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CRUZAMENTO DE CULTURAS E IDENTIDADES NAS CANÇÕES POÉTICAS DE RORAIMA

Resumo: Este ensaio, fruto do relatório parcial de estágio pós-doutoral, persegue o objetivo fulcral de investigar a identidade cultural na produção poético-musical com marcas indígenas de Roraima, a fim de alargar a discussão para o campo de conceituação das identidades que não podem ser vistas somente com a tradição oral, mas com as etnias, com a construção e a ritualização dos mitos amazônicos, dos imaginários coletivos, da diversidade linguística que formam a multiplicidade do povo roraimense e, ao mesmo tempo, o singulariza com traços sui generis dentro de sua tradição local. Sob esse prisma, as análises terão como recorte analítico as canções do álbum Songbook (2015), de Zeca Preto e outros poetas, sob a ancoragem dos estudos culturais e da teoria da literatura. O ensaio provocará uma discussão em torno de autores relevantes, a saber: Arjun Appadurai (2004), Stuart Hall (1993), Alfredo Bosi (1992) Teixeira Coelho Neto (2008), Silviano Santiago (2002), Zigmunt Bauman (1999) dentre outros do projeto e discutidos no Programa Avançado de Cultura Contemporânea, os quais subsidiarão a presente pesquisa.

Palavras-chave: Identidades; Estudos Culturais; canções de Roraima; poesia.

Abstract: This paper, the result of the partial report of Post-Doctoral Internship, pursues the key objective of investigating cultural identity in poetic musical production with indigenous brands of Roraima, to extend the discussion to the identities conceptualization field not can only be seen with the oral tradition, but with the ethnic groups, with the construction and ritualization of Amazonian myths of the collective imaginary, linguistic diversity that form the multiplicity of roraimense people and at the same time, distinguishes with sui generis features within its local tradition. In this light, the analysis will have the analytical approach the songs on the album Songbook (2015), Zeca Preto and other poets, in the anchoring of cultural studies and literary theory. The test will lead a discussion around relevant authors, namely: Arjun Appadurai (2004), Stuart Hall (1993), Alfredo Bosi (1992) Teixeira Coelho Neto (2008), Silviano Santiago (2002), Zygmunt Bauman (1999) from other project and discussed in Contemporary Culture Advanced Program, which will subsidize this research.

Keywords: Identity; Cultural Studies; Roraima songs; poetry.

 

Introdução

Quero a minha América latina preta, branca, roxa, colorida extrenorte americano brasileiro (Zeca Preto. In: Mukama).

Ao propor este ensaio[1] doravante como objeto de estágio pós-doutoral, escolhemos a epígrafe da canção mukama, de Zeca Preto, pois as palavras contidas nela nos permitem asseverar que em muitas canções roraimenses há um banho de imagens poéticas que corroboram para a construção de identidades múltiplas e para o cruzamento de culturas (Bosi, 1992). A rigor, tais composições, ainda que nem sempre com intenção poética, assumem discursos que norteiam não uma identidade Macuxi, ou Wapixana, ou Taurepang e outras, mas um misto de marcas que formam, dentro da subjetividade individual, a coletividade.

À luz epistemológica dos estudos culturais, da teoria da literatura e dos debates textuais realizados nos encontros da Universidade das Quebradas (UFRJ), pretendemos como objetivo fulcral construir um estudo crítico-reflexivo das múltiplas identidades embutidas nas canções musicais de Roraima e com ele esmiuçar a cultura de temática indígena e regional, estudar o Movimento Cultural Roraimeira e, por excelência, explorar essas composições sob o tema cruzamento de culturas e identidades a partir da obra Songbook que reúne a música de Zeca Preto e outros compositores e poetas da Amazônia, especialmente: Neuber Uchôa, Tati Garcia e Eliakin Rufino.

A partir desse foco, concentraremos em dois eixos-temáticos: a produção crítica sobre Roraima, identidades e fronteiras; o abraço da poesia topofílica e lendária na música de Roraima e o sentimento de pertença.

Produção crítica sobre Roraima, identidades e fronteiras

Preliminarmente, situaremos o leitor à história do antigo Território do Estado de Roraima, assim conhecido até a Constituição de 1.988 que se localiza no âmbito fronteiriço, no extremo Norte do Brasil. Roraima aparece descrita como um estado inserido no contexto multicultural[2]. Stuart Hall (1996), no capítulo “A questão multicultural”, em Da diáspora: identidades e mediações culturais, expressa bem que a questão multicultural está ligada a diversas razões de migrações, isto é, muitas pessoas se mudam por “desastres naturais, alterações ecológicas e climáticas, guerras, conquistas, exploração do trabalho, colonização, escravidão, semiescravidão, repressão política, guerra civil e subdesenvolvimento econômico” (Hall, 1996, p. 99). Tratando-se dessas migrações, entendemos que em Roraima ser multicultural pressupõe carregar características de sociedades que abarcam diferentes comunidades, povos e culturas.

Além disso, pela posição de fronteira, Roraima mistura práticas culturais locais, nacionais e internacionais, sobretudo por somar culturas venezuelanas e inglesas, as quais ainda se juntam ao “tronco de índios do Karib”. Percebem-se no estado uma diversidade de portugueses, espanhóis, árabes-mulçumanos[3] e outros povos que para o estado migraram em busca de riquezas e terras, o que até hoje tem resultado em pesquisas antropológicas e demarcação de comunidades indígenas e questionamentos de separação entre índios e não índios[4] como é o caso da Comunidade Raposa Serra do Sol[5] em Pacaraima, último município brasileiro, fronteira com Santa Helena de Uairén, na Venezuela.

Sobre este processo de migração Hall (1996, p. 104) afirma que da mesma forma que a globalização coincide com a modernidade, “os processos de migração têm se tornado um fenômeno global do assim chamado mundo pós-colonial”. Neste processo global e multifacetado de culturas e migrações, destacam-se uma diversidade de línguas indígenas mais conhecidas como Macuxi, Taurepang, Wapichana, e outras misturadas aos idiomas português, inglês e espanhol, formando assim uma heterogeneidade no falar roraimense.

O multiculturalismo recheia-se com a diversidade de lendas que dão identidade aos pontos turísticos mais belos e desconhecidos por muitos brasileiros. E tais identidades aparecem nas canções de Zeca Preto, Neuber Uchôa e na poesia de Eliakin Rufino como uma valorização assaz do que denominamos identidade lendária roraimense: Tepequém, Macunaíma, Pedra Pintada, Curupira, Boiúna, Cruviana, entre tantas lendas indígenas do norte brasileiro.

Comumente notamos que a cultura e o povo roraimense vão muito além do olhar desconhecido. Não obstante, dentro de um contexto midiático, asseveramos que na pós-modernidade há resquícios de construções imagéticas em que a mídia em várias situações reproduz estereótipos do homem do Norte e do Nordeste, e continua apresentando uma paisagem assolada por um cenário nortista exótico e opulento na fauna e flora, mas atrasado e sedento por progresso e cultura. Ou melhor, o Norte, sobretudo Roraima, quando mencionada, aparece em contrato mercadológico, por exemplo, quanto aos aspectos turísticos e geográficos recentemente enfocados pela Rede Globo na telenovela Império, porém nenhum ator conheceu Roraima, tendo em vista que apenas o Monte foi o alvo do cenário. Roraima apareceu como produto de consumo turístico e as pessoas buscavam o desejo de conhecer o extremo norte do país visando o lugar de beleza mostrada pela mídia, e desconhecendo inúmeras riquezas da cultura indígena, da arte regional e da música, o que pressupõe um não lugar ou um espaço utópico simbolizando uma Roraima Pasárgada Geográfica, que em minutos cai no esquecimento como se fosse um produto descartável, o que nos permite remeter ao processo de globalização explicado por Bauman (1999, p. 86).

Sob esse prisma, a globalização arrasta as economias para a produção do que chamamos de efêmero. O que se nota é uma cultura do consumo envolvendo sobretudo o esquecimento e não necessariamente o aprendizado. Neste sentido, O Monte Roraima, que guarda a Lenda Cultural Makunaima em sua história e na poesia de Zeca Preto, foi eleito como mercadoria turística, e Roraima com sua multiplicidade de cultura de fronteira não passou de um Marketing de pacotes de Turismo e falseamento de divulgação cultural ao concentrar na divulgação de consumo, o que nos faz lembrar da obra Vida para consumo, de Zygmunt Bauman, pois vivemos numa época pós-moderna em que a identidade se mascara com uma mise-en-scéne de exposição em redes sociais, e as pessoas parecem ser muito mais mercadorias, chegando a configurar um mal-estar da civilização pós-moderna que parece ser líquida:

Corremos sobre gelo fino. Se pararmos ou diminuirmos a velocidade, o gelo se rompe e nós morreremos. Então corremos. Não importa para onde, o importante é correr. E rápido (Bauman, 2001, p. 243).

Nesta velocidade de divulgação da cultura local que foi o Monte Roraima e a lenda Makunaima, verificamos que a paisagem que assume um local de fronteira em Pacaraima parece ter durado apenas segundos no mercado geográfico da imagem midiática, o que não parecem e nunca foram as paisagens locais nas canções de Zeca Preto, isto é, nelas a paisagem assume a subjetividade banhada pela identidade lírico-amorosa e muito mais que isso: trata-se de uma identidade de topofilia[6] com a cultura e outros universos sagrados da história de Roraima.

Percebemos ainda que a divulgação da história de Roraima pode ser refletida à luz de Appadurai, na obra Dimensões culturais da globalização – A modernidade sem peias. Ele traz a discussão sobre etnopaisagem e tecnopaisagem, uma vez que pensar nisso também remete a entender que vivemos em mundos imaginados e o mundo parece criar:

(…) paisagem de pessoas que constituem o mundo em deslocamento que habitamos: turistas, imigrantes, refugiados, exilados, trabalhadores convidados e outros grupos e indivíduos que em movimento constituem um aspecto essencial do mundo (Appadurai, 2004, p. 24).

Na verdade, podemos verificar que Roraima foi vista como fantasias de deslocamento pela mediapaisagem e também Appadurai nos mostra que isso pode ocorrer pelo fato de a “(…) configuração global, [ser] sempre tão fluída […] e ao fato de a tecnologia, tanto a alta como a baixa, a mecânica e a informacional, transpor agora a grande velocidade diversos tipos de fronteiras antes impenetráveis” como, por exemplo, “o fim do mundo à margem que é o Norte”, isto é, sob o olhar periférico, ganha destaque internacional.

Tais reflexões sobre a identidade de fronteira roraimense nos direcionam para o ensaio Fronteiras do local: reverificação do conceito de regionalismo, de Paulo Sérgio Nolasco dos Santos que, por sua vez assevera: “a transformação na construção das identidades locais está regida pela tradição e pelo rito” (p. 8). E esse rito de tradição em Roraima se perpetua na subjetividade individual e coletiva porque se somam culturas de outras regiões com a cor local. Sérgio Nolasco, citando Masina (1995, p. 845), elucida que ao pensarmos nos estudos de fronteira na contemporaneidade não devemos destacar que a literatura comparada, nesse caso, contempla situação como “a migração de temas e a intertextualidade”.

Neste universo de ritualização de culturas e identidades, de fronteiras e intertextualidades elegemos a canção Roraimeira[7] que explicita essa migração de temas e intertextualiza com outras culturas além da roraimense. Sobre o conceito de cultura em Roraima, aponto-o tanto como o conjunto da produção artística e intelectual como o conjunto do falar e expressar de grupos e comunidades recheadas de seus mitos e identidades que os pluralizam[8] e ao mesmo tempo os tornam sui generis, mas sempre com a ideia de culturas cruzadas.

Tal singularidade cultural pode ser poeticamente observada nas canções musicais mescladas de historicidade, cultura e imagens indígenas, africanas e outras como é o caso da canção Casa de caboclo em que temos a cultura indígena e a africana com referências a Iemanjá, Ogum, Xangô e a mistura de ritmo indígena e do tambor de África, o que configura o ser multicultural em Roraima. Quando pensamos em singularidade cultural, remetemos a traços da tradição local específica, a roraimense.

No entanto, não a separamos de outras culturas, uma vez que adentrando em Dialética da colonização, Bosi nos mostra que a tradição da nossa Antropologia Cultural já via uma divisão do Brasil em culturas atribuindo-lhes um critério racial: cultura indígena, cultura negra, cultura branca, culturas mestiças, ou melhor, cultura brasileira e culturas brasileiras, ou ainda mesmo como culturas não europeias (as indígenas, negras, etc.) e culturas europeias. Por assim dizer, faremos uma leitura poética da música produzida em Roraima e sobre ela, a nossa Musa Pasárgada.

O abraço da poesia topofílica e lendária na música de Roraima e o sentimento de pertença

Tratando-se da diversidade cultural roraimense, podemos pensar no conceito de identidade adotada por Stuart Hall (2008, p. 8) que estaria constituída por aspectos de pertença. Este pertencimento nas músicas manifesta-se nas lendas que fundam uma tradição do local. E é esta pertença que nos faz identificar com as marcas peculiares de uma cultura, tribo, comunidade, instituição e entre diversas possibilidades de identificações. Por assim dizer, a identidade cultural se representa na relação entre os grupos à medida que se diferenciam e organizam suas trocas, por exemplo, quando se mistura a identidade do povo paraense, amazonense e roraimense nas músicas Norteando, Casa de caboclo e Roraimeira.

Inseridos na dialética multicultural, Zeca Preto, Neuber Uchôa e Eliakin Rufino projetam sentidos imagéticos da identidade do Norte brasileiro que é também plural, e formulam um discurso literário que agrega elementos culturais e estabelece a diferenciação entre o eu e o outro, isto é, a identidade e a alteridade e, sobretudo, as múltiplas identidades, de acordo com o que constatamos na obra Da diáspora: identidades e mediações culturais, de Stuart Hall (2013). Leiamos sob esse foco a canção, a saber:

Roraimeira

te achei na grande América do sul
quero atos que me falem só de ti
e em tua forma bela e selvagem
entre os dedos o teu barro o teu chão
e em tuas férteis terras enraizar
a semente do poeta Eliakim
nos seus versos inerentes ao amor
aves ruflam num arribe musical, musical
os teus seios grandes serras,
grandes lagos são os teus olhos
tua boca dourada, Tepequém, Suapi
terra do Caracaranã, do caju, seriguela
do buriti, do caxiri, Bem-Querer
dos arraiais, do meu HI-FI,
da morena bonita do aroma de patchully
da morena bonita do aroma de patchully
o teu importante rio chamado branco
sem preconceito em um negro ele aflui
és Alice neste país tropical,
de um cruzeiro norteando as estrelas
norte forte macuxi Roraimeira
da coragem, raça, força garimpeira
cunhantã roceira, tão faceira
diamante ouro, amo-te poeira, poeira.

O título da canção é o mesmo que dá nome ao Documentário em vídeo do Movimento Roraimeira[9] que, sem dúvida, expressa historicidade, poesia e identidades. O Eu-Poético enunciado no primeiro verso demarca Roraima-roraimeira em lugar de destaque geográfico América do Sul, e expressa um desejo demarcado pela exclusividade quando aponta para “Quero atos que me falem só de ti”. E os versos subsequentes assumem a identidade poética de Eliakin e sua temática amorosa, tônica de sua poesia que vai além do regional, por ser um tema universal[10], o amor.

Neste sentido, o amor em sua singularidade independe da época e localismo. Porém, na canção de Zeca Preto esse amor vem ao encontro da Terra quando compõe a tessitura lírica do desejo de querer nesta “forma bela e selvagem / entre os dedos o teu barro o teu chão / e em tuas férteis terras enraizar”. Remetemos a interpretação dos versos à imagem poética que paira na ideia tríade de corpo-terra-raiz. Ou seja, há uma sintonia entre o estar na terra e querer esse lugar, eleito como pátria regional, com a identidade que mistura não somente o geográfico mas soma a outras identidades que não recaem apenas na paisagem, mas ainda na construção do sentimento de pertença. Acerta deste ato de ser e pertencer, destacamos a análise poemática em quatro exemplos em blocos analíticos:

1º – Roraima metaforizada como uma boca dourada e depois banhada por duas terras indígenas lendárias e turísticas Tepequém e Bem-Querer;
2º – Roraima que carrega os seus encantos míticos da lenda Caracaranã;
3º – Roraima marcada com suas frutas tropicais e bebidas indígenas: Caxiri;
4º – Roraima apontada com sua beleza e exoticidade da morena indígena, com aroma que vai além desse cheiro regional, o que confere uma conotação erótica ao dizer “morena bonita do aroma de patchully”.

É exatamente esta identidade indígena responsável por atrair o olhar desde a colonização com as índias do descobrimento explícitas na carta de Caminha e parodiada na poesia de Oswald de Andrade, o que ocorre até os nossos dias, se pensarmos na fronteira entre Bonfim e Lethem, Pacaraima e Venezuela. Neste olhar, tanto a cidade como a morena bonita evocadas na canção poética aparecem como uma comparação de Alice no país das maravilhas, mas a nossa alicezinha é tropical, é do Norte, morena ou branca, ela é sem preconceitos ao somar-se com os versos “o teu importante rio chamado branco sem preconceito em um negro ele aflui”.

A poeticidade cultural da música de Zeca Preto deve ser interpretada no conjunto dos versos e em seu contexto histórico, geográfico e ainda pela ideia de fronteira quando misturam as duas palavras patchully e HI FI, influência do falar português, espanhol e inglês dos indígenas da fronteira. Ao realizar uma pesquisa além da composição, cumpre dizer que a mulher indígena desde a carta de Caminha foi vista como atrativo erótico para o europeu e essa crítica já foi feita pelo poeta Oswald de Andrade em tom de paródia no poema “Meninas da Gare”.  Hoje não mudou muito o olhar malicioso e pejorativo sobre o indígena, sobretudo se referindo à mulher de Roraima.

Não obstante, na composição de Zeca Preto, a representação da identidade indígena feminina reafirma-a como selvagem e bela, mas acima de toda a erotização da carne morena reside uma mulher elevada aos contos de fadas e, além disso, forte, guerreira, “a cunhatã roceira”, simples, namoradeira, “tão faceira”, “cunhatã roceira” que vale ouro e diamante, mas que também tem coragem, raça e força do lavrado e da mulher garimpeira, capaz de exceder a força masculina e romper com o preconceito de que “índio é preguiçoso e não toma banho”.

Frente a esses aspectos analíticos da memória da mulher indígena na canção Roraimeira e outras de Zeca Preto, podemos dizer que há uma instauração da tradição da figura indígena que não se enquadra no esquecimento e sim na perpetuação da identidade local. Isso porque pensar no resgate da tradição ou memória da cultura pressupõe no mundo global de hoje uma ideia de regresso à pátria, de acordo com o que afirma Appadurai (2004) no capítulo “Disjuntura e diferença na economia cultural global”, da obra Dimensões culturais da globalização: a modernidade sem peias:

O passado deixou de ser uma pátria a que regressar numa simples operação de memória. Tornou-se um armazém sincrônico de enredos culturais, uma espécie de filme a realizar, a peça a encenar, de reféns a salvar (Appadurai, 2004, p.47).

Nesta perspectiva, o passado evocado como perpetuação da memória individual e coletiva também se verifica como culto à identidade roraimense na canção Ser índio e na lenda Makunaima, além dos textos de Norteando, Makunaimando, Cruviana e Casa de caboclo, do conjunto da obra Songbook, os quais farão parte da segunda fase deste ensaio.

Antes de vislumbrarmos o olhar sob as canções mencionadas, descortinaremos o documentário Roraimeira (1980), que é, sem dúvida, um marco importante na história da cultura musical deste lugar. O documentário Roraimeira explicita a história da música e tem como objetivo reunir os artistas da década de 1980 que integraram o movimento musical do Norte.

Para estudar tal documentário, escolhemos como aporte a obra Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde, na qual Heloísa Buarque de Holanda (p. 292) aponta que, nos anos 1960, percebe-se o diálogo imediato entre arte e sociedade pautada na efetiva mobilização que favorecia a adesão de artistas e intelectuais ao projeto revolucionário, de modo que, os anos 1970 eclodiram com a impressão de “vazio cultural”.

A esse turno, podemos trazer essa mesma assertiva para os artistas da música roraimense, pensando-se em um movimento denominado “modernismo e regionalismo tardios”. Naquela época desabrocharam músicas de imensa riqueza cultural, fundaram o Movimento Cultural Roraimeira[11], desconhecidos de diversas regiões brasileiras, como se a cultura estivesse legada ao silenciamento ou desligamento, sobretudo se tratando de uma região periférica do Brasil.

No documentário, constatamos como múltiplas identidades o trabalho de artistas voltados para a reflexão dos mitos, da religiosidade, da exaltação ao telúrico e ainda um constante diálogo com o artesanato, a culinária indígena (o caxiri, o pajuaru, jiquitais) e com a fauna e a flora amazônicas.  Mostra sobretudo o contato com as crenças no pajé, com o homem regional, não deixando de destacar a figura do imigrante e o sincretismo religioso das comunidades indígenas de fronteiras, o que já nos aponta Roraima como um lugar multicultural, por excelência.

Assim, da mesma forma que no modernismo brasileiro a criação do herói sem nenhum caráter foi imprescindível para uma identidade nacional, em Roraima, o Movimento Roraimeira foi relevante para o registro de um modernismo imaginário e, sobretudo tardio, mas significativo para a demarcação de representações culturais e identidades que formam também o imaginário cultural brasileiro.

Tendo em vista ainda uma cultura nos trópicos como elucida Silviano Santiago (2002, p. 312), isto é, o imaginário nacional e cultural não se explicita somente pelas representações que ele consegue produzir, mas ainda pelo viés e múltiplas ausências de representações. Este imaginário de representações culturais recônditas pode ser encontrado na canção Norteando, Zeca Preto e Tati Garcia, que abre o leque para pensarmos na identidade do sujeito roraimense, aquele que em sua dimensão local se deflagra com os mitos e fenômenos geográficos corroborando para o imaginário plural brasileiro: o pororoca, a lenda cruviana, o Saci Pererê, o mito da Cobra que pode ser de Norato, o enredo proveniente das malocas indígenas sobre as façanhas do Jabuti e da Onça (não especificadas por etnias roraimenses, em particular, como ocorre nas canções Makunaimando e Roraimeira.

Diremos que mais enraizadamente o desdobrar da poesia musicada por Zeca Preto abre um leque de imagens poéticas que evocam as diversas identidades do norte brasileiro, que é banhado pela fronteira sem limites: Manaus, Belém, Boa Vista, Tocantins, Xapuri. Logo, não se pode demarcar com precisão que a música tem como tema e especificidade o lugar roraimense e ademais a identidade regional e nessa perspectiva podemos trazer à baila, o conceito de fronteira na identidade plural:

Norteando
(Zeca Preto/Tati Garcia)

Da minha aldeia é bom de ver
pororoca, cruviana, ubá
curupira passar, pererê a dançar
cobra grande a espiar
da maloca o vento traz cunhã
jaboti, tamanduá e o sol pra ver
Belém pra Macapá, Santarém
Porto Velho, Manaus, Boa Vista, Xapuri
sou afluente do negro, do branco, Amarari
Amazonas, Tocantins, Gurupi….
(Preto, 2013, p. 130).

Elucidamos que a construção da identidade roraimense na canção Norteando remete à ideia de comunidade imaginada, pois a narrativa da nação é contada e recontada inserindo as histórias dos mitos que banham a cultura roraimense e não se afastam dos mitos e ritos brasileiros. Mais ainda, não se desvincula de autores representativos do modernismo brasileiro que pensaram na identidade indígena e nacional, como bem garante Alfredo Bosi sobre Cultura brasileira e culturas brasileiras:

O tema do cruzamento entre culturas é proposto especificamente por alguns escritores modernistas como Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Raul Bopp e Cassiano Ricardo. Fique apenas o registro de duas tendências: o nacionalismo estético e crítico de Mário de Andrade e o antropofagismo de Oswald de Andrade. Mário inclinava-se a uma fusão de perícia técnica supranacional com a sondagem de uma psicologia brasileira semiprimitiva, mestiça, fluida, romântica. Oswald pregava uma incorporação violenta e indiscriminada dos conteúdos e das formas internacionais pelo processo antropofágico brasileiro… (Bosi, 1992, p. 308).

É pensando no tema de cruzamento entre culturas que ponderamos o diálogo de culturas e mitos amazônicos, que permeiam a música roraimense ao trazer o movimento roraimeira para o campo de discussão dos estudos culturais e as identidades afro-brasileiras. Sob esse foco, leiamos a música composta por Zeca Preto e Tati Garcia:

Casa de caboclo
(Zeca Preto)

Rebenta-te, entoa um pouco mais
Defuma-te, clama os Orixás
e avisa a caboclo que cheguei
na porta as sandálias eu deixei
meu Oxalá, o meu Ogum, o meu Xangô
Me faz um despacho Xamã
Os molhe Iemanjá com teu mar
dei de comer e beber Iansã
anjos negros descansar volver
esses corpos precisam viver
O sumiço do frio fome e dor
a cantiga implorando amor
um sofrido tambor a rufar
liberdade meu Pai sarava
Ajuda Roraima meu Pai

A despeito das múltiplas identidades, não fica nenhuma dúvida de que em Casa de Caboclo a voz que rebenta e entoa a música soma pelo menos a cultura indígena e a africana. Na dissertação de mestrado Subjetividade e identidade na poesia topofílica de Zeca Preto, Cléo Amorin (2014, p.17) aponta que a população indígena tem “uma presença expressiva em Roraima; segundo dados do IBGE (2010), existem no estado, atualmente, 11 etnias sendo elas: Wai Wai, Waimiri-Atroari, Yanomami, Yekuana, Macuxi, Patamona, Taurepang, Wapixana, Ingaricó, Sapará e Maiongong”.  De certa forma, não podemos encontrar somente as identidades indígenas, uma vez que o próprio convívio social miscigenado demonstra que o estado de Roraima não tem nada de homogêneo. E citando Cátia Wankler, a autora defendeu que as manifestações culturais são “tipicamente nordestinas, produto do fluxo migratório constante proveniente de estados do Nordeste, (…) outras de feição mais indígena e outras, essencialmente híbridas” (Oliveira; Wankler; Souza, 2009, p. 27).

O hibridismo cultural em Zeca Preto, referindo-se à Casa de Caboclo, presentifica, através da subjetividade individual, o rito de passagem fabulosa da rainha do mar e esse aspecto mítico, juntamente com os Orixás assumem o chamado do caboclo e metaforiza o lugar de instauração da crença em Xangô e Xamã. Casa do Caboclo realiza a poética de mitos além da homogeneidade indígena, faz o leitor assumir a identidade de África nos versos: “Anjos negros descansar volver (…) um sofrido tambor a rufar / liberdade meu Pai sarava / Ajuda Roraima meu Pai”. Por conseguinte, a crença na religião permite fundar o encontro do homem com o mito descrito pelo mitólogo Mircea de Eliade. A rigor, “de uma maneira ou de outra ‘vive-se’ o mito, no sentido de que se é impregnado pelo poder sagrado e exaltante dos eventos rememorados ou reatualizados” (Eliade, 1972, p. 18). A mitologia sagrada da religião africana aparece na música topofílica de Zeca Preto e esse diálogo traz a dimensão de que tanto a cultura escrita quanto a oral de uma geração, em diversos contextos epocais, narram a presença do sagrado nos acontecimentos. Esta narrativa poética nas canções sobre Roraima funda um encontro com a teoria de Walter Benjamin (1993), ao asseverar que as histórias se perdem quando não são mais contadas porque o narrador não pode exaurir na temporalidade.

Conclusão

À guisa de conclusão, olhamos o imaginário cultural de Roraima, por meio da música, e ele se cruza na fronteira e dialoga com o imaginário nacional, quiçá extrapolando as representações de identidade que Zeca Preto, Neuber Uchôa, o poeta Eliakin Rufino, Tati Garcia e outros autores conseguem produzir, e não deixam escapar as diversas representações do mito de Cobra Norato, do Saci Pererê, do Bumba Meu Boi, além das lendas e danças típicas sobre o céu de Roraima, trazendo para a região Norte do país outro imaginário que lemos na poética de Manuel Bandeira: o mito de Pasárgada. Tal imaginário cultural também se percebe no culto à tradição da figura indígena que não se enquadra no esquecimento e sim na perpetuação da identidade local e nacional. Portanto, inferimos nesta exegese de poéticas da identidade que pensar no resgate da tradição ou memória da cultura pressupõe no mundo global de hoje, reiterando Appadurai (2004), uma ideia de regresso à pátria em que fundamos a tradição além de um regionalismo tardio abordado por uma literatura nos trópicos.


* Rosidelma Pereira Fraga é pesquisadora visitante de pós-doutorado em Cultura Contemporânea (UFRJ), professora doutora em Estudos Literários (UFG) e professora de literatura (UERR).

** Aparecida Luzia Alzira Zuin é supervisora e pesquisadora do pós-doutorado (UFRJ) do Programa Avançado em Cultura Contemporânea e professora da Universidade Federal de Rondônia (Porto Velho).

 

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TUAN, Yu – Fu. Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. São Paulo: Difel, 1980, p. 106-128.

WANKLER, Cátia; NASCIMENTO, Cléo Amorim. Literatura regional: anacronismo em tempos de globalização? In: NASCIMENTO, Luciana Marino do; MIBIELLI, Roberto; FIOROTTI, Devair Antônio (Orgs.) Nós da Amazônia: literatura, cultura e identidade na/da Amazônia. Letracapital p. 200-2015.

 

Notas

[1] Parte integrante do estágio pós-doutoral que tem como premissa esmiuçar a produção de ensaios acerca do tema identidade indígena. Como parte inicial do corpus de análise do projeto pós-doutoral do Programa de Pós-Graduação em Cultura Contemporânea, visa cumprir com os objetivos do projeto Identidades e fronteiras nas canções e narrativas indígenas de Roraima.

[2] Conforme pesquisa realizada no IBGE, cinquenta por cento da população é imigrante de outros estados e países de fronteira ou não: Venezuela, Guiana Inglesa, Peru e Colômbia. Neste sentido, Roraima não pode ser pensada como comunidades isoladas e sim dentro de um contexto de hibridização das culturas.

[3] Sobre a migração de árabes-mulçumanos entre Brasil e Venezuela, sugerimos o artigo Identidade e representação na fronteira pan-amazônica: árabes-muçulmanos em contexto transfronteiriço (Brasil –Venezuela), do Prof. Dr. Jakson Hansen Marques que tem como foco investigar o intenso fluxo de migrações na fronteira pan-amazônica. Disponível no 38º Encontro Anual da Anpocs SPG07 Fronteiras: territórios, políticas e interculturalidade.

[4] Da mesma forma como os episódios de índios citadinos e índios de aldeia, polêmica gerada entre a fronteira internacional de Bonfim-RR e Lethem, na Guiana Inglesa. Sugerimos o artigo O movimento político indígena em Roraima: identidades indígenas e nacionais na fronteira Brasil-Guiana, de Stephen Grant Baines. In:  Cad. CRH. vol.25 nº 64, Salvador Jan./Apr. 2012.

[5] Raposa Serra do Sol é uma área de terra indígena (TI) situada no nordeste do estado brasileiro de Roraima, nos municípios de Normandia, Pacaraima e Uiramutã, entre os rios Tacutu, Maú, Surumu, Miang e a fronteira com a Venezuela, destinada à posse permanente dos grupos indígenas ingaricós, macuxis, patamonas, taurepangues e uapixanas.

[6] Conceito de Yi-Fu Tuan (1980 apud Wankler, 2011): trata-se do sentimento de afeição a um determinado lugar.

[7] Roraimeira foi eleito o Hino Cultural do Estado Roraima, o que vem somar à beleza do Hino de Roraima. Do G1, publicado em 14 de setembro de 2015, cito a notícia: “A governadora Suely Campos (PP) sancionou a Lei que oficializa a música ‘Roraimeira’ como Hino Cultural do estado. Publicada no Diário Oficial, a Lei 1007/15 de autoria do deputado Oleno Matos (PDT), prevê a execução do hino em cerimônias públicas e eventos culturais”. A meu ver, fica evidente que a canção de Zeca Preto, ao ser cantada nas cerimônias públicas e ser ainda uma de valorização cultural nas escolas, adquire maior relevância porque o conteúdo contido na canção expressa a identidade cultural local e que define o ser roraimense e o marca com orgulho de existir em sua força, porém, o decreto vem apenas reforçar o legado do compositor que conquistou o público desde o festival realizado no Teatro do Amazonas, na década de 1990.

[8] Nelas o leitor e ouvinte deparam-se com a cultura paraense, roraimense, amazonense e têm ainda contato com imagens externas (Caribe, Pacaraima, fronteira com Venezuela, e outras culturas).

[9] Pode-se ainda pensar o movimento roraimeira como uma leitura do tropicalismo, além de ser um link para se estudar muitas obras como um modernismo tardio. Neste viés, o texto faz referência intertextual com Macunaíma de Mário de Andrade. O que faz da produção dos autores roraimenses uma tradução do espírito nacional concentrado em um Brasil indígena e mitológico.

[10] Conforme conceito do formalista russo Tomachevski (1973).

[11] O Movimento Cultural Roraimeira surgiu na década de 80 em Roraima inspirado no Movimento Modernista e no Movimento Tropicalista, tendo por finalidade promover as riquezas naturais da região, a valorização do povo e contribuir na formação da identidade cultural local.

 

Recebido em outubro de 2016
Aprovado em janeiro de 2017