Ano XV 030201
1º semestre de 2020
dossiê
Tempo de leitura estimado: 28 minutos

O RIO DE JANEIRO EM CARA DE CAVALO, DA AQUELA CIA. DE TEATRO

O livro de registro da cidade é um labirinto: um texto que remete a outro, que por sua vez conduz a um terceiro, e assim sucessivamente.
Renato Cordeiro Gomes. Todas as cidades, a cidade.

Introdução

No mundo ocidental, o teatro é uma das manifestações culturais mais predominantes e populares desde a Antiguidade Clássica. Sua história também atravessa a história das cidades; o teatro narra a cidade, encena a cidade e se circunscreve em um espaço citadino tanto público quanto privado, no edifício teatral ou na rua[1].

Na Grécia Antiga, boa parte das peças era localizada em algum espaço público proeminente, da abertura da tragédia Édipo Rei, de Sófocles, que acontece em frente ao palácio do rei, à comédia de Aristófanes Lisístrata, onde mulheres se reúnem em frente à acrópole para combinar a greve de sexo que, segundo a protagonista, poria fim a guerras. Como assinala Stanton Garner Jr., “dos festivais atenienses civis e religiosos aos teatros públicos e privados do período moderno, sua história é paralela à progressão (ões) do urbanismo ocidental”[2] (Garner Jr., 2002, p. 95).

Para explicar a ideia de que “o teatro constituiu uma clara leitura do texto urbano”[3], Garner cita o exemplo dos cortejos teatrais do século XV “que literalmente atravessavam a cidade medieval em um mapeamento cognitivo carregado de significado”[4] (Garner Jr., 2002, p. 95). Com o desenvolvimento das cidades e principalmente a partir do século XX, o teórico acredita que o teatro seja “a mais urbana das formas culturais”[5] (Garner Jr., 2002, p. 96). Assim, Garner analisa como dramaturgos de gêneros variados leram a cidade: a cartografia de Londres, presente em A profissão da Senhora Warren e Major Barbara, de George Bernard Shaw; a Alemanha pós-guerra de Tambores na noite e a Chicago de Na selva das cidades, ambas de Bertolt Brecht; a Nova Iorque de A história do zoológico, de Edward Albee, etc.

Além da cidade representada no texto teatral – graças principalmente ao teatro de vanguarda da década de 1960 e aos happenings, como nos lembra Garner – foram “violadas as fronteiras entre teatro e cidade, auditório e rua”[6] (Garner Jr., 2002, p. 95). Desse modo, não só o teatro de rua permanece, como surgem novas formas de ressignificar o espaço através dos chamados environmental theatre[7], site-specific theatre[8] e immersive theatre[9]. Em linhas gerais, podemos dizer que tais modos teatrais dizem respeito ao teatro que é concebido a partir de ou considerando-se, essencialmente, o caráter simbólico do espaço da encenação, além de trazer à plateia para um contato mais direto com os atores.

Na contemporaneidade, além do teatro, da literatura, das artes plásticas e do cinema, também a televisão, através de novelas, séries e minisséries, ajudam a construir uma leitura da cidade. Como assinala Renato Cordeiro Gomes:

[…] a cidade é […] a simbiose entre cidade e cultura, cada vez mais flagrante nos estudos culturais, que vêem o espaço da cidade como o texto cultural mais significativo para os artistas e produtores de cultura hoje, e apontam para as inúmeras possibilidades do imenso laboratório em que se tornou o espaço da cidade entendida como esfera pública e como arena cultural.
(Gomes, 2009, p. 20).

Das diversas possibilidades de se pensar a cidade e o teatro, Jen Harvie (2009, p. 6) sugere três maneiras pelas quais “práticas teatrais produzem significado urbano”[10]. Elas se dariam através do texto dramático, das condições materiais e das práticas performativas. O texto dramático nos mostraria as relações entre a cidade e o personagem, o que nos levaria a perceber as relações sociais urbanas, não somente como os personagens lidam na cidade, mas com a cidade. As condições materiais, ou seja, onde o teatro ou a peça é encenada, quais as políticas públicas ou incentivos privados que tornaram a empreitada possível, como o teatro é equipado e quem nele trabalha, nos informariam sobre a estrutura artístico-urbana onde ele se inscreve. Quanto às práticas performativas, estas variam desde a encenação da peça a performances, intervenções teatrais, site-specific, protestos, ou seja, formas que de algum modo inserem o público na experiência em questão.

Partindo da premissa de que, na contemporaneidade, teatro e cidade têm uma relação cada vez mais amalgamada e levando a cabo uma das maneiras de analisar o significado do urbano proposto por práticas teatrais através do texto dramático, este estudo tem por objetivo examinar como a cidade do Rio de Janeiro é representada em Cara de Cavalo, primeira peça da chamada Trilogia Carioca da Aquela Cia. de Teatro, criada em 2005 e sediada nessa cidade.

As peças que compõem a trilogia, Cara de Cavalo, Caranguejo Overdrive e Guanabara Canibal, foram escritas pelo dramaturgo da companhia, Pedro Kosovski, e publicadas pela editora Cobogó[11]. Entretanto, o título desse estudo refere-se sobretudo à companhia, pois, no entender de Kosovski, ele realiza uma “dramatorgia” (Kosovski, 2019, p. 231), isto é, escreve a partir de um trabalho colaborativo que contou com diretor e atores na sua elaboração. A esse respeito, afirma Kosovski (2019, p. 230):

Eu imagino junto com muita gente, na sala de ensaio. Por isso a imaginação não está no campo pessoal, privado, íntimo […]. Estou pensando a imaginação e escrevendo no embate com várias pessoas, que também são, de certa forma, autores. Eu não sou o autor. Sou o dramaturgo e é só um texto. Agora, a autoria daquilo é uma autoria claramente da sala de ensaio.

Além de certos teóricos do teatro, principalmente os que escrevem sobre a relação do teatro com a cidade, como os já citados Jen Harvie e Stanton Garner Jr., também serão utilizados como aporte teórico estudos escritos por Renato Cordeiro Gomes sobre as representações e escritas da cidade.

Breve apresentação da Aquela Cia. de Teatro

A Aquela Cia. de Teatro, sediada no Rio de Janeiro, foi fundada em 2005 pelo ator, diretor e dramaturgo Pedro Kosovski em parceria com o diretor Marco André Nunes. Curioso observar que, ao contrário da maioria das companhias teatrais cariocas e brasileiras cujo núcleo é formado por atores – a Cia. dos Atores e os Atores de Laura são um grande exemplo disso, como deixam ver seus nomes –, a Aquela Cia. conta apenas com Kosovski e Nunes; os demais artistas trabalham apenas em determinadas montagens a convite dos dois ou a partir de alguma oficina por eles ministradas.

O início da trajetória de Kosovski como dramaturgo se confunde com a trajetória da própria companhia. A primeira peça da Aquela Cia., Projeto K., foi escrita em 2005 pelo dramaturgo Walter Daguerre, através de trabalho colaborativo, a partir da vida e obra do escritor Franz Kafka. Na montagem, Nunes era o diretor e Kosovski um dos atores. O trabalho seguinte da companhia seguiu o mesmo processo de Projeto: Subwerther, baseado em Os sofrimentos do jovem Werther, de Goethe, e dos fragmentos desse romance presentes no livro de Roland Barthes, Fragmentos de um discurso amoroso. Já em 2006, Kosovski decide ele mesmo escrever um texto, interrompendo sua carreira de ator para se tornar o dramaturgo da companhia. Dessa vez foi Lobo n. 1 – a estepe, baseado no romance de Herman Hesse. Logo em seguida escreveu Do artista quando jovem, inspirado no universo literário de James Joyce.

Após pausa por alguns anos, Kosovski e Nunes entenderam que estavam “fazendo há cinco anos trabalhos sobre cânones literários da Europa” (Kosovski, 2019, p. 218), o que interpretaram como uma formação deles enquanto artistas. Desse modo, em 2011, os dois decidiram pesquisar e experimentar a relação entre teatro e música e, assim, Kosovski escreveu Outside, um musical noir, elaborado a partir do encarte do álbum homônimo de David Bowie, e, em seguida, Edypop, inspirado no mito de Édipo e em John Lennon.

O universo da música e de personalidades persiste na dramaturgia de Pedro Kosovski, mas a partir da chamada Trilogia Carioca, a música continua intrínseca à montagem – e então se constitui uma das principais marcas da companhia –, mas as personalidades e os temas e abordados são aqueles do Brasil; mais especificamente do Rio de Janeiro.

Assim, a primeira peça da trilogia, escrita em 2012, trata do criminoso Manoel Moreira, de alcunha Cara de Cavalo, que deu título à peça, executado por policiais quando foragido na cidade de Cabo Frio, e do artista Helio Oiticica, que lhe rendeu uma homenagem com o Bólide caixa 18. Em seguida, em 2015, veio Caranguejo Overdrive, sobre um mangue carioca aterrado no final do século XIX, onde atualmente se situa a Praça Onze. Finalmente, em 2017, Guanabara Canibal, escrita sobre o encontro do índio com o colonizador a partir de estudos da Batalha de Uçumirim e de relatos dos cronistas franceses Jean de Lery e André Thevet. Destarte, o dramaturgo revela que a partir do início da trilogia carioca com Cara de cavalo, a companhia “deu um passo no sentido de politização, foi uma chegada a questões do Brasil, e radicalização do trabalho” (Kosovski, 2019, p. 219).

Vale ressaltar que além de não haver um gancho direto entre as peças que compõem a Trilogia Carioca, a não ser o fato das três serem localizadas no Rio de Janeiro de temporalidades distintas, também não há uma linearidade cronológica, posto que a trilogia, em relação à temática principal, começa com um Cara de Cavalo dos anos de 1960, passa para um Rio de Janeiro do final do século XIX em Caranguejo Overdrive, e se encerra com os primeiros contatos do colonizador com os tupinambás no Rio de Janeiro do século XVI com Guanabara Canibal. No entanto, nas três peças, o tempo em que a temática se insere é mesclado por um passado anterior a elas e um futuro, inclusive o momento atual ou um agora.

O Rio de Janeiro em Cara de Cavalo

Cara de Cavalo, assim como toda a Trilogia Carioca, se inscreve na diversidade da literatura contemporânea. A esse respeito, críticos e teóricos vêm identificando uma heterogeneidade e multiplicidade de formas e temas na literatura contemporânea brasileira, de modo que não podemos dizer que haja uma tendência clara que possa categorizá-la de forma unificadora. No entanto, eles apontam para alguns elementos constitutivos dessa nova escrita, tais como narrativas curtas, estruturas fragmentadas, urgência em se relacionar com a realidade histórica, insistência do presente temporal, hibridismos entre a escrita literária e não-literária e utilização de novas tecnologias. Nesse sentido, Beatriz Resende (2008) assinala algumas questões que permeariam a produção literária contemporânea no País, principalmente entre os novos escritores: a presentificação, o retorno do trágico e a tematização da violência.

Podemos observar esses mesmos elementos acima na escrita dramatúrgica brasileira contemporânea e, assim como na literatura, na qual, segundo Resende, ocorre uma “heterogeneidade em convívio, não excludente” (Resende, 2008, p. 18), vemos na dramaturgia hoje uma multiplicidade de gêneros, estilos e escrita, e, de alguma forma, as questões da presentificação, do retorno do trágico e do tema da violência também se fazem presentes no teatro contemporâneo. No caso de Cara de Cavalo, também vemos os hibridismos, o desejo de abordar a realidade histórica e os textos fragmentados.

A peça Cara de Cavalo foi escrita a partir da história do criminoso brasileiro Manoel Moreira, assassinado pela Scuderie de Cocq, organização extraoficial criada por policiais em 1965 com o objetivo de vingar a morte do detetive Milton Le Cocq, morto por Moreira. Por esse assassinato, Cara de Cavalo foi considerado pela mídia como “inimigo número 1 da Guanabara”, frase inclusive utilizada na peça (Kosovski, 2015, p. 42), e de marginal comum passou a ser um dos criminosos mais procurados no Rio de Janeiro. Uma grande mobilização policial foi feita a sua procura, mas ele foi executado pelo grupo extraoficial com mais de cem disparos na cidade de Cabo Frio.

Enquanto a Scuderie Le Cocq inspirou o Esquadrão da Morte, o assassinato de Cara de Cavalo e a foto que estampou jornais com o corpo do criminoso perfurado por balas inspiraram o artista plástico Hélio Oiticica na criação da obra Bólide caixa 18, ainda em 1965. Três anos depois Oiticica prestaria outra homenagem com a bandeira-poema “Seja marginal, seja herói”, que acabou marcando o início do movimento da cultural marginal e que permeia toda a peça aqui em questão.

Conforme assinalado por Pedro Kosovski (2019 p. 221), a pesquisa para a escrita da peça contou principalmente com arquivos de jornais da época, particularmente o Última Hora, e o livro Cidade Partida, de Zuenir Ventura, além, claro, de parte da obra e vida de Hélio Oiticica.

Na peça Cara de Cavalo estão presentes todos os elementos que fizeram parte da vida do criminoso, principalmente aqueles que se referem a sua morte: sua relação com o jogo de bicho, sua atividade como cafetão, sua moradia na Favela do Esqueleto, a mídia e a espetacularização da violência. No entanto, não se trata de uma peça estritamente realista, posto que é uma ficção baseada na história real que usa de outros elementos teatrais que não aqueles do teatro realista e isso se dá principalmente por conta de intertextualidades que o dramaturgo faz e do uso da fábula[12] como artifício narrativo. Ademais, como assevera Renato Cordeiro Gomes, “os discursos contemporâneos cenarizam e grafam a cidade, com sua polifonia, sua mistura de estilos, sua multiplicidade de signos, na busca de decifrar o urbano que se situa no limite extremo e poroso entre realidade e ficção” (Gomes, 1997, p. 6).

Uma das intertextualidades que mais atravessam a peça é a do universo rodrigueano. Nesse sentido, há citação direta no nome do repórter policial que cobre o caso do assassinato do inspetor Galo, Amado Ribeiro, este também repórter de O Beijo no Asfalto, que trabalhava no jornal A Última Hora. Essa citação ainda é explicitada quando o delegado Cunha, também personagem da peça rodrigueana, pergunta ao repórter “Diz: qual foi a última bomba que você cobriu? O beijo no asfalto? Faz tempo!” (Kosovski, 2015, p. 40). Tanto em O Beijo no Asfalto quanto em Cara de Cavalo, Cunha é o delegado corrupto que, junto com o jornalista sensacionalista Amado Ribeiro, conduz de maneira ilegal o caso de Arandir na primeira e de Cara de Cavalo na segunda.

Além desses personagens, também cita-se diretamente o próprio dramaturgo:

Amado: Você deve me conhecer. Eu sou Amado Ribeiro, do jornal Última Hora.
Marginal: O senhor é que é Nelson Rodrigues?
Amado: Amado Ribeiro
Marginal: O Nelson Rodrigues não trabalha no Última Hora?
(Kosovski, 2015, p. 42).

Como ressalta Antoine Compagnon, “a citação é um operador trivial de intertextualidade. Ela apela para a competência do leitor, estimula a máquina da leitura, que deve produzir um trabalho, já que, numa citação, se fazem presentes dois textos cuja relação não é de equivalência nem de redundância” (Compagnon, 1996, p. 58-59). Isso posto, se após a primeira vez que o personagem aparece na peça, na cena 7, a citação do nome do repórter policial é, de certa forma, posteriormente explicada na passagem acima, fazendo com que esse trabalho comentado por Compagnon que cabe ao leitor fazer para emergir a intertextualidade se enfraqueça, por outro, há citações do universo rodrigueano que permeiam o texto e exigem do leitor fazer a relação com as peças de Nelson.

Um exemplo disso seria a própria estrutura da peça, explicada em sua abertura, com “três planos narrativos” (Kosovski, 2015, p. 21). Enquanto em Vestido de Noiva os três planos da narrativa sobre Alaíde, o da realidade, da alucinação e da memória se alternam, mas se misturam, o mesmo ocorre em Cara de Cavalo. Aqui, os três planos são a trajetória do personagem, os bastidores de uma entrevista ocorrendo no momento presente, e, o outro, tal entrevista finalizada e editada em vídeo. Um olhar mais atento pode ver nas cenas da trajetória de Cara de Cavalo a realidade; nas cenas da entrevista, certa alucinação; e naquelas onde a entrevista aparece em sua versão editada, a memória.

Outro exemplo da citação ao universo rodrigueano seria a linguagem utilizada pelo personagem Amado Ribeiro que remete à linguagem coloquial carioca dos personagens rodrigueanos das crônicas urbanas de A vida como ela é e de Pouco amor não é amor e das tragédias cariocas. Como assinala Mário Guidarini (1990, p. 34) ao comentar o uso da linguagem nessas crônicas e peças: “As expressões desse modelo coloquial – de origem carioca e sobretudo suburbana do Rio – foram incorporadas na linguagem quotidiana de todo o povo brasileiro. Hoje a assimilação e a aculturação desse modelo o transmutaram em patrimônio nacional”. Assim, ouvimos do repórter policial coloquialismos como “Não tem mais corococó” (Kosovski, 2015, p. 35) e “Nunes, é tocante pra burro” (p. 36). No entanto, Pedro Kosovski usa na peça uma expressão que dá essa conotação coloquial, mas que também é um outro exercício intertextual. Dessa maneira, sai da boca de vários personagens “Qual é o parangolé?” (p. 37 e p. 52). Kosovski, portanto, transforma os parangolés – obras que Hélio Oiticica criou a partir de seu contato com a cultura do morro da Mangueira – em expressão coloquial.

Oiticica também está presente em Cara de Cavalo. Na primeira rubrica que abre a peça, lê-se:

“Em cena, três canteiros preenchidos com materiais orgânicos diferentes (terra, brita, areia) que remetem aos Penetráveis de Hélio Oiticica. O público entra e vê projetado o bólide Homenagem a Cara de Cavalo, de Hélio Oiticica” (Kosovski, 2015, p. 21).

Bólide Caixa 18 “homenagem a Cara de Cavalo”. Reprodução fotográfica de Paulo Scheuenstuhl.
Bólide Caixa 18 “homenagem a Cara de Cavalo”. Reprodução fotográfica de Paulo Scheuenstuhl. [13]
Destarte, Oiticica aparece na peça como citação direta e como outra forma de homenagem. No primeiro caso vemos, por exemplo, a personagem Entrevistadora perguntando ao Entrevistado: “[…] Qual a relação entre arte e política? O artista Hélio Oiticica foi amigo de Cara de Cavalo, inclusive imortalizando-o em sua obra” (p. 33-4); e, ainda:

A relação entre Cara de Cavalo e Hélio Oiticica é interessante para se pensar o problema atual da violência. Nesse caso, ninguém é refém da violência. Quando ele cria a obra em homenagem ao Cara de Cavalo, ou quando ele cunha a famosa frase ‘Seja marginal, seja herói’, há uma tomada de posição. Ele poderia se render ao ‘bandido bom é bandido morto’, mas não. ‘Seja marginal, seja herói é um momento ético’ (Kosovski, 2015, p. 60).

Já o personagem Artista, por sua vez, é uma outra forma que Kosovski rende em sua escrita a Oiticica. Tal personagem diz coisas como “Nós temos que reaprender a discutir o poder da revolta. Saca a crise do quadrado? Saca, né? A crise da arte contemporânea” (Kosovski, 2015, p. 58). Ao avistar o riso de Cara de Cavalo, o Artista completa:

Segura esse riso, porra. O que que foi? Isto não é panfleto, não. Tô falando de Mondrian. Tô falando de Malevitch. É a crise do quadrado: qualquer um que acenda a revolta em si é subitamente enquadrado como louco ou bandido. Não tem espaço para a revolta, Cavalo. O mundo tá quadrado! (Kosovski, 2015, p. 58).

Nessa mesma cena, um pouco após essa fala, o “Artista veste Cara de Cavalo com parangolé” (Kosovski, 2015, p. 58).

Cara de Cavalo. Foto de João Julio Mello .
Cara de Cavalo. Foto de João Julio Mello [14].
A partir daí, surge o Cara de Cavalo não mais criminoso, mas o que quando perguntado pelo Artista se ele vai se enquadrar no meio, responde: “Não, não. Vou revoltar” (p. 59). Kosovski faz do personagem, então, um símbolo da resistência, tal como propunha Hélio Oiticica, e seu corpo passa a ser o que Annateresa Fabris (2009) conceituou como o corpo como território político. Conforme Fabris, ao discorrer sobre Oiticica:

Ao associar o ‘momento ético’ ao indivíduo, o artista dá a ver a sua profunda aversão por um Estado policial destituído de toda ética, fundado na violência, no controle, na repressão e no autoritarismo. Cara de Cavalo, nesse contexto, transforma-se em símbolo do direito à resistência individual contra um Estado opressor, do mesmo modo que figuras como Antônio Conselheiro e Lampião […], sendo determinante para isso o fim trágico que tivera (Fabris, 2009, p. 4).

A bricolagem – no sentido referido por Compagnon em “Bricoleur, o autor trabalha com o que encontra, monta com alfinetes, ajusta; é uma costureirinha” (Compagnon, 1996, p. 39) – dos universos de Nelson Rodrigues e de Hélio Oiticica remete a universos cariocas, assim como a trajetória do próprio personagem Cara de Cavalo. Essas aproximações que o dramaturgo opera estão em consonância com o que Renato Cordeiro Gomes observa e é a epígrafe que abre este estudo: “O livro de registro da cidade é um labirinto: um texto que remete a outro, que por sua vez conduz a um terceiro, e assim sucessivamente” (Gomes, 2008, p. 24).

Há, contudo, diversas outras passagens da peça que fazem referências diretas à cidade do Rio de Janeiro. A cena 3, por exemplo, é um diálogo do inspetor Galo com um apontador de jogo do bicho. Apesar da prática ter se ramificado por todo o Brasil, o jogo do bicho – também explorado nas peças de Nelson Rodrigues que tanto inspiraram Pedro Kosovski na escrita de Cara de Cavalo – teve origem na cidade do Rio de Janeiro e se tornou símbolo de contravenção da cidade. Aqui, o dramaturgo parece considerar o que Renato Cordeiro Gomes (2009, p. 23) explicou como “Nesses estudos culturais, é fecundo levar em conta os imaginários urbanos coletivos que, junto às ficções, desempenham relevante papel na formação das identidades”.

Ademais, ao tratar da caçada da polícia carioca a Cara de Cavalo, um locutor narra:

O delegado Cunha foi morto ontem na favela do esqueleto […]. O detetive Garboso confessou o crime. […] Garboso foi atingido no glúteo esquerdo e se recupera no hospital do Méier. […] um aparatoso cerco formou-se ontem em São Francisco Xavier, ao qual compareceu o próprio governador no encalço de um marginal que se acreditava ser o Cara de Cavalo. Testemunhas afirmam que o marginal foi visto na Central do Brasil (Kosovski, 2015, p. 55-56).

Também, em off, a Entrevistadora diz: “Mangueira ou Esqueleto? O que você pensa do Esquadrão da Morte?” (Kosovski, 2015, p. 35), referindo-se aos dois morros cariocas e ao grupo de extermínio criado em fins dos anos 1960 no antigo estado da Guanabara. O Rio de Janeiro, então estado da Guanabara, é sempre mencionado, como quando Amado diz a Cunha: “[…] vai continuar sendo o delegado mais burro da Guanabara?” (Kosovski, 2015, p. 37).

Para o leitor informado, principalmente o carioca, difícil não fazer analogia dos assassinos de Cara de Cavalo e das menções ao Esquadrão da Morte com a milícia carioca. Também é possível pensar no personagem, escolhido como figura icônica da violência carioca, com outras tantas espetacularizadas pela mídia carioca, tais como Fernandinho Beira-Mar, famoso traficante que, quando Cara de Cavalo foi escrita, estampava capas de jornais e tinha seus crimes comentados no noticiário televisivo e das rádios.

Essa questão da espetacularização da mídia carioca em relação a criminosos e leniência de certa opinião pública quanto aos métodos extraoficiais e violentos da polícia da cidade também são bem exploradas na peça. O repórter Amado Ribeiro fala exultante: “Para cada policial morto serão dez, dez bandidos mortos. Ah, quem aparecer pela frente é bandido! Isso é melhor que faroeste. Vou colocar um placar no alto da página marcando a pontuação das mortes de um lado e de outro. Não, só pra animar a população, vamos criar torcida” (Kosovski, 2015, p. 36). Em outra cena posterior, o repórter ainda diz ao delegado Cunha: “Eu preciso de tempo para transformar esse bandido chinfrim no inimigo número um da cidade. Basta você puxar um pouco o freio na condução de caso” (Kosovski, 2015, p. 39). Cunha, demonstrando entusiasmo, ainda ouve de Amado Ribeiro:

Vou fazer uma série de reportagens sobre a caçada. Entrevista exclusiva com bandido. Isto não pode ser a perseguição de um bandido isolado. Isto é uma ofensiva nacional dos homens de ouro da polícia contra a criminalidade de Guanabara. Vou vender jornal a dar com pau! E o resultado: o nome de Galo limpo e eternizado na história, você com a banca de herói, Cara de Cavalo com status de bandido perigoso e eu com uma bela reportagem. Então? Bom para todo mundo (Kosovski, 2015, p. 39-40).

Renato Cordeiro Gomes nos lembra alguns elementos que atravessam a produção literária contemporânea e, ao citar autores tais como Rubem Fonseca e Chico Buarque, mostra alguns deles que, por sinal, podemos constatar em Cara de Cavalo. Segundo Cordeiro Gomes, há um

repertório de temas contemporâneos: a proliferação das diversas formas de violência atreladas à cultura do medo, as relações de poder, a cidade da memória e a memória da cidade – o que se tece com o tema da nostalgia de uma cidade mítica perdida e a impossibilidade de resgate, na cidade atual, desses tempos mais amenos […], a contracultura e suas relações com o universo urbano (Gomes, 2000, n.p.)

Considerações finais

A peça Cara de Cavalo faz um recorte temporal para falar de um Rio de Janeiro de outrora, o do estado da Guanabara de 1965. Não obstante a peça se passar naquela data, com a trajetória do personagem que dá nome a ela, ela é entrecortada por um momento atual que seriam os bastidores de uma entrevista. Assim, o Rio de outrora é implicitamente comparado a um Rio atual, o Rio da espetacularização do crime e da violência policial, além da atuação de grupos paramilitares. Apesar de Cara de Cavalo ter se refugiado na cidade de Cabo Frio, estado do Rio de Janeiro, e de lá ter sido executado, a peça aponta para isso, mas o foco permanece sempre a cidade carioca.

Mas não só a cidade do Rio de Janeiro está em pauta na peça. Há também referências a acontecimentos históricos do Brasil, como o golpe e a ditadura militar, e certo jornalismo sensacionalista que se espraia pelo País. A esse respeito, conforma assinala Renato Cordeiro Gomes sobre a cultura brasileira contemporânea, “[…] a nação, para o bem ou para o mal, é um espectro que nos assombra” (Gomes, 2014, p. 53). Assim, vemos que Cara de Cavalo se alinha com a literatura brasileira contemporânea que, conforme Cordeiro Gomes aponta, “não está mais empenhada em representar a nação como totalidade, fundamentada no pensamento eurocêntrico de universalidade…” (Gomes, 2014, p. 41).

As peças que se seguiram a Cara de Cavalo, Caranguejo Overdrive e Guanabara Canibal, conforme exposto na contextualização da Aquela Cia. feita no início desse estudo, trataram, respectivamente, do Rio de Janeiro do início do processo de modernização da cidade, com a construção do Canal do Mangue no antigo Mangal de São Diogo, primeira obra sanitária realizada na cidade em fins do século XIX, e os primeiros encontros entre o colonizador e o indígena que originou a fundação do Rio de Janeiro. A Trilogia Carioca, portanto, apresenta um caleidoscópio da cidade, não se pretendendo mostrar o Rio de Janeiro, mas alguns Rios de Janeiros. Nesse sentido, à guisa de conclusão, mais uma vez recorro a Renato Cordeiro Gomes, que assevera que

[t]entar uma leitura globalizante, totalizadora, desse livro de registro, tentar uma reconstituição imaginária, através de suas folhas e pranchas, da cidade ‘como é ou foi agora’, é tarefa impossível. O livro é composto de pedaços, fragmentos, trechos apagados pelo tempo, rasuras – de textos que jamais serão recompostos na íntegra. As folhas, por outro lado, se superpõem, pois inscrevem cidades sucessivas, que por acaso têm o mesmo nome (Gomes, 2008, p. 24).


* Carolina Montebelo Barcelos é pesquisadora e professora de teatro. Doutora em Literatura, Cultura e Contemporaneidade, pela PUC-Rio. Autora dos capítulos “Todos os sonhos da carne e da alma: o Rio de Janeiro em Nelson Rodrigues”, do livro Rio Circular: a cidade em pauta (2016), e “Insetos: uma metáfora dos 30 anos da Cia. dos Atores”, do livro Estudos de encenação e atuação (v. 3, 2019).

Referências

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Notas

[1] Dedico este artigo à memória de Renato Cordeiro Gomes, pesquisador essencial para os estudos das representações da cidade na literatura e cultura e com quem aprendi como aluna, orientanda e pesquisadora a ler a cidade no teatro. Nenhuma bibliografia usada aqui seria possível, para mim, não fosse por ele.

[2] No original: “from the Athenian civic and religious festivals through the public and private theaters of the early modern period, its history parallels the progression(s) of western urbanism”. Tradução livre.

[3] No original: “theatre has constituted an overt reading of the urban text”. Tradução livre.

[4] No original: “which literally traversed the medieval city in a meaning-charged cognitive mapping”. Tradução livre.

[5] No original: “the most urban of cultural forms”. Tradução livre.

[6] No original: “violated the boundaries between theatre and city, auditorium and street”. Tradução livre.

[7] Por vezes traduzido como “teatro ambientalista”.

[8] Eventualmente traduzido como “sítio específico”.

[9] Também conhecido como “teatro de imersão”.

[10] No original: “theatre practices produce urban meaning”. Tradução nossa.

[11] A editora Cobogó tem publicado um número expressivo de peças de dramaturgos contemporâneos, além de também publicar estudos voltados à dramaturgia.

[12] Na peça, coloca-se literalmente uma máscara no personagem que remete a um cavalo. Ademais, na cena em que o inspetor Galo conversa com o apontador do jogo do bicho sobre as descrições físicas de Cara da Cavalo, as perguntas são semelhantes àquelas presentes em Chapeuzinho Vermelho, com passagens tais como “olhos grandes”, “orelhas pontudas”, “fuça longa, comprida”(Kosovski, 2015, p. 27). Ao falar da peça, o próprio Pedro Kosovski afirmou que apesar da peça ser “atravessada pelo real” (Kosovski, 2019, p. 225), ele intencionava mesmo trabalhar com a fábula “desprezada por um certo teatro contemporâneo (Kosovski, 2019, p. 229).

[13] Retirado de página da Enciclopédia Itaú Cultural. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra4892/b33-bolide-caixa-18-homenagem-a-cara-de-cavalo>. Acesso em: 20 mar. 2020.

[14] Foto retirada da página do Facebook da Aquela Cia., postada em 4 out. 2012. Disponível em: <https://www.facebook.com/aquelacia/photos/a.533036633377004/533039206710080/?type=3&theater>. Acesso em: 15 fev. 2020.