira cena como a primeira exibida pela trama repercute em toda a estrutura da narrativa. Solidão e morte seguem como motes proeminentes e a complexidade faz-se presente, por meio da ramificação e do entrelaçamento de linhas narrativas que tratam de relações familiares e de trabalho e do adensamento da construção e evolução das personagens. A diversidade comparece mais uma vez nas etnias, nacionalidades e línguas faladas em uma Barcelona marcada pelos impactos cruéis das relações de trabalho globalizadas em meio às interações afetivas entre nativos espanhóis e migrantes ilegais africanos e chineses.

O engenhoso atrelamento da capacidade do flashforward em antever lampejos do futuro com a característica mediúnica do protagonista possibilitou a abertura para a inclusão de imaginário surreal inédito no universo narrativo de Iñárritu, até então calcado exclusivamente no realismo. A fantasmagoria surge na representação dos espíritos dos mortos que o protagonista, Uxbal (Javier Barden, figura 4), é capaz de ver e o flerte com o surrealismo corporifica-se na inserção de mamilos nas nádegas de dançarinas de boate.

Além das estratégias narrativas específicas utilizadas na orquestração de cada filme descritas acima, notou-se a aplicação de alguns outros recursos articulatórios importantes permeando toda a filmografia estudada, entre os quais vale ressaltar o uso de repetições e de objetos circulantes. Ao analisar o emprego de objetos circulantes, observou-se que eles incrementam a dinâmica entre enredo e personagem. Em Amores brutos, o cachorro Cofi deixa de pertencer a Octavio (Gael Garcia Bernal, figura 5) e passa para El Chivo (Emílio Echevarría, figura 1). O coração de Michael é transplantado para Paul em 21 gramas. O liame entre as histórias de Babel é fortalecido pelo trânsito circular de um rifle.

Outro recurso usado em todos os filmes de Iñárritu analisados foi o da repetição de variações de cenas, ações, imagens, frases e diálogos, que colaboram na sutura das fraturas temporais e causais comuns a suas tramas. O uso de repetições, também frequente na narrativa clássica, ganha destaque no cinema multiplex pela relevância das conexões que promovem ao assumir a função de indexador temporal e liame de causalidade. Algumas das repetições têm impacto marcante na organização da narrativa como as quatro apresentações da colisão de carros em Amores brutos, a repetição da cena do embate físico dos três protagonistas no motel em 21 gramas, a reprise do telefonema de Richard (Brad Pitt) quando liga do hospital de Casablanca para sua casa em Babel e a duplicidade da passagem de Uxbal da vida para a morte no início e no final de Biutiful.

Em seus quatro primeiros filmes, Iñárritu tece um painel nada apologético da globalização focado nas desventuras de famílias menos favorecidas, cujos membros se encarregam de trabalhos ilícitos ou informais, como o jovem Octavio (Gael Garcia Bernal, figura 5) de Amores brutos, que encontra na rinha de cães possibilidades de ganhos financeiros significativos. No mesmo filme, El Chivo (figura 1), um ex-guerrilheiro revolucionário, tem como ocupação mais rentável assassinar por encomenda na megalópole Cidade do México. Em 21 gramas, Jack (Benicio Del Toro), um ex-presidiário latino, convertido e pregador, desestrutura-se ao matar acidentalmente um pai e duas filhas, perde a fé, afasta-se de sua família e retorna aos trabalhos forçados dos condenados. Imerso em uma África arcaica, uma criança pastora de cabras dá um tiro desatinado em uma turista americana, Susan (Cate Blanchett), deflagrando conexões em quatro países – Marrocos, Estados Unidos, México e Japão – em Babel. O incidente do disparo leva à extradição, dos Estados Unidos, de uma empregada doméstica mexicana, Amelia (Adriana Barraza, figura 2), por ter atravessado ilegalmente a fronteira com o México para assistir ao casamento de seu filho, levando consigo o casal de crianças de seus patrões americanos. Em Biutiful, o até bem-intencionado Uxbal (Javier Barden, figura 4) ganha seu sustento explorando africanos no comércio e intermediando trabalho escravo de chineses em Barcelona.

Apesar das similaridades na utilização de multiplicidade de protagonistas e enredos e manipulações temporais no conjunto de filmes em análise, cada um possui sua maneira específica de ser contado. Os três primeiros filmes de Iñárritu (Amores brutos, 21 gramas e Babel) são estruturados em torno de um evento acidental, cujos efeitos se ramificam em direções diferentes ao tecer uma tapeçaria humana de vidas independentes, mas interligadas. Celestino Deleyto e María del Mar Azcona destacam que:

O acaso aleatório se caracteriza não apenas como um dispositivo deflagrador que faz vidas separadas afetarem umas às outras de formas inesperadas, mas também como um elemento temático importante que paira sobre os padrões da narrativa fragmentada dos filmes. Em vez de simplesmente um receptáculo para a história, a forma torna-se uma parte intrínseca dela (2010, p. 20, tradução nossa).[9]

A trilogia inicial de Iñárritu (Amores brutos, 21 gramas e Babel) enquadra-se no modo narrativo definido por Bordwell (2006; 2008) como “narrativa de rede” (network narrative), que engloba filmes nos quais encontros acidentais de diferentes tipos, ao acaso, engatilham conexões inesperadas entre personagens não relacionadas conformando uma rede complexa de relações diretas e indiretas (2008, p. 189-250; 2006, p. 72-103). “Em todos os filmes de Iñárritu, essas conexões são estabelecidas por meio da violência, sugerindo como ela permeia a cultura humana, com ações descuidadas de uma pessoa impactando muitas outras” (Parshal, 2012, p. 73, tradução nossa.).[10] Intersecções ao acaso – acidentes de carro em Amores brutos e 21 gramas, e um tiro em Babel – possuem muita relevância na estruturação das tramas e evidenciam a proeminência da narração ao orquestrar manipulações temporais e variações na perspectiva das personagens. A narração dos filmes em análise enfatiza a centralidade do acaso na construção dessas narrativas de rede que se ambientam em grandes cidades como lugares privilegiados para enredar suas múltiplas tramas.

Iñárritu é o cineasta que imprimiu com mais consistência na tela diversos aspectos e impactos da globalização na sociedade. Babel apresenta um amplo mosaico que revela as ligações sociais, políticas, econômicas e afetivas da nossa “aldeia global” (Mcluhan; Fiore, 1968). Em sua textura rizomática, um tiro detona atrelamentos em três continentes – África, América e Ásia. Uma turista americana é alvejada acidentalmente por uma criança de Marrocos, com uma arma presenteada por um japonês, e tem seus filhos levados pela empregada mexicana a cruzar a fronteira entre os Estados Unidos e seu país natal.

Embora Babel seja o filme mais emblemático da presença da globalização na obra de Iñárritu, outros aspectos desse amplo fenômeno também estão presentes em todas as outras películas. O mundo cão dos bairros pobres da Cidade do México, onde vagam Octavio e El Chivo em Amores brutos, choca-se literalmente em uma batida de carros com o “mundinho” efêmero e descartável da moda e das celebridades midiáticas da modelo espanhola Valeria (Goya Toledo) e de seu amante Daniel (Álvaro Guerrero), editor de uma grande revista. O contraste entre o universo de pobreza e violência de dois dos três enredos do filme com um terceiro, marcado pela riqueza e frivolidade, espelha as desigualdades marcantes nos grandes centros urbanos globalizados, onde esses extremos interagem caoticamente. O acesso ao consumo de bens e serviços de luxo não garante a segurança dos afortunados que usufruem suas benesses, e tudo pode se perder a qualquer instante em um lance do acaso ou a intervenção de alguma ação criminosa.

Em Biutiful, Iñárritu aborda a problemática da ilegalidade do trabalho gerada pelos fluxos migratórios de populações em busca de melhores condições de vida na Europa. Seu personagem principal, Uxbal, um nativo espanhol, ganha o sustento intermediando o trabalho escravo de chineses e explorando africanos no comércio informal em Barcelona, Espanha. Nessa megalópole europeia, os contrários também convivem lado a lado, com trocas violentas como na Cidade do México de Amores brutos. Entretanto, em Biutiful, Iñárritu mostra que, apesar dos conflitos que existem entre os mais bem afortunados e os marginalizados do poder econômico, há uma interdependência cruel entre eles, uns precisam dos outros.

Por sua vez, 21 gramas urde uma imbricada trama de vingança na qual dois personagens em melhor posição na escala social – a viúva de classe média alta Cristina (Naomi Watts) e seu amante, o professor universitário (Sean Penn, figura 6) que vive com o coração transplantado do ex-marido de Cristina – unem-se para matar o pobre coitado Jack (Benício del Toro) que desgraçou a própria vida ao atropelar e matar as filhas e marido de Cristina. Essa história inusitada e saturada do excesso retórico do cinema mexicano tem como pano de fundo um tema muito valorizado na contemporaneidade globalizada: a interferência da tecnociência na existência humana. A trama mostra dilemas sobre a vida e a morte gerados pelas possibilidades intervencionistas da medicina atual. O filme explora, além do enredo de vingança, as consequências afetivas e questões morais e éticas relacionadas com o transplante de coração, a inseminação artificial e a postergação da morte por meio da medicina. O próprio título do filme não deixa de ser um irônico questionamento da capacidade da ciência na compreensão da existência.

<em>Valéria se envolve em acidente de trânsito em</em> Amores brutos
Valéria se envolve em acidente de trânsito em Amores brutos

Considerações finais

O estudo da narrativa cinematográfica de Alejandro González Iñárritu, sob a óptica neoformalista-cognitivista na acepção de Bordwell, complementada pela crítica da cultura aportada por Lipovetsky, proporciona uma visão das vinculações existentes entre a experimentação estética desse cineasta e características da sociedade globalizada da primeira década do século XXI. As análises dos quatro primeiros filmes do diretor evidenciam que suas diversificadas combinações entre multiplicidade de narrações – multiplots e multiprotagonismo –, com distintas maneiras de ordenação não-linear do tempo, são capazes de enredar tramas hábeis na representação de questões pujantes da contemporaneidade.

Embora tenha realizado filmes de ampla circulação mundial, tanto em festivais como no circuito comercial, produzidos em diversos países e alicerçados em acordos com empresas midiáticas transnacionais, o diretor mexicano foi capaz de manter a independência autoral e a unidade artística da sua filmografia. Ao tratar de temas banalizados no cinema mainstream, como relações familiares, sexo e violência, oferecendo, porém, uma peculiar abordagem humanista marcada por sua identidade cultural original, o cinema multiplex de Iñárritu destaca-se no panorama mundial ao expor contrastes e conflitos universais de um mundo caótico interligado por fluxos de informações e pessoas.

O exame minucioso das narrativas dos filmes em questão aponta para a busca de uma harmonia entre forma e conteúdo, na qual questões políticas e sociais cruciais dos dias de hoje são tratadas com densidade sem, contudo, menosprezar a necessidade de encontrar maneiras criativas de contar histórias que despertem e renovem o interesse do espectador durante a fruição do filme. Visando aumentar a imprevisibilidade e provocar um engajamento mais ativo do espectador na compreensão dos filmes, Iñárritu explora as discrepâncias advindas da dupla temporalidade da narrativa, as diferenças entre a ordem em que os acontecimentos aparecem na trama (plot, syuzhet) e seu lugar na história (story, fabula). Para tanto, embaralha o tempo dos eventos, fazendo com que a narrativa evolua em ramificações e círculos com conexões inesperadas.

Portanto, Iñárritu promove um diálogo fecundo entre inovação e tradição no cinema contemporâneo, ao combinar aspectos formais de multiplicidade e complexidade, com alguns traços proeminentes do tempo no qual vivemos, tais como fragmentação e hibridização. Ao abordar criticamente temáticas envolvendo movimentos populacionais, multiculturalismo, desterritorialização e presença da mídia e da tecnociência no cotidiano, o diretor tece narrativas nas quais a clara diferenciação da ação principal das complementares é estilhaçada e embaralhada de maneira instigante. O que se vê na tela é uma mistura de padrões de narração convencionais com outros mais experimentais, alguns oriundos de movimentos cinematográficos vanguardistas da modernidade, sem perder a comunicabilidade com um público amplo.


* Mauro Giuntini é professor adjunto da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília e cineasta. Defendeu a tese de doutorado “A narrativa cinematográfica de Alejandro González Iñárritu” no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UnB (2015). Mestre em Cinema e Vídeo (MFA) pela School of The Art Institute of Chicago (1994), leciona disciplinas de audiovisual há 20 anos. Realizador audiovisual desde a década de 1980, dirigiu os filmes ficcionais de longa-metragem Simples mortais (2007) e Até que a casa caia (2015).

 

Referências

BORDWELL, David. Narration in the fiction film. Madison: The University of Wisconsin Press, 1985.

BORDWELL, David. “O cinema clássico hollywoodiano: normas e princípios narrativos”. In: RAMOS, Fernão Pessoa (org.). Teoria Contemporânea de cinema: volume 2 – documentário e narrativa ficcional. São Paulo: Senac, 2005, p. 227-301.

BORDWELL, David. Poetics of cinema. New York: Routledge, 2008.

BORDWELL, David. The way Hollywood tells it: story and style in modern movies. Berkley: University of California Press, 2006.

CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. 3ª ed., 5ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

DANCYGER, Ken. Técnicas de edição para cinema e vídeo. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003.

DELEUZE, Gilles. A imagem-movimento: cinema I. São Paulo: Brasiliense, 1983.

DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo: cinema II. São Paulo: Brasiliense, 2007.

DELEYTO, Celestino; AZCONA, María del Mar. Alejandro González Iñárritu: contemporary film directors. Illinois: University of Illinois Press, 2010.

LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. A tela global: mídias culturais e cinema na era hipermoderna. Porto Alegre: Sulina, 2009.

MACHADO, Arlindo. Pré-cinemas e pós-cinemas. 5ª ed. Campinas-SP: Papirus, 2008.

PARSHAL, Peter. Altman and after: multiple narratives in film. Plymouth: The Scarecrow Press, 2012.

 

Notas

[1] A hipermídia é um sistema de registro e exibição de informações informatizadas por meio da interatividade ramificada (estrutura de galhos de árvore), que permite acesso aos materiais que o constituem – textos, imagens estáticas ou em movimento, sons, softwares etc. – a partir de hiperlinks que acionam outros documentos e assim sucessivamente. A rede mundial de computadores (World Wide Web) é uma das implementações mais populares de hipermídia. Um caso particular de hipermídia, o hipertexto usa apenas um tipo de mídia, texto com interatividade e hiperlinks que conduzem a outros dados.

[2] Em seu livro Poetics of cinema, Bordwell (2008, p. 245-250) apresenta uma extensa lista com filmes dos cinco continentes lançados até meados de 2007 que seriam narrativas de rede. A lista contém filmes dirigidos por cineastas famosos como Michael Haneke, Amos Gitai, Wong-Kar-wai, Krzysztof Kieslowski, Hou Hsiao-hsien, Alain Resnais, Rodrigo Garcia, Claude Lelouche, Otar Iosseliani, Atom Egoyan, entre tantos outros.

[3] Quando surgiu o cinema, a qualidade que diferenciava sua imagem das demais era o movimento. Gilles Deleuze (1983) considerou a imagem-movimento uma das duas grandes modalidades de cinema e distinguiu suas variações no cinema clássico.

[4]Termo proposto por Gilles Deleuze (2007) para designar a imagem do cinema pós-guerra, principalmente as relacionadas ao neorrealismo italiano e à nouvelle vague francesa, marcada por uma “ruptura dos vínculos sensório-motores”, desvinculando o tempo da noção de movimento do cinema clássico.

[5] No original: “it lets us glimpse the outcome before we have grasped all the causal chains that lead up to it (Bordwell, 1985, p. 79).

[6] Os exemplos são muitos: temos Los Angeles, em Crash – No limite (Crash, Paul Haggis, 2005), ganhador do Oscar de Melhor Filme em 2005; Londres, em Wonderland (Michael Winterbotton, 1999); e até mesmo Brasília, em Simples mortais (Mauro Giuntini, 2007).

[7] Apesar de não ter sido formulada como conceito teórico, essa noção de “fios condutores” é lançada por Ken Dancyger (2003). O autor afirma que “a carreira de assassinatos de Mickey e Mallory é o fio condutor de Assassinos por natureza (Natural born killers, Oliver Stone, 1994); a batalha de Guadalcanal é o fio condutor de Além da linha vermelha (The thin red line, Terrence Malick, 1998); a crise de identidade é o fio condutor de Pulp fictiontempo de violência (1994)” (Dancyger, 2003, p. 420).

[8] No original: “The more complex the devices, the more redundant the storytelling needs to be” (Bordwell, 2006, 77-78).

[9]  No original: “Random chance features in them not only as a triggering device that makes separate lives affect one another in unexpected ways but as a major thematic element looming over the film’s fragmented narrative patern. Rather than simply a vessel for the story, the form becomes an intrinsic part of it” (Deleyto; Azcona, 2010, p. 20).

[10] No original: In all Iñárritu’s films this connection is established through violence, suggesting how it permeates human culture, with careless actions by one person impacting many others(Parshal, 2012, p. 73).