Ano XVI 0201
dossiê
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MIMOSO: PAISAGEM TRAUMA NA VÍDEO-PERFORMANCE DE JULIANA NOTARI

O presente artigo apresenta uma crítica à vídeo-performance Mimoso, da artista plástica Juliana Notari, dimensionando artista e obra no campo da arte feminista e do feminismo no século XXI, que, já tendo ultrapassado a binaridade de gênero, abrange todos os Outros oprimidos pela masculinidade e, por consequência, pela “colonialidade do poder”. Ao situar o olhar da artista no campo de uma “Nova Objetividade”, o artigo-crítica dialoga com as propostas da cientista Donna Haraway sobre o olhar feminista. Com efeito, tendo em vista que Mimoso traz também uma crítica ao Antropoceno, a obra dialoga não só com a história da arte e a filosofia, como também com a Antropologia, mais especificamente com o pensamento de Eduardo Viveiros de Castro, de Juliana Fausto e de Anne Tsung.

Figura 1: Juliana Notari, Mimoso, 2014, videoperformance, 4:44 minutos (Arquivo da artista).
Figura 1: Juliana Notari, Mimoso, 2014, videoperformance, 4:44 minutos (Arquivo da artista).

A Figura 1 é uma imagem da vídeo-performance Mimoso, da artista Juliana Notari: pernambucana, brasileira, latina que, do Sul Global, lança uma crítica à “crueldade da colonialiadade do poder”, categoria teórica elaborada pela antropóloga Rita Segato (2003). Partindo dessa perspectiva analítica, Mimoso não se instala somente na história política das mulheres, mas traduz traumas e feridas abertas pela colonialidade, que, para a artista, “é a ferida de nosso holocausto” (Notari, 2021).[1]

Mimoso regurgita uma história de opressão dos humanos sobre os não humanos.  É uma crítica política que, ao se posicionar na “diferença”, desconstrói formulações milenares sobre as mulheres e todos os “Outros”. A obra de Notari é resultado da consciência da mulher mestiça, como define a poeta e feminista Gloria Anzaldúa, uma vez que o choque de vozes que o conjunto de suas obras apresenta – e, Mimoso, em particular – resulta em estados mentais e emocionais de perplexidade, porquanto “a personalidade múltipla da mestiza é assolada por uma inquietude psíquica” (Anzaldúa, 2005, p.1).

No artigo “Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial”, a cientista feminista Donna Haraway (1995, p.7) afirma que a visão, na sua natureza corpórea, pode ser resgatada como sistema sensorial a significar um olhar particular disruptivo em relação ao olhar de “privilégio da perspectiva parcial masculina”. A palavra visão, segundo a autora, é difamada por feministas de todas as disciplinas, uma vez que “significa as posições não marcadas de Homem e Branco” (Haraway, 2005, p. 12), tornando-se, assim, uma das “tonalidades desagradáveis que a palavra objetividade tem para os ouvidos feministas nas sociedades científicas e tecnológicas, pós-industriais, militarizadas, racistas e dominadas pelos homens” (Haraway, 2005, p. 12).

Em oposição a tal perspectiva parcial, a autora propõe uma objetividade corporificada capaz de acomodar “os projetos científicos feministas críticos e paradoxais: objetividade feminista significa, simplesmente, saberes localizados” (Haraway, 2005, p. 15). Visto que, se os olhos têm sido “usados para significar uma habilidade perversa – esmerilhada à perfeição na história da ciência vinculada ao militarismo, ao capitalismo, ao colonialismo e à supremacia masculina” (Haraway, 2005, p. 16), distanciando o sujeito cognoscente do interesse do poder desmesurado, a autora sugere a construção de uma visão particular não vinculada à “falsa visão que promete transcendência de todos os limites e responsabilidades” (Haraway, 1995, p. 21).

A moral é simples: apenas a perspectiva parcial promete visão objetiva. Esta é uma visão objetiva que abre, e não fecha, a questão da responsabilidade pela geração de todas as práticas visuais. A perspectiva parcial pode ser responsabilizada tanto pelas suas promessas quanto por seus monstros destrutivos. Todas as narrativas culturais ocidentais a respeito da objetividade são alegorias das ideologias das relações sobre o que chamamos de corpo e mente, sobre distância e responsabilidade, embutidas na questão da ciência para o feminismo. A objetividade feminista trata da localização limitada e do conhecimento localizado, não da transcendência e da divisão entre sujeito e objeto. Desse modo podemos nos tornar responsáveis pelo que aprendemos a ver (Haraway, 1995, p. 22).

Os olhos, como sistemas de percepção ativos, constroem traduções e modos específicos de ver, isto é, modos de vida. Desse ponto de vista, a objetividade feminista pode propor novas perspectivas sobre as relações de poder, as quais permitam pensar igualdade política e social com o objetivo de incluir, além da dimensão de gênero, as questões de classe e de raça que até então subjaziam em análises centradas na neutralidade do humano enquanto tal e no caráter ontológico do sujeito (Rodrigues; Heilborn; 2013, p. 4).

É desse “ponto teórico” (Viveiros de Castro, 2014) que interpretamos que Notari inventa um modo próprio de corporificar a objetividade feminista em suas obras, porque representa o terreno subterrâneo dos saberes subjugados. Para Haraway, as perspectivas dos subjugados também não são posições inocentes, “porque, em princípio, são as que têm menor probabilidade de permitir a negação do núcleo crítico e interpretativo de todo conhecimento” (Haraway, 1995, p 23). Por outro lado, os saberes parciais, localizados, críticos, apoiados na possibilidade de redes de conexão, chamados de solidariedade em política e de conversas compartilhadas em epistemologia, possibilitam a representação dos corpos não marcados: o corpo heteronormativo, masculino, branco (Haraway, 1995, p. 25). Ao corporificar a objetividade feminista em suas vídeo-performances, a artista cria diálogos com outras narrativas científicas e humanistas, desenhando o saber da feminidade e o saber dos corpos marcados.

Na performance Mimoso (Figura 1), Juliana Notari parte do olhar da objetividade feminista e desconstrói uma tradição da história da arte que se insere na história social indiferente à “genealogia da liberdade como um atributo que separa todos os seres humanos de todos os outros seres vivos” (Tsung, 2019, p. 125). A castração do búfalo Mimoso, na Ilha de Marajó, é um ato de opressão da masculinidade, servindo-se para satisfazer suas necessidades econômicas. Posta e proposta a partir desta perspectiva, a castração do búfalo Mimoso questiona a noção de “liberdade” tal como é entendida, visto que esta não representa uma descrição que narra o modo como vivemos no mundo, mas, antes, um ato institucional e planejado.

Mimoso representa, assim, a ocularidade dramática de uma paisagem que revela ao espectador o abuso de outras espécies pelos humanos, o que faz a vídeo-performance se posicionar nos debates atuais dos estudos sobre o Antropoceno: a Sexta Extinção. Mimoso expõe o trauma da artista ao se deparar com as formas degradantes como os não humanos foram engendrados ao longo da história, agravando-se, ainda mais, pela colonialidade do poder. A performance fílmica traduz uma denúncia e um desamparo que dispõem em cena a pergunta: como podemos pensar que os “não humanos não são sociais?” (Tsung, 2019 p. 119). Mimoso dá a ver ao espectador a “oposição entre sociabilidade humana e não humana”, revelando, ainda, a impossibilidade de atingirmos uma “sociabilidade mais que humana (…), a não distinção entre humanos e não humanos” (idem).

Juliana conta que Mimoso foi a primeira performance realizada por ela, em Belém. Ao chegar na capital paraense, em 2014, a artista soube dos búfalos da Ilha de Marajó que, por serem exímios nadadores, conseguiram sobreviver a um naufrágio e chegaram até a ilha. Atualmente, são em maior número que os habitantes humanos, sendo toda a economia de Marajó inteiramente dependente dos búfalos (“a polícia anda de búfalo e os búfalos realizam a limpeza da praia”, afirma Juliana). Ao chegar à ilha, já com a intenção de fazer uma performance com um desses animais, visitou uma fazendo de búfalos, onde havia os castrados e os não castrados. Logo se apaixonou pelo búfalo Mimoso, que ainda não havia sido castrado. Porém, na sequência, soube que, por ser agressivo, Mimoso seria castrado pelo dono e, nessa condição, o animal não poderia responder às necessidades do proprietário, que precisava de um búfalo manso para levar turistas para passear pelas praias de Marajó. A performance Mimoso nos relata, então, a representação triste e dramática de como os animais tornaram-se apenas brinquedos mecânicos nas mãos dos humanos, revelando a impossibilidade de uma outra genealogia da liberdade, uma outra forma de sociabilidade humana que envolva a liberdade de outras espécies viventes (Tsung, 2019, p. 45).

Mimoso pode ser interpretada como uma performance visual e teatral em três atos que ocorrem a-temporalmente. Aqui separamos os três atos em uma tentativa de ler a obra, que ocorre na esfera do trauma, da impotência, da morte, unidas ao sentimento de repulsa e, também, a um revigorar antropofágico, de recomposição da potência de vida do humano (a artista) pelo não humano (o búfalo).

Primeiro ato: “Paisagem da impotência”

 

Figura 2: Juliana Notari, Mimoso, 2014, vídeo-performance, 4:44 minutos (Arquivo da artista).
Figura 2: Juliana Notari, Mimoso, 2014, vídeo-performance, 4:44 minutos (Arquivo da artista).

Denominamos o primeiro ato de “Paisagem da impotência” (Figura 2), pois vemos a artista nua sendo puxada pelo búfalo Mimoso, seus pés amarados a ele por uma corda que sugere que a energia de ambos se encontra em estado de simultaneidade. Mimoso arrasta a artista, que é um humano representando o insólito, o nada, o vazio, a morte para a natureza, onde ela (humano/mulher) e a natureza (não humano/búfalo) parecem ter deixado de resistir. A artista é a morte que “vive uma vida humana” (Bataille, 2013, p. 3). O búfalo é a morte que vive uma vida não humana. A nudez de seu corpo e de seus pés amarrados (Figura 3) se igualam ao estado de impotência/morte do animal castrado em estado sacrificial. Humano e não humano seguem na paisagem desértica expondo a impotência, a morte.

Figura 3: Juliana Notari, Mimoso, 2014, vídeo-performance, 4:44 minutos (Arquivo da artista).
Figura 3: Juliana Notari, Mimoso, 2014, vídeo-performance, 4:44 minutos (Arquivo da artista).

De um lado, podemos relacionar o ato da performance de Mimoso a uma crítica da “Vontade da Potência” humana sobre a impotência do não humano. Nietzsche, que toma o conceito “Vontade da Potência” de Schopenhauer, afirma que a “Vontade da Potência” é cega e insaciável e constitui a própria existência. Para Nietzsche, a Vontade não está fora do mundo, mas se dá na relação, uma vez que se diz sempre no plural. Estando em luta constante, o mundo encontra-se sem equilíbrio possível. A Vontade, estando presente em tudo, se mostra com sua sede de dominar, constrangendo outras forças mais fracas até dominá-las. Estando sempre em expansão, procura superar-se, incorporando-se a outras até tornar-se maior e dominante.

Por outro lado, ao observarmos na performance visual duas potências dominadas, o não humano e o humano (mulher), podemos relacioná-las ao tempo histórico que Donna Haraway qualifica como Chthuluceno: época em que o humano e o não humano estão inextricavelmente ligados nas práticas tentaculares (Haraway, 2016). Chthulu, para Haraway, é um deus subterrâneo, abissal e inominável (Viveiros de Castro; Fausto, 2014). Quando Chthulu se levanta não há lugar possível para a humanidade, uma vez que ele é um Deus anti-humano. Chthuluceno é uma das denominações para o Antropoceno – “etimologia da palavra Antropos, ou aquele que olha para o céu, alusão aristotélica (…) em oposição aos animais que olham para o chão” (Viveiros de Castro, 2014). Para Haraway, segundo Viveiros de Castro, esse conceito é incurável, porque exclui mulheres, escravos, crianças, todos aqueles que não se adequam ao capitalismo. Ou ainda,

todos aqueles que estão na vanguarda da revolução Terrana ou humana, no sentido que Haraway dá a palavra Humus: um Compost Humanism (…). Porque o Antropos não diz respeito a todos, mas somente ao cidadão. Contudo, quem é o cidadão, senão a maioria deleuziana: o homem branco, cristão, europeu? (Viveiros de Castro, 2014).

“Paisagem da impotência” a nos ser revelada como o Outro, humano/mulher e não humano/búfalo que compartem uma mesma condição na era da perturbação humana que constitui o “Antropoceno”, de onde Chthulu parece ter se levantado.

Segundo ato: “Sacrifício”

“Mimoso foi castrado sem anestesia por um veterinário na beira da praia” (Notari, 2021).

A castração foi compreendida por Freud como um ardil feminino. O psicanalista afirma que no olhar da mulher habita a grande ameaça da castração masculina, uma vez que o olhar feminino se associaria ao olhar da Medusa: personagem mítica que não tem apenas o poder de matar, mas de devorar e cegar o homem que a olha. O psicanalista canônico, talvez do alto de sua masculinidade, conclui, assim, que o olhar da Medusa é uma metáfora para o olhar da mulher. Tal construção foi, de fato, afirmada milenarmente pela masculinidade, gerando um processo que, como sabemos, levou à subordinação e à absoluta assimetria da mulher nas hierarquias de poder.

No campo da arte, já demonstramos em outro texto (Oliveira, 2021) que não foi a mulher quem castrou o homem, mas a própria história da arte. Pois, como sabemos, a Masculinidade requer a ereção do pênis como garantia. Desde as esculturas gregas (Figura 4), passando pelo Renascimento (Figura 5) até o advento das vanguardas artísticas (Figura 6), o pênis ereto é caracterizado nas artes visuais do século XX como um marcador da masculinidade. Todavia, Freud parece não ter se dado conta de que a própria arte necessita de um intervalo de oclusão, a ser transmutado na diminuição do pênis para que a ordem e o ideal fálico possam permanecer intactos. Para tanto, o modelo deve ser castrado, não pelo olhar da mulher-Medusa, mas pela própria arte, que se transforma ela própria em uma espécie de Medusa corporificada.

Figura 4: After Policlitus, Doryphoros, c. 450 a.C. (Nead, Linda. The Female Nude: art, obscenity and sexuality. London & New York: Routledge, 1992, p. 85).
Figura 4: After Policlitus, Doryphoros, c. 450 a.C. (Nead, Linda. The Female Nude: art, obscenity and sexuality. London & New York: Routledge, 1992, p. 85).

 

Figura 5: Michelangelo Buonarroti, Davi, 1501-1504 (Academia de Belas Artes de Florença).
Figura 5: Michelangelo Buonarroti, Davi, 1501-1504 (Academia de Belas Artes de Florença).

 

Figura 6: Edward Munch, Bathing Man, 1907. (Belvedere, Vienna. In: Berman, Patricia. The body imaged: The human form and visual culture since the Renaissance. Org. Kathleen Adler and Mareia Pointon. Cambridge: Cambridge University Press, 1993, p. 74).
Figura 6: Edward Munch, Bathing Man, 1907. (Belvedere, Vienna. In: Berman, Patricia. The body imaged: The human form and visual culture since the Renaissance. Org. Kathleen Adler and Mareia Pointon. Cambridge: Cambridge University Press, 1993, p. 74).

A imagem da castração de Mimoso e as operações artísticas que Juliana Notari compõem, ao se inscreverem nos discursos da objetividade feminista e nas narrativas artísticas pós-modernas, se situam numa distância relativa a uma história da arte patriarcal, nos transportando, com efeito, a outras proposições de mundos e realidades possíveis. Pois, como questiona Viveiros de Castro (2014), “que tipo de aparato imaginário nós somos capazes de produzir para dar conta de tudo que está acontecendo?”. Desse ponto de vista, a performance visual Mimoso nos estimula a perguntar: afinal, o que vemos acontecer na imagem desta castração? Anne Tsung afirma que, quando as ciências consideram a obviedade de uma sociabilidade mais humana, salta aos nossos olhos humanos a seguinte questão: “como podemos esquecer de uma sociabilidade mais que humana?” (Tsung, 2019, p. 173). A castração do búfalo Mimoso é um ato e uma representação de uma não sociabilidade entre humanos e não humanos. Ao olharmos para o aparato imaginário da artista talvez possamos alcançar a sua objetividade feminista, na apresentação de um novo modo de “dar conta de tudo que está acontecendo”. Tendo em vista que, no caso da vídeo-performance Mimoso, todas as posições foram invertidas e colocadas em suspenso (como uma não resposta, um nada, a morte simplesmente), é tão particularmente na política e na epistemologia das perspectivas parciais feministas que podemos encontrar uma possibilidade de avaliação crítica objetiva, firme e racional do contemporâneo (Haraway, 1995, p. 24).

Terceiro ato: “O regurgitar antropofágico”

Figura 7: Juliana Notari, Mimoso, 2014, vídeo-performance, 4:44 minutos (Arquivo da artista).
Figura 7: Juliana Notari, Mimoso, 2014, vídeo-performance, 4:44 minutos (Arquivo da artista).

 

Figura 8: Juliana Notari, Mimoso, 2014, vídeo-performance, 4:44 minutos (Arquivo da artista).
Figura 8: Juliana Notari, Mimoso, 2014, vídeo-performance, 4:44 minutos (Arquivo da artista).

Sentada à mesa (Figura 7 e Figura 8), a artista tem seu corpo nu, o mesmo que fora arrastado pelo animal, porém, agora, busca a recuperação da potência de Mimoso a partir da degustação antropofágica de seus testículos. A artista degusta os testículos de Mimoso em um prato, com garfo e faca sobre uma toalha branca, manchada de sangue do animal que acabara de ser castrado. A artista parece reencenar a potência do ritual antropofágico das “índias” ao degustarem os guerreiros capturados, cenas vistas e representadas pelos viajantes renascentistas Théodore de Bry e Jean de Léry. Se os testículos do búfalo são comidos em ritual antropofágico para lhe trazer a vida perdida, a potência do não humano com quem esteve em estado de simultaneidade, Notari faz do ritual antropofágico a expurgação de uma anti-História Natural, convencional, utilizada nos discursos das elites europeias e de seus observadores coloniais. Mimoso retira o ritual do legado colonialista e limitador, que é de fato a consumação da precariedade que constitui a relação entre a sociabilidade humana e a não humana, e o reposiciona na objetividade feminista, na crítica decolonial. Esse ato em performance leva o espectador a refazer a pergunta de Anne Tsung (2019, p. 61): como alguém poderia imaginar que coisas vivas não são sociais? Com efeito, concordamos com a afirmação de Donna Haraway (2015, p. 24)ao propor que somente uma objetividade feminista é capaz de criar “uma prática da objetividade que privilegie a contestação, a desconstrução, as conexões em rede e a esperança na transformação dos sistemas de conhecimento e nas maneiras de ver”.

Tal conjunto de imagens que compõem a performance Mimoso conformam uma criação artística em que todas as amarras parecem ter sido rompidas. Instalada nas produções pós-modernas, Mimoso encarna a própria “nêmia da modernidade”, como apontou o filósofo Jacques Rancière (2015, p.43): “a loucura moderna da ideia de uma autoemancipação da humanidade do homem e sua inevitável e interminável conclusão nos campos de extermínio”. Por outro lado, Mimoso também é “experiência de pensamento”, conceito formulado por Eduardo Viveiros de Castro (2014), significando as experimentações imaginárias, elaboradas em pensamento, mas trazidas para o campo da arte. Num sentido próximo a esse, a performance visual de Mimoso evoca as “experiências de pensamento” e as “experimentações imaginárias” que apresentam ao espectador o “fazer de uma experiência” (Viveiros de Castro, 2014).

À guisa de conclusão

A historiadora da arte feminista Griselda Pollock, no prefácio da obra The Sacred and the Feminine: Imagination and Sexual Difference (2014), faz quatro perguntas acerca das artes visuais na contemporaneidade: “O que você acha das artes visuais hoje em dia? O que está acontecendo com a história da arte? Quais são as novas direções? Ao que devemos permanecer leais?” (Pollock, 2014, p. 7).

Partindo, então, de um novo “ponto teórico” como propõe Viveiros de Castro (2014), verificamos que a obra Mimoso está à altura dos diálogos com as linguagens mais contemporâneas e conceituais no campo da arte feminista brasileira, latina e decolonial, visto que ultrapassa a binaridade de gênero, transformando-se em imagem e representação de processos de violências, erigidos por uma ordem patriarcal instalada na longue durée de uma “crueldade da colonialidade do poder”, em que “a soberania opera sobre a vítima sacrificial” (Segato, 2003). Ao libertar-se da prisão do “eterno feminino”, Notari explode com as consonâncias mulher/natureza/fertilidade, para transmutar-se numa metáfora da sexualidade do “Outro” e de sua heteronormatividade em potência, traduzindo traumas, perturbações, feridas históricas, a partir de uma poética do afeto, feminina e feminista.

Por tais razões apresentadas, podemos também situar a obra de Notari no artivismo (Guerra, 2019), uma vez que a arte, no âmago dessas linguagens, possui um papel crucial de resistência e de subversão ao status quo, implicando, a um só tempo, uma ruptura tácita com a visão da arte pela arte (intervenção estética) e, também, o afastamento de uma realidade social e de seu retrato verossímil (intervenção performativa). Ambos os eixos estão presentes na obra de Juliana, em particular em Mimoso.

Na conferência “A Revolução faz o bom tempo”, Viveiros de Castro (2014) afirma ser o referido título utópico, entrópico e parcialmente irônico, porque não existe mais nem Revolução, nem bom tempo. São essas duas ideias obsoletas e o nosso problema é como fazê-las ganhar algum sentido novo (Viveiros de Castro, 2014). Não obstante, ao analisarmos a performance visual Mimoso, verificamos que a arte feminista e o feminismo podem anunciar um “bom tempo”, tanto para o campo da arte, como para a própria humanidade. Pois a arte de Notari parece já ter ultrapassado a “nêmia” assinalada por Jacques Rancèire (2015), transmutando-se em crítica contumaz ao presente opressor e anunciando, assim, que o futuro está em aberto e não estamos encerrados nele. Se a salvação é apenas parcial, como afirma Donna Haraway, existe também, segundo a autora, uma maneira de viver e de morrer bem nessa terra com alegria e com terror (Haraway, 2016, p. 36). Como também o destacam Jacques Rancière (2015) e Viveiros de Castro (2014), o pensamento feminista chegou ao século XXI como a Vanguarda política da contemporaneidade.


* Cláudia de Oliveira é professora associada de História da Arte da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro e membro permanente do Programa de Pós-Graduação da EBA/UFRJ. É membro da Rede de Sociologia da Cultura e Artes “Todas as Artes” e organizou Mulheres na história: inovações de gênero entre o público e o privado (Faperj/Leterar, 2019) e A cidade mulher (Faperj/Mauad, 2016), entre outros. Tem capítulos publicados em Magazines and Modernity in Brazil: Transnationalisms and Cross-Cultural Exchanges (Anthean, 2020) e Paris Fashion and World War Two: Global Diffusion and Nazi Control (Bloomsbury, 2020).

Referências

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FAUSTO, Juliana. Comentário sobre a entrevista de Donna Haraway. In: Colóquio Internacional,Os Mil Nomes de Gaia: Do Antropoceno à Idade da Terra”, 15 a 19 de setembro de 2014. Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro. Realização do Departamento de Filosofia da PUC-Rio e do PPGAS do Museu Nacional – UFRJ. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=Qg0oyW9-rA0, acesso em 13/08/2021.

GUERRA, Paula. Nothing is forever: um ensaio sobre as artes urbanas de Miguel Januário, Horiz. antropol., Porto Alegre, ano 25, n. 55, p. 19-49, set./dez. 2019.

HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial, Cadernos Pagu, Campinas, n. 5, p. 7-41, 1995. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1773, acesso em: 26 out. 2021.

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NEAD, Linda. Female Nude: Art, Obscenity and Sexuality. Routlege: London & New York, 1992.

NIETZSCHE, Friedrich. “A Vontade da Potência”. Disponível em: https://razaoinadequada.com/2013/07/15/nietzsche-vontade-de-potencia/, acesso em 13/08/2021.

RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. Rio de Janeiro: Editora 34, 2015.

RODRIGUES, Carla; HEILBORN, Maria Luiza. Gênero e Pós-Gênero: Um Debate Político. Fazendo Gênero 10 – Desafios Anuais do Feminismo, 16 a 20 de setembro de 2013. Disponível em: http://www.fg2013.wwc2017.eventos.dype.com.br/
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, acesso em 13/08/2021.

SEGATO, Rita L. Conferência Central por Rita Segato, Las Jornadas de Debate Feminista 2019, 15, 16 e 17 de julho, Facultad de Ciencias Sociales y la Intendencia de Montevideo. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=HdDWceq10TA, acesso em 13/08/2021.

TSUNG, Anna Lowenhaupt. Viver nas ruínas: paisagens, multiespécies no Antropoceno. Edição Thiago Mota Cardoso, Rafael Vicorino Devos. Brasília: IEB/ Mil Folhas, 2019.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Comentário sobre a entrevista de Dona Haraway, Colóquio Internacional,Os Mil Nomes de Gaia: Do Antropoceno à Idade da Terra”, 15 a 19 de setembro de 2014. Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Qg0oyW9-rA0, acesso em 13/08/2021.

 

Notas

[1] Entrevista concedida por Juliana Notari a Cláudia de Oliveira em 26 de janeiro de 2021.