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Heloisa Buarque de Hollanda entrevista Marlyse Meyer

Conversa de amiga, lição de mestra

Marlyse Meyer é uma mulher bela, elegante, extremamente vaidosa e, como diagnosticou Antônio Cândido, um animal acadêmico. Quanto a isso não há dúvida. Entretanto, sua natureza acadêmica, ainda que visceral, me parece apresentar certos traços bastante particulares que merecem um pequeno exame. Antes de qualquer coisa, salta aos olhos de quem lê ou convive com Marlyse, sua obstinada curiosidade. Pesquisadora nata, persegue com afinco toda e qualquer pista sugerida por leituras, documentos, fontes diversas, subtextos, conversas. Uma curiosidade intelectual com essa intensidade poderia facilmente levar e, geralmente, leva, à dispersão. Entretanto, no nosso caso, a obstinação da descoberta impede qualquer acidente de percurso. Essa curiosidade peculiar aliada à sua imensa capacidade de escuta me parece, de fato, o traço que mais define a atividade intelectual de Marlyse. Mas alguns atributos acessórios também não são desprezíveis. E aqui eu destacaria dois fatores em especial. Uma independência intelectual ímpar, o segredo atrás do design de objetos de pesquisa aparentemente insólitos, os quais batiza de altos e baixos estudos, ficção de segundo time, novelas sem fronteiras, entre outros. Um estilo de escrita ensaística pessoal e intransferível, e uma generosidade intelectual estrutural que lhe permitiu ter formado escola e gerado uma respeitável linhagem de descendência acadêmica. Ao conjunto desses traços, quando atuados adequadamente por um profissional competente, dá-se o nome de Mestria. A essa altura já deve estar clara minha admiração por Marlyse Meyer, amiga e mestra.

Foi nessa qualidade, que numa de minhas passagens por São Paulo, mais precisamente no dia 5 de outubro de 2004, fui encontrá-la em seu apartamento na rua Aracaju e realizei essa entrevista. Uma entrevista livre, sem tempo de duração, nem local de publicação previstos. Foi fruto apenas de um desejo forte de registrar o pensamento, o processo de trabalho e as motivações que marcam a produção de Marlyse. Aqui falamos de seus interlocutores, afinidades eletivas, da grande importância dos encontros para sua formação. Na conversa, Marlyse deixa transparecer uma percepção interessante de sua criação sempre feita de supostas coincidências, ocorrências acidentais, explicações e encontros quase mágicos. É assim Marlyse Meyer. Uma criadora de enredos, uma ouvinte exemplar.

Heloisa Buarque de Hollanda: Como foi sua trajetória acadêmica que resultou numa produção tão peculiar e sua, que é essa extensa pesquisa sobre as formas menores de literatura e de cultura?
MM: Sou paulista, estudei na USP. Eu queria fazer história que foi a minha paixão de sempre. Decidi então entrar para história ou ciências sociais. Mas o vestibular para história tinha desenho por causa dos mapas e o de ciências sociais tinha estatística. Entrei então para um cursinho de pré-vestibular no Ginásio Perdizes e o jovem professor que estava dando aula pela primeira vez, era o professor Antonio Candido. O pai dele tinha morrido, ele precisava se sustentar e começou a lecionar. Ele conta que graças a esse cursinho ele comprou o primeiro sapato pago com o dinheiro dele. Foi lá que o conheci, um encontro definitivo que é todo um pedaço das minhas recordações.

HBH: E por aí você acabou fazendo letras.

MM: Acabei indo para literatura por falta de coragem. Fui fazer neolatinas que era muito ruim naquela época. Antonio Candido estava ainda em ciências sociais na USP. Eu tive um professor francês, monsieur Bonzon, que foi muito bom, mas acabei fazendo um curso com o qual não me identifiquei. Então comecei a fazer cursos em vários departamentos. Estudei com o Rui Coelho, o Roger Bastide, e outros tantos. Fiz licenciatura francesa. E mais tarde doutorado.

HBH: Sua tese foi sobre Marivaux. Por que essa escolha?

MM: Talvez um dos motivos pra escolher Marivaux, foi porque eu sonhava conhecer a França, e minha mãe não deixava porque era o pós-guerra e eu poderia ser influenciada por perigosos existencialistas e coisas assim. Então escolhi Marivaux e fui me especializando, fui escolhendo uma perspectiva mais ligada à técnica de teatro, como revela o próprio título da tese: Convenção no teatro de amor de Marivaux. Foi assim que consegui ir para a França, pela primeira vez. Nessa época, eu já estava casada. Conheci o Meyer na Faculdade de Filosofia. Ela fazia física e eu fazia letras no mesmo prédio. Me casei, tive filhos e finalmente consegui uma bolsa para fazer doutoramento, sobre o teatro de Marivaux, em Paris. Nessa tese, estudei a convenção do teatro clássico e a convenção da comédia italiana.

HBH: Quem foi seu orientador?

MM: O professor Bonzon foi meu orientador. A pesquisa foi feita em Paris, mas a tese era da USP.

HBH: Antonio Candido foi da banca?

MM: Foi. O que me valeu, depois, um certo reconhecimento francês. Numa primeira etapa, quando voltei para a Europa, minha tese não foi apreciada pelos professores franceses. Mas depois segui um curso sobre Marivaux com um professor de história do teatro na Sorbonne e percebi que ele dizia algumas coisas que eu tinha desenvolvido na tese. Bem mais tarde, em 1990, ela foi publicada em tradução para o português com o título Surpresas do amor. Hoje ela faz parte da bibliografia sobre Marivaux; inclusive recebi cartas de professores franceses elogiando o trabalho, mas infelizmente não foi reconhecida na época em que voltei para a França e precisava trabalhar.

HBH: Você voltou para a Europa por questões familiares?

MM: Foi. Por causa de meu marido. Ele foi aluno do Leite Lopes, e fazia parte de um grupo de físicos que acabaram indo para a Europa porque não tinham o que fazer aqui. Isso foi por volta de 1959.

HBH: Mas nessa época você já trabalhava na USP. Deve ter sido uma decisão complicada.

MM: Foi. Eu era a assistente do professor Bonzon, de literatura francesa na Faculdade de Filosofia. E era provavelmente herdeira daquela cadeira. Portanto ir para a Europa naquele momento não era muito bom para minha carrreira. Fomos primeiro para a Itália, ensinar na Universidade de Pádua.

HBH: E você conseguiu trabalhar ou estudar lá?

MM: Foi meio difícil. Eu me mandava de ônibus para Veneza e passeava em Veneza e fiz de Veneza minha cidade. E ia na casa do Goldoni estudar. Como eu havia estudado muito a Commedia del’arte para a minha tese, comecei a trabalhar com Goldoni, que é um estudioso do século XVIII italiano. Foi lá também que, passeando, fui a uma cidade chamada Ferrara e assisti à peça A Moscheta de Ruzante. E foi a primeira vez que tentei escrever por conta própria. Escrevi então um artigo que está hoje no Pireneus e Caiçaras. Acho que foi o primeiro texto sobre o Ruzante que foi escrito no Brasil. Depois meu marido foi para Paris e lá fui eu atrás.

HBH: Você já tinha filhos?

MM: Tinha um, meu segundo filho nasceu lá. Então eu vivi o problema da mulher na Europa, sem ajuda doméstica, tendo que trabalhar e estudar. E deu para fazer tudo. Fiquei muito orgulhosa com isso, porque na realidade eu não conseguiria parar de trabalhar. Levei novamente minha tese para a Sorbonne e ela não foi bem aceita. Mas um dia, saiu uma crítica no jornal sobre uma mise en scène do Marivaux feita por um grande especialista neste autor e mandei a tese para ele. Ele gostou muito e foi aí que começaram a surgir elogios a meu trabalho. Foi também nessa época que comecei um trabalho de tradutora na Gallimard e outras editoras, tendo traduzido, inclusive, a Minha vida de menina da Helena Morley. Eu vinha para o Brasil todos os verões e assim consegui guardar meu cargo na USP, uma licença sem honorários, até os anos 70. Durante o período do verão europeu, eu sempre reassumia na USP e voltava a dar minhas aulas.

HBH: E na França, você conseguiu dar aulas?

MM: Consegui. Mas o máximo que consegui foi um sub-trabalho para minha formação. Fui leitora de francês, que é muito pouco.

HBH: Vocês tinham planos de voltar?

MM: Nós íamos voltar exatamente em 64. Nesse ano eu recebi uma carta de Antonio Candido: “Venha. Finalmente abriu-se uma cátedra de física nuclear para o seu marido, você volta para literatura francesa e vai partilhar com a gente das alegrias da vitória do dia 13 de março no Rio de Janeiro”

HBH: Uma alegria que iria durar no máximo 15 dias.

MM: Pois é. A própria carta chegou no dia 1º de abril. Foi aí que comecei a batalhar um trabalho na Sorbonne.

HBH: Não dava para vocês voltarem?

MM: Não dava, porque a gente começou, de repente, a receber amigos que tinham sido exilados. Minha casa virou uma espécie de hotel, de hospedaria de gente que já veio fugindo de 64. Muita gente, o pessoal de Pernambuco, físicos, colegas do meu marido, o próprio Leite Lopes… Em 68, a gente ia voltar de vez.

HBH: Outra data complicada…

MM: Em 67, o reitor Azevedo, de Brasília, insistiu muito para que o Meyer voltasse e fosse para Brasília. A gente estava topando. Naquela época, eu já estava me interessando pela cultura popular brasileira e me entusiasmei com a idéia. Mas, de repente, Brasília sujou. E passei o 68 na Sorbonne, o que foi um capítulo importante na minha vida. Entrei no maio francês direto com Celso Furtado, Fernando Henrique Cardoso e outros.

HBH: E você conseguiu manter seu vínculo com a USP mesmo com a onda de demissões da época?

MM: Eu escapei porque estava de licença. Mas em 71 a coisa apertou em termos políticos. O José Aderaldo Castello organizou um enorme Seminário Internacional na USP. A única brasileira convidada fui eu. Eu já tinha até a passagem. Mas naquele tempo, eu já estava em plena fase de ajudar os exilados, de fazer o papel de pombo-correio, essas coisas perigosas. E recebi uma carta de Antonio Candido e outra do José Mindlin, dizendo “a gente sabe que você está planejando voltar, mas sua mãe esteve doente, o contágio pode ser perigoso…” E eu compreendi que não era para eu vir. As coisas também começaram a apertar muito na USP. Meu prazo de licença estava acabando, meus colegas se “esqueceram” de me avisar e eu acabei sendo exonerada.

HBH: E quando você voltou, afinal?

MM: Em 73, eu resolvi voltar. Marquei uma data arbitrária, que foi o aniversário de casamento dos meus pais. Eu queria voltar para o Brasil com uma livre docência. E não queria mais literatura francesa, estava fora de cogitação. Aí pensei num tema de literatura comparada. Nessa época eu estava ensinando literatura brasileira na Sorbonne, e estava dando José de Alencar, lendo Como e por que sou romancistae, de repente, eu me interrogo sobre a questão de como nasceu o romance brasileiro. Resolvi acompanhar aquelas pistas em que ele mesmo se pergunta: a quem será que eu devo a minha vocação de romancista? Era a época das grandes brigas de regência em torno da maioridade de Dom Pedro e me lembro do meu pai conspirando na cozinha e eu lendo ao pé da minha mãe alguns livros da biblioteca romântica que tínhamos: Sinclair das Ilhas, Oscar e Amanda, Celestina. Então, comecei a procurar saber quem era esse tal de Sinclair das Ilhas.

HBH: Isso era para o curso que você estava se preparando para dar na Sorbonne?

MM: É. Eu estava dando aulas na Sorbonne sobre José de Alencar. Foi quando começou a surgir para mim a idéia de fazer uma livre docência. Mas não fiz minha tese sobre José de Alencar. Era uma época em que eu ia e vinha muito ao Brasil, e me engajei numa pesquisa muito maluca, na Biblioteca Nacional Francesa e na Biblioteca do Rio sobre Sinclair das Ilhas. E isso me levou a várias perguntas: Lia-se? Havia público? O que se lia? Lia-se romance? Mulher lia romance? Então comecei a ler tudo ao mesmo tempo, li os relatos dos viajantes, procurando examinar tudo o que eles falavam sobre a leitura, sobre edição aqui. Tenho o fichamento completo disso tudo ainda guardado comigo. Enfim, começo a focar minha pesquisa sobre o que era lido em matéria de ficção, no Brasil, antes de 1844. Antes mesmo daMoreninha, de Joaquim Manuel de Macedo, considerado oficialmente o primeiro romance com público no Brasil, em 1844. Mas eu insistia: antes disso o que se lia?

HBH: E você encontrou bibliografia sobre isso por aqui?

MM: O Castello tinha um livro dos anos 50 no qual ele interrogava os primeiros escritores. Muito depois eu soube que o Barbosa Lima Sobrinho tinha feito uma antologia dos primeiros contos no Brasil pesquisados em jornais. Fui saber disso muito depois da minha própria pesquisa.

HBH: Você ficou muito tempo nesse trânsito Rio-Paris?

MM: Essa volta para o Brasil se deu muito por conta de amigos. Antonio Candido, Alexandre Eulálio, minhas influências. Sem eles, não dava para voltar, intelectualmente, porque minha referência toda estava na Europa. O caso do meu encontro com Alexandre Eulálio foi a partir de uma coincidência extraordinária. Eu havia acabado de traduzir para o francês Minha vida de menina, de Helena Morley. E Alexandre me contou que ele estava preparando um glossário de palavras brasileiras e estava se inspirando na tradução francesa da Helena Morley. Me espantou ele conhecer a tradução porque não havia sido nem publicada ainda. Havia sido o Mário Brant, marido da Helena Morley, que, na realidade, chamava-se dona Alice Brant. Quando eu disse que havia sido eu a tradutora, Alexandre quase não acredita e, para comemorar, me proporcionou uma experiência fantástica: um almoço com Alice Brant, ali na Lagoa. Na realidade a personagem principal do romance á a avó da Helena Morley, e ela, uma menina de 13 anos. Nesse almoço me recebeu uma senhora de cabelos brancos, meio cor de rosa, um pouquinho enrugada que era a Alice Brant, mas que, na minha cabeça, era a avó de Helena. Foi a maior emoção. Alexandre Eulálio me apresentou também uma pessoa fundamental na minha vida, que foi o Augusto Meyer. E ele ficou muito meu amigo. Eu conversava horas com ele e, através dele, conheci também o Cavalcanti Proença que dava aulas de folclore na Biblioteca Nacional. Fiz com ele, um célebre curso sobre cangaço, na USP. O Cavalcanti me iniciou nas coisas brasileiras, congos e congados, e o Augusto Meyer foi quem mais me encorajou a escrever e, sobretudo, a escrever desse meu jeito peculiar de escrever. Nessa época eu já pagava para ficar no Brasil.

HBH: Fala um pouquinho desse seu jeito de escrever que o Augusto Meyer teria incentivado.

MM: Eu estava na Bahia, assistindo a um espetáculo de candomblé de pobre, e dei uma topada terrível em um ferro que feriu e sangrou muito. Peguei uma erisipela terrível que custou muito a ser diagnosticada porque ninguém conhecia essa doença de pobre medieval sujo, e acabei ficando um mês sem poder mexer a perna e sem poder voltar para a Europa. Com isso, chateada e até mesmo meio culpada porque meu marido já estava me acusando de abandonar meus filhos, comecei a escrever, coisa que eu nunca tinha feito. Era centenário de Iracema e fiz um artigo que eu chamei “Para brindar Iracema”. Pus lá tudo o que eu pensava sobre Iracema e tudo que eu me lembrava dos cursos que dei na Sorbonne sobre indianismo. Antes de voltar para a Europa, mostrei meu texto para o Augusto Meyer, dizendo que eu tinha vergonha de publicá-lo porque minha escrita era muita maluca, que o que eu queria era apenas que ele me dissesse se as idéias estavam boas. Ele leu meu texto, adorou e disse o seguinte: “a senhora não tem que se pressionar para escrever de forma científica, a senhora evidentemente ama a literatura e me faça o favor de escrever desse jeito pra sempre.”

HBH: O Augusto também não escreve de forma rigorosamente cientifica …

MM: Foi por isso que ele me entendeu e deu força. Fui também bem amiga do Francisco Assis Barbosa. Tinha sempre, além do Augusto, mais dois cavaleiros do meu lado. Chico Barbosa de um lado e Cavalcanti Proença de outro. E, além disso, tinha o Castello, Antonio Candido, Gilda Mello e Souza e Maria Isaura Pereira de Queiroz. Essas pessoas todas me encorajavam e foram fundamentais para a minha volta e para a minha escrita. Eu comecei a fazer crônica de teatro e mandava textos para o Suplemento Literário do Estado de S. Paulo.

HBH: Mas, Marlyse, como e quando você deu seqüência naquela sua pesquisa vital sobre leitura, que é um objeto nobre e recorrente no contexto de sua obra?

MM: Nessa mesma época eu continuei com essa pesquisa. O livro do Castello falava em Pereira da Silva, Joaquim Norberto, precursores da novela brasileira. Barbosa Lima estudava os primeiros contistas brasileiros. A minha sorte era que, naquela hora, o que eu tinha não eram microfilmes; eu tinha esses trabalhos nas minhas mãos. O livro de Antonio Candido Formação da Literatura Brasileira, fala do Teixeira de Souza e diz também que o romance folhetim francês teve clara influência na origem dos nossos. Paralelamente, eu persistia nas minhas perguntas: o que é Sinclair das Ilhas? O que é o folhetim? Será que Sinclair das Ilhas é um folhetim francês? Passei a pesquisar em profundidade e a estudar o folhetim. Durante essas pesquisas, descobri que Sinclair das Ilhas, referido por José de Alencar é um romance. Machado de Assis atribui a leitura do Sinclair a muitos personagens dele. Principalmente em Quincas Borbas. Continuei então a procurar um exemplar de Sinclair das Ilhas, em tradução portuguesa. Não sabia, naquela época, que só existia em inglês. Pesquisei todos os catálogos.

HBH: Você não tinha referência nenhuma sobre o Sinclair?

MM: Nenhuma. Só tinha mesmo era o título do romance. Mais tarde acabei encontrando várias versões em francês e gente que muitas vezes atribuía sua autoria a madame de Montolieu, que traduziu o Sinclairem 1808. Naquela época havia uma troca muito grande entre a Inglaterra e a França. Até que finalmente eu caí na autora de Sinclair, que é miss Elizabeth Helme. Enquanto isso, estou procurando nos catálogos brasileiros, na biblioteca de livros raros brasileiros. E descubro que a miss Helme se situa numa espécie de corrente enorme do romance inglês de segundo time. Hoje isso tudo é muito sabido. Mas no tempo que eu estava pesquisando não havia nenhuma referência sobre essas histórias. Então como eu não escrevi nada disso, ficou uma coisa meio banal, mas paciência. Fui vendo que o Sinclair das Ilhas não era romance folhetim francês. Porque, no meio tempo, eu fiquei estudando os dois. Descubro que o romance folhetim é uma invenção jornalística, bolada por um jornalista em 1836. Os primeiros folhetins: Alexandre Dumas, por exemplo, começa realmente na década de 1840, 1843 e vai até o fim do século. Por conseguinte, pela lógica, o Sinclair das Ilhas, que é de 1808… Tem um folhetim de 1870. E tudo isso eu vou descobrindo em geral, em versões portuguesas e francesas. A versão inglesa, só fui ler na Inglaterra, quando, no meio tempo, fui estudar na British Library. Lá eu li todos os ingleses, vi que oSinclair fazia parte de uma corrente grande, do que parecia ser um similar de uma literatura de massa.

HBH: Nessa altura você já tinha algum projeto de publicação sistematizada disso tudo?

MM: Tinha sim. Tinha o projeto do livro Origens do romance brasileiro. A primeira parte ia ser o que eu chamei de “Tempos de Oitiva”. A partir de coisas indiretas, porque não havia muita pesquisa. Depois anexei letras de manifestações, falas, danças populares. Para essa primeira parte, “Tempos de Oitiva”, comecei a juntar livros sobre oralidade, depois parei com isso, porque o estudo da oralidade tomou um outro rumo, virou uma outra ciência, um outro saber. O que eu pensava fazer ali era uma primeira grande parte sobre o romance inglês e uma segunda sobre o romance folhetim. As coisas fizeram com que primeiro saísse a parte sobre o folhetim. E é um pouco como se eu tivesse cuspido no chão, na água, para algumas coisas, porque eu me matei de dizer que esse romance inglês não tem nada a ver com o folhetim. Porque é de 1780, 1790. Depois de eu ter feito tudo isso, dizendo que o folhetim é de 44, inventado na França, ainda tem o Sinclair que é romance folhetim francês. O estudo sobre esses ingleses sobre os quais acabei não escrevendo, tem a informações que estão mais ou menos concentradas em um artigo que nasceu graças a você de um colóquio sobre mulher, e que eu falei sobre “Mulheres romancistas inglesas do Século XVIII”. Está em um livro meu chamado Caminhos imaginários no Brasil, da Edusp. Esse livro traduz os meus caminhos, o meu imaginário de Brasil. Com histórias da minha mãe, com histórias de candomblé, com histórias de romancistas ingleses, com Carlos Magno e com traços da cultura brasileira.

HBH: Calma, Marlyse. Perdi o fio. Como entrou o Carlos Magno nesse contexto?

MM: Ele entra porque é também uma parte paralela à minha pesquisa sobre romance. Bom, mas eu vou te dar uma dica de como eu cheguei no romance. Quando eu era menina e passava as férias em Ilhabela da Princesa, como se falava naquele tempo em que não havia estrada de acesso, não tinha automóvel, não tinha balsa, não tinha nada. Bem eu tinha uma amiga no ginásio cuja mãe tinha ido para Ilhabela uma vez de barco e tinha achado tão lindo que comprou um hotel local e o transformou em casa. Eu fui lá com minha amiga. E aí, eu vi uma congada de São Benedito, em 13 de maio, eu devia ter 13, 14 anos. E o pai da arrumadeira lá da casa de dona Germana era mestre de congo. E foi a primeira de todas as outras espadas autênticas de Pedro II que eu vi. Nunca mais esqueci. Assim quando comecei a trabalhar eu já tinha uma visão antiga de congo, uma visão antiga de umbanda, já tinha ido muito a candomblés. Mas minha relação mais efetiva com o candomblé começou pela academia. Foi na época que chegando à França, fiquei procurando trabalho e não achei nada. Soube que Roger Bastide, que eu conhecia bem de São Paulo, tinha voltado para Paris. Fui então falar com ele atrás de algum trabalho na universidade. Porque na verdade, como dizia Antonio Candido, eu era um animal acadêmico. Minha vida inteira foi na universidade, não sei me pensar de outro jeito. Foi então que o Bastide me apresentou ao Jean Duvignaud, que hoje dá aula em alguma universidade do nordeste, mas que, naquele tempo, dava um curso sobre ritual, possessão e teatro, na Sorbonne. E a primeira tarefa que ele me deu, foi preparar um seminário sobre o livro do Bastide, O candomblé e a Bahia que tinha acabado de sair em francês. O que fiz, tremendo de medo, mas que terminou me dando um bom conhecimento teórico do candomblé. Quer dizer, quando eu fui passear na Bahia, eu já sabia do que se tratava ou, como diria o Antonio Candido, eu sabia do que se agitava (de quoi s’agit’il). E eu tinha uma enorme atração pelo tema do Carlos Magno, que conhecia pela tese da minha amiga Maria Isaura Pereira de Queiroz, sobre a história do Contestado. E ficava particularmente fascinada quando ela comentava o livro sagrado dos monges que era A história de Carlos Magno e os doze pares de França. Foi assim que cheguei e me apaixonei pela figura de Carlos Magno. Na realidade eu me identificava profundamente com José de Alencar quando ele menciona suas influências. Ele falava tanto do romance europeu, do Sinclair das Ilhas, quanto do popular, dos vaqueiros contando histórias na literatura. Na minha própria procura da ficção no Brasil, Alencar sinalizava essa minha dupla vertente.

HBH: Como foi sua experiência universitária na Europa?

MM: Quando saí do Brasil e deixei a cátedra de literatura francesa, que teria sido minha, em aberto, fui substituída por várias pessoas, como o Victor Ramos e também o professor Claude Frèches, que fez um belo trabalho sobre teatro jesuítico. Voltando para a Europa, agora eu estou em maio de 1968, arranjei finalmente um trabalho fixo, um cargo a minha altura. Comecei a oferecer um curso de literatura brasileira concorrendo com o pessoal da literatura hispânica. Desculpe o farol, mas o meu curso teve um sucesso fantástico e os estrangeiros começaram a ficar com certa inveja. Era uma época em que ninguém queria mais aulas magnas, queriam grupos de trabalho, debates. Inventei então grupos de trabalho em cima doVidas Secas; não fiz a bibliografia do Vidas Secas, era uma oficina diferente em termos metodológicos. É verdade que, os alunos, todos maoístas, me achavam muito burguesa. Mas acabou sendo um curso muito bom, e, como eu queria, eles sozinhos foram descobrindo Vidas Secas. No fim, vieram me agradecer.

HBH: E você era muito “burguesa” na época?

MM: Pelo menos parecia, porque eu ia dar aulas bem arrumada. E não esqueça, estamos na Paris de 1968. Mas eu participava politicamente.

HBH: Experiência e tanto, essa.

MM: É, mas quando estou fazendo a revolução na Sorbonne, para onde o Meyer, meu marido na época, leva a família? Para Genebra. Fechamos a casa de Paris, fecha o emprego, fecha a escola do menino, fecha o Liceu do Gil que ia entrar na faculdade. Então foi um inferno. Então, vou para Genebra, desesperada. Acabei acostumando, eram os anos 70, me tornei representante do MLF – Mouvement de Liberation des Femmes – de Genebra, em Paris. Minha filha tinha medo das minhas amigas do MLF… Por outro lado, meus amigos daqui, Antonio Candido e Maria Isaura me encorajaram a não desistir e, como não tinha mais trabalho, me inscrevi em todos os congressos sobre América Latina, sobre Brasil, que apareciam. Fui dar aula em Strasburgo sobre Modernismo. O meu querido professor Castello que estava em Aix-en-Provence, deve ter falado para o Frèches do meu estudo sobre o Sinclair das Ilhas. Fui assim convidada para ir falar sobre Sinclair das Ilhas em Aix-en-Provence. E topei. Chego em Aix-en-Provence, que é uma cidade linda e o Frèches me tinha preparado uma surpresa, com a qual eu até passei fisicamente mal. Eu chego lá, e percebo que o tema do Congresso é Marivaux. Fico logo também sabendo que o congresso era organizado pelo que se tem de mais refinado na literatura, que é a Sociedade Aix-en-Provence para Estudos do Século XVIII. E lá eu estou, convidada para falar sobre oSinclair das Ilhas no dia seguinte. Eu fiquei com muita vergonha de falar com aquela francesada toda, comecei a me sentir mal, era muito tímida. De repente, o Frèches vem e me apresenta ao professor Henri Coulet, diretor da Sociedade de Aix-en-Provence de Estudos do Século XVIII, e professor de literatura em Aix. Coulet veio e me perguntou: Já que a senhora veio do Brasil, por acaso conhece madame Meyer? Foi incrível. Quando eu disse que era eu, ele quase não acreditou. Voltei numa sessão da tarde do congresso e todo mundo já sabia o que eu sabia, do folhetim, do Sinclair e me perguntava se eu era também especialista em Marivaux. Eu escapava dizendo que apenas havia feito minha tese sobre ele, que não era especialista. E continuavam me perguntando sobre meu trabalho com século XIX, depois com o teatro. E espantavam porque eu trabalhava com romance e com o folhetim e como eu podia passar com tranqüilidade da alta literatura para a baixa? Percebi então que eu já era pós-moderna e não sabia.
No ano seguinte, recebo uma carta do mesmo Henri Coulet me convidando para participar do outro congresso cujo tema era “Os turcos e barbarescos no Século XVIII”. Os barbarescos, em geral, eram aqueles piratas argelinos. Respondi dizendo que em matéria de turcos do Século XVII, eu só conheço Carlos Magno no Brasil. O convite se confirmou imediatamente. Durante meu período em Genebra, toda vez que eu vinha ao Brasil, eu comprava tudo sobre o Brasil. E, a partir do Mário de Andrade, do Danças dramáticas brasileiras, construí um texto sobre Carlos Magno e os doze pares de França na cultura popular brasileira.

HBH: Não me lembro do Carlos Magno como tema no Mário.

MM: Ele fala de Carlos Magno, mas não está organizado. Eu tive que ir localizando esse tema no Mário com cuidado. Acabei não podendo ir para Aix, mas mandei o meu texto que infelizmente não chegou a tempo de ser publicado nas Atas do Congresso. Mais tarde apresentei esse trabalho num congresso em Vancouver. Nessa época eu soube que o Douglas Monteiro estava escrevendo o livro mais lindo que eu já li que foi Errantes do novo século, que é uma história do Contestado. Maria Isaura insistiu para que eu mandasse meu texto para o Douglas que terminou citando meu trabalho no livro e insistindo para que eu traduzisse o texto para o português e o publicasse aprofundando os detalhes e frisando a importância da minha pesquisa. Comecei a traduzi-lo e, com a ajuda das criticas de Maria Isaura, se tornou num texto substancioso, que a Duas Cidades se interessou em publicar. Foi quando voltei definitivamente para o Brasil e foi uma batalha achar onde trabalhar.

HBH: Você já chegou sozinha, sem marido?

MM: Ele tinha sido convidado pela Unicamp para montar um Departamento de Energia Solar. Castello, Antonio Candido e Maria Izaura tomaram conta de mim. Eu estava precisando de emprego, de dinheiro, porque havia decidido me separar e, por isso mesmo, não queria ir para a Unicamp. O reitor da Unicamp estava me propondo mil coisas. Os três, Antonio Candido, Castello e Maria Isaura me propuseram entrar para o departamento deles. Mas eu não era socióloga, não ia dar certo. Eu queria ir para a USP que era o meu lugar. Mas nessa época a USP estava vivendo um momento institucional complicado. Antonio Cândido ia se aposentar e havia uma tremenda briga pelo poder. Olhando isso à distancia é que posso compreender as puxadas de tapete que eu estava tendo na minha própria casa, que é a USP; o pessoal de literatura comparada achava que eu ia entrar nessa disputa. Eu soube disso muito mais tarde. Foi bom eu não saber, senão certamente eu teria me envolvido. O Rogério Siqueira Leite mais o Zeferino que era o reitor, queriam que o Antonio Candido articulasse alguma coisa de literatura na Unicamp. Então, sugeri a criação de um Departamento de Literatura, com abertura sobre a América Latina. Mas eu acabei no Instituto de Artes, porque eu não tinha onde cair morta e me lembrei que eu tinha uma tese sobre teatro. Então, criei o Departamento de Artes Dramáticas e um Núcleo de Estudos Comparados em Cultura Popular.

HBH: Então você não conseguiu, naquela época, voltar para a USP?

MM: Decidi pela Unicamp só depois de muito batalhar pela USP. O Antonio Candido não avaliou bem um fator importante: teoria literária e literatura comparada eram diretamente ligados ao Departamento de Lingüística e Línguas Orientais, cujos diretores faziam oposição a ele. Por este motivo, acabei não entrando. Tudo isso acontecia enquanto eu ainda estava na Europa, brigando pela minha volta. Nesse meio tempo, resolveram abrir um credenciamento na pós-graduação da USP para quatro disciplinas: literatura brasileira, literatura comparada, teatro italiano e cultura popular brasileira. Acabei ficando com as quatro disciplinas para garantir a minha entrada na USP.

HBH: Isso é que é paixão. Porque essas disciplinas são totalmente desconectadas. Deve ter sido um trabalho imenso preparar tudo isso.

MM: Bem, literatura brasileira, comparada e italiana não tinham muito problema. O que eu não sabia mesmo nada era na área de cultura popular brasileira. A única coisa que eu sabia na verdade era a história de Carlos Magno e ponto final. E essa disciplina foi justamente a que dei em primeiro lugar, para ciências sociais, na pós-graduação. Hoje vejo que o que eu fazia era estudos culturais com uma perspectiva pós-modernista. Mas por conta disso, comecei a ser agredida por cientistas sociais que queriam saber se eu era culturalista, ou se eu era sei lá o que e eu dizia que não tinha a menor idéia. Outros diziam que eu fazia uma coisa muito simples demais para a pós-graduação e por aí ia. Mas eu trabalhava para a média, que eram os alunos de ciências sociais que me adoravam. Nessa época eu ainda não tinha começado em Campinas, ganhava tempo parcial. Foi quando dei um curso sobre Balzac e As ilusões perdidas, e o André Singer, que assistiu este curso, veio me agradecer dizendo que sociólogo precisa aprender literatura. Depois dei um curso sobre Comedia dell’Arte, mas o sucesso mesmo começou quando dei um curso sobre literatura comparada e brasileira e introduzi as minhas coisas.

HBH: Suas pesquisas sobre o folhetim?

MM: Exatamente. A Walnice Nogueira Galvão sugeriu que eu escrevesse um artigo sobre o Sinclair. Esse artigo saiu, em 1973, na Revista do Instituto Brasileiro, número 14, com o titulo “O que é e quem foiSinclair das Ilhas”. Foi nesse momento que assumi plenamente minha pesquisa e abri toda a minha documentação para a meninada, ensinando como se faz pesquisa.

HBH: E a Unicamp? Você conciliava tudo isso e mais seu trabalho da Unicamp?

MM: Foi. Porque nesse meio tempo surgiu o Instituto de Artes de Campinas e fui nomeada para esse Instituto. Mas não interrompi minhas aulas na USP. Todos os anos o pessoal lá renovava os cursos, só iam mudando os títulos. E, com isso, fundei o Instituto de Altos e Baixos Estudos do Imaginário. E aí começou a se formar a minha turma que eu chamo de crianças, que é a Valéria, a Sandra Vasconcelos, Rita, José Guilherme e várias outras que ficaram alucinadas em torno destes assuntos que ganharam vários nomes diferentes: História de Ficção de Segundo Time no Brasil, Novelas sem Fronteiras, etc. Minha pesquisa, que estava toda espalhada, foi tomando forma e comecei a trabalhar com o negro, com cultura negra. Recolhi muitos depoimentos de mestres de congos, de candomblé, da Lélia Gonzalez, que participaram do SBPC sobre cultura popular, antes da anistia, nos anos 70. Logo depois, no Ceará, fizemos um congresso que acabou se chamando “Caminhos do imaginário no Brasil”, um nome inventado por mim e por minha colega e parceira, Maria Lúcia Montes. Mais tarde, esse foi o título de meu futuro livro.

HBH: Teve também, na época, aquela revista excelente, Almanaque da Brasiliense, onde você introduziu esses assuntos, não foi?

MM: Houve. Teve um número dedicado a Antonio Candido, onde eu publiquei uma versão um pouco aumentada do meu Sinclair das Ilhas e, depois, no segundo Almanaque, aquele cor de rosa, que se chamou Formas menores de ficção. Esse número falava de todas essas formas, inclusive sobre a imprensa feminina, num artigo da Dulcília Buitoni. Estava lançado esse negócio. Com o tempo, o pessoal foi me procurar para fazer pós-graduação em assuntos diferentes dos usuais como melodramas do circo teatro, cultura negra.

HBH: Você tem razão. Isso são estudos culturais, são temas que não cabem nas grades disciplinares tradicionais.

MM: É isso. Eu passo a ser chamada para tudo. Vou para a banca da tese da Paula Monteiro sobre umbanda, para outra de literatura francesa, de cultura negra, candomblé.

HBH: Por outro lado, esses temas são todos muito ligados ao estudo da formação da cultura brasileira, não é?

MM: É, talvez. Não foi por acaso que me chamaram também para banca de tese sobre Mário de Andrade. Por isso, quando me perguntam o que eu faço, eu digo que trabalho num eixo e esse eixo, em torno do qual eu circulo, é a cultura brasileira.

HBH: Nesse sentido, como você chegou ao livro sobre os rituais em torno das diretas e do Tancredo?

MM: Fui ao Comício das Diretas porque eu e Maria Lucia Montes íamos a muitas festas populares. Como Maria Lucia morava num bairro popular, conhecia muitas festas. Eu estudava as festas, o candomblé, a cultura negra, e estava construindo todo um saber meu sobre cultura popular que não era apenas teórico, era também uma prática. Foi por isso que fui ao Comício das Diretas. Eu sabia que o pessoal do PMDB tinha que estar ali, então foi me dando uma angústia que me dá em teatro vazio, não tinha ninguém, não tinha nada na rua. E a imensidão do Anhangabaú. De repente, foi chegando um ali, outro lá e eu percebi, naquela hora, uma festa popular se formando naquele espaço. A partir disso, fiz uma leitura dessa multidão reencontrando o gestual de festas ancestrais. Aí morre o Tancredo, eu também fui ver. Fui para a rua, ouvia tudo e assistia atenta e, de repente, percebi ali também uma festa popular, meio às avessas. Fui conversar com Maria Lucia, que é a cabeça teórica da dupla e, durante uns dez dias, ficamos até quatro, cinco horas da manhã trabalhando ali, na Freguesia do Ó, que é um bairro muito popular. Eu fazendo uma leitura prática e ela teórica. O Tomaz Queiroz, que morreu no ano passado, quis editar esse material. Eu queria que o título fosse Das Diretas a Tancredo, mas ele achou que esse era um título muito comercial e o livro terminou se chamando A festa na política. E os livreiros, que recebiam o livro que a Nobel distribuía mais ou menos, ficavam atrapalhados – como sempre acontece com todos os meus livros – não sabiam aonde classificá-los.

HBH: Mas foi um livro importante. Talvez a única reflexão sobre esse momento nacional realizada no calor da hora. Mas, voltando aos temas que você mencionou antes, qual foi o seu interesse real pelo candomblé?

MM: Primeiramente, foi conhecer um fenômeno que faz parte da cultura popular. Depois, o candomblé passou a estar ligado a circunstâncias pessoais da minha vida.

HBH: Como foi essa passagem?

MM: Deixou de ser uma curiosidade intelectual e tornou-se uma vivência minha. De repente, caí num terreiro e me deparei com uma pessoa com quem eu tinha uma atração muito profunda. Naquela época, quando a minha casa estava se destruindo, senti o terreiro como se fosse a minha própria casa.

HBH: Que terreiro era o seu?

MM: Foi o terreiro do Pai Doda, que morreu há três anos. Um terreiro de São Paulo. Fui aprender, conhecer e aí ganhei um colo e fui ficando. E eu passei a ser Ekede que é o feminino de Ogam, quer dizer, quem não recebe santo. A minha função era de ajudar apenas, em dia de festa eu ajudava as pessoas a se vestirem.

HBH: Então a pesquisa de campo deixou e ser pesquisa e virou uma experiência pessoal mesmo.

MM: Nunca foi pesquisa, sempre foi um campo onde eu fui me deixando entrar e, de repente, resolvi fazer a iniciação da Ekede. Me recolhi durante três dias, fiz o ritual todo, me arrumei e nunca deixei de ir a uma festa.

HBH: Mas você não abandonou a pesquisa.

MM: Não, eu já tinha um conhecimento e continuei estudando e acompanhando as festas. Eu sabia, por exemplo, que tinha congo e congada na região sul de Minas e que, em São Paulo, se dançava o congo no dia 13 de maio, dia de São Benedito. Fui então na rodoviária e perguntei qual seria a festa de São Benedito mais perto de Campinas. Me informaram que a mais próxima era em Itapira. De lá, eu soube que Carlos Magno aparecia em Poços de Caldas, lá fui eu para Poços de Caldas carregando meus alunos. Depois, me apaixonei pela Festa do Divino, fui atrás dela perto de Piracicaba. Tudo pensando sobre as festas e dando meu curso.

HBH: Isso era o Instituto de Altos e Baixos Estudos?

MM: Era para ser, mas como eu tinha preguiça de pedir dinheiro, nunca oficializei nada. O pessoal desse grupo de estudos foi crescendo, viraram meus alunos e na intimidade todos são chamados de Altos e Baixos. Hoje são livre docentes, coisa que eu não sou. Ninguém mais fala em Altos e Baixos, mas continua tendo uma prolongação. Estou agora com a tese de doutoramento da Maria Eulália, que é minha neta, e agora está pesquisando a tradução de ficção britânica, via França, nos jornais fluminenses do século XIX. Estão estudando a fundo essas primeiras manifestações.

HBH: Estes estudos de cultura, digamos, “menor”, incluía a cultura de massa do século XX?

MM: Entre as minhas alunas daquela época e agora, outras, estão estudando a telenovela.

HBH: Mas a telenovela só aparece na sua fala bem mais tarde.

MM: Na minha produção quase não entrou nada de telenovela. Entrou sempre muito na minha falação. E como entrou foi muito engraçado, anedótico. Quando cheguei ao Brasil, começo a descobrir a telenovela. Eu via muita telenovela; quando voltei estava passando Água viva, com a Beatriz Segal, que era muito minha amiga, e que foi bolsista naquela época, da primeira vez que fui a Paris. E eu estava dando o curso de Sinclair das Ilhas e falando sobre a estrutura de folhetim. De repente, paro e digo: “Gente, o mais fácil para entender folhetim é ver telenovela”. A reação a isso que veio foi terrível.

HBH: Reação negativa? Em que época isso?

MM: Foi nos anos 70. Pouco antes da anistia. Alguns, indignados, reagem: “Nós vamos ver telenovela? Nós da teoria literária?” Num outro dia, eu estava falando desses romances que eu chamo de “segundo time”, que são as ficções inglesas do século XVIII, como Os três mosqueteiros e uma aluna diz: “A minha avó lia Os três mosqueteiros. E eu tento mostrar que essas leituras eram muito comuns. Era o que eu passei a chamar de “ressurgências da memória”, porque quase todos os alunos da USP e da Unicamp são do interior. Fomos então fazendo memórias do que as famílias dos alunos liam e, mesmo com algumas resistências, falamos das telenovelas. O tal da teoria literária que não queria ver telenovela me disse: “A gente faz um sacrifício enorme para estudar na USP, viemos de longe, e a senhora manda ver telenovela e fala dessa literaturazinha. E eu digo: “Literaturazinha talvez, mas a sua avó leu, faz parte da sua educação, eu também li, faz parte, é assim que se constrói a cultura da gente”. Mas pouco adiantava. A revolta contra a telenovela era muito grande. E ainda tinha uma agravante: naquela época o homem não podia falar que via televisão. Só bem mais tarde é que gente que trabalhava com televisão quis fazer o meu curso. No final, eu nunca escrevi nada sobre telenovela.

HBH: Mas você trabalhou muito sobre isso.

MM: Trabalhei, estudei, pensei, falei, fiz muitas coisas. E às vezes empaco com o assunto. Agora estou vendo Senhora do destino. Às vezes eu gosto, às vezes não gosto. Mas o interessante é que ela é a encarnação do folhetim do século XIX, que está funcionando bem outra vez. Tem algumas coisas realistas porque é necessário, mas a telenovela é construída como um folhetim total, desbragado. Tem todos os ganchos, as vilãs totais. Você vê que o autor não está nem aí, é uma delícia.

HBH: Uma vez a gente conversou sobre o nó narrativo das novelas que era a paternidade desconhecida e como este nó estaria enfrentado a realidade da invenção do teste DNA, um golpe fatal nesse nó. E que uma das saídas que a telenovela estava encontrando era a falsificação dos exames de DNA pelos vilões.

MM: Tem que ser. Porque se não for falso não tem história, acaba a história, completamente. Lembro que a gente conversou sobre isso e eu disse que tinha colocado no papel. Mas foi en passant num texto sobre folhetim. Não sei mais onde está. Esse material estava todo disperso em anotações, palestras, aulas. E aparecia tanta gente me falando de folhetim, querendo saber o que era folhetim, que eu resolvi juntar tudo o que eu tinha nesse livro que se chama Folhetim, uma história. Um livro que me deu muita alegria porque teve uma repercussão extraordinária.

HBH: Hoje ele é um livro único, um livro de referência obrigatória.

MM: Entre as críticas do livro, a mais linda foi a do Antonio Callado. Ele disse que o meu livro é, em si, o próprio folhetim. Por isso, acabei conhecendo o Antonio Callado, o que foi uma alegria da minha vida, eu o conheci um ano antes dele morrer. Nós nos víamos muito.

HBH: Nessa época você teve um surto e botou para fora todo o seu trabalho. Tudo na mesma época, não foi?

MM: É verdade. Saiu tudo junto por volta de 1993. Pipocou tudo ao mesmo tempo. A tradução francesa da minha tese, que é Surpresas do amor, depois saiu Caminhos do imaginários, e ainda traduzi Raízes do Brasil para o francês.

HBH: Foi ainda por aí que você entrou com a Pomba Gira.

MM: Vou contar como a Pomba Gira baixou no meu trabalho. Fui convidada para uma banca de tese da Laura Melo e Souza sobre feitiçaria no Brasil, mais tarde publicada com o título O diabo na Terra de Santa Cruz. Na banca também estava o Peter Fry e foi interessante porque nós dois observamos a mesma coisa. A pesquisa da Laura sobre as feiticeiras foi feita a partir de coisas da Inquisição. E ela se refere a uma feiticeira portuguesa, Antonia Maria, que no século XVIII foi desterrada para o Recife. E a Laura cita algumas orações de diabo dela que acabam assim: Maria Padilha e toda a sua quadrilha. Eu e o Peter achamos graça, porque nós sabíamos que Maria Padilha é um dos nomes da Pomba Gira. Então começou uma série de coincidências incríveis. Estou dando os meus cursos e, por acaso, abro um livro de romanceiro espanhol e caio na historia do “Romanceiro do Rei Pedro I Cruel”. E aí eu vejo várias romances para dona Maria de Padilha. Foi um susto total. Fiz então um texto pequeno em que eu conto as minhas descobertas e tento pensar um pouco mais. Tento fazer uma reconstituição histórico-imaginária. Porque eu sei que Maria Padilha é uma Pomba Gira, tipo puta, mulher linda, bonita, maravilhosa que conquista qualquer homem. E os romances de Maria Padilha contam que ela mandou matar a esposa legítima do Pedro I Cruel, que transformou seu sítio num sítio de serpentes. E eu comecei a me perguntar sobre a Antonia Maria, que era uma feiticeira de carne e osso do século XVIII. E fui estudar um pouco sobre Pedro I, Cruel. Descobri que a vida da Maria Padilha não foi tão atribulada quanto se acreditava. Na verdade, ela foi demonizada pela Igreja. E, só a partir daí, virou demônio no romanceiro. O Quevedo fez um poema sobre a belíssima Maria Padilha de olhos negros. Então, tínhamos as duas visões. E aí eu construí uma pequena história tentando imaginar uma relação entre a Maria Padilha Pomba Gira e a verdadeira Maria Padilha mulher. Fui convidada pelo Wander Miranda para a Abralic que acontecia em Minas naquele ano e eu tinha proposto levar esse ensaio da Maria Padilha, que estava ainda meio cru. Mas assim mesmo, fui para Belo Horizonte levando a minha Maria Padilha em primeira exibição. Foi uma mesa muito engraçada. A Miriam Moreira Leite falou sobre família, a Nadia Gotlib falou sobre uma condessa, e eu sobre uma puta. Naquele dia eu estava mal, com medo, cansada, achando que não ia saber falar. Nesse ínterim, fui apresentada a um professor da UFMG de literatura brasileira que também era diretor ou presidente, não sei, de uma Associação Espírita. Eu, cansada, fui me sentar num canto para relaxar. Ele então me fez um gesto que não entendi bem e perguntei o que significava. Ele disse que era um elfo. Tipo um gnomo e me deu. Eu não falei mais nada, estava péssima. Foi quando chegou minha vez de falar. Eu comecei a ler um resumo que não correspondia mais ao que eu sabia sobre a Maria Padilha. Então eu ia intercalando o texto com minha fala. Quando acabei de falar, foram muitas palmas, todo mundo queria falar comigo. Um sucesso inesperado por mim. Aí o tal professor que me deu o gnomo me disse: ainda bem que eu te segurei, fiquei mandando energia para você voltar à tona.

HBH: Marlyse, às vezes você me dá medo.

MM: Mas não acabou. Logo em seguida uma mulher linda, mulata de cabelo branco, se aproxima e diz que precisa falar comigo. E diz que se chama Laura Padilha e estava chegando da Africa, onde havia ido para estudar narrativas orais africanas. E fala que estava muito impressionada comigo, porque cada vez que eu ia contar a festa de Maria Padilha, eu não contava e passava para outra coisa. Ela disse: “Você sentiu exatamente o que não se pode fazer em público. Um ritual como esse não pode ser contado em público”. Eu fiquei alucinada. Um ano depois, fui convidada pelo mesmo Wander para o Festival de Inverno de Minas Gerais que, em geral, é em Ouro Preto, mas que, naquele ano, seria em Belo Horizonte.

HBH: E é claro que você voltou a Maria Padilha.

MM: Inevitável. O título da mesa era Magia e Literatura. E eu dizia para o Wander Miranda, mas o que eu vou falar? E ele dizia: fala sobre Maria Padilha. A mesa, mais uma vez, era estranha. Havia um especialista em tarô, um outro especialista não me lembro exatamente em que e o Caio Fernando Abreu.

HBH: Caio?

MM: O Caio entendia muito de magia. E era muito ligado em candomblé. Quando acabo minha fala sobre a Maria Padilha, converso com várias pessoas e menciono que vou escrever um artigo sobre o assunto. E o Caio Fernando diz: como artigo? Não pode. Maria Padilha não vai aceitar um artigo, ela quer um livro. Tanto não podia, que eu telefonei para o Plínio da Edusp e perguntei se ele aceitava transformar o artigo em uma brochurazinha. Ele aceitou e logo depois ofereci para a editora Duas Cidades. E saiu o livro com aquela capa linda. E eu disse: não contem para o Benevenuto, porque ele é um antigo frei, mas dizem que eu preciso trazer alguma coisa para ela beber. Qual não foi minha surpresa quando me levaram para o primeiro andar e já tinha até um altar montado para ela.

HBH: Essa sua vida não cabe num folhetim não. É bem mais complicada do que isso. E tem mais coisa, porque me lembro de você, numa época, interessada em livros psicografados. Lembra disso?

MM: Foi porque estive na banca de duas teses espíritas. Eu comecei a pensar muito, andei examinando algumas coisas, li o diário de Tomás Antônio Gonzaga, um livro chamado Vigança do judeu que é umgrand classique. É do Rochester, psicografado por uma mulher de nome russo. Um dos problemas que comecei a me colocar foi o de quem é o autor do livro psicografado.

HBH: Existe uma questão em torno da autoria de um livro do Humberto de Campos que teria sido escrito por Chico Xavier, se não me engano.

MM: É. A família está com processo para saber quem detem o direito autoral. Estudei isso um pouco incidentalmente.

HBH: Hoje por onde você está andando?

MM: Hoje eu não estou escrevendo, estou sem pesquisa, sem nada. Acho que é porque, para mim, tudo nasce, todos os meus livros nasceram de aulas. Eu penso como professora. E não estou mais dando aulas…

HBH: Mas o que você teria vontade de trabalhar?

MM: Nada. Juro que não tenho. Às vezes, fico pensando horas. Eu só estou fazendo uma coisa: lendo sem parar e vendo novela. Eu estou preocupada porque estou ficando velha, me sinto um pouco sozinha. Eu não sou de pensar no passado, tenho horror. Mas agora estou voltando para algum lugar lá atrás. Acabei de ler um livro, que tenho há muito tempo, o livro A fé da lembrança de Nathan Wachtel, sobre os incas. É o último livro de uma trilogia sobre a história secreta da América Latina. Ele trabalha com documentos da inquisição, e fala de muitos marranos escondidos no Peru. Ao mesmo tempo, estou lendo um livro belíssimo de Munoz Molina, chamado Sefarade. É uma história romanceada sobre imigração, sobre campos de concentração. Também estou lendo outro livro sobre a fundação de São Paulo, A capital da solidão, do Roberto Pompeu de Toledo, que é lindo. E comecei a ler Joyce também.

HBH: Marlyse, a viagem dessas leituras é um trabalho subjetivo violentíssimo e que, tenho certeza, pode sugerir seu texto mais belo e definitivo.

MM: Que é uma viagem é. De repente, essas histórias são uma volta à minha própria vida, tem um judaísmo afirmado, junto com o candomblé, que não me atrapalha em nada. Percebi que, na minha história de vida, existem muitas histórias clandestinas, duas talvez. Mas eu não quero recordar, não quero viver mais nada do passado. Assim mesmo, existem coisas que insistem em voltar. E de repente, eu descobri coisas fundamentais, mas que tenho que mantê-las escondido.

HBH: Eis o texto!

MM: Pois é, eu acho que eu vou acabar escrevendo sobre isso, mas no momento ainda estou muito atrapalhada. Talvez, nesse caso, o fato de estar lendo muito pode ser apenas uma espécie de fuga que vai me levar até a telenovela. Mas ao mesmo tempo eu enchi das telenovelas. Achei O clone uma chatice, não consegui acompanhar Mulheres apaixonadasCelebridades também achei outra chatice. Essa história de ficar doente e ter que ficar em casa é problemática. Graças a Deus, meus amigos se lembram de mim, não me deixam ficar isolada. A vantagem de acompanhar uma novela é que sempre tem alguma coisa esperando por você.

HBH: A novela é exatamente isso para mim.

MM: Mas eu não tinha me tocado.

HBH: A novela antes de qualquer outra coisa, é uma convivência. Uma convivência íntima.

MM: Exato. A novela é uma família, uma família que está sempre me esperando. Com Senhora do destino, que está agora no ar, eu me surpreendi com os meus preconceitos. Um dia eu percebi que eu não queria conviver com essa família de nordestinos, com uma casa de mau gosto, horrorosa, pessoas mal vestidas. Depois, vi que era puro preconceito. Um preconceito que eu não sabia que tinha. Fiquei curiosa, li o resumo no jornal de domingo e voltei a ver a novela. Feliz de ver. Então, com isso, comecei a pensar de novo a telenovela. Fico feliz de você ter vindo aqui. Estou com pouca chance de troca intelectual com as pessoas. Eu quase não saio de casa e essas minhas histórias interessam a pouca gente.

HBH: Mas suas leituras não me parecem tão aleatórias como você diz. Para mim, você está muito focada em suas raízes. De judeus, de São Paulo, de várias outras formas não muito claras de pontos de origem. De começos e recomeços.

MM: Talvez seja só pura coincidência. Como eu tenho uma boa biblioteca, eu estou lendo Munoz, aí ele fala de uma Milena, e aí eu vou procurar dados sobre Milena. Mas ele fala de uma Margarete Buber-Neumann que ficou presa por Stalin na Sibéria e depois foi presa em Auschvitz. E lá ela conheceu a Milena, cujo nome todo era Milena Jesenskà e era apaixonada por Kafka. E este autor trabalha com essas coincidências. Fui revendo todas essas coisas, porque tem uma associação também com São Paulo. Depois fui ler o Joyce, descubro que estou amarrada. Fui ler Ulisses.

HBH: E você lê sempre tudo ao mesmo tempo?

MM: Tudo. De repente eu vou para a sala e vejo que tenho um livro da nossa amiga Argentina, a Beatriz Sarlo. Ela fala de novela, leio um pouco em pé. Em seguida, acabo de ler sobre os marranos, um livro que ficou aberto em cima da minha mesa uns três ou quatro meses, sem que eu tocasse nele. Vou então ver o que eu tenho de marrano na minha vida, porque na minha vida tudo é escondido. Tudo o que eu vivi de melhor é escondido. Na verdade, eu sempre me reprimi, escondi tudo.

HBH: Que momento especial esse, que você está vivendo agora. Você consegue perceber isso? A intensidade de suas falas?

MM: Não muito. Tudo isso está nascendo dessa forte consciência do tempo que eu estou tendo hoje, de um medo da idade que eu nunca tive, que começo a incorporar. Coisas do meu passado estão voltando, sem que eu queira. Começo a associar uma coisa à outra. Esse meu interesse pelos marranos, por exemplo, foi uma novidade. Você me diz que tem um texto meu esperando aí. Talvez tenha. Num dia, tenho vontade de escrever, fico empolgada. Mas no dia seguinte, já estou lendo outra coisa, já estou em outra. Os meus arroubos passam por aí. Estou é com uma certa dificuldade de concatenar tantas idéias